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Ser mulher em Moçambique
Mônica de Lourdes Neves Santana
Comecemos esse texto tecendo comentários sobre a situação em Moçambique. Ele é o nono país menos desenvolvido do mundo no valor de 0,456 antes da pandemia da Covid-19, estando na posição 181 no Índice de Desenvolvimento Humano, abaixo da África subsaariana (0,547), segundo as Nações Unidas (OBSERVADOR, 2020).
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Um país que tenta se livrar das desigualdades sociais, segundo as organizações dos direitos das mulheres, com implementação e promoção de ações públicas de igualdade, como, por exemplo, acesso a cargos públicos (PNUD, 2013, p.162). Neste sentido, apesar da grande representação de mulheres no legislativo e executivo, parece que a realidade não corresponde às necessidades repleta de “[...] insensibilidade e/ou pouca capacidade política em definir estratégias de defesa dos direitos das mulheres” (OSÓRIO, 2010, p. 60).
Se no início de tudo a mulher possuía lugar central por ser aquela que tem a capacidade de gerar uma vida, esse privilégio vai por água abaixo e sofre uma grande reviravolta com a revolução industrial e o surgimento do capitalismo. A partir desses acontecimentos, a África se tornou um lugar de exploração dos recursos materiais e humanos até a exaustão (SANTOS, 2016). Na sociedade capitalista atual, o modelo predatório é retratado como o mal necessário em que se privilegia a forma de viver, enquanto que a vida das pessoas e suas emoções são descartadas como mercadorias.
De agora em diante, a vida das mulheres não segue o mesmo ritmo, ela é cercada de opressão, violência e ameaças de morte proveniente da dominação de homens poderosos, detentores de riquezas e de conhecimento, se posicionando acima de homens comuns e mulheres (PEREIRA, 2010). O que prevalece é a reprodução de ideias de inferioridade sobre grupos baseados nas diferenças biológicas e culturais.
Mediante este cenário, trago questões perturbadoras, como: que desenvolvimento seria esse que traz sofrimento e impactos negativos para as mulheres moçambicanas? Como é ser mulher em Moçambique? É importante e necessário problematizar essas vidas, tendo em vista que, apesar de trabalharem muitas vezes mais que os homens, são as que menos conseguem ser remuneradas. Concentram os menores salários, incluindo os serviços prestados e não pagos. Ademais, sofrem violência por misoginia, em que são mortas por seus parceiros ou parentes (SANTOS, 2016).
Segundo Osório (2010), a participação das mulheres nos espaços públicos se localiza em meio a ambiguidades de um discurso e uma prática incoerente. Temos de um lado um discurso de incentivo, mas as ações seguem na contramão, com uma linha de pensamento voltada para a hierarquia em função do sexo.
O presidente Samora Machel, em 1976, realizou um discurso na abertura da II Conferência da Organização da Mulher Moçambicana, o que nos daria a entender seu apoio à causa: “a mulher moçambicana esteve também nos campos de batalha contra ‘o colonizador’, foram as mulheres que não mediram esforços trabalhando nas fábricas, plantações, hospitais” (MACHEL, 1976, p. 6). Mas na verdade o que se vê é que, “ao mesmo tempo em que se promove o acesso das raparigas à educação, se ignora os mecanismos que estruturam as relações patriarcais” (OSÓRIO, 2010, p. 18). Existe a ideia da hierarquização entre homens e mulheres com papeis predeterminados, como nas situações de vulnerabilidade, violência, na purificação das viúvas e nos casamentos entre homens velhos e crianças e/ou adolescentes.
O Fundo de População das Nações Unidas, UNFPA mostrou em 2011 a difícil situação das mulheres em relação ao número de partos entre adolescentes. “Estas frequentemente são casadas com homens mais velhos que talvez tenham tido inúmeras parceiras, com altas chances de contrair infecções pelo HIV” (UNFPA, 2011, p. 17).
A Lei de Família, aprovada em 2004, proibiu que as meninas se casassem antes dos 16 anos, mas ironicamente são os pais que concedem o casamento das filhas o mais rápido possível. E, quando a análise chega na zona rural, a situação só piora, pois as
meninas não têm acesso à informação de contraceptivos (UNFPA, 2011). Acrescente-se o tabu que abafa o assunto afetando a qualidade de vida e trazendo como consequência a gravidez precoce e contaminações por HIV.
Com a ausência e descaso do Estado na resolução dessas e outras questões, são as ONGs que atuam no desenvolvimento de políticas frente à violência contra a mulher. O bom de tudo isso é a possibilidade de a mulher ter algum grau de autonomia independente do homem graças à criação das cooperativas sob a coordenação da Organização das Mulheres Moçambicanas - OMM, e a União Geral das Cooperativas – UGC, com o dever de assessorar e apoiar essas cooperativas. Com a capacidade de organização das instituições, as mulheres ampliaram a capacidade técnica para outros ofícios, como gestoras e contadoras. Algumas cooperativistas reconhecem a possibilidade de maior ganho financeiro. Diz-se que as mulheres são as maiores e melhores poupadoras da região sul de Moçambique.
No entanto, surge um grande obstáculo para o fortalecimento e manutenção das cooperativas: a ausência de jovens como um sinal de que tudo pode estar com os dias contados. Em alguns relatos, diz-se que os jovens só querem fazer trabalhos de segurança ou de criação de frangos por acreditarem que o campo seja um lugar de gente sem instrução. Existe a ideia de que o trabalho no campo é inferior, “coisa de velho e de quem não estudou” (SANTOS, 2016, p. 134).
Sobre a divisão do trabalho doméstico, os maridos nada fazem, não apoiam as esposas no trabalho de campo e as tarefas são divididas com os filhos e filhas. O papel indicado para o casamento é de cuidar, ser responsável pelo bem estar da família, mantê-la em harmonia na forma do Estado moderno. A comunidade, de forma ferrenha, assume o papel de fiscalizar e controlar se a mulher está respeitando o marido (SANTOS, 2016, p. 147).
Finalmente, em Moçambique a terra representa a existência e sobrevivência para muitas. O fato é que mais de 80% vivem e sobrevivem da terra e são constantemente ameaçadas de morte. Estima-se que pelo menos 90% das mulheres economicamente ativas estão na agricultura. Importante frisar que não existem outras oportunidades de subsistência além do cultivo para viver ou morrer de fome. As mulheres se veem forçadas a trabalhar na agricultura durante a ausência de seus maridos, sobrevivendo em meio a subnutrição, insegurança alimentar, entregues ao destino, desamparadas pelo Estado.
Concluo estas palavras deixando aqui uma realidade a ser resolvida: as terras são destruídas, as comunidades são deixadas sem nada e as mulheres utilizadas como instrumentos de guerra no conflito do país. Em minhas reflexões, acredito que a participação das mulheres na construção da democracia e cidadania em Moçambique é necessária para um Moçambique mais forte e unido pela justiça. Para uma vida de liberdade, dignidade humana e bem-estar coletivo.
Referências
OBSERVADOR. Moçambique é o nono pior no Índice de Desenvolvimento Humano. Disponível em https://observador.pt/2020/12/15/mocambique-e-o-nono-pior-no-indice-de-desenvolvimento-humano/. Disponibilidade:03/02/2022. CAPIRE. Feminismo em Moçambique: pela terra,
liberdade, sororidade e uma vida livre de violên-
cia, publicado em https://capiremov.org/analises/feminismo-em-mocambique/. Acesso em: 06/01/2022. MACHEL, S. Discurso do Presidente na II Conferência da Organização da Mulher Moçambicana. República Popular de Moçambique. 1976. OSÓRIO, C. Gênero e Democracia: as eleições de 2009 em Moçambique. Maputo: Editora WLSA, 2010. PEREIRA, E. De missangas e catanas: a constru-
ção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verianos, moçambicanos e são-to-
menses. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Língua Portuguesa). Universidade de São Paulo, 2010. PNUD- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório de desenvolvimento Humano – 2013. http://www.pnud.org.br/Noticias.aspx?id=3703.>Acesso em: 03 de fevereiro de 2022. SANTOS, A. D. Mulheres Moçambicanas: Resistência, Associativismo, Feminismo. Tese de Doutorado. Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. PUC. São Paulo. 2016 UNFPA, Fundo de População das Nações Unidas. Relatório sobre a situação da População Mundial- 2011. Acesso em : 04/02/2022.
Mônica de Lourdes Neves Santana é pós-doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.