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Programas Policiais Na TV - Violações de direitos ao vivo
PROGRAMAS POLICIAIS NA TV - Violações de direitos ao vivo Ticianne Perdigão
Avisibilidade alcançada pelo apresentador Sikêra Júnior no niqueísmo bem versus mal é um traço definidor do discurso simplista utilizado para alcançar rapidamente a compreenAlerta Nacional (RedeTV!) retomou o debate sobre os limites éticos ultrapassados por programas policiais. Com uma postura cênica e uma linguagem popular em tons de deboche e revolta, Sikêra gera polêmicas ao comemorar a morte de suspeitos com o jargão “CPF cancelado” ou chamar homossexuais de “raça desgraçada”.
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Desde os anos 1960, programas policialescos, como Polícia às suas Ordens, da TV Excelsior (1966); Patrulha da Cidade, da TV Tupi (1965); e a primeira versão de O Homem do Sapato Branco, exibido pela Rede Globo (1968), já faziam a cobertura de crimes dramatizando a realidade com trilhas sonoras de suspense e sons de sirenes e tiros.
No entanto, foi no começo da década de 1990 que o programa Aqui Agora, do SBT (1991), inovou o formato, transferindo a narrativa radiofônica para a televisão. Seu principal expoente, o radialista Gil Gomes, destacava a entonação das palavras e aumentava os efeitos de suspense e a emoção. A linguagem coloquial aproximou os públicos C e D dos programas denominados informativos, gerando uma forte audiência. A mudança de horário também foi importante. Exibidos mais cedo, seu sucesso rendeu versões regionais e se multiplicou pelo país. Atualmente, o apresentador tem maior destaque, mais tempo de estúdio e notícias transmitidas “ao vivo”. É o âncora condutor do programa, que interfere na cobertura, que pede o enquadramento e a repetição de imagens e produz um discurso fortemente opinativo e recheado de juízos de valor contra os suspeitos. De modo geral, a construção narrativa é marcada pela ausência de contextualização dos problemas relativos à violência e à segurança pública. O masão do público. “Um bandido que comete um crime como esse não tem Deus no coração.” Reconhecem? Deus e o diabo. Polícia e ladrão. Marginal e trabalhador. Posicionar o suspeito contra o “cidadão de bem” engaja o público em uma sensação de pertencimento e compartilhamento de emoções. Ainda, os discursos frequentemente apoiam a truculência militar e defendem a violência e o recrudescimento das leis penais contra o crescimento da criminalidade. De outro modo, por vezes, há um incentivo à “justiça com as próprias mãos”, que fragiliza instituições democráticas. Nesse cenário, os apresentadores se colocam como defensores da moral e dos bons costumes, em prol da paz social. O tom de indignação serve, ao telespectador, como forma de despressurizar seu medo da violência ou suas dificuldades econômicas e sociais – do preço do gás alto ao ônibus lotado.
Quando Sikêra chama os homossexuais de “raça desgraçada”, o apresentador defende o retorno aos valores tradicionais, a exemplo de família e religião, como forma de restauração da ordem social. Essa pauta conservadora pareceu mais evidente nas eleições de 2018, mas programas policiais sempre estiveram aí. De acordo com pesquisa realizada pela socióloga Esther Solano, a cultura militar relacionada à ética, à disciplina e à defesa da moral e dos bons costumes foi essencial para eleger o último presidente1. Em 2015, um estudo realizado pela Andi localizou mais de 8 mil violações de direitos em programas policiais em apenas trinta dias, como: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime e à violência; incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; exposição indevida de pessoa ou família; discurso de ódio e preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional.
É relevante observar que, enquanto concessionárias do serviço público, as emissoras estão sujeitas a deveres, inclusive acerca do conteúdo veiculado. Na Constituição, existem orientações sobre os princípios e as finalidades que devem ser seguidos pelas emissoras, como a preferência pelas atividades culturais, educativas e informativas. No plano infraconstitucional, há atos normativos mais específicos, como o Código Brasileiro de Telecomunicação e o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. O Código Brasileiro de Telecomunicação é de 1962 (Lei n. 4.117) e o Regulamento de Serviços de Radiodifusão é de 1963 (Decreto n. 52.795). Ambos foram modificados durante o período da ditadura militar. Mesmo considerados ultrapassados, o engessamento é mantido exatamente pela incapacidade de provocar riscos a emissoras, mesmo que aprofundem as orientações de conteúdo e prevejam fiscalização e sanção estatal para as emissoras.
No entanto, mesmo diante do prejuízo social, o Estado não toma medidas para coibir abusos produzidos pelas emissoras. De 2011 a 2018, apenas cinco emissoras receberam algum tipo de sanção por extrapolarem limites da liberdade de expressão (O levantamento foi realizado pela autora)2. São três os tipos de sanção: multa, suspensão de um a trinta dias da programação e cassação (art. 122 da Lei n. 4.117). Nesta última, a Constituição Federal determina que o cancelamento da cassação só pode ser feito por decisão judicial. Nesse caso, especificamente, o processo deve ser encaminhado para apreciação do Poder Judiciário. Nos exemplos citados, as emissoras foram penalizadas por: “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico” (art. 28, 12, “b”, do Decreto n. 52.795/1963) e “promover campanha discriminatória em razão de classe, cor, raça ou religião” (art. 122, V, do Decreto n. 52.795/1963).
Diante da inércia do Estado, a via judicial é utilizada como saída. Mas o diagnóstico também não é bom. Quando a alternativa de proteção desses direitos depende de ações civis públicas pelo Ministério Público contra conteúdos televisivos ofensivos à dignidade da pessoa humana, as decisões foram 83,3% desfavoráveis (A pesquisa foi realizada pela autora sobre 24 ações que chegaram à segunda instância. Não houve delimitação temporal, sendo consideradas todas as ações localizadas no site dos tribunais até 2012)3. Além disso, o tempo médio de julgamento é de cinco anos, o que contraria a lógica imediata televisiva. A ausência de fiscalização estatal e a morosidade judiciária tornam o ambiente televisivo livre para exibir o corpo estendido no chão. A chegada do streaming e a expansão de público do YouTube elevaram a competitividade do setor.
A busca pela audiência gera disputas acirradas, intensificando ainda mais seu caráter sensacionalista.
Por isso, a criação de uma legislação específica oportunizaria um modelo mais consistente e estável. Em um plano ideal, a legislação contemplaria um sistema sancionatório robusto, com maior agilidade e hipóteses claras de infração. A aplicação das sanções seria feita por um novo órgão fiscalizatório independente, dinâmico e com representantes de diversos setores da sociedade.
Enquanto isso não acontece, os casos que chegam aos olhos do Estado ou que ativam o sistema judiciário têm em comum uma forte mobilização social. Diante da dificuldade de mudanças estruturais a curto prazo, pressionar políticos, debater e dar visibilidade ao tema movimentam as peças disponíveis. Aqui agora.
Referências
1. SOLANO, E. Crise da democracia e extremismos de direita. São Paulo: FriedrichEbert-Stiftung, 2018.
2. CABRAL, Ticianne M. P. Fiscalização estatal sobre o conteúdo televisivo: violações de direitos em programas policiais. Tese (Doutorado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Recife, 2019.
3. CABRAL, Ticianne M. P. Controle jurisdicional de conteúdo da programação televisiva comercial aberta. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito. Recife, 2013.
Ticianne Perdigão é mestra em Direito (UFPE), doutora em Comunicação (UFPE) e professora universitária.