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Milícias e Guerra Fria

Por Pedro Souza

Há duas décadas, o deputado Bolsonaro acreditava que só uma guerra civil salvaria o Brasil. O agora presidente Bolsonaro, apesar de todos os seus esforços, não conseguiu ainda realizar esse capítulo do seu programa político. Ou antes, desse capítulo realizou apenas o que diz respeito às vítimas, às mortes dos civis, mais de 380 mil até o momento, a segunda maior catástrofe da história do Brasil, depois da escravatura. Nessa guerra, até agora, ninguém gritou “vitória”, ou, pelo menos, não publicamente: ignora-se o que um grupo seleto de empresários paulistas comemorou num recente jantar de apoio ao presidente.

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De certa forma, é possível entender o presidente. Se, desde 1889, os militares brasileiros já levaram a cabo seis intervenções e tiveram, na maioria das ocasiões, de devolver o poder aos civis, é porque essas intervenções militares não resultam. Num dos seus rasgos estratégicos, o presidente considerou, então, que talvez uma guerra civil funcionasse.

Bolsonaro foi eleito na sequência da destituição da presidente Dilma Rousseff, devido a um conluio de que não se conhece ainda o cérebro: os candidatos — Sérgio Moro; Eduardo Cunha; um dos vários juízes do Supremo Tribunal Federal; o General Villas-Boas; ou mesmo a ex-embaixatriz dos EUA no Brasil Liliana Ayade (cuja presença como embaixatriz no Paraguai foi marcada por um golpe com um ar de família) — não parecem reunir as qualidades do “mandante”.

Apesar do fraco desempenho dos militares no governo do país, logo que eleito Bolsonaro solicitou-os para ocuparem os principais postos do seu governo. Não foi preciso insistir. Em curto espaço de tempo, entre 6 e 10 mil militares (os números não puderam ainda ser confirmados) ocuparam os principais cargos executivos do novo governo. Consumava-se, assim, a 7ª intervenção dos militares na história republicana do Brasil.

Com efeito, desde a carnificina que foi a Guerra do Paraguai, os militares brasileiros foram à escola: primeiro, prussiana; depois, francesa; e, finalmente, americana. E convenceram-se de que os civis brasileiros são incapazes de governar o país. Era isso, pelo menos, o que lhes ensinava a doutrina que passaram a envergar, a que chamaram de “Segurança e desenvolvimento”, chegando, com isso, a enganar alguns intelectuais.

Segurança significava, na realidade, apesar de alguns arrufos, logo debelados, subordinação à estratégia militar americana. Desenvolvimento significava entregar ao grande capital internacional a direção do potencial econômico brasileiro. Direção econômica que, quando caía nas mãos dos militares, significava inflação à la venezuelana, e favelas a perder de vista.

Mas, para os militares, ser incapaz de governar o país, entregá-lo aos civis, significava não conseguir evitar a invasão do país pelos russos ou cubanos, uma hipótese em voga no período da Guerra Fria; lutar contra certos tipos de corrupção e desagradar ao chamado capital nacional, estreitamente associado ao capitalismo internacional, até desaparecer por completo, como é praticamente o caso hoje.

O país voltava, assim, à estaca zero ou, como afirma o presidente: antes de construir, é preciso destruir; como se, para isso, fosse necessário ser eleito pelo povo, interessado em manter os poucos serviços que o Estado lhe presta. Obviamente, para destruir, basta montar umas milícias.

Devemos, em consequência, concluir que os militares, que, agora, querem se livrar do capitão sem se livrar do poder do capitão, mas que são incapazes de vencer uma eleição, acabarão, mais tarde ou mais cedo, por voltar às casernas. Só assim o país retomará a continuidade democrática, que não pode persistir enquanto o pesadelo da tutela militar pesar sobre ele, remetendo-o regularmente aos mesmos problemas desde a declaração da República. Qual seja o fosso social resultante de uma abolição da escravatura esbulhada, a integração dos descendentes dos escravos na cidadania, por menos que isso seja do gosto dos europeus que vieram apressadamente tomar o lugar dos negros na força de trabalho, ao longo do século XIX e parte do século XX, para “branquear o país”.

Garantes do imobilismo, os militares fazem parte do problema e não da solução. Se temos de 6 a 10 mil militares em funções de governo, é legítimo que se pergunte de onde saiu toda essa gente e que função exercia nas suas Armas. Ignora-se a existência de uma corporação de um país democrático que possa dispensar, em poucos meses, tal número de funcionários superiores para atuar em outros ser-

viços.

Essa questão nos leva a perguntar se não seria a ociosidade um dos motivos para que os militares, desocupados, elucubrem e concluam que podem ser úteis ao país em outras funções. Os militares que enveredaram por carreiras no Executivo deveriam fazer esse exame de consciência a fim de que não se suspeite que eles se foram para o Executivo por interesse, a fim de gozar de mais regalias, as regalias que dizem querer eliminar.

Esse problema da existência de um quadro pletórico de oficiais superiores em países que saem de guerras é comum. É o caso de Portugal. Mas não é o caso do Brasil, que não conhece, felizmente, uma guerra há décadas. Em 2019, segundo o Stockholm International Peace Research Institute (Sipri), o Brasil era o 11º país em valor de despesas militares, superando Israel ou a Turquia, países com problemas de segurança de outro calibre.

Ora este esse governo está empenhado em diminuir o peso do Estado. É comum em países empenhados em ações militares em várias frentes, como a França, que as Forças Armadas sofram cortes no orçamento ou privatizem parte dos seus serviços. Hoje, na França, não é raro que oficiais de carreira em funções administrativas respondam a civis concursados, reconhecidos pela sua competência em áreas específicas.

O corte no pessoal e a “terceirização de serviços” já ocorre em muitas empresas privadas e estatais brasileiras, com o incentivo do governo. Por que não poderiam essas estratégias ser testadas nas Forças Armadas, para mais se existe capacidade ociosa? As Forças Armadas poderiam, então, se ocupar estritamente das funções de defesa do território, por mais que convênios celebrados recentemente com os EUA prevejam que elas se ocupem prioritariamente da “segurança interna”. Evitariam também assistir ao espetáculo de um general da ativa incapaz de qualquer iniciativa e defesa da população diante de um inimigo impiedoso, como foi o caso em Manaus.

Alguns setores das Forças Armadas brasileiras parecem mentalmente paralisados nos tempos do Marechal Rondon. Mas o Brasil não é mais uma colônia remota, que heróis fardados tenham de “desbravar”. As competências exigidas hoje são outras, por mais que os generais de pijama do Clube Militar do Rio protestem, entre uma caipirinha e um chazinho. Hoje se necessita de gente com formação adequada e, se possível, com compromisso com a população local, e não com as suas carreiras ou ideologias caducas. Afinal até Jair Bolsonaro teve de sair do Exército para chegar a presidente.

Para salvar os brasileiros da pandemia que está devastando o país, para tornar o Brasil presente na política mundial, com o seu peso evidente na questão do desmatamento e na questão climática, da gestão da água, da energia e da alimentação mundiais, é necessário evitar que o paradigma da democracia brasileira seja um eterno reencontro com os mesmos problemas do passado. Para que uma corporação pretenda reformar um país, é necessário que dê provas de que pode reformar a si mesma, no respeito à Constituição.

Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

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