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Marianna Camargo
Carta a Wilson
Wilson Bueno me entregou sua última crônica chamada Para Sempre com uma semana de antecedência, na madrugada de uma sexta-feira escura e fria, dois dias antes de morrer. No e-mail, um pedido, quase uma recomendação: “para ler na noite profunda”. Assim o fiz, segui à risca, sem piscar os olhos, li quase como uma oração, um caminho, uma música. Assim que terminei a leitura, respondi imediatamente que havia achado a crônica linda, que havia me emocionado, ele me respondeu, carinhosamente, como sempre: “é forte, não é Marianna?”. E assim terminou nossa correspondência noturna, afetiva, emocionada, antes mesmo de ele ler minha resposta. Meu laço com Wilson começou no Nicolau quando eu, ainda menina, tive a sorte de conviver com grandes autores e pessoas como Josely Vianna Baptista, Paulo Leminski, Rodrigo Garcia Lopes, Guinski e tantos outros. Época de grandes ideias, grandes conversas, de projetos surpreendentes. O Nicolau foi uma ousadia, um vento anárquico na paisagem irretocável desta cidade formal. Wilson Bueno persistiu nesta ousadia, na linguagem selvagem, voraz, veloz e bela. No editorial do número 22, de abril de 1989, Wilson escreveu sobre Miguel Bakun: “Viver é arte equilibrista? Entre a solidão e o sonho, a vertigem e as quedas sem Deus no abismo, o pintor Miguel Bakun (1909-1963) encarnou, como poucos, o (frágil) destino do artista – este ser capaz de vencer a morte e ser por ela irremediavelmente derrotado.” Gostaria de escrever o mesmo para ele agora. Intensidade e delicadeza definem Wilson Bueno. Para sempre.
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Wilson Bueno
Para sempre
E porque a solidão fosse só um começo, eu te encarei de frente sabendo, de antemão, da nossa certa e futura tragédia pessoal. Não, nem eu nem você jamais seríamos sozinhos. Eu acordava então para a glória de existir e você me comovia os olhos molhados. Seus cílios, a íris esmeralda. Talvez nem fossem tão preciosos – eu é que me inventava em você de folhas e agapanto. Era uma hora incerta e quente – disso eu me lembro – e fomos, os dois, um homem, uma mulher e a noite pânica. Pela primeira vez, em muitos anos, eu me disse que a felicidade podia ser mais que uma esperança – essa ilusão sempre renovada para não morrermos de nós mesmos – precocemente. Você também me disse, com um gesto de lábio e olhos, que só agora você era a primeira imortal em toda a história humana. E que aquele era o seu único motivo de viver. Agora que estou morto e vigora em mim o seu cadáver simples, agora posso dizer – também pela primeira vez sem mentir – que não sonho. Você vive em mim e eu em você, eternamente. *
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Wilson Bueno
Fábio Campana
Um sopro de vento percorre a capela do Cemitério Municipal onde o corpo de Wilson Bueno está sendo velado. É um suspiro forte, que agita a folhagem e as flores carnudas das coroas, algumas grandes, apoiadas na parede, atrás do caixão. Há poucas pessoas na sala. Não as conheço. Seu irmão de criação, João Batista Costa Santana, me diz que são parentes. Tios, primos e amigos do bairro. O rosto de Wilson não tem marcas. O golpe que o vitimou foi na garganta. Parece dormir. Logo aparecem as figuras gradas da política oficial da cultura. Tropeçam ao entrar e quase se lançam sobre o caixão. Provocam risos. Muitas pessoas, presentes para despedir-se do amigo querido, imaginam o deleite que Wilson extrairia daquela cena e eu chego a perceber a sombra de um sorriso em seu rosto e sorrio também, pensando o que Jamil Snege, se entre nós estivesse, diria do desconforto da secretária que cambaleia entre as coroas. No gesto desastrado vejo a última ironia de Wilson atirada contra os poderosos e solenes personagens da vida oficial. Wilson foi um fiscal rigoroso e um crítico severíssimo dessa gente, mas nunca raivoso ou injusto. Cáustico em sua veia menos conhecida, a do humorista, que o Solda queria registrar numa gravação. Não houve tempo para termos um vídeo definitivo com o Wilson a imitar um diálogo impossível entre Ulysses Guimarães e Clementina de Jesus. Ele sabia tratar os donos do poder. Muito mais difícil, muito mais sofrida, foi para ele a lida com os críticos literários e com os patrões da imprensa nativa. Na morte recebeu elogios e parte do reconhecimento que lhe negaram em vida. Mas nas biografias publicadas nos jornais do dia seguinte não se leu, afirmado com a devida clareza, que na literatura nativa dos últimos 50 anos a figura de Wilson Bueno é central. Foi um dos renovadores da nossa prosa, a qual deu graça, inventividade e um texto invejável. Prosa feita de ar. Sem peso. Nem corpo mas que sopra com ímpeto e levanta em nossas mentes imagens e visões. Wilson ressuscitou palavras e as fez saltar, dançar e voar. Suas novelas e contos são vasos comunicantes entre os ritmos populares da cidade e o solilóquio do poeta. A América que aparece em suas obras não é a tradicional e estereotipada inventada pelos regionalistas, mas a urbana, que muda sem cessar, que ao mudar se inventa, e ao inventar-se, produz novas linguagens como a do maravilhoso Mar Paraguayo. Obra ao mesmo tempo simples e refinada onde o cotidiano e o insólito se unem com a naturalidade com que as plantas crescem, os astros brilham e giram, e o sangue circula pelas nossas veias. Já não terei o Wilson Bueno de conversas em horas tardias, nas madrugadas insones, nem as suas crônicas semanais, nem o seu riso debochado, nem a sua inteligência. O mundo está mais pobre e devemos nos resignar com o que ficou. 58 IDEIAS | junho de 2010
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fotografia de Maria Angela Biscaia
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Entendê-lo? Quem há de?
Aroldo Murá G. Haygert
Quando Fábio Campana telefonou-me pedindo-me que escrevesse sobre o Bueno, comecei, por impulso profissional, a fazer as contas sobre desde quando conhecia Wilson Bueno. Cheguei a 1966/67, ele trabalhando na Rádio Colombo do Paraná, por onde eu passaria também. Depois, parei, estanquei a ideia de rememorações cronologicamente exatas para encaixar minha convivência — às vezes mais próxima, ultimamente mais distante — do amigo que se foi. E foi-se, de alguma forma tragado pelos sonhos e imagens que faziam seu cotidiano meio místico, muito de alma livre, de amante e habitante de paragens indecifráveis à nossa luz mortiça. O Wilson Bueno que me sensibilizou ao longo desses anos não cabia em calendários. Ele sempre existiu para mim, a partir daquele dia em que me foi introduzido pelo seu guru primeiro, o Jamil Snege. Foi-me apresentado como o protótipo de gênio em gestação. Claro que Jamil aplicou todos os adjetivos mais “chocantes” possíveis para realçar seu pupilo. Nisso ninguém se mostrava mais eficiente do que ele: valorizar talentos depois de dissecá-los sem dó nem piedade. Assim era o Jamil, ilimitado, inimitável. Pelo olhar crítico de Jamil já haviam passado outros, um deles — não sei se com a mesma intensidade dispensada a Bueno — o Cristóvão Tezza, que as loucuras do turco associavam sempre a aventuras de Tarzan e Robson Crusoe e a pedagogias naturalistas do escritor Wilson Rio Apa, com cujos filhos Tezza se criara no litoral do Paraná. Dos diversos tempos do Bueno que agora rememoro, o mais forte é o do sujeito em busca de entender-se e de entender seu papel neste mundo que nos é todo mistério. A busca em si é da humana natureza. O inusitado era a intensidade com que ele a proclamava, desnudando-se diante de amores, desamores, conquistas e perdas. Nunca se entendeu direito com o mundo; o mundo também não lhe foi amigável. Viviam em lutas e, afinal foi vencido por estranhos caminhos aplainados, contraditoriamente, por seres e realidades com as quais procurava, em desespero o seu “self ”. Viveu para eles — seres e realidades ― e eles não o entenderam. Tal como na citação bíblica. Em tempos de mais fortes ansiedades, nele renasciam orações católicas aprendidas no colo da mãe, a santa de sua maior devoção. Eu o ouvi, fervoroso, a recitar o Pai Nosso, numa crise de abstinência de álcool, muleta que dispensara há vinte anos. Nesses momentos, misturava/recriava realidades, falando, por exemplo, em “experiências com os trapistas”. Era um pouco de influência de um místico do século XX, o americano Thomas Merton, pois não era de fazer retiros espirituais de silêncio. Nunca deixou de ter um pé no kardecismo, tudo dentro do espírito sincrético do brasileiro. A libertação do álcool era-lhe um troféu. Exibia-a sempre que necessário. Ia até ser homenageado por um dos grupos dos Alcoólicos Anônimos (AA) pela fidelidade exemplar à promessa do “hoje não beberei”. Só sabe Deus a que preço, quantas compensações a buscar, para ser tão fiel! Da sua passagem pelo Rio, nos anos de chumbo do regime militar, algumas das sonoras gargalhadas do Bueno me vêm à lembrança. Uma delas, quando contava sua prisão numa das celas da junho de 2010 | IDEIAS 61
ditadura, junto com a amiga Norma Bengell. Em fila, foram recepcionados num quartel por gorilasargento, que, sem delongas, foi avisando: “Quem for filho de general saia da fila. O resto, entre...” Wilson, Norma e duas dezenas de artistas, estudantes e intelectuais de vários naipes entraram foi no cacete pesado. “Com rigor e competência inimagináveis...”, explicava, bem humorado, Wilson Bueno para dizer que o único filho da alta patente que estava no grupo foi preservado da disciplina inquisitorial, como previsto. Tinha tempos de grandes e intransferíveis paixões. Uma delas, gestada também naqueles tempos de Rio de Janeiro, foi Maria Helena Cardoso, a Lelena, escritora, irmã de Lúcio Cardoso, da “Memória da Casa Assassinada”. Lelena, já idosa, era mãe substituta, preenchia um mundo de carências do Bueno. Era quem o analisava nos amplos encontros, num amor sem fim. Outra admiração de porte intelectual era o escritor Walmir Ayala. Os dois já se foram, e devem ter recebido Wilson Bueno para discussões na Parusia, o lugar dos eleitos. Provavelmente acompanhados de Lúcio Cardoso, alma devota mas atormentada que foi na sua passagem terrena. Ao grupo, depois de muitas sondagens e pigarrear irritantes, não se furtaria a juntar-se Jamil Snege. Provavelmente depois de uma passagem pelo Purgatório, o terceiro lugar, paragem que a curiosidade do turco não podia ignorar... Implicante com quem lhe olhasse atravessado, isto ele foi por muito tempo, especialmente aqueles da dependência do álcool. Nessas circunstâncias, expunha-se a surras (quase ocorreram), xingando sem medidas aos que lhe desagradavam. Esgotado num desses surtos, antes precedido por ampla imersão no seu mundo de escritor tentando oralizar seu realismo fantástico, tentou, certo dia, pular a janela do vigésimo andar de um apartamento. Antes avisou: “Vou lá embaixo...” Não foi... Nem foi daquela vez que nos despedimos definitivamente. Até porque teria ainda de escrever muito e nos livros registrar seu olhar sobre si mesmo e o mundo que nunca entendeu nem um pouco. Teve ainda tempo para muitos voos, alguns absolutamente engraçados, não fossem sinais de insanidade de uma época de dependência etílica. Num deles, encasquetou que tinha matado um velho amigo. Assim, acordava seus mais queridos, no meio da noite, para narrar-lhes o suposto crime, uma situação recorrente. Fábio Campana e Denise (aos quais dedicara um dos seus livros), Jaime Lechinski e Leila eram os preferidos para as “confissões” da madrugada. Quando os ouvintes, tresnoitados, negaram-lhe abrigo e ouvidos, foi parar numa delegacia de polícia, relatando o suposto homicídio a um agente da lei. O tira ouviu-o atentamente e, por fim, sapecou-lhe uma extorsão “de praxe”, para “evitar o flagrante”. Wilson pagou sem reclamar. Abandonou o álcool, a lucidez alargou-se, ampliou marchas em direções nacionais. Ganhou leitores exigentes, selecionados, um mundo de gente ímpar, Brasil afora, na universidade, na imprensa literária. Não era um escritor de fácil digestão. Nunca esteve interessado em sê-lo. Era, isto sim, tal como tem sido repetido nesses dias de luto por Wilson Bueno, um artesão da palavra escrita. Palavra com valores que dispensavam retoques. E que eram entendidas por quem deveria entendê-las. E isto é o que lhe bastava, pois. Foi no exercício do artesanato da palavra, trabalhando no computador, que lhe roubaram a vida em 31 de maio de 2010. Teve uma passagem para o infinitum que lembra a do vate Lorca. O cenário de Guerra Civil estava ali mesmo na Vila Tingui. E os gitanos, os guapos gitanos com “a lua suspensa ao ombro”, onde se esconderam? Tombou sem um grito, o punhal atravessando-lhe a garganta. Mas sem cortar a palavra do artesão que sepilhou alguns dos melhores momentos da aventura literária brasileira destes últimos anos. Com rigor e paciência beneditinas, num ora et labora com que só gente da estirpe de Wilson Bueno poderia ousar. 62 IDEIAS | junho de 2010
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Josely Vianna Baptista
Los tesoros de la bisabuela
Hay un poema de ella para el niño, sombrío, sí, para su corta edad, pero que hacia el futuro, con cariño, ayer le dedicó, con su verdad.
Eso que le escribió, quizá en tercetos, - con una pluma embebida en tinta china y a la luz de un trémulo candil tal vez sea el mayor de sus secretos (como un tesoro sin mapa de la mina).
Sólo que nadie sabe en que valija la bisabuela encerró ese mensaje: si duerme junto a sus guantes de encaje, si se enredó en las sedas y bordados del mantón de Manila o del traje que usó, en otro siglo, en sus bodas.
El que tenga la llave que se presente, el que tenga la llave que se presente, o que se calle, o que se halle, o que se calle para siempre. junho de 2010 | IDEIAS 65
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Jamil Snege
Osso para Wilson
Penso em Wilson Bueno como um osso ao relento, nu e núbil como um osso a esmo. Osso que se bastasse de sua óssea alvura, nu e núbil de sua própria lua. Osso que se recusasse à sina que o paparica e se adornasse de sua própria adrenalina. Osso à deriva, a dedilhar seus venenos como uma visita. Osso Wilson Bueno. Ouço sua cítara.
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Histórias que o Wilson contava
Paola de Orte
Nascido em 1949, em Água do Salto, Wilson Bueno mudou-se para Jaguapitã, aos três anos, e para Curitiba, aos 10. Foi no caminho para a capital que suas ideias começaram a se inquietar. Comprou seu primeiro livro de ficção, O Pavão Misterioso, no trem, e, ao descer na estação central, soube que seu desígnio era escrever. A casa em que morou, no número 1283 da Augusto Stellfeld, não existe mais. Nem o quintal onde roubava frutas com os amigos e subia na árvore para fumar cigarros e discutir ficção. Lia bastante, desde cedo: foi o primeiro da turma a ler o Hino da Bandeira, enquanto os amigos ainda aprendiam o alfabeto. E foi pulando o muro para buscar uma bola perdida que conheceu O Velho e o Mar, de Hemingway, emprestado do vizinho. Passou a ler os grandes: Steinbeck, Twain, Faulkner. Quem emprestou o clássico Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke, a Wilson, foi Dalton Trevisan. Aos 14, ainda menino de calças curtas, arrumou emprego como cronista na Gazeta do Povo. Alguns anos depois, trabalhou também no Diário da Tarde e na Rádio Colombo. Fez amizade com os melhores da geração. Mas logo percebeu os contratempos de viver na província. Debochou o Centro de Letras do Estado ainda aos 14 e, aos 18, deixou Curitiba. Foi ao Rio de Janeiro, lá ficou por mais de 20 anos. No Rio, morou na Lapa, quando o bairro ainda era underground. Conseguiu emprego na Rádio Globo, onde trabalhou com Sérgio Chapelin; na revista Manchete e no Jornal do Brasil. Teve seu apartamento arrombado por militares, seus livros apreendidos, foi preso, torturado. Experimentou de tudo no auge do desbunde, escreveu de tudo, inventou o que podia, no jornalismo e na ficção. Morou em Arembepe e em Salvador, em uma casa abandonada, vendendo poesia na rua. De volta ao Rio, trabalhou no Tribuna da Imprensa, jornal de oposição ao regime cujo principal colaborador era Paulo Francis; no jornal O Globo, ao lado de Nelson Rodrigues; e na Rio Gráfica Editora, de Roberto Marinho. Trabalhou também com João Antonio e saía para os bares na companhia de Caio Fernando Abreu e de Madame Satã. Em 1977, voltou para o Paraná. Em Curitiba, trabalhou na revista Quem, na Curitiba Shopping, na Fim de Semana, no jornal O Estado do Paraná e na Grafipar, onde escreveu para as revistas Atenção, Peteca e Eros. Contribuiu também para a revista Quatro Estações, de Dino Almeida; para a revista do Teatro Guaíra; para o programa do SBT, Show sem Limite; e para o Correio de Notícias. Em 1986, publicou Bolero’s Bar. Em 1987, fundou o jornal de literatura Nicolau. Entre 1992 e 2010, publicou mais de quinze livros, entre eles: Mar Paraguayo, Meu Tio Roseno a Cavalo e A Copista de Kafka. Manteve sua coluna no jornal O Estado do Paraná e, recentemente, passou a escrever para o Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, para o site O Trópico e para esta Revista Ideias. Nunca cansou de contar suas histórias com entusiasmo insaciável, como se aquela tivesse sido a primeira vez em que tocava uma máquina de escrever. 68 IDEIAS | junho de 2010