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A Antropofagia como proposta anticolonial
Por Rômulo Santos de Almeida
Algumas ideias possuem um surpreendente potencial de reinvenção ao longo do tempo e, muitas vezes, emergem como fonte para novas reflexões críticas. Entre elas, está a Antropofagia. Tal ideia foi uma das expressões do inconformismo artístico do final da década de 1920, anos após a Semana de Arte Moderna de 1922, quando é publicado, em maio de 1928, o Manifesto Antropófago, de autoria do poeta e escritor Oswald de Andrade (1890-1954). Com uma linguagem bem-humorada, irônica e sarcástica, o Manifesto criticava, entre outras coisas, o indianismo xenófobo, as práticas de vida enlatada e a subserviência cultural do país em relação à Europa. Ao contrário da maioria das concepções literárias e artísticas em voga no contexto social em que viveu, Oswald de Andrade propunha, mais diretamente, a importância da ingestão e digestão cultural como ferramentas necessárias à superação de todos os recalques históricos. Nesse sentido, a Antropofagia talvez tenha sido o laboratório intelectual e vanguardista que melhor expressou as contradições da cultura brasileira, ao considerar a nossa realidade periférica e o nosso componente de invenção e criação. A discussão a seguir visa, portanto, explorar a pertinência da metáfora antropofágica, identificando nela uma proposta anticolonial, interessada na devoração crítica do “outro”.
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Mas, afinal, o que é Antropofagia? É um rito, um modo de pensar ou uma visão de mundo, cujo ato simboliza uma operação metafísica de transformação do tabu em totem, do valor oposto em valor favorável, cabendo ao antropófago totemizar o tabu. Entretanto, conforme observou Nascimento (2011), não é possível dar à Antropofagia um tratamento estritamente conceitual e nem é cabível considerá-la uma simples corrente dentro do Modernismo. Essas duas negativas incluem uma terceira: provavelmente, não houve, não há nem haverá uma única definição de Antropofagia. Na acepção de Oliven (2011), Schwartz (2011) e Soares (2010), a despeito das diferentes interpretações, a proposta antropofágica objetivava saber da existência de uma modernidade brasileira caracterizada por ingerir e digerir, alegre e intuitivamente, o que vem de fora, mas com um claro propósito anticolonial enredado nesse procedimento.
O ato de deglutir o inimigo adquire novo significado, pois já não se trata de saciar a fome, mas de incorporar os atributos do outro para fazer uma síntese capaz de gerar a superação e libertação do jugo externo. Deglutir significa, para Oswald de Andrade, a necessidade de conhecer a realidade brasileira, mas sem perfazer os mesmos caminhos civilizatórios de antes. A Antropofagia advoga a pertinência de uma realidade social a ser compreendida de dentro para fora, sem compactuar, porém, com as correntes viciadas na cópia e imitação dos modelos estrangeiros. O estrangeiro/outro não deve ser copiado, e sim deglutido. Sua deglutição torna-se uma condição fundamental para a criação, que sempre é mediada pela dialética entre o local e o cosmopolita. Com isso, o ponto crítico da Antropofagia é a reavaliação de nossa relação com esse “outro”, criticando o seu estereótipo de “civilizado” e exigindo o fim da dependência cultural, econômica, política e social. As consequências dessa proposta devem implicar na libertação das categorias epistemológicas ocidentais, cujos valores colonialistas foram desistoricizados e legitimados como universais (FIGUEIREDO, 2011; VERONA, 1996).
Todas as abordagens sistêmicas da realidade são consideradas formas de consciência enlatada, trazidas ao Brasil pelo processo de colonização, que iniciou a cadeia de importação cultural que nos mantém presos ou dependentes dos países colonizadores (MORAES, 1978). Soares (2010, p. 14) afirma que a Antropofagia é a “expressão poética da superação da contradição dos países dependentes: uma vez que o artista vive a tensão entre o envolvimento e o distanciamento, a adesão e a negação crítica, a inocência e a ironia, a deglutição e a incorporação”. Passa-se a questionar a estrutura econômica e cultural implantada pelo colonizador; a sociedade patriarcal; a imitação não digerida da metrópole colonizadora e o indianismo em sua feição ufanista e romântica. Desse modo, o antropófago surge na periferia do sistema para alimentar-se do colonizador e dar sua contribuição local à diversidade das culturas (ALMINO, 2011; HELENA, 1986). Além disso, o deglutir antropofágico é pautado por um princípio de não exclusão, descrito no início do Manifesto Antropófago da seguinte maneira:
Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
“Tupy or not tupy?”, that is the question.
Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago (ANDRADE, 2012, p. 497).
A curta passagem acima condensa o preceito que norteará a investigação de Oswald de Andrade, cujo código legal possui um único artigo: “só me interessa o que não é meu”. Ao procurar responder à questão básica sobre “o que nos une”, a Antropofagia indica que o que nos une é o outro. Por isso mesmo, na ótica antropofágica, a cultura brasileira não é insular e voltada unicamente para o solo nacional nem, por outro lado, deve se inserir de forma secundária numa civilização universal centrada na Europa. Ainda que o Manifesto fosse demasiado otimista quanto à capacidade de assimilação do estômago nacional, precisamos do outro para devorá-lo, regenerando o nosso próprio tecido e produzindo o novo. Não se é brasileiro por oposição ao cosmopolita, mas se é brasileiro porque cosmopolita (ALMINO, 2011). A união entre nós e o “outro” não significa, entretanto, ausência de conflitos, pois a sua deglutição nem sempre é pacífica, sendo a luta algo intrínseco ao trabalho de absorção de culturas alheias. Em razão disso, a Antropofagia exige que a consideremos como a síntese de momentos revolucionários anteriores. Vejamos o trecho abaixo:
[...] Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós, a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. [...] Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará (ANDRADE, 2012, p. 499).
A “idade de ouro” descrita por Oswald de Andrade corresponde ao que ele denominou de “Matriarcado de Pindorama”, isto é, uma sociedade contraposta ao patriarcado, baseada na propriedade comum do solo, no direito materno e na ausência de Estado e classes sociais. Foi com essa concepção que o autor buscou fundamentar não apenas a “origem”, mas as possibilidades do florescimento de uma nova civilização, que congregasse o melhor do nosso “primitivismo” e o melhor aproveitamento da técnica moderna. A tese central do autor é a de que, ao longo do processo histórico, existiu, no mundo, duas formações sociais: o matriarcado e o patriarcado. A primeira se caracterizaria pela presença de uma “cultura antropofágica”, ou seja, a “idade de ouro” das primeiras experiências humanas. A segunda, por sua vez, possuiria uma “cultura messiânica”, forjada nas estruturas de poder da modernidade ocidental, que, ao entrar em crise, deveria ser substituída pelo retorno ao matriarcado, acrescido das conquistas tecnológicas. Não obstante os paradoxos da Antropofagia, Oswald de Andrade estava interessado no “que há de negatividade, de ruptura com o contínuo da história, de descentramento, no projeto utópico inspirado pela América como lugar da alteridade que abala certezas, sugerindo alternativas, provocando a imaginação alheia” (FIGUEIREDO, 2011, p. 391). Por tais motivos, a Antropofagia pode ser um instrumento crítico na defesa de uma proposta anticolonial, sobretudo com a ascensão de autoritarismos no Brasil e na América Latina.
Rômulo Santos de Almeida é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFPE), Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/ UFPE) e graduado em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).