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Guerra Constante e Intensa que Permanece Ignorada pela Mídia
Susana e Benjamin Prizendt
Atualmente, a situação social e ambiental do nosso próprio país é extremamente problemática – o que já daria material para muitos artigos neste espaço. Mas não há como deixar de comentar o tema do momento: a Guerra Rússia X Ucrânia ou Rússia X OTAN + EUA, já que ela escancarou a insustentabilidade do modelo produtivo que domina os nossos dias. Embora a mídia brasileira aborde o conflito a partir do ponto de vista do agronegócio e do mercado, ou seja, trata da dificuldade de importarmos fertilizantes da Rússia e do aumento no preço do petróleo, este não será nosso foco aqui. Isto porque, para a agroecologia, existem outras formas de conquistar e garantir a fertilidade do solo e sabemos que a importação de insumos agroquímicos traz consequências bem danosas ao país. Além disso, defendemos os circuitos curtos de comercialização, valorizando a produção local e o contato direto entre quem vende e quem compra, evitando o uso de combustíveis para os imensos deslocamentos feitos pelos caminhões. Nosso foco está na imensa exploração midiática que vem sendo feita, apresentando o conflito como uma calamidade e um perigo gravíssimos à humanidade (o que não discordamos), enquanto se cala em relação a uma outra guerra, antiga e contínua, que vem ocorrendo “debaixo de nossos narizes”. Artistas, escritores e filósofos têm a capacidade de descrever cenários com até séculos de antecipação. Leonardo da Vinci já desenhara um projeto de helicóptero; telas planas já apareciam no seriado “Jornada nas Estrelas”, bem como relógios com recursos de informática já se destacavam com James Bond. Entretanto, tivemos que esperar séculos, na história da humanidade, para que a palavra ecologia ganhasse vida (apesar de continuar até hoje sem ter o devido espaço na grande mídia). A demora tem sido ainda maior para perceber a extensão dos desequilíbrios que nosso modo de vida produz sobre esse ser vivo que é Gaia. Muitas vezes consideramos, incorretamente, como “acidentes”, as manifestações decorrentes de nossas (ilusórias) soluções e das ações tecnológicas (mais do que questionáveis) que criamos para promover o desenvolvimento humano. A insistência no uso de combustíveis fósseis e seu impacto no aquecimento global são provas de como fortíssimos interesses econômicos prevalecem sobre o bem comum, a saúde de nossa casa: o planeta Terra - a única casa que pode nos abrigar, apesar da busca desenfreada que os bilionários vêm fazendo para tentar colonizar outros locais nesse imenso Universo. A destruição da biodiversidade tem superado todas as estimativas feitas nos últimos tempos. Um estudo atual promovido por cientistas da Universidade Nacional Autônoma do México e das universidades estadunidenses de Stanford, de Princeton e da California apresenta fortes argumentos para demonstrar que a Sexta Extinção em Massa já começou. As cinco anteriores teriam ocorrido nos últimos 450 milhões de anos, com o extermínio de até 75% das espécies, em curtos espaços de tempo. Entretanto, a atual tem a característica de ser impulsionada pela atividade humana e pode atingir 41 % de todas espécies de anfíbios e 26% de todos os mamíferos (dados da União Internacional para a Conservação da Natureza - IUCN na sigla em inglês). Segundo os autores, “a taxa média de perda de espécies de vertebrados no último século é até 114 vezes maior do que seria sem a atividade humana”. A Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção dobrou de tamanho nos últimos oito anos e ganhou mais de 700 novos animais, revelando que a monocultura e a criação de gado têm feito um estrago imenso nos nossos biomas. A própria Amazônia já está chegando a um ponto sem volta, como revela um estudo publicado no periódico Nature Climate Change há alguns dias atrás. Um dos efeitos do desequilíbrio gerado na natureza tem sido a atual sequência de epidemias que rapidamente atingem todos os países do globo, como consequência da destruição de habitats naturais, consumo de animais silvestres, criação intensiva de animais domésticos e mudanças climáticas. Com essas atividades, deslocamos vírus que antes não nos atingiam, pois estavam imer-
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sos na biodiversidade e estáveis em seus hospedeiros. É o caso do SARS Covid que saltou de morcegos para humanos e que levou à morte mais pessoas do que muitas guerras militares. Como explica o pesquisador Allan Carlos Pscheidt, doutor em biodiversidade vegetal e meio ambiente, professor das Faculdades Metropolitanas Unidas, em São Paulo: “o vírus (da covid-19) ocorre naturalmente no planeta (...) vive no morcego, seu hospedeiro. Ele evolui junto com o morcego, naquele ambiente isolado. Quando ele chega ao ser humano, não dá tempo para o organismo humano se adaptar a esse vírus e temos esse surto. O vírus acaba tendo uma ação muito pesada no organismo humano porque a gente não tem tempo necessário para criar um sistema imunológico para se proteger.” Então, o que mais é preciso ocorrer para os seres humanos perceberem que estão sendo protagonistas de uma guerra contínua e avassaladora contra a vida? Que estamos disparando nossas armas, em sua maior parte silenciosas, contra a natureza que nos permite existir? Já destruímos grande parte dos ecossistemas mundiais e nossas “bombas” diárias seguem eliminando o que ainda resta. Ainda não percebemos que nesta guerra suicida, quanto mais atacamos, mais somos atingidos pelos nossos próprios ataques. Somos nossos próprios inimigos. Frente ao clamor geral (muitas vezes repleto de hipocrisia) para que o conflito na Ucrânia cesse e a tal “paz” que reinava até então seja restabelecida, vamos seguindo calados em relação aos combates permanentes que travamos contra a biodiversidade que sustenta a vida na Terra. Sim, queremos paz na Ucrânia, bem como em todos os outros países, sobretudo porque quem sofre com as guerras é o povo e não quem as decreta. Mas há uma outra paz, mais ampla e complexa, que precisamos começar a construir ou os conflitos por recursos naturais vão gerar cada vez mais guerras, como a que a mídia tem alardeado aos quatro ventos. Para que exista a chance de estabelecermos algum tipo de paz no planeta, é necessário rever nosso modelo produtivo e é aqui que a Agroecologia se faz essencial. Não basta mais interromper o processo destrutivo que vem levando à extinção de espécies da fauna e da flora do mundo todo, é necessário regenerar os ecossistemas. Somente uma agricultura de base agroecológica é capaz de promover a regeneração do solo, estimular a biodiversidade, recuperar o sistema hídrico e, o que é vital para a humanidade: produzir alimentos saudáveis e nutritivos para toda a população planetária. Sim, a guerra na Ucrânia é abominável, assim como as demais guerras que têm ocorrido e estão ocorrendo neste momento em diversas regiões do mundo, impulsionadas pela disputa de poder e pela ganância das grandes potências imperialistas e suas indústrias bélicas, sobretudo a dos EUA. É verdade que elas têm impacto econômico em todo o globo, ampliando a fome e a miséria onde ambas já causam sofrimento, e que corremos o risco de uma dessas guerras caminhar para um conflito nuclear. Mas é preciso agir urgentemente contra a guerra contínua que estamos travando contra a natureza, antes que, entre as espécies eliminadas nesta sexta extinção em massa, esteja incluída a própria espécie humana. Que a paz possa ser semeada e envolver todos os seres que habitam nossa Gaia, permitindo que a Vida siga radiante em seu constante ciclo de renovação.
Susana e Benjamin Prizendt são arquitetos urbanistas, atuando em projetos socioambientais e políticas públicas na área agroalimentar e integrando a Campanha Permanente Contra Agrotóxicos e Pela Vida do Movimento Urbano de Agroecologia – Muda e da Articulação Paulista de Agroecologia. E fazem parte também da Rede Josué de Castro de Soberania Alimentar.