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Letramento nas redes sociais digitais e o pensamento crítico
Luciana Ferreira Cristiane Ferreira
Acomunicação através da linguagem é uma característica essencial da natureza humana. Para Paulo Freire é uma forma de dialogar, como uma mudança revolucionária na perspectiva do oprimido e, por isso, é uma relação social contextualizada e histórica. Esse ponto de vista de Freire é expresso em seu livro “Extensão ou Comunicação?” (1983), no qual deduz o significado de comunicação como um propósito de condução do conhecimento direcionada ao outro sujeito através de signos e elementos com o mesmo significado para ambos, e também que o conteúdo deste conhecimento é gerado num terreno comum às partes comunicantes.
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O que acontece, entretanto, na maior parte das vezes quando se trata de comunicação mediada por tecnologias é a tendência das trocas de mensagens reduzirem-se a técnicas de propaganda, de persuasão, no vasto setor que é chamado meios de comunicação de massa. As redes sociais na internet quebraram parte deste monopólio da comunicação, mas também deram vazão a todo tipo de mensagem de qualidade, com conteúdos relevantes e verificáveis. Mas também acolheram a mentira e a desinformação, num fator de exclusão social exponencial, simplesmente pelo propósito de confundir e descontruir conquistas sociais, econômicas e civilizatórias.
Por esse contexto descrito, resolvemos, de forma introdutória, relacionar dois temas importantes nas questões contemporâneas, como o letramento e as redes sociais na internet. Observamos se as trocas de mensagens nas mídias sociais podem ser consideradas práticas de letramento, contribuindo para a reflexão critica, ou essas redes de comunicação apenas se constituem como mais um veículo a serviço do poder e da manipulação.
Olhando do ponto de vista de Freire sobre como acontece a comunicação, podemos entender que nas redes sociais encontramos alto grau de reciprocidade e conexão cultural entre seus membros, pois há acordo em torno dos signos como expressão do objeto significado, que é a linguagem. Porém, existe também empecilho ao pensamento crítico, já que as configurações dos algoritmos dessas redes dificultam a entrada do contraditório e do diferente, tornando o pensamento crítico mais distante, embora não inacessível. Já é óbvio que a tecnologia por si só não irá fazer o papel de mediador da comunicação (no sentido dialógico), se não houver pessoas com pensamento crítico por trás da ação, pois, se assim não for, as relações sociais de extensão continuarão as mesmas. A questão aqui analisada é que os sujeitos para melhor se comunicarem têm que adquirir senso crítico, saber buscar e filtrar as informações, seja na internet ou nas mídias tradicionais, “tem que saber separar o que é importante do que não é” (FREIRE; GUIMARÃES, 2003, p. 144).
Redes sociais na internet como instrumentos de práticas de letramento
A possibilidade das mensagens através dos meios digitais serem descentralizadas, horizontais e em rede trouxe grande esperança, no sentido de promoverem a comunicação dialógica. Mas a realidade é que, apesar de muitas mudanças positivas neste sentido, para se estabelecer uma prática de letramento (crítico) não basta apenas o conhecimento das tecnologias; é preciso uma série de ações promotoras de práticas sociais voltadas para o desenvolvimento do pensamento crítico do sujeito.
Essas questões desencadearam novas abordagens por parte dos educadores e pesquisadores de mídias para os estudos do letramento, sobretudo quanto ao letramento midiático, devido à multiplicação de novas possibilidades de comunicação geradas pela transformação das interações humanas provocada pelas tecnologias digitais com sua extraordinária abundância de informações.
Mas qual a real importância do letramento (crítico) no processo da troca de
informações em redes? Pode-se dizer que tais trocas de mensagens através das mídias sociais são também práticas de letramento? Antes de adentrar nas questões da prática, é importante revisar o que seja letramento. Nos estudos é comum se entender como a habilidade para ler e escrever. É frequentemente pensado como um atributo individual no qual uma pessoa pode fazer alguma ação (PAPEN, 2016). Por exemplo, as crianças precisam aprender a ler, escrever e falar. No caso da fala, o aprendizado ocorre informalmente - elas aprendem copiando, exercitando. Já ler e escrever não é tão facilmente aprendido apenas por repetição. Essas são habilidades precisam ser ensinadas através de técnicas específicas e mais complexas. E, por isso, nas sociedades contemporâneas, as habilidades de leitura e escrita são amplamente consideradas como os principais meios pelos quais adquirimos conhecimento, aprendemos sobre o mundo e nos tornamos experientes em uma variedade de outras habilidades. O letramento é visto, portanto, como uma ferramenta essencial para a aprendizagem (BARTON et al., 2007). E se atualmente a maior parte das informações ainda são transmitidas por meio de texto impresso ou digital, isto significa que, para se “inserir” socialmente, é necessário saber ler e escrever. E não é uma coincidência que nos últimos trinta anos as habilidades de letramento têm sido cada vez mais consideradas por pesquisadores e profissionais da educação como algo mais do que competências que devem ser adquiridas (BARTON, 2012). O letramento passa a ser entendido como indissociável das práticas sociais e culturais, cujos significados e propósitos variam com o contexto de uso.
Há, portanto, o reconhecimento da diversidade das atividades de letramento e das possibilidades do que as pessoas fazem com ele. Essas atividades são chamadas de ‘práticas de letramento’, habilidades adquiridas não só por crianças, mas também por adultos. A vida cotidiana requer muitas habilidades adquiridas de uma pessoa, as quais são frequentemente repetidas, seja no trabalho, na escola ou como parte da vida familiar e de lazer. As práticas de letramento não são diferentes e as tecnologias digitais já são consideradas como parte dessas práticas, na medida que proporcionam novas formas de comunicação e interações. Ocorre que, apesar da internet ter removido parte da hierarquização nas comunicações mediadas, estas ainda se estabelecem em ambientes de relações de desigualdade e poder. Ou seja, a desigualdade está no cerne da sociedade e nos sistemas educacionais (PAPEN, 2016). E é a partir do foco da desigualdade que os pesquisadores sobre letramento o examinam de uma perspectiva crítica, como foi o caso do Paulo Freire. Apesar das dificuldades de transformação sistêmica, é evidente que entidades, instituições e as pessoas buscam se adaptar às novas tecnologias de comunicação e a se utilizar dela para transmitir seus saberes, promovendo práticas de letramento. E a maior parte das pessoas com acesso as tecnologias de comunicação vigentes é diariamente envolvida em um turbilhão de dados, informações e opiniões.
Para fazer desse novo sistema comunicativo uma relação dialógica, como ferramenta que se contraponha à lógica dominante das grandes corporações, há que se enfrentar o grande e urgente desafio para o sistema educacional vigente, que é se direcionar para aquisição do letramento de qualidade. Ou seja, desenvolver a concepção freiriana de comunicação na qual os sujeitos absorvem de maneira seletiva e consciente as informações, problematizando o cotidiano para gerar, com isso, uma transformação social positiva.
A internet, como um novo meio de comunicação, gerou forte controvérsia sobre o surgimento de novos padrões de interação social em variadas situações. E a formação de redes de comunicação online tem sido interpretada como o ponto culminante de um processo histórico de dissociação entre a necessidade de presença física e a sociabilidade na formação das comunidades. Em outras palavras, surgiram padrões novos e seletivos de relações que substituem formas sociais de interação humana limitada territorialmente.
Os críticos da internet, segundo Castells (2003), apoiavam a ideia de que a ex-
pansão da Internet levaria ao isolamento social e à ruptura da comunicação social e da vida familiar, porque a percepção era de que os indivíduos se refugiavam no anonimato, praticavam uma sociabilidade aleatória e abandonavam a interação face a face em espaços reais. Não foi o que aconteceu.
Atualmente já é possível equilibrar os padrões de sociabilidade resultantes da prática real na Internet, pelo menos nas sociedades onde há uma produção e difusão massiva através da rede. De acordo com Castells (2003), os usos já estão intimamente relacionados com trabalho, família, educação e vida cotidiana dos usuários. As interações através das redes sociais online e as práticas de letramento estão no ápice dessa nova sociabilidade contemporânea.
O desafio para fomentar o pensamento crítico no sujeito já está lançado para educadores e comunicadores quando se trata de promover práticas sociais e letramento crítico nas redes online. Se os sistemas pós-massivos (LEMOS; LÈVY, 2010) de comunicação modificaram a forma tradicional de conceber emissor e receptor da informação, esse modo informacional é marcado por conteúdos que são criados e postados pelos próprios usuários das mídias sociais, e isso modifica profundamente as formas de comunicação entre os sujeitos. As práticas de letramento (crítico) possíveis a partir da internet são ilimitadas e reforçam as mudanças na forma de pensar e de realizar o processo da comunicação no modo dialógico, pensado por Paulo Freire.
Referências
Barton, D. Literacy: an introduction to the ecology of written language, 2nd edition. Oxford, UK and Cambridge, MA: Blackwell, 2012. Barton, D., Appleby, Y., Hodge, R., Ivanicˇ, R. and Tusting, K. Literacy, lives, and learning. London: Routledge, 2007.
CASTELLS, M. A galáxia da internet: refle-
xões sobre a internet, os negócios e a so-
ciedade. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2003
FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. Sobre educação – volume 2: (diálogos). 3º edição, São Paulo, LEMOS, André; LÉVY, Pierre. O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010.
PAPEN, Uta. Literacy and Education: policy, practice and public opinion. Editora Routledge, New York, 2016.
Luciana Ferreira é Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior e investigadora no LABCOM – IFP.UBI.PT.
Cristiane Ferreira é Professora Assistente na Universidade Estadual da Bahia e Doutoranda na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).