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Ombudsman de imprensa, opinião e qua- lidade do jornalismo
Ombudsman de imprensa, opinião e qualidade do jornalismo
Luiz Filipe Freire
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Há mais de 30 anos instituído no Brasil, o ombudsman de imprensa é uma figura que até hoje gera controvérsias sobre a importância de seu papel. Primeiramente, por conta da desconfiança sobre até que ponto um jornalista pago pelo próprio jornal para tecer uma crítica pública à sua cobertura tem realmente liberdade para fazer isso. Segundo, porque, em tempos de tantas possibilidades para o leitor fazer sugestões ou reclamações sobre o desempenho dos jornais por meio das redes sociais, por exemplo, emerge o questionamento sobre se o ombudsman ainda é necessário e oportuno.
Nos tempos áureos desta atividade no Brasil, na década de 90, quando esse cargo de mediador entre os leitores e os jornalistas foi implantado em mais de uma dezena de jornais, trocas de acusações públicas entre aquele profissional e colegas de redação insatisfeitos com críticas direcionadas às suas matérias eram comuns, bem como reações do público sobre conseguir ou não incidir sobre a cobertura jornalística por meio de manifestações enviadas ao jornal e intermediadas pelo ombudsman. Atualmente, apenas a Folha de S. Paulo e O Povo (CE) mantêm esses profissionais em seus quadros, um indício da perda de espaço de uma iniciativa outrora louvada como símbolo da busca pela melhoria da qualidade e da correção dos jornais.
Daniel Cornu (1999) elenca o instituto do ombudsman entre as iniciativas de setores da imprensa para enfrentar a necessidade de reforçar o compromisso com o direito do público de ter acesso a uma informação de qualidade e a jornais que reconheçam seus erros, mas com a devida ressalva sobre essa ser uma forma de autorregulação interna aos veículos de comunicação, diferentemente dos códigos deontológicos e institutos como o Conselho da Imprensa da Noruega (1912), o Tribunal de Honra da Suécia (1916) e a Carta dos Jornalistas (França, 1918), que também têm o intuito de normatizar o exercício jornalístico e de prever moções contra práticas consideradas antiéticas no jornalismo, mas no âmbito mais amplo do campo profissional dos jornalistas, além do controle da organização empresarial.
Nos Estados Unidos, a instituição do ombudsman pode ser entendida como uma ferramenta para garantir a autorregulação interna às organizações empresariais dos veículos jornalísticos como alternativa a um código deontológico amplamente aceito e submetido ao controle social, o que, evidentemente, fortaleceria o jornalista empregado no cabo de guerra enfrentado para garantir pluralismo e perspectivas múltiplas às suas matérias diante da tendência da política editorial das empresas de impor a interpretação monológica da ideologia dominante do “fato” como sendo a própria realidade (epistemologia positivista da objetividade com a distinção entre fato e opinião). Assim, surgiu nos EUA o ombudsman de imprensa, em julho de 1967, nos jornais Louisville Courier Journal e Louisville Times, como detalhado em histórico resgatado por Caio Túlio Costa (2006), primeiro ombudsman de imprensa do Brasil. O trabalho dele na Folha de S. Paulo, primeiro jornal do país a implantar esse instituto na América Latina, começou em 1989. O cargo segue ativo no periódico até hoje e foi responsável por gerar a publicação de número superior a 1.400 colunas. Os jornalistas que ocupam essa posição têm mandato por tempo determinado, gozam de estabilidade no emprego e podem criticar direcionamentos de pautas, abordagens, disposição gráfica de elementos relati-
vos às matérias e outras temáticas que afetem o modo como se consome a notícia, sempre privilegiando a aparição das manifestações dos leitores, ainda que isso não signifique endossar todas elas, levando em conta que o público também está sujeito a equívocos, paixões e incompreensões sobre o fazer jornalístico.
Apesar de o ombudsman de imprensa estar reduzido a poucos jornais, de sofrer questionamentos sobre supostamente não ter plena liberdade para criticar os veículos de comunicação que pagam seus salários e de ver o público valer-se de outras ferramentas de manifestação, sem intermediários, a investigação sobre seu papel controverso pode contribuir para trazer à tona indícios de outra constatação: a da manutenção de espaços com conteúdo opinativo nos jornais como forma de gerar um debate público qualificado em tempos de ameaça à credibilidade da imprensa. Nas páginas da própria Folha de S. Paulo, que não abre mão do ombudsman, mesmo com todos esses fatores de questionamento, há a presença de um time de mais de 140 colunistas, composto não por maioria de jornalistas, mas, sim, por personalidades de outras profissões com discursos de autoridade sobre assuntos como economia, política, relações internacionais etc.
Essa realidade parece ser um contraponto interessante ao paradigma positivista da objetividade jornalística, que sempre pregou a produção de textos ditos impessoais, sem indícios da autoria do profissional da notícia, exaltando uma falsa separação entre fatos e opiniões. Ou seja, à luz desse entendimento frágil epistemologicamente, o público é levado a acreditar que, ao ler conteúdo opinativo, está sujeito a uma interpretação assumidamente enviesada de determinado acontecimento, enquanto que, ao ler notícias atinentes aos fatos, escritas de forma impessoal, está consumindo um conteúdo desprovido de opiniões e ideologias. Essa crença, que serve para oprimir os jornalistas nas redações e para ocultar omissões da cobertura jornalística sobre assuntos de interesse público, é desmascarada por autores como Michael Schudson (2010), Gaye Tuchmann (1999), Edward Ross (2006) e John Soloski (2016) e contribui para a perda de densidade das notícias e de qualidade dos jornais, que, ao reproduzirem apenas as versões oficiais, se distanciam do compromisso de garantir o direito de acesso do público a uma informação noticiosa mais qualificada e pluralista para permitir o funcionamento da esfera pública em nível da reflexão crítica imprescindível à consolidação da democracia.
A destinação de um espaço significativo para o conteúdo opinativo na Folha, por meio da publicação dos pareceres de mais de uma centena de colunistas, não seria uma alternativa ao raquitismo de aprofundamento das matérias jornalísticas, resultado da tradição positivista do objetivismo pregada nas redações e em muitas escolas de jornalismo? Se assim for, é possível interpretar esse como mais um movimento dos meios de comunicação para, conforme a linguagem de Habermas (1997), assumirem sua autocompreensão normativa ou seu contrato com o público, de modo a buscar suprir os leitores de elementos importantes para o debate público em meio a um deserto de opiniões balizadas e de matérias aprofundadas. Ou seja: diante do risco de perda de credibilidade, a mídia se rende ao seu compromisso com o interesse público, a despeito de todas as amarras impostas pela ideologia do profissionalismo jornalístico.
A investigação das respostas para esses questionamentos pode ajudar, inclusive, a encontrar explicações convincentes sobre a importância do papel do ombudsman ainda hoje, considerando
que sua instituição na Folha de S. Paulo também foi tachada como mera iniciativa de marketing por jornais concorrentes, no início dos anos 90. Caio Túlio Costa se arrisca a dizer que, mesmo em um cenário de perda de espaço dessa atividade, ela se justifica por ser uma ferramenta didática e educativa sobre o próprio jornalismo, com uma tarefa que “vai além da própria crítica” e que é, por isso, ainda tão oportuna (COSTA, 2018). Ou seja, embora o público também possa criticar os jornais sem intermediários, o ombudsman desempenha essa atividade de forma embasada tecnicamente, explicando os porquês das decisões editoriais e revelando informações de bastidores às quais o público não necessariamente teria acesso sem esse mediador, algo similar ao que se espera de conteúdos opinativos em um jornal – análises que extrapolem os bloqueios editoriais e a falta de aprofundamento das matérias comuns. O ombudsman, então, segundo esse entendimento, seria importante, ao menos, pelo papel de sentinela que alerta a audiência o tempo todo – e os próprios jornalistas – sobre as razões pelas quais essa relação entre ambos os polos foi constituída e sobre os princípios éticos com base nos quais se deve fazer jornalismo – com qualidade e responsabilidade perante o público.
no jornalismo brasileiro. Florianópolis: Insular, 2018.
ROSS, E. A supressão das notícias importantes. In: BERGER, C; MAROCCO, B. (Org.). A era glacial do jornalismo II. Porto Alegre: Sulina, 2006.
SCHUDSON, M. Descobrindo a notícia: uma história social dos jornais nos Estados Unidos. Petrópolis: Vozes, 2010.
SOLOSKI, J. O jornalista e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho jornalístico. In. TRAQUINA, N. (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.
TUCHMANN, G. A objetividade como ritual estratégico: uma análise da noção de objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, N. (Org). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1999.
Referências
CORNU, D. Jornalismo e verdade: para uma ética da informação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
COSTA, C. T. Prefácio. In: JAVORSKI, E. GADINI, S. (Org). Ombudsman no jornalismo brasileiro. Florianópolis: Insular, 2018.
________. Ombudsman: o relógio de Pascal. 2 ed. São Paulo: Geração Editorial, 2006.
HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
JAVORSKI, E. GADINI, S. (Org). Ombudsman Luiz Filipe Freire é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.