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Editorial

Heitor Rocha

Aincitação à violência e a ameaça às instituições democráticas, como fazem os milicianos de Bolsonaro, especialmente Daniel Silveira, não passariam de exercício da liberdade de expressão, para quem acredita que é apenas uma questão de legitimação social, caprichosa e meramente simbólica, o cumprimento efetivo das leis e a própria integridade do estado de direito democrático. Nesta atitude, o que realmente importa é a legitimação sistêmica, é o poder (o “manda quem pode, obedece quem tem juízo”) e o dinheiro (afinal, todo mundo seria mercadoria e teria um valor de troca, ou seja, um preço).

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Esta barbárie absolutista fica evidente na arrogante convicção com que Jair Bolsonaro declara que ele é A CONSTITUIÇÃO. Na sua característica ignorância, o atual presidente da República desconhece completamente a história da realeza francesa no final da Idade Média, quando o autoritarismo levou um soberano ao ridículo de declarar ser o próprio Estado e outro a ser guilhotinado, seguindo o mesmo absolutismo renitente diante do irreversível processo histórico de descentração democrática.

Nesta perspectiva, o nível de efetividade e/ou inefetividade no cumprimento das leis parece não ter nenhuma relação com a frequente ameaça que o processo civilizatório sofre da barbárie, quando são considerados engraçados os abusos praticados contra os menores, as mulheres, os negros, os pobres e vulneráveis. A lei é “letra morta”, “para inglês ver”, e funciona como moda, quando umas pegam e outras não, de acordo com a conveniência das elites poderosas.

É preciso se reconhecer que a inefetividade das leis do estado de direito democrático existe em todo mundo, inclusive nas sociedades consideradas mais civilizadas e desenvolvidas culturalmente, como nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e demais países da Europa central, pois é gritante nestes países ricos a falta de igualdade/universalidade jurídica no tratamento conferido não só aos negros, latinos e demais etnias consideradas inferiores, mas também aos pobres de uma maneira geral. Porém, em nenhum outro lugar no mundo além do Brasil o problema da inefetividade do estado de direito democrático é encarado como anedota, como motivo de piada, o que fez com que este fenômeno chegasse a ser denominado por estudiosos de “brasilização”, conferindo ao país este vergonhoso título de campeão na falta de respeito às leis, ou seja, mais conhecido como verdadeiro território de pirataria institucionalizada.

Tudo isso de forma altamente injusta com a maioria da sociedade que é pobre e sobrevive em situação de extrema dificuldade, mas preserva padrão de dignidade e decência, orgulhando-se de pagar suas contas, ao contrário da minoria das elites proprietárias dos latifundiários, financistas e até industriais e comerciantes que constantemente têm suas dívidas perdoadas, lançam mão de expedientes como concordatas e outros meios legais para não pagar seus débitos, têm seus impostos “desonerados” e ainda enviam dinheiro para os paraísos fiscais no estrangeiro, como o ministro Paulo Guedes.

Neste cenário de esvaziamento do significado consentido e partilhado da cidadania nacional, operacionalizado pelos golpes das elites proprietárias em conluio com o Judiciário e a grande mídia, a coesão social torna-se um simulacro, uma armação ideológica em que tudo parece ser possível, sobretudo agora diante da vergonha (pelo menos de alguns) das aberrações cometidas pelo atual presidente. Assim, não parece contradição que precise ser explicada com autocrítica a posição do STF de prender o ex-presidente Lula depois da condenação em segunda instância, quando a Constituição impede isso enquanto houver possibilidade de recurso, para evitar a sua candidatura em 2018. Posteriormente, a validade jurídica desta “condenação” foi anulada pela mesma corte, numa decisão agora corroborada pelo Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

Nesta trama, também é descarado o cinismo com que a grande mídia tenta dissimular sua má consciência pela participação no golpe, mas não consegue esconder sua facciosidade quando tenta minimizar a importância da decisão da ONU de absorver Lula e acusar seu julgamento de evidente perseguição política como tendo um significado apenas simbólico.

Heitor Rocha é Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.

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