7 minute read
Cidades Para Quem?
Katarina Moraes
Lembro o dia em que fui à Rua da Aurora, um dos principais cartões-postais do Recife, após a inauguração de parte da primeira etapa de revitalização, no final de 2021. O lugar, que já tinha sido cenário de várias de minhas reportagens sobre abandono no espaço público, estava, enfim, ocupado a partir da simples instalação de bancos e mesas de madeira e de certa divulgação nas redes sociais. A empolgação inicial, no entanto, foi indo embora enquanto eu olhava ao redor e percebia que, aparentemente, todos os presentes pertenciam a classes sociais semelhantes e à raça dominante. Onde estavam os que mais necessitavam de lugares de convivência gratuita como aqueles?
Advertisement
Pela via ter uma baixa cobertura de transporte público, com apenas quatro linhas passando pela praça, quem precisa se deslocar pela cidade de ônibus não tem fácil acesso a, talvez, uma das mais belas vistas do Rio Capibaribe, tampouco quem tem baixo poder de compra, já que os imóveis em suas margens custam acima de R$ 1 milhão desde que sofreu uma intensa valorização imobiliária na última década. Entre 2010 e 2015, o tinir dos martelos se sobrepôs à voz de urbanistas, que apontavam que as construções não integravam as comunidades do entorno. Não adiantou. À época, o argumento era que a região estava esvaziada e precisava ser reabitada, e que, pior do que estava, não ficaria.
Aquele cenário de esvaziamento na Rua da Aurora pode ser comparado à situação atual dos bairros do Recife, de São José e Santo Antônio, no Centro da cidade, alvos do Programa Recentro, da Prefeitura do Recife, que estuda como pode reavivá-los turística e culturalmente, além de trazer de volta o caráter habitacional e comercial que foi perdido. Uma iniciativa que é louvada por diferentes atores, já que a região passa por um processo de abandono desde 1964, a partir da construção da Avenida Dantas Barreto, e acentuado em 1975, com as enchentes que causaram uma migração para o então pacato bairro de Boa Viagem, na Zona Sul, mas que nos traz mais uma pergunta: será revitalizada para quem?
Enquanto a classe média esvaziou o Centro por escolha, a miséria o ocupou por necessidade, fazendo com que pessoas em situação de rua passassem a viver em suas calçadas. Principalmente, a partir da chegada da pandemia da Covid-19, quando o desemprego bateu recorde no País, fazendo com que, inclusive, o poder municipal iniciasse uma nova contagem dessa população no último ano, ainda não divulgada. Além disso, o último Plano Local de Habitação de Interesse Social da Prefeitura, de 2017 (Conselho da Cidade, 2019), divulgou que o déficit por moradia da cidade era de 71.160 casas. Entre esse número, 4.725 casas eram consideradas precárias, rústicas ou improvisadas.
Essa emergência generalizada causou, nos últimos anos, o crescimento das ocupações pela cidade — embora não haja um levantamento específico desse número, a própria Prefeitura admitiu o aumento em entrevista (JC, 2021a). Novas delas foram formadas por centenas de famílias sem-teto, que passaram a viver às margens da BR101, na Iputinga, na Zona Oeste; em terreno no bairro de Boa Viagem e em edifícios em desuso no Centro do Recife, como o do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em Santo Antônio; dos Correios, no Bairro do Recife; e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Boa Vista.
Mesmo assim, o projeto apresentado para o Centro não contém qualquer planejamento já estruturado que direcione por quem ele será ocupado, ainda que haja uma crescente demanda por moradia e lazer na cidade. Até então, a promessa de que haverá mistura de diferentes classes sociais está nos planos das palavras da Prefeitura do Recife, por meio da secretária do Gabinete pelo Centro, Ana Paula Vilaça (JC, 2021b), e de um estudo de Parceria Público-Privada (PPP) para habitação social na região, com o objetivo de ofertar, no mínimo, 450 unidades habitacionais, prioritariamente na área central, voltadas para famílias com renda máxima de três salários mínimos. Ainda não está confirmado se estas essas pessoas seriam abrigadas em imóveis que já existem ou em novas edificações, embora a ociosidade de prédios seja um dos grandes calos dos três bairros históricos. É o que traz o estudo Moradia no Centro: da reflexão à ação, um levantamento de imóveis vazios e ociosos no bairro de Santo Antônio (2018), feito pela ONG Habitat Brasil, mostrando que, só no Bairro de Santo Antônio, 37,5% dos imóveis estavam totalmente desocupados ou com menos da metade de sua área ocupada de 112 analisados. Só neles, poderiam ser implantadas 2.106 unidades de habitação popular. A necessidade de trazer e fincar a classe trabalhadora no Centro não é só uma questão social, mas urbanística — sendo fundamental para o funcionamento pleno de uma cidade. “Empurrar” os pobres para áreas periféricas (e, quando digo periféricas, refiro-me à distância delas do Centro) pode impactar não só na rotina deles, que vão
enfrentar percursos mais longos para chegar ao trabalho, pondo dificuldades à mobilidade como um todo, entre outros pontos, mas gerar até 6,3% de aumento no preço dos aluguéis de uma cidade, segundo estudo (Lima, 2018) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Na contramão, desde o lançamento do Recentro, em novembro de 2021, os incentivos fiscais estão em vigor para as imobiliárias, colocando a região histórica da cidade sob olhares de construtoras e os mais pobres sob perigo da expulsão por um eventual aumento do custo de vida. Um exemplo é a Comunidade do Pilar, considerada uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis) desde o último Plano Diretor (Recife, 2021) — que, apesar de, finalmente, ter dado a ela esse título, afrouxou a proteção às Zeis, que, agora, podem ser modificadas caso haja a necessidade da implantação de uma obra de interesse público.
Outra discussão a ser feita é sobre os conjuntos arquitetônicos que não estão sob proteção na região, que é considerada uma Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural (ZEPH). A dissertação da arquiteta e urbanista da UFPE Iana Ludermir (2018) mostra que há áreas de terrenos, galpões e postos de abastecimento que, legalmente, podem abrigar novas torres, o que seria semelhante ao “boom” que aconteceu na Rua da Aurora. É o caso da Rua Imperial e suas edificações construídas na transição entre os séculos XIX e XX. Legalmente, os diferentes estilos que a compõem, vindo do Art déco a arquitetônicos modernos, poderiam ser completamente destruídos — e ainda não foi apresentado um plano para mantê-los.
Quando perguntada sobre quais medidas tem tomado para que a área protegida da cidade não seja estruturalmente modificada, a gestão respondeu que o Instituto da Cidade Pelópidas Silveira (ICPS) vem elaborando fichas técnicas com parâmetros urbanísticos a serem observados para as construtoras que tenham interesse em construir ou revitalizar imóveis da região, levando em consideração as características do conjunto edificado por quadra, e que, quando finalizadas, serão disponibilizadas ao público através do Portal de Licenciamento Urbanístico.
Acredito que nem só um recifense discorde da necessidade de dar novos ares ao centro histórico da cidade. Por isso, o Recentro é uma iniciativa comemorada; mas, antes mesmo de abrir a região para a iniciativa privada, seu esboço precisava ter sido construído sobre a urgência da redução do déficit habitacional e da preservação das características arquitetônicas de seus bairros para, então, reocupá-los — não somente para quem pode arcar com uma moradia que ultrapassa a casa do milhão e para os turistas, como aconteceu na Rua da Aurora em seu processo de gentrificação, mas sim sob a premissa de que cidades, segundo a grande urbanista Jane Jacobs, “têm a ca-
pacidade de prover algo para todos, somente porque, e somente quando, são
criadas por todos nós”.
Referências
Bernardino, Iana Ludermir. Mercado imobiliário residencial em áreas centrais tradicionais: produção de novas espacialidades e obsolescência imobiliária na definição de submercados residenciais. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): Recife, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/32344/1/TESE%20Iana%20Ludermir%20Ber nandino.pdf Habitat para a Humanidade Brasil. Moradia no Centro: da reflexão à ação, um levantamento de imóveis vazios e ociosos no bairro de Santo Antônio. Recife, 2018. Disponível em: https://habitatbrasil.org.br/wp-content/uploads/2018/09/MORADIA-NO-CENTRO_ HABITAT-B RASIL.pdf Lima, Ricardo Carvalho de Andrade. Patterns of Land Use, Zoning and Economies of Scale in Cities: Three Essays on Urban Economics for Brazil. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): Recife, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/32294/1/TESE%20Ricardo%20Carvalho%20 de%20Andrade%20Lima.pdf Moraes, Lucas. Recife vira cidade das ocupações, com aluguel caro, pobre sem renda e falta de política habitacional. JC, Recife, 24 de outubro de 2021a. Economia. Disponível em: https://jc.ne10.uol.com. br/economia/2021/10/13616374-recife-vira-cidade-das-ocupacoes-co m-aluguel-caro-pobre-sem-renda-e-falta-de-politica-habitacional.html. Acesso em 5 de março de 2022. Moraes, Katarina. Novo gabinete da Prefeitura do Recife é criado para revitalizar o Centro, mas acende alerta sobre como atuará. JC, Recife, 18 de novembro de 2021b. Pernambuco. Disponível em: https://jc.ne10. uol.com.br/pernambuco/2021/11/13628271-novo-gabinete-da-prefeitura-do-recife-e-criado-para-revitalizar-o-centro-mas-acende-alerta-sobre-como-sera-sua-atuacao.html. Acesso em 5 de março de 2022.
Katarina de Moraes é jornalista formada pela Universiade Federal de Pernambuco (UFPE) e repórter de urbanismo do Jornal do Commercio.