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Cidades Vulneráveis
Ana Carolina E. Polessa da Silva
Nos últimos 20 anos, passamos a acompanhar a difusão de variadas propostas relacionadas às smart cities, partindo de iniciativas de governos, empresas privadas, institutos de pesquisa e organizações internacionais, com a promessa de tornar as cidades mais eficientes, sustentáveis e competitivas.
A principal característica de uma smart city é gerar um número expressivo de dados e metadados que são produzidos não apenas por pessoas, mas também por coisas, como carros conectados, bueiros inteligentes, semáforos, etc; e as informações geradas, ficam armazenadas em nuvem ou névoa, reduzindo não apenas os gastos no setor de Tecnologia da Informação, mas, quando bem implementados, se tornariam facilitadores em tomada de decisões mais direcionadas e para uma melhor administração dos recursos urbanos.
Mas como a nossa privacidade é afetada nesse contexto? A privacidade foi sistematizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e, desde 1980, há diretrizes relativas à política internacional sobre a proteção da privacidade e dos fluxos transfronteiriços de dados pessoais.
Elas representam um consenso internacional sobre a orientação geral a respeito da coleta e do gerenciamento da informação pessoal. Por exemplo, o usuário tem direito a obter das empresas, descritas como controladoras, confirmações e informações sobre armazenamento ou uso de seus dados pessoais (OCDE; 2013), e essas diretrizes são constantemente atualizadas e ampliadas.
Graças à ascensão das novas tecnologias, a Privacy International, uma ONG britânica fundada em 1990 com o principal objetivo de “monitorar a vigilância e as invasões de privacidades individuais conduzidas por governos e organizações”, ampliou suas diretrizes para um novo conjunto de domínios que engloba tanto a privacidade quanto a vigilância nas cidades inteligentes. Uma das preocupações da Privacy International se refere aos espaços cada vez mais vigiados, o que compromete o anonimato em espaços públicos. Além disso, o amplo uso de dados para tomada de decisões refletiria desigualdades já existentes, uma vez que populações historicamente marginalizadas teriam pouco acesso à tecnologia e o fato de não haver dados suficientes poderia prejudicá-las na tomada de decisões das políticas públicas. (PRIVACY INTERNATIONAL; 2017).
A recolha de dados, principalmente por meio de dispositivos IoT (sigla em inglês para internet das coisas), é essencial para aperfeiçoar os serviços e, muitas vezes, leva a consequências opressivas à nossa privacidade e segurança, não nos oferecendo a opção de não fornecer informações para terceiros para fins de análise (ZUBOFF; 2019).
É importante lembrar o Knowing Capitalism, um conceito difundido por Nigel Thrift em 2005 para denotar uma nova forma de economia global que depende não apenas de tecnologias que geram grandes quantidades de dados digitais, mas também da mercantilização desses dados: uma grande economia, uma vez que sua energia opera através de modos de comunicação. (THRIFT; 2005).
Uma vez que as empresas têm domínio desses dados, somente elas teriam autoridade para apresentar dados digitais gerados rotineiramente por populações como um subproduto das transações das próprias organizações: dados de vendas, listas de discussão ou dados de assinaturas, identificados, muitas vezes, a partir de localização residencial e de padrões de consumo (SAVAGE e BURROWS; 2007). Mas foi Shoshana Zuboff (2019) que buscou desenvolver sua ideia a partir da lacuna existente entre a experiência e os dados, no processo de transformar um em outro. Ela explica que o capitalismo de vigilância funciona como ambos os lados de uma equação: ao mesmo tempo que as tecnologias são projetadas para aprimorar nossa experiência em dados, ainda que quase sempre sem nosso consentimento, muitas vezes, ao nos depararmos com uma rede social ou um artefato tecnológico disponibilizamos nossas experiências de maneira consciente, gerando um arranjo inovador (ZUBOFF; 2019).
A grande questão da IoT está em sua proposta estrutural de ubiquidade e centralização de decisões, pois, muitas vezes, há uma empresa na área de tecnologia desde o projeto até o processamento dos dados (no Rio, por exemplo, o projeto foi desenvolvido pela Cisco e pela IBM Smart City), o que mostra que a vigilância se despersonifica cada vez mais e passa a ser realizada por tecnologias e algoritmos, como se não houvesse nenhuma pessoa por trás.
Na verdade, a visão centralizadora de empresas e organizações que vêm promovendo e moldando os rumos (e objetivos) dessas cidades, com base na recolha de dados de todos os tipos, mas, em especial, nos dados comportamentais e de localização. (IBM; 2009, NYTIMES; 2012).
Essa centralização contribui para a criação de espaços constantemente vigiados por qualquer agência ou empresa, facilitando, por exemplo, abusos aos direitos humanos no que se refere a leis de dados, de transparência e de algoritmos abertos que, muitas vezes, não estão facilmente acessíveis. Dessa maneira, ela gera deficiência na tomada de decisões em áreas que não possuem tal cobertura. (PRIVACY INTERNATIONAL; 2017).
Cheney-Lippold (2017) destaca que vivemos em um mundo imerso em uma rede ubíqua e interconectada, em que as tecnologias que constituem a internet são tecidas em nossas vidas cotidianas e viver sem sua existência nos parece até inimaginável: “Este é o mesmo mundo de uma vigilância onipresente, um mundo onde as mesmas tecnologias ajudaram a gerar uma impressionante rede de infraestruturas governamentais, comerciais e não afiliadas da obsessão e controle em massa” (CHENEY-LIPPOLD; 2017, p. 12).
É possível observar uma mudança dramática na forma que se estruturam e administram as cidades, além de importantes contribuições para o campo da vigilância e da privacidade, averiguando que as cidades inteligentes estão se tornando, acima de tudo, cidades vulneráveis.
Referências
CHENEY-LIPPOLD, J. We Are Data: Algo-
rithms and The Making of Our Digital
Selves. NYU Press, 2017. OCDE. Guidelines on the Protection of
Privacy and Transborder Flows of Per-
sonal Data. 2013. Disponível em: < https://tinyurl.com/y2yytaka > Acesso em: 23 fev. 2019.
PRIVACY INTERNATIONAL. Utopian Vision, Dystopian Reality. 2017. Disponível em: < https://tinyurl.com/y29f6ap6 > Acesso em: 26 dez. 2018.
THRIFT, NIGEL. Knowing Capitalism. London: Sage, 2015. ZUBOFF, SHOSHANA. The Age of Surveillance Capitalism, PublicAffairs, 2019. ____. Big other capitalismo de vigilân-
cia e perspectivas para uma civilização
de informação in Tecnopolíticas da vigilância. Rio de Janeiro, Boitempo, 2019.
Ana Carolina E. Polessa da Silva é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e integrante do Grupo de Modelagem Computacional Aplicada da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).