Expediente
Editor Geral | Heitor Rocha Professor PPGCOM/UFPE
Editor Internacional | Marcos Costa Lima
Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE
Concepção Gráfica | Ivo Henrique Dantas Doutor em Comunicação e Professor Caesar School
Diagramação | Rafaela Lima
Graduanda em Biblioteconomia
Revisores | Laís Ferreira e José Bruno Marinho
Doutorandos de Comunicação PPGCOM/ UFPE
Colaboradores | Alfredo Vizeu
(Professor PPGCOM UFPE)
Túlio Velho Barreto
(Fundação Joaquim Nabuco)
Gustavo Ferreira da Costa Lima (Pós-Graduação em Sociologia/UFPB)
Anabela Gradim
(Universidade da Beira Interior Portugal)
Ada Cristina Machado Silveira (Professora da Universidade Federal de Santa Maria- UFSM)
Antonio Jucá Filho
(Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco- FUNDAJ)
João Carlos Correia
(Universidade da Beira Interior Portugal)
Leonardo Souza Ramos
Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)
Rubens Pinto Lyra
(Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB)
Ana Célia de Sá (Doutora em Comunicação)
Alexandre Zarate Maciel (Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFP)
ÍNDICE
Editorial | 3
Heitor Rocha
Portugal: crise da representatividade, crise climática e pandemia | 5
Pedro de Souza
COP 26: Muito barulho por nada? | 9
Marcos Costa Lima
Maquiavel: Dissenso, Liberdade e Lei (III) | 13
Rubens Pinto Lyra
Mulheres escritoras de livros-reportagem: expansão e novos olhares | 16
Alexandre Maciel
Do paradigma positivista às abordagens marxistas no jornalismo | 19
Marya Edwarda Lapenda
O Dilema do Crescimento Econômico | 22
Antonio Jucá
Programas Policiais Na TV - Violações de direitos ao vivo | 25
Ticianne Perdigão
Ombudsman de imprensa, opinião e qualidade do jornalismo | 28
Luiz Filipe Freire
Letramento nas redes sociais digitais e o pensamento crítico | 31
Luciana Ferreira e Cristiane Ferreira
Por uma maior visibilidade da literatura indígena | 34
Mônica de Lourdes Santana
“Filhas de cadela”, violência e machismo na eleição da Nicarágua | 38
Berta Marson
EDITORIAL
Heitor Rocha
Atramitação do Projeto de Emenda Constitucional dos Precatórios exibiu com todas as tintas o simulacro que colonizou o estado de direito republicano reduzindo o Brasil a mero território de pirataria desde o golpe de Dilma Rousseff em 2015, com a deplorável encenação grotesca do Congresso Nacional, do Judiciário, do Poder Executivo, da grande mídia e das elites proprietários do dinheiro.
O Congresso Nacional protagonizou o “suborno público” através das emendas parlamentares, que sempre significaram, desde a apreciação do processo de impeachment de Temer, agora com sua ilegalidade agravada pelas emendas secretas, uma forma de corromper a representação conferida pela população brasileira aos seus representantes no Poder Legislativo, no conluio das reformas restauradoras contra a previdência social, a legislação trabalhista, administrativa e tributária, além da permanente ameaça de privatização do patrimônio nacional.
Nesta conspiração contra os interesses dos brasileiros, assumiu posição de relevo o governo miliciano de Bolsonaro que articula, além do calendário das “reformas” neoliberais e o desmonte da saúde pública incorrendo em crime de responsabilidade por omissão, mas também por ação, nas mais de 600 mil mortes, com a negligência na compra das vacinas para acobertar a corrução por dose de imunizante, os
madeireiros, garimpeiros, grilheiros, milicianos e outros bandidos no assalto à Floresta Amazônica, comprometendo o meio ambiente e, também, a economia com a ameaça do boicote econômico dos países importadores contra as exportações brasileiras. Tudo isso achando que as elites dominantes vão ter que continuar apostando na barbárie posta em funcionamento pela boiada do atual Poder Executivo por conta da chantagem ideológica da ameaça comunista.
O Poder Judiciário, a despeito de algumas medidas buscando recuperar a credibilidade comprometida na condenação sem provas de Lula (quando a única evidência de crime foi a intenção corruptora das empreiteiras), a prisão em segunda instância inconstitucional para tornar o ex-presidente inelegível e evitar a sua vitória na eleição presidencial de 2018, que seria inevitável, segundo os institutos de pesquisa de intenções de votos. Desta forma, não se pode deixar de ver esta política do Poder Judiciário de “soprar e morder” uma forma de manter sua credibilidade num equilíbrio instável entre a posição de lealdade e fidelidade às elites dominantes e, por outro lado, como no reconhecimento das ilegalidades dos promotores da Operação Lava a Jato e do comportamento faccioso, parcial e político do ex-juiz Sérgio Moro, na anulação das sentenças contra o ex-presidente, para tentar contornar a sua desmo -
ralização diante da consciência jurídica nacional e, também, internacional, com manifestações de renomados juristas sobre a aberração do processo contra Lula.
A grande mídia, comandada pelo Rede Globo, também, desempenha um triste papel não só de cumplicidade e apoio na conspiração golpista neoliberal, mas até de inegável posicionamento político, até agora, quando as aberrações do presidente Bolsonaro, com suas descaradas mentiras e decisões absurdas, afrontam a sociedade brasileira e até mundial. Ao mesmo tempo que critica as barbaridades do presidente, para buscar manter uma linha de ambiguidade, a grande mídia continua fazendo a propaganda do calendário das
“reformas” conservadoras do ideário neoliberal como a única maneira de tirar o país a crise. Como todo veículo de comunicação não pode se manter sem um mínimo de credibilidade junto ao público, esse malabarismo torna-se uma necessidade técnica e não só uma concessão ao “politicamente correto”. Não pode ser descartada a possibilidade de um acordo nesta briga da Globo com o governo Bolsonaro, tendo em vista que se trata de algo conveniente para as duas partes: o governo Bolsonaro faz média com a sua base de apoio evangélica e outros setores truculentos, que não aceitam as novelas globais por considera-las muito liberais em termos de costumes; por outro lado, a TV Globo faz média com
as pessoas civilizadas e de cultura razoável que não aceitam a ignorância e o autoritarismo do atual chefe do Poder Executivo.
As elites proprietárias, por fim, encenam algumas posições de indignação diante das aberrações do brutamontes de plantão no Palácio da Alvorada, assinando manifestos contra a política de desmatamento e queimadas incentivada pelo governo federal, em face da possibi lidade de perderem dinheiro devido ao boicote dos países importadores das exportações brasileiras. Contudo, nada mais do que essas tímidas iniciativas do pessoal da Faria Lima. Costumeiramente, repetem-se os jantares em homenagem ao presidente por empresários sempre ávidos por privilégios, como agora os dois anos de desoneração das folhas de pagamentos, a pretexto de incentivar a geração de empregos, quando se sabe que esses empresários “patrióticos” pegam esse aumento nos lucros para especular nos paraísos fiscais, como dá o exemplo o ministro Paulo Guedes.
Portugal: crise da representatividade, crise climática e pandemia
Pedro de Souza
Duas questões graves assolam hoje a capacidade de decisão dos nossos dirigentes: a pandemia e o clima, de que, em breve, resultarão a fome, as migrações em massa e catástrofes naturais em série. Para ambos os problemas, há soluções que talvez não sejam as ideais, mas que poderiam mitigar seriamente a sua gravidade: a vacinação em massa, inclusive para evitar novas estirpes do vírus, e a energia alternativa, solar, eólica etc.
Mas ligamos a televisão e o que vemos no telejornal da TV pública portuguesa? Uma entrevista de um político, advogado e homem de negócios chamado Pires de Lima, que resolveu se demitir de um partido, o CDS-PP, que não tem chegado aos 5% nas eleições legislativas. A quem isso interessa?
Nesse meio tempo, a África está praticamente por vacinar, e os países subdesenvolvidos, e alguns outros que passam por desenvolvidos, continuam exportando para os países pobres a sujeira da produção industrial, mandando toneladas de metano para os ares, desmatando, poluindo oceanos. Não há como não concluir que os nossos dirigentes não estão à altura dos problemas com que a humanidade defronta: democracias e ditaduras são, na maioria dos casos, dirigidas por políticos ineptos, quando não criminosos. As ideologias que norteiam a política desde a Revolução Industrial e aqueles que as defendem fazem parte do problema, não da solução. Muito deles estão hoje em Glasgow, depois do G20 em Roma, para mais uma inócua reunião sobre as políticas climáticas. Inócua porque a maioria dos dirigentes,
ao sair do avião no seu país de origem, já se esqueceu do que se trata e, sobretudo, dos seus compromissos. Em Glasgow, a organização é falha, e os preços astronômicos. O primeiro-ministro português, António Costa, ficou em casa.
Portugal é um país médio/pequeno no contexto europeu; os seus 10 milhões de habitantes não alcançam a população da Grande S. São Paulo. E um país pobre, sobretudo devido a séculos de analfabetismo promovido pela Igreja Católica, e zelado por 40 anos de salazarismo. Depois do 25 de abril, se conseguiu algumas melhorias sociais, com o auxílio da União Europeia (UE). Hoje o país desenvolveu, sobretudo, a indústria do turismo, que emprega muita mão de obra não especializada e barata, como, por exemplo, a brasileira. E continua na cauda da Europa. É claro que a solução não está em liberalizar a produção, pois poucos pa Duas questões graves assolam hoje a capacidade de decisão dos nossos dirigentes: a pandemia e o clima, de que, em breve, resultarão a fome, as migrações em massa e catástrofes naturais em série. Para ambos os problemas, há soluções que talvez não sejam as ideais, mas que poderiam mitigar seriamente a sua gravidade: a vacinação em massa, inclusive para evitar novas estirpes do vírus, e a energia alternativa, solar, eólica etc.
Mas ligamos a televisão e o que vemos no telejornal da TV pública portuguesa? Uma entrevista de um político, advogado e homem de negócios chamado Pires de Lima, que resolveu se demitir de um partido, o CDS-PP, que não tem chegado aos 5% nas elei -
ções legislativas. A quem isso interessa?
Nesse meio tempo, a África está praticamente por vacinar, e os países subdesenvolvidos, e alguns outros que passam por desenvolvidos, continuam exportando para os países pobres a sujeira da produção industrial, mandando toneladas de metano para os ares, desmatando, poluindo oceanos. Não há como não concluir que os nossos dirigentes não estão à altura dos problemas com que a humanidade defronta: democracias e ditaduras são, na maioria dos casos, dirigidas por políticos ineptos, quando não criminosos. As ideologias que norteiam a política desde a Revolução Industrial e aqueles que as defendem fazem parte do problema, não da solução. Muito deles estão hoje em Glasgow, depois do G20 em Roma, para mais uma inócua reunião sobre as políticas climáticas. Inócua porque a maioria dos dirigentes, ao sair do avião no seu país de origem, já se esqueceu do que se trata e, sobretudo, dos seus compromissos. Em Glasgow, a organização é falha, e os preços astronômicos. O primeiro-ministro português, António Costa, ficou em casa.
Portugal é um país médio/pequeno no contexto europeu; os seus 10 milhões de habitantes não alcançam a população da Grande S. São Paulo. E um país pobre, sobretudo devido a séculos de analfabetismo promovido pela Igreja Católica, e zelado por 40 anos de salazarismo. Depois do 25 de abril, se conseguiu algumas melhorias sociais, com o auxílio da União Europeia (UE). Hoje o país desenvolveu, sobretudo, a indústria do turismo, que emprega muita mão de obra não especializada e barata, como, por exemplo,
a brasileira. E continua na cauda da Europa. É claro que a solução não está em liberalizar a produção, pois poucos países liberalizaram e desregulamentaram tanta atividade como Portugal nos últimos 30 anos. Embora os números continuem muito inferiores aos dos países do exbloco comunista (note-se que, no Império Austro-Húngaro, o cuidado com a educação era já muito superior ao equivalente no Império dos Bragança), nos últimos 20 anos Portugal progrediu nitidamente acima desses países no ensino secundário. Mas a base produtiva do bloco do leste continua muito superior à de Portugal, cuja política assentou, tanto nos governos de direita quanto nos socialistas, nos salários baixos (e na consequente emigração). Estamos no país da UE com o mais baixo nível de investimento público em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) — e com uma das mais baixas percentagens do emprego público no emprego total.
Nas eleições legislativas de 2015, o Partido Socialista, embora minoritário, conseguiu formar governo com o apoio parlamentar do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda, dois partidos de extrema-esquerda antieuropeus. A governação foi, em geral, positiva, a julgar pela aprovação pelos eleitores nas eleições seguintes, em 2019, quando se repetiu o esquema, a geringonça — conforme ficou conhecida essa aliança informal entre o Partido Socialista (um partido de centro-esquerda), PCP e BE. Apesar da oposição da direita (PSD – CDS-PP – Iniciativa Liberal – Chega) e das ásperas negociações orçamentais, essa aliança sobreviveu até 2019, dada a habilidade do secretário-geral do PS, António Costa, filho de um poeta co -
munista. Há poucos meses, depois de várias rodadas de negociações quanto ao orçamento para 2022, os três partidos se separaram sem acordo sequer na generalidade. O detalhe poderia ser discutido depois na Assembleia. A Constituição Portuguesa é semipresidencialista, e a Assembleia dispõe de amplos poderes. O orçamento para 2022 foi chumbado por todos os partidos com representação parlamentar, salvo o PS, e com a abstenção de alguns independentes. Portugal está sem orçamento para 2022, o que seria grave em qualquer circunstância, mas este ano se revela especialmente preocupante, pois, sem orçamento, não há liberação dos fundos de ajuda da Europa relativos à pandemia, e demais.
O PS fez várias concessões importantes, como a generalização das creches gratuitas. Mas, para os partidos de extrema-esquerda, não foi suficiente. Sobretudo porque medidas votadas em orçamentos anteriores têm sido “cativadas” pelo Ministério das Finanças, ou seja, as respectivas verbas não têm sido liberadas. O Partido Socialista, tal como os partidos de direita, continuam presos às velhas teorias monetárias que insistem que o orçamento de um país deve ser gerido como um orçamento familiar, com o menor déficit possível, teorias impostas ao governo português pelo Banco Central Europeu, visto que Portugal não cunha mais moeda.
Adiantando-se a qualquer outra possível solução (que seria complexa), o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que é de direita e tinha até aí convivido em relativa harmonia com a gerigonça, anunciou que, caso não houvesse acordo, dissolveria a Assembleia da República, uma possi -
bilidade prevista na Constituição, mas não obrigatória nessas circunstâncias.
E assim o fez.
O governo não se demitiu, continua em funções, até que seja eleita nova Assembleia, possivelmente no dia 30 de janeiro de 2022. A partir daí, entra-se numa zona de desconhecido. É de opinião mais ou menos geral que o presidente se precipitou. Acontece que, nas eleições locais de 26 de setembro passado, o presidente da Câmara Municipal (prefeito) de Lisboa, o socialista Fernando Medina, sucessor “in pecto” de António Costa, foi derrotado pelo candidato de direita, o ex-comissário europeu Carlos Moedas, do PSD (partido de centro-direita). É possível que essa vitória simbólica (pois os vereadores lisboetas continuam, na maioria, sendo de esquerda) tenha entusiasmado o “povo de direita” e o presidente, que se convenceu de que o mesmo poderia acontecer em eleições legislativas.
Não se pode excluir que isso venha a acontecer, visto que, tradicionalmente, a direita tem mais facilidade em se coligar que a esquerda. Mas a verdade é que os partidos de direita estão divididos por querelas de pessoas e de estratégia, entre os que admitem se coligar com o PS e os que recusam essa alternativa, entre o centro-direita e a direita pura e dura, entre os nacionalistas e os liberais. O único partido de direita certo de ganhar com a situação criada pelo presidente é o Chega, um partido de extrema-direita, equivalente ao Vox espanhol, ou ao Rassemblement National francês, que seduz os desiludidos da democracia, que são numerosos. Na esquerda é de se esperar que ganhe o voto útil, ou seja, que PCP e BE continuem perdendo eleitores, e
que o PS roce a maioria absoluta. Não é impossível que tenha sido esta a intenção do presidente: diminuir o peso do PCP e BE na Assembleia, impedindo uma nova gerigonça. Mentes maquiavélicas sugerem que essa intenção poderia ser também a do secretário-geral do PS. Mas aí entramos no domínio da pura especulação. No entanto, uma nova geringonça se apresenta pouco provável, pelo menos com o Bloco de Esquerda. Os laços de António Costa com o PCP sempre pareceram mais próximos.
Aos dois grandes problemas da atu alidade, o clima e a pandemia, os governantes portugueses conseguiram somar um terceiro: uma crise política de que não se vê desfecho que não seja muito próximo ao da situação atual. Na sua raiz, não se trata de um problema novo, mas que se vem agravando: cerca de 50% dos eleitores portugueses não se deslocam mais para votar. A crise da democracia representativa fica patente: é provável que só uma boa dose da democracia participativa no trabalho, seja ele do Estado seja privado, possa destravar esse impasse. Mas as autodenominadas elites farão tudo para que isso não se verifique. Para que a acumulação de capital nos conduza ao desastre.
Fonte: ladroesdebicicletas.blogspot.com
COP 26: MUITO BARULHO POR NADA?
Marcos Costa Lima
Much ado about nothing?
William Shakespere
Após 12 dias de conversas, especialistas do clima alertaram em carta aberta (11/11/2021) que os compromissos atuais no projeto de acordo Cop26 estão sendo seriamente prejudicados pelos compromissos insuficientes sobre os combustíveis fósseis. A conferência da ONU em Glasgow foi encerrada após conversações entre 27 Estados-membros e delegados de mais de 100 nações, mas há uma forte preocupação com o uso de uma linguagem sem força e não comprometida com a dimensão do problema. Mais de 200 cientistas de todo mundo têm dito que ações urgentes e ‘em larga escala’ são obrigatórias para manter viva a meta de 1,5°C (Germanos, 2021).
Segundo os Especialistas em meio ambiente a meta de um aumento de 1,5°C nas temperaturas globais precisa ser mantida viva para permitir que a humanidade sobreviva, mas os compromissos atuais sobre petróleo, gás e carvão na Cop26 não são suficientes.
Depois de duas semanas, a Conferência do Clima chegou ao fim no sábado 13/11 em Glasgow, na Escócia, com um resultado aquém do esperado diante da emergência climática que cobra a cada dia um preço mais alto ao planeta. Mas há vozes otimistas: “Talvez essa seja a grande beleza de Glasgow, o despertar da sociedade civil para a agenda do clima”, avalia Claudio Angelo, do Observatório do Clima.
Enquanto o grupo de centenas de cientistas instou os negociadores da COP26 a reconhecer a mais recente ciência climática, comprometendo-se a “ações imediatas, fortes, rápidas, sustentadas e em larga escala”, o chefe das Nações Unidas expressou pessimismo quanto à possibilidade das negociações
terminarem com um acordo que limite o aquecimento ao limiar-chave de 1,5°C. Segundo ele, o último relatório climático do IPCC “mostra inequivocamente a extensão das mudanças climáticas induzidas pelo homem”, acrescentando que “as emissões cumulativas de gases de efeito estufa até agora já comprometem nosso planeta a mudanças fundamentais do sistema climático que afeta a sociedade humana e os ecossistemas marinhos e terrestres, alguns dos quais são irreversíveis para as próximas gerações” ( Germanos, nov,11).
Aqueles que facilitaram as negociações em Glasgow advertiram que um acordo ainda era possível, com o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, alertando as nações a não fazerem promessas “ocas” sobre o combate às mudanças climáticas, dizendo à conferência Cop26 que os anúncios feitos estão longe de ser suficientes.
O presidente da Cop26, Alok Sharma, disse que os delegados “não têm escolha a não ser forçar cada delegado “a fazer da cúpula climática um sucesso. A Cop26 pode ser estendida à medida que as críticas aumentam sobre compromissos insuficientes com relação aos combustíveis fósseis”.
Contudo, a ativista climática ugandense Vanessa Nakate alertou que o planeta estava “à beira do abismo” e que a ciência era “inequívoca” sobre a redução das emissões de carbono. Ela disse na conferência do clima que milhares de ativistas “não veem o sucesso que está sendo aplaudido” na cúpula. “Historicamente, a África é responsável por apenas 3% das emissões globais e ainda assim os africanos estão sofrendo alguns dos impactos mais brutais da crise climática. Mas, embora o sul global esteja na linha de frente da crise climática, ele não está nas primeiras páginas dos jornais mundiais” (BBCNEWS–Brasil,2021).
Expressando seu ceticismo quanto às promessas feitas por líderes mundiais e empresas, ela disse: “Promessas não impedirão o sofrimento do povo, promessas não impedirão o planeta de se aquecer. Apenas ações imediatas e drásticas nos tirarão do abismo.”
Segundo o filósofo e religioso Leonardo Boff, o Acordo de Paris de 2015 sobre a mitigação dos gases de efeito estufa, que dava alguma esperança, não foi observado. Ao contrário, a emissão cresceu 60%. A China é o maior emissor com 30,3%, seguida pelos USA com 14,4, os europeus com 6,8%. A deterioração foi generalizada (Boff, 2021).
Também Patricia Espinosa, Secretária Executiva da ONU sobre Mudanças Climática, na abertura da COP26 alertou: “Estamos a caminho de um aumento de temperatura global de 2,7 graus quando deveríamos atingir a meta de 1,5 graus. Sabemos que com este nível de aquecimento, grande parte das espécies não conseguirão se adaptar e desaparecerão. Milhões de humanos pobres e vulneráveis estarão sob grave risco”.
Como nos disse Naomi Klein, não se trata de aquecimento global, mas de capitalismo. A mudança climática é causada pelo caráter do desenvolvimento social e econômico predatórios, produzido pela natureza da sociedade capitalista que se mostra insustentável, no que foi instrumentalizada para a busca irrefreável de minério, de petróleo, de terras, de água. Portanto, o problema não é o clima mas o capitalismo que não conhece uma ecologia ambiental e político-social, nem tem uma política à altura. O que foi recomendado na COP 26 foi o de reduzir os gases até 2030. E quando chegarmos lá, quais serão as prospectivas?
O pacote de decisões aprovado na tarde de sábado 13/11 por mais de 190 nações foi tido como imperfeito e com muito desconforto, por não conseguir a redução urgente de emissões de gases de efeito estufa em linha com o objetivo
do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global em 1,5o C neste século. A salvação do clima foi adiada mais uma vez, para 2022, quando o mundo volta a se reunir em Sharm el-Sheikh, no Egito, para avaliar metas mais ambiciosas para 2030. Mas quando ouvimos as vozes que veem das ruas, como as de Greta Thumberg, a coisa fica ainda pior: “Não é segredo que a COP26 é um fracasso. Deveria ser óbvio que não podemos resolver uma crise com os mesmos métodos que levaram ao início dessa crise”. Disse ainda: “Precisamos de cortes anuais imediatos e drásticos nas emissões como o mundo nunca viu antes”. E acrescentou que “as pessoas no poder podem continuar a viver em sua bolha cheia de fantasias, como o crescimento eterno em um planeta finito e soluções tecnológicas que aparecerão de repente do nada e apagarão todas essas crises em um piscar de olhos” (BBC NEWS Brasil).
O Observatório do Clima (Planeles et al. 2021) resume bem alguns dos resultados, criticados duramente pelos ativistas, como o fracasso em Glasgow em assegurar financiamento consistente dos países ricos para os países em desenvolvimento. Por influência principalmente dos ricos, a proposta de criar um mecanismo de financiamento expresso para as perdas e danos sofridas por nações vulneráveis por conta de impactos climáticos foi descartada. O que deveria ser um mecanismo virou um “diálogo”. A representante das Maldivas, na plenária de apresentação do texto final, resumiu a questão: “Quero notar que o que é equilibrado e pragmático para outras partes não vai ajudar as Maldivas a se adaptar a tempo (…). Enquanto reconhecemos o alicerce que este resultado provê, por favor façam-nos a cortesia de reconhecer que ele não traz esperança aos nossos corações, mas serve como uma conversa na qual nós colocamos nossos lares em risco enquanto aqueles que têm opções decidem o quão rápido
eles querem ajudar a salvar aqueles que não têm”. Ela também traduziu em tempo a tarefa gigantesca que o processo multilateral da Convenção do Clima tem diante de si: guiar o mundo para reduzir as emissões pela metade em apenas 98 meses.
Um Fracasso - Estima-se que os países africanos já gastem por ano 10% de seu PIB com impactos de eventos climáticos extremos. A sucessão extraordinária de eventos extremos em 2021 mostrou que não pode haver mais adiamento na criação de um instrumento que permita aos países vulneráveis acessar imediatamente recursos sem se endividar para ações de proteção, prevenção e reconstrução. Os países desenvolvidos não aceitaram.
Sobre as mitigações necessárias, a COP 26 reconhece que: 1.as emissões terão de cair 45% em 2030 em relação a 2010 e para zero líquido “por volta do meio do século” para estabilizar o aquecimento global. 2. Decide estabelecer um plano de trabalho para acelerar a ambição da mitigação e da implementação nesta década, a ser adotado na COP27, em 2022. 3.Requerer às partes que atualizem e reforcem até o fim de 2022 suas metas nacionais (NDCs) para 2030 de forma a alinhá-las com a meta de estabilização do Acordo de Paris. 4. Propõe a realização de reuniões ministeriais anuais para tratar de ambição pré2030 — a partir da COP27. 5. Exorta as partes a “acelerar os esforços” para reduzir gradativamente (phase down) o carvão mineral “sem abatimento” e os
“subsídios ineficazes” a combustíveis fósseis.
Com relação ás florestas e ao metano, duas novidades da COP26 foram os acordos, assinados logo na primeira semana, para reduzir as emissões globais de metano em 30% em 2030 em relação a 2020 e para zerar e reverter a perda de florestas no mundo até 2030. São objetivos externos à negociação, mas que podem dar um impulso importante para o cumprimento das metas de Paris.
O acordo sobre florestas é especialmente importante para o Brasil, que em 2020 tinha 46% de suas emissões advindas de desmatamento. Mesmo que o atual governo brasileiro não tenha intenção de cumpri-lo, os três principais compradores de commodities do Brasil — China, Estados Unidos e União Europeia — aderiram ao pacto, e a China anunciou que considerará a legislação para barrar importações de produtos advindos de desmatamento.
No tocante ao Financiamento, o documento “Nota com profundo pesar” que os países ricos não cumpriram a meta de mobilizar US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020 para bancar adaptação e mitigação nos países em desenvolvimento. Exorta os países ricos a prover clareza sobre a entrega e a cumpri-la com urgência até 2025. Decidiu ainda estabelecer um programa de trabalho entre 2022 e 2024 para estabelecer a meta de financiamento climático que valerá após 2025 e que, segundo o Acordo de Paris, terá de ser
substancialmente maior que US$ 100 bilhões por ano.
Para concluir é preciso registrar as constrangedoras cenas produzidas pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil quando, além de buscar “tapar o sol com peneira” sobre a destruição da Amazônia, o assassinato dos indígenas, alugou um amplo pavilhão, com patrocínio da indústria, para mostrar o que chamava de “Brasil real”, credenciando um grande número de representantes dos lobbies do agronegócio (9) e da indústria (6), além de 25 empresários ou executivos de empresas. Não convenceu muita gente, a julgar pelo pavilhão pouco movimentado. Sem contar que um funcionário do Ministério do Meio Ambiente, no perfeito estilo Bolsonaro, protagonizou uma das cenas mais revoltantes da COP ao agredir verbalmente a estudante de direito Txai Suruí, única voz brasileira na Cúpula de Líderes no dia 1o/11, que denunciou as ameaças aos povos indígenas no país. Finalmente, dizer que o Brasil cortou 93% da verba para pesquisa em mudanças climáticas.
Referências
BOFF, Leonardo, A COP26 não respondeu à emergência climática https://leonardoboff.org/2021/11/11/a-cop26-nao-respondeu-a-emergencia-climatica/
BBC NEWS – Brasil, “Greta Thunberg e COP26: as duras críticas da jovem ativista à cúpula sobre mudanças climáticas”, https://www.bbc. com/portuguese/internacional-59190477 , 6 novembro 2021 Acessado em 14/11/2021
Germanos, Andréa, “200+ Global Scientists Say Urgent and ‘Large-Scale Actions’ Mandatory to Keep 1.5°C Goal Alive”. In:https://www.commondreams.org/news/2021/11/11/200-global-scientists-say-urgent-and-large-scale-actions-mandatory-keep-15degc-goal nov. 11/2021
Observatório do Clima, “Glasgow adia novamente a salvação do clima”. in:https://www.oc.eco. br/glasgow-adia-novamente-a-salvacao-do-clima/ 13.11.2021, Acessado em 15/11.
PLANELLES, MANUEL / ÁLVAREZ, CLEMENTE
“Balance de la cumbre de Glasgow”, in El País, https://elpais.com/autor/manuel-planelles/ Acessado em 14/11/2021
Maquiavel: Dissenso, Liberdade e Lei (III)
Rubens Pinto LyraNopensamento dialético de Maquiavel, minuciosamente dissecado por Negri (2002, p. 127), “a ordem das coisas encontra em sua base a ação, a dissensão – motor e sentido do processo histórico a ser constituído pela práxis humana que se organiza na desunião universal, e é através da desunião que descobre e organiza o poder constituinte”.
Outro aspecto indicativo da índole democrática do pensamento de Maquiavel (1994) é sua proposta de criação de uma milícia armada, recrutada no povo para defender a Cidade-Estado, e não composta por mercenários pagos. Portanto, “se o Estado se arma e se organiza como Roma, se os cidadãos experimentam diariamente seu valor e sua sorte, conservarão a coragem e a dignidade, qualquer que seja a situação que enfrentem” (MAQUIAVEL, 1994, p. 395).
Na interpretação de Negri, com a construção da milícia popular “a multidão se faz una e a democracia nasce armada.” (NEGRI, 2002, p. 121). A reiterada valorização do protagonismo popular e a elevação à categoria de “príncipe coletivo” de um povo dotado de virtù, como o romano, se sintonizam com o “parti pris” de Maquiavel com a plebe. Sempre melhor avaliada do que os grandes, que querem, sem cessar, explorá-la cada vez mais. Nas suas palavras:
[...] o povo é mais prudente, menos volúvel e, num certo sentido, mais judicioso do que o Príncipe. Não é sem razão que se diz ser a voz do povo a voz de Deus. Com efeito, vê-se a opinião universal produzir efeitos tão maravilhosos em suas previsões que parece haver nela uma potência oculta, a predizer o bem e o mal [...] Se o povo se deixa às vezes seduzir [...] isto ocorre ainda mais frequentemente com os governantes, que se deixam arrastar por suas paixões,
mais numerosas e difíceis de resistir do que as do povo. (MAQUIAVEL, 1994, p. 181-182).
E acrescenta:
[...] se as monarquias têm durado muitos séculos, o mesmo acontece com as repúblicas. Mas umas e outras precisam ser governadas por meio de leis. O Príncipe que se pode conceder todos os caprichos geralmente é um insensato; e o povo que pode fazer tudo o que deseja comete muitas vezes erros imprudentes. No caso de um Príncipe ou um povo submetido a leis, o povo terá virtudes superiores às do Príncipe. E se considerarmos os dois como igualmente livres de qualquer restrição, veremos que os erros do povo são menos freqüentes, menos graves e mais fáceis de corrigir. (MAQUIAVEL, 1994, p. 181-182).
Essas concepções inserem Maquiavel na corrente histórica dos grandes pensadores que, desde a Antiguidade, contribuíram, com suas reflexões, para a construção dos ideais de liberdade e de democracia. Aliás, por fazer do povo o suporte da única honestidade possível a ser encontrada na sociedade e pelo fato de “desvalorizar radicalmente as pretensões dos grandes à virtude”, importantes estudiosos o consideram o “primeiro pensador democrático” (MANENT, 1990, p. 31) ou o “profeta da democracia” (NEGRI, 2002, p. 103).
Contudo, o fato de Maquiavel apresentar teses com ingredientes fortemente democráticos, muito à frente de seu tempo, não o faz, propriamente, um democrata, haja vista que não existia, nem podia existir, democracia nas condições materiais próprias da época em que viveu. Destarte, o secretário florentino nunca vislumbrou a possibilidade de eliminação de classes existentes nem incitou os pobres à sublevação – tais questões não se colocavam no seu hori-
zonte histórico. Por isso, ele se deteve na percepção do antagonismo de classes. Não chegou a antever, como resultado dessa luta de contrários, uma síntese dialética libertadora, ou seja, o advento de uma sociedade sem explorados e exploradores. Mas soube identificar o “contrapeso da plebe”, atribuindo a esta a condição de sujeito capaz de forjar espaços de liberdade e instituições – como o Tribunato – de que o povo necessitava para refrear a ganância desmedida dos opressores. Assim, a análise maquiaveliana aponta, dialeticamente, para:
A destruição da continuidade e a fundação da liberdade. Ao modelo biológico, ele oporá sempre o modelo da desunião e da ruptura; à dialética naturalista das formas de Estado, ele opõe as determinações bem concretas das lutas de classe (NEGRI, 2002, p. 166).
A afirmação de Maquiavel (escandalosa, na dicção de Lefort) para os “sábios” de Florença e demais componentes dessa República medieval – de que as leis que se fazem a favor da liberdade nascem da divisão entre os Grandes e o povo – “impede o leitor de limitar sua interpretação à história de Roma. Ela o obriga a verificar sua aplicação no Estado moderno e a se interrogar sobre o discurso político de seu tempo” (LEFORT, 1986, p. 475).
A lucidez e o caráter pioneiro da obra maquiaveliana podem mais bem ser apreciados, contrastando-se sua contribuição para a secularização da política com as trevas em que mergulharam, na atualidade, incipientes democracias, como a do Brasil, pretendendo estabelecer a tutela da religião sobre a política.
O PAPEL DA RELIGIÃO EM MAQUIAVEL
Em pleno século XXI, se assiste, com toda força, ao retorno de concepções obscurantistas, no Brasil e em vários outros países, que têm deixado sua
marca nos programas de governo e nas suas políticas públicas, quando conquistam o poder. Uma das suas principais características, no Brasil, é o “fundamentalismo, especialmente o evangélico, que avança sempre mais, provocando uma mistura tóxica entre o sagrado e o profano” (PACHECO, 2020).
No Brasil, esse retrocesso pode ser melhor compreendido comparando-se o pensamento de Maquiavel com o obscurantismo religioso atualmente em ascensão. Há quinhentos anos, ele secularizou o Estado, expulsando a religião da política, promovendo a sua secularização ao explicar o seu surgimento e o da própria religião como produto, exclusivamente, da práxis humana.
O secretário florentino conferiu papel relevante à religião, mas somente como meio extremamente eficaz de controle social, pouco lhe interessando se seus preceitos eram verdadeiros ou falsos. Na concepção maquiaveliana, esclarece AMES, a religião é tanto mais importante quanto, “para garantir à comunidade política coesão e duração, o fundamento da obediência precisa ser buscado em algo diverso da força” (2006).
O 11º capítulo do livro Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, a sua mais destacada obra, deixa claro esse entendimento ao afirmar que Rômulo, o primeiro monarca de Roma, “voltou o olhar para a religião como o agente mais poderoso da manutenção da sociedade” (MAQUIAVEL, 1994, p. 57).
No mesmo sentido, o 13º capítulo dessa obra mostra “como os romanos se serviram da religião para organizar o governo da República em seus empreendimentos e reprimir desordens” (1994, p. 63). Mas ela se revela nociva, produzindo um efeito desestabilizador, quando partido ou grupo político dela se apossa para utilizá-la em seu proveito. Assim, Maquiavel enfatiza, no 12º capítulo dos Comentários, que, “quando os oráculos
começam a tomar partido dos poderosos e a fraude é percebida, os homens se fazem menos crédulos, dispostos a contestar a ordem estabelecida” (1994, p. 61).
O que Maquiavel denuncia ocorre hoje, no Brasil. O voto evangélico, na sua maioria, serviu de trampolim para a ascensão de um suposto “mito” à Presidência da República (O VOTO: 2018). Os “oráculos” – no caso, os líderes evangélicos Malafaia, Edir Macedo, R.R. Soares et caterva – pretenderam ungir o Messias Bolsonaro de uma suposta escolha divina. Alguns deles foram além, revelando a intenção de criar um “Estado evangélico” (BARROS E ZACARIAS: 2019). Mas Bolsonaro não está só. Espelha-se na Hungria, que abandonou sua tradição laica inserindo a religião como política pública. A sua Constituição, agora emendada, deixa claro que o país é cristão e que as crianças devem ser educadas de acordo com seus valores (MODELO: 2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o seu potencial destruidor, Bolsonaro encarna uma verdadeira antítese do “moderno príncipe” (O VOTO, 2018), nos fazendo suportar “uma forma de poder em que se combinam a anti-ideia, a obturação dos canais da percepção, a disfunção da experiência e a recusa ao conhecimento” (FREITAS, 2020).
As concepções reacionárias do bolsonarismo têm como escopo atingir em cheio as conquistas democráticas e científicas que nos foram legadas. Seu ostensivo desprezo pelo conhecimento se expressa no negacionismo (a “gripezinha”). Suas ideias sociais e políticas obscurantistas se manifestam no racismo não assumido, que vai até a justificação do escravismo; na tentativa de subordinar o Estado aos “princípios cristãos”; na criminalização dos conflitos entre as classes sociais e na reconversão do Estado a mero instrumento de
opressão dos “Grandes”.
Tão clamoroso retrocesso contrasta com o legado revolucionário das ideias de Maquiavel, de surpreendente atualidade, tão à frente de seu tempo. Elas continuam a inspirar a reflexão de todos que reconhecem o seu pioneirismo, tanto pela sua contribuição ao conhecimento da política quanto pela sua condição de precursor da democracia. O pensador florentino apreendeu, com translúcida nitidez, as características da sociedade e da política do seu tempo – como efetivamente eram. Isso tornou possível delinear os contornos do Estado Moderno, a sua ética e as suas funções de árbitro dos conflitos sociais, cuja dinâmica, por ele enaltecida, constitui a mola propulsora a práxis democrática.
Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da UFPB.
Referências
FREITAS, Jânio. No Brasil não existe racismo, fala de Mourão é a mais racista das falas. Folha de S.Paulo, São Paulo, 9 nov. 2020.
MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Editora UnB, 1994.
NEGRI, Antonio. O poder constituinte. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. O VOTO evangélico garantiu a eleição de Jair Bolsonaro. Revista Ihu, São Leopoldo, nov. 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos. br/78-noticias/584304-o-voto-evangelico-garantiu-a-eleicao-de-jair-bolsonaro. Acesso em: 16 dez. 2020.
PACHECO, Ronilson. Fundamentalismo evangélico corrompeu a fé cristã, diz autora de best-seller evangélico. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 set. 2020.
Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da UFPB.
Livro-reportagem, jornalismo e contexto
Por Alexandre Zarate MacielMulheres escritoras de livros-reportagem: expansão e novos olhares
Quando o autor desta coluna desenvolveu a sua tese de doutorado “Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livro-reportagem no Brasil”, entre os anos de 2014 e 2018, percebeu que a participação das jornalistas mulheres no universo editorial do livro-reportagem ainda era tímida. Tanto que dentre os 10 jornalistas escritores que entrevistou em 2016, sendo alguns de renome, como Ruy Castro, Fernando Morais e Zuenir Ventura, ouviu apenas duas mulheres: Daniela Arbex e Adriana Carranca. A primeira havia surpreendido o mercado editorial com o livro “Holocausto brasileiro”, lançado em 2013, e que, até a ocasião da entrevista, já estava próximo das 300 mil cópias vendidas, mesmo tratando de um tema árido, como a morte por descaso e abandono dos internos em um hospital psiquiátrico clássico de Minas Gerais.
Já Adriana Carranca encontrava mais projeção como escritora em 2016, no seu terceiro livro, “Malala: a menina que queria ir para a escola”, do ano anterior, marcado pela experiência de uma narrativa de não ficção elaborada para leitores e leitoras crianças e adolescentes. Outra jornalista de destaque no período, que vinha reunindo reportagens em livros desde o início dos anos 2000, era Eliane Brum, com obras como “A vida que ninguém vê” (2006) e “O olho da rua” (2008). O trabalho de Eliane, marcado por um exercício de olhar subjetivo, humanizado e narrativa elaborada de forma cuidadosa, inclusive chama bastante atenção do campo acadêmico de estudos da área de jornalismo literário, com dezenas de artigos científicos esquadrinhando os seus métodos. No Brasil, é perceptível uma atenção maior à publicação de livros-reportagem de jornalistas escritoras a partir do
prêmio Nobel de literatura concedido à jornalista bielorrussa Svetlana Alexiévitch, em 2015, o que levou a Companhia das Letras a publicar, em português, as suas principais obras, como “Vozes de Tchernóbil”, “A guerra não tem nome de mulher” e “O fim do homem soviético”. O estilo de Svetlana é singular: ela faz longas entrevistas com os seus personagens, como sobreviventes de guerras e acidentes nucleares e organiza um mosaico, ou coro de vozes que se amalgamam, dando tom dinâmico à narrativa.
Fonte: Amazom.com.br
Mulheres jornalistas biógrafas e no campo do jornalismo político e econômico
Em artigo publicado em 2021 na revista científica de comunicação Lumina, os pesquisadores Felipe Adam e Antonio Holfeldt apresentam um estudo preliminar, proveniente da tese de dou-
torado que o primeiro está desenvolvendo na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), a respeito da presença tanto de jornalistas biógrafas quanto mulheres biografadas. Eles concentraram o olhar de pesquisadores sobre as duas maiores editoras que publicam obras do gênero no Brasil: Companhia das Letras e Editora Record, especificamente sobre o catálogo de livros lançados entre 1990 e 2020. Entre os personagens biografados na Companhia das Letras, “o número de homens é cinco vezes maior (38 mulheres contra 201 homens); já na Record, o valor é quase o triplo (54 mulheres versus 152 homens)” (ADAM & HOLFELDT, 2021, p. 65-67).
Outro dado curioso apontado pelos pesquisadores é que “no Grupo Companhia das Letras, dos 51 livros em que mulheres assinam sozinhas narrativas biográficas, somente em 17 (33,3%) delas os protagonistas também são mulheres”. Enquanto no Grupo Editorial Record, “das 76 obras biográficas cujas mulheres são autoras exclusivas, 32 (42,10%) delas também tratam de mulheres”.No campo biográfico brasileiro, três mulheres vêm se destacando. Adriana Negreiros mergulhou em arquivos históricos e depoimentos para trazer uma perspectiva feminina do universo dos cangaceiros na obra “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço” (2018). A vida e obra de Jorge Amado foi investigada e narrada com detalhes por Josélia Aguiar no livro “Jorge Amado - uma biografia” (2018), que venceu o prêmio Jabuti de Biografia, Documentário e Reportagem do ano seguinte. Em “Samuel Wainer, o homem que estava lá” (2020), a jornalista Karla Monteiro apresenta, com detalhes, a trajetória de um dos jornalistas mais importantes do Brasil em sua época.
Destaque para as mulheres escritoras, também, no jornalismo político. Thaís Oyama disseca o primeiro ano do
governo do presidente Jair Bolsonaro, encontrando um adjetivo apropriado para o título, em “Tormenta - o governo Bolsonaro” (2020). E Patrícia Campos Melo, no mesmo ano, trouxe à tona o didático e assustador “A máquina do ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital”, sobre a disseminação criminosa de notícias falsas e a própria história da jornalista, vítima de uma campanha de difamação virtual após denunciar o esquema, a princípio, no jornal em que trabalha, a Folha de S. Paulo. Essas produções mais recentes indicam que as jornalistas escritoras buscam descortinar os mais variados temas com responsabilidade e ética.
O olhar das jornalistas escritoras: um toque feminino?
A leitura mais atenta de livros-reportagem escritos por jornalistas mulheres aponta reflexões sobre o olhar feminino como uma peculiaridade do fazer jornalístico. Daniela Arbex, em entrevista ao autor desta coluna (MACIEL, 2018) acredita que existe até mesmo um jeito feminino de narrar, que transparece na escolha dos temas, das abordagens, do olhar e na forma como os personagens aparecem no livro-reportagem: “Tem coisas... Por exemplo: no caso do Holocausto brasileiro, o que mais me tocou? As mães que não puderam alimentar seus filhos. Porque eu estava amamentando o meu. E eu chegava em casa e ficava: ‘Meu Deus, como se arranca isso de uma mãe?’”.
Especializada em coberturas sobre a situação da mulher no Oriente Médio, Adriana Carranca, por sua vez, acredita que quanto mais a jornalista convive com uma realidade diferente da sua, “mais pautas você derruba”. Ela exemplifica que é fácil “apontar o dedo, falar das mulheres oprimidas do Afeganistão”. Mas, quando ouve um depoimento de uma delas dizendo que não quer tirar a burca, mesmo com a insistência
do marido, que não quer vê-la vestida assim, percebe que é importante ficar cada vez mais nos ambientes para derrubar o que o olhar mais apressado pode sugerir. Mesmo em biografias sobre homens, como a de Jorge Amado, por exemplo, percebe-se que a jornalista Josélia Aguiar tenta contrabalancear a importância da esposa e também escritora Zélia Gattai para a vida e carreira do escritor baiano. Karka Monteiro, por sua vez, lança luzes sensíveis ao papel da primeira esposa de Samuel Wainer, Bluma, e também dedica várias páginas ao papel crucial da segunda mulher, Danuza Leão, na trajetória do jornalista e empresário. Cabem, enfim, mais pesquisas acadêmicas sobre o papel mais recente das jornalistas escritoras no universo dos livros-reportagem brasileiros contemporâneos.
Referências
ADAM, Felipe; HOLFELDT, Antonio. A memória do feminino: um esboço do catálogo biográfico da Companhia das Letras e Record (1990-2020). Lumina – Revista do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora: PPGCOM UFJF, v. 15, n. 2, p. 55-71, mai./ago. 2021.
MACIEL, Alexandre Zarate. Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livro-reportagem no Brasil. Recife, 2018. Tese (Doutorado em Comunicação)-Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Macie l, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.
Do paradigma positivista às abordagens marxistas no jornalismo
Marya Edwarda LapendaApesar de teoricamente superado, o paradigma positivista da objetividade jornalística persiste na formação dos profissionais que se aferram ao princípio (ou método) como um camponês mediterrânio com seu colar de alho à volta do pescoço para afastar o mal, conforme a metáfora utilizada por Gaye Tuchman (2016). O mal, no caso do jornalismo, seriam as críticas e a descredibilização que são contrapostas com o argumento jornalístico de estar sendo “objetivo” no seu trabalho. A reivindicação de objetividade por meio do uso de estratégias é questionada pela socióloga norte-americana. Por exemplo, a apresentação de uma ou mais versão dos fatos não pressupõe a objetividade, já que esta significa uma “prioridade aos objetos externos ao pensamento do sujeito” e as diversas versões disputam uma pretensão de verdade subjetiva. Enquanto a apresentação de provas auxiliares, outra estratégia que parte da premissa de que “os fatos falam por si”, nega a própria construção social da realidade. Além disso, a construção da notícia pelo lead - que reivindica uma objetividade metodológica - é uma estratégia que ignora o processo de escolha do profissional na técnica da pirâmide invertida (TUCHMAN, 2016).
Na verdade, como bem explicita Bakhtin (2002), o signo (que é a unidade de significação) reflete a realidade e suas transformações sociais, configurando as palavras como a materialização dessas mudanças, sendo “tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN, 2002, p. 40). Portanto, a objetividade jornalística carece de uma fundamentação absoluta, porque omite o fato de que qualquer ato comunicativo está inserido em um contexto social, político e cultural. Warren Breed (2016) reforça que o princípio positivista esconde a interferência dos interesses empresariais na produção noticiosa e disfarça a onipresença da orientação política da empresa.
A objetividade faz parte, pois, da ideologia do profissionalismo (SOLOSKI, 2016). Ela levanta conflitos entre jornalistas e dirigentes das organizações, quando os primei-
ros se pautam pelo ideal de serviço público a favor da pluralidade de opiniões, fazendo da atividade do jornalismo o lugar de mediação e articulação do conflito, enquanto os segundos perseguem os interesses ideológicos e corporativos do grupos das elites de que fazem parte, mesmo que, na visibilidade do espaço público, assegurem veementemente seu compromisso com a autocompreensão normativa que a sociedade cobra dos veículos jornalísticos, ou seja, que se orientem pelo interesse coletivo e o bem comum.
O jornalismo, por constituir uma narrativa, essencialmente, construída “tecendo a teia da intriga” (MOTTA, GUAZINA, 2017, p. 132), está sempre envolvido numa atividade conflituosa, em que visões de mundo entram em disputa pela conquista do espaço público. Contudo, o jornalismo também não pode ser sempre reduzido a uma prática manipulatória a favor da ideologia dominante. Neste sentido, a perspectiva marxista-estruturalista incorre, por influência de uma visão mecanicista e economicista, no equívoco de atribur aos meios de comunicação a única função de reproduzir os interesses da classe dominante, não contemplando, mesmo que eventualmente em situações de crise, a possibilidade de o jornalismo contribuir no processo de mudança e emancipação social. Portanto, o jornalismo não é - como pretende o positivismoum espelho da realidade, nem mesmo uma ferramenta submetida totalmente aos donos do capital – ideia a que se sujeitam as noções marxistas economicistas capitulando diante de uma pretensa onipotência da ideologia burguesa-capitalista.
Na visão althusseriana, os meios de comunicação são aparelhos ideológicos do Estado, cujo papel primordial é perpetuar as relações dominantes de poder por meio da ideologia (ALTHUSSER, 1970). No que se convencionou chamar de “marxismo economicista” (que não se confunde com o pensamento do próprio Marx) acredita-se que a superestrutura - sistema político, intelectual, moral, filosófico -, dentro da qual está o jornalismo, é sempre determinada pelo sistema econômico e pelas condições de produção - infraestrutura. Sendo assim,
os jornalistas seriam profissionais reduzidos à função manipulatória à serviço do capital, sem nenhuma margem de resistência ou autonomia, mesmo que relativa. Pois, no marxismo economicista, existe uma condição pré-determinada e independente da vontade do sujeito, que não pode ser controlada, apenas compreendida (WILLIAMS, 1979).
No entanto, se, conforme Motta (2017), o jornalismo é uma experimentação da realidade em movimento, dinâmica e sujeita a transformações de sentido, então ele é mais que mero instrumento de manipulação, mas um mediador e até mesmo participante ativo na disputa simbólica das classes hegemônicas e contra-hegemônicas. Se toda mobilização social se dá à nível da linguagem, o jornalismo - e o jornalista - é uma ferramenta essencial de estabelecimento de novas formas sociais de vida. Se constituindo, assim, como uma atividade de compartilhamento intersubjetivo de significados, que estabelece configurações de mundo provisórias que, após novas tensões e conflitos, são substituídas por outras configurações.
O jornalismo e a comunicação midiática são instâncias de estabelecimento de consensos intersubjetivos. O agir comunicativo, na terminologia habermasiana, valida pretensões de verdade que são reconhecidas pelos sujeitos e servem de base para o agir comum. As estruturas normativas - nas quais se inclui o jornalismo - não obedecem ao desenvolvimento do processo de produção; possuem uma autonomia, uma “história interna” (HABERMAS, 1983). Apesar de coações e distorções a favor da classe dominante serem frequentes, existem possibilidades de mudanças sociais efetivas por via comunicativa.
A autoridade do público e a deontologia jornalística, por exemplo, são fatores de pressão externa e interna à atividade dentro das empresas de comunicação. O jornalismo, segundo o modelo pragmático de Manuel Chaparro (1993), sofre interferência de atores sociais de diversas esferas, abertas em três polos de interação: a sociedade, que normatiza princípios, costumes, razões éticas e morais; a atualidade, representada pelo que acontece e por aquilo que as pessoas querem dizer e saber; e a recepção ativa, formada por expectativas e pers-
pectivas do outro (incluindo as expectativas do público em relação ao cumprimento da função social e ética do jornalismo na sociedade). Em suma, a intersubjetividade faz do jornalismo uma atividade em processo constante de negociação de interesses. As transformações sociais, os progressos, as mudanças nas formas de funcionamento da sociedade acompanham, portanto, mudanças que se dão a nível comunicativo. A teoria do agir comunicativo de Habermas eleva a comunicação - e inserida nela, a atividade jornalística - a um patamar privilegiado na perspectiva dialética materialista histórica da realidade. No entanto, a defesa de uma perspectiva marxista da história tendo como eixo a comunicação não significa um abandono da ênfase na reprodução material da vida. “A transição de um paradigma ligado à produção para um paradigma ligado à comunicação, que advogo, significa naturalmente que a teoria crítica da sociedade não precisa se fiar mais nos conteúdos normativos do modelo expressivista da alienação e reapropriação de forças essenciais” (HABERMAS, 1987, p. 94)
Preferimos, ao rejeitar um determinismo exagerado, acreditar no jornalismo como o lugar das contradições, assim como Raymond Williams (1979) que reconhece os limites e pressões exercidos por uma “determinação” que foge do controle do sujeito - no caso, o jornalista, que não trabalha em liberdade absoluta nos meios de comunicação comerciais -, mas que defende a própria “infraestrutura” como o âmbito das relações em movimento, contraditórias e dinâmicas. A “superestrutura” não seria, assim, um conteúdo (apenas) refletido, reproduzido e dependente dessa instância determinista. Assim corrobora Habermas (1987), ao defender que o materialismo enquanto abordagem teórica deve explicar a formação social particular e entendê-la como transitória:
Entendi ‘materialismo’ no sentido marxista como uma abordagem teórica que não simplesmente afirma a dependência da superestrutura em relação à base, do mundo da vida em relação aos imperativos do processo de acumulação, como uma constante ontológica, mas ao mesmo tempo a explica e denuncia como função latente de uma formação social particular e historicamente transitória (HABERMAS, 1987, p. 94).
A retrospectiva otimista que Habermas (1987, p. 99) faz em relação aos últimos 200 anos de história da Europa e da América, “apesar de todas as catástrofes”, identificando avanços no processo civilizatório por conta dos “movimentos de libertação nacional, (...) nos movimentos de trabalhadores, no atual feminismo, nas revoltas culturais, nas formas de resistência ecológica ou pacifista”, não se pode esquecer, a despeito dos prejuízos causados à democracia deliberativa pela comunicação sistematicamente distorcida, que o jornalismo tem participado neste processo com uma contribuição significativa para conquista de mudança social e emancipação das estigmatizações e repressões impostas pela estrutura de poder.
Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3. ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Annablume, 2002
BREED, Warren. Controle social na redação: Uma análise funcional. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.
CHAPARRO, Manuel. Pragmática do jornalismo: buscas práticas para uma teoria da ação jornalística. São Paulo: Summus, 1994.
HABERMAS, Jurgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
___________. Um Perfil Filosófico-Político: Entrevista com Jurgen Habermas. São Paulo: Novos Estudos CEBRAP, nº 18, setembro de 1987.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Narrativas jornalísticas e conhecimento de mundo: representação, apresentação ou experimentação da realidade? In: PEREIRA, Fábio; MOURA, Dione; ADGHIRNI, Zélia (Orgs). Jornalismo e Sociedade: Teorias e Metodologias. Florianópolis: Insular, 2017.
___________; GUAZINA, Liziane. O conflito como categoria estruturante da narrativa política: o caso do Jornal Nacional. Brazilian Journalism Research, volume 6, número 1, 2010, Sociedade Brasileira de Pesquisa rm Jonalismo (SBPJor).
SOLOSKI, John. O Jornalista e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.
TUCHMAN, Gaye. A objetividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Marya Edwarda Lapenda é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM/UFPE).
O Dilema do Crescimento Econômico
Antonio JucáOs pontos condutores deste texto são, primeiro, a problemática socioambiental do crescimento econômico; depois aborda-se seus condicionantes locais e globais, sociais e ambientais; a seguir, indaga-se se a recuperação e a regeneração permitiriam o desenvolvimento?
Definindo o Dilema
OCrescimento
Econômico é associado ao crescimento do PIB, independentemente da questão distributiva, qualitativa e ambiental. Em geral não se opera a dicotomia entre crescimento e desenvolvimento e tal crescimento envolve alguma forma de degradação ambiental, “crescimento significa sempre, irrefutavelmente, alguma forma de degradação do meio ambiente, de perda física” (GEORGESCU-ROEGEN, 1974 apud CAVALCANTI, 2001, p.25).
Em ciência, a afirmativa de irrefutabilidade leva sempre a polêmicas e a quebra de paradigmas recai muitas vezes sobre afirmações tidas como irrefutáveis, mesmo que isto seja circunstanciado no lugar de simplesmente negado. A degradação se insere em ciclos retroativos de desorganização-organização, o que não é em geral observado.
O desenvolvimento, o crescimento e a diversificação das espécies atuam sobre os ambientes moldando-os, estabelecendo trocas mutuamente benéficas e reforçando a resiliência dos ecossistemas e paisagens. A degradação de uns é o crescimento de outros, processos no mundo biótico e no mundo abiótico. Assim, o crescimento pode não significar necessariamente degradação, mas até o contrário. Deixa-se, no entanto, a questão relevante: o crescimento do PIB sem limite vem para atender às necessidades sociais?
As necessidades sociais podem ser
básicas como em saúde, educação e habitação, mas podem ser criadas, serem consumistas, artificiais e tomadas como prosperidade ao custo do trabalho de pessoas e do trabalho da natureza, ou seja, bens naturais e alheios. A questão da prosperidade é associada à acumulação de riquezas ou acesso a bens e serviços que, do ponto de vista ecológico, devem se articular com os processos naturais. Segundo Binswanger: “desenvolvimento sustentável significa qualificar o crescimento e reconciliar o desenvolvimento econômico com a necessidade de se preservar o meio ambiente” (BINSWANGER, 2001, p.41).
A luta pela natureza — contra a depleção, a poluição, a degradação e as perturbações ambientais - não é alcançada apenas com novas soluções técnicas. Moscovici (2007) aponta para o crescimento populacional e da produção que implicam em esgotamento de recursos finitos, mas não concebe qualquer alternativa sistêmica recursiva e pró-natureza. É notável que desde 1972, Moscovici já escrevera a “Sociedade contra a Natureza” e que esta obra serviu, inclusive, de inspiração ao ecofeminismo. Realizou a crítica ao consumismo capitalista e ao produtivismo socialista e, em um sentido mais epistemológico, colocou a necessidade de descompartimentar o conhecimento, que a teoria da complexidade desenvolve.
Em síntese, isto consiste em questionar o progresso científico enquanto apolítico, ou seja, desde que este progresso vem a devir da política tecnológica, onde se questiona seu direcionamento associado à questão do crescimento econômico, como na energia nuclear (embora muitos físicos a consideram segura) para a geração de energia, do uso de sementes transgênicas e venenos na agricultura e outras que são consideradas tecnologias, em certos aspectos,
perturbações para a vida na biosfera, como hoje a conhecemos. Segundo Moscovici, o que nos informa a história natural é que o crescimento sem reconhecimento de limites, ou descontextualizado, desarticulado, contra-natureza, finda por se colapsar.
Os economistas ecológicos argumentam que a qualidade de vida decresce, a partir de certo ponto, com o crescimento do PIB (DALY, 2001). Contudo, tanto as economias socialistas quanto capitalistas almejam o crescimento contínuo, que faz parte da sustentação política, econômica e geopolítica, enquanto os ecologistas apontam para a melhoria do bem viver por um crescimento qualitativo.
Aqui, Moscovici, se aproxima da proposta de Oswald de Andrade (com a antropofagia cultural), Porto-Gonçalves (com a colonialidade) ou mesmo Joaquim Nabuco, quando fala da reciclagem de despejos culturais, sobre o passado que continua portador de vida (diria: vivo, ou passível de renascimento conforme as circunstâncias) e seu contato nos é necessário (diria: e seu reconhecimento nos é fundamental).
Há possibilidade de escolhas, inclusive de não submissão ao progresso associado ao crescimento. Todavia, há a crença de que no caráter ilimitado de resposta do progresso técnico-científico aos problemas (que ele mesmo gera), como se este fosse apolítico e não dependesse de interesses de poder e riqueza. Neste ponto pode-se colocar a tese de que não é preciso ser contra o progresso, mas qualificá-lo ambientalmente, por meio de uma política científica e tecnológica adequada.
Fica implícito que, mesmo para aqueles que necessitam de crescimento por necessidades básicas, este deva se dar no sentido da redução das desigualdades e com a requalificação pró-natureza do mesmo. Associar liberdade ao aumento quantitativo da oferta de bens na sociedade industrial é uma limitação
efêmera.
Neste contexto, a centralidade e importância da economia perde importância por seu antropocentrismo patológico. A consideração de que os ecologistas são inimigos do progresso confunde qualidade com quantidade e resulta de uma associação biunívoca entre progresso e crescimento econômico sem contextualização social e ambiental, gerando o crescimento auto-destrutivo, o culto ao consumismo nas economias construídas para o consumo de “gadgets”, inutilidades descartáveis.
Para alguns economistas políticos, o desenvolvimento associado ao crescimento econômico é considerado uma contradição, por aumentar a pressão sobre os bens e processos naturais. Contudo, considerando as necessidades sociais básicas, não há como dispensar o crescimento econômico, onde isto é mister.
Pelo exposto, o dilema ambiental do crescimento econômico se define: por necessidade social de crescimento-distribuição de bens e serviços; que pode significar pressão sobre os ambientes, ou perturbação ambiental, mas não necessariamente.
As estratégias de contorno do Dilema do Crescimento Econômico, como a-crescimento - alguns decrescem para que outros possam crescer -, sobre o que se observa como dificuldade política e sistêmica. Quem desenvolveria tal política, implementaria e coordenaria tais ações? Qual seria seu balanço em termos de emissões, biodiversidade e outros indicadores ambientais? Pode-se ainda associar crescimento econômico à recuperação e à regeneração ambiental e, ainda assim, quem coordenaria tal política? Qual o balanço em termos de emissões, biodiversidade e outros indicadores ambientais?
Das condições locais e globais, sociais e ambientais
As evidências apontam que o ca-
minho é buscar a adequação do desenvolvimento local, considerando o global, tendo em vista questões sociais e ambientais. As formas de encaminhar este processo envolvem uma coordenação sofisticada em várias escalas e um desenvolvimento tecnológico próprio que envolve: a produção de energia limpa; a logística reversa (a produção pensada para a reutilização de seus resíduos); a institucionalização da governança (para conhecimento, adequação das políticas e exame das realidades).
As formas de encaminhar este processo envolvem uma coordenação sofisticada em várias escalas e um desenvolvimento tecnológico próprio que, por sua vez, envolve a educação ambiental (para o desenvolvimento da consciência ambiental coletiva), a luta política e o planejamento integrado de longo prazo.
O planejamento integrado de longo prazo pressupõe a articulação de várias disciplinas do conhecimento para o desenvolvimento de políticas, planos, programas e projetos socioambientais, seus desdobramentos em várias escalas, culminando na institucionalização da gestão planejada, em consonância com a institucionalização da governança.
A recuperação e a regeneração exigiriam para seu desenvolvimento a substituição de combustíveis fósseis; a economia da floresta em pé; a recuperação de áreas degradadas; o reflorestamento associado à pecuária adensada; a mudança de hábitos alimentares; o uso de plásticos biodegradáveis; o saneamento básico e ambiental; o planejamento urbano e da paisagem concomitante a desconcentração das redes urbanas.
Referências
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MOSCOVICI, Serge. Natureza: para pensar a ecologia. Rio de Janeiro: Mauad X: Instituto
Gaia, 2007.
PERREAULT, Tom; BRIDGE, Gavin and MCCARTHY, James (editors). Therout ledge handbook of political ecology, New York: Routledge, 2015.
PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A ECOLOGIA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA: reapropriação social da natureza e reinvenção dos territórios. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis/UFSC, Vol. 9, Nº1, Jan/Jun 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5007/ 1807-1384.2012v9n1p16 Antônio