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caso Brasileiro

Edward Said, o Racismo nos Estados Unidos e o caso Brasileiro

Por Marcos Costa Lima

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Estava eu a reler um livro de um autor que me é muito caro, o palestino Edward Said (1935/2003), Cultura e Política, quando me deparei com um de seus curtos ensaios, “Reflexões sobre a Injustiça Americana”. Said, para quem não é do campo das ciências sociais, foi enviado pelos pais para estudar nos EUA em 1951, e fez seus estudos em duas prestigiosas universidades norte-americanas, Princeton e Harvard, esta última onde concluiu seu doutorado. A partir de 1963 foi contratado pela Universidade de Columbia, onde lecionou inglês e literatura comparada. Sua obra mais importante é Orientalismo, publicada em 1978 e traduzida em 36 línguas, considerada como um dos textos fundadores dos estudos pós-coloniais.

Pois bem, nas reflexões sobre a injustiça americana, Said trata dos negros americanos, que constituem vinte por cento da população americana. Com seu olhar aguçado, ele observa que, até os anos 1970, nenhum programa de literatura e história jamais deu a menor atenção à cultura negra, à escravidão ou às realizações dos negros. Mais ainda, Said fala de um ilustre professor de literatura em Harvard que afirmava: “Não há literatura negra”. E Said complementa: “Não havia estudantes negros quando estudei em Princeton e Harvard, nenhum professor negro”.

O parágrafo a seguir sintetiza a reflexão do pensador palestino: “Como um movimento vivo à injustiça americana, portanto, temos os números inflexíveis do sofrimento social norte-americano. Em termos relativos, e às vezes, mesmo absolutos, é de afro-americanos o maior número de desempregados, o maior número de evasões escolares, o maior número de sem teto, o maior número de analfabetos, o maior número de viciados em drogas”. Falta aqui espaço para trazer a reflexão por inteiro de Said e encaminho o leitor para o livro.

Foi lendo este livro o que me motivou a olhar para o caso brasileiro, para fazer breves considerações sobre a situação dos negros brasileiros.

Racismo no Brasil - Conforme dados do Atlas da Violência 2020, apresentados no mês de agosto, o levantamento mostra que a taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%, de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%. Ao todo, os negros somam 75,9% dos brasileiros assassinados na década analisada, ainda conforme os números mostrados.

Os estados que concentraram as maiores taxas de homicídios contra pessoas negras estão nas regiões Norte e Nordeste, com destaque para Roraima (87,5 mortos para cada 100 mil habitantes), seguido por Rio Grande do Norte (71,6), Ceará (69,5), Sergipe (59,4) e Amapá (58,3). Segundo Dennis Pacheco, a violência policial é um dos fatores para a disparidade entre os mortos negros ou não. “A ideia do negro perigoso é uma ideia que muitas vezes existe em várias polícias no Brasil. O uso da força diferenciada entre negros e não negros ainda existe muito”, ressalta.

Em 2018, os homicídios foram a principal causa das mortes da juventude masculina brasileira, representando 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos, 52,3% daqueles entre 20 e 24 anos e 43,7% dos que estão entre 25 e 29 anos. Os negros são 75,7% das vítimas de assassinatos no país. Com relação às mulheres, no mesmo ano, 4.519 mulheres foram mortas no Brasil, o que significa que uma mulher morreu assassinada a cada duas horas no país - 68% delas são negras. A taxa é praticamente o dobro na comparação com não negras.

Para Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a única saída para a disparidade racial é a implementação de políticas voltadas especificamente para a população negra (Gimenes,2020).

De acordo com o estudo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE, em 2018, a taxa de analfabetismo entre a população negra era de 9,1%, cerca de cinco pontos percentuais superior à da população branca, de 3,9%. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), o percentual de jovens negros fora da escola chega a 19%, enquanto a de jovens brancos é de 12,5%.

Pesquisa do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE, 2018) apontou que dentre os 10% da população brasileira com os menores rendimentos, 75,2% são pretos ou pardos, enquanto os brancos correspondem a 5,5% dessa parcela.

De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN (2016), pela primeira vez na história, a população prisional brasileira superou a margem de 700 mil pessoas com a liberdade restringida, algo que, em relação ao total registrado no início da década de 90, simboliza um crescimento de 700%, sendo 64% dessa população prisional composta por pessoas negras. É plausível entender que as práticas violentas de encarceramento da população negra são uma forma de controle pelas polícias.

Edinaldo César Santos Júnior, coordenador executivo do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (ENAJUN) e juiz do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE), a partir de dados de 2017 do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), afirmou: “Por que será? Por que são pobres? Por que a maioria dos pobres é negra?” E arremata: “O encarceramento tem cor” (Agência CNJ de Notícias, 2020).

O aprisionamento de pessoas negras é fruto de um racismo enraizado na sociedade brasileira que, por sua vez, também se faria presente nas agências de controle social formal. Segundo Flauzina (2008), há um racismo fincado no sistema penal e seu ostensivo tem como propósito controlar a população negra. Um relatório realizado pela Rede de Observatórios de Segurança (RAMOS et al., 2020) registrou que 75% das pessoas mortas pela polícia são negras. (Mendes, Bandeira Heloisa Danielle, Mendes,2020, p.13); (RAMOS, Silvia et al.2020).

Nós poderíamos aqui reproduzir outras tantas matérias e estatísticas que implicam na depreciação e violência contra as populações negras e morenas do Brasil, seja no tocante à educação, ao número de mortes, ao aprisionamento destas populações no Brasil, mas remeto aqui a dois livros clássicos da sociologia brasileira que não deixaram a questão passar despercebida. Me refiro a Octavio Ianni e Florestan Fernandes. O primeiro nos diz: “Gostaria de reiterar que a história do mundo moderno é uma história da racialização do mundo. O que foi o mercantilismo? O que foi o colonialismo que se estabelece com os impérios português e espanhol? O que foi o imperialismo? E o que está sendo agora o globalismo com esses movimentos que estão ocorrendo em escala mundial? São diferentes ciclos da história do mundo moderno, do capitalismo e da racialização do mundo” (Ianni, 2004).

Já Florestan, com amplo estudo sobre os negros na cidade de São Paulo, no início do século XX, inicia assim o primeiro capítulo de seu “A integração do Negro na Sociedade de classes”, tratando da transição do sistema de trabalho escravo para o sistema de trabalho livre: “Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos especiais que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva” (Fernandes, 1964, p. 29).

As elites no Brasil deixaram ao abandono, não apenas os negros, mas os indígenas e os pobres, em sua maioria composta de negros. Portanto, não se pode compreender o período colonial e o capitalismo em formação e os dias atuais sem a presença do racismo, que são uma e só coisa, de uma só raiz.

REFERÊNCIAS

Agência CNJ de Notícias (2020) “O encarceramento tem cor, diz especialista” 9 de julho de 2020, https://www.cnj.jus.br/o-encarceramento-tem-cor-diz-especialista/ Acesso em 03 de abril de 2021.

Fernandes, Florestan (1964), A integração do Negro na Sociedade de Classes. Rio de Janeiro: Globo.

Flauzina, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do estado brasileiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/5117/1/2006_AnaLuizaPinheiroFlauzina.pdf. Acesso em: 3 abril de 2021.

Gimenes, Erick (2020), “Segundo estudo, taxa de homicídios de negros cresceu 11,5%, de 2008 a 2018, enquanto a de não negros caiu 12%”. In: Brasil de Fato, 27 de agosto.

Ianni, Octávio (1978), Escravidão e Racismo, São Paulo: Hucitec.

Ianni, Octávio (2004), “O preconceito Racial no Brasil”. In: Revista Estudos Avançados, 18 (50).

Mendes, Bandeira Heloisa Danielle, Rebeca Kesia Filgueira de Araujo, Anielly Raianny da Silva Duarte, Ani Helen da Silva Alves, Elaine Cristina Diniz da Silva e Larissa Freire da Silva (2020) “Sistema carcerário e racismo: por que a maioria dos presidiários são negros?” Revista Brasileira de Direito e Gestão Pública v. 8/ n. 3 (2020) Julho/Setembro.

Observatório de Educação (2020). “Desigualdade racial na educação brasileira: um Guia completo para entender e combater essa realidade”.

RAMOS, Silvia et al. Racismo, motor da violência: um ano da Rede de Observatórios da Segurança. Rio de Janeiro: Anabela Paiva, Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC), 2020. Disponível em: http://observatorioseguranca.com.br/wp-content/uploads/2020/07/Racismo-motor-da-violencia-1.pdf. Acesso em: 15 jul. 2020.

Said, Edward W. (2007), “Reflexões sobre a Injustiça Americana”. In: Cultura e Política. São Paulo: Boi Tempo,p.79.

Marcos Costa Lima é Professor do Programa de PósGraduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

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