Revista do Brasil nº 097

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O planeta verá O golaço da ciência e do Brasil que a Fifa escondeu

O Que mudar O Brasil discute o que quer ser quando crescer

nº 97 julho/2014

A vitoriosa luta do povo Xavante para expulsar os invasores e retomar a terra de seus ancestrais. Tempo de reconstruir

Vida nova

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Menina da aldeia Marãiwatsédé, em Mato Grosso


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Índice

editorial

8. Política

A quem incomoda a ampliação da democracia e da participação

12. Marcio Pochmann A três meses das eleições, o peso das escolhas econômicas

14. Emir Sader

Avanços e limites dos projetos pós-neoliberais no continente

18. Ciência

Os inventores da esperança das pessoas com paralisia celso maldos

26. Capa

A reconquista da terra Xavante, e os invasores ainda à espreita

32. História

O respeito à cultura e aos direitos dos povos tradicionais é parte de um futuro mais justo

Beatles, a democracia, a paz e os outros amores de Mafalda

O cio da terra

36. Literatura

Os escritores marginais. E a quebrada conquista o mundo

O

40. Perfil

paulo donizetti de souza

A pedagoga Dagmar Garroux e o alcance da educação solidária

Rua de São Luís

42. Viagem

Maranhão: reduto de arte, religiosidade, cultura e sol

Seções Cartas 4 Mauro Santayana Destaques do mês

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: Paulo Donizetti de Souza 50

interesse pela questão indígena é crescente no Brasil contemporâneo. Durante muito tempo, uma parcela minúscula da sociedade desfrutou sem ser incomodada da ocupação indevida da terra pertencente a comunidades tradicionais. Não raras vezes, à base de violência e com a omissão dos poderes públicos. Com a Constituição de 1988 – fruto da pressão de amplos setores organizados sobre um Congresso Nacional em dívida com a democracia –, comunidades indígenas passaram a ter reconhecida pelo Estado a ascendência sobre a posse e a ocupação de seus territórios originais. Hoje, cresce a visão da importância dos índios para a terra. Seja por sensibilidade ambiental, seja por consciência solidária e cidadã. O respeito a culturas e direitos dos povos tradicionais – entre os quais também quilombolas, caiçaras e ribeirinhos – vem da crença na necessidade de um novo modelo de desenvolvimento, da superação do individualismo e do consumismo para uma reorganização das sociedades e das economias. Essa mudança de rota é vital para dar maior sobrevida ao planeta e à humanidade. Em prejuízo de avanços alcançados nos últimos anos, grandes proprietários rurais ainda exercem pesada influência sobre as decisões do Estado. A lentidão na execução de processos de demarcações e de retomadas de Território Indígena (TI) resulta em parte do poderio dos ruralistas, sobretudo no Legislativo – onde atualmente disputam com o Executivo o direito de decidir sobre demarcações. Por isso, as vitórias alcançadas pelas comunidades são escassas e árduas. Daí a escolha de levar para a capa desta edição o vitorioso resultado das batalhas de uma comunidade Xavante, em Mato Grosso, para reaver o pedaço de mundo onde nasceram seus ancestrais. E de onde haviam sido expulsos há quase 50 anos pela ganância. Com a proximidade das eleições, é importante que leitores e eleitores reflitam sobre suas responsabilidades na contaminação da política pelos que dela usufruem em benefício próprio. É necessário identificar a quem se estará delegando poderes de legislar e governar. E saber que existe vida além das eleições para se travar a batalha por um país melhor. Como ensina o povo Xavante de Marãiwatsédé. revista do brasil

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cartas www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Diego Sartorato, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gisele Brito, Hylda Cavalcanti, João Peres, Moriti Neto, Sarah Fernandes, Tadeu Breda e Rodrigo Gomes Arte: Júlia Lima. Iconografia: Sônia Oddi Capa Fotos de Sônia Oddi, reprodução de vídeo (ciência) e Paulo Pinto/Fotos Públicas (mudanças) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, Jesus Francisco Garcia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Lage, Paulo Roberto Salvador, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Teonílio Monteiro da Costa

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O mercado e o cenário Falta à RBA a coragem de “dar nome aos bois” do mercado (“O mercado faz suas apostas”, edição 96). Digam abertamente: os bancos: incomodados com uma política de altas reservas do BC, que permitem ao país não elevar as taxas para 45% como fez FHC; pressionados pelos revigorados BB e CEF e por um governo que demonstra que pretende intervir em ganhos abusivos no mercado de agiotagem; colocados na parede para competir pelo consumidor. Se o tal “mercado” martela as teclas que atacam o emprego e o trabalhador, o outro lado deve fazer o mesmo: não sejam omissos em reportagens “água com açúcar”. Andre Tonon Lalo Leal Tenho certeza de que vocês não vão publicar meu comentário, mas pergunto: quais são as “mudanças urgentes de que necessita o futebol do campo para fora”? Pelo texto (“O jogo fora do campo”, edição 96), seria acabar com a corrupção na CBF, com os negócios dos “dirigentes ávidos por recompensas econômicas e políticas”. O que é preciso cuidar é da transição do nosso futebol do período feudal para a era capitalista. FHC tentou fazer isso com a Lei Pelé, que instituiria o futebol empresa. A lei foi escamoteada no Congresso pela bancada da bola, com apoio da esquerda. Mauricio Bernardi

Dom Pedro Casaldáliga Manter a coerência por uma vida inteira, ajudando a organizar populações oprimidas, e enfrentando tantas dificuldades e ameaças, é daquelas coisas que nos faz (ainda) acreditar que a humanidade tem jeito. Acho importante – e necessário – registrar numa publicação como a Revista do Brasil a vida de pessoas como dom Pedro Casaldáliga (“Eucaristia fraterna e subversiva”, edição 96). Os agentes dos interesses que ele combate certamente não se cansam de destratá-lo e diminuí-lo; cabe a quem reconhece a sua importância e tem compromisso com sua luta por direitos fazer o contrário. A matéria também é importante porque nunca custa lembrar que se temos hoje um país um pouco menos desigual e injusto, isso é fruto da luta e da contribuição de muita gente; e que assim também terá de ser para a frente. E pelas imagens: a capela e o quarto parecem impregnados da alma de dom Pedro. Fernando Galvanese O biógrafo do rei Agradeço pela entrevista com Paulo Cesar de Araújo (“São tantas emoções censuradas”, edição 94), jornalista e historiador, do qual tive o prazer de ler o livro Eu Não Sou Cachorro, Não. Soube de sua existência devido ao episódio da “censura” patrocinada pelo Roberto Carlos. Iniciei a leitura sem muita pretensão e me surpreendi desde o prefácio. Ele traça um painel do período da ditadura e seus impactos em toda a sociedade, e como esses músicos tiveram de enfrentar a censura e o patrulhamento ideológico dos que cobravam que fossem “engajados”. Toda a análise que ele faz em seu livro fundamenta-se em pessoas do calibre de Marilena Chauí e outros. Um verdadeiro mosaico da vida de uma população que foi excluída não só nos campos econômico e social, como também dos estudos de nossa cultura. Walter de Souza Filho

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


Mauro santayana

A copa dos Brics

Não podemos abrir mão das relações com o resto do mundo, mas os laços que nos ligam a Moscou, Pequim, Nova Délhi e Pretória são pilar essencial de nossas relações externas

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aímos de uma Copa do Mundo para uma “copa” política – a Sexta Cúpula Presidencial dos Brics –, à qual se seguirá uma reunião entre os lideres do Brics e da Unasul. Se tudo der certo, do encontro entre líderes do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, sediado em Fortaleza no dia seguinte ao da final do Mundial, será anunciada a criação do Banco do Brics e de um fundo de reservas, no valor de US$ 150 bilhões. Será um banco de fomento, nos moldes do Banco Mundial. O fundo de reservas servirá como embrião de uma espécie de FMI próprio, com a missão de socorrer qualquer membro que tenha dificuldade de obter financiamento em outras instituições multilaterais. A reunião dos Brics ocorre em um momento extremamente importante. A crise da Ucrânia contribuiu para afastar do Ocidente o presidente russo, Vladimir Putin, e levou-o a estreitar, ainda mais, seus laços com Pequim e os outros membros do grupo. Essa nova fase de aproximação com os chineses foi sacramentada com a assinatura do “tratado do século”, para a venda, ao longo dos próximos 30 anos, de gás russo à China, pela respeitável quantia de US$ 400 bilhões. Por maior que pareça, não se trata, no entanto, de um mero negócio. O estabelecimento de um corredor entre o urso russo e o dragão chinês, que se assentará em extensa rede de gasodutos e obras de infra-estrutura, abrirá caminho para a construção de gigantesco polo econômico e demográfico, a Eurásia. Um continente virtualmente novo, no qual se dará a ocupação planejada de milhões de hectares de planícies e montanhas, hoje desocupadas, com um projeto que envolverá também outras nações, como o Cazaquistão e a Mongólia, e, a longo prazo, também a Índia. A radicalização das relações entre a Rússia e o Ocidente, com a imposição de sanções pelos Estados Unidos, tende a levar Moscou a buscar outros fornecedores para os alimentos que importa, privilegiando o Brasil e a Argentina. Mas as oportunida-

des para o nosso país vão além disso. Nos últimos anos, temos estreitado a cooperação tecnológica e militar com os Brics. Já fazemos, há alguns anos, satélites de monitora­ mento de recursos terrestres com a China – o último teve 50% de conteúdo nacional. A Embraer fornece aviões radares para a Índia. A Avibras e a Mectron estão desenvolvendo, para as Forças Aéreas brasileira e sul-africana, moderníssimo míssil ar-ar A-Darter em associação com a Denel. Compramos helicópteros MI-35, e baterias anti-aéreas Pantzir dos russos, que nos convidaram a dividir com eles, e os indianos, o projeto e a fabricação do caça bombardeiro de quinta geração T-50. Como qualquer proposta dirigida para mudar o status quo vigente, o Brics tem sofrido intensa campanha nos meios de comunicação ocidentais, voltada para desacreditar o grupo, reduzindo-o à condição que tinha, no inicio, de mera sigla econômica. A China já é o maior sócio comercial do Brasil. Temos tido, como membro do Brics, e também do Mercosul, superávits em nosso comércio com os chineses e a América do Sul, enquanto com a Europa e os Estados Unidos têm aumentado nossos déficits e piorado nossas relações de troca. É claro que não podemos abrir mão de nossas relações com o resto do mundo, mas, qualquer que seja o próximo governo, os laços que nos ligam a Moscou, Pequim, Nova Délhi e Pretória deverão permanecer como pilar essencial de nossas relações externas. Isso vale para a economia, com o atendimento, pelo Brasil, do imenso mercado que surgirá, nos próximos anos, com a incorporação de dezenas de milhões de indivíduos ao consumo, na China e na Índia, condição que dificilmente encontraríamos em outras regiões do mundo. Mas também vale para a política, com o estabelecimento de uma aliança estratégica mundial com países que podem nos ajudar a queimar etapas nas áreas de tecnologia, diplomacia e defesa nos próximos anos. revista do brasil

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redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Paulo Iannone/ Sindicato dos MetrovÁrios

Metroviários de São Paulo em assembleia

Direitos atropelados O presidente do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, Altino de Melo Prazeres Júnior, afirmou que as 42 demissões por justa causa realizadas pela Companhia do Metropolitano (Metrô) como represália à greve da categoria no início de junho atingiram dirigentes e delegados sindicais. “Foi uma retaliação política do governo estadual contra a organização dos trabalhadores”, criticou. O Metrô alegou que os demitidos estavam envolvidos em atos de violência ou na utilização do rádio interno dos trens para comunicar a greve à população. A agente de segurança Raquel Amorim, 26 anos, garante que não. “Você acha que a gente vai fazer algo errado, se

a gente sabe que tem câmera por todo lado no Metrô?” A operadora Marília Ferreira, 30 anos, afirma que a estatal escolheu a dedo quem demitir. “A maioria era de funcionários novos que atuaram nos piquetes.” O agente de estação Ricardo Senese, de 27 anos, ressaltou que não houve processo. “Não foi apresentada nenhuma prova contra nós. Somente nos acusaram e demitiram.” Dos dispensados, 11 são diretores da atual gestão, três são ex-diretores, dois são representantes da Federação Nacional dos Metroviários (Fenametro), incluindo seu presidente, Paulo Pasin, e os outros 26 são delegados sindicais. http://bit.ly/rba_greve_metro

Brasil denunciado na OIT Centrais sindicais brasileiras apresentaram reclamação ao Departamento de Normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) alegando que o Estado brasileiro viola o direito à livre negociação coletiva, desrespeitando duas convenções (154 e 81, esta sobre fiscalização). As queixas se dirigem, principalmente, a decisões de Tribunais Regionais e Superior do Trabalho (TRTs e TST) e iniciativas do Ministério Público do Trabalho (MPT), e ­concentram-se­­ em temas como contribuições e exercício do direito de greve. No que diz respeito sobretudo à livre negociação e ao 6

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direito de greve, a crítica das entidades, embora endereçadas ao Estado – por manter uma legislação que abre brechas para restringir a representação sindical –, atinge também os empregadores, do setor público e privado, que acionam a Justiça do Trabalho para intervir e decidir sobre questões trabalhistas que devem ser resolvidas entre as partes. O documento é assinado por CGTB, CTB, CUT, Força Sindical, Nova Central e UGT e foi apresentado durante a 103ª Conferência Internacional do Trabalho, em Genebra. bit.ly/rba_oit


Classe média, não

Em mais um capítulo do embate conceitual sobre ascensão social no Brasil, o economista Marcio Pochmann lançou novo livro a colocar água na fervura. Em O Mito da Grande Classe Média – Capitalismo e Estrutura Social, como o próprio título sugere, ele desmitifica a qualificação de “nova classe média” como designação dos mais de milhões de brasileiros que, desde o início dos anos 2000, vêm deixando as linhas estatísticas de pobreza para ocupar um lugar entre o que Pochmann prefere chamar de “nova classe trabalhadora”. “É inegável a mobilidade social e material alcançada pelos brasileiros desde a década de 2000, com a criação de milhões de empregos, redução da miséria, ampliação das políticas públicas inclusivas, principalmente em educação e habitação, e aumento do poder de consumo dos trabalhadores”, ressalta. Entretanto, segundo ele, essa inclusão não é sinônimo de “ascensão de classe”. “Classe média poupa, investe, viaja, investe em cultura, lazer e conhecimento. Quer menos imposto e não quer o Estado. Se delicia no momento de declarar o imposto de renda e deduzir planos de saúde, escolas particulares, fundos de previdência, gastos com serviços que recusou do Estado e foi buscar no setor privado.” http://bit.ly/rba_classe-media

rádiobrasilatual

Ideli Salvatti: “A sociedade não admite retrocesso na regulamentação”

Trabalho escravo

A ministra da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ideli Salvatti, disse na cerimônia de promulgação da Emenda Constitucional 81/2014, que prevê a expropriação de imóveis nos quais for comprovada a exploração de trabalho escravo, que a medida não será sumária. E reiterou: “O Brasil não admite, a sociedade não admite retrocesso na regulamentação. Não tiraremos da legislação do trabalho escravo aquilo que a lei prevê: o trabalho exaustivo, a jornada exaustiva, o impedir de ir e vir, o trabalho degradante. Isso está consagrado na legislação brasileira”. Ela afirmou que a expropriação só ocorrerá após decisão judicial, observado o amplo direito de defesa. A regulamentação determinará os procedimentos, até porque não há expropriação automática. Então, o argumento de que é preciso regulamentar (o conceito de trabalho escravo) para não ficar submetido à opinião de um único fiscal do trabalho, não irá vigorar. Vai haver o direito de defesa, e só depois a expropriação do bem, da terra ou da propriedade.” bit.ly/rba_escravo

93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista. www.redebrasilatual.com.br/radio

O sociólogo Emir Sader e o economista Marcio Pochmann acabam de reforçar o time de colunistas da RdB, do portal RBA e do Jornal Brasil Atual, que vai ao ar diariamente pela rádio às 7h da manhã e pode ter sua programação diariamente alcançada neste atalho: bit.ly/ rba_radio. Sader fará comentários sobre política externa e relações internacionais, com destaque para assuntos da América Latina. Pochmann, professor do Instituto de Economia e do Centros de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Fundação Perseu Abramo, fará análises econômicas e do mundo do mundo do trabalho, em uma perspectiva de construção de ideias para o Brasil. As colunas de Emir Sader serão publicadas no portal às segundas-feiras e seus comentários na rádio serão ouvidos às terças e quintas-feiras. Pochmann comentará

fotos Elza Fúza/ABr

Time reforçado na rádio às quartas-feiras e escreverá para o site às sextas. Na emissora, eles se somam ao escritor Flávio Pochmann Sader Aguiar, correspondente em Berlim, comentarista de internacional com foco na Europa e autor do Blog do Velho Mundo, na RBA; ao escritor Frei Betto, que promove reflexões sobre cidadania e direitos humanos; à médica Maria Maeno, especialista em Medicina do Trabalho; ao escritor Mouzar Benedito, cronista e contador de causos; ao cientista político Paulo Vannuchi, representante brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos; e a Tuca Munhoz, especialista em temas ligados à mobilidade e inclusão de pessoas com deficiência. revista do brasil

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política

Quem tem medo de democracia Participação popular e reforma política formam uma agenda que incomoda o conservadorismo Por Marco Aurélio Weissheimer

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política

Luciano Lozano/getty images

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o final de maio, a pre- criação de novos processos e formas de sidenta Dilma Rousseff participação”, afirma o governo na justianunciou a proposta de ficativa da proposta apresentada. criação da Política Nacional de Participação Social Reação conservadora O projeto provocou a reação de setores (PNPS), por meio do Decreto 8.243/2014. O objetivo é articular e fortalecer as ins- parlamentares conservadores e editoriais tâncias democráticas de atuação conjunta irados em alguns meios de comunicação. entre o governo federal e a sociedade civil. O jornal O Estado de S. Paulo, por exemA política estabelece objetivos e diretrizes plo, afirmou que a “instituição de conseao conjunto de mecanismos criados para lhos populares abriria o risco de criação possibilitar o compartilhamento de deci- de um poder político paralelo no país”. O sões sobre programas e políticas públicas, Estadão recorreu a alguns juristas afinatais como conselhos, conferências, ouvi- dos com sua tese para reforçar esses atadorias, mesas de diálogo, consultas públi- ques. Entre eles, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) cas, audiências públicas e Gilmar Mendes, que chaambientes virtuais de par- Os críticos da Política Nacional mou o decreto de “autoriticipação social. tário”, e o ex-ministro do Ao apresentar a pro- de Participação Supremo Carlos Velloso, posta, o governo enfati- Social retomaram que classificou a iniciatizou que ela foi construí- um debate que va de “uma coisa bolivada por meio de processo já foi superado participativo. O esboço inclusive no âmbito riana, com aparência de legalidade”. As críticas do do ­decreto foi submetido a de organismos jornal chegaram ao extreuma consulta pública vir- internacionais mo de sugerir que o obtual no portal da Secretácomo o Banco jetivo de Dilma Rousseff­ ria-Geral da Presidência. Mundial e a ONU, seria criar uma espécie O principal objetivo é a de sovietes (os conselhos consolidação da partici- que defendem o de trabalhadores dos repação social como méto- reforço de práticas volucionários bolchevido de governo. A ideia é democráticas de que todos os órgãos e en- construção coletiva ques) para acabar com o Parlamento. tidades da administração Os críticos da iniciativa retomaram um pública federal, direta e indireta, elaborem um plano de ação a cada dois anos debate que já foi superado inclusive no âmbito de organismos internacionais copara fomentar a participação social. O tema e a prática da democracia par- mo o Banco Mundial e a Organização das ticipativa não são propriamente uma no- Nações Unidas (ONU) e seu braço para vidade no país. Entre 2003 e 2012, mais a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesde 7 milhões de pessoas participaram de co), que defende o reforço de práticas de87 conferências nacionais, em 40 áreas mocráticas de construção coletiva como setoriais. No âmbito do governo federal, condição para construção de uma nova existem hoje mais de 120 conselhos, dos ordem social mundial. A Unesco apoia há anos propostas quais cerca de 40 têm na sua composição expressiva presença de representantes da ­como: o fortalecimento da participação sociedade civil. Além disso, estão ativas de movimentos sociais e outras organicerca de 270 ouvidorias públicas federais zações da sociedade civil no processo de que auxiliam o cidadão em suas relações tomada de decisões em nível de Estado e de governos; a criação de novas instâncom o governo. “As emergentes formas de participação cias de regulação em nível nacional e indigital, as mobilizações e manifestações ternacional para fortalecer o controle e a da sociedade brasileira expressam a ne- participação da sociedade no Estado; e a cessidade de ampliação e qualificação dos abertura de espaços para atores não estamecanismos já existentes, bem como a tais como forma de criar uma governança revista do brasil

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Arena popular Dilma anuncia a Política Nacional de Participação Social (PNPS), construída a partir de consulta pública: conservadores não gostaram e chegaram a qualificá-la de “autoritária”

democracia direta Em 2002, mais de 10 milhões de brasileiros participaram da consulta popular sobre o ingresso do Brasil na Alca: 98,32% foram contra

Eduardo Knapp/Folhapress/2002

do sistema mundial baseada em princípios democráticos. Defensor da Política Nacional de Participação Social e da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva para a reforma política, o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, disparou contra o que chamou de reacionarismo e elitismo do jornal: “Está faltando para os juristas do Estadão ler a Constituição Federal e a própria Lei de Responsabilidade Fiscal, pois ali tem dispositivos legais claros, incentivando a participação direta da comunidade na gestão dos negócios públicos. Às vezes o reacionarismo e o elitismo ofuscam o brilho de autores de grossos tratados sobre a democracia sem povo, que sempre consagraram a democracia como instrumento de dominação, não como processo vivo de promoção de Justiça e de combate às desigualdades sociais brutais que permeiam a nossa história”. Na mesma linha, assinalou o econo­ mista Ladislau Dowbor que a participação cidadã está prevista no artigo 1º da Constituição Federal, que diz que todo poder emana do povo, que o exerce “por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. “Ver na aplicação deste artigo, por um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à democracia não pode ser ignorância, é vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com representantes”, criticou, em artigo publicado em seu blog (dowbor.org). O advogado ambientalista Mauri Cruz, integrante da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong), lembrou que reação semelhante ocorreu em Porto Alegre em 1989 quando o então prefeito Olívio Dutra (PT) editou o Orçamento Participativo (OP) discutindo, por meio de assembleias populares realizadas nos 16 bairros da cidade, a aplicação de recursos do orçamento municipal. Passados 25 anos, Mauri Cruz assinala que o OP continua funcionando em Porto Alegre mesmo depois de o PT deixar o governo e é reconhecido como instrumento de democratização da gestão pública por vários organismos internacionais.


política

em diversos países, e podemos dizer com segurança que a Votação de Prioridades do Rio Grande do Sul é a maior consulta orçamentária digital do mundo”, afirmou. A internet tende a se constituir como peça-chave de participação social. No dia em que teve homologada sua candidatura à reeleição, a Dilma citou a rede como ferramenta de ampliação da democracia para além do eixo Executivo-Legislativo. E reconheceu que, para isso, requer acesso universalizado, com expansão das redes de fibra ótica para que os serviços de banda larga alcancem a população mais pobre. O tema faz parte de seu Plano de Transformação Nacional para um possível segundo mandato – campo em que seu governo deixa a desejar.

manifesto em defesa da PNPS Da esquerda para a direita, os primeiros signatários: Fabio Konder Comparato, Dalmo Dallari, José Antônio Moroni (Inesc) e João Pedro Stédile (MST)

Rafael StÉdile/MST

jailton Garcia/rba

Marcia Yamamoto/alesp

O estado do Rio Grande do Sul, a propósito, promoveu no início de junho um processo de consulta pública para definir prioridades de parte do orçamento do estado em 2015 que alcançou 255 mil votantes. No ano anterior, foram 157 mil. Segundo Tiago Peixoto, especialista em Governo Aberto do Banco Mundial, foi a primeira consulta a utilizar os mais modernos recursos de mobilização, como telefonia móvel e redes sociais. “Acompanhamos diversos processos semelhantes

Um grupo de juristas, acadêmicos, intelectuais e líderes de movimentos sociais lançou um manifesto em defesa da PNPS, para ser entregue ao presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) e ao presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). Os primeiros signatários do manifesto foram os juristas Fabio Konder Comparato, Celso Bandeira de Mello e Dalmo Dallari, José Antônio Moroni (do Instituto de Estudos Socioeconômicos, Inesc) e João Pedro Stédile (do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, MST). O documento defende o decreto afirmando que “contribui para a ampliação da cidadania de todos os atores sociais, sem restrição ou privilégios de qualquer ordem, reconhecendo, inclusive, novas formas de participação social em rede”. E sustenta que a proposta não possui nenhuma

wilson dias/abr

antonio cruz/abr

Cidadania

inspiração antidemocrática, “pois não submete as instâncias de participação, os movimentos sociais ou o cidadão a qualquer forma de controle por parte do Estado Brasileiro; ao contrário, aprofunda as práticas democráticas e amplia as possibilidades de fiscalização do Estado pelo povo”. Na avaliação do ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, a PNPS tem o propósito de articular os canais já existentes para que a participação social se transforme em método de governo e o povo, conforme demanda surgida nos protestos de junho do ano passado, possa participar mais efetivamente de definições das políticas públicas. Para ele, o decreto é até tímido, pois não cria novos conselhos, não retira atribuições do Congresso Nacional e não submete as instâncias de participação social a um controle centralizado. Não parece ser um acaso que as mesmas vozes e os mesmos argumentos que se erguem agora contra uma política nacional de participação tenham se manifestado quando Dilma apresentou, no ano passado, a proposta de realização de um plebiscito e de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva para fazer a reforma política – que com maior participação da sociedade parece constituir um par indissociável. Diversos movimentos sociais participam da organização de um plebiscito que será realizado de 1º a 7 de setembro em todo o país. Embora não tenha força legal, a iniciativa espera desencadear uma mobilização em defesa da convocação de uma Constituinte exclusiva para fazer a reforma política. Em 2002, uma iniciativa similar foi feita para consultar a população sobre o possível ingresso do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta que estava então na agenda do governo de Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, foram coletados 10.234.143 votos em 46.475 urnas, graças ao trabalho voluntário de mais de 157 mil pessoas. O resultado não deixou dúvida sobre a vontade da população: 98,32% dos eleitores se declararam contra a entrada do Brasil na Alca. A ideia, agora, é repetir a mesma estratégia em relação ao tema da reforma política. revista do brasil

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economia

As eleições e a economia As despesas do governo com juros pagos aos rentistas caíram de 14% do PIB em 2002 para os atuais 6%. E a participação da renda do trabalho no PIB subiu de 39% para 47%. Não é coincidência Por Marcio Pochmann

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o Brasil, as eleições presidenciais tiveram impacto­ contido nos rumos da economia nacional até 1930, quando prevaleceu o regime da democracia censitária herdado do Império (1822-1889). Isso porque as eleições eram, em geral, assunto dos ricos, uma vez que os participantes do processo eleitoral se resumiam a apenas homens alfabetizados e detentores de renda, o que compreendia menos de 5% dos brasileiros.

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As cédulas eleitorais impressas por partidos políticos financiados fundamentalmente pelos proprietários rurais e empresas comerciais garantiam, para além do voto dirigido (de cabresto), o compromisso dos candidatos com a manu­tenção da ordem econômica depen­ dente do ­comércio externo. Assim, a política não ousava contrariar os interesses econô­ micos de ricos e poderosos. Com a Revolução de 1930, o Brasil transitou para o regime da democracia­ representativa fundada na gradual uni-

versalização do voto. De imediato, a constituição da Justiça Eleitoral, a inclusão do voto feminino e o fim da declaração de renda permitiram multiplicar por cinco a participação da população no processo eleitoral. Apesar disso, dois constrangimentos à plena participação popular se estabe­ leceram até a metade da década de 1980. De um lado, a força do autoritarismo vigente no Estado Novo (1937-1945) e na ditadura (1964-1985) afastou qualquer possibilidade eleitoral de a vontade democrática e popular vir a interferir no comportamento da economia dirigido por ricos e poderosos. De outro, a ausência da liberdade na organização partidária e a proibição do voto dos analfabetos, que representavam cerca da metade dos brasileiros, retirou da parcela mais pobre da população a possibilidade de consagrar nas eleições


Ministério da Integração Nacional/Divulgação/abril 2014

economia

Mais água Projeto de Integração do Rio São Francisco: na última década, a economia na despesa com ricos (no pagamento de juros da dívida pública) foi direcionada para o investimento público em infra-estrutura e para o gasto social

realizadas no período democrático (1945-1964) a defesa de seus interesses em torno da melhor qualidade de vida e justiça social. Somente em 1985 o voto se tornou de fato universal, com a plena inclusão de analfabetos no processo eleitoral. A partir daí, cerca de dois terços da população passaram a participar das eleições e a interferir nos rumos da economia nacional.

Turbulências

Como em 2014 será realizada a sétima eleição presidencial desde o fim da ditadura (1985), o Brasil consagra o mais longo período democrático de sua história. Podem ser registrados dos anos de 1989, 1994, 1998 e 2002 tanto o impacto do comportamento da economia no resultado eleitoral como as consequências das turbulências políticas na dinâmica da produção, emprego e renda.

Em 1989, por exemplo, o fato de nenhum dos candidatos à Presidência defender o governo Sarney refletiu-se na trajetória de oscilações bruscas na economia da época. Na eleição presidencial de 1994, a complexa instalação do Plano Real teve impacto na política e levou a ­alteração significativa no comportamento da economia nacional. Também nas duas eleições seguintes ocorreram conexões importantes entre a política e a economia, e vice versa. Em 1998, por exemplo, a crise do Plano R ­ eal foi escondida dos brasileiros, somente percebida depois frente ao acordo realizado em dezembro daquele ano com o Fundo Monetário Internacional e suas conseqüências recessivas para a economia brasileira. Na sucessão do governo Fernando Henrique Cardoso, em 2002, ocorreu verdadeiro terrorismo eleitoral identificado pelo disparo da inflação e pela desvalorização do real numa economia que operava em frangalhos. Nas eleições presidenciais de 2006 e 2010, contudo, as repercussões da política na economia brasileira foram de contida monta frente à continuidade da trajetória de crescimento da produção, emprego e rendimento dos brasileiros. E nas eleições de 2014, o que se poderia observar?

Choque ortodoxo

A menos de três meses das eleições, nota-se que o governo Dilma persegue o receituário do gradualismo heterodoxo das medidas de política econômica voltadas ao afastamento da recessão que faz dos ricos mais ricos e dos pobres mais pobres. Ao mesmo tempo, busca manter a inflação no controle, bem como o crescimento do emprego e da renda dos brasileiros. Pela oposição, ainda que diversa ideológica e politicamente, parece haver certa convergência em torno de um choque ortodoxo recessivo a ser aplicado logo em 2015. Para isso, a defesa insistente do ajuste fiscal (corte no gasto público, elevação do superávit fiscal de 1,9% do PIB para 3,5% ou mais e restrição ao orçamento dos bancos públicos) e da elevação real dos juros, com a redução do crédito bancário e da meta de inflação.

Em síntese, a oposição parece repetir linha básica das políticas governamentais adotadas na década de 1990, com o uso do choque recessivo para ajustar a economia. Assim, a aceleração do desemprego, o rebaixamento dos salários dos ocupados e a contenção das políticas de renda evidenciadas pela elevação real do salário mínimo e dos benefícios dos programas nacionais de garantia de renda poderiam se tornar realidade, mais uma vez. Tudo isso para favorecer os tubarões da economia nacional. De fato, os ricos não estão nada satisfeitos. No ano de 2002, por exemplo, o governo federal transferiu o equivalente a 14,2% do Produto Interno Bruto (PIB) na conta financeira aos ricos detentores da dívida pública, cujo montante da época representava quase dois terços do PIB. Atualmente, a ­­­Dívida Líquida do Setor Público representa um terço do PIB e o governo paga na forma de juros o equivalente a menos de 6% do PIB. Assim, os ricos que abocanharam R$ 570 bilhões de reais em 2002 (em valores) como juro da dívida pública, receberam R$ 230 bilhões no ano passado. A economia de R$ 340 bilhões na despesa com ricos foi direcionada para o investimento púbico em infra-estrutura urbana (portos, aeroportos, estradas, saneamento) e para o gasto social (valorização do salário mínimo, Bolsa Família, programa Minha Casa, Minha Vida). Não causa espanto, portanto, que a eleição presidencial deste ano representa mais um round no verdadeiro cabo de guerra na economia representado pela divergência entre o conjunto dos interesses de ricos e pobres. O choque recessivo defendido pela oposição ao governo Dilma favorece os ricos e enfraquece trabalhadores, pois mais desemprego reduz o poder de barganha na luta por maior salário, enquanto o gradualismo atual das políticas de combate à inflação e ativação econômica mantém forte o poder das classes do trabalho no interminável conflito distributivo. De 2003 pra cá, as forças do trabalho têm obtido conquistas importantes, como a elevação dos rendimentos dos trabalhadores de 39% para 47% do PIB. revista do brasil

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continente

O termômetro latino-americano O momento é de balanço dos avanços, dos obstáculos e das mudanças necessárias para que os projetos pós-neoliberais possam ter um alcance estratégico para os países da America Latina Por Emir Sader

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esde que a via armada deixou de ser possível como forma de acesso ao poder pela esquerda na America Latina, assim como os golpes militares clássicos – restaram 14

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os “golpes brancos”, como os dados em Honduras e no Paraguai –, as eleições assumiram importância cada vez maior no continente. Foi por essa via que os governos progressistas atuais puderam colocar em prática programas pós-neoliberais.

O calendário eleitoral tornou-se então importante, porque é o momento em que os cidadãos renovam ou não mandatos na direção dos governos. A temporada define momentos importantes para os países, especialmente aqueles em que forças alternativas ao neoliberalismo governam. Depois da década neoliberal de 1990, começaram a ser eleitos governos como produto da rejeição popular ao fracasso daqueles. Esses governos – que chamo de pós-neoliberais – têm em comum a prioridade das políticas sociais e não dos ajustes fiscais; a integração regional e os in-


continente

LEONARDO MUnhOZ/EFE 2014

Roberto Escobar/EFE 2014

desigual do mundo, propiCerén havia sido o princiciaram maior legitimidade pal dirigente guerrilheiro da dos Estados e estabilidade FMLN e que conduziu a repolítica. Se elegeram e reeciclagem, com sucesso, da legeram – ou elegeram seus organização da luta armada sucessores – durante mais para a luta institucional. de uma década, introduziPrognósticos ram formidáveis processos Ainda na América Latide democratização social, na, duas eleições significaticontando com o apoio das vas, não tanto por quem foi camadas mais pobres da eleito, mas por quem foi derpopulação. rotado: Ricardo Martinelli, Atuaram nos espaços de A via eleitoral ex-presidente do Panamá, e menor resistência, de maior O ex-comandante Laura Chincilla, ex-presidenfragilidade do neolibera- guerrilheiro Salvador e seu ta da Costa Rica, eram os dois lismo: a exclusão social, a Sánchez diploma como porta-vozes mais exuberantes centralidade do mercado, presidente eleito do neoliberalismo na região e a subordinação externa aos de El Salvador seus candidatos foram derEstados Unidos. Os sucessos foram imediatos, com apoio popular rotados, mudando o cenário político na generalizado, traduzido em força políti- América Central. A renhida eleição na C ­ olômbia permica. Mesmo a recessão internacional iniciada em 2008 não conseguiu quebrar o tiu evitar um retrocesso, que teria consedinamismo das economias desses países, quências graves para o clima na América embora tenham diminuído seu ritmo de do Sul, com deterioração da situação interna no país e nas relações com os países crescimento. vizinhos, especialmente com a VenezueEstruturas de poder la, contaminando as convivências com a Se poderia dizer que foi uma etapa Unasul e em outras instâncias regionais. de crescimento relativamente fácil ou A reeleição de Juan Manuel Santos perque enfrentou menos obstáculos. Pôde mite concluir o processo de negociações avançar sem ter de encarar as profun- de paz com as Forças Armadas Revoludas estruturas de poder enraizadas nas cionárias da Colômbia e começar algo sinossas sociedades, consolidadas pe- milar – e menos complexo – com o Exérlo neoliberalismo. O ano de 2014 é de cito de Libertação Nacional. eleições significativas na América LatiAinda este ano haverá eleições imporna. Rafael Correa já havia sido reeleito tantes no Brasil, na Bolívia e no Uruguai. de forma cômoda no ano passado, com Aqui, Dilma deve ganhar, no primeiro ou uma grande maioria parlamentar. Este no segundo turno. Não tivesse tido uma ano o resultado das eleições municipais política de comunicações horrível – o não foi favorável ao governo, especial- pior lado do governo –, as eleições seriam mente em Quito, onde o governo per- ganhas de maneira muito mais clara. Podeu a prefeitura. Foi um chamado de rém, a campanha terrorista da mídia moatenção para os problemas da Aliança nopolista contra o governo consegue desPaís, legenda governante, que mudou gastar a imagem de Dilma, a ponto de sua direção, buscando uma nova for- que talvez ela tenha de enfrentar um sema de organização e de relação com os gundo turno. movimentos populares. A vitória de Evo Morales é dada como Em El Salvador, depois do governo de segura, provavelmente sem necessidade Mauricio Funes, apoiado pela Frente Fa- do segundo turno, propiciando à Bolívia rabundo Martí de Libertação Nacional o governo de maior apoio popular de to(FMLN), finalmente esta consegue ele- da sua história e que levou ao período poger diretamente um representante seu lítico de maior estabilidade institucional para a presidência. Salvador Sánchez que o país já conheceu.

Continuidade Na Colômbia, partidários de Juan Manuel Santos celebram a vitória e a esperança de paz

tercâmbios Sul-Sul e não os tratados de livre comércio com os Estados Unidos; e o papel do Estado como indutor do crescimento econômico e de garantia dos direitos sociais, e não o Estado mínimo. São governos que, pela primeira vez na América Latina – e de maneira simultânea na Venezuela, no Brasil, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia e no Equador –, diminuíram significativamente as desigualdades sociais no continente mais

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Martín Alipaz/efe 2005

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estabilidade institucional A vitória de Evo Morales na Bolívia é dada como segura, provavelmente sem necessidade do segundo turno

A Frente Ampla, no Uruguai, deve conquistar sua terceira vitória consecutiva, desta vez com o retorno do seu primeiro presidente – Tabaré Vásquez. As pesquisas apontam para nova vitória da FA, com Tabaré, que derrotou uma candidata da esquerda na consulta interna. Mostram também que não conseguiria ganhar no primeiro turno, o que significa que a FA não teria maioria no Congresso. Essa situação parlamentar, somada ao anúncio de que Danilo Astori voltaria a estar no comando da economia, configura um governo mais moderado do que o do atual presidente, José Pepe Mujica. A esquerda conseguiu colocar Raul Sendic – filho de um legendário dirigente tupamaro – como vice-presidente, insuficiente para se contrapor a uma provável orientação mais conservadora 16

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do novo governo uruguaio. No seu conjunto, as eleições favorecem as tendências progressistas – especialmente onde já governa: Brasil, Bolívia e Uruguai. Foi brecada a tentativa de retrocesso na Colômbia, enquanto na Costa Rica e no Panamá foram derrotados dois próceres do neoliberalismo no continente. O que não impede que os governos progressistas vivam um período de dificuldades. Os opositores a essas forças políticas se apressaram em caracterizar esse processo como “fim de ciclo” (do kirchnerismo, do chavismo, do petismo etc. etc.) O ritmo baixou de patamar, e surgiram desequilíbrios econômicos em alguns países, como Venezuela e Argentina, com níveis de descontrole inflacionário, dificuldades de financiamentos externos, desabastecimento de certos

produtos, problemas na balança comercial e de pagamentos. Tudo se reflete no plano político, com perda de apoio popular por parte de processos que tinham gozado desse apoio ao longo da sua primeira década de existência. A difícil eleição de Nicolás Maduro na Venezuela foi um símbolo desse reflexo político dos problemas no modelo venezuelano. As dificuldades de ­Cristina Kirchner para eleger um sucessor associado ao projeto que ela representa são outro sinal dos obstáculos que se apresentam hoje para os governos pós-neoliberais. O momento é de balanço dos avanços, dos obstáculos e das reformas necessárias para que os projetos pós-neoliberais possam ter um alcance estratégico para os países da America Latina.


lalo leal

Latifúndio da informação

Para avançar em seu processo de mudanças, rumo a uma democracia madura, o país requer uma “reforma agrária” no sistema de mídia. As empresas resistem, mas há profissionais dispostos

E

m aula recente, na Escola de Governo de São Paulo, ilustrei o tema da padronização das informações oferecidas pela mídia com manchetes idênticas estampadas pelos três jornalões brasileiros (Globo, Estadão e Folha). O tema era a fala do ex-presidente Lula no Encontro Nacional de Blogueiros. De um discurso de mais de uma hora, com análises da conjuntura, aqueles e outros veículos, como Correio Braziliense, O Dia, Exame e o portal G1, resolveram destacar, de forma truncada, uma referência do ex-presidente à forma do torcedor chegar aos estádios de futebol. Lembrei que o blogueiro Eduardo Guimarães se fez passar por um cidadão desinformado para constatar, com alguns repórteres, qual seria a linha adotada em conjunto para a cobertura do encontro. O dialogo foi rápido: “Lula é sempre notícia, né?”, comentou Eduardo com um repórter. A resposta: “Notícia cabeluda. Dá um trabalho danado”. “Por quê?”, quis saber o blogueiro. “A gente tem de achar a ‘pauta certa’”, informou o jornalista. Presentes à aula, jornalistas não se contiveram e fizeram questão de deixar claro que não havia nenhuma novidade nisso. Combinar linhas de cobertura, com o cuidado para que os destaques sejam semelhantes, é mais comum do que se imagina. Trata-se da luta em defesa da sobrevivência profissional. Os alunos explicaram: ao dar ênfases iguais a um determinado aspecto­do assunto que está sendo coberto, os jornalistas evitam possíveis cobranças ou mesmo punições das chefias. Livram-se de comparações, atendem ao esperado pelos patrões e seguram o emprego. Lembrei também do coronelismo midiático, um dos mais perversos desdobramentos do coronelismo brasileiro, gestado com a criação da Guarda Nacional, no século 19, ainda na Regência, e presente até hoje em nossa sociedade. Victor Nunes Leal, no livro Coronelismo, Enxada e Voto, mostra como os coronéis do império souberam acompanhar a urbanização do pais, mantendo seus latifúndios agrários, mas

enviando filhos e genros para se tornarem “doutores” nas cidades, estendendo nelas o poder conquistado na fazenda. Não é por acaso que até hoje os herdeiros gostam de ser chamados de doutores, sem nunca terem defendido uma tese de doutorado. Parte deles controla os latifúndios midiáticos, fonte moderna de poder. O que distingue um e outro latifúndio não está no seu controle, mas na mão de obra utilizada e no produto obtido. A mercadoria produzida no campo esgota-se no seu consumo e a margem de independência do trabalhador na sua realização beira o zero. No latifúndio midiático, o produto permanece vivo no consumidor mesmo depois do seu consumo. Por vezes pelo resto da vida, pois tratam-se de bens simbólicos inculcados em corações e mentes. Essa característica do produto jornalístico sempre deu ao trabalhador da área uma margem de ação própria, inexistente para o trabalhador rural. Na década de 1980, dizia-se que eram brechas a serem ocupadas pelo jornalista comprometido com a verdade. Só que a concentração dos meios de comunicação, o controle ideológico das redações e o estabelecimento das pautas comuns estreitou ao máximo aquelas “brechas” equiparando, muitas vezes, as margens de liberdade do jornalista às do trabalhador rural. Ampliou-se também o número e o poder dos capatazes no latifúndio moderno, profissionais bem pagos para não apenas controlar os trabalhadores, mas para dar voz às ideias e posições políticas dos seus patrões. Apesar desse quadro cada vez mas rígido, não notei nos alunos da Escola de Governo sinais de resignação. Ao contrário, mostraram-se conscientes da situação e defenderam a possibilidade de atuar nos resquícios das brechas ainda existentes. Só o fato de procurarem um curso como aquele para a discussão de temas desprezados pela mídia mostra que, apesar de todo o cerco em torno da prática jornalística, a resistência existe e pode, no futuro, resultar na volta de modelos de informação menos comprometidos com os interesses dos latifundiários, antigos e modernos. revista do brasil

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O gol que a Fifa não mostrou Vestindo uma roupa robótica, um jovem com paralisia foi o primeiro a chutar a brazuca no Itaquerão. A Fifa e a Globo não deram bola, mas o lance foi além do futebol: entrou para a história da ciência Por Cida de Oliveira 18

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uase não deu para perceber. Enquanto a atenção de milhões de torcedores em todo o mundo estava voltada para o início do jogo Brasil x Croácia pela abertura da Copa, naquela tarde ensolarada de 12 de junho, na Arena Corinthians, em São Paulo, por três segundos a TV mostrou uma imagem inusitada: num canto do gramado, um homem usando um macacão com a estampa da bandeira brasileira, o número 10 no peito, se levantou e, assim que o juiz apitou, chutou a brazuca (bola oficial do torneio), que rolou poucos centímetros sobre um tablado. Não houve

Momento Histórico Juliano entra no Itaquerão para chutar a brazuca

chamada, aviso ou explicação dos alto-falantes do estádio, nem do narrador da partida, já a postos. Perceptivelmente constrangido, minutos depois do término da exibição o comentarista Ronaldo falou algumas palavras a respeito, que pouco ou nenhum sentido fez para os telespectadores desavisados. Mais tarde, pela internet, e muito depois, pelos telejornais da noite, é que o público pode ter uma ideia do que acontecera ali. Pela primeira vez na história, uma pessoa com paralisia conseguiu se levantar e se mover usando seus próprios sinais cerebrais. Para o paulista Juliano Pinto, 29 anos, da cidade de Garça, que há cerca de

REGINALDO CASTRO/ESTADÃO CONTEÚDO

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Paulo Whitaker/REUTERS/latinstock

fotos projeto andar de novo/big bonsai e lenteviva filmes

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Um salto para a humanidade Miguel Nicolelis (ao lado, com o exoesqueleto) e sua equipe trabalharam incansavelmente por 17 meses

oito anos perdeu o movimento das pernas num acidente de carro, aqueles poucos segundos foram mágicos e jamais serão esquecidos. Para 170 cientistas de centros de pesquisas de vários países, foi o início de um grande passo da ciência. Rápida, mas sem deixar de emocionar, a demonstração integra o projeto Andar de Novo, que desenvolve um dispositivo que permitirá a pessoas com paralisia voltar a caminhar utilizando seus próprios sinais cerebrais. A iniciativa, que conta com apoio financeiro da Agência Brasileira da Inovação (Finep), vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que injetou R$ 33 milhões, é

chefiada pelo cientista brasileiro Miguel Ângelo Laporta Nicolelis. Nascido em São Paulo, filho de um juiz e de uma escritora, o neurocientista de 53 anos formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Há mais de 20 anos divide seu tempo entre o Brasil e os Estados Unidos. Aqui, ele coordena o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Lily e Edmund Safra (IINN-ELS), na capital potiguar, que criou – é outro grande patrocinador do projeto que representa esperança para Juliano e milhares de pessoas em todo o mundo que sofrem de paralisia. Lá, ele é codiretor do Centro de Neuroengenha-

ria na Universidade Duke, na Carolina do Norte, onde também é professor titular de Neurobiologia. Amante do futebol e torcedor “doente” do Palmeiras – o site de seu laboratório tem link direto para o do clube –, Nicolelis é um craque na área e hoje um dos mais importantes cientistas do mundo. O prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, chegou a incluir o conjunto de seu trabalho entre os dez com maiores chances de mudar o mundo para melhor. Entre as pesquisas que coordena estão justamente o que permitiu a Juliano chutar a brazuca. revista do brasil

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tecnologia do futuro Gordon Cheng: “Nosso diferencial é a tecnologia da´pele robótica´, que pode sentir temperatura, força, toque, impacto”

Rede neural Alan Rudolph : “Nós determinamos maneiras de extrair sinais cerebrais produzidos a partir do pensamento de quem está usando o dispositivo”

Joe A. Mendoza/ universidade estadual do colorado-USA

“Miguel é um grande cientista e um grande amigo. Ao contrário de outros cientistas, ele está trabalhando pelas pessoas de todo o mundo e de seu país­ em particular. Seu trabalho traz um grande impacto ao Brasil, com escolas de ensino fundamental, hospital e centro de pesquisa científica”, diz o colaborador Gordon Cheng, referindo-se à atuação do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, que mantém escola para estudantes pobres com foco no ensino de Ciências. Professor e coordenador do Instituto de Sistemas Cognitivos da Faculdade de Engenharia Elétrica e Tecnologia da Informação da Universidade Técnica de Munique, na Alemanha, o australiano é responsável pela supervisão técnica do Andar de Novo. Número 2 do time, ele chefia o laboratório onde foi desenvolvida a veste robótica usada por Juliano, uma espécie de pele artificial capaz de transmitir sensações táteis e a percepção dos membros inferiores. Cheng trabalha com Nicolelis desde 2008, quando chefiava o Departamento de Robótica Humanoide e Neurociência Computacional do Instituto Internacional de Pesquisas Avançadas em Telecomunicações, em Kyoto, no Japão. Conheceu o brasileiro durante a experiência célebre, já relatada até a uma comissão do prêmio Nobel, em que seu robô humanoide, do outro lado do mundo, caminhou seguindo impulsos cerebrais emitidos por uma macaca do laboratório de Nicolelis. Os sinais, captados nos Estados Unidos, seguiram para o Japão por meio da internet e de lá voltaram. O experimento exigiu treino dos animais para reagir à mensagem artificial produzida pelo computador, bem como a programação de computadores para decifrar os impulsos cerebrais dos animais para, enfim, moverem braços mecânicos a tantos quilômetros de distância. “Foi ali que vislumbramos um caminho possivel para que pessoas com paralisia voltassem a andar”, conta Cheng. De acordo com o cientista, diversos laboratórios em todo o mundo desenvolvem hoje projetos semelhantes. No


Andreas Heddergott/ Instituto de Sistemas Cognitivos

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laboratório de Engenharia Robótica da Universidade da Califórnia em Berkeley, a terceira melhor do mundo, o engenheiro mecânico de origem iraniana Homayoon Kazerooni trabalha num projeto menos ousado. Baseado num computador com baterias acoplado a uma mochila que aciona um par de muletas com botões, que se encaixam em volta das pernas e fazem os movimentos de caminhada, além de proporcionar a estabilidade necessária para que paraplégicos possam caminhar, com segurança.

No entanto, segundo Cheng, até agora nenhum projeto foi capaz de fazer o cérebro se adaptar a um corpo complexo externo, tal como um robô, como acontece no Andar de Novo. “Nosso diferencial é a tecnologia da´pele robótica´, desenvolvida no meu laboratório, que, similarmente à pele humana, pode sentir temperatura, força, toque, impacto”, diz Cheng. Ele estima que daqui a dez anos será possível produzir exoesqueletos robóticos mais leves, mais baratos e sob medida. A título de comparação, a geringonça apresentada no Itaquerão é como o computador, que quando foi inventado ocupava andares inteiros dentro de prédios. Hoje em dia um celular, que cabe na palma da mão, processa informações em número e velocidade infinitamente maior. “Então chegará o dia em que os exoesqueletos deverão ser como uma peça de roupa”, diz Cheng. Na Universidade Estadual do Colorado, também nos Estados Unidos, uma publicação especial conta em detalhes – e com entusiasmo – a participação da instituição no Andar de Novo. Nela, seu vice-presidente de Pesquisa, Alan Rudolph, afirma que o “projeto extrapola os limites do gramado”. Integrante do time de Nicolelis, ele captou recursos que possibilitaram a abertura, no ano passado, do laboratório Idea-2-Product, que conta com impressora 3D para concepção e desenvolvimento de produtos em alta velocidade. Ali foi produzida aquela espécie de touca que, na prática, fez a interface en-

tre o cérebro de Juliano e o exoesqueleto. Como Rudolph afirmou ao jornal Denver Post, do Colorado, exoesqueletos não são mesmo mais novidade – e sim o controle pela atividade cerebral. “Nosso exoesqueleto funciona a partir de sinais do cérebro que geram sinais associados com movimentos específicos. E esses sinais são detectados por dispositivos localizados no capacete que produzimos aqui na CSU”, explicou. “Nós determinamos maneiras de extrair esses sinais produzidos a partir do pensamento de quem está usando o dispositivo, que é enviado para o exoesqueleto entrar em ação.”

Interesse

Em dezembro, a prestigiada revista Nature, uma das melhores do mundo sobre ciência e medicina, incluiu o Andar de Novo entre os dez estudos com melhores perspectivas de resultados para este ano. Em junho, a versão da revista voltada para a divulgação de notícias sobre metodologias científicas, a Nature Methods, deu capa para a equipe de Nicolelis em Duke, sobre implantes cerebrais realizados em macacos que estão na base das pesquisas do brasileiro. Em maio, o geneticista Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, uma agência subordinada ao Departamento de Saúde do governo norte-americano, esteve em São Paulo, no laboratório montado na Associação de Apoio à Criança com Deficiência (AACD), uma das parceiras do projeto. Respeitado­

Como funciona

projeto andar de novo

O BRA-Santos Dumont 1 é um exoesqueleto que, por meio da tecnologia interface cérebro-máquina, permitirá que pessoas com mobilidade restringida – causada por lesão da medula, como o caso de paraplégicos, – voltem a andar usando a atividade cerebral para controlar um equipamento externo, acoplado aos membros.

1 A interface cérebro-máquina, aqui, na prática, é feita por meio de uma touca com eletrodos que, de forma não invasiva, capta os sinais elétricos da atividade cerebral; 2 Uma pele artificial – formada por uma placa flexível com circuitos integrados, cada uma delas contendo sensores de pressão, temperatura e velocidade – é aplicada nos braços e na planta dos pés do paciente para restabelecer a sensação tátil nos membros paralisados; 3 Os sinais emitidos pelo cérebro do usuário do exoesqueleto serão transmitidos para um computador instalado numa mochila, às suas costas, que converte os sinais cerebrais em comandos; 4 São esses comandos que ordenarão os movimentos nos membros do exoesqueleto. revista do brasil

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i­nternacionalmente por ter chefiado o projeto Genoma Humano, que mapeou os genes que compõem o corpo humano, ele é também responsável por gerir um orçamento de US$ 38 bilhões para pesquisas em saúde em todo o mundo. Entusiasmado com o que viu, chegou a defender o Brasil como cenário fértil da pesquisa científica em neurociência. Da mesma maneira que a tecnologia despertou o interesse de cientistas de vários países, que se juntaram ao projeto, setores conservadores da sociedade, ciên­ cia nacional e mídia tradicional inclusive, partiram logo para o ataque. Mais do que críticas – sempre aceitas e bem-vindas para o debate e a reflexão em qualquer área do conhecimento, inclusive o científico –, o projeto e seu líder passaram a ser hostilizados. Desde o começo do ano, o jornal Folha de S. Paulo publicou reportagens que os desqualificavam, sempre na ótica carregada de sentimentos mais subjetivos que científicos. O blogueiro Rei-

reprodução de vídeo

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escondido Fifa e Rede Globo descumpriram o acordo e não deixaram Juliano caminhar até o centro do campo com a desculpa de “proteger o gramado”

naldo Azevedo logo manifestou na revista Veja sua torcida para “que os feitos de Nicolelis, um dia, estejam à altura de sua capacidade de gerar notícia”. Diego Mainardi também não perdeu a oportunidade e logo provocou: “Exatamente como Santos Dumont, Nicolelis inventou o que já havia sido inventado”. O músico Roger Moreira aderiu: “Que sucesso esse exoesqueleto, heim? Tem que colocar a tábua embaixo sempre? Não é muito prático, né? Show de bola… Cientista arrogante”.

Ativista virtual, Nicolelis rebateu sempre com vigor semelhante. Até mesmo a página de um dos maiores pesquisadores em células-tronco do mundo, o carioca Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), transformou-se em espaço de críticas. A Federação Internacional de Futebol (Fifa) e a Globo não deixaram por menos e descumpriram o combinado. A caminhada de Juliano por 25 metros até o meio de campo e o pontapé inicial do jogo não foram permitidos para poupar o “tapete” da festa. A equipe de Nicolelis, que trabalhou incansavelmente por 17 meses, entregou o serviço com qualidade. E como parece ter antevisto um dos colaboradores, o pesquisador afegão Solaiman Shokur, de 34 anos, o chute inicial não era só da Copa. E sim de um projeto longo, uma conquista, o começo de algo maior não apenas para uma pessoa, mas para que milhares possam voltar a andar nos próximos anos.

fotos projeto andar de novo/big bonsai e lenteviva filmes

Algo maior Cercada de interesse por cientistas ao redor do mundo, a tecnologia desenvolvida sob comando de Nicolelis é esperança para milhares de pessoas que não podem andar

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Mark Cornelison/ Lexington Herald-Leader

entrevista

Além do exoesqueleto Coordenadora da equipe internacional de pesquisadores, a médica brasileira Lumy Sawaki destaca que a medicina de reabilitação já pode se beneficiar de conhecimento produzido pelo Andar de Novo Por Cida de Oliveira

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o longo dos últimos 18 meses, a médica Lumy Sawaki teve de se ausentar de suas aulas e estudos em reabilitação no Centro de Pesquisas em Lesões Cerebrais e Medulares da Universidade do Kentucky, nos Estados Unidos, para vir a São Paulo. Mais especificamente à Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), onde coordenou o trabalho de médicos em testes e avaliações com oito pacientes da instituição incluídos no projeto Andar de Novo. Foi nesse ano e meio que os participantes, todos com paralisia, puderam voltar a ter a sensação tátil dos passos dados com ajuda da pele artificial que emite impulsos vibratórios mecânirevista do brasil

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entrevista

projeto andar de novo/big bonsai e lenteviva filmes

O exoesqueleto é acionado por eletroencefalograma, um método não invasivo que registra a atividade elétrica dos neurônios

cos na região do corpo em que têm sensibilidade, como antebraço, por exemplo, e que seus cérebros aprenderam novamente a sentir pernas e pés. Um deles, o paratleta paulista Juliano Pinto, de 29 anos, teve condições de dar o chute simbólico na abertura da Copa. Uma das maiores autoridades mundiais em Medicina da Reabilitação, a brasileira graduada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 1991 logo começou sua carreira internacional. Em 1995, após a residência na área no Brasil, ela ganhou uma bolsa de estudos do Ministério da Educação do governo do Japão, onde obteve o doutorado em Neurofisiologia Clínica, em 1999, pela Universidade de Kobe. Naquele mesmo ano ganhou outra bolsa, concedida pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, da sigla em inglês), agência do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, e a partir de então passou a ter seu trabalho reconhecido por prêmios e incentivos de universidades e entidades de prestígio, por seus estudos em reabilitação de pessoas que ficaram com sequelas de acidente vascular cerebral (AVC) e de outras lesões cerebrais e medulares. Além de integrar o consórcio internacional Andar de Novo, Lumy é uma das fundadoras de um grupo de estudos sobre Lesão Neural e Epilepsia do NIH. Ela se dedica especialmente ao estudo de novas estratégias para reabilitação motora pós-AVC e lesão cerebral e medular. Como é a sua participação no projeto Andar de Novo?

Minhas responsabilidades incluem o estabelecimento de cri-

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térios para selecionar os voluntários tanto no início como no final dos testes, além de definir os protocolos clínicos e de treinamento. É meu papel supervisionar também a equipe de médicos, fisiatras, enfermeiros, fisioterapeutas e psicólogos, inclusive do ponto de vista ético, assim como coordenar a integração da área clínica com a de engenharia e de robótica com os voluntários. Participo também de conferências virtuais e presenciais, com visitas mensais a São Paulo. Como a senhora passou a integrar a equipe de Nicolelis?

Fui convidada a participar como médica voluntaria durante a primeira reunião com vários colaboradores internacionais na Universidade Duke, na Carolina do Norte, em novembro de 2012. Desde então atuo como chefe da equipe clínica do projeto Andar de Novo. O que Andar de Novo tem de inovador?

Há muitas inovações no projeto, como o fato de o exoesqueleto ser acionado por eletroencefalograma, um método não invasivo que registra a atividade elétrica dos neurônios. O que me impressionou muito é a integração e colaboração dinâmica e intensa das equipes de engenharia e de robótica com a equipe clínica. Aqui nos Estados Unidos temos muitos experts renomados em diversas áreas, mas estão em departamentos diferentes. Em São Paulo, estávamos todos num mesmo laboratório, debaixo do mesmo teto, o que nos permitiu trabalhar intensamente todos os dias para atingir uma meta gigantesca num tempo recorde.


entrevista

Como a senhora avalia o conjunto da equipe?

Existem muitos colaboradores no grupo que eu chamo de “minigênios”, que têm muita competência, garra e criatividade e contribuíram imensamente para muitas das inovações no projeto, entre elas a programação de softwares impressionantes, ajustes nos protocolos de treinamento de acordo com as nossas necessidades clínicas, desenvolvimento de avatar especialmente desenhado para treinamento com eletroencefalograma (EEG) e a posterior integração com o simulador de locomoção. Em que o exoesqueleto do Andar de Novo está à frente de outros projetos semelhantes, como o da Universidade­ da Califórnia?

Adicionalmente à capacidade de promover feedback aos voluntários, ou seja, permitir que, por meio de sensores no pé e no braço – que são algumas das muitas inovações do projeto, entre outros –, eles possam voltar a ter sensações. O exoesqueleto inicialmente desenvolvido pela Universidade de Berkeley, atualmente conhecido como EKSO, não é acionado por EEG e não dá esse feedback. Existem muitos outros exoesqueletos. Na minha opinião, é excelente que muitos pesquisadores estejam trabalhando em prol dos pacientes com paralisia. Em geral, quais são os avanços e os desafios no desenvolvimento dessa tecnologia da qual a senhora participa?

Existem muitos avanços, como os já mencionados. Mas o ­ ndar de Novo é uma tecnologia como a do telefone celular, A por exemplo. As inovações e avanços podem e devem acontecer para melhor atender às necessidades dos pacientes. Acho que todos da equipe entendemos que há vários desafios pela frente, como reduzir o peso e as atuais dimensões do protótipo. E, claro, o seu custo. E assim passar a ser acessível para pessoas com paralisia em todo o mundo...

Seria maravilhoso se um dia a interface cérebro-máquina pudesse auxiliar em atividades do dia a dia. Como médica e pesquisadora, eu também gostaria de ver as várias tecnologias e seus componentes desenvolvidos durante o projeto Andar de Novo como um todo, e não apenas com relação ao exoesqueleto, aplicadas em outras áreas, como o controle sobre os esfíncteres (musculaturas que retêm ou liberam a urina e as fezes), o que é muito importante nas pessoas com lesão medular, por exemplo. E também serem aplicadas em outras condições neurológicas devastadoras, além da lesão medular. Os maiores desafios são, obviamente, os financeiros. Todos os colaboradores seniores trabalharam voluntariamente neste projeto até agora, mas não há como prosseguirmos desta maneira indefinidamente.

Qual a estimativa para que as pessoas com paralisia possam vir a se beneficiar com a tecnologia que o Andar de Novo está desenvolvendo?

Não podemos esquecer que existem componentes da tecnologia que já têm aplicações práticas. Por isso eu vejo o Andar de Novo como um projeto que vai além do exoesqueleto, que envolve outras tecnologias que podem ser desenvolvidas a partir dele se houver financiamento. Há muitos componentes que eu gostaria de utilizar nos Estados Unidos, em conjunto com as tecnologias e pesquisas que desenvolvemos aqui na Universidade de Kentucky e no Hospital de Reabilitação Cardinal Hill. Qual é o desenho ideal de exoesqueleto que vocês, pesquisadores da equipe, vislumbram? Trata-se de um modelo ainda distante da realidade?

O exoesqueleto que foi apresentado durante a abertura da Copa do Mundo é somente uma primeira versão. Todos nós do projeto temos isso em mente, todos sabemos disso. Da mesma maneira que a cada dia temos novos modelos de aparelhos celulares, cada um mais moderno, com funções cada vez mais rápidas e complexas, acontece a mesma coisa com a ciência. Não tem como ser diferente. Atualmente, quais são os grandes objetivos, avanços e desafios da medicina de reabilitação?

Existem muitos desafios, que passam pela implementação de tratamentos mais eficazes, a conscientização do público quanto às condições neurológicas, melhores condições de acessibilidade nas comunidades, reintegração dos pacientes na força de trabalho e muitas outras coisas que ficaríamos horas discutindo. Aqui nos Estados Unidos o tempo de internação na fase aguda do problema que leva a sequelas e o número de terapias ambulatoriais são muito curtos, e constantemente batalhamos com relação a isso.

Para a senhora, que é brasileira, como é trabalhar num projeto como esse?

Eu saí do Brasil em 1994, em busca de melhores tratamentos para os pacientes que necessitam ou que necessitavam de reabilitação. Naquela época, no Brasil, não havia condições de realizar uma pesquisa desta magnitude. Assim, para mim foi uma honra poder voltar ao meu país e trabalhar em prol dos pacientes que sofreram doenças devastadoras. Como deve ser o trabalho com reabilitação?

Eu, como médica pesquisadora, que trabalha e vivencia diariamente as dificuldades dos pacientes que não conseguem mexer um braço, a mão, ou andar, realizar atividades simples, como comer de maneira independente, ir ao banheiro ou até mesmo se comunicar com entes queridos, gostaria que os pesquisadores mudassem o foco para o bem-estar dos pacientes. Se eu tivesse alguém da família com uma doença devastadora, iria atrás de melhores tratamentos e pesquisa. Se pudéssemos trabalhar juntos em prol dos pacientes, o mundo seria bem melhor. Mas acho que sou muito pragmática ou venho mesmo de um outro planeta. revista do brasil

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Aqui viviam nossos ancestrais Depois de quase 50 anos, Terra Indígena Marãiwatsédé é retomada por seus verdadeiros donos. “A terra é a mãe do índio”, diz o cacique Xavante Damião. Mas os brancos seguem à espreita Por Sônia Oddi e Celso Maldos 26

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N

em os dias quentes de sol a pino desanimam a criançada de jogar a pelada. No intervalo das aulas, meninos e meninas correm para o centro da aldeia e atrás da bola. Aproveitam cada minuto com garra e determinação, como tem sido a luta dos Xavante de Marãiwatsédé nos últimos 50 anos. No final da tarde, dois times de meninas adolescentes, uniformizadas, treinam, correm, chutam forte – com os pés descalços –, gritam, comemoram e se divertem. O campinho com trave de pau fica na outra extremidade, próximo às casas construídas mais recentemente, de alvenaria, mas

no estilo tradicional Xavante. As crianças menores assistem enquanto se distraem com outras brincadeiras. O rio, a 500 metros da aldeia, é outra diversão. As crianças brincam e se banham, enquanto as mulheres lavam roupas e utensílios. A água usada na higiene pessoal de todos os moradores não é potável. O rio, assim como o Ró (denominação usada pelos Xavante para definir seu ecossistema) está “enfraquecido” devido ao desmatamento e às fazendas dos arredores. Para beber e cozinhar recorrem a um poço artesiano. Próximo ao poço, na entrada da aldeia, um gerador fornece energia para bombear a água e carregar os


celso maldos

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celulares, usados basicamente para armazenar e ouvir músicas, em especial de compositores da etnia. Sinal, só bem distante dali, já perto do posto da Fundação Nacional do Índio (Funai). Ao cair da noite, no warã, numa roda iluminada pela ­fogueira, se reúnem homens adultos e anciãos para compartilhar aconteci­ mentos importantes do dia que se vai. Os anciãos falam d­ urante a maior parte do tempo, o silêncio e a atenção dos homens se fundem aos estalidos da madeira que queima. Um pouco antes do encontro, percorre a aldeia o canto dos wapté, meninos Xavante reclusos no Hö, casa dos adolescentes, onde permanecem por cinco anos, em processo de iniciação à fase adulta. Um dos assuntos no warã é a reunião do dia seguinte sobre um perigo que paira sobre a aldeia e toda a área da terra indígena: as queimadas. “Conter o fogo hoje é mais difícil que antigamente, nas pastagens ele se espalha muito rápido”, diz o cacique Damião Paridzané. Estarão reunidos integrantes da Funai, do Ins-

tituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), bombeiros, brigadistas, anciãos, homens, mulheres, jovens. O objetivo é delinear ações de prevenção e combate. A preocupação é constante no período da seca, de maio a outubro. São temidos incêndios criminosos por parte de fazendeiros e posseiros insatisfeitos com a retomada da terra pela comunidade indígena. “Se inimigo nosso, de passagem, coloca fogo, queima tudo”, alerta Damião. A preocupação tem fundamento. Em agosto passado, cerca de 30 mil hectares (área do tamanho da cidade de Belo Horizonte) foram consumidos por chamas de origem criminosa. A equipe de brigadistas do Prevfogo, do Ibama, localizou 120 focos de incêndio no interior da área indígena, a maioria perto de rodovias que a cortam ou circundam. O fogo ateado em várias partes e a precariedade das estradas, ou a falta delas, tornam o acesso à área, a fiscalização e o combate aos incêndios tarefas quase impossíveis. Durante a reunião, o cacique pede por um carro e por estradas. “Temos de evitar o fogo, Ibama precisa ter apoio, parceria e aliança dos índios. Estamos pedindo para arrumar estrada dentro da área pois o tempo de seca está chegando”, insiste. A professora Carolina Rewaptu intervém: ­­“O povo indígena tem muito conhecimento que hoje o branco tá estudando sobre meio ambiente e preservação. O branco fala que é educação ambiental, como preservar o meio ambiente; esse é o nosso conhecimento”.

Crianças por toda a parte. Em breve a área terá duas novas aldeias

Pelada é diversão de meninos e meninas

fotos sônia oddi

A mata de volta

Na única aldeia da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso, vivem 1.130 indígenas, população considerada numerosa para os padrões da etnia. São 83 casas dispostas em forma de semicírculo. Tem também o Hö, a igreja, o posto de saúde, uma casa assistencial, a escola e a casa da ONG Operação Amazônia Nativa (Opan), todas fora do semicírculo. “Tá aumentando a população, crianças estão nascendo... Queremos encher a terra de Marãiwatsédé”, conta Damião. revista do brasil

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Em breve devem ser fundadas duas novas aldeias, com 200 pessoas em cada. “Senão o pessoal vai continuar entrando. Temos de ocupar as pontas da terra indígena para proteger, e a cada ano fundar aldeia nova”, afirma o cacique. “Precisamos conseguir recursos para fazer estradas novas e pontes.” As estradas facilitarão o acesso e a fiscalização dos 165 mil hectares da TI Marãiwatsédé – área um pouco maior que a da cidade de São Paulo. Fazendas e pastos era o que mais existia na terra Xavante antes da reocupação, iniciada em 2004 e finalizada em janeiro de 2013, quando terminou o primeiro processo de desintrusão (retirada) dos não índios. A terra que os índios receberam está muito diferente daquela que deixaram em 1966, quando foram colocados num avião da FAB e levados para a Missão Salesiana de São Marcos, em Barra do Garças. Damião era menino, mas lembra. “Nossos pais andavam dentro da mata virgem, grande, perigosa, cheia de bicho bravo, ­porcão, anta, macaco, quati, cotia, tamanduá, caititu. Cheia de inhame, cheia de fruta de buriti e jatobá. E era tudo alimentação natural. Não existia arroz na alimentação ­Xavante antes do contato com o branco.” Segundo dados de 2012, quase dois terços dos 165 mil hectares constituintes da reserva foram desmatados pela ação de madeireiras, ocupação de fazendeiros, posseiros, pelo fogo e até mesmo pelo surgimento de dois núcleos de povoamento no interior da área: o município Alto da Boa Vista e o distrito Estrela do Araguaia (ou Posto da Mata). A agressão fez da TI Marãiwatsédé a primeira no ranking das mais desmatadas do país. O cenário é de terra arrasada. E pasto, muito pasto, a perder de vista. “Nos primeiros anos que entramos na aldeia foi bem difícil, só tinha pastagens. Sofremos muito debaixo do sol... mas plantamos manga, caju, laranja e hoje estamos trabalhando debaixo da sombra”, diz Damião, referindo–se às árvores que voltaram a crescer próximas às casas da aldeia, onde as mulheres fazem cestos de palha de buriti, adornos, esteiras, debulham o milho, pilam o arroz, fiam o algodão, selecionam sementes e preparam a pasta de urucum usada nas pinturas corporais. 28

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Em Marãiwatsédé, plantam arroz, mandioca, milho tradicional, feijão xavante e frutas. Ainda em fase incipiente, estão pastoreando gado para, no futuro, terem mais uma fonte de alimento. “Hoje tem bastante milho que plantamos no ano passado”, diz o cacique, apontando para a pilha de espigas que se vê diante das casas. Mas ainda é pouco para suprir as necessidades nutricionais da população, que conta com o reforço da merenda escolar e também com a distribuição de sopa de uma entidade assistencial.

Rede de Sementes

Na cultura tradicional Xavante, o contato com não índios é feito especialmente pelos homens. Eles é que vão a Brasília­e reúnem-se com represen­tantes de governos e instituições locais. As ­mulheres e as crianças quase não f­ alam o português.

Ancião Francisco: guardião do calendário dos rituais

Professor Sansão Ubuhu: aula de Artes aos mais de 300 alunos da escola indígena

Urucum: pintura corporai para os rituais e, quando necessário, para a guerra


cidadania

Milho Xavante: resgate da alimentação tradicional

fotos sônia oddi

Criação de gado: parceria com a ONG Aliança da Terra

Mas são as mulheres de Marãiwatsédé que participam de um projeto para recuperação da vegetação nativa de seu território. O projeto, uma parceria com as ONGs Operação Amazônia Nativa e Assistência Social Nossa Senhora da Assunção (Ansa), consiste em coletar sementes em incursões na mata, selecionar, armazenar e promover o plantio das espécies. Carolina Rewaptu é uma das profes­ soras da escola estadual da aldeia (EEI Marãiwatsédé). Formada em Ciên­cias Sociais na Faculdade Indígena Intercultural da Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat), ela diz que na cultura Xavante as mulheres não têm espaço para entender o mundo do branco. E vê com muita satisfação a participação feminina no projeto Rede de Sementes do Xingu. “Vamos reflorestar, melhorar a qualidade de vida, melhorar a renda... A gente pensou no futuro”, diz. “A Opan faz oficinas, cursos e as mulheres começaram a participar da vida da comunidade. Na época das expedições a gente colhe e na época da chuva a gente planta. Queremos fortalecer a cultura de manejo tradicional que o povo Xavante está perdendo em outras re­giões e a gente tá resgatando.”

Seis décadas de luta 1961

Com incentivos do governo federal, surge em Mato Grosso, em território ocupado pelos Xavante, a fazenda Suiá Missu, de propriedade do colonizador Ariosto da Riva, considerado o “último bandeirante”.

1966

Os Xavante (236) de Marãiwatsédé são levados para a Missão Salesiana de São Marcos, em Barra do Garças, onde muitos morrem de sarampo. A ação, articulada por fazendeiros e governo, tem apoio do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). A Suiá Missu, pertencente ao grupo empresarial Ometto, se torna o maior latifúndio do mundo, com 1,5 milhão de hectares. Posteriormente seria vendida para a Agip do Brasil. A filial da petrolífera italiana, para conseguir financiamento oficial de US$ 30 milhões, obtém da Funai certidão de inexistência de aldeamento indígena na região.

1992

Durante a Eco-92, no Rio de Janeiro, por pressão internacional e dos indígenas, representantes da Agip se comprometem a devolver o território aos seus verdadeiros donos. A Funai inicia o processo de identificação da Terra Indígena Marãiwatsédé. Intensificam-se invasões do território, lideradas por políticos locais com objetivo de impedir o retorno dos índios, e um processo sistemático de desmatamento e queimadas.

Fonte: Opan

1998 A TI Marãiwatsédé foi homologada com 165.241 hectares, abrangendo territórios nos municípios de Alto da Boa Vista (52,35%), Bom Jesus do Araguaia (2,29%) e São Félix do Araguaia (2,39%), no nordeste de Mato Grosso. No entanto, sem nenhuma ação efetiva do governo federal para viabilizar o retorno.

2003-2004

Os Xavante acampam na BR-158 para pressionar a entrada em seu território. Depois de dez meses confrontando posseiros armados, conseguem ter acesso a 10% do território homologado em 1998.

2010

A Justiça reconhece o direito dos Xavante à Terra Indígena Marãiwatsédé e que a posse de todos os ocupantes foi de má-fé. Posseiros perdem “direito” às terras e a indenização.

2012

Tem início a desintrusão (retirada) dos posseiros e fazendeiros da terra indígena.

2014

Acontece a segunda desintrusão, depois que posseiros promoveram, em janeiro, nova invasão no Posto da Mata. O processo é finalizado em junho, com a demolição das construções ilegais. revista do brasil

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Segundo a professora, em muitas localidades a maioria das pessoas não quer mais cultivar a terra, “como em São Marcos, Água Boa, Campinápolis, onde temos parentes”.

As casas Xavante mantêm o desenho original, mas o material utilizado é outro

Alimentação saudável

Carolina Rewaptu atenta ainda para a i­ mportância da recuperação da alimentação tradicional, com milho xavante, feijão xavante, bolo de milho, “que antigamente deixava a comunidade mais forte e saudável”. O manejo é direcionado a reflorestar a área de pasto, ter os animais mais próximos e retomar a prática de uma economia sustentável. “O alimento industrial que vem da cidade tá dando muito diabetes, a gente quer controlar... Queremos que as crianças conheçam os alimentos que existiam na nossa infância: chichá-do-cerrado, pequi, coquinho-do-cerrado, inajá, buriti... O ano que vem já vai dar porque a gente plantou. Tem também as plantas medicinais: pé-de-anta, algodoeiro, raízes... O segredo delas é transmitido pelas anciãs para apenas um filho e uma filha. Elas têm muito conhecimento.”

O calendário tradicional (Marcadores de Tempo) é um dos conteúdos das aulas de Agroecologia e Sociologia que Carolina ministra na escola e faz parte de um currículo específico da educação local. Mas o responsável, na prática, pelos Marcadores de Tempo é o ancião Francisco, o mais velho da aldeia. “Ele comanda o tempo de todos os ­rituais e as atividades ligadas ao calendário, e os jovens têm que participar”, conta Carolina. “Somos descendentes de um povo que lutou muito nesses anos, temos que amarrar essa história e deixar uma visão para os nossos netos ocu­ parem a região Marãiwatsédé. C ­ ul­ti­var a terra, produzir, melhorar a qualidade de vida. Esse é o futuro.”

Sementes para recuperar a mata nativa, uma missão das mulheres

Posto da Mata agora é Monipá O posto de gasolina no cruzamento das rodovias BR-242 e BR-158 não existe mais. Tampouco comércios, residências, igrejas, escolas, farmácias. Foi tudo demolido. Sedes de fazendas, sítios, currais e outras edificações da zona rural. O palco da “operação de guerra”, na classificação dos ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo, e da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, é o distrito de Posto da Mata, município de Alto da Boa Vista. As demolições, intensas em abril e maio, estão em fase final, diz Aluísio Azanha, diretor de Proteção Territorial da Funai. A Justiça determinou a demolição das benfeitorias de origem não índia, depois que em janeiro cerca de 40 posseiros, insuflados por políticos e 30

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fazendeiros da região, voltaram a ocupar Posto da Mata, um ano depois da retirada dos não índios, quando a terra foi devolvida oficialmente aos Xavante. Em meados de 2012, a Justiça determinou a desocupação do território pelos “intrusos”. Iniciou-se então o que foi chamado de desintrusão. A ação foi planejada por uma equipe do governo, envolvendo ministérios, Secretaria-Geral da Presidência, Funai, Ibama, Polícia Federal, Exército, Força Nacional, entre outros, visando a um processo pacífico. Por má-fé, a Justiça determinou a não indenização aos invasores, que haviam ocupado uma terra que sabiam pertencer aos índios. Entre os habilitados a ser atendidos por programas sociais, o Incra cadastrou 235

famílias. As 97 que moravam em Posto da Mata foram assentadas no Projeto Casulo (Minha Casa, Minha Vida). Algumas aceitaram ir para o assentamento Santa Rita, em Ribeirão Cascalheira. Outras preferiram ir para a casa de parentes ­e conhecidos. A movimentação, segundo o prefeito Leuzipe Domingos, causou sérios problemas sociais. A cidade não tem escola e atendimento de saúde para suprir as demandas. Ele também critica as condições em que vivem as famílias assentadas no Projeto Casulo. “Estão debaixo de lona, ou em casas de pau, sem energia e água, a prefeitura tem que mandar caminhão-pipa... O governo federal só ajudou a cascalhar as ruas”, reclama.

O Incra estuda uma nova área no município de Santa Teresinha, para assentar as cerca de 150 famílias cadastradas, que “moram de favor”. Durante os quase 50 anos de ocupação ilegal, a terra indígena (conhecida também como Gleba Suiá Missú) foi violentamente desmatada (70% do território) para dar lugar a fazendas de plantação de soja transgênica, milho, arroz e criação de gado. A fase mais intensa se deu a partir de 1992, durante os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Em maio, o Ministério Público Federal denunciou 27 fazendeiros, condenando-os a pagar multa de R$ 42 milhões por crime ambiental. O valor a ser arrecadado será usado


cidadania

Carolina Rewaptu: valorização dos saberes indígenas

para reflorestar uma área de 10 mil hectares (1 hectare equivale a aproximadamente 1 campo de futebol) da terra Xavante. O desembargador aposentado Manoel Ornellas de Almeida, o empresário do agronegócio Edi de Oliveira Vieira, o atual prefeito de Alto da Boa Vista e muitos outros que integram a Associação dos Produtores Rurais da Área Suiá Missú (Aprosum) estão entre os denunciados. A longa luta dos Xavante, a firme ação da Justiça e a atuação conjunta de vários órgãos federais não garantem ainda um futuro tranquilo aos índios. Azanha vê risco de novas invasões. “Não podemos esquecer que invasões e conflitos foram capitaneados por aqueles que insistem em se opor às demar-

cações”, diz, aludindo à bancada ruralista. A Aprosum tem como advogado Luiz Alfredo Feresin de Abreu, irmão da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), referência dessa bancada. Ele tem razão. Em março, o presidente da associação, Sebastião Prado, prometeu iniciar um movimento nacional, partindo da Suiá Missu, para defender a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que transfere do Executivo para o Congresso o poder de decisões sobre reservas indígenas. Outro projeto defendido pelos ruralistas é o ­PLP 227,­que abre Terras Indígenas à exploração do agronegócio, empresas de energia e mineração. O clima de disputa faz com que servidores da Funai per-

Cedido por funai

Cacique Damião: “Agora a terra é nossa, vamos viver tranquilos, sem ameaças”

fotos sônia oddi

Jovens estudantes de volta para casa, uma delas com o seu bebê no cesto

Os ritos, de suma importância na dinâmica da sociedade Xavante, não cessaram nem quando eles ficaram dez meses, entre 2003 e 2004, acampados na beira da estrada, esperando a hora de reentrar na área onde estão atualmente. Do outro lado, estavam os posseiros, armados e sustentados por fazendeiros. “Quando os posseiros fizeram a barreira, os jovens tiveram coragem. Tem de aprender coragem desde pequeno... Acompanhar os guerreiros sem medo. A gente tem que conservar os jovens participando para que não percam a cultura”, explica o cacique Damião, relembrando a experiência da guerra vivida. Ele reconhece que o apoio do governo federal foi condição decisiva para que os índios voltassem à terra onde estão seus ancestrais. Damião comemora, ­ sonha. “Agora a terra é nossa, vamos viver tranquilos, sem ameaças. E enquanto eu for vivo, nunca vou esquecer... Considero como irmãos a Dilma, o Gilberto Carvalho ­(ministro da Secretaria-Geral da ­Presidência da República), o Paulo Maldos, o Nilton Tubino (ambos da Secretaria de Arti­culação Social da Secretaria-Geral), o pessoal do Ministério Público, e de outros países que me apoiaram no dia da Rio+20. Com paciência se ganha tudo.”

Posto da Mata. Justiça ordenou demolições para evitar novas invasões

maneçam na área no mínimo até as eleições de outubro. O fato é que Posto da Mata não

existe mais. Voltou a se chamar Monipá, território sagrado para a comunidade Xavante. revista do brasil

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Enrique GarcÌa Medina/efe/2009

Mestre Quino e Mafalda em famoso banco de praça de San Telmo, bairro de Buenos Aires: personagem que inspirou gerações

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em mafalda, tiras de quino. são paulo: global,1982

história

Uma rebelde de 6 anos chega aos 50

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as palavras de seu criador,­ Mafalda ama os Beatles, a­demo­cracia, os direitos das crianças e a paz – nesta ordem. Odeia sopa (alusão ao autoritarismo), armas, guerra e James Bond. A mais conhecida perso­ nagem de Joaquín Salvador Lavado,­o Quino, completará 50 anos em 29 de setembro. Os desenhos da menina de 6 anos duraram apenas nove, de 1964 a 1973, mas são comentados até hoje, para espanto do autor. Foi uma ­heroína de seu tempo, conforme definiu o escritor Umberto Eco, primeiro editor de Mafalda na Itália. Aqui, onde chegou apenas em 1982, teve como e­ditor o ­cartunista Henfil. Anos atrás, Eco chegou a comparar a personagem de Quino com o universo­ de Charlie Brown, do norte-americano Charles M. Schulz. Ele está num país próspero, ela pertence a um país de contrastes sociais. Ele habita um universo que exclui os adultos, enquanto ela vive a confrontar os mais velhos. Charlie Brown pode ter lido os revisionistas freudianos, à procura de uma harmonia

Mafalda é a mais conhecida personagem de Quino, cartunista argentino que se tornou referência mundial Por Vitor Nuzzi

perdida. Mafalda provavelmente leu Che. “Na realidade, a Mafalda, em matéria de política, tem ideias muito confusas, não consegue entender o que acontece no Vietnã, não sabe por que existem os pobres, não confia no Estado e a presença dos chineses a preocupa. Só uma coisa sabe claramente: ela não se conforma.” O próprio Quino, em entrevista, comparou sua criação com a de Schulz. Segundo ele, Charlie Brown vive em um universo infantil próprio, do qual estão rigorosamente excluídos os adultos, “com

a diferença de que as crianças querem virar adultos” enquanto Mafalda “vive em um contínuo diálogo com o mundo adulto, mas o rejeita, reivindicando o direito de continuar sendo uma criança.” O professor Waldomiro Vergueiro, um dos coordenadores do Observatório de Histórias em Quadrinhos, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), inclui outro personagem: Calvin, do norte-americano Bill Watterson, um garoto também de 6 anos com seu inseparável tigre de brinquedo, Hobbes (Haroldo no Brasil), que se torna “real” quando ele não está na presença de adultos. “O que encanta é essa dupla leitura, para a criança e para o adulto”, observa. Calvin, avalia Vergueiro, se destaca pela imaginação – que nas tiras de Mafalda estaria representada por Felipe, um de seus amigos, e na obra de Schulz pelo beagle Snoopy. Mafalda pode estar de certa forma “datada”, mas não perdeu o encanto, e o professor tem nela uma de suas preferências. “É um personagem totalmente irrequieto, contestador, representa bem a minha geração. E é um dos quadrinhos mais usarevista do brasil

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dos em vestibular, em livros didáticos. Ela continua falando de temas atuais.” Com a personagem, Quino valorizou os quadrinhos, especialmente o latinoamericano, mas sua obra acabou perdendo visibilidade. “Eu diria que as pessoas da área de cultura conhecem o Quino cartunista, mas a sociedade conhece a Mafalda”, diz Vergueiro. “E o Quino é um dos maiores cartunistas do mundo. Ele vai viver eternamente, porque os cartuns são atemporais.” A obra de Quino ultrapassou os limites de Mafalda, que foi desenhada durante apenas nove anos, de 1964 a 1973. Anos atrás, o pesquisador brasileiro Alvaro de Moya – especialista brasileiro no assunto e um dos criadores, em 1990, do Observatório de Histórias em Quadrinhos – classificou o argentino de “o melhor cartunista do mundo”.

Cumplicidade

Em texto de 2004, o escritor e jornalista argentino Juan Sasturain, diretor da revista Fierro (publicação referência em quadrinhos) destaca que a personagem escapou do “confinamento” em revistas de humor e das páginas finais dos jornais.

“Quino ocupou com Mafalda um espaço original em um novo meio: Primeira Plana, o moderno semanário de informação e análise política. Ali, como depois no El Mundo e mais tarde em Siete Dias e durante uma década, a pequena e seus amigos estabeleceram uma cumplicidade inédita com leitores avisados, cúmplices em um jogo com código próprio: a historinha com crianças que não é para crianças porque fala (também) de outra coisa.” Posteriormente, ao longo de sua obra, continuou a “destilar um humor conceitual, sutil e elaborado”. A cartunista Laerte Coutinho tem o brasileiro Fortuna e o argentino Quino como referências profissionais. “São dois mestres. Com o Fortuna, tive a sorte de conviver bastante. Acho que o que me cativou de cara no Quino foram os roteiros, o ritmo das histórias, o ‘tempo’ do humor”, conta. “E os personagens, todos – não só a Mafalda. Aliás, os secundários – Felipe, Manolito, Susanita, Miguelito etc. – são melhores.” Laerte avalia que, ao insistir nos problemas do mundo, Mafalda “frequentemente entrava no terreno da pentelhice – coisa apontada por seus amigos e amigas, aliás”.

Para ela, o caso da longevidade de Mafalda se difere de outros, como Pato Donald e Popeye, que se ampararam em sistemas comerciais fortes e, a rigor, não desapareceram nunca. “Acho que tem a ver com o tipo de discurso, com mecanismos de memória cultural e com identificações sutis – e talvez com questões de classe social”, reflete. “Penso nisso ao considerar que o Amigo da Onça, que foi o personagem mais conhecido do país em sua época, quase não é mais lembrado.” E é preciso valorizar a obra do cartunista argentino, destaca Laerte. “O trabalho do Quino, o universo sem fim dos seus cartuns – que só começamos a conhecer depois da Mafalda –, se revelou uma produção riquíssima, um dos maiores autores de humor gráfico que já houve.” E o que faz alguém parar de desenhar uma personagem? No caso de Mafalda, Quino costuma dizer que parou para não ser repetitivo. “Bill Watterson também resumiu assim o encerramento da série do Calvin. Angeli da mesma forma deu fim a Rê Bordosa. Mas nenhum deles

Em bom portunhol No Brasil, Mafalda só desembarcaria em 1982, pelas mãos de Henfil e com a participação do escritor Mouzar Benedito, colaborador da Revista do Brasil. A editora Global pretendia publicar uma versão brasileira e Quino concordou, desde que Henfil cuidasse do trabalho. Como este tinha pouco tempo disponível, Mouzar o ajudou na tarefa. E lembra até hoje do almoço em São Paulo com o dono da Global, José Carlos Venâncio, e os “ídolos” Henfil e Quino. 34

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Ali, o cartunista brasileiro comentou que as versões “não argentinas” de Mafalda eram sem graça. “Eu tinha visto a versão portuguesa e a italiana e concordei. Perdiam muito do sentido original”, comenta Mouzar. Henfil propôs, então, uma versão “meio para o portunhol”, mantendo palavras originais de fácil compreensão e a pontuação. “Quino relutou um pouco, mas acabou aceitando.” Os 30 mil exemplares da primeira edição acabaram rapidamente. Mas a editora só foi até o número 5 da revista.


tiras de quino. são ilustrações mafalda,

paulo: global,1982

história

deixou de desenhar ou de produzir. Eu não parei de fazer o que fazia, só mudei de direção. O principal é manter o controle sobre o próprio trabalho e não permitir que outras dinâmicas se imponham – senão a coisa perde o sentido, o prazer e a seiva”, diz Laerte.

O fim

O filósofo Juan Pablo Feinmann, que nos tempos de estudante lembra de colegas com tiras de Mafalda para estudar a personagem em aulas, disse ter feito uma descoberta “extraordinária” recen­ temente, relacio­nada ao fim do desenho, em 1973, um momento turbulento que culminaria, em seu país, em uma das mais violentas ditaduras latino-americanas. Contou isso ao próprio Quino, durante evento na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, no início de maio. “Em 25 de junho de 1973, Mafalda, a garota pacifista, libertária, de causas progressistas, mas sobretudo inimiga da violência, deixa de aparecer, cinco dias depois de um dos dias mais trágicos da história argentina.” Era uma referência ao chamado massacre de Ezeiza, na área do aeroporto

que leva esse nome, quando grupos políticos se confrontaram no dia do retorno de Juan­Domingo Perón à Argentina. Até hoje não há certeza sobre o número de mortos – Feinmann falou em 200. “O regresso de Ezeiza foi tão sombrio e triste que deixei de ser jovem nesse dia. E cinco dias depois, Quino deixa de desenhar a Mafalda. Ela se retira, porque é a paz, a pomba branca, a menina adorável, com seus amiguinhos.” Quino devolveu brevemente a reflexão. “Deixei de desenhar Mafalda num momento em que na Argentina já corria sangue e havia uma situação muito perigosa. Mafalda não podia ignorar os crimes, nem nada disso, mas se os comentasse talvez quem não poderia comentar mais nada seria eu. Então decidi que a pequena não comentaria mais nada.” Em 1976, após o golpe militar, Quino exilou-se em Milão, no norte da Itália. Em 1990, adotou a nacionalidade espanhola e passou a viver entre Madri e Buenos Aires. Em 27 de maio, o cartunista recebeu homenagem no Senado argentino, uma condecoração na área cultural dada, por exemplo, à cantora Mercedes Sosa. Estavam lá, entre outros, uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio, Taty

Almeida. Quino foi rápido: “Se escolhi o desenho para expressar-me é porque falando fico inibido, não me saio bem. Assim, serei breve. Mais do que breve, já vou terminar”. Quino, 82 anos a completar neste 17 de julho, tinha 32 quando começou a desenhar Mafalda, publicada pela primeira vez em 29 de setembro de 1964, no semanário Primeira Plana, de Buenos Aires. Mafalda seria usada, inicialmente, em uma campanha publicitária para uma marca de eletrodomésticos, mas não vingou. A fama chegou depois de 9 de março de 1965, quando começaram a sair tiras seis dias por semana no jornal El Mundo, e a partir de 1967 em formato de livros. A personagem chegaria à Itália, por exemplo, em 1969, no livro Mafalda, A Contestadora, editado por Umberto Eco. Quino já comentou que, se voltasse a desenhá-la, Mafalda teria uma família diferente. A mãe, por exemplo, acompanharia a evolução da mulher na sociedade. Mas a pequena, provavelmente, seguiria uma perturbadora de consciências, em um planeta ainda cheio de problemas. Melhor ou pior? Laerte não vê o mundo dessa forma. “É um termômetro que não leva a História em conta...” revista do brasil

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literatura

Nossa história nóis escreve Literatura produzida na periferia de São Paulo cresce em leitores e autores, recebe destaque no exterior e é convidada de honra na Feira de Buenos Aires Por Lívia Lima

“N

óis é ponte e atravessa qualquer rio.” O verso do poeta Marco Pezão, do Sarau A Pleno Pulmões, já se tornou um dos lemas dos participantes dos mais de 50 saraus que acontecem atualmente na cidade de São Paulo. A atividade surgiu como alternativa à ausência de espaços e ações culturais na periferia, se tornou movimento de grande proporção. Sua produção literária tem sido lida e estudada dentro e fora do país, atravessando pontes e derrubando preconceitos. Com uma lista de autores que já foi a França, Alemanha, Estados Unidos para apresentar livros, palestrar em universidades, participar de competições, o mo-

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vimento tem ganhado apoio por meio de financiamentos públicos. O mercado editorial também está se abrindo para esse novo núcleo de produção escrita. “A produção literária oriunda das mar­ gens econômicas e sociais é uma novidade importante na conjuntura recente da li­te­­­ra­­ tura brasileira e desperta inte­resse por suas carac­terísticas estéticas, perfis dos autores, estratégias de produção e circu­­ lação. A ­ ­ partir dessas singularidades se pode pensar o lugar de produtos e produtores periféricos, no sentido de se refletir sobre as rupturas, inovações e continuidades com relação a outros movimentos, gerações, grupos e obras”, afirma a antropóloga Érica Peçanha do Nascimento, autora do livro Vozes Marginais na Literatura.

Segundo sua pesquisa de doutorado sobre o tema na Universidade de São Paulo (USP), o fenômeno se concre­tizou como movimento artís­tico e literário a partir de 2001, com a publi­­cação de textos em três edições especiais da revista Caros Amigos, sob o título ­Literatura Marginal. Liderados ­pelo escritor Ferréz, morador do Capão ­Redondo e autor de Capão Pecado, obra que o tornou reconhecido no mer­cado editorial, os participantes das pu­bli­cações eram em sua maioria mora­ dores de bairros periféricos, inte­grantes de grupos de hip hop e movimentos ­sociais, além de presidiários, índios e outros grupos “marginais”. O editorial escrito por Ferréz para a edição de 2001, o primeiro manifesto do mo-


fotos Fabio Setimio/ Virada Cultural São Paulo

literatura

Ferréz, na época o autor mais reconhe­ cido do grupo, é um dos que também mais se destaca internacionalmente até hoje. “A literatura marginal está passando­ por um momento brilhante. Em vários países que a gente foi, a gente teve espaço,­ está sendo uma coisa bem construtiva. Acabamos de voltar do México, também fizemos um evento em Bogotá. Vários países estão abrindo as portas. Fui para os Estados Unidos, na Brown University, com o Allan da Rosa, para a França com o Rodrigo Ciríaco. É sempre bom estar com escritores da mesma classe, da mesma ideologia”, afirma.

“A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor” Sérgio Vaz

Flickr/Produção Cultural no Brasil

Público acompanha as apresentações do Sarau do Binho na Virada Cultural de São Paulo

vimento, explicita que a missão do projeto era “certificar de que o povo da periferia/ favela/gueto tenha sua colocação na história e não fique mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de sua própria cultura”. Inspirados em autores como Plínio Marcos, Solano Trindade e Carolina de Jesus, esses escritores tinham inten­­ção ­de se tornar porta-vozes de grupos ­ex­­clu­í­dos­ socialmente, portanto, em s­ituação de margi­nalidade. Os textos pos­suíam em comum a temática da realidade dos bairros pobres, favelas, a exposição à violência, denúncias sociais e, sobretudo, uma oposição aos sistemas e políticas que contribuíam para que condições de desigualdade se perpetuassem.

Apesar das oportunidades de mostrar seu trabalho no exterior, Ferréz consi­ dera que no Brasil há ainda dificuldades a ­superar. “A gente ­enfrenta quem comanda o mercado editorial, a representa­tividade, que, infelizmente, é a elite. Mas estamos ­falando para o povo, a gente tem a ascese­ de agradar a população.” A forma que o ­escritor propõe para garantir o espaço da produção periférica no país é combativa. “Não tem o­ utro caminho a não ser cavar trincheira, e o e­ stamos fazendo há 15 anos. Se a história é nossa, deixa que nóis escreve.”

Periferia no centro

A pesquisa de Érica Peçanha destaca­ que, em um segundo momento, ­as­publi­ cações nas revistas foram encerra­das,­mas revista do brasil

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em São Paulo se intensificaram encon­tros com o objetivo de promover a p­ oesia na perif­­eria. A partir de iniciativas de ­alguns escritores e grupos culturais, disse­minouse­a reali­zação de ­saraus, eventos nos quais são declamadas poesias, apresentações de cenas dramá­ticas, grupos musicais, além de críticas ­sociais e ­manifestações políticas. Os ­saraus se pro­li­fe­raram nos confins da ­cidade, e a ­li­te­ratura se tornou viva em bares, ­espaços culturais, escolas e bibliotecas. ­Liderado pelo poeta Sérgio Vaz, o Sarau da ­Cooperifa (de Cooperação Cultural da Periferia), acontece todas as quartas-feiras no Bar do Zé Batidão no Jardim Guarujá, em Taboão da Serra, região metropolitana de São P ­ aulo. E já chegou a atrair 500 pessoas em um único dia. No Manifesto da Antropofagia Periférica de Vaz, estão expostos os princípios dessas atividades: “A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor”, diz o manifesto divulgado durante a 1ª Semana de Arte Moderna da Periferia, em 2007. O sucesso estimulou coletivos culturais de outras regiões periféricas a criar saraus nesses locais, e hoje ­­estima-se que mais de 50 sejam realizados regularmente. A prefeitura de São Paulo tem incluído os saraus em programas de financiamento público, na programação da Virada Cultural e, recentemente, convidou alguns coletivos a compor a lista de convidados de honra da cidade na 40ª Feira do Livro de Buenos Aires, realizada entre 28 de abril e 12 de maio. Em parceria com a organização da feira, o município possibilitou a viagem e participação de representantes de 15 saraus de diferentes regiões. “A gente está dando um passo grande, cria um fortalecimento. Ajudar na auto­ estima dos poetas; às vezes não somos reconhecidos, falam que é coisa de vaga­ bundo, mas aí você está fazendo poesia, sendo valorizado, indo pra fora do Brasil. Um reconhecimento, uma conquista, um conjunto de forças que o sarau tem”, afirma Robson Padial, conhecido como Binho, poeta e organizador do sarau que leva seu nome, na região do Campo Limpo e Taboão da Serra, município vizinho, a sudoeste da capital paulista. 38

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fotos Livia lima

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A periferia de São Paulo teve seu espaço na 40ª Feira do Livro de Buenos Aires com leituras, hip hop, capoeira e samba. O escritor Ferréz (ao lado) foi um dos destaques do evento

“O brasileiro não circula, sempre circulou a classe média, mas o povo mesmo dificilmente consegue sair do Brasil, de São Paulo, que é um gueto danado. A América Latina precisa se conhecer”, acredita Binho, que já realizou com outros poetas o projeto Donde Miras, uma expedição artística por países da América do Sul. “Nunca vi do hip hop, do samba, nem ­de nenhum outro movimento cul­tural­ ­terem saído tantas pessoas pra outro país­, talvez nem pra outro estado. Ver tanta gente saindo ao mesmo tempo do

Brasil­é muito inédito”, entusiasma-se Ales­sandro B ­ uzo, que organiza o Sarau Suburbano, no bairro­do Bixiga (a Bela Vista,­na região central da capital paulista), e o projeto Favela Toma Conta, no bairro do Itaim Paulista, zona leste. “O movimento dos saraus é um só, cada um tem sua particularidade, mas o movimento é único. Ir para Buenos Aires fortificou os coletivos, diminuiu as distâncias que lá em São Paulo­a gente tinha.” “Foi a primeira vez que artistas oriundos das camadas populares predominaram na delegação cultural do país em um evento internacional. Isso é muito significativo, especialmente porque esses artistas estão interessados em elaborar esteticamente suas experiências sociais e em desenvolver uma atuação que amplie o acesso a bens e produtos culturais, especialmente nas periferias urbanas”, acredita Érica Peçanha.


literatura

“Ver tanta gente saindo ao mesmo tempo do Brasil­é muito inédito” Alessandro Buzo

“O Estado precisa contribuir vendo a cultura como formação para a cidadania. As editoras comerciais só investem nos autores que já conhecem”, afirma a pesquisadora argentina Lucia Tennina, graduada em Letras e mestre em Antropologia Social. Lucia estudou a produção literária da periferia de São Paulo, onde morou por mais de um ano, e também

Arthur Rampazzo Roessle

“É um reconhecimento, uma conquista nossa, um conjunto de forças que o sarau tem” Robson Pasial, poete e organizador do Sarau do Binho

traduziu autores para o espanhol, ­como Ferréz, participou da organização da ­feira, convidando os saraus, recebendo os artistas, colaborando com a programação de atividades dos coletivos. “Não digo que a escrita da periferia é a mais ­representativa do Brasil, mas é importante que debrucemos sobre ela para ­refletir sobre o que é literatura”, pondera.

“Eles (os estrangeiros) se interessam mais pela literatura da periferia do que as que têm mais respaldo europeu, pelas gírias, o jeito de falar, de se expressar na poesia, de falar literatura, pela oralidade. Tem mais a ver com o país do que essa enrustida que o cara fica pesquisando a francesa para copiar. Eles veem com mais propriedade, acham que tem mais a cara do Brasil”, garante Ferréz. O autor, no entanto, verifica que em outros países também existem movi­ mentos semelhantes. “Aonde a gente vai tem gente produzindo literatura mar­ ginal, gente oprimida que quer fazer um texto diferente e que não participa do mercado editorial.” Alessandro Buzo também encontrou semelhanças entre os bairros periféricos de São Paulo e os da capital da Argentina, que fizeram parte do roteiro dos saraus durante a Feira do Livro. “As periferias daqui da Argentina são muito parecidas com as de lá, as pessoas são felizes apesar das dificuldades, que talvez sejam maiores que as do Brasil, mas eles estão lutando pra progredir. Periferia é periferia em qualquer lugar do mundo.” revista do brasil

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perfil Pedagoga completa três décadas de atividades em casa na periferia paulistana que se tornou referência de educação não formal Por Ieda Estergilda de Abreu

É agora, José! E la chega nos lugares já dizendo que gosta de contar histórias, e tem muitas, histórias da mais pura, dura e valiosa vida. São três décadas atuando como educadora na zona sul de São Paulo, entre os bairros Capão Redondo, Parque Santo Antônio e Jardim Ângela. Diz também que não cumpre missão. “Sou uma felizarda, adoro o que faço, vivo uma troca constante com crianças e jovens, o dia a dia é minha maior recompensa.” Dagmar Rivieri Garroux é pedagoga, paulistana de Santo Amaro, 60 anos, fundadora da Casa do Zezinho, referência no Brasil de educação não formal, engajamento coletivo e perseverança. É mais conhecida como tia Dag. É calça jeans, tênis, camiseta. Em vez do espelho, o olhar procura o outro, sua vaidade é a busca pela educação. Sorriso e gestos largos de quem sabe por que e por quem está no mundo. Os primeiros atendimentos a crianças foram feitos em 1993, mas a casa existe oficialmente desde março de 1994, quando foi fundada por Dagmar e o marido, o artista plástico Saulo Garroux, mais quatro amigas de faculdade da Universidade de São Paulo (USP), onde se formou. Inspirados nas lutas políticas da década de 1970, o grupo se dispôs “a trabalhar indignadamente para mudar o país pela educação”. No primeiro dia, eram sete crianças. No segundo, 12. Hoje, 1.500.

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fotos Jesus Carlos/Imagemglobal

Quando o marido voltou do exílio, juntamente com as colegas – também presas e exiladas –, eles resolveram comprar uma casa que pudesse ser um centro de educação, diversão e cultura. Foi aí que começou a Casa do Zezinho. Os imóveis onde a CZ funciona hoje têm 4 mil metros quadrados de área construída para atender crianças e jovens em situação de vulnerabilidade, risco social e baixa renda. A história começa ainda em 1988, quando Dagmar e Saulo compraram uma casa no Capão Redondo, ainda um bairro tranquilo. “Começaram a roubar dentro da comunidade, vieram os grupos de extermínio (organizações clandestinas de policiais que matavam supostos bandidos), colavam nos postes o nome de quem ia morrer se não saísse da favela em sete dias”, conta Dagmar. “Matavam meninos que tinham roubado canetinhas! Não teve como não me envolver, passei a esconder crianças na minha casa, enfrentei denúncia de formação de quadrilha e visitas da polícia.” No início, todos eram voluntários e colocavam no projeto parte do que ganhavam em outras atividades. “Fazíamos bingo, rifa, bazares e oficinas de arte integrando a comunidade”, conta Dagmar. Com foco na cultura, mapearam a região para saber o que havia de bom, que o ruim já era notório. E foram descobrindo pessoas, como uma avó que tinha vindo do C ­ eará e


perfil

ainda trabalhava com argila. Descobriram que todos queriam aprender datilografia, escrever, fazer pão. Um menino foi contando para outro o que acontecia no local, o espaço foi ficando pequeno. E toca a fazer puxadinho. “Fiz questão que essa casa fosse construída igual a uma favela, um labirinto de puxadinhos, um espaço muito parecido com o que eles têm como referência.” Atualmente, a casa tem 80 funcionários e 32 voluntários, atende cerca de 1.500 crianças e jovens de 6 a 21 anos, que frequentam 67 escolas públicas da região. Quem consegue uma vaga (2 mil estão na fila de espera) desfruta de 17 oficinas como de música, teatro, informática, foto e vídeo, esportes, complementação escolar e até de gastronomia, além de quadra poliesportiva, piscina, refeitório, horta, atendimento de saúde. O nome Zezinho tem como inspiração um dos mais conhecidos poemas de Carlos Drummond de Andrade, José. “José, o cara que construiu São Paulo, que não teve direito de entrar no prédio que construiu, um Zé mané, um Zé ninguém”, diz Dagmar. “Mudei a pergunta pra exclamação: É agora, José! E fizemos um rap legal: ‘É agora, José, a noite apareceu, a festa começou, o povo esquentou...’ Mudamos a poesia do Drummond, ele deve estar se revirando... Mas feliz”. O nome também tem a ver com a proposta político-pedagógica da ONG, voltada para a assistência social. “O objetivo maior é fazê-los serem um Zé que é alguém na vida, que superem as limitações impostas pelo meio em que vivem, conquistando autonomia de pensamento e de ação.“ Já faz tempo que seu nome de batismo foi trocado pelo tratamento afetivo, é Tia Dag o dia inteiro e para todos, seja empresário, artista, criança, jovem ou velho. Ela já nem se importa com as críticas ao apelido. “Sou a favor do afeto, sou mãe, tia de todo mundo, a gente mora no mesmo planeta, somos todos parentes.” O filho Alessandro, 37 anos, desde pequeno compartilhou a mãe com muitas outras crianças. “Ele sempre esteve do meu lado, apoiando meu trabalho, com muito amor, hoje é um grande conselheiro.” Dagmar usa a indignação e o questionamento como ferramentas. “O que está acontecendo com o mundo? Não olhamos mais pra ninguém, só pra nós mesmos!” Ela questiona escolas públicas que obrigam o aluno a colocar uma cinta dentro da mochila para lembrar que se aprontar vai levar uma surra quando chegar em casa. “Por que ele desiste da escola? Porque fica lá oito anos e sai semianalfabeto, e porque nossas escolas são feias, têm grades, ainda se toca o sinal, todos sentam em fila, um olhando a nuca do outro. Nós não tocamos sinal nem api-

to, trabalhamos em roda, brincando, pelo prazer de aprender e ensinar.” Usa também a diversidade de cores, culturas e sonhos da periferia com que aprende sempre. Disso tudo extrai a Pedagogia do Arco-Íris, que se dá em sete estágios, cada um representando uma cor. A base é o desenvolvimento da autonomia de pensamento e ação a partir de quatro pilares da educação: ser (espiritualidade), conhecer (ciências), saber (filosofia) e fazer (arte). “Nossos educadores são convidados a usar os cinco sentidos, principalmente a audição. É preciso escutar esses meninos para depois tentar uma mediação.” O desafio é como tornar a escola interessante, “principalmente para crianças que já não sonham, que cedo precisam trabalhar, ganhar dinheiro, engravidam. É lembrá-las que já tiveram sonhos”.

Cicatrizes na alma

Seguidora de Paulo Freire, Dagmar busca colocar em prática os ideais do educador, que conheceu quando ele voltou do exílio, em 1980. Passou a acompanhar seus cursos e palestras e absorveu toda a paixão do mestre. O sucesso da pedagogia cabe 60% aos educadores, “ex Zezinhos” que conhecem na pele as dificuldades enfrentadas pelos jovens. “Eles chegam com cicatrizes na alma, falando quase nada, muitos verbos no imperativo e frases agressivas.” Em apenas um momento, em 2002, Dagmar se ausentou da casa. “Um menino invadiu o sítio onde morávamos, em Itapecerica da Serra, meu pai reagiu e levou três tiros. Foi um baque. ‘Desaluguei’ o sítio e fiquei um mês sem aparecer na CZ. Um dia, uma criança me ligou: Tia Dag, você tá muito triste, né? Se a gente for lá na Febem e mandar matar o cara que matou seu pai, você volta? Deu um frio na barriga. Meu pai morreu defendendo aquilo em que acreditava, que era a família dele. Então, vou morrer em pé. Aí voltei como uma louca, como uma energia sem fim.” A ONG está sempre em contato com a escola e as famílias dos alunos, visita, faz reuniões, monitora o desempenho em sala de aula. “A gente sabe que educar para o mundo, para a realidade, não é uma tarefa fácil, envolve uma porção de coisas que a escola não tem dado conta.” Aos 60 anos, Dagmar, com uma lista de ideias e projetos, mostra que não pensa em parar tão cedo. Acredita que tudo pode ser feito, de verdade, por isso resolveu ser ponte para eliminar os guetos, cruzar os rios de São Paulo que viraram muros de Berlim separando pobres e ricos. “Ainda tenho muito o que fazer como educadora.” A princípio, ela gostaria que houvesse uma casa em cada esquina de São Paulo, do Brasil e do mundo. “Mas pensando bem, meu sonho mesmo é não precisar mais de Casa do Zezinho.”

“Mudei a pergunta pra exclamação: É agora, José! E fizemos um rap legal: ‘É agora, José, a noite apareceu, a festa começou, o povo esquentou...’ Mudamos a poesia do Drummond, ele deve estar se revirando... Mas feliz”

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cláudia motta

Praia de Caburé, vizinha de duna do Rio Preguiças

Ilha de artes e devoções Na terra de São José de Ribamar, celebra-se de tudo um pouco. Do bumba-meu-boi aos tambores de mina e crioula. Do Divino a Carmen Miranda. De clássicos de Hollywood a fotonovelas Por Paulo Donizetti de Souza 42

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cidadão é de São Luís, e enfrenta uma pendência jurídica com seu automóvel, não se sabe exatamente o quê. Sabe-se é que a decisão não está só nas mãos da juíza Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro, no Fórum Desembargador Sarney Costa, na capital maranhense. Além de recorrer à Justiça, o fiel deu uma passada na Igreja Matriz de São José de Ribamar, município vizinho. E como a outra parte também pode ser devota do mesmo santo, o fiel põe no bilhete o máximo possível de informações – nome da juíza, placa e cor do veículo, endereço do fórum, número do processo. Talvez os detalhes contem na hora do veredito do padroeiro: “Meu São José de Ribamar, ajude-me”. O pedido encontrado na igreja é um dos símbolos da simplicidade e da fé presentes no cenário e na vida da cidade, a pouco mais de uma hora de São Luís. São José de Ribamar compõe, junto a Paço do Lumiar, Raposa e a capital, a Ilha de Upaon-Açu (“ilha grande” em tupinambá), um canto de Brasil funda-


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Centro de Cultura Popular

fotos Paulo Donizetti de Souza

Centro histórico de São Luís...

Teatro Arthur de Azevedo

...entre a preservação e o abandono

do por franceses, ocupado por holandeses e colonizado pelos portugueses. A cidade tem paisagens exóticas, praias desertas e é um dos destinos religiosos mais procurados do Nordeste. O santo é celebrado em seu dia, 19 de março, e principalmente em setembro, durante dez dias a partir da primeira lua cheia do mês – época em que atrai romarias, desde o século 19, para a festa do padroeiro do Maranhão. A devoção ao operário, marido de Maria e pai de Jesus, não é para menos: José é também padroeiro dos trabalhadores, das famílias e da própria Igreja Católica. Mas não é o único: “Aqui tem festa todo dia santo e todo santo dia”, brinca um slogan da prefeitura. Um dos focos de disseminação das histórias e lendas da cidade é o Centro de Cultura e Turismo, em frente à praça da matriz. Ali dá plantão o servidor municipal Antônio Miranda, escriturário, bibliotecário, artesão e historiador, de 63 anos. A bem cuidada casa anuncia logo de entrada a diversidade cultural característica de toda a região, também de forte presença de crenças de matrizes africanas. As origens da Festa do Divino,

Igreja Matriz de São José de Ribamar

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do bumba-meu-boi e do tambor de crioula são explicadas com a mesma desenvoltura pelo anfitrião, em meio a manequins criados por Roberto Paixão e Riba Pintor, artistas locais, para ilustrar as tradições com seus personagens, cores e papéis.

Cinema e novelas

O folclorista Miranda conhece a fundo as histórias de sua terra. Atende com a serenidade de um mestre o público que vem a turismo ou alunos em suas pesquisas. Atualmente, produz o livro Tradição, Lendas e Histórias de São José de Ribamar, todo quadrinizado, que reconstrói o perfil e a cultura locais desde os primeiros contatos dos missionários portugueses com os índios gamelas, donos do pedaço até o começo do século 17. Cinéfilo, guarda no Centro de Cultura um acervo de 318 filmes, alguns recuperados de coleções de jornais e revistas, outros “encontrados e digitalizados com ajuda de amigos”. Quase todos estiveram em cartaz no Cine Ribamar enquanto existiu, de 1953 a 1979. Miranda catalogou toda a programação que encontrou nos arquivos de jornais da capital. O morador que quiser ver Rita Hayworth em Gilda tem. Pode conhecer Casablanca, com Ingrid Bergman e Humphrey

Bogart, ou levá-lo para casa como o detetive Sam Spade, de Relíquia Macabra. A Dama das Camélias, com Greta Garbo, e clássicos com Sophia Loren e Brigitte Bardot dormem em sua prateleira democrática, ao lado dos densos Marlon Brando e Federico Fellini, da juventude rebelde de James Dean e da juventude festiva da turma da praia de Frank Avalon. Dois fenômenos das telas receberam atenção especial. Miranda pesquisou o que pôde sobre o Titanic. Investigou o projeto, leu sobre passageiros e tripulantes e relatos de sobreviventes, reuniu 12 filmes de várias épocas e nacionalidades sobre o transatlântico. Escaneou na memória imagens do navio e durante um ano, sete meses e 19 dias construiu com paciência de artesão e preciosismo de cineasta a réplica em exposição em sua sala desde o centenário do naufrágio, em 2012. E com a ajuda de artesãos locais, construiu bonecas com o corpinho e a cara de Carmen Miranda, que enfeitam seu cineclube vestindo os figurinos da brasileira mais famosa de Hollywood. O fã cita de memória as 14 películas estreladas pela brasileira em terra estrangeira, de Serenata Tropical (1940) a Morrendo de Medo (1953), todas à disposição do público. Assim como o documentário Carmem Miranda: Banana is my Business

Mangues, rendas e lagoas Azulejos portugueses decoram o casario

fotos Paulo Donizetti de Souza

Lagoa nos Lençóis Maranhenses

Rio Preguiças

Agências que organizam passeios a São José de Ribamar a partir de São Luís quase sempre incluem no roteiro passagem por Raposa, a menor das quatro cidades da ilha, com 26 mil habitantes que vivem especialmente da pesca e da renda de bilro. Praias isoladas e dunas, passeio de barco por manguezais margeados por palafitas – sempre obedecendo a pontualidade das marés – e lojas de rendas servem doses peculiares de encantamento. 44

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Enquanto os homens, pescadores, passam até dez dias mar adentro, as mulheres exibem, sozinhas ou em grupo, ao vivo e em cores, e que cores!, como a renda sai do bilro para as “vitrines” de suas próprias casas enfileiradas, com frente aberta para que vem da rua e com as “pernas” dos fundos enfiadas no mangue. Como se fossem máquinas, ou mágicas, conversam manipulando as linhas com os bilros (agulhas de madeira, osso ou espinho

de mandacaru) que espetam nas almofadas, onde ganham forma e sentido. O passeio a essas periferias da ilha são um complemento essencial para quem vai a São Luís e esgota suas incursões ao centro histórico, onde fica o maior acervo arquitetônico de azulejos portugueses do continente. Boa parte dessa memória colonial está tristemente deteriorada. A cidade conseguiu tocar um processo de revitalização e reformas por meio da Unesco,

mas desde a conquista do título de Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1997, o ritmo dos restauros é lento. Por isso, corre o risco de perder o título. A cidade mantém bons museus a valorizar sua história e diversidade. A presença marcante das religiões africanas e a rica produção artística local estão em toda a parte. Os atendimentos das casas de cultura são exemplares, como monitorias de estudantes que dominam os assuntos e parecem gostar do


fotos Paulo Donizetti de Souza

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Caldeirada cultural Antônio Miranda: fotonovelas, Carmem Miranda, clássicos do cinema e réplica do Titanic feita à mão

Maria

que fazem. Eles estão na Casa de Nhozinho, o artista popular Antônio Bruno Pinto Nogueira (1904-1974), escultor, pintor e construtor de brinquedos; no teatro erguido em 1817 e que na década de 1920 recebeu o nome do teatrólogo Arthur de Azevedo; ou no Centro de Cultura Popular, casarão de quatro pavimentos onde se sabe de tudo sobre festas e rituais populares ou religiosos, candomblé, umbanda, tambor de mina, tambor de crioula, boi, Festa do Divino e carnaval.

O que ninguém esconde é a sensação de insegurança da capital maranhense. “Se a rua estiver meio deserta, não vai não. Tá feia a coisa aqui”, ouve-se por toda a parte. O centro histórico ganha vida no meio da tarde. Barraquinhas de artesanatos bem feitos e baratos são armadas lado a lado com as de beliscos. Tapioca, água de coco, coxinha de caranguejo ou de carne de sol, arroz de cuxá (refogado com tomate, cebola, pimentão, ervas e camarão seco),

(1995), que traz a última participação da estrela no programa de celebridades de Jimmy Durante Show um dia antes de ser encontrada morta, em 8 de agosto de 1955. Na conversa, o colecionador se solta e revela mais uma de suas predileções: fotonovelas. De suas gavetas brotam revistas antigas especializadas na arte que esteve para os italianos como a teledramaturgia, para os mexicanos. “Tenho muitas fotonovelas do Domingo Alzugaray. Primeiro com a Terezinha Mendes, aquela que apresentava um programa na antiga TV Tupi. Outras com Adélia Mercandel. Você conhece o Domingo Alzugaray? Sei que ele trabalha numa revista lá em São Paulo...”, pergunta Miranda. O programa da TV Tupi a que se refere é Primeiro Plano, que Terezinha apresentava com Cid Moreira e Luiz Jatobá. O Domingo Alzugaray que admira é o argentino naturalizado brasileiro que, antes de fundar em 1972 a Editora Três – responsável pele revista IstoÉ –, foi ator e diretor de fotonovelas de revistas como Capricho, nos anos 1950 e 1960. “Alzugaray trabalha em São Paulo, sim”, responde o repórter. “Se você o encontrar, diga que um admirador aqui no Maranhão guarda com muito zelo sua rica trajetória de artista”, pede Miranda – ele próprio uma atração que vale a visita a São José de Ribamar.

Dona Margarida

sucos e sorvetes de graviola, cajá, cupuaçu e açaí podem recompensar bem as longas caminhadas. São Luís é ainda ponto de partida para Barreirinhas, porta de entrada para os Lençóis Maranhenses, a 250 quilômetros. Para se banhar em algumas das milhares de lagoas daquele mar de areias, o melhor momento é o primeiro semestre: os oásis são formados pelas chuvas de todos os dias do “inverno”, de janeiro e junho. A partir de

Dona Margarida, 65 anos, tem a vista cansada e já não se arrisca mais na função de rendilheira. E teme que se extinga, pois as filhas moças não se interessam pelo ofício, sonhando com algum emprego mais urbano, menos complicado e mais rentável. Na casa da frente, a pequena Maria enfeita a banca. Ela tem só 10% da idade da vizinha e diz que vai, sim, aprender a fazer renda. Mas antes vai aprender a ler, escrever e desenhar

julho, começa o “verão”. As chuvas, e suas piscinas, serão cada mês mais escassas até dezembro. Mesmo que as lagoas não estejam 100%, os passeios de lancha voadeira pelas comunidades ao longo do Rio Preguiças já valem o ingresso em Barreirinhas. E se o visitante se hospedar numa casa ou pousada que tenha os fundos banhados pelo rio, pronto: está na praia. Pode desfrutar, sem culpa, do prazer de não fazer nada. revista do brasil

julho 2014

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FUNDAÇÃO PROJETO TRAVESSIA C.N.P.J.(MF) nº 01.044.756/0001-03 Balanço patrimonial dos exercícios findos em 31 de dezembro (em R$) A T I V O 2013 CIRCULANTE Caixa e Bancos 7.606,68 Aplicação Financeira 577.617,99 Outros Créditos 31.547,82 TOTAL DO CIRCULANTE 616.772,49 NÃO CIRCULANTE Realizável a Longo Prazo Crédito de Instituidores PERMANENTE Edifícios Máquinas e Equipamentos Móveis, Utensílios e Instalações Veículos Computadores e Periférico Marcas e Direitos (-) Depreciação Acumulada TOTAL DO PERMANENTE

1.180.000,00 1.180.000,00

2012 7.959,52 312.063,44 835.939,15 1.155.962,11

P A S S I V O CIRCULANTE Fornecedores Obrigações Fiscais, Tributárias Obrigações Sociais Outras Obrigações Provisão Para Férias e Encargos TOTAL DO CIRCULANTE

TOTAL DO NÃO CIRCULANTE

1.412.975,48

1.180.000,00 1.180.000,00 NÃO CIRCULANTE Outras Obrigações 278.538,81 79.937,30 TOTAL DO NÃO CIRCULANTE 170.255,90 33.900,00 PATRIMÔNIO LÍQUIDO 218.664,60 Fundo Patrimônio Social 11.780,73 Doações -515.588,86 Déficit Acumulado 277.488,48 Déficit / Superávit do Exercício TOTAL DO PATRIMÔNIO LÍQUIDO 1.457.488,48

TOTAL DO ATIVO

2.029.747,97

2.613.450,59 TOTAL DO PASSIVO

278.538,81 81.049,30 171.578,90 33.900,00 218.664,60 11.780,73 -562.536,86 232.975,48

Demonstração de resultados dos exercícios findos em 31 de dezembro (em R$) 2013 742.000,00 524.417,51 0,00 0,00 19.988,12 15.298,77 -585,66

712.000,00 786.626,23 140.830,21 0,00 4.189,43 2.028,37 -144,80

TOTAL ARRECADAÇÃO ATIVIDADE FIM

1.301.118,74

1.645.529,44

-751.569,63 -277.505,28 -280.653,45 -47.151,93 -5.438,49 -73.720,92 -128.629,22 -23.513,73

TOTAL DO CUSTO PROJETO SOCIAL

-1.588.182,65

RESULTADO FINANCEIRO Receitas Financeiras (-) Despesas Financeiras TOTAL DO RESULTADO FINANCEIRO

26.499,72

OUTRAS ARRECADAÇÕES SOCIAIS LÍQUIDA SUPERÁVIT / DÉFICIT DO EXERCÍCIO

2012

-784.913,26 -278.456,86 -251.996,30 -49.185,30 -4.252,20 -68.354,57 -162.944,13 -24.994,00 -1.625.096,62

29.236,03 -2.736,31

38.943,99 -4.070,87 34.873,12

1.778,77

4.269,93

-258.785,42

59.575,87

4.047.063,46

3.842.858,45

4.047.063,46

3.842.858,45

348.976,18 340,00 -2.214.382,60 -258.785,42 -2.123.851,84

348.976,18 0,00 -2.273.958,47 59.575,87 -1.865.406,42

2.029.747,97

2.613.450,59

2013

2012 59.575,87

47.151,93 0,00 -203,93

49.185,30 0,00 0,00

Redução (aumento) do ativo Contas a receber Outros Créditos

0,00 804.391,33

0,00 -808.070,06

Aumento (redução) do passivo Fornecedores Obrigações sociais e fiscais Provisão de férias Outras obrigações

4.634,68 1.112,90 -9.572,28 -321.432,50

12.086,21 -1.241,99 33.036,96 725.972,37

Geração (utilização) de caixa das atividades operacionais

267.296,71

70.544,66

ATIVIDADES DE INVESTIMENTOS Aquisições de ativo imobilizado Aquisições de ativo intangível

-2.435,00 0,00

-12.731,19 0,00

Geração (utilização) de caixa das atividades de investimentos

-2.435,00

-12.731,19

0,00 0,00 340,00

0,00 -240.061,60 0,00

Aumento (diminuição) dos itens que não afetam o caixa: Depreciação e amortização Perdas (ganhos) na alienação sobre o ativo investimentos Perdas (ganhos) na alienação sobre o ativo imobilizado

ATIVIDADES DE FINANCIAMENTOS Recebimento de empréstimos e financiamentos Pagamento Devolução de Convênio Recebimentos e doações integradas ao PL Geração (utilização) de caixa das atividades de financiamentos

Aumento (diminuição) no caixa e equivalentes

DESCRIÇÃO PATRIMÔNIO DOAÇÕES E SUPERÁVIT/ TOTAL SOCIAL SUBVENÇÕES DÉFICIT ACUMULADO DE 2011 296.685,78 292.352,00 -2.273.958,47 -1.684.920,69 AUMENTO DO PATRIMÔNIO Transferência Superávit 292.352,00 -292.352,00 0,00 0,00 Ajuste Exercícios Anteriores -240.061,60 0,00 0,00 -240.061,60

0,00

0,00

59.575,87

59.575,87

348.976,18

0,00

-2.214.382,60

-1.865.406,42

AUMENTO DO PATRIMÔNIO Transferência Superávit Doações Integradas ao PL

0,00 0,00

0,00 340,00

0,00 0,00

0,00 340,00

DÉFICIT ACUMULADO Déficit do Exercício

0,00

0,00

-258.785,42

-258.785,42

348.976,18

340,00

-2.473.168,02

-2.123.851,84

DE 2013

12.971,21 2.666,89 8.244,42 525.637,51 86.478,53 635.998,56

-258.785,42

Caixa e equivalentes no início do período Caixa e equivalentes no fim do período

Demonstração das mutações patrimoniais dos exercícios findos em 31 de dezembro (em R$)

DE 2012

17.605,89 3.782,66 8.241,55 0,00 76.906,25 106.536,35

ATIVIDADES OPERACIONAIS Superávit (Déficit) do período

Aumento (diminuição) no caixa e equivalentes

DÉFICIT ACUMULADO Déficit do Exercício

2012

Demonstração do Fluxo de Caixa para os exercícios findos em 31 de dezembro (em R$)

DESCRIÇÃO ARRECADAÇÃO ATIVIDADE FIM Contribuições, Doações, Convênios e Eventos De Mantenedores Patrocinio Órgãos Privados Convênio Órgãos Públicos (-) Devolução Convênios não Aplicado Contribuições e Doações Eventual Promoções e Eventos Institucionais (-) Custo Eventos Promocionais

CUSTO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL Custo Com Pessoal Encargos e Contribuições Sociais Benefícios Com Pessoal Depreciação Impostos, Taxas e Contribuições Serviços Profissionais Externo Atendimento e Atividade Social Manutenção, Conservação e Reparos

2013

340,00

-240.061,60

265.201,71

-182.248,13

320.022,96 585.224,67

502.271,09 320.022,96

265.201,71

-182.248,13

Nota 01 – Contexto operacional de entidade A “FUNDAÇÃO PROJETO TRAVESSIA” é uma associação civil de direito privado, sem fins lucrativos e de natureza filantrópica, fundada em 1995, com os seus atos constitutivos registrados no “3º Registro Civil das Pessoas Jurídicas de São Paulo” em janeiro de 1996, conforme microfilme nº. 258.727. Conforme preceitua o artigo 5º, do Capítulo III, do Estatuto Social, a “FUNDAÇÃO PROJETO TRAVESSIA” tem por objetivo: “I) eleger as crianças e os adolescentes, especialmente aqueles que estiverem em condições sociais e econômicas desfavoráveis, como segmento prioritário de sua ação; II) fazer respeitar os direitos assegurados à criança e ao adolescente referentes a: i) ensino obrigatório; ii) atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência; iii) atendimento em creches e pré-escola às crianças de 0 a 6 anos de idade; iv) ensino noturno regular adequado às condições do educando; v) programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde do educando de ensino fundamental; vi) serviço de assistência social visando a proteção à família, à maternidade e à adolescência, bem como o amparo às crianças e adolescentes que deles necessitem; vii) acesso às ações e serviços de saúde, tudo conforme prevê a Lei 8.069 de 13.07.1990”. De acordo com o Estatuto Social da Entidade, todo benefício e promoção de seus assistidos, “crianças, adolescentes e seus familiares”, é inteiramente gratuito. A origem da arrecadação financeira da Entidade está fundada em doações de pessoas físicas e jurídicas, e de parcerias com o setor público e privado que comungam com os objetivos sociais, assistenciais, da promoção da pessoa humana e filantrópicos da Entidade. Nota 02 – Apresentação das demonstrações contábeis As demonstrações contábeis foram elaboradas em observância às práticas contábeis adotadas no Brasil e, em atendimento


informe publicitário

às Resoluções do Conselho Federal de Contabilidade - CFC n° 1.121/08, que aprovou a NBC T 1 – Estrutura Conceitual para Elaboração das Demonstrações Contábeis e a Resolução CFC nº 1409/12, que aprovou a ITG 2002, e que revogou a Resolução CFC n° 877/2000 - NBC T 10.19, que estabelece critérios e procedimentos específicos de avaliação, de registros dos componentes e variações patrimoniais, de estruturação das demonstrações contábeis, e as informações mínimas a serem divulgadas em notas explicativas das entidades sem finalidade de lucro.A Entidade, por ser sem fins lucrativos, bem como por estar desobrigada segundo a legislação fiscal, não adotou a prática de reconhecer os efeitos da inflação nas demonstrações contábeis até 31 de dezembro de 1995. A Depreciação do Imobilizado é calculada pelo método linear. Nota 03 – Resumo das principais práticas contábeis As práticas contábeis mais significativas adotadas na elaboração das demonstrações contábeis são: a). as receitas e as despesas são reconhecidas pelo regime de competência. As receitas são apuradas através dos comprovantes de recebimento, entre eles, avisos bancários, recibos e outros. As despesas são apuradas através de Notas Fiscais e recibos, em conformidade com as exigências fiscais e legais; b). as doações e contribuições destinadas ao custeio dos Serviços Sociais da Entidade, foram contabilizadas em contas de receitas. As despesas de custeio da Assistência social, são apuradas através de documentos hábeis, em conformidade com as exigências fiscais e legais e estão registradas no grupo “Custo da Assistência Social”; c). ativos e passivos circulantes – os ativos são demonstrados pelos valores de realização, incluindo, quando aplicável, os rendimentos e as variações monetárias auferidos; os passivos registrados, são demonstrados por valores conhecidos ou calculáveis, incluindo, quando aplicável, os correspondentes encargos e a variação monetária incorrida; d). a entidade não mantém Provisão para Devedores Duvidosos em decorrência de suas finalidades filantrópicas e assistenciais; e). o Ativo Permanente se apresenta pelo custo de aquisição ou valor original, visto que a entidade não procedeu à Correção Monetária de Balanços em exercícios anteriores. A Depreciação do Imobilizado é calculada pelo método linear; f). a Provisão de Férias e Encargos foi calculada com base nos direitos adquiridos pelos empregados até a data do balanço, incluindo os encargos sociais correspondentes; g). em razão de sua finalidade social, assistencial, filantrópica e sem fins lucrativos, a Instituição não está sujeita ao recolhimento de impostos calculados sobre o superávit do exercício, e nem distribui qualquer parcela de seus resultados a associados, parceiros, dirigentes, conselheiros ou mantenedores. Nota 04 – Títulos e Valores Mobiliários Histórico / Conta – Em reais Certificados de Depósito Bancário – Banco Bradesco S.A – CDB Fácil – Banco Bradesco S.A – CDB DI – Banco Bradesco S.A – Poupança – Banco Itaú Unibanco – Poupança – Caixa Econômica Federal - Poupança Totais Nota 05 – Outros Créditos Histórico / Conta – Em reais – Cheques em Cobrança – Adiantamento de Férias e Salários – INSS a Recuperar – Patrocínio PETROBRAS – Catho Online – Outros Créditos a Receber Totais

2013

2012

270.583,80 35.727,43 266.143,06 259.655,28 40.573,51 16.680,73 102,51 0,00 215,11 0,00 577.617,99 312.063,44

2013 2012 255,00 255,00 6.940,66 28.222,16 20.835,76 20.835,76 0,00 786.626,23 159,80 0,00 3.356,60 0,00 31.547,82 835.939,15

Nota 06 – Imobilizado Histórico / Conta Custo

Depreciação Líquido Taxas acumulada anuais de depr. 2013 2012 2013 2012 2013 2012 - % 278.538,81 278.538,81 (113.912,23) (102.770,59) 164.626,58 175.768,22 4 149.741,03 148.418,03 (142.202,04) (130.181,80) 7.538,99 18.236,23 10 11.780,73 11.780,73 (1.813,00) (1.813,00) 9.967,73 9.967,73 20

Em reais Edifícios Móveis e utensílios Direitos de uso Máquinas e equipamentos 81.049,30 79.937,30 (65.505,80) (60.393,73) 15.543,50 19.543,57 Veículos 33.900,00 33.900,00 (24.860,00) (18.080,00) 9.040,00 15.820,00 Computadores 218.664,60 218.664,60 (194.740,72) (184.356,88) 23.923,88 34.307,72 Instalações 21.837,87 21.837,87 (19.503,07) (17.992,86) 2.334,80 3.845,01 Totais 795.512,34 793.077,34 (562.536,86) (515.588,86) 232.975,48 277.488,48

10 20 20 10

Nota 07 – Doações, contribuições, patrocínios, convênios e parcerias com órgão privados e públicos a). Contribuições de órgãos privados A Entidade recebe doações e contribuições de pessoas físicas e jurídicas. Nos exercícios de 2013 e 2012, as doações e parcerias com órgãos privados estão assim representadas: MANTENEDORES 2013 2012 – Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de São Paulo 580.000,00 540.000,00 – Banco Fibra S/A 0,00 10.000,00 – APEOESP – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado e São Paulo 6.000,00 6.000,00 – FETEC Federação dos Trabalhadores em Empresas de Crédito de São Paulo 120.000,00 120.000,00 – AFUBESP Associação dos Funcionários do Grupo Santander/Banespa, Banesprev e Cabesp 36.000,00 36.000,00 Total mantenedores 742.000,00 712.000,00 b). Convênio com órgãos públicos Histórico / Conta – Em reais 2013 2012 – PMSP - SMADS -PRATES 0,00 140.830,21 Total convênio órgãos públicos 0,00 140.830,21

Francisco Fernandes C. Silva CRC/SP 1CE 003489/T-5

No exercício de 2012 a Entidade manteve convênio com órgãos públicos no desenvolvimento dos seguintes Programas Sociais: PROJETO PRATES – Convênio firmado com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social - SMADS, da Prefeitura do Município de São Paulo. No exercício de 2013, não firmamos convênio com órgãos públicos. c). Patrocínio com órgãos privados PATROCÍNIO ÓRGÃOS PRIVADOS 2013 2012 – Petrobrás 524.417,51 786.626,23 Total patrocínio órgãos privados 524.417,51 786.626,23 PROGRAMA DE EDUCAÇÃO NA RUA – Patrocínio firmado com a Petrobrás, visando a reintegração familiar, escolar e comunitária de crianças e adolescentes que habitam e sobrevivem nas ruas do Centro da Capital de São Paulo. Nota 08 – Exigível e Realizável a longo prazo A administração da entidade avalia a natureza dos casos, as ações existentes e as possibilidades de êxito ajustando a provisão para passivos contingentes conforme requerido. Em 31 de dezembro de 2013 as contingências estavam relacionadas à ação judicial de ordem previdenciária, relativa à questão com o INSS sobre a imunidade da cota patronal. A opinião dos assessores jurídicos é que o risco de perda é remoto, sendo que a administração da entidade, em uma postura conservadora, mantém registrada em 31 de dezembro de 2013 provisão no montante de R$ 4.047.063,46 (em 31 de dezembro de 2012 – R$ 3.842.858,45) considerado suficiente para fazer face às contingências. Nota 09 – DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO Neste exercício de 2013, a Entidade desenvolveu seu trabalho de assistência social nas seguintes áreas: DEFESA E PROMOÇÃO DE DIREITOS 1.PROGRAMA DE EDUCAÇÃO NA RUA Objetiva a reintegração familiar, escolar e comunitária de crianças e adolescentes que fazem das ruas do Centro da Capital de São Paulo seu espaço de moradia e sobrevivência. São realizadas atividades pedagógicas no próprio espaço das ruas visando a reflexão sobre a situação em que se encontram e a construção de novas e concretas possibilidades e, posteriormente, firmadas parcerias nas comunidades de origem e com serviços da rede pública a fim de garantir a permanência daquela criança ou adolescente no local e o seu desenvolvimento satisfatório. São realizados também trabalhos preventivos, visando evitar a saída das crianças e adolescentes para as ruas. O número de atendimentos varia de acordo com fatores como composição da equipe e público. 2.NÚCLEO DE DESENVOLVIMENTO Objetiva fomentar ações de melhoria, aprimoramento e disseminação de conhecimentos e métodos para o enfrentamento das situações de risco que envolve crianças, adolescentes, famílias e comunidades. Para isso, oferece cursos de formação e consultoria a equipes de profissionais que realizam atendimento direto a crianças e adolescentes em situação de risco, suas famílias e comunidades, efetivando assim a proposta qualitativa das ações. Nota 10 – Imunidades, isenção, gratuidade e aplicação de recursos em obras e programas sociais Em face de seu caráter exclusivamente beneficente, filantrópico e assistencial, sem finalidade de lucro ou econômico, a entidade usufrui de imunidade para o Imposto de Renda – IRPJ sobre o Lucro, a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido – CSLL, e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS. A Contribuição ao Programa de Integração Social – PIS é de 1% sobre os proventos da folha de pagamento. Benefícios com imunidades e isenções 2013 2012 – Imunidade da COFINS 39.964,01 46.437,39 – Imunidade do PIS (excedente ao pago s/folha pagamento) 1.015,74 2.595,70 – Imunidade do IRPJ 0,00 14.893,97 – Imunidade da CSLL 0,00 5.361,83 As gratuidades concedidas por meio das obras e programas de assistência social, nos termos do artigo 3º., inciso VI, do Decreto nº. 2.526/98, foram aplicados em suas finalidades institucionais, conforme estabelecido no Estatuto Social da Fundação Projeto Travessia, a seguir apresentada: Histórico / Conta – Em reais 2013 2012 – Arrecadação bruta (excluído convênios) 1.332.133,54 1.547.913,15 – Gratuidade aplicada (excluído convênios) 1.588.182,65 1.484.266,41 A gratuidade oferecida e aplicada pela Entidade totalizaram um montante de R$ 1.588.182,65 no exercício de 2013, e R$ 1.484.266,41 no exercício de 2012, excluído convênio com órgãos público, encontra-se registrada no grupo “CUSTO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL”, respaldada em documentação hábil, e escriturada em livros próprios revestidos das formalidades legais. Nota 11 – Serviços de terceiros Refere-se, principalmente, a serviços prestados por consultores e oficineiros contratados para desenvolver os programas e atividades da fundação. Nota 12 – Patrimônio Social Está demonstrado pelo montante dos superávits apurados, líquidos dos eventuais déficits, a valores históricos, que vêm sendo destinados integralmente à manutenção e ao desenvolvimento dos objetivos sociais da entidade. A Fundação vem apresentando déficits circunstanciais, devido à ação judicial de 2002 em face do INSS, no sentido de assegurar seu direito constitucional de isenção de recolhimento da quota patronal. Devido a essa questão, conforme mencionado na “nota 08”, há a apropriação de R$ 4.047.063,46, referente ao provisionamento da dívida e um ativo de R$ 1.180.000,00 referente a cartas de garantias de instituidores. Quando essa situação for regularizada, esses valores serão revertidos, gerando Patrimônio Líquido positivo, conforme simulação abaixo: D E S C R I Ç Ã O SALDO DIVIDA CARTA DE QUOTA FUNDO CONTÁBIL PROVISIONADA INTENÇÃO PATRONAL PATRIMONIAL 2013 AJUSTADO Saldo Fundo Patrimonial 349.316,18 0,00 0,00 0,00 349.316,18 Déficit Acumulado -2.214.382,60 4.047.063,46 -1.180.000,00 0,00 652.680,86 Déficit do Exercício -258.785,42 0,00 0,00 204.205,01 -54.580,41 PATRIMONIAL LÍQUIDO -2.123.851,84 4.047.063,46 -1.180.000,00 204.205,01 947.416,63 A entidade não concede remuneração, vantagens ou benefícios aos seus associados, membros da diretoria, conselheiros, instituidores, benfeitores ou equivalentes, nem distribui resultados, lucros, bonificações, dividendos, participações ou parcela de seu patrimônio.

Carlos Miguel Barreto Damarindo Diretor Financeiro

Juvandia Moreira Leite Diretora Presidente


Exposição mostra vida após acidente

Frida em Curitiba A partir de 17 de julho, o Museu Oscar Niemeyer recebe a exposição Frida Kahlo – As Suas Fotografias, inédita no Brasil. A mostra reúne 240 imagens feitas por dois fotógrafos profissionais da família da artista mexicana, seu pai Guillermo e seu avô materno, além de fotos feitas por ela, pela alemã Gisèle Freund e pelo húngaro Nickolas Muray, que conviveram com a pintora durante anos. O conjunto de imagens dividido em seis seções conta como foi a vida de Frida Kahlo, do sofrimento de seu corpo acidentado à sua arte e paixões. Em cartaz até 2 de novembro, de terça a domingo, das 10h às 18h, na sala 3 do MON – Rua Marechal Hermes, 999, Centro Cívico, em Curitiba. R$ 3 e R$ 6. Informações em www.museuoscarniemeyer.org.br. julho 2014

revista do brasil

Clube do Balanço toca em Paranapiacaba

Festival de inverno

O tradicional Festival de Inverno de Paranapiacaba, no ABC paulista, terá em sua 14ª edição cerca de 60 atrações. Simoninha, Mariana Aydar, Duofel, Marina de la Riva, Clube do Balanço, Mônica Salmaso, Izzy Gordon, Carlinhos Antunes, Quinteto Mundano, entre outros artistas. Serão dois fins de semana, dias 19 e 20 e 26 e 27 de julho, de manhã até a noite. Os show serão realizados no palco da Praça do Mercado, no Clube União Lyra-Serrano – que neste ano relembra o centenário de nascimento de Dorival Caymmi – e em um palco na Rua Direita. Para os shows no Lira, ingressos devem ser retirados na bilheteria uma hora antes. As principais ruas da Vila de Paranapiacaba serão palco de várias intervenções artísticas. Confira a programação completa em www.santoandre.sp.gov.br. Grátis.

Tributo a Dolores Quando o DJ Zé Pedro, da gravadora Joia Moderna, ouviu Nina Becker interpretar canções de Dolores Duran em uma pequena casa de show de São Paulo, soube de imediato que deveria registrar o tributo. O disco solo Minha Dolores não traz apenas as dores e a fossa da musa do sambacanção, morta em 1959, aos 29 anos, mas sim canções mais “solares” como Estrada do Sol, que ela fez com Tom Jobim, em 1958. Nina Becker, exintegrante da Orquestra Imperial, formada no Rio de Janeiro, deu à obra da Dolores um toque moderno tanto nos arranjos quanto na interpretação, cheia de ternura e finesse. Tradição, Estatuto de Boite, O Amor Acontece, Coisas de Mulher e Feiúra Não É Nada estão entre as 13 músicas do álbum, que pode ser ouvido de graça em www.minhadolores.com.

Augusto Bartolomei/divulgação

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Nickolas Muray/1946/Museu Frida Kahlo

Frida pintando o retrato de seu pai

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Por Xandra Stefanel

Gisäle Freund/1951/Museu Frida Kahlo

curtaessadica


São Paulo literária

Piano à disposição do público, na Estação da Luz

Beco do Batman, Vila Madalena

Pátio do Colégio, Centro Velho

fotos João Correia Filho

Grandes escritores são os cicerones de um passeio pela capital paulista. São Paulo, Literalmente (Ed. Leya, 400 págs.) é o terceiro guia literário do jornalista João Correia Filho, autor de Lisboa em Pessoa e À Luz de Paris e colaborador da Rede Brasil Atual. Desta vez, ele apresenta a Terra da Garoa por meio de 11 itinerários divididos por regiões e apresentados principalmente por autores ligados ao Modernismo, movimento artístico que nasceu em São Paulo no século 20. Além de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida, Correia visita outros escritores e outras épocas: começa o passeio pelos textos dos padres jesuítas, passa por Castro Alves, Álvares de Azevedo, segue com Monteiro Lobato, Alcântara Machado, João Antônio e Ignácio de Loyola Brandão e chega a contemporâneos como Marçal Aquino e Luiz Ruffato. O trajeto começa no Triângulo Histórico da capital, onde a cidade nasceu, passa pelas regiões da República, Bixiga (Bela Vista), Liberdade e Luz. Depois vai para a Avenida Paulista, Consolação e Higienópolis e daí para os quatro cantos cardeais. O texto alia história, literatura e pontos turísticos conhecidos e outros nem tão habituais da capital paulista. Ilustrado com fotos feitas pelo próprio João Correia, o livro conta com um mapa que situa o leitor nos itinerários e um manual com dicas de locomoção, de eventos, sites, endereços e telefones úteis. “O lance do guia é dar outro filtro para olhar esses locais. Por exemplo, a Estação da Luz está cercada de referências culturais, como Mário e Oswald. Tem lugares clássicos da cidade, como o Monumento às Bandeiras, mas sempre com o olhar da literatura. Neste caso, falo mais do Victor Brecheret e da relação dele com o Mário e o Guilherme de Almeida”, afirma o autor, que garante que São Paulo, Literalmente não é um livro apenas para literatos e leitores compulsivos, já que inclui informações turísticas e culturais necessárias para desfrutá-las. R$ 90.

revista do brasil

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Paulo Donizetti de Souza

Carta de um quero-quero

M

eu caro Chico, escrevo estas linhas em pleno 19 de junho. Não podia deixar de aproveitar o portador e mandar-lhe lembranças pelos 70 anos completados. Me perdoe se não lhe faço uma visita, mas minhas asas cansadas não suportariam voar até Paris. E não quero atrapalhar. Sei que está escrevendo, e nada como a Cidade Luz para inspirar. Mas acontece que eu não posso me furtar a lhe contar as novidades. Desde que você me citou no verso de Passaredo, eu, que já era seu fã, tornei-me seguidor. Claro, tem outros 35 pássaros ali na música, o que valoriza ainda mais seu empenho poético em celebrar nossa amizade nascida nos gramados. “Ei, quero-quero/ Oi, tico-tico/ Anum, pardal, chapim/ Xô, cotovia/ Xô, ave-fria/ Xô, pescador-martim...” Não sei se aproveitou a homenagem para criticar o avanço do Brasil dos generais sobre as florestas, ou se foi uma metáfora contra a censura que infernizava os cantores, como nós: “Bico calado/ Muito cuidado/ Que o homem vem aí...” Rapaz, rachei o bico. Além do mais, está no álbum Meus Caros Amigos, cheio de clássicos, Olhos nos Olhos, Vai Trabalhar, Vagabundo, O que Será?. Privilégio animal. Aposto: você viajou achando que o bicho ia pegar aqui na Copa. Ia perder a concentração, o livro ia empacar. Te conheço. Mas, olha, está tudo bem. Jogos bem jogados, muitos gols, estádios lotados. Até eu que já estava meio de bode com Copas lamento que acabe tão rápido. Por mim podíamos ter jogos todos dias, o ano todo: o jogo das seis, o das oito e o das dez. Abaixo as novelas, Copa o ano inteiro! Dizem que o futebol é paixão, integra nações, promove a paz. Imagine. É mais que isso. Eu era menino, começava a frequentar gramados em 1974 quando vi aquilo: “Leão toca para Zé Maria, que toca para Luís Pereira, que toca para Rivelino; Riva recua para Marinho Chagas, que estica para Paulo César Caju...”. Rapaz, rachei o bico. Palmeirenses e corintianos, botafoguenses e flamenguistas torcendo para 50

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revista do brasil

o mesmo time e jogando no mesmo time. Isso que é espírito esportivo. Hoje não se sabe muito em que times jogam nossos craques, mas você precisava ver a festa. O mundo todo aqui se sentia em casa. A torcida brasileira lotou as belas cadeiras. Mas, cá entre nós: fui em todos os jogos e não reconheci ninguém. Sabe aquele pessoal, geraldinos, arquibaldos, que via os jogos de pé e no cimento? Não achei. Tinha muito torcedor que não tinha cara de torcedor. Eu deduzia pela cor da camisa e por vê-los cantar o hino a capela. Bonito, viu. De eriçar as penas, feito um carinho no cangote. Mas acho que muitos ali nem sabem o que é um quero-quero, o charme dos gramados. Pergunta pro Neymar quem inspirou seu penteado. Se você cantasse “para estufar esse filó/ como eu sonhei/ só/ se eu fosse o Rei/ para tirar efeito igual/ ao jogador/ qual/ compositor...”, não entenderiam que é... O Futebol. Não sei quando vai receber esta carta. O correio não é mais arisco como na época do nosso LP, só que ainda temos de imprimir, empacotar, despachar... Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui não está tão preta como naquela época. E admito: continuo um consumidor assumido do ópio do povo, mesmo vendo que o futebol não é mais aquele de então. Falando em velhos tempos, lembro do Nelson Rodrigues contando quando um grupo de jovens estudantes foi entrevistá-lo: “Que conselho o senhor dá para a juventude?”, perguntavam. “Envelheçam”, respondeu o rabugento. Rapaz, rachei o bico. É o que, queiramos ou não, acabamos todos fazendo, não é? Você muito mais que eu, claro. Um abraço, e capricha no livro.



construção de 7 novas unidades na saÚde

construção de 21 novas crecHes

Mais de 5 Mil Moradias eM parceria coM o governo federal

É fácil perceber o quanto osasco está avançando. Osasco avança em todas as direções. Com planejamento e muito trabalho, a Prefeitura realiza importantes obras e ações que fazem setores essenciais como a saúde, educação e habitação avançarem. O resultado é progresso traduzido em vida melhor para todos. Porque Osasco só avança de verdade quando o desenvolvimento chega no sorriso da nossa gente.


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