Morashá edição 100

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ANO XXV - Junho 2018 - Nº 100

Morashá Edição 100

Coordenação Editorial: Vicky Safra Assistentes de Coordenação: Clairy Dayan Fortuna Djmal Assessora Internacional: Muriel Sutt Seligson Supervisão Religiosa: Rabino Y. David Weitman Rabino Efraim Laniado Rabino Avraham Cohen Jornalista Responsável: Desirée Nacson Suslick MTb 13603 Colaboradores especiais: Esther Chaya Levenstein Jaime Spitzcovsky Reuven Faingold Tev Djmal Zevi Ghivelder Revisão e tradução de texto: Lilia Wachsmann Consultor: Marcello Augusto Pinto Coordenação de Marketing: Hillel de Picciotto Produção Gráfica: Joel Rechtman JR Graphiks - Tel: 3873 0300 Projeto Gráfico: LEN - Tel: 3815 7393 Serviços Gráficos: C&D Editora e Gráfica - Tel: 3862 8417 Tiragem: 28.750 exemplares

A distribuição é gratuíta sendo sua comercialização expressamente proibida. Morashá significa Herança Espiritual; contém termos sagrados. Por favor, trate-a com o devido respeito. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo necessariamente a opinião da revista. É proibida a reprodução dos artigos publicados nesta revista sem prévia autorização do Instituto Morashá de Cultura. www.morasha.com.br morasha@uol.com.br

Rua Dr. Veiga Filho, 547 Tel: 11 2597 2812 01229 000 São Paulo SP


Carta ao leitor Morashá comemora 25 anos, um quarto de século! Esta edição de nossa Revista é a 100ª desde que começou a ser publicada. Nos últimos 25 anos, Morashá atingiu centenas de milhares de pessoas, no Brasil e em outros países. No judaísmo, os números são altamente significativos. São 100 edições e este número, um múltiplo de 10, simboliza integridade e plenitude. Desde sua criação, o objetivo desta publicação foi divulgar as muitas facetas do judaísmo e assuntos pertinentes ao Povo e ao Estado Judeu, para que nossos leitores conheçam melhor a religião judaica e a história e o legado de nosso povo. Os milhares de artigos trazidos ao longo destes anos trataram de nosso enorme e infindável acervo: a Torá, as Festas Judaicas e datas importantes em nosso calendário, a História do Povo Judeu e de comunidades judaicas ao redor do mundo, o Holocausto, o Estado de Israel, os Sábios e personalidades judaicas que são motivo de orgulho para nosso povo e tanto enriqueceram a humanidade. As contribuições do Povo de Israel à humanidade são incomparáveis. O monoteísmo – a crença em um único D’us -, os 10 Mandamentos e a Torá, base da ética e moralidade para a Civilização Ocidental – são legados do judaísmo. Além disso, são notáveis os inúmeros aportes de nosso povo aos mais diversos campos do conhecimento humano, cientifico e tecnológico. John Adams, o segundo presidente dos Estados Unidos, escreveu: “Os judeus contribuíram mais para civilizar os homens do que qualquer outra nação. Mesmo se eu fosse ateu e acreditasse em um destino eterno cego, ainda assim acreditaria que o destino havia ordenado que esse povo fosse o instrumento mais essencial para civilizar as nações.... Os romanos e seu império eram apenas

uma bolha em comparação aos judeus. Eles foram fonte de inspiração para três quartos do mundo e influenciaram as questões da humanidade com mais intensidade e sucesso do que qualquer outra nação, antiga ou moderna”. Já se passaram 25 anos desde que Morashá publicou sua primeira edição. A Revista e o mundo mudaram muito neste quarto de século, como nossos leitores constatarão na linha do tempo que estamos publicando. Apesar dos desafios enfrentados pelo Povo Judeu e o Estado de Israel – conflitos e guerras, terrorismo e violência em nossa Terra e assimilação e o ressurgimento do antissemitismo –, nas últimas décadas a luz do judaísmo brilhou intensamente e o Estado de Israel se tornou mais forte e moderno. Os sonhos milenares de um povo estãose realizando e Morashá os registrou para a posteridade. No judaísmo, o número 100 também significa agradecimento: o 100º Salmo do Rei David é o famoso Mizmor Le’Todá (um Salmo de Agradecimento). Assim sendo, agradecemos a todos aqueles que patrocinaram, colaboraram e contribuíram para a nossa Morashá nos últimos 25 anos, possibilitando a difusão do judaísmo. E nos comprometemos a continuar em nossa missão sagrada de difundir os assuntos do nosso povo, do Estado de Israel e dos judeus que contribuem para o avanço da humanidade. Esperamos e rezamos para que D’us continue concedendo-nos esse privilégio e esta honra LeOlam Vaed, por muitos e muitos anos.


ÍNDICE

03 carta ao leitor

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4ª edição do Career Day

06 NOSSAS LEIS

escola beit yaacov

Justos entre as Nações Uma luz em tempos de escuridão

A Torá e os Profetas

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30 israel

personalidade Henry Kissinger, um craque da diplomacia

Israel – 70 anos - A batalha pelo reconhecimento

22 Kissinger: a libertação de Ahlem

por zevi ghivelder

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destaque Príncipe herdeiro sinaliza mudanças na Arábia Saudita por JAIME SPITZCOVSKy

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especial Morashá, 25 anos

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arte

comunidades Judeus na Argélia sob domínio islâmico

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israel Melhorando a vida no planeta

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shoá “A Lista de Schindler” celebra 25 anos

O “Caso Dreyfus” e Edgard Degas

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por reuven faingold

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cartas

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nossas leis

A Torá e os Profetas A Torá constitui a base do Judaísmo, sem a qual este não existiria. Apesar da palavra ser usada, com frequência, em referência a todo o corpo de textos judaicos sagrados – o Talmud, o Midrash e as obras da Cabalá, sua definição precisa é Chamishá Chumshei Torá – os Cinco Livros da Torá: Bereshit (Gênesis), Shemot (Êxodo), Vaicrá (Levítico), Bamidbar (Números) e Devarim (Deuteronômio).

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m dos pilares do Judaísmo é o fato de D’us ter transmitido a Moshé cada uma das letras dos Chamishá Chumshei Torá. Segundo o Talmud, negar a origem Divina de uma letra sequer dos Cinco Livros da Torá equivale a rejeitar os princípios do judaísmo. Os Chamishá Chumshei Torá se destacam em meio aos demais livros sagrados do Judaísmo pelo fato de terem sido os únicos não escritos por seres humanos, mas por D’us, Ele mesmo. Sendo assim, é um erro comum, mas muito grave, acreditar que Moshé foi o autor dos Cinco Livros da Torá. Como nos ensina o Talmud e também foi codificado por Maimônides, Moshé não teve participação alguma na autoria da Torá; ele apenas a transcreveu, como um secretário a quem é ditado um texto. A razão pela qual os Chamishá Chumshei Torá são comumente chamados de Torat Moshé – a Torá de Moshé – é porque somente ele, entre todos os homens, teve o mérito e a capacidade de recebê-los, letra por letra, e transmiti-los e ensiná-los ao Povo Judeu.

Nem o próprio Mashiach terá igual grandeza profética. A Revelação Divina vivenciada por Moshé foi única, em quantidade e qualidade. A Torá nos relata que “Moshé, o homem, era muito humilde, mais que todos os homens na face da Terra” (Números 12:3). Devido a essa humildade sem paralelo, ele foi o ser humano mais dotado de espiritualidade, em todos os tempos, e fez uso de seus dons espirituais para se anular completamente perante D’us. Como era um ser humano totalmente despido de ego, sua existência física não constituía barreira entre ele e o Altíssimo. Portanto, diferentemente dos profetas que o precederam e sucederam, ele vivenciou a experiência direta com a Revelação Divina. Nossos Sábios ensinaram que enquanto todos os profetas “viam através de um vidro fosco, Moshé via através de um vidro translúcido e brilhante”. Ao contrário dos demais profetas, ele recebeu a Revelação Divina com total transparência – e não mascarada por simbolismos. D’us escreveu em Sua Torá: “Claramente falarei com ele (Moshé), e com palavras claras, e não com enigmas... (Números 12:8).

Como ensina Maimônides, um dos pilares fundamentais do Judaísmo é o fato de Moshé ter sido o maior dentre todos os profetas, passados e futuros.

Diferente de outros profetas, que vivenciaram alguma forma de Revelação Divina em seu sono ou em estado de semiconsciência, Moshé foi o único que pôde 6


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Festa da alegria da Torá na sinagoga de Livorno, 1850. Solomon Alexander Hart, óleo sobre tela

comunicar-se com D’us plenamente desperto e no pleno comando de seus sentidos. Pois D’us assim falou: “…. Se houver profeta entre vós, Eu, o Eterno, em visão a ele Me faço conhecer ou no sonho falo com ele. Não é assim com Meu servo Moshé…” (Números 12:6). E pelo fato de Moshé ter vivenciado a Revelação Divina plenamente desperto, em plena consciência, e de forma clara e transparente, lhe foi possível receber os Chamishá Chumshei Torá com absoluta precisão – cada uma de suas letras e palavras, bem como a Torá Oral, que explica e elucida o texto escrito e seus mandamentos.

Egito e a Divisão do Mar de Juncos – que julgamos que ele seja o maior profeta de todos os tempos. Mais exatamente, cremos que as profecias de Moshé não têm paralelo nem comparação com as demais porque D’us, Ele Próprio, foi testemunha

Como ensina Maimônides, é essencial saber que não é pelo fato de Moshé ter sido o canal Divino para a realização dos milagres mais extraordinários – como as Dez Pragas que se abateram sobre o 7

de que Moshé era o portador de Sua Palavra. Pois D’us disse a Moshé: “Eis que Eu venho a ti, na espessura da nuvem, para que ouça o povo enquanto Eu falo contigo, e também em ti crerão para sempre” (Êxodo 19:9). Portanto, não acreditamos na veracidade da Torá graças a qualquer dos milagres que Moshé realizou. Pois o Judaísmo não se baseia em milagres ou nas habilidades sobrenaturais e profecias de ninguém. Na verdade, a própria Torá atesta o fato de que muitos seres humanos maus, como os feiticeiros do Faraó e o famoso profeta de Midian, Bilaam, conseguiram realizar feitos sobrenaturais. A autoridade do Judaísmo deriva exclusivamente da Revelação Divina no Monte Sinai, testemunhada por milhões de pessoas, que corroborou a origem Divina da Torá e o fato de Moshé ter falado em Nome de D’us. junho 2018


nossas leis

Como os Chamishá Chumshei Torá são, literalmente, a Palavra de D’us Infinito – tendo o Todo Poderoso, Ele Próprio, escrito cada letra –, esses Cinco Livros da Torá são imutáveis e eternos. Assim como D’us é perfeito, Sua Torá também o é. Assim como D’us não se modifica nem envelhece, imutável também é a Sua Torá, que tampouco se torna anacrônica, sob aspecto algum. Assim sendo, D’us nos impõe em Sua Torá: “Não acrescentareis sobre a coisa que Eu vos ordeno, e não diminuireis dela, para que guardeis os preceitos do Eterno, vosso D’us, que Eu vos ordeno” (Deuteronômio 4:2). Isso significa que nenhum mandamento da Torá pode ser permanentemente anulado, modificado ou manipulado, de forma alguma. Como a Torá revela a Vontade e Sabedoria Divinas ao homem, ela foi transmitida letra por letra para evitar qualquer interpretação errônea. Assim sendo, qualquer uma de suas frases, letras ou palavras tem significado profundo. Mesmo seus versículos e passagens aparentemente irrelevantes

transmitem muitas lições àquele que deseja explorar suas profundezas. No entanto, os Chamishá Chumshei Torá também são uma obra extremamente hermética: ordenam ao Povo Judeu o cumprimento de uma multiplicidade de mandamentos, mas não explicam como cumprir a grande maioria deles. Por exemplo, ainda que nos ordenem “afligirnos” em Yom Kipur, nada dizem sobre a obrigação de jejuar nesse dia. A chave para o entendimento dos Cinco Livros da Torá reside na Torá Oral – ensinada por D’us a Moshé e transmitida de geração em geração. A Torá Oral, como indica seu nome, foi transmitida oralmente. Após a destruição do segundo Templo Sagrado de Jerusalém e o exílio do Povo Judeu da Terra de Israel, temia-se que a Torá Oral se perdesse. Assim sendo, foi transcrita, constituindo o Talmud (Mishná e Guemará), o Midrash e outros textos sagrados. É a Torá Oral que explica e elucida os Chamishá Chumshei Torá e nos ensina como cumprir adequadamente suas leis e seus mandamentos, inclusive os mais básicos dentre eles, como ouvir o

Shofar em Rosh Hashaná e jejuar em Yom Kipur. Como os Cinco Livros da Torá são uma obra de Autoria Divina, eles contêm informações que apenas um Ser Onisciente poderia conhecer. Quem estuda esses Cinco Livros com diligência e seriedade intelectual irá perceber que tais textos não podem ter sido concebidos por um ser humano. A Divindade dos Chamishá Chumshei Torá é clara para aqueles que se aprofundam nos mesmos. Além disso, assim como D’us é Infinito, também o é a Sua Torá. Seu estudo, portanto, é uma tarefa sem fim, que requer uma devoção constante.

Os Profetas Um dos princípios fundamentais do Judaísmo diz respeito à profecia. A existência de profetas é um elemento necessário no relacionamento entre D’us e o ser humano, pois é por meio desses homens e mulheres que o Todo Poderoso se comunica conosco. Na verdade, a Torá nos ordena dar importância às palavras dos verdadeiros profetas. Como está escrito, “Profeta do meio de ti, ... te fará surgir, o Eterno, em todas as gerações; a ele ouvireis” (Deuteronômio 18:15). É importante observar que a capacidade de um indivíduo de enxergar o futuro com exatidão ou de realizar milagres ou feitos sobrenaturais não fazem dele, necessariamente, um verdadeiro profeta. Para sê-lo, é preciso destacar-se em sabedoria, conhecimento da Torá e devoção a D’us. Ademais, para ser aceito como verdadeiro profeta pelo Povo Judeu, era necessário dar sinais disso perante o Sanhedrin – a Corte

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Suprema Judaica –, sendo testado por seus juízes, que eram peritos em questão de profecia e capazes de distinguir os verdadeiros profetas dos falsos. O ponto a seguir tem importância crucial: a autoridade de todo profeta deriva exclusivamente da Torá. Isso significa que nenhum profeta pode contradizer uma única de suas palavras, independentemente de quantos sinais ou maravilhas ele produza. Portanto, se um profeta tenta contradizer, de alguma maneira, a Torá, ele não tem crédito; é um falso profeta, ainda que realize os milagres mais assombrosos. É importante enfatizar que o falso profeta não é, necessariamente, impostor ou trapaceiro. Ele pode, perfeitamente, prever o futuro e realizar milagres com precisão. É natural, então, que perguntemos por que D’us permite a existência de falsos profetas, concedendo-lhes poderes sobrenaturais. Temos a resposta na própria Torá: D’us nos alerta que tais falsos profetas podem surgir para testar nossa lealdade a Ele e à Sua Torá. Como está escrito, “Se um profeta se levantar em teu meio, ou um sonhador, e te der um sinal do céu ou um milagre da Terra, e realizar-se o sinal ou o milagre de que te falou, e te disser: ‘Vamos atrás de outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los!’..., mesmo se o sinal ou milagre que ele previu se concretizar, não obedecerás às palavras daquele profeta ou daquele sonhador; porque o Eterno, teu D’us, te está experimentando para saber se amas o Eterno, teu D’us, com todo o teu coração e com toda a tua alma” (Deuteronômio 13:2-4). D’us permite a existência de falsos profetas porque deseja testar se o Povo Judeu permanecerá fiel a Ele e à Sua Torá, ou se permitirá ser seduzido por milagreiros.

Rabino com a Torá, Marc Chagall

As palavras do verdadeiro profeta não podem contradizem a Torá porque, como somente os Chamishá Chumshei Torá foram escritos por D’us, eles são a única fonte verdadeira de Autoridade Divina obrigatória por todo o sempre. Com a finalização da transcrição dos Cinco Livros da Torá e a morte de Moshé, nenhuma outra lei ou mandamento bíblico novo pôde ser introduzido por via profética. Os Chamishá Chumshei Torá são a Constituição do Povo Judeu, e seu Autor, é o único Legislador. Os seres humanos, ainda que sejam grandes profetas, nada podem fazer além de servir ao Legislador e Juiz Supremo, interpretando e implementando Sua 9

Lei com fidelidade e honestidade, e seguindo a Lei Oral ensinada por D’us a Moshé. Como está escrito, ... “Estes são os preceitos que ordenou o Eterno a Moshé, para os Filhos de Israel, no Monte Sinai” (Levítico 27:33). Em outras palavras, tudo o que está escrito nos Chamishá Chumshei Torá é intocável, como explica a Torá Oral. O máximo que Profetas, Sábios e Rabinos podem fazer é introduzir Leis Rabínicas, cujo único propósito é fortalecer o cumprimento das Leis dos Cinco Livros da Torá ou celebrar eventos de importância histórica para o Povo Judeu. Por exemplo, nossos Sábios instituíram – por razões que fogem ao escopo deste trabalho – que os judeus na Diáspora devem junho 2018


nossas leis

falso profeta, nem mesmo pedirlhe um sinal. Se ele produzir um sinal por si só, é proibido acreditar nesse sinal ou lhe dar atenção. Pois está escrito: “…não obedecerás às palavras daquele profeta ou sonhador” (Deuteronômio 13:4).

adicionar um dia às festas religiosas, os Yamim Tovim. Contudo, jamais ousariam anular um Yom Tov ou decretar que devem ser guardados menos dias do que ordena a Torá. Se um profeta contradissesse uma única lei da Torá, mesmo que fosse uma aparentemente trivial, ele seria considerado falso profeta. Deve, pois, ficar claro que o mandamento da Torá que reza que devemos obedecer às palavras de um profeta não lhe dá autoridade de anular, inovar ou, de alguma maneira, manipular as leis e mandamentos dos Chamishá Chumshei Torá. Profeta algum tem autoridade para anular ou modificar lei alguma da Torá, como as leis de Tefilin, Cashrut (leis alimentares) ou do Shabat. D’us prometeu nunca enviar um profeta verdadeiro para acrescentar, subtrair ou modificar qualquer mandamento da Torá. Ademais, um verdadeiro profeta não interpretaria uma lei de maneira diferente do que dispõe a Torá Oral. Assim, pois, qualquer profeta que alegue fazer qualquer dessas ações é, por definição, um falso profeta. Bem verdade, a Torá permite, em certos casos, que um profeta revogue, temporariamente, uma de suas leis ou mandamentos. No entanto, ele deve ter uma razão irrefutável para fazê-lo. Por exemplo, se um profeta instruísse o Povo Judeu a não jejuar durante determinado Yom Kipur, ele deveria ser obedecido. Na verdade, isso aconteceu uma só vez na História Judaica: quando foi inaugurado o Primeiro Templo de Jerusalém. Mas, se o profeta alegar que recebeu uma Revelação Divina no sentido de que Yom Kipur não deve mais ser cumprido como tal, ele estará anulando uma lei da Torá e, definitivamente, é um falso profeta.

As leis referentes à idolatria, no entanto, não podem ser revogadas nem por um instante sequer. Assim, pois, se um profeta der uma instrução qualquer de adoração a um deus, ser humano, objeto ou imagem, ou alegar ser mediador entre D’us e o homem, ainda que uma única vez, ele não deve ser obedecido. Isso se aplica mesmo que ele realize milagres e maravilhas para comprovar sua profecia. O profeta que tenta levar alguém à idolatria é culpado de um delito capital. Pois a Torá ordena: “E aquele profeta ou sonhador será morto, porquanto pregou falsidade em Nome do Eterno, teu D’us” (Deuteronômio 13:6). Além disso, o profeta que alega ser enviado por algum poder ou divindade além do Eterno, ainda que em defesa da Torá, é culpado de pecado capital. Como está escrito, “Mas o profeta que propositadamente falar alguma coisa em Meu Nome que não lhe ordenei falar ou que falar em nome de outros deuses, este profeta morrerá” (Deuteronômio 18:20). É proibido discutir com tal 10

É importante observar que apesar da capacidade dos profetas de receber mensagens Divinas, eles não tinham sequer a palavra final em questões ligadas à interpretação da Lei da Torá e suas aplicações. Em outras palavras: ao dar a Torá ao Povo Judeu, D’us estabeleceu um meio de autoridade baseado no julgamento e na razão humana. Está escrito: “Porque este mandamento que Eu hoje te ordeno, ... não está nos Céus...” (Deuteronômio 30:11-12). As leis devem ser estabelecidas por juízes e especialistas na Lei da Torá por meio do exercício de raciocínio intelectual, não pela capacidade de se comunicar com os Céus. Portanto, nenhuma questão da Lei da Torá pode ser decidida por profecias, Inspiração Divina, vozes celestiais, Urim v’Tumim, sonhos ou qualquer outro fenômeno sobrenatural. Em questões de Leis da Torá, o profeta não é melhor nem pior que qualquer outro Sábio. Bem verdade, muitos profetas dirigiam o Sanhedrin ou serviam como seus membros. Nessa capacidade, tinham o direito de interpretar leis e iniciar legislação, mas na exata medida dos demais juízes do Sanhedrin. Durante longo período, os profetas foram os guardiães da Torá Oral; na verdade, muitas leis encontradas em seus escritos baseiam-se na Tradição Oral dada por D’us a Moshé no Sinai. Mas, em caso algum, eles introduziram uma lei baseada apenas em profecia. Um profeta não pode alegar que seu dom profético o intitula a ditar questões sobre a Lei Judaica.


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À luz do que discutimos acima, deve ficar claro que como os Chamishá Chumshei Torá são exclusivamente um trabalho de Autoria Divina, sua autoridade é suprema e final. Isso significa que nada que esteja escrito em outros livros sagrados, como nos Livros dos Profetas, pode suplantar o que contêm os Cinco Livros que D’us, Todo Poderoso, ditou a Moshé. Através da História, muitos grupos religiosos tentaram converter os judeus tentando convencê-los de que as leis dos Chamishá Chumshei Torá já não se aplicavam. Em sua tentativa de converter os judeus às suas respectivas religiões, esses grupos citavam versículos ou passagens dos Livros dos Profetas, como a seguinte citação do Livro de Jeremias: “Aproximam-se os dias quando estabelecerei um novo pacto com a Casa de Israel” ... ( Jeremias 31:30). Independentemente de como se quiser interpretar essa citação – e outras semelhantes nos Livros dos Profetas –, nada tem poder acima dos mandamentos dos Chamishá Chumshei Torá e da obrigação do Povo Judeu de cumpri-los. Dentro de seu contexto, fica claro que esse versículo do Livro de Jeremias não fala de um novo testamento ou legislação que viria a substituir a Torá transmitida por D’us a Moshé, mas sim, de uma renovação da devoção a seus ensinamentos. O profeta Jeremias assim conclui, em nome de D’us, “Pois este é o pacto que Eu farei com a Casa de Israel: farei com que internalizem Minha Torá em todo o seu ser e a gravarei em seu coração...” ( Jeremias 31:32). É nefasto usar os versículos dos Livros dos Profetas fora de contexto na tentativa de convencer o Povo Judeu a abandonar a Torá. Além do mais, como vimos acima, profecia alguma pode anular as palavras dos

Chamishá Chumshei Torá, assim como profeta algum jamais teve ou terá mais autoridade do que Moshé. Unicamente os Cinco Livros da Torá são obra de pura Autoria Divina e, portanto, nenhum outro livro pode a eles se comparar, desafiar ou contradizer, de maneira alguma. As palavras dos Profetas apenas fortalecem e corroboram os ensinamentos dos Cinco Livros da Torá, jamais a eles se opondo. Portanto, nem é tão relevante a maneira como se interpretam os

Coroa da Torá (Keter Torá), Veneza, c. 1740-50

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versículos e passagens dos Livros dos Profetas. Apesar de servirem a diversos propósitos religiosos e serem, sem sombra de dúvida, sagrados, não constituem fonte da Lei da Torá e não podem anular ou modificar algo que esteja escrito nos Chamishá Chumshei Torá. É absurdo sugerir que um verdadeiro profeta contradiria ou buscaria anular uma única letra de um livro composto por D’us. Alguém que alegue ser um profeta e critique ou questione uma única letra dos Cinco Livros da Torá se está rebelando contra o Seu Mestre – e é, portanto, e por definição, um falso profeta. A missão de vida do verdadeiro profeta é fortalecer o relacionamento do Povo Judeu com D’us e Sua Torá. Quando alguém estuda os Livros dos Profetas com honestidade intelectual, sem subtrair versículos ou passagens de contexto, esse alguém percebe que a principal mensagem dos Profetas foi ordenar ao Povo Judeu que seguisse D’us com toda junho 2018


nossas leis

a fé, mediante o cumprimento de todos os mandamentos de Sua Torá. Por exemplo, o Profeta Isaías falou não apenas de nossas obrigações diante do fraco e do necessitado, mas também sobre a importância de guardar o Shabat. É digno de nota – e certamente não uma coincidência – que as últimas palavras de D’us ao último dos Profetas tivessem sido: “Lembrai-vos da Torá de Moshé, Meu servo, a quem ordenei, em Horev (Sinai) estatutos e preceitos para todo Israel” (Malachi 3:22).

Os 24 Livros do Tanach e sua Autoria Ainda que tenham havido muitos profetas na História do Povo Judeu e muitas palavras de profecia tenham sido ditas e gravadas, apenas foram registradas no Tanach, a Bíblia Hebraica, aquelas que seriam necessárias para as futuras gerações. O Tanach é dividido em três partes principais: a Torá (Chamishá Chumshei Torá), os Livros dos Profetas (Neviim) e os Escritos (Ketuvim). A palavra Tanach é um acrônimo dessas três palavras: Torá, Neviim, Ketuvim. Em sua forma final, o Tanach foi composto pela Grande Assembleia (Anshei Knesset HaGuedolá), sob a liderança de Ezra, pouco antes de deixarem de existir as profecias. A Grande Assembleia era composta por 120 anciãos, inclusive o último dos profetas (Malachi). Hoje, o Tanach é um cânone pronto, ao qual nada pode ser acrescentado ou subtraído. Como está escrito: “Cada palavra de D’us é verdadeira ... Não acrescentes nada às Suas palavras...” (Provérbios 30:5-6).

Como mencionamos acima, repetidamente, a Torá - os Chamishá Chumshei Torá – é singular, pois foi composta por D’us e ditada a Moshé, que a transcreveu. Os Livros dos Profetas foram revelados através de profecias. Os Escritos foram escritos por intermédio de Inspiração Divina, sem visão profética. Os Neviim (Livros dos Profetas) consistem de oito livros, e são: Iehoshua ( Josué), Shoftim ( Juízes), Shmuel (Samuel 1 e 2), Melachim (Reis 1 e 2), Ieshaiáhu (Isaías), Irmiáhu ( Jeremias), Iechezkel (Ezequiel) e Trei Assar (Doze Profetas Menores): Hoshêa, Ioel, Amós, Ovádia, Ioná, Michá, Nachum, Chavacuc, Tsefaniá, Hagai, Zehariá e Malachi. Os Ketuvim (Escritos) consistem de 11 livros: Tehilim (Salmos), Mishlê (Provérbios), Ióv ( Jó), Shir HaShirim (Cântico dos Cânticos), Ruth, Eichá (Lamentações), Cohelet (Eclesiastes), Esther, Daniel, Ezra e Neemias (Ezra) e Divrei Haiamim (Crônicas, 1 e 2). o rei david. MARC CHAGALL, 1951

O Livro de Josué foi escrito por ele. Contudo, os versículos que nos contam sua morte ( Josué 23:20-32), bem como a morte de Elazar ( Josué 24:33) foram escritos por Pinchás. O Livro dos Juízes foi escrito pelo profeta Shmuel. A primeira parte do Livro de Shmuel até sua morte (Shmuel 1, 25:1) também foi escrita por ele. O restante de Shmuel 1 e todo Shmuel 2 foram escritos pelos profetas Gad e Natan. Como está escrito: “E os atos do Rei David… estão registrados nas Crônicas de Shmuel, o vidente, nas Crônicas do profeta Natan e nas Crônicas de Gad, o vidente (Crônicas 1 – 29:29). Os dois livros dos Reis foram escritos pelo profeta Irmiáhu ( Jeremias), sendo que incluíam também material escrito por profetas anteriores. O Livro de Isaías foi escrito pela Escola do Rei Ezequias. Era costume os profetas registrarem suas profecias pouco antes de sua morte. No entanto, suas profecias públicas eram transmitidas ao Sanhedrin e registradas por eles. Como Ieshaiáhu (Isaías) foi morto pelo Rei Menashé, ele não teve chance de deixar suas profecias por escrito. Posteriormente, isso foi feito pelo Sanhedrin. O Livro de Irmiáhu ( Jeremias) foi escrito por ele mesmo e terminado pela Grande Assembleia. Apesar de que, sob certas condições, revelações proféticas podiam ocorrer fora da Terra de Israel, nenhuma profecia podia ser publicada fora dela. Portanto, como o profeta Ezequiel vivia fora da Terra Santa, ele não publicou suas profecias, que foram preservadas pelo Sanhedrin, que finalmente as publicaram.

O Tanach consiste de 24 livros. Destes, cinco estão na Torá, oito nos Profetas e 11 nos Escritos. 12


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A Grande Assembleia publicou os Trei Assar (Doze Profetas Menores), primeiramente em um único rolo. Individualmente, os livros eram tão pequenos que se teriam perdido se publicados em separado. O Rei David publicou seus Salmos. Contudo, alguns deles já tinham sido compostos e transmitidos por gerações anteriores. O Livro dos Provérbios, o Eclesiastes (Cohelet) e o Cântico dos Cânticos (Shir haShirim) foram escritos pelo Rei Salomão, filho do Rei David. Mas, já no final de sua vida, o Rei Salomão estava muito envolvido com afazeres de seu reino para poder publicá-los. Quem o fez foi a Escola do Rei Ezequias. Como está escrito, “Também estes são os provérbios de Salomão, copiados pelos homens de Hizquiá (Ezequias), rei de Judá” (Provérbios 25:1). O Livro de Jó foi escrito por Moshé. O Livro de Ruth, que se lê durante a festa de Shavuot, foi escrito pelo profeta Shmuel. O Livro das Lamentações (Eichá), lido em Tisha b’Av, foi escrito pelo profeta Irmiahú ( Jeremias). O Livro de Esther, que lemos em Purim, foi escrito originalmente por Mordechai, como uma carta às várias comunidades judaicas da época, contando-lhes acerca do milagre. Mas surgiu uma dúvida se essa carta deveria ou não ser incluída no Tanach. Mesmo após se ter decidido incluí-la, havia a proibição de publicá-la fora da Terra de Israel, até que acabou sendo publicada pela Grande Assembleia. As profecias de Daniel ocorreram na Babilônia, não na Terra de Israel. Sendo assim, não poderiam ser

Carregando os Rolos da Lei, 1867, Simeon Solomon. Aquarela e guache.

publicadas de imediato. Por essa razão, o Livro de Daniel também foi publicado pela Grande Assembleia. Ezra escreveu os Livros de Ezra e Neemias. O primeiro Livro de Crônicas e o segundo livro até o versículo 21:2 foram escritos por Ezra. O restante de Crônicas 2, por Neemias. Outros livros, como os Livros Apócrifos, também contêm sabedoria, mas não foram escritos por Inspiração Divina, e, por isso, não foram incluídos no Tanach. Apesar de o Tanach ter sido dado, originalmente, apenas ao Povo 13

Judeu, hoje é aceito por grande parte da humanidade, constituindo uma das bases da Civilização Ocidental. Portanto, D’us utiliza o Tanach para conduzir o mundo inteiro em direção à verdade, preparando a humanidade para a vinda do Mashiach.

BIBLIOGRAFIA

Rabbi Kaplan, Aryeh - Handbook of Jewish Thought - Maznaim Publishing Corporation Rabbi Kaplan, Aryeh – Maimonides’ Principles: The Fundamentals of Jewish Faith - Mesorah Publications Ltd

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personalidade

Henry Kissinger, um craque da diplomacia Ao completar 95 anos, o ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1973 e ex- Secretário de Estado dos EUA é um ícone no mundo da diplomacia; até hoje, um dos mais solicitados observadores políticos do mundo. Ao colocar os interesses americanos acima de tudo, Kissinger colecionou muitos admiradores e muitos críticos.

d

e 1973 a 1975, os americanos responderam à pesquisa anual do Instituto Gallup, sobre qual o homem mais influente do país, com um único nome: Henry Kissinger. Na década de 1980, o presidente Ronald Reagan o convidou para presidir um painel sobre política na América Central; em 2001, após os ataques terroristas às Torres Gêmeas, em Nova York, George W. Bush o convocou para presidir uma comissão de inquérito. Em novembro de 2016, antes de assumir a presidência dos Estados Unidos, Donald Trump se reuniu com ele para se aconselhar sobre a formação de sua equipe de governo. Nosso personagem está, também, entre os 195 judeus de um total de 900 laureados com o Prêmio Nobel desde sua criação, em 1901, até 2017. Uma das figuras mais brilhantes e controversas da História Contemporânea, gênio político, peça-chave na política externa dos Estados Unidos entre os anos 1968 e 1976, o diplomata americano Henry Alfred Kissinger continua a exercer influência no cenário político mundial até os dias de hoje, aos 95 anos.

na Guerra do Vietnã. Naquele ano, o prêmio também deveria ser entregue ao político vietnamita Le Duc Tho, por seu papel igualmente fundamental em busca da bandeira branca entre Estados Unidos e Vietnã, mas Duc Tho recusou a honraria, alegando que a paz ainda não reinava sobre o Vietnã – fato que se confirmou em 1975, quando os ataques foram retomados. Heinz Alfred Kissinger nasceu na Alemanha, em 27 de maio de 1923, na cidade de Fürth, vizinha a Nuremberg, ao norte da Bavária. Seu pai, Louis, era judeu ortodoxo, professor na escola local e valorizava os estudos, embora, para seu desespero, o pequeno Heinz (ele vai adotar o nome Henry ao chegar nos Estados Unidos) preferisse o futebol aos livros. (E, aqui, abrimos um parêntese: Talvez a sede de armar jogadas e driblar adversários o tenha acompanhado do campo às mesas de negociação com líderes de todo o mundo, durante sua carreira de diplomata, como veremos mais adiante...). Voltemos à História: Kissinger cresceu em um lar ortodoxo judaico, o que acarretou intenso estudo da Torá e do Talmud. Em suas memórias, lembra-se de ter sido alvo de antissemitismo. Em mais de uma ocasião, apanhou dos guardas nos estádios por estar

Kissinger recebeu o Nobel da Paz em 1973, em reconhecimento à sua atuação no acordo de cessar-fogo 14


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Se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho o levará a lugar nenhum

assistindo ilegalmente aos jogos e, com frequência, teve de andar se esgueirando pelas ruas de Fürth, com cuidado, para evitar as primeiras gangues nazistas. Em suas memórias da juventude, Kissinger escreve: “Você não pode crescer como nós, judeus, na Alemanha, e permanecer intocado”. Surpreendentemente, ele não foi um ótimo aluno. Sonhava em entrar no “Gymnasium” – o termo alemão para o nosso Ensino Médio, quando as futuras oportunidades profissionais são forjadas, e para o qual a admissão depende do conjunto de matérias e sucesso acadêmico na área pretendida. No entanto, quando ele chegou à idade adequada, em fins da década de 1930, na Alemanha, o Gymnasium já não aceitava candidatos judeus... Com a ascensão de Adolf Hitler ao poder, seu pai, Louis Kissinger, assim como centenas de milhares de outros

judeus, ficou desempregado e perdeu seus direitos de cidadão alemão, da mesma forma que todos os judeus do Terceiro Reich. À procura de um país que a acolhesse, a família – formada pelos pais, Louis e Paula, Henry

e seu irmão mais novo, Walter –, finalmente conseguiu, em 1938, o visto para entrar nos Estados Unidos, via Londres. Os Kissinger chegam a Nova York, onde se estabeleceram em Washington Heights, Manhattan, região que abrigava muitos outros judeus refugiados da Alemanha. À época com 15 anos, Henry entendeu que seria melhor abraçar os estudos e deixar a bola de lado. Depois de um ano, os parcos recursos da família acabaram forçando o jovem a trabalhar em uma fábrica de pincéis de barba. Resultado: ele teve de se contentar com a escola noturna. Depois de completar o ensino médio, foi em busca de um diploma de contador no City College de Nova York.

Henry Kissinger ainda menino

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Em 1943, aos 20 anos, conseguiu sua cidadania americana, época em que junho 2018


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se alistou para servir na 2a Guerra Mundial. E foi assim que ele voltou à Alemanha, só que, dessa vez, vestindo um uniforme militar americano. Juntou-se à 84ª Infantaria. (Ver artigo) Foi ali que um oficial superior, o também refugiado alemão Fritz Kraemer, ficou impressionado com o jovem Kissinger e o designou para o setor de inteligência militar de sua divisão. Destemido, ele se ofereceu para inúmeras missões perigosas. Durante uma das ações mais cruciais da Guerra, viu os combates de perto e logo se voluntariou para servir na Inteligência em Zonas de Risco na grande contraofensiva alemã, a Batalha das Ardenas (Bélgica). A seguir, foi transferido para o 970º Corpo de Contrainteligência, onde chegou à patente de sargento. Em 1945 recebeu uma Estrela de Bronze por caçar oficiais nazistas e colaboradores a serviço da Gestapo. Em 1946, ele já atingira o posto de Capitão da Inteligência Militar da Reserva. Ao término da guerra, continuou na Europa servindo como instrutor na Escola de Inteligência de Comando, em Oberammergau, no sul da Alemanha.

Depois de receber dispensa do exército, foi estudar em Harvard. Na renomada universidade cursou História Política e Ciências Políticas, formando-se em 1950. No ano seguinte, Kissinger tornouse Diretor do Departamento de Pesquisa de Operações – centro de pesquisa civil e militar criado pelo Exército dos EUA em 1948, com sede em Washington. Apesar da responsabilidade do cargo, conseguiu se formar com o título de Mestrado, em 1951. No ano seguinte, foi nomeado Diretor do Seminário Internacional de Harvard, posto onde permaneceria por sete anos. Dois anos mais tarde, ao concluir seu doutorado, apresentou uma tese sobre a diplomacia da Europa pós-napoleônica, período pelo qual sempre foi fascinado. Esse material lhe rendeu a base para seu primeiro livro, publicado em 1957, A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problem of Peace, 1812-1822. Seu interesse nesse período da História ofereceu-lhe uma oportunidade de mergulhar nos problemas e soluções adotadas no passado que seriam oportunas para os então atuais

Presidente Richard Nixon e Henry Kissinger, Secretário de Segurança Nacional e Secretário de Estado, na Casa Branca, out. 1973

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problemas políticos. O livro é um marco importante na formação de Kissinger como cientista político, especialista em política externa. Seus argumentos continuam válidos e parte importante do pensamento dos estudiosos e praticantes da política externa da atualidade e pelas próximas décadas. Em 1955, Kissinger passou a ser consultor no Conselho de Coordenação de Operações, fundado pelo Presidente Eisenhower para implementar a integração das informações de todas as agências de segurança dos Estados Unidos. Contudo, por ter ganho uma cátedra como professor em Harvard, nesse mesmo ano, ele julgou, então, que se sentia mais confortável em um ambiente mais teórico. Ainda que não tivesse tido cargos de relevância no Departamento de Estado durante a administração Kennedy e Johnson, ele serviu como Assessor Especial dos dois presidentes, nos sete anos seguintes. Com sua mente brilhante, acabou chamando a atenção do magnata Nelson Rockfeller e fez parte de sua equipe, em três campanhas presidenciais. Em 1968, Rockfeller, então governador de Nova York, disputou e perdeu as prévias do Partido Republicano com Richard Nixon. Fora da briga nas urnas, Rockfeller sai de cena, enquanto Kissinger é convidado a fazer parte da equipe de Nixon logo que este assume como 37º Presidente dos Estados Unidos. Durante o jantar do National Press Club, em 2001, Kissinger ironizou essa situação: “Então, quando vocês forem ler sobre como planejei ‘cuidadosamente’ minha trajetória para me aproximar de Nixon, e quiserem ensinar a seus filhos, digam: ‘Apoiem o oponente


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do homem para quem desejam trabalhar’ ”. Em 1973, Kissinger, que já era Conselheiro de Segurança Nacional, assume simultaneamente o posto de Secretário de Estado americano, que, no Brasil, equivale ao cargo de Ministro das Relações Exteriores. Era o primeiro judeu e o primeiro imigrante naturalizado a se tornar Secretário de Estado. Até 1974 ocupou o cargo no governo do presidente Richard Nixon, que foi levado a renunciar depois do escândalo Watergate, e durante um ano no governo de Gerald Ford (1974-1977). “Nunca antes ou depois disso, as relações entre a Casa Branca e o Departamento de Estado foram tão harmoniosas”, brincou Kissinger, naquele mesmo jantar do National Press Club. E foi no exercício do poder que Henry Kissinger se mostrou dono de uma personalidade forte, determinada e polêmica. No futebol, poderia ser comparado a um meio-campista, armador de jogadas arriscadas, geniais e que, na maioria das vezes, resultam em gols. Seus estratagemas, frequentemente, incluíam sentar-se à mesa com inimigos passados, caso fosse preciso, em prol dos interesses americanos. “A América não tem amigos ou inimigos eternos, apenas interesses”, costumava dizer, referindo-se ao método da mediação diplomática ao qual deu origem – a famosa “shuttle diplomacy” (ou diplomacia de “Ponte Aérea” de Kissinger). Muito dessa postura é notória na própria época em que Kissinger foi designado por Nixon para o Conselho de Segurança Nacional, em 1968. Naquele período, os Estados Unidos estavam literalmente enlameados até o

pescoço na Guerra do Vietnã, sem perspectiva alguma de chegar à paz. E com o agravante de que Nixon havia calcado sua campanha sob o lema “Paz com Honra”. Ao assumir a presidência, ele reduziu, aos poucos, o papel americano no combate por terra, enquanto aumentava a campanha de bombardeio aéreo contra o Vietnã do Norte e ordenava incursões ao vizinho Camboja, provocando fortes protestos em casa. Nesse período, Kissinger se concentrava nas negociações por um cessarfogo com o Vietnã do Norte. Em agosto de 1969, Kissinger e Le Duc Tho, membro do Politburo do Partido Comunista do Vietnã do Norte, passaram a se encontrar secretamente em uma vila nos arredores de Paris, o que levou ao acordo de janeiro de 1973, estabelecendo o fim da guerra. Esse esforço acabou rendendolhes o Nobel da Paz daquele mesmo ano. E enquanto Le Duc Tho não quis aceitar a honraria, Kissinger anunciou que doaria seu prêmio em dinheiro “para os filhos de soldados americanos mortos ou

desaparecidos na Indochina”. De carona na pretensa paz estabelecida, Nixon se elegeu para o segundo mandato.

Negócio da China Paralelamente ao conflito no Vietnã, Kissinger tratou de atuar explorando as crescentes tensões entre as duas potências comunistas da época, a China e a União Soviética. Nesse papel de consultar uma das partes, nem sempre voltando a Washington, e consultar a outra (a tal shuttle diplomacy), acabou atraindo para si críticas tanto de conservadores (que viam com desconfiança sua aproximação da China e da União Soviética) quanto de liberais (que pediam uma retirada mais rápida das tropas americanas do Vietnã). E Kissinger tinha consciência do terreno delicado por onde pisava. Prova disso está no seguinte diálogo que teve com o cantor e ator Frank Sinatra, durante um jantar. Tomado por sua mania de perseguição, Sinatra disse a Kissinger: “Sabe, muitas pessoas dizem que tenho ligação com a

Kissinger aperta as mãos de Le Duc Tho após a assinatura dos Acordos de Paris, em 23 de janeiro de 1973

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máfia, mas eu não tenho”. Ao que Kissinger respondeu: “Que pena, Frank! Precisava de alguém para dar um fim aos meus inimigos...”. Em 1971, Kissinger fez uma viagem secreta à China e deu início ao pleno reconhecimento diplomático entre os Estados Unidos e o governo de Pequim, levando à integração da China na economia global, no que seria o embrião para o gigante econômico em que o país se tornaria, anos mais tarde. Também iniciou as negociações estratégicas de limitação de armas com a União Soviética, que resultaram no Tratado de SALT (sigla para Strategic Arms Limitation Talks, em tradução livre: Negociações sobre Limitação de Armas Estratégicas) e no Tratado de Mísseis Antibalísticos.

Operação Condor Também era alvo de críticas a posição de Kissinger em relação às ditaduras que se instalavam na América do Sul, nas décadas de 1970 e 1980, com os golpes militares que depuseram presidentes eleitos democraticamente, como o socialista Salvador Allende, no Chile. Rapidamente, os governos militares estabelecidos nesses países foram reconhecidos pelos Estados Unidos. Segundo Kissinger, era melhor apoiar a estabilidade de um governo anticomunista a um governo instável e simpatizante do comunismo. “Não vejo por que temos de ficar parados enquanto um país se torna comunista em razão da irresponsabilidade de seu povo”. Ele é apontado como o mentor da “Operação Condor” (no Brasil,

Guerra do Yom Kipur

Presidente Nixon e Kissinger, de saída do anexo do Kremlin

também chamada de Carcará), uma aliança político-militar entre os vários regimes militares da América do Sul – Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai – com a CIA, serviço secreto dos Estados Unidos, levada a cabo nos anos 1970 e 1980. Seu objetivo era neutralizar opositores dessas ditaduras nos países do Cone Sul e reagir à OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade), criada por Fidel Castro.

A maior crise internacional enfrentada por Kissinger no segundo mandato de Nixon foi a Guerra do Yom Kipur, em 1973, em Israel. O conflito tinha como motivação principal o desejo do Egito e da Síria de recuperar seus territórios, respectivamente, a Península do Sinai e as Colinas de Golã, perdidos durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967. A guerra ganhou este nome porque Israel foi invadido – e surpreendido – justamente durante o Yom Kipur de 1973 (Ver artigos no número 81 de Morashá) De um lado, estavam o Egito e a Síria, que tinham o apoio e armamentos da União Soviética. Do outro, Israel, apadrinhado pelos Estados Unidos. Assim, o que deveria ser um confronto regional poderia levar a um enfrentamento militar entre as superpotências de então. A Guerra do Yom Kipur teve implicações profundas e provocou um rearranjo político-estratégico

Após reunião bilateral, Presidente Gerald Ford e o Secretário Geral soviético, Leonid Brezhnew, diante da embaixada americana em Helsinqui. Ladeando os dois, Henry Kissinger e o Ministro do Exterior Andrei Gromyko

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na região, que repercute até os dias de hoje. Tudo com a sagaz participação de Kissinger, que teve papel fundamental no acordo de paz instituído entre Israel e o Egito, no pós-guerra e a ida de Sadat a Jerusalém – mesmo que isso o tenha levado a jogar para os dois times. Um exemplo de sua atuação é que, sob a orientação de Kissinger, os Estados Unidos fizeram a maior ponte aérea militar da História para entregar 22 mil toneladas de equipamentos militares a Israel no meio da guerra, em pleno campo de batalha, atendendo pedido alarmado da primeira-ministra israelense Golda Meir, através de seu embaixador em Washington, Simcha Dinitz. Em 22 de outubro, os Estados Unidos e a União Soviética negociaram um cessar-fogo, mas, nos bastidores, Kissinger avisou a Golda que o governo americano não se importaria, pelo contrário, se Israel continuasse com operações militares antes do início da trégua. Resultado: Israel avançou em várias frentes de

batalha e cercou o 3º Exército do Egito, no Sinai. Kissinger conseguiu, mais uma vez, tirar proveito de um cenário pós-conflito: como a guerra havia prejudicado a relação entre Egito e União Soviética, ele viu nisso a chance de o governo dos Estados Unidos se aproximar do então presidente do Egito, Anwar Sadat. Os Estados Unidos queriam melhorar sua posição de influência

no Oriente Médio, uma vez que em 1973 tinham, além de Israel, apenas um amigo e aliado, o Rei Feisal, da Arábia Saudita. Kissinger conseguiu trazer o Egito para a órbita americana e, consequentemente, a total abertura e controle da região estratégica do Canal de Suez. Em 1977, Anwar Sadat visitou Israel, abrindo caminho para as negociações que culminaram com o Acordo de Paz de Camp David, residência de verão do presidente dos Estados

KISSINGER E O Presidente Anuar Sadat do Egito, 1975

No centro do processo de paz, Kissinger e Yitzhak Rabin na assinatura do acordo interino com o Egito sobre o Sinai, 1975

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Unidos, em 1979, quando o Egito reconheceu o Estado de Israel e houve a devolução da Península do Sinai aos egípcios.

revelaram ser verdadeira a sua oposição à lei, tendo ficado famosa uma frase dita ao presidente, após encontro com Golda Meir, de que “a emigração de judeus russos não era uma prioridade do governo americano e que, se os russos colocassem os judeus em câmaras de gás, isso não seria um problema político. No máximo, humanitário...”.

Judeus soviéticos Uma grande polêmica na biografia de Kissinger é a questão da imigração de judeus da então União Soviética para Israel e Estados Unidos, na década de 1970. De 1972 a 1975, o Congresso Americano discutiu e articulou a criação de uma Lei (que ficaria conhecida como Emenda Federal Jackson-Vanik, em referência aos seus criadores) que iria impor fortes sanções econômicas aos países do bloco soviético que restringissem a emigração e a livre circulação de pessoas. A medida era uma resposta à política soviética adotada em 1972 de taxar pesadamente e, na prática, proibir, por meio de várias medidas adicionais, a emigração de pessoas nascidas no bloco para outros países, especialmente aquelas com boa formação educacional. A ação atingia mais pesadamente os judeus.

Como a emigração de judeus soviéticos para Israel ia contra os interesses dos países árabes, a medida do governo de Moscou era vista como um afago a seus aliados de então: Egito, Síria e Cia. Durante todo o período de tramitação da Emenda Jackson-Vanik, a administração Nixon, em especial o Secretário de Estado (leia-se Kissinger), trabalhou para derrubar a lei ou, ao menos, postergar sua implantação, já que via no projeto um empecilho aos objetivos da política externa americana. Durante anos Kissinger nunca foi devidamente ‘perdoado’ por ativistas, políticos e associações judaicas dos Estados Unidos, especialmente porque diálogos entre ele e Nixon

Em um artigo assinado por Kissinger e publicado em 2010 no jornal The Washington Post, ele se defendeu, afirmando que a frase foi exposta fora de contexto e que a oposição pública à Emenda Jackson –Vanik era apenas uma estratégia para tirar o maior número possível de judeus da então União Soviética sem publicidade e sem utilizar os imigrantes com objetivos políticoeleitoreiros. “Para alguém que perdeu muitos parentes próximos e cresceu com pessoas que passaram pela mesma situação, é doloroso ver uma frase que se disse fora de contexto. (...) Minha intenção à época era que a retirada dos judeus da então União Soviética fosse feita sem alarde, de forma silenciosa, para resguardar a segurança de todos”, escreveu.

Aposentadoria? Jamais... Com a renúncia do presidente Richard Nixon, em agosto de 1974, seu sucessor, Gerald Ford, procurou dar continuidade ao governo anterior e manteve Kissinger como Secretário de Estado. Foi quando os norte-vietnamitas quebraram o acordo de paz retomando seu avanço sobre o Vietnã do Sul. Quando Saigon, a capital, caiu sob as forças comunistas, em 1975, Henry Kissinger se ofereceu para devolver sua medalha do Prêmio Nobel. Afinal, a paz ainda era um sonho distante naquela região...

kissinger com o presidente putin, no kremlin

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Nas eleições de 1976, Gerald Ford foi derrotado por Jimmy Carter. Em seu último mês no governo, Ford concedeu a Kissinger a Medalha Presidencial da Liberdade, a mais alta honraria civil da nação. O mandato de Kissinger como Secretário de Estado terminou em 1977. Desde então, dedicou-se a lecionar, escrever dezenas de livros e dar consultorias (em 1980, ele ganhou o National Book Award por seu livro de memórias The White House Years e, em 1982, fundou a empresa de consultoria Kissinger and Associates). Dentre seus livros, estão: Diplomacia (1994); Does America Need a Foreign Policy? (2001); Ending the Vietnam War (2002); Sobre a China (2011) e Ordem Mundial (2015). Nos últimos anos, Kissinger uniu-se ao ex-Secretário de Estado George Schultz, ao ex-senador Sam Nunn e ao ex-Secretário de Defesa William Perry para pedir pela extinção total e completa das armas nucleares. Anos após os acontecimentos da Guerra de Yom Kipur e a saída dos judeus da então União Soviética, novos arquivos até então secretos foram liberados ao público, revelando os bastidores da diplomacia americana. Novos livros foram publicados sobre Kissinger que relatam sua atuação durante a 2ª Guerra Mundial, o antissemitismo de Nixon, a Guerra de Yom Kipur e sua amizade com os líderes de Israel, Golda Meir, Rabin e Peres ... e muito mais. Em junho de 2012, o então Presidente Shimon Peres, uma semana após Kissinger ter recebido a Medalha Presidencial da Liberdade das mãos do Presidente Barack Obama, concedeu-lhe a versão israelense da mesma honraria em

1.

2.

3. 1. Com o Presidente Donald Trump 2. Com o Premiê Bibi Netanyahu 3. Com Ronald S. Lauder, presidente do CJM, no centro, e George P. Schultz

reconhecimento por sua atuação a favor de Israel. O título lhe foi concedido “por sua contribuição singular a Israel e à paz no Oriente Médio, e por ser um estadista com visão e criatividade” – ao que o homenageado respondeu: “Meus pais ficariam mais orgulhosos com esta honraria do que com quaisquer outras que eu tenha recebido ao longo da vida”. Em novembro de 2014 foi o laureado com o Prêmio Theodor Herzl do World Jewish Congress, “por ter contribuído com conhecimento, brilho e grande habilidade ao cargo de Secretário de Estado”, nas palavras de Ronald S. Lauder, presidente da instituição. E, por ocasião de seu 93º aniversário, Shimon Peres quis 21

agradecer mais uma vez a Kissinger por sua contribuição à História do Estado Judeu. Em grande evento da comunidade judaica de Montreal, diante das 2.500 pessoas presentes, Peres declarou: “A sabedoria não envelhece jamais; e tenho um exemplo vivo aqui à minha direita. Henry Kissinger foi o maior estadista de nossa era”. BIBLIOGRAFIA

Slater, Elinor e Slater, Robert, Great Jewish Men, JDavid, 1996 Oren, Michal, Six Days of War, Oxford University Press, 2002 Encyclopaedia Judaica, Second Edition, Volume 12 Academy of Achievement - http://www. achievement.org/ Artigo de Henry A. Kissinger “Putting the Nixon tape in context”, publicado no The Washington Post em 26 de dezembro de 2010 junho 2018


PERSONALIDADE

Kissinger: a libertação de Ahlem O livro de Niall Ferguson, “Kissinger, Vol. 1, 1923-1968: O Idealista”, é o primeiro a dedicar várias páginas a um aspecto até então nunca explorado: a participação de Kissinger na 2ª Guerra Mundial, militar do exército americano, na libertação de um campo de concentração nazista, o de Ahlem-Hanover.

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omo explica o autor, “em 10 de abril de 1945, poucos dias antes da captura da célula terrorista da Gestapo, Kissinger viu-se cara a cara com o Holocausto quando ele e outros integrantes da 84ª Divisão do exército americano descobriram, por acaso, o campo de concentração de Ahlem.

Em 2005, 60 anos depois, as recordações de Kissinger continuavam vivas. Ficaram marcados em sua mente os “absurdos chocantes” como “o pessoal das SS que... tinham permanecido porque ‘pensavam que seriam necessários para administrar ‘o grande empreendimento’; o estado quase irreconhecível como humano dos prisioneiros, tão debilitados, que era necessário quatro ou cinco deles para agarrar um único SS – que conseguia facilmente se livrar deles”; meu “instinto imediato... de alimentá-los e... de salvar vidas”. Um sobrevivente, Moshe Miedzinski, revelou anos mais tarde que jamais se esqueceu do olhar com que Kissinger lhe disse “Você está livre”!

Durante muitos anos, Kissinger não falou desse evento. E, de fato, o acontecimento só veio à luz quando o operador de rádio Vernon Tott, um dos soldados que integrava a Divisão de Kissinger, decidiu publicar as fotografias que tinha tirado no dia em que descobriram o campo. Para soldados americanos como Vernon Tott, as monstruosas cenas em Ahlem foram inesquecíveis. Mas foi ainda pior para seus camaradas judeus e, especialmente, os judeus de origem alemã. Um deles, Bernie Cohn, “começou a soluçar baixinho” quando saíram do campo...

Kissinger escreveu uma carta de duas páginas descrevendo como foi seu encontro com os 35 prisioneiros desnutridos – os sobreviventes de um grupo de 850 judeus que haviam sido confinados em Ahlem. A angústia e fortes emoções que o jovem Kissinger expressou, logo após a libertação do campo, permaneceram ocultas entre seus escritos – que ele doou à Biblioteca do Congresso, em 1977, – até que Ferguson as publicou em um novo volume.

Como reagiu Henry Kissinger? “Entrar em Ahlem”, Kissinger diria mais tarde, havia sido “uma das experiências mais angustiantes e horripilantes de minha vida”. 22


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Essas declarações têm ainda mais impacto por terem sido escritas pouco depois do acontecido, quando Kissinger deu o seguinte título ao manuscrito: “O Judeu Eterno” – uma referência irônica ao filme de propaganda nazista antissemita, com esse título, “Der ewige Jude”. Como explica Ferguson, o documento tem importância enorme pelo fato de registrar as reações angustiadas e imediatas sobre o maior crime jamais cometido – que merece ser reproduzido sem reduções ou comentários: “O campo de concentração de Ahlem foi erguido em uma colina em Hanover. Arame farpado o rodeava. E enquanto nosso jipe viajava rua abaixo, esqueletos vestidos de roupa listrada ladeavam a estrada. Havia um túnel nas encostas da colina onde os prisioneiros trabalhavam 20 horas por dia, na penumbra. Parei o jipe. As roupas pareciam se desprender dos corpos; a cabeça presa por uma vareta do que outrora devia ter sido uma garganta. Varas estavam penduradas dos lados, em lugar dos braços, outras em lugar das pernas. ‘Qual o seu nome?’, e os olhos do homem embaçam e ele tira o chapéu esperando um golpe. ‘Folek… Folek Sama’. ‘Não tire o chapéu, você agora é um homem livre’.

Henry Kissinger e Fritz Kraemer, Alemanha, 1945

Isso é a humanidade no século 20. As pessoas chegaram a tal estupor de sofrimento que vida e morte, vitalidade ou imobilidade não se podem mais diferenciar. Ademais, quem está morto e quem está vivo, o homem deitado cujo rosto agonizante me encara ou Folek Sama, com a cabeça curvada e o corpo emaciado? Quem teve sorte, o homem que desenha círculos na areia balbuciando ‘Estou livre’, ou os ossos que estão enterrados na colina? Folek Sama, seus pés foram quebrados para que não pudesse fugir, seu rosto

parece ter 40 anos, a idade de seu corpo é indecifrável. No entanto, sua certidão de nascimento diz que você tem 16 anos. E eu estou aqui de pé, com minha roupa bem passada e faço um discurso para você e os que ainda estão vivos. Folek Sama, você é motivo de acusação contra a humanidade. Eu, ‘Joe Smith’, a dignidade humana; todos falharam perante você. Você deve ser preservado em cimento, aqui no alto da colina, para que as futuras gerações olhem para você e reflitam. A dignidade humana, os valores objetivos pararam de existir diante deste arame farpado. O que diferencia você e seus camaradas dos animais? Contudo, Folek, você continua sendo um homem. Você está diante de mim e as lágrimas correm em seu rosto. Soluços histéricos se seguem. Pode chorar, Folek Sama, porque suas lágrimas são o testemunho de sua humanidade, porque elas serão absorvidas por este solo amaldiçoado, consagrando-o.

Enquanto eu falava, olho em direção ao campo de concentração. Vejo os barracões, observo os rostos vazios, os olhos sem vida. Vocês estão livres, agora. Eu, com meu uniforme bem passado, não vivi em meio à sujeira e à total miséria, não apanhei nem fui chutado. Que tipo de Liberdade posso oferecer? Vejo meu companheiro entrar em um dos barracões e sair com os olhos lacrimejando. ‘Não entre lá. Foi preciso chutá-los para saber quem estava morto e quem estava vivo’.

Enquanto existir consciência neste mundo, você a personificará. Nada do que for feito para você, Folek, jamais o poderá restaurar. Você é eterno, neste sentido.” 23

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PERSONALIDADE

Sobreviventes do campo de Ahlem e soldados americanos, à porta da enfermaria

Em 2005, Vernon Tott publicou um “livro caseiro, de 2,5 cm de grossura”, com relatos dos soldados americanos que libertaram Ahlem e fotografias que tirou com a câmera que levava no bolso do colete. Em 2007, ele produziu um documentário sobre sua unidade do exército americano, que libertara Ahlem. O Anjo de Ahlem foi produzido pelo Instituto de Documentários da Universidade da Flórida. O filme teve sua estreia em um evento em maio do mesmo ano, no Lincoln Center, em NY, e no público estavam 12 sobreviventes do Campo de Concentração de Ahlem. Pouco antes da exibição do filme, Henry Kissinger fez o seguinte discurso, que não consta no livro de Ferguson, mas é uma indicação do impacto perene do que ele viu em Ahlem como jovem soldado: “Costumo falar para vários grupos e tenho inúmeras oportunidades de expressar minhas ideias, mas quero dizer que não há grupo algum que signifique mais para mim do que este grupo em particular, aqui esta noite. E estou profundamente honrado por terem me deixado aqui estar. Fiz parte da 84a Divisão de Infantaria. Comecei na Companhia G do 335º Regimento, cavando trincheiras em Louisiana. Quando a divisão foi transferida para a Alemanha, eu continuava na Companhia G da 335a Divisão, até que um dia nosso General veio para

fazer uma inspeção. Ele me chamou de lado e disse: ‘Soldado, expliqueme o que ocorre aqui’. Eu expliquei. Em seguida, fui transferido para a Seção G-2, da Inteligência. E, nessa capacidade, eu servia na 84ª Divisão de Infantaria quando esta capturou a cidade de Hanover. E, nos arredores de Hanover, como os sobreviventes que estão hoje presentes sabem, ficava o campo de concentração – ou de trabalhos forçados – de Ahlem. Claro que eu havia lido sobre os campos de concentração. Posteriormente, fiquei sabendo que minha avó e muitos membros da minha família haviam sido enviados a campos de concentração. Na verdade, 13 familiares morreram nos campos, inclusive minha avó. Mas eu não podia sequer chegar a imaginar o que eram na realidade. Nunca havia visto pessoas degradadas, reduzidas ao

Kissinger, à direita, e soldados de sua unidade, com crianças alemãs. 2a Guerra Mundial

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nível em que eles estavam em Ahlem. Mal pareciam homens. Eram meros esqueletos. Não preciso dizer isto aos sobreviventes. De fato, estavam tão esqueléticos que era perigoso dar-lhes alimento sólido, já que muitos poderiam não o digerir. Foi a experiência mais chocante que tive, em toda a minha vida, e que ficou gravada em minha memória. Muitos artigos foram escritos a meu respeito, e muitos afirmam que, quando criança, fiquei traumatizado com o que ocorreu na Alemanha Nazista. Pura bobagem! Quando eu ainda estava na Alemanha Nazista eles ainda não estavam matando pessoas. Saí de lá em 1938. Mas o evento traumático foi ver Ahlem. Foi aí que vimos a barbárie do sistema nazista e a degradação de seres humanos. Não há nada que me deixe mais orgulhoso de meu serviço a este País do que ter sido um dos que tiveram a honra de libertar o Campo de Concentração de Ahlem. E isso é algo que não devemos esquecer. É uma obrigação que todos nós temos. Não falo muito sobre isso, pois aqueles que não passaram por isso não podem entender. Mas saúdo os sobreviventes aqui presentes, e eu ficaria extremamente honrado se pudessem vir até aqui e tirar uma foto comigo. Muito obrigado a todos”. Baseado no artigo de Menachem Butler publicado em 29 de outubro 2015



ISRAEL

ISRAEL – 70 ANOS - A BATALHA PELO RECONHECIMENTO POR ZEVI GHIVELDER

Em maio de 1945, quando terminou a 2ª Guerra Mundial, a liderança sionista se dividiu. O grupo em torno de Chaim Weizmann acreditava que o futuro da antiga Palestina continuaria dependendo de ações diplomáticas voltadas para a boa vontade do Império Britânico. Ben Gurion e seus próximos estavam convictos de que o destino do sionismo estaria na Casa Branca porque os Estados Unidos haviam emergido do conflito como a maior potência mundial.

N

que pelo menos um milhão de judeus teriam sido poupados do Holocausto. A vigência do White Paper, mesmo depois da 2a Guerra, fazia com que milhões de deslocados e sobreviventes se aglomerassem em campos de refugiados em diversos países da Europa.

Entretanto, os dirigentes sionistas foram fulminados por uma terrível decepção. Os ingleses em nada modificaram sua política com relação à Palestina. Pelo contrário. Sustentaram em vigor o White Paper, documento datado de 1939, que proibia a imigração de judeus para Eretz Israel (Terra de Israel). Se esta imposição não tivesse existido, é lícito imaginar

Foi nessa conjuntura que teve início a chamada Aliá Bet, o transporte clandestino de judeus apátridas para a Palestina. Os refugiados eram recolhidos em suas instalações provisórias e embarcados em navios pequenos e rudimentares, que partiam de portos situados na costa italiana. Ao todo, cerca de 100 mil pessoas tentaram entrar de forma ilegal na Palestina sob mandato britânico, tendo sido realizadas 42 viagens em 120 navios. Mais da metade deles foram interceptados pela marinha britânica, que mantinha oito navios em plantão permanente no porto de Haifa, na Palestina. Esse bloqueio muitas vezes se deu de forma violenta e alguns barcos com refugiados foram afundados, resultando em mais de mil afogamentos. A maioria dos sobreviventes capturados foi internada em campos na Ilha de Chipre. Não eram réplicas dos campos de concentração, mas de qualquer maneira estavam cercados por arames farpados.

o mês de julho daquele mesmo ano, os seguidores de Weizmann comemoraram a eleição de Clement Atlee, líder do Partido Trabalhista britânico, para primeiroministro, derrotando Winston Churchill, o grande comandante da vitória sobre o nazismo, uma ingratidão que até hoje os ingleses não conseguem bem explicar. Além de Weizmann, todo o núcleo dirigente da Agência Judaica exultou com a vitória de Atlee. Depois de longos anos do Partido Conservador no poder, o Reino Unido teria à frente um político de ideologia socialista, a mesma que inspirava a corrente majoritária do movimento sionista. Enfim poderia haver com os mandatários um entendimento mais aberto, com menos repressão e favorecimento para os árabes cujo imponente guia, o Mufti de Jerusalém, se havia aliado aos nazistas.

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Protesto Judaico contra o white paper. Palestina sob Mandato Britânico, 1939

Durante três anos, ou seja, desde o fim da 2a Guerra até a independência de Israel, os ingleses mantiveram 50 mil judeus sob custódia. Foram poucos os que conseguiram furar o bloqueio. Ernest Bevin, nomeado chanceler (ministro das relações exteriores) do gabinete de Atlee, antigo sindicalista, era radicalmente contra a existência de uma nação judaica e diferentes historiadores não hesitam em apontá-lo como um explícito antissemita. Sentindo-se impotente para solucionar a questão da Palestina, em fevereiro do ano seguinte Bevin anunciou que o Reino Unido renunciaria a seu poder de mandatário e que, doravante, transferia a solução do problema do Oriente Médio para as Nações Unidas.

A ONU não perdeu tempo. Em maio de 1947 instituiu a UNSCOP (sigla em inglês referente ao Comitê Especial para a Palestina), incumbida de fazer uma inspeção ao vivo naquele território e, em seguida, apresentar um plano de resolução. Os dirigentes da Agência Judaica contavam com o apoio dos Estados Unidos para o sionismo, não tanto por parte do governo, em face das omissões de Roosevelt durante o Holocausto, mas por conta do expressivo número de personalidades importantes e influentes na vida americana que já haviam abraçado a causa judaica. Entretanto, a posição da outra grande potência do pósguerra, a União Soviética, era uma aflitiva incógnita. Na verdade, os sionistas tinham razões históricas de sobra para desconfiar dos soviéticos. Embora a revolução bolchevique tivesse 31

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contado com a participação de grande número de judeus, o antissemitismo permanecia entranhado no cotidiano dos russos. A rigor, múltiplas eram as razões para que os dirigentes da Agência Judaica tivessem poucas esperanças de contar com uma posição favorável do bloco soviético nas Nações Unidas.

banco BARCLAY’S, em Jerusalém, no dia da vitória, 8 de maio de 1945

No que dizia respeito à posição dos Estados Unidos, os líderes sionistas avaliavam com ceticismo as ações até então tomadas pelo presidente Franklin Roosevelt. Sabia-se que o problema judaico sempre estivera presente em suas preocupações. Durante muitos anos, ele costumava comentar em tom jocoso com seus assessores que talvez fosse possível estabelecer os judeus nos picos andinos ou nas savanas africanas, ou em quaisquer outras paragens, menos nos Estados Unidos. No entanto, levando o assunto a sério, Roosevelt ordenou a elaboração de um projeto, que recebeu o título de Projeto M

BEN GURION, à esq., testemunha perante membros da unscop, em jerusalém

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(referência à palavra migrantes), com a finalidade de traçar diretrizes para alocar as milhares de pessoas que certamente vagariam sem destino depois da guerra, especialmente os judeus. Nesse sentido, o presidente convocou o jornalista, romancista e ex-funcionário do serviço de inteligência, Frank Carter, para o assessor nessa questão. Carter, por sua vez, chamou o eminente antropólogo Henry Field e o instruiu para que reunisse outros competentes colegas de profissão. Por que antropólogos? Porque Roosevelt pretendia que os futuros refugiados fossem agrupados seguindo critérios étnicos, sociais e, inclusive, com perspectivas para bem sucedidas misturas raciais. Essa equipe deveria fazer um minucioso levantamento das regiões do planeta capazes de acolher grandes números de refugiados, mas os Estados Unidos não deveriam constar desses levantamentos. A morte de Roosevelt, em abril de 1945, resultou também na morte do Projeto M e não se sabe se, realmente, aconteceu o trabalho da equipe de antropólogos. Tendo em vista que a questão da Palestina havia sido transferida de Londres para as Nações Unidas, a Agência Judaica montou uma força-tarefa, encabeçada por Moshe Sharret, em Nova York, encarregada de atuar na sede da ONU. Enquanto a UNSCOP percorria a Palestina, o pessoal de Sharret fazia um contínuo trabalho de persuasão junto a embaixadores dos países de todos os continentes. Moshe Sharret e Eliahu Epstein, diretor da Agência Judaica em Washington, falavam o idioma russo com fluência e costumavam manter longas e amenas conversas com Andrei Gromyko, o embaixador soviético.


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No dia 14 de maio de 1947 o diplomata russo se dirigiu à Assembleia Geral das Nações Unidas: “O império britânico falhou em sua missão, transformando a Palestina num estado policial. Durante a guerra, o povo judeu foi submetido a um indescritível sofrimento que não pode ser resumido em estatísticas. Agora, centenas de milhares de judeus vagueiam sem destino pelos países da Europa. Ajudar este povo é uma obrigação das Nações Unidas”. Abba Eban escreveu em suas memórias que ficou tão atordoado com o discurso de Gromyko que mal conseguiu assimilar o que ele estava dizendo. Aquela mudança na atitude soviética, que há trinta anos considerava o sionismo como um movimento inimigo do povo russo, era mais do que surpreendente. No entender de Eban, só tinha como justificativa a antipatia de Stalin pelos ingleses e seu desejo de bani-los do Oriente Médio, além de uma represália a Churchill que, em março de 1946, cunhara a expressão “Cortina de Ferro” que os comunistas não suportavam. Semanas antes da aprovação da partilha da Palestina pela Assembleia Geral, no dia 29 de novembro de 1947, Gromyko voltou ao pódio ainda mais enfático: “O povo judeu esteve vinculado com o território da Palestina no transcurso de longos períodos da história. Além disso, devemos levar em conta a situação em que se encontra o povo judeu desde o fim da 2a Guerra Mundial. A solução do problema da Palestina, com a criação de dois estados independentes, terá profundo significado histórico e atenderá às justas reivindicações do povo judeu”. Foi sob o eco dessas palavras que a União Soviética e

Membros do PALMACH E IMIGRANTES JUDEUS “ilegais”, Palestina sob Mandato Britânico

seus satélites, Bielorússia, Ucrânia, Polônia e Checoslováquia, votaram a favor da partilha. De dezembro de 1947 a maio de 1948, o futuro Estado de Israel viveu dias dramáticos. Primeiro houve a incerteza referente à proclamação em si da independência. Parte dos dirigentes da Agência Judaica julgava inoportuna qualquer medida apressada, ou seja, a independência logo após a retirada do último inglês

da Palestina. Mas era essa pressa que era defendida por Ben Gurion, cuja tese acabou prevalecendo. A par dessa incerteza, havia a certeza da carência militar do país a ser criado. E prevalecia um consenso: o futuro Estado de Israel só se viabilizaria se obtivesse o reconhecimento por parte dos Estados Unidos. Antes da votação da partilha, Truman recebeu uma carta de seu velho amigo Eddie Jacobson, que

AssemblEia Geral das Nações Unidas, 29 de novembro de 1947

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do estado judeu, “porque somente através de Eilat e do Golfo de Ákaba teremos acesso à navegação no Mar Vermelho”. O memorando acrescentava: “O próprio relatório do UNSCOP reconheceu a conexão histórica entre os judeus e aquele pequeno porto no Mar Vermelho”.

CÚPULA DE Yalta, fevereiro de 1945, DA ESQ. PARA A DIR.: Churchill, Roosevelt e Stalin

fora seu sócio numa loja de gravatas em Missouri: “Faço-lhe um apelo em nome do meu povo. O futuro de um milhão e meio de judeus refugiados na Europa depende do que será aprovado nas Nações Unidas. O inverno está chegando e é preciso aliviar o sofrimento daquela gente. De que maneira eles poderão sobreviver no frio, vai além da minha imaginação. Só há um lugar neste mundo para onde possam ir: a Palestina. Eu e você sabemos disso muito bem. Talvez eu seja um dos poucos americanos que realmente sabe avaliar o enorme peso que agora recai sobre seus ombros. Portanto, eu deveria ser o último a fazê-lo pesar ainda mais. Mas sinto que você me perdoará porque a vida de mais de um milhão de pessoas dependem da sua palavra e do seu coração. Harry, meu povo precisa de socorro e eu apelo para que você o ajude”. Pedindo para guardar confidencialidade, Truman foi conciso na resposta: “Como o assunto depende das Nações Unidas, não será adequado que eu intervenha no processo, mesmo porque são necessários dois terços dos votos da Assembleia para que a partilha seja

aprovada. O caso está entregue a Marshall e espero que ao final tudo dê certo”. Dias depois, ainda por interferência de Jacobson, o presidente aceitou receber Chaim Weizmann em audiência. No dia 19 de novembro, Eliahu Epstein encontrou-se com Weizmann e o juiz Frankfurter no café da manhã. Juntos elaboraram um memorando que seria entregue ao presidente ao cabo da reunião. O documento enfatizava a absoluta necessidade de o deserto do Neguev estar dentro das futuras fronteiras

Weizmann foi recebido durante meia hora no Salão Oval da Casa Branca e, em vez de entregar o papel, resolveu tratar de tudo que era crucial em viva voz, estendendo um mapa na mesa do presidente. Referiu-se aos tempos de fazendeiro de Truman e, portanto, ele saberia compreender de que maneira os pioneiros judeus estavam fazendo verdadeiros milagres na agricultura, tornando férteis terras que estavam áridas por mais de cem anos. Na questão do acesso ao Mar Vermelho, explicou que se o Neguev não viesse a pertencer a Israel, continuaria relegado à condição de deserto. Weizmann escreveu em suas memórias: “Saí muito feliz daquela reunião. O presidente entendeu rapidamente o que eu lhe apontava no mapa e prometeu que levaria o assunto para a delegação americana nas Nações Unidas. De fato, Truman telefonou para Herschell Johnson, o embaixador americano na ONU, e deu-lhe ordens inamovíveis em favor de um Neguev israelense. No dia 29 de novembro, quando a partilha foi aprovada, o Times Square e arredores, em Nova York, tornaram-se um pandemônio. Milhares de pessoas cantavam e dançavam nas ruas enquanto eram pronunciados calorosos discursos dos líderes sionistas. Emanuel Neumann, um dos principais ativistas sionistas, falou no microfone: “Devemos essa decisão favorável das Nações Unidas em grande parte, talvez mesmo a maior de todas, aos esforços

EDDIE JACOBSON

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incansáveis do presidente Harry Truman”. Nos primeiros dias de dezembro, Eddie Jacobson voltou à Casa Branca. Recebido por Truman, apenas disse: “Muito obrigado e que D’us o abençoe”. Os amigos se abraçaram e, mais tarde, Jacobson anotou em seu diário: “Ele, somente ele, foi o responsável pelos votos favoráveis de diversas delegações”. Com a morte de Roosevelt, em abril de 1945, assumira a presidência seu vice, Harry Truman, nascido em 1884 na cidade de Independence, estado de Missouri. Era de religião batista e tinha profunda devoção pelos ensinamentos bíblicos que, em considerável parte, viriam a orientar todo o seu comportamento com relação ao povo judeu. Em novembro de 1944, o presidente Roosevelt disputaria seu quarto mandato. Apesar de já estar há doze anos no poder, as guerras na Europa e no Pacífico ainda estavam em curso e os americanos julgavam que seria desaconselhável mudar a chefia do governo. Mas, no plano interno e, a despeito do conflito, os bastidores do Partido Democrata estavam pegando fogo porque não havia um só nome que fosse aceito para a vice-presidência. Depois de ácidas desavenças, o consenso acabou convergindo para Harry Truman, até então um senador por seu estado natal, de pouca visibilidade. Justamente naquele mês de abril de 1945 os Estados Unidos e o mundo começaram a tomar conhecimento dos horrores do Holocausto. Havia centenas de milhares de sobreviventes que, na condição de refugiados, estavam sob a responsabilidade dos Estados Unidos na Áustria e na Alemanha. Truman, ainda vice-presidente,

se indagava sobre o que poderia ser feito em face daquela sombria realidade. Pediu, então, a alguns amigos militares que fizessem uma indagação informal destinada a apurar o que aquela gente em farrapos pretendia daquela hora em diante. A maioria respondeu: “Queremos ir para Eretz Israel”. Isto significou para o presidente, assim que tomou posse, uma grande dor de cabeça.

eles mantinham uma importante aliança política e estratégica nos desdobramentos do pós-guerra. Contudo, no que dizia respeito à então Palestina, Harry Truman e Clement Atlee, primeiro-ministro britânico, tinham convicções opostas. Os ingleses permaneciam irredutíveis no cumprimento do White Paper, o documento de seis anos atrás que impedia a imigração de judeus para a então Palestina.

Os americanos tinham lutado ao lado dos ingleses na guerra e com

Embora o embate da partilha estivesse superado, o secretário de

NA CASA BRANCA, Chaim Weizmann OFERECE A Harry Truman UM SEFER TORÁ, 1948

estado americano, o general George Marshall insistia que as posições de judeus e árabes eram irreconciliáveis, o que certamente provocaria um conflito armado. Foi em meio a esse clima inamistoso que avultou na Casa Branca a figura de um jovem assessor do presidente Harry Truman chamado Clark Clifford. (Tive o privilégio de conhecê-lo na década de 70, no Rio de Janeiro, e de manter com ele uma longa e iluminada conversa). Seu primeiro passo foi produzir um memorando

Clark Clifford

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Enquanto isso, a situação na Palestina ia de mal a pior. Era preciso que os Estados Unidos fizessem uso de sua força política e, se preciso, militar, para que a partilha fosse de fato implementada. A Agência Judaica chegou à conclusão de que era imprescindível um novo encontro entre Truman e Weizmann, que era admirado e respeitado pelo presidente. Convocado para ajudar a resolver o problema, Jacobson mandou um telegrama para Truman: “Chaim Weizmann é um grande estadista e o mais completo líder que qualquer povo possa almejar. Em sua idade avançada, ele está combalido por não poder falar-lhe mais uma vez. Eu imploro que você o receba”. TRADICIONAL PARADA DE 1º DE MAIO. TEL AVIV, 1947

de crítica à posição do Departamento de Estado, comandado por Marshall. Argumentou que tentar anular a partilha era simplesmente impensável. E mais: que os Estados Unidos deveriam intervir junto aos países árabes para que aceitassem a resolução da ONU. Se houvesse recusa, seriam rotulados como agressores.

TRUMAN E BEN GURION, OBSERVADOS POR ABBA EBAN

Enquanto isso, a situação na Palestina ia de mal a pior, acentuada pelo cerco de Jerusalém, obrigando 100 mil judeus a se submeterem a um terrível racionamento de água e comida. Era preciso que os Estados Unidos fizessem uso de sua força política e, se preciso, militar, para que a partilha fosse de fato implementada. No mês seguinte, Clifford chamou a atenção de Truman para as manobras antipartilha que seguiam sendo feitas por Marshall. O presidente respondeu: “Eu sei o que Marshall pensa e Marshall sabe o que eu penso. Ele não vai conseguir mudar minha política”. 36

Como não obteve uma resposta firme do presidente, Jacobson voou para Washington. O que poderia dizer para sensibilizar o amigo de tantos anos e que se tornara quase inatingível? Pediu a Abba Eban que o aconselhasse e ouviu: “Truman tem verdadeira devoção pelo presidente Andrew Jackson. Procure traçar uma comparação entre Jackson e Weizmann. Talvez dê certo”. Mesmo sem audiência marcada, Jacobson rumou para a Casa Branca e logo foi acolhido pelo presidente que permanecia irredutível. Antes de se levantar, Jacobson apontou para um busto de Andrew Jackson existente no salão oval e disse: “Harry, durante toda a sua vida você tem tido um herói. Não há ninguém na América que conheça melhor do que você a vida de Jackson. Pois é, meu amigo, eu também tenho um herói. Seu nome é Chaim Weizmann. É preciso que você o ouça para saber de fato o que está acontecendo na Palestina”. Truman tamborilou os dedos sobre a mesa. Passados quase dois minutos de silêncio, respondeu: “Está bem, você ganha, seu careca sem vergonha. Pode marcar aí com


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David Ben Gurion LÊ A DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA DE ISRAEL, 14 de maio de 1948

o pessoal”. Weizmann foi recebido no dia 19 de março e, em princípio, obteve a concordância de Truman no sentido de que fosse suspenso e embargo de armas e que a partilha seria intocável. No dia 12 de abril, Jacobson voltou à Casa Branca. Queria ouvir do próprio presidente como tinha sido o encontro com Weizmann e jogou um verde, perguntando se, por hipótese, os Estados Unidos reconheceriam o Estado de Israel, cuja independência estava para ser proclamada em pouco mais de um mês. Truman disse: “Fique sabendo que sou inteiramente favorável a essa hipótese”. No dia 14 de maio de 1948, quando Israel se tornou soberano, a Casa Branca viu-se diante do problema do reconhecimento da nova nação: sim ou não? Marshall entrou no Salão Oval acompanhado de um verdadeiro batalhão de funcionários do alto escalão, todos contra o reconhecimento. Na véspera, Clark Clifford havia entrado em

contato com Eliahu Epstein a quem pediu munições pragmáticas e ideológicas a favor de Israel, um país que ainda nem tinha recebido este nome. Na reunião decisiva no Salão Oval, o pronunciamento de Clifford foi brilhante e irrespondível. Irritado, Marshall chegou a dizer ao presidente: “Se o senhor aprovar o reconhecimento é bem provável que eu não lhe dê o meu voto na próxima eleição”. Mas, a cabeça de Truman já estava feita. Os Estados Unidos reconheceram Israel no mesmo dia da sua criação. No dia 15 de maio, Stalin reconheceu a independência do Estado de Israel, não porque amasse os judeus, ou os sionistas, ou o país que acabara de ser criado. Em termos de política externa pragmática interessava à União Soviética que os britânicos saíssem do Oriente Médio e existia a esperança de que ali pudesse florescer uma semente comunista em função da ideologia socialista do partido majoritário, comandado por 37

Ben-Gurion, que seria o primeiroministro do estado judaico. Ademais, dentre os dezesseis componentes do primeiro gabinete israelense, oito ministros haviam nascido na Rússia, inclusive o grande líder, Chaim Weizmann. Mas, o que seria um bom relacionamento entre os dois países durou pouco. Em janeiro de 1949, um artigo publicado pelo eminente economista soviético T.A. Genin enfatizou que “os objetivos do nacionalismo judaico e do sionismo são objetivos iguais aos do capitalismo reacionário e do imperialismo norte-americano”. A guerra de Stalin contra os judeus, em geral, e contra o Estado judeu, em particular, teve um final imprevisto e inesperado. O comunismo acabou e Israel está celebrando 70 anos de soberania.

ZEVI GHIVELDER É ESCRITOR E JORNALISTA

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DESTAQUE

Príncipe herdeiro sinaliza mudanças na Arábia Saudita POR JAIME SPITZCOVSKY

Mohammad Bin Salman, príncipe herdeiro da Arábia Saudita de 32 anos, ao iniciar mudanças em um país marcado por profundo conservadorismo, sinaliza disposição para implementar uma direção nova: aproximar o reino árabe de Israel, após décadas de conflitos e tensões. Líder de uma nova geração a chegar ao poder, MBS, como é conhecido, não esconde ver no Estado judeu um potencial parceiro econômico e importante aliado para conter ambições expansionistas do Irã, inimigo comum de sauditas e israelenses.

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omeado príncipe herdeiro em junho do ano passado, MBS já acumula os cargos de vice premiê, ministro da Defesa e presidente do Conselho de Assuntos Econômicos e de Desenvolvimento. Desponta como patrocinador do Visão 2030, projeto de modernização da economia saudita e, após enfrentar adversários na luta pela sucessão do trono, já se torna figura-chave na decisão dos rumos do país, ainda governado pelo rei Salman, 82.

muçulmana. O Irã é um país de maioria xiita, enquanto os sauditas são majoritariamente sunitas.

Um dos regimes mais conservadores do planeta, a monarquia começou, sob influência do jovem líder, a implementar mudanças como permitir às mulheres dirigir ou reabrir cinemas e teatros, banidos após os anos 1970. Em entrevista ao jornal britânico “The Guardian”, MBS afirmou desejar ver seu país “de volta a um islamismo moderado”, depois de ondas fundamentalistas das últimas décadas.

As pretensões expansionistas do Irã, reforçadas pelo programa nuclear, aproximaram sauditas e israelenses, preocupados com a ameaça do inimigo comum. Os contatos, no entanto, ainda permanecem informais e, muitas vezes, sob uma cortina de segredo. Arábia Saudita e Israel não mantêm relações diplomáticas, o que naturalmente impede explicitar a construção do diálogo.

O herdeiro aponta a revolução iraniana como responsável por provocar, na Arábia Saudita, uma reação conservadora. Em 1979, os aiatolás lideraram o movimento responsável por derrubar o xá Reza Pahlevi e instalaram em Teerã uma teocracia

Mas se multiplicam os sinais sobre as mudanças imaginadas por MBS. Em 2016, um general aposentado do exército saudita, Anwar Eshki, visitou Israel, chefiando uma delegação de acadêmicos e empresários. Foi recebido pelo diretor-geral da chancelaria israelense,

No poder, os aiatolás passaram a pregar a exportação de sua revolução no mundo e iniciaram busca pela liderança no mundo islâmico, reaquecendo a histórica rivalidade com a Arábia Saudita. Na lógica de MBS, sob pressão da ameaça iraniana, clérigos de seu país se fortaleceram e aprofundaram as raízes conservadoras da monarquia.

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riad, arábia saudita

Dore Gold, e por diversos parlamentares, na Knesset.

presidência, Trump escolheu Riad e Jerusalém como destinos iniciais.

Outros tabus caíram. Recentemente, a Arábia Saudita permitiu à Air India voar até Israel cruzando seu espaço aéreo. História também se fez em maio do ano passado, quando o Air Force, avião presidencial norte-americano, levou Donald Trump de Riad a Tel Aviv, no primeiro voo direto entre os dois países do Oriente Médio.

Jared Kushner, genro do presidente, mantém intenso diálogo com MBS. Em março, o príncipe herdeiro embarcou num tour pelos EUA e, em claro processo de construção de

imagem modernizadora, reuniuse com personalidades dos mais diversos setores da sociedade norte-americana. Conversou com Bill Gates e Jeff Bezos, visitou as universidades Harvard e MIT, debateu com investidores em Wall Street e reservou tempo para celebridades como Michael Douglas e Oprah Winfrey. A ofensiva incluiu várias entrevistas à mídia norte-americana. A conversa com a “The Atlantic”, conduzida por Jeffrey Goldberg, gerou ruidosa repercussão. Ao lhe perguntarem se o povo judeu tem o direito a um Estado-nação em pelo menos parte de sua terra ancestral, MBS respondeu: “Creio que cada povo, em qualquer lugar, tem o direito de viver pacificamente em sua nação. Eu acredito que palestinos e israelenses têm o direito de ter sua própria terra”.

A eleição do candidato republicano à Casa Branca contribuiu para impulsionar a aproximação israelosaudita. Trump, há tempos, cultiva relações com Israel, no plano familiar e de negócios, assim como com países árabes do golfo Pérsico, com importantes contatos no mundo empresarial. Não foi por acaso que, em sua primeira viagem ao exterior após assumir a 39

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empenhados em usar suas polpudas reservas para expandir a atividade econômica em setores de serviços, como finanças, turismo e tecnologia.

donald trump e o príncipe herdeiro mohammad bin salman

Na entrevista, o príncipe herdeiro reiterou também orientações tradicionais da política externa do seu país e enfatizou a importância de uma negociação entre israelenses e palestinos. “Temos de contar com um acordo de paz para assegurar a estabilidade para todos e para termos relações normais”, acrescentou o líder saudita. MBS, segundo relatos, teria demonstrado pressa na obtenção de um acordo de paz e impaciência com a liderança palestina. O canal 10 de tv israelense reportou, sustentando

ter confirmado com várias fontes, que o príncipe, em encontro com representantes da comunidade judaica em Nova York, criticou líderes palestinos por haverem rejeitado propostas de paz ao longo de décadas. A reportagem afirmou que MBS chegou a dizer que os seguidores de Mahmoud Abbas devem “começar a aceitar propostas de paz ou se calar”. A aproximação saudita com Israel não vem apoiada apenas no enfrentamento das ambições regionais iranianas, mas também em lógica econômica. MBS, ao assumir o trono, herda uma riqueza baseada sobretudo no petróleo, cuja importância vai-se reduzir nas próximas décadas, com o inevitável avanço na exploração de fontes de energia renováveis e menos poluentes. A Arábia Saudita, portanto, avalia ser inevitável, no médio e longo prazo, modernizar sua economia e diminuir a dependência da indústria petrolífera, como já fazem, há anos, pequenos países vizinhos, como Emirados Árabes Unidos e Catar, 40

No cenário desafiador do século 21, MBS calcula que Israel pode ser importante aliado na modernização econômica, por exemplo, como fornecedor de tecnologia. A visão do príncipe herdeiro, no entanto, encontra resistências nos setores mais conservadores da sociedade saudita e até mesmo o rei Salman, em várias declarações, repete duras críticas a Israel, reverberando posições a prevalecer durante décadas. Mas, se enfrenta resistências no plano doméstico e também externo, MBS cultiva aliados em sua pregação reformista. Outro importante líder árabe e sunita, o Egito, também sabe da necessidade de modernizar sua economia e gerar postos de trabalho, a fim de enfrentar o desemprego entre jovens, diminuir as chances de turbulências sociais e impedir movimentos como o responsável, em 2011, por derrubar o presidente Hosni Mubarak. MBS e o presidente egípcio, Abdel el-Sisi, costuram uma nova fase na relação entre os dois países. Após reunir-se com enviados do reino árabe, o deputado israelense Issawi Frej, de origem árabe, declarou: “Os sauditas querem uma abertura em relação a Israel”. Continuou Frej: “É um movimento estratégico para eles. Desejam continuar o que Anuar Sadat começou. Querem se aproximar de Israel e pudemos sentir isso claramente”. Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim


especial

MORASHÁ, 25 ANOS transcorreram 25 anos desde a primeira reunião na antiga sede da Congregação Beit Yaacov, quando se decidiu criar uma nova revista judaica, com o nome “Morashá”. DeSDE A sua criação, em 1993, até a presente edição de número 100, Morashá cresceu, ampliando seu alcance e seus projetos, e se tornou Instituto Morashá de Cultura. revista trimestral voluntária, de apenas 35 páginas e ENVIADA para 5 mil lares, transformou-se numa publicação profissional, de 88 páginas, com uma distribuição de 30 mil exemplares no Brasil e no mundo.

Seus exemplares têm sido incluídos em bibliotecas e utilizados como fonte de pesquisa. Os encartes incluídos na Revista, com o passo-a-passo para preparação das festas de Rosh Hashaná e Pessach, têm servido a milhares de judeus. No entanto, nesses 25 anos nosso objetivo se manteve: difundir o judaísmo em todos seus aspectos: religiosos, históricos e culturais. Apropriando-nos das palavras do Rabino Lord Jonathan Sacks, mostrando a cada edição a “grandeza de ser judeu”.

uma primeira escola judaica bilíngue, a conceituada Escola Beit Yaacov. E o Brasil? E Israel? E o mundo? Ao longo destas décadas, também passaram por mudanças importantes. Aqui no Brasil, foi lançada uma nova moeda, o Real; a hiperinflação foi vencida. Israel se desenvolveu e cresceu em todos os aspectos, apesar das dificuldades e dos repetidos e sangrentos ataques terroristas. Os Estados Unidos foram vitimados por ataques do terror. No exterior, a União Europeia foi criada, unindo povos, culturas e moedas; mas também não ficou a salvo de repetidos ataques terroristas. Inovações tecnológicas mudaram nossa existência, novas descobertas na área da medicina, processadores cada vez mais rápidos; a internet nos permitindo acessar um número cada vez maior de informações.

O Instituto Morashá expandiu suas atividades para além da publicação da Revista. Foram publicados dois livros – a Hagadá e Raízes de Uma Jornada. Trouxe ao Brasil renomados palestrantes. Foi criado um arquivo digital contendo imagens dos judeus orientais e sefaraditas, em seus países de origens. As imagens foram expostas numa grandiosa exposição. Esse acervo digital, terá brevemente seu acesso facilitado. Está em andamento sua migração para uma nova plataforma na internet, que permitirá a consulta remota a todo o conteúdo, em alta resolução.

A Morashá tem acompanhado os avanços tecnológicos. Um website, que atrai um grande número de visitas, permite, desde o ano 2000, a leitura das revistas on-line. Desde 2014, o site tem novas ferramentas à disposição de nossos usuários, cujo número vem crescendo exponencialmente. A linha do tempo que criamos, a seguir, inclui momentos importantes da evolução da Morashá, e escolhemos alguns acontecimentos importantes no Brasil, Israel e no mundo, para situar melhor no tempo a nossa escalada vitoriosa.

Nossa comunidade, a Congregação Beit Yaacov, também cresceu nesses 25 anos. Foi erguida uma nova Sinagoga, na Rua Veiga Filho, com imponente estrutura. Fundou-se 41

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especial

Setembro

1993

Morashá passa para 50 páginas.

Janeiro

Setembro

Morashá passa para 60 páginas.

Morashá entrevista o ex-prefeito de Jerusalém, Teddy Kollek.

Reunião na Sinagoga Beit Yaacov para criação de uma revista judaica, enviada gratuitamente. Escolheu-se o nome Morashá, que significa “Herança Espiritual”.

1994 Março

Maio Primeira edição da Morashá 35 páginas e tiragem de 5 mil exemplares.

Lançado o Concurso Literário Morashá.

Morashá promove avant première no Brasil do filme “A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg, lançado em dezembro de 1993 nos EUA. Vencedor de sete prêmios no Oscar, é o melhor filme já realizado sobre o Holocausto.

Novembro Morashá entrevista Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto e Prêmio Nobel da Paz.

Junho Morashá entrevista o Dr. William Frosh, psiquiatra da Universidade de Cornell, Nova York.

1993 janeiro Entra em vigor o Tratado da União Europeia (Tratado de Maastricht). março A empresa Intel lança o primeiro processador da família Pentium.

Lançada a pedra fundamental da nova sinagoga da Congregação Beit Yaacov, na Rua Dr. Veiga Filho, em Higienópolis. O projeto é de responsabilidade do arquiteto francês, Alain Raynaud.

Dezembro A empresa israelense Check Point, que atua na área de segurança na internet, lança o primeiro firewall.

Entra em circulação no Brasil o Real, moeda que circula até hoje. Estabelecimento de relações diplomáticas entre Israel e o Vaticano.

1994

Outubro Acordos de Paz entre Israel e Jordânia.

Maio Acordos Gaza/Jericó assinados entre Israel e a OLP estabelecem as bases para a autodeterminação da população palestina em Gaza.

Abril Inauguração do Museu do Holocausto em Washington. Comemoração dos 50 anos do Levante do Gueto de Varsóvia.

Julho Atentado a bomba na AMIA - Associacão Mutual Israelita Argentina - em Buenos Aires. Saldo: 85 mortos e mais de 300 feridos.

Setembro Acordos de Oslo 1 entre Israel e a Organização para Libertação da Palestina (OLP).

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Novembro Realizada em São Francisco a primeira conferência inteiramente dedicada ao potencial da World Wide Web. Dezembro Yitzhak Rabin, Shimon Peres e Yasser Arafat recebem o Prêmio Nobel da Paz.


REVISTA MORASHÁ i 100

1995 1995

1997 1997

Março

Março

Morashá promove palestras com o Rabino-chefe da França, Joseph Sitruk.

1996 1996

Abril

Morashá entrevista o rabino Avraham Hamra.

Junho Morashá entrevista o Rabino-chefe sefaradita de Israel, Eliyahu BakshiDoron, em visita a São Paulo. Morashá promove palestra com o jornalista Alberto Dines sobre “O Caso Dreyfus”.

Outubro Morashá promove palestras sobre o “Judaísmo sefaradita” com o Prof. Yosef Hayim Yerushalmi, titular da cátedra de História Judaica, Cultura e Sociedade da Universidade de Columbia, Nova York.

Dezembro Morashá entrevista o cantor israelense Yehoran Gaon, em turnê pelo Brasil.

Abril O organização israelense Save a Child’s Heart realiza, gratuitamente, cirurgias cardíacas para crianças carentes de todo o mundo. Inauguração da nova Sinagoga Beit Yaacov à rua Dr. Veiga Filho, Higienópolis. A imponente estrutura tem capacidade para 980 assentos. Acordos de Oslo 2 retomam negociações de paz entre Israel e a OLP. Novembro Assassinato do primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin.

Abril Suplemento especial da Morashá com entrevista exclusiva do primeiroministro Shimon Peres.

1998 1998

Setembro

Setembro

1995

Maio Morashá entrevista e homenageia Leah Rabin no Salão da Sinagoga Beit Yaacov, por ocasião de sua visita a São Paulo.

Visita do primeiro-ministro e Prêmio Nobel da Paz, Shimon Peres, a São Paulo.

Morashá promove palestra sobre “Os desafios da economia frente à globalização”, com Abraham Schochat, ex-ministro da Fazenda de Israel.

Setembro

Morashá estreia nova diagramação.

Morashá promove avant-première do filme “Lembranças de uma Sobrevivente”, com a participação de Gerda Weismann, protagonista do filme.

Novembro Morashá promove palestras com o Rabino-chefe da França, Joseph Sitruk.

Haskará em memória de Yizthak Rabin na Sinagoga Beit Yaacov, na rua Veiga Filho. Presença de autoridades do governo e religiosas, e lideranças judaicas.

1996 Fevereiro e Março Onda de violentos atentados terroristas em Israel. Abril Operação “Vinhas da Ira” contra o Líbano. Cessar-fogo assinado em agosto. Maio Binyamin Netanyahu é eleito primeiro-ministro de Israel.

Início das comemorações dos 3 mil anos de Jerusalém, cidade proclamada capital do Povo Judeu pelo Rei David. Julho A empresa israelense Mirabilis lança o ICQ, primeiro sistema de mensagem instantânea na internet.

1997 Março Onda de atentados terroristas em Israel. Israel inaugura sua primeira usina de dessalinização por osmose reversa. Maio Comemorado na Prefeitura

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de Paris o 190º aniversário do Grande Sinédrio dos Judeus da França e da Itália (Sanhedrin). Agosto Comemoração do Centenário do 1º Congresso Sionista, realizado na Basiléia em 1897.

1998 Maio Cinquentenário da criação do Estado de Israel. Setembro, outubro e novembro Onda de atentados terroristas em Israel: dois ataques suicidas em Hebron, Beersheva e Jerusalém (no mercado Machané Yehuda).

junho 2018


especial

1999 1999

2000

2001

2000

Morashá promove palestras sobre “Drogas e adicção” com o Dr. Rabino Avraham J.Twerski, fundador do Centro de Reabilitação Gateway para o Tratamento de Dependentes Químicos e JACS ( Jewish, Alcoholics, Chemically Dependent Persons and Significant Others).

Fevereiro

Fevereiro

Morashá promove pré-estreia do filme “A Vida é Bela”, dirigido por Roberto Benigni, vencedor de três estatuetas no Oscar.

Setembro Rabino-chefe asquenazita de Israel, Meir Lau, escreve o artigo “Yamim Noraim – Tempo de Reflexão”, especial para a Morashá.

Dezembro Morashá lança artigos do jornalista Alberto Dines sobre a presença judaica no País para marcar 500 Anos do Descobrimento.

Abril Morashá passa a contar com 80 páginas.

Março Morashá entrevista, com exclusividade, Elie Wiesel, em sua visita a São Paulo.

Setembro Lançado o site www.morasha.com.br.

Junho Dr. Rabino Avraham J. Twerski escreve “Os anjos não deixam pegadas”, artigo exclusivo para Morashá.

Julho Oficialmente constituído o Instituto Morashá de Cultura.

Novembro Jantar para patrocinadores e colaboradores marca o 8º aniversário da Morashá.

1999

2000

Janeiro O Euro começa a ser usado em transações eletrônicas, em 11 países-membros da União Europeia.

Janeiro Descobertos vestígios da Sinagoga Kahal Zur Israel, a primeira sinagoga das Américas. Construída no século 17, em Recife, é considerada um dos tesouros arqueológicos da região. Albert Einstein é eleito personalidade do século 20 pela revista Time. Lançamento do programa Birthright, cuja meta é levar milhares de jovens judeus para visitar Israel.

Setembro O general Ehud Barak é eleito primeiro-ministro de Israel. Ehud Barak e Yasser Arafat assinam o 2º Acordo de Paz de Wye. Duas horas depois, atentados terroristas em Israel. Dezembro Partidos de extrema direita avançam na Europa, principalmente na Áustria e Alemanha.

e visita, entre outros lugares, o Kotel e Yad Vashem. Pede perdão pelos erros cometidos pela Igreja Católica em relação ao Povo Judeu. Março, abril e maio Onda de ataques terroristas em Israel. Junho e Julho Retirada das tropas israelenses do Sul do Líbano. Fracassam negociações de paz entre Israel e a OLP. Outubro Início da Segunda Intifada. Hezbolá lança foguetes contra o Norte de Israel.

Março Papa João Paulo II vai à Israel

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Aumenta significativamente o número de atos de violência contra os judeus na França. Dezembro Yasser Arafat rejeita o plano de paz apresentado pelos EUA.

2001 Janeiro Fundação da ISRAAID, organização de ajuda humanitária que atua em áreas de desastres naturais. Fevereiro Ariel Sharon é eleito primeiroministro de Israel. Março Aviões dos EUA e Reino Unido bombardeiam o Iraque.


REVISTA MORASHÁ i 100

2002 2002

2003 2003

escola beit yaacov

Dezembro Instituto Morashá de Cultura cria o Centro Morashá de Memória. O objetivo é elaborar um acervo digital de fotografias, cartas e documentos de judeus originários do Oriente Médio, Grécia, Itália e Norte da África.

2001

Abril Morashá celebra seu 10º ano. Com 84 páginas, a Revista é distribuída a 30 mil lares, no Brasil e no exterior. A Edição número 40 traz o primeiro suplemento contendo um guia para as Festas.

Agosto Instituto Morashá, A Hebraica e o Beit Chabad do Morumbi promovem palestras com o rabino Laibl Wolf, da Austrália.

Inaugurado em Recife o Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, onde havia sido construída a Sinagoga Kahal Zur Israel. Patrocínio Fundação Safra. Abril Reinaugurada a Sinagoga Beit Yaacov na Rua Bela Cintra, após ampla reforma. julho 16a Macabíadas, em Israel. Ataques a Israel com foguetes pelo Hamas. Em resposta, Israel inicia operação em Gaza.

Agosto Assistência Social Beit Yaacov (ASBY) inaugura o Consultório Odontológico. Setembro No dia 11, o maior ataque terrorista da História destrói as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Ataque simultâneo contra o Pentágono, em Washington. Atentados deixam mais de 2 mil mortos. Outubro Rehavam Zeevi, ministro do Turismo de Israel, é assassinado em Jerusalém por um comando da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP).

Início das atividades da Escola Beit Yaacov, em uma casa no bairro de Higienópolis, com 120 alunos.

2003

Inaugurada nova sede da Escola Beit Yaacov no bairro Várzea da Barra Funda. Aberto o primeiro ano do Ensino Fundamental, o G1.

Dezembro Massada e a Cidade Velha de Acco são designadas Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

2002 Abril Mortos e feridos no atentado terrorista à Sinagoga de La Ghriba, na Tunísia. “Ato pela Paz, Contra o Terror e Contra o Antissemitismo”, promovido pela Federação Israelita do Estado de São Paulo, reúne 10 mil pessoas. Junho Sinagoga Kahal Zur Israel é reaberta em Recife.

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Dezembro O israelense Daniel Kahneman recebe o Prêmio Nobel de Economia.

2003 Fevereiro Explosão do ônibus espacial americano Columbia causa a morte da tripulação - um dos astronautas era o israelense Ilan Ramon. Março Coligação liderada pelos EUA inicia Guerra no Iraque. Dezembro Yad Vashem, Museu do Holocausto de Israel, situado no Monte Herzl, em Jerusalém, comemora 50 anos.

junho 2018


especial

2004

2005

Agosto Instituto Morashá promove palestra “A Cabalá do Equilíbrio entre a Alma e o Corpo”, com o rabino Laibl Wolf.

Dezembro Instituto Morashá recebe 1º Prêmio K de Responsabilidade Social.

Abertura da exposição de fotografias e documentos do Centro de Memória “Raízes de uma Jornada – 45 Anos da Fundação da Congregação Beit Yaacov” .

2007

Agosto Instituto Morashá promove a exibição do documentário “Testemunha Imaginária, Hollywood e o Holocausto”, de Daniel Anker.

2006 2007

Setembro Instituto Morashá promove palestra com Judy Feld, canadense responsável, com seu marido, Ronald Feld, pelo resgate de judeus sírios na década de 1970.

Abril O Instituto Morashá lança uma nova edição da Hagadá de Pessach com comentários inéditos e iluminuras.

2008 Fevereiro Implantação do Acervo Digital do Instituto Morashá de Cultura. O Acervo reuniu, catalogou e digitalizou fotos e documentos cedidos ao longo dos anos. A iniciativa visa facilitar o acesso da comunidade ao material.

2004

Fevereiro Na Conferência Europeia sobre o Antissemitismo, o Rabinochefe do Reino Unido, Lord Jonathan Sacks, alerta sobre o alastramento do antissemitismo. Maio ONU declara Tel Aviv Patrimônio Mundial como símbolo do estilo Bauhaus. Consultório Odontológico da ASBY expande atendimento e se muda para o Bom Retiro. Dezembro Os israelenses Aaron Ciechanover e Avram Hershko recebem o Prêmio Nobel de Química.

2005

2006

2007

Fevereiro Israel e Autoridade Palestina assinam cessar-fogo. AbriL Instituto Cultural Safra publica “Sinagogas do Brasil”, com imagens de 100 sinagogas. Agosto Furacão Katrina atinge Nova Orleans. Israel envia equipes de busca e resgate. Setembro Retirada unilateral israelense de Gaza. Dezembro O israelense Robert Aumann recebe o Prêmio Nobel de Economia.

Janeiro Primeiro-ministro Ariel Sharon sofre derrame e Ehud Olmert assume o cargo de primeiroministro.

Janeiro A ONU aprova a resolução que condena “sem reservas qualquer negação do Holocausto”.

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Maio A FDA aprova a distribuição nos EUA do Azilect, tratamento para a Doença de Parkinson desenvolvido pela israelense Teva. Junho Hezbolá sequestra o soldado Gilad Shalit em território israelense. Maguen David Adom passa a ser oficialmente membro da Cruz Vermelha Internacional.

2008 Janeiro Os israelenses lançam o sistema de navegação Waze. Fevereiro Vaticano abre seus arquivos da Inquisição para consultas Julho “Enfrentando o amanhã”, evento idealizado pelo presidente Shimon Peres, marcou as comemorações dos 60 anos da Independência de Israel.


REVISTA MORASHÁ i 100

2009 2009

2010

Janeiro

Maio

Ato em lembrança ao Dia Internacional do Holocausto na Sinagoga Beit Yaacov, com a presença de autoridades federais e estaduais.

Prêmio Nobel Robert Aumann profere palestra na Escola Beit Yaacov.

2011 2011

Abril

Instituto Morashá promove avant première do filme “Defiance”, baseado na história real dos irmãos Bielski durante o Holocausto.

Setembro

Lançamento de “Raízes de Uma Jornada” na Sinagoga Beit Yaacov. O livro, de 456 páginas, traça o caminho percorrido, até chegar a São Paulo, pelas famílias sefaraditas orientais que hoje compõem a Congregação Beit Yaacov.

Fevereiro Aniversário de 18 anos da Revista Morashá – Jantar comemorativo para patrocinadores e colaboradores.

escola beit yaacov 2004

Implantação do PYP, Primary Years Program, um programa desenvolvido pela International Baccalaureate Organization (IB).

2008

Inaugurado novo prédio para a Educação Infantil.

A primeira turma de Bat Mitzvá se apresenta no Teatro da Escola.

2012 2009

Escola é credenciada pelo International Baccalaureate Organization (IB) como IB World School. Palestra com o presidente Fernando Henrique Cardoso O recém criado Curso de Educação de Jovens e Adultos EJA - (antigo Ensino Supletivo) atende de 250 alunos.

2009

2010

Março Binyamin Netanyahu reeleito primeiro-ministro de Israel.

Março Ato em lembrança ao Dia Internacional do Holocausto na Sinagoga Kahal Zur Israel, em Recife. ASBY começa a distribuição gratuita de remédios.

Abril Tel Aviv celebra centenário de fundação.

junho Satélite israelense de reconhecimento, Ofek 9, é lançado da Base Aérea de Palmachim. Setembro Israel torna-se membro pleno da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

Dezembro O maior incêndio na história de Israel devasta centenas de quilômetros de uma floresta de pinus no Monte Carmel, perto de Haifa.

2011

Agosto Gilad Shalit, sequestrado em 2006 pelo Hezbolá, é solto em troca de 1.027 presos palestinos. Dezembro O israelense Dan Shechtman recebe o Prêmio Nobel de Química.

Fevereiro Empresa israelense Solaris Synergy lança painéis de energia solar flutuantes.

2012

Abril O sistema de defesa Iron Dome intercepta primeiro míssil de curto alcance lançado contra território israelense.

Junho Pesquisa internacional conclui que Israel é o segundo melhor lugar para startups de alta tecnologia, depois do Vale do Silício.

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Maio Consultório Odontológico da ASBY expande atividades.

junho 2018


especial

Início da distribuição da Morashá para milhares de bibliotecas públicas no País, ampliando a sua abrangência e compartilhando a cultura, a história e os fundamentos religiosos judaicos com o público brasileiro em geral.

2014 2014 2013 2013

escola beit yaacov 2011 Michael Bloomberg, Prefeito de New York, visita a Escola Beit Yaacov e profere palestra.

2013

Março Instituto Morashá traz ao Brasil, pela primeira vez, o Grão-rabino do Reino Unido e da Commonwealth, Lord Jonathan Sacks, para série de palestras.

Abril Abril A revista Morashá apresenta nova diagramação e o site morasha.com.br se atualiza em termos de design e tecnologia.

Julho Instituto Morashá de Cultura tem o primeiro projeto aprovado com recursos incentivados pela Lei Rouanet do Minc (Ministério da Cultura).

Pré-estreia do filme “Sobrevivi ao Holocausto”. Julio Gartner, sobrevivente do Holocausto que passou cinco anos em campos nazistas, relata sua história.

2013

2014

Março Consultório Odontológico da ASBY começa atendimento em ortodontia infantil.

Dezembro Israel se torna o 21º Estadomembro da Organização Europeia de Pesquisa Nuclear.

Janeiro Morre o ex-primeiro-ministro Ariel Sharon. Junho O Estado Islâmico inicia ofensiva no Oriente Médio. Palestinos sequestram e assassinam três adolescentes israelenses. Julho As IDF iniciam a Operação Margem Protetora contra a Faixa de Gaza.

O israelense americano Ariel Warshel recebe o Prêmio Nobel de Química.

Novembro Massacre: dois árabes atacam sinagoga em Jerusalém

Setembro Saddam Hussein é capturado por soldados norte-americanos.

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Inauguração da Sinagoga Or Yossef da Escola Beit Yaacov.

2014 A Escola Beit Yaacov aparece em 9º lugar entre as dez melhores escolas de São Paulo com base nos resultados do Enem 2013, segundo o Ministério de Educação. Com mais de 600 lugares, Teatro J. Safra é aberto ao público.

Ocidental, matando quatro rabinos e um oficial de polícia.

2015 Janeiro Atentados contra a sede do jornal “Charlie Hebdo” e mercearia casher, em Paris. Junho Israel envia 141 atletas ao Jogos Europeus de 2015, conquistando 12 medalhas. Julho O fortalecimento do BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções) contra Israel ganha novas proporções e atenção da mídia.

setembro A Aliá a partir da América Latina aumentou 7% em relação ao ano anterior. Destaca-se o aumento no número de brasileiros, que cresceu cerca de 50% nos últimos anos. Evento na Sinagoga Beit Yaacov -Veiga Filho comemora os 50 anos de fundação da primeira Sinagoga na Rua Bela Cintra. Dezembro Inovações israelenses na área da agricultura e irrigação estão ajudando a alimentar milhares de pessoas em todo o mundo.


REVISTA MORASHÁ i 100

2015 2015

2018 2018

escola beit yaacov

Março

2015

Migração e aprimoramento do Acervo Digital do Instituto Morashá de Cultura para uma nova plataforma na Internet, que permite consulta remota, mais rápida e amigável, a todo o conteúdo e arquivos em alta resolução.

Escola Beit Yaacov realiza, pela primeira vez, o Career Day, para alunos do 9º ano do Ensino Médio. Da programação constaram palestras, estágio, visitas a universidades e seminários.

Abril

Aluno vence Chidon Tanach Brasileiro e fica entre os melhores do mundo nas finais em Israel.

Morashá celebra os 70 anos da criação do Estado de Israel. Morashá poderá ser lida on-line ou baixada como arquivo PDF.

2016

2017 Ilan Goldfajn, presidente do Banco Central do Brasil, realiza abertura do 3º Career Day.

2016

2018

2017

Com impressora 3D e novas ferramentas eletrônicas, Maker Station é ampliada na Escola.

Número de alunos: 960 alunos, da Educação Infantil ao Ensino Médio.

Escola conquista excelentes resultados nos processos seletivos de 2018.

setembro www.morasha.com.br. alcança maior número de visitas.

Foram registrados, nos EUA, 664 incidentes contra judeus, um aumento de 9% em relação ao ano anterior. Israel é classificado entre as 20 primeiras nações do mundo, de acordo com o índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas.

2016 Fevereiro Inaugurado em São Paulo o Memorial da Imigração Judaica, na sede da Sinagoga mais antiga do Estado, a Kehilat Israel, na Rua da Graça, no bairro do Bom Retiro.

Julho Falece Elie Wiesel, Prêmio Nobel da Paz e sobrevivente do Holocausto, que lutou pela preservação da memória dos milhões de judeus assassinados durante a 2ª Guerra Mundial. Setembro

Registrados 335 atos antissemitas na França em 2016.

2017 Janeiro Setor de startups em Israel arrecadou mais de US$ 5 bilhões em 2017, resultado superior ao recorde de US$ 4,8 bilhões registrado em 2016.

2018 Janeiro Menino judeu de oito anos foi atacado por dois adolescentes no subúrbio parisiense de Sarcelles por estar usando kipá. Março Assassinada em Paris Mireille Knoll, 85 anos, sobrevivente do Holocausto.

Falece o Rabino-chefe da França, Joseph Haim Sitruk.

Setembro 20ª Macabíadas: atletas judeus de 80 países competem em Israel.

Abril Israel comemora 70 anos. Início de violentos protestos palestinos na fronteira de Gaza e Israel.

Fórum Econômico Mundial classifica Israel como a 2ª nação mais inovadora do mundo.

Novembro Comemoração do centenário da Declaração Balfour.

Maio Abertura da Embaixada dos EUA em Jerusalém.

Falece o ex-presidente Shimon Peres, último dos pioneiros da fundação do Estado.

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junho 2018


arte

O “CASO DREYFUS” E EDGARD DEGAS POR REUVEN FAINGOLD

No final do século 19, a França ficou convulsionada pelo “Affaire Dreyfus”. Um oficial judeu do Estado Maior, Alfred Dreyfus, havia sido condenado por alta traição. O “Affaire” dilacera a opinião pública, dividida entre os dreyfusards, que defendiam sua inocência, e os antidreyfusards, que acreditavam em sua culpa. intelectuais, escritores e artistas franceses também se posicionaram. E um dos mais ferrenhos antidreyfusards foi Edgar Degas. O caso parecia encerrado; ninguém, àquela altura dos acontecimentos, poderia conceber a tormenta que desabaria sobre a França, nos anos seguintes. Não conformada com a condenação, a família de Dreyfus consegue o apoio, a favor de um novo julgamento, de figuras públicas, como os escritores Anatole France e Émile Zola.

Pano de fundo do Caso Dreyfus O caso Dreyfus ocorre em uma França derrotada na guerra franco-prussiana (1870-71), que deixou em seu rasto uma forte crise econômica, tensões sociais e confrontos políticos. Num cenário como esse, são descobertas evidências da existência de um traidor nas fileiras do exército, que pretendia repassar aos alemães informações sobre a artilharia francesa. O traidor precisava ser descoberto e Dreyfus era o “ traidor ideal”. Primeiro judeu a servir no Estado-Maior do Exército, sua presença irritava os oficiais franceses. Pouco importavam a falta de provas e as irregularidades no processo; para as Forças Armadas francesas sua condenação evitaria que um francês cristão fosse apontado “Traidor da Pátria”.

Em janeiro de 1898, o momento da virada surgiu com a histórica denúncia de Zola – seu ‘’J’accuse’’, impresso no jornal L’Aurore, que vendeu 300.000 cópias em um único dia. Famoso escritor, coberto de condecorações, não hesitara em se arriscar a perder tudo, inclusive sua liberdade, por não tolerar a ideia de que um inocente estivesse preso. Em seu célebre manifesto “Eu acuso” Zola expressa sua indignação perante as intrigas preconceituosas que envolveram o caso.

Acusado de espionagem a favor da Alemanha, Dreyfus é sumariamente julgado e condenado à prisão perpétua na famigerada prisão na Ilha do Diabo (na Guiana Francesa). Em janeiro de 1895, após ser submetido a uma humilhante degradação militar, diante de uma multidão que exigia sua imediata execução aos gritos de “Mort aux juifs”, ele é despachado à Ilha do Diabo, onde ficou preso até 1906.

O “Caso Dreyfus” acaba incendiando a opinião pública e dilacera o país, que se divide em dois campos. De um lado estavam os antidreyfusards que culpavam o oficial judeu e opunham-se à reabertura do processo. Do outro, os dreyfusards, partidários da inocência de Dreyfus, 50


REVISTA MORASHÁ i 100

A degradação de Alfred Dreyfus, 1895

denunciavam as irregularidades do julgamento e demandavam uma revisão imediata do processo. Em 1899, Dreyfus é levado mais uma vez a julgamento, perante um tribunal militar. Apesar das contundentes provas de sua inocência, é condenado mais uma vez, recebendo logo a seguir um indulto. Sua inocência só foi verdadeiramente reconhecida em 1905 e, no ano seguinte, foi reabilitado pelo governo francês.

Na época, o país estava dividido entre uma direita reacionária, ligada às Forças Armadas e à Igreja Católica; e, de outro lado os republicanos liberais e as forças de esquerda. Verifica-se um considerável aumento nas publicações antissemitas, com

Intelectuais e artistas se posicionam Hoje não restam dúvidas de que Dreyfus foi vítima do antissemitismo arraigado na sociedade e Forças Armadas francesas, uma “diabólica conspiração” como a chamou Zola.

frequência acusando os judeus, aberta e causticamente, de “trabalhar contra os interesses da França e arquitetar sua destruição”. Se a França estava dividida, também o estavam seus artistas. O mundo das Artes passava por um período de grandes mudanças e Edgar Degas foi um de seus mais aguerridos protagonistas. Conhecido hoje como “o pintor das bailarinas”, Degas além de um exímio pintor foi gravurista, escultor e fotógrafo. Em 1873, juntamente com Claude Monet, Camille Pissarro e Paul Cézanne, forma a Sociedade Anônima dos Artistas, que abriu sua primeira exposição impressionista em Paris. Degas foi logo apontado pela crítica como o líder do novo grupo, que mais tarde seria conhecido como “os Impressionistas”. Eles propunham uma nova maneira de pintar,

ÉDGAR DEGAS

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JUNHO 2018


arte

em que o movimento e a luz eram os elementos mais importantes. Apesar de ser classificado de “impressionista”, Degas gostava de se autodenominar “realista”. À exceção do grande escultor Auguste Rodin, que insistiu em se manter neutro, praticamente todos os artistas, famosos ou não, adotaram uma posição no caso Dreyfus. Ou eram a favor ou contra o oficial judeu. Os pintores Claude Monet e Jacob Camille Pissarro, amigos de Zola, estavam entre os dreyfusards. Monet não hesitara em escrever uma carta a Zola, cumprimentando-o por sua coragem em defender o oficial judeu, e assinou uma petição em defesa de Dreyfus. Pissarro redigiu também uma missiva cumprimentando Zola por acusar abertamente a República Francesa de estar cometendo uma injustiça. Também acreditavam em sua inocência os artistas Paul Signac (1863-1935), Louis Vuitton (18211892) e Mary Cassatt (1844-1926). Das fileiras antidreyfsards, além

desempenhar cargos públicos”. Renoir afastou-se de Pissarro, acusando-o de que seus filhos não tinham servido ao exército “por não sentirem nenhum tipo de patriotismo com a França”. Em 1882, Renoir negou-se a expor junto a este último, declarando publicamente que “... expor ao lado de um judeu é gerar uma revolução”.

camille pissaro, AUTORETRATO, 1875

de Degas faziam parte Paul Cézanne e Pierre-Auguste Renoir. Apesar deste último manter grande amizade com as famílias judias Natanson e Cahen d’Anvers, sua atitude em relação aos judeus sempre foi hostil. Ele chegou a afirmar que “... não em vão os judeus são expulsos dos países”, e que “... na França lhes deveria ser vedado

Mas, dos artistas impressionistas nenhum foi tão crítico e duro com Dreyfus como Edgar Degas. Certa vez, uma modelo que posava em seu ateliê, questionou a forma como a França lidava com Dreyfus. Enfurecido, Degas retrucou: “Com certeza, você também deve ser judia”, fazendo-a retirar-se imediatamente do estúdio. Apesar de ter sido um grande admirador de Degas, Pissarro chamou-o de “antissemita selvagem”, em carta dirigida a seu filho Lucien. Certa vez, comentou com o pintor Paul Signac, que “Degas e Renoir se haviam distanciado dele desde os trágicos acontecimentos de 1894”, fazendo uma clara referência ao caso Dreyfus. Degas passou a criticar Pissarro duramente, argumentando que “... sua arte é desprezível”. Quando soube que Pissarro o admirava, mais que a qualquer outro artista, chegando a afirmar que “Ele (Degas) é, sem dúvida, o maior artista desta época”, Degas se justificou: “Sim, mas isso foi antes do Affaire Dreyfus”. Fica evidente que, na França do século 19, política e arte se retroalimentavam.

DEGAS PRÉ-DREYFUS

EDGAR DEGAS “RETRATO DO RABINO ELI ARISTIDE ASTRUC E O GENERAL ÉMILE MELLINET”, 1871

52

Hoje, críticos de arte e historiadores acreditam que o Caso Dreyfus trouxe à tona o até então velado antissemitismo de Degas.


REVISTA MORASHÁ i 100

No século 19, artistas e amantes das artes buscavam a companhia dos artistas e intelectuais judeus; e Edgar Degas não foi exceção. Antes de eclodir o Affaire, ele mantinha uma aparente postura favorável aos judeus. Como vimos acima, ele mantinha relações profissionais com Pissarro, organizando com ele exposições de arte. Sabe-se que ele foi um dos primeiros artistas impressionistas a comprar quadros de Pissarro. Frequentava, inclusive, um círculo de artistas judeus composto por Ludovic Halévy e seu filho Daniel, Geneviève Halévy (cônjuge de Georges Bizet) e um dos advogados dos Rotschilds, que administrava um Salon parisiense. No grupo de Halévy havia outros judeus, como o compositor de óperas Ernest Reyer (1823-1909), o marchand Charles Ephrussi (18491905) e Charles Hess. Este último inspirou o personagem Swann, de Marcel Proust, na obra “Em Busca do Tempo Perdido”. Ademais, Degas retratou dezenas de amigos judeus: Ernest May, Émile Levi (1826-1890), o judeuportuguês Monsieur Brandão, pai do pintor Édouard Brandão (18311897), e o artista Henri Michel Levi (1844-1911), que retratou Degas, entre outros. O viés antissemita contra seus compatriotas judeus começa a ser visível, com seu quadro o “Retrato do Rabino Eli Aristide Astruc e o General Émile Mellinet” (V. página anterior). A tela, uma das obras mais admiradas do artista, foi pintada 23 anos antes do “Affaire Dreyfus”. Astruc, uma autoridade em História Judaica, foi rabino na Bélgica, enquanto Mellinet foi um militar republicano, anticlerical e maçom, que ajudou Astruc a socorrer feridos durante a revolta da Comuna de Paris, em 1871. Ambos procuraram

Degas para serem retratados. As opiniões de Degas podem ser vistas no resultado de seus portraits: na tela, o rabino Astruc aparece menos forte, menos confiante e menos importante. Ele está tentando encontrar um lugar na própria composição. A mensagem talvez seja demostrar a superioridade do Estado diante da religião. Em 1878, o pintor termina o óleo a “A Bolsa”. À primeira vista, o quadro não retrata judeus, apenas faz um retrato social da modernidade. Mas, Degas retrata o banqueiro e marchand judeu, Ernest May, postado nas escadarias da Bolsa de Valores, junto a Monsieur Boulatré. O quadro não apresenta o tipo de caricatura antissemita utilizada na época, na França. Os recursos antissemitas utilizados são mais velados. Reparamos certa semelhança com “Amigos do Teatro” (1879), talvez pelas vestimentas pretas, os movimentos, traços físicos dos personagens e até pelas cores da coluna. Se olharmos a posição em que foram retratados os personagens, movimentando suas mãos e se falando em voz baixa, ao pé do ouvido, revela-se um complô, um momento em que figuras enigmáticas com sobretudos e cartolas planejam dar um golpe mortal na sociedade francesa. Degas retrata May com um judeu de nariz adunco, com olhos saltados e lábio protuberantes – “marca artística do status judaico de estrangeiro. A cena incorpora a realidade da hegemonia financeira judaica, bem conhecida por Degas, com a emergência dos Rothschild como força econômica na França e em toda a Europa. 53

Para alguns críticos de arte, como Louis E. Duranty (1833-1880), no óleo, Degas retrata o mito do “complô financeiro judaico” fortemente arraigado nas sociedades europeias dos séculos 18-19. O objetivo desse suposto complô judaico era “dominar” a economia das nações. Este suposto complô surge do retrato preservado daquilo que “eles” (judeus) guardam em total sigilo de “nós” (franceses). É uma imagem que revela velado antissemitismo.

A AMIZADE DEGAS e HALÉVY Degas frequentou a casa da família Halévy. Uma carta encontrada nos “Archives Israélites” revela que ele era presença constante nos almoços dessa família. Seus membros foram retratados várias vezes e assim os Halévy viraram o centro das atenções do artista, a ponto de um deles, Daniel Halévy, afirmar num “Diário”: “Nós o criamos”, referindo-se ao pintor. JUNHO 2018


arte

Retratos dos membros da família Halévy, pintados por Degas, foram encontrados numa “Caderneta de Desenhos”. Num deles, Ludovic escreve: “Degas desenhou, em minha casa, todos os retratos que fazem parte desta coleção”. O próprio Ludovic e seu filho Daniel foram pintados por Degas no quadro “Seis amigos em Diepp” (1885). O ressentimento do artista com o “aumento do poder judaico na França” fica mais evidente em sua pintura de 1879, “Portrait of Friends in the Wings”. Na obra ele retrata Ludovic Halevy, judeu autor de libretos para óperas, conversando nos bastidores da ópera com Albert Boulanger-Cave, rico patrono das artes não-judeu. Na tela fica evidente o destaque que Degas dá à discrepância entre a aparência de Halevy e o ambiente. Baseando-se nitidamente na opinião francesa de que “os judeus não estavam em seu ambiente, na França, e sugavam a vida do país”, Degas criou um portrait em que Halevy estava completamente deslocado na vida pública francesa, assim como ali, na ópera francesa.Em contraste com o pano de fundo brilhante e colorido, Halevy aparece em seu próprio plano sombrio, sua expressão abatida em desacordo com o restante da pintura, sua presença anuviando a cena alegre. Degas usou o estado de ânimo abatido de Halevy, e o completou com os traços estereotipados do judeu, com nariz adunco e barba, para demonstrar que Halevy, “o judeu”, era um estranho no ninho cultural da vida francesa. Ludovic Halévy nasceu em Paris (1834-1908), época em que a literatura francesa estava influenciada pelo romantismo. Filho de escritor, Ludovic vivia em um ambiente propício para as letras. Ainda jovem,

escreveu novelas em que fazia duras críticas à sociedade parisiense. Aos 31 anos, abandonou seu trabalho na administração pública para se dedicar à literatura. Em 1868, ele publica os contos “A Família Cardinal”. Seus textos ironizam os costumes da sociedade parisiense durante a Terceira República. Halévy situa seus personagens na Ópera de Paris, retratando-os como cidadãos deslumbrados pelo abastado modo de vida da classe alta, frequência assídua nas galerias de arte, espetáculos de dança e teatro. Descreve, também, nessa obra, os anseios de uma família pequeno-burguesa, seus limites e tentações, suas posturas políticas, suas perversões e devaneios. A desigualdade de classes emerge em meio à transição, sobrevivendo aos costumes e à vida cotidiana. Halévy narra com ironia teatral as tribulações de uma família classe média parisiense: mãe dominante, pai politizado, membro da Comuna e simpatizante da Terceira República, e duas adolescentes totalmente dedicadas a performances de ballet na Opéra parisiense. Nos anos 70 do século 19, Degas desenha a série “A Família Cardinal”. É difícil perceber se o imaginário do artista consegue distinguir entre as jovens bailarinas e as dançarinas do famoso Moulin Rouge. Sabemos que esses desenhos não agradaram a Ludovic Halévy e, portanto, não foram incluídos em nenhuma edição até 1938, data em que ambos já tinham falecido. Mesmo após esse incidente, Halévy continua ajudando economicamente o artista. Mesmo após o início do Caso Dreyfus, Degas continua pintando membros da família Halévy. Numa 54

tela de 1896, Degas retratou o filósofo e pensador judeu Eli Halévy (1870-1937), filho de Ludovic. Refletindo, sentado num sofá, ele segura o queixo com a mão. Totalmente mergulhada em pensamentos, sua mãe, Madame Louise Halévy, está sentada no mesmo sofá. Na parede, dois quadros de bailarinas completam a composição. Mas, no outono de 1897, a amizade de anos entre Edgar Degas e Ludovic Halévy é subitamente interrompida. Mesmo sendo judeus assimilados, os Halévy demostravam uma forte preocupação pelo clima de animosidade contra seus correligionários reinante na França, especialmente quando todo o clã defende a inocência de Dreyfus. No diário pessoal, Daniel Halévy descreve os motivos da ruptura com o artista: “Terça-feira, 25 de novembro de 1897. Nunca havíamos levantado o tema [caso Dreyfus], mas ontem, conversando no fim da tarde, papai estava muito tenso frente à Degas, um destacado antissemita. Foi nossa última conversa cordial. Nossa amizade, surgida ainda na infância, foi cortada repentina e silenciosamente... Degas jantou em casa pela última vez. Não falou nada a noite inteira... seus lábios pareciam lacrados... Mantinha seu olhar sereno, para o alto, como se desejasse desconectar-se dos convidados que o circundavam. Para Degas, Ludovic disse não haver dúvidas de que Dreyfus queria defender o exército, um exército cuja herança respeitava demais, e que agora era ofendida com nossas teorias intelectuais. Degas não abriu a boca e, encerrado o jantar, sumiu de casa para nunca mais voltar”.


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PALAVRAS FINAIS O nacionalismo exacerbado levou Degas à xenofobia, difundindo ideias preconceituosas. Durante o café da manhã, solicitava a Zoa, sua fiel empregada, que lesse em voz alta as mal-intencionadas charges publicadas na revista “Psst...!”, como também as charges antijudaicas inseridas em “L´Intransigeant”. Será que naquele momento, Degas pensava em seus amigos judeus, entre eles Ludovic Halévy? Que sentiria o impressionista ao ouvir de sua empregada as frases: “Em nome de D’us e da nação francesa, morte aos judeus! ”? Ou “Expulsão à raça dos traidores! ”, ou ainda, “A honra dos franceses diante do ouro judaico!”. Será que Degas se lembraria de Jacob Abraham Camille Pissarro, amigo e parceiro no uso das novas técnicas e um de seus admiradores mais próximos? Com o pseudônimo de Forain Caran D´Ache, o caricaturista Emmanuel Poiré (1858-1909), satirizava os defensores de Dreyfus no jornal “Psst...!”. Ele era amigo de Henri Rouart (1833-1912) e seus quatro filhos, todos opositores do capitão judeu. Em 1895 Degas tinha 61 anos, e, segundo um de seus biógrafos: “Na casa da Rua Lisboa, residência da família Rouart, Monsieur Degas - sempre na companhia de amigos sentia-se à vontade para emitir opiniões repletas de ódio, intolerância e fanatismo. Os amigos presentes o festejavam ao ouvir suas ideias alopradas e preconceituosas”. Era esta a triste realidade da França na 2ª metade do século 19, o denominado “tempo dos Mestres Impressionistas”. Mesmo desconsiderando as telas que se encontram nos grandes museus, os jornais e revistas da época estão

repletos de charges antissemitas em relação aos judeus e o judaísmo. Na charge antissemita reproduzida ao lado, o ilustrador da revista “La Libre Parole” (Palavra Livre), apropriou-se da pintura de Degas, “À la Bourse” (Na Bolsa de Valores), e substituiu os negociantes judeus por traidores “dreyfusards” cujas figuras flácidas simbolizam sua “torpeza moral”. Os “irmãos raciais” (leia-se judeus) e ideológicos de Dreyfus estão distribuindo o folheto “Um erro judiciário”, de Bernard Lazare – texto considerado um verdadeiro anátema pela equipe da “La Libre Parole” e por todos os “antidreyfusards”. O próprio Dreyfus está furtivamente recebendo dinheiro de um personagem não-identificado, uma clara alusão a sua suposta alta traição, a venda de segredos militares franceses à Alemanha. Edgar Degas, o grande artista francês do século 19, foi um grande antissemita, um xenófobo e misógino, apesar de saber perfeitamente como e quando externar sua racionalidade, sensibilidade e emoção. O artista francês é aquele antissemita definido pelo filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980) como uma figura sólida e rochosa, de duvidosa moral, constituída por “valores rígidos petrificados”, uma personalidade lapidada e sem sentimento. O ódio que expressa nasce de um Iluminismo forjador de bodes expiatórios. Para o antissemita francês, os judeus não passam de fantasmas que ameaçam consciências frágeis e atormentadas. O judeu 55

possibilita ao artista obter uma representação bizarra, caricaturesca e satirizada. O antissemitismo de Degas não se manifesta na totalidade de sua obra, aflorando com maior intensidade ao retratar o judeu explorador e capitalista. Desenhos antissemitas permeiam sua produção artística.

BIBLIOGRAFIA

Barreto, Luiz Cézar, O Berço da Hidra. Morashá nº 31, dezembro 2000. (www.morasha.com.br). Drumont, Édouard, La France Juive. 2 vols. Paris 1886. Nochlin, Linda, Degas and the Dreyfus Affair: The image of an antissemitic artist. In: Norman L. Kleeblatt (Editor), The Dreyfus Affair: Art, Truth & Justice, Tel Aviv 1991, (hebraico), págs. 92-109. Sartre, J. P., Réflexions sur la Question Juive. Paris 1944. Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.

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Judeus na Argélia sob domínio islâmico A presença judaica no território da atual Argélia remonta ao início da Era Comum. Durante grande parte de sua milenar história os judeus ESTIVERAM sob domínio islâmico. Vivenciaram alguns períodos de tolerância e crescimento, mas inúmeros outros de humilhações, perseguições e morte. Sua sorte mudou em 1830 quando a Argélia se tornou colônia francesa.

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ituada no Norte da África, a Argélia, segundo maior país em extensão territorial do continente africano, faz parte do Magrebe – em árabe, Al-Maghrib, que significa “poente” ou “ocidente”. A região tem sido habitada por povos berberes1 desde o primeiro milênio antes da Era Comum.

Sob domínio de Roma No ano 70 de nossa Era, os romanos conquistaram Jerusalém e destruíram o Templo Sagrado. Para os judeus, foram dramáticas as consequências da 1ª Guerra Judaico-romana: milhares foram mortos, outros tantos levados pelos romanos como escravos e outros fugiram. Era o início da Grande Diáspora. Um grande contingente acabou se estabelecendo no Norte da África, inclusive na Argélia. Epitáfios que foram descobertos na região de Constantina confirmam a presença judaica no 1º século EC.

Embora não seja possível determinar em que ano e circunstâncias os primeiros judeus se estabeleceram na região, as tradições locais indicam que sua presença remonta à Antiguidade. De acordo com o Prof. Richard Ayoun, judeu argelino e renomado historiador, os judeus já viviam na região no período fenício e cartaginense. Havia judeus na costa mediterrânea, em Hippo Regius (moderna Annaba), Igilgili ( Jijel), Iol (Cherchell), Icosium (Argel) e Gunugu (Gouraya), no interior na região de Constantina e, no planalto, em Medéia, nas montanhas Atlas do Tell. Sabe-se que seu número cresceu após terem os romanos derrotado Cartago, em 146 AEC, e estenderem seu domínio sobre todo o Mediterrâneo.

Há um aumento da população judaica na região, no século seguinte, após Roma ter esmagado as revoltas judaicas: em Cirenaica, em 115, a chamada Guerra das Diásporas, e, em 132, na Terra de Israel, a 2ª Guerra Judaico-romana, liderada por Bar Kochba. Nesse período havia uma importante presença de judeus não apenas no litoral, mas também na região central da moderna Argélia, como revelam as pesquisas do historiador judeu Jacob Oliel, francês de origem argelina, sobre os judeus que habitavam o Saara. Em Touat, por exemplo, os judeus se estabeleceram por volta de 132.

Os berberes (que chamam a si próprios Imazighen, ou seja, “homens livres”) constituem o conjunto de povos do Norte de África que falam línguas berberes. No uso corrente, chama-se berbere ao conjunto de populações do Magrebe.

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Baía de Argel

Para os judeus do Norte da África os séculos 1 e 2 foram marcados por turbulência e estagnação. Mas, assim que a Pax Romana foi restabelecida nos domínios de Roma, eles entram em um período de tranquilidade e desenvolvimento. Na Argélia, há um fortalecimento de várias comunidades, com a construção de inúmeras sinagogas, entre outros, nas cidades de Setif, no século 3, e em Auzia (Aumale) e Tipaza, no século seguinte.

que passa de religião “lícita” para meramente “tolerada”. Na Argélia, como em outras partes do Império, alguns de seus direitos civis são abolidos e algumas sinagogas transformadas em igrejas. Muitos deixam as cidades litorâneas, refugiando-se entre os berberes, nas montanhas Atlas.

Mas, quando o cristianismo se torna a religião do Império Romano, no século 4, a vida judaica entra em retrocesso. Há uma progressiva degradação oficial do judaísmo, Mauretania (ou Mauritânia) é a palavra latina para uma região do antigo Maghreb, que se estendia, à oeste, da região central da atual Argélia até o Oceano Atlântico, passando pelo Norte do Marrocos e as Montanhas Atlas, ao Sul.

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KETER (COROA) DA TORÁ, ARGÉLIA, SÉC. 19

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Apesar desse retrocesso, nos séculos 4 e 5, a importância das comunidades judaicas argelinas é atestada por dois importantes teólogos cristãos: Agostinho, Bispo de Hipona (Santo Agostinho) e Jerônimo de Estridão (São Jerônimo). Vale ressaltar que ambos nutriam profundo e nocivo antijudaísmo. Em uma de suas cartas, Jerônimo de Estridão afirma que as comunidades judaicas formavam uma corrente ininterrupta “desde a Mauritânia2, atravessando a África e o Egito até a Índia”. Registros de historiadores árabes do século 5 também confirmam sua presença no Sudoeste da Argélia. Com o enfraquecimento do Império Romano, os berberes retomaram o controle da maior parte de seu antigo território no Norte da África, com exceção das áreas onde, no século 5, os vândalos, tribo JUNHO 2018


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Para a população judaica, a invasão árabe foi um período de muito sofrimento. Um grande número de judeus alia-se aos berberes, organizando uma resistência armada que duraria 25 anos. É desse período a história de Kahena, a rainha judia da tribo de Jerawa, que consegue mobilizar seu povo no Aurès, uma região no leste da Argélia. Principal líder na luta berbere contra as forças árabes, entre 687 e 697, sua morte, em 693, marca o fim da resistência das tribos berberes, que então se submetem ao Islã.

RUÍNAS DE TIPAZA, ANTIGA CIDADE QUE ERA PARTE DA PROVÍNCIA ROMANA DA MAURITÂNIA DE CÉSAR. FOI DECLARADA PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE PELA UNESCO.

germânica que invadira o Império Romano, estabelecem um reino.

sucessores, lá se estabelecem, inclusive entre os berberes.

Sob os vândalos, os judeus vivem em pé de igualdade com o restante da população e podem professar sua fé, sem restrições. Mas o período de bonança chega ao fim quando, em 534, as forças do imperador bizantino, Justiniano I, subjugam o Reino Vândalo. Com o domínio bizantino tem início uma cruel perseguição aos judeus, que são excluídos de todas as funções públicas e, mais uma vez, muitas sinagogas são transformadas em igrejas, como a de Tipaza.

De acordo com historiadores árabes, ao se refugiarem entre os berberes, os judeus converteram muitas tribos ao judaísmo. Ibn Kaldun, historiador árabe do século 14, afirma em suas obras que várias tribos berberes professavam o judaísmo, entre elas as de Jarua e de Jerawa. No entanto, apesar de não descartar totalmente essa teoria, há historiadores que questionam o fato de que “tribos inteiras” se tenham convertido ao judaísmo. Eles apontam para a falta de registros de tais conversões, e o fato de não haver menção a isso em documentos judaicos anteriores ao século 15.

No século 7, apesar das discriminações, a vida judaica na região da atual Argélia é melhor do que na Espanha sob domínio visigodo, e judeus espanhóis que fugiam de perseguições e conversões forçadas pelo rei Sisebuto e seus Dar al-Islam, “a terra do Islã”, se refere ao território onde prevalece a religião islâmica e onde é aplicada a Shaaria, lei islâmica.

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A chegada do Islã O surgimento do Islã, em meados do século 7, muda a geopolítica e a cultura do Norte da África. Em quatro décadas, vencendo a tenaz resistência berbere, os exércitos árabes dominam todo o Magrebe. 58

Com o fim dos conflitos, no início do século 8, judeus vindos de todo Oriente Médio se estabelecem no Magrebe e reerguem a vida comunitária. Nas cidades de Bugia, Argel, Orã, Constantina, Mostaganem, Biskra e M’za há comunidades organizadas. Após a conquista da Espanha, em 711, por Tarik ibn-Ziyad, governador do Magrebe Ocidental, as comunidades argelinas estreitam seus laços com a Espanha muçulmana e se tornam parte da tradição babilônicosefardita. A história dos judeus da Argélia sob domínio islâmico, um período que se estende por 13 séculos, apresenta tanto similaridades quanto particularidades com a de outros judeus que viviam em Dar al-Islam3. A princípio, os integrantes do Povo do Livro, judeus e cristãos, podiam viver em todo o território sob jugo islâmico sem serem forçados a adotar o islamismo, mediante uma cláusula que lhes concedia o “status protegido” de al-Adhimma. Na condição de dhimmis, eles aceitavam a supremacia do Islã, submetendo-se ao Estado muçulmano, que lhes garantia a vida, a propriedade e o direito de praticar sua religião. Em contrapartida, tinham que cumprir uma série de


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obrigações e pagar tributos especiais, sendo que o mais importante era um imposto anual, o jizya.

em aplicar a lei islâmica e sua intolerância aos não muçulmanos, na região da atual Argélia os judeus foram deixados em paz. Mas, sua relativa tranquilidade termina em meados do século 12, quando toma o poder outra dinastia berbere, a dos almôadas, em árabe al-Muwahhidun, “os monoteístas”.

A vida judaica sob diferentes dinastias islâmicas No decorrer dos séculos seguintes, a região da atual Argélia é palco de períodos de instabilidade política e militar, quando diferentes dinastias tomam o poder. Com isso, os judeus vivenciam curtos períodos de tolerância, seguidos de outros de humilhações, perseguições e destruição. Pois, como o status de al-Adhimma apenas suspendia o direito do conquistador de tomar a vida e propriedade dos conquistados, a vida e bem-estar dos dhimmis ficavam à mercê do humor e dos interesses de cada governante. Inicia-se um período de perseguições quando a dinastia idríssida passa a controlar a parte ocidental da Argélia. O historiador Ibn-Kaldun, mencionado anteriormente, relata que o fundador dessa dinastia se dedicou a apagar todos os vestígios de judaísmo de seus domínios. A situação volta a melhorar quando, no século 9, os aglábidas4 tomam o poder na região. Para os judeus, inicia-se um período de certa tranquilidade e até mesmo de favorecimento. Os conselheiros dos emires aglábidas Ziyadat Allah I e Ziyadat Allah III, por exemplo, eram médicos judeus, respeitados no reino.

MAPA ANTIGO

Judah ibn Quraysh, autor de um estudo comparativo do hebraico e do árabe ao arameu. No século 11, o surgimento dos almorávidas, dinastia berbere islâmica, muda, uma vez mais, a dinâmica da região. Os exércitos almorávidas conquistam o Norte da África e o Sul da Península Ibérica. E, apesar de seu rigor

Os almôadas, que queriam pôr fim à corrupção e à lassidão dos então governantes islâmicos na aplicação das leis do Corão, conquistam o Norte da África: Marrocos, em 1146; Argélia, por volta de 1151; e, em 1160, haviam completado a conquista do Magrebe Central. Ocuparam também grande parte de al-Andalus, Espanha muçulmana, mantendo-se no poder até meados do século 13. O fundador da dinastia faz dos judeus o alvo de suas perseguições. Seus sucessores adotam a mesma política e o século de domínio almôada é de intenso sofrimento. Relatos da época sobre as comunidades judaicas argelinas descrevem massacres e destruição.

Tadrart

No início do século 10 havia judeus em Mejana e Mesila e nas capitais dos vários reinos berberes, como em Tiaret. Nessa cidade viveu o Rabi Os aglábidas foram uma dinastia muçulmana, vassalos dos abássidas, que reinou de 800 a 909 sobre a maior parte do Norte da África.

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Nos séculos 13 e 14 estreitam-se os laços comerciais entre as cidades costeiras da Argélia e da Espanha. Comerciantes judeus haviam recebido concessões e privilégios por parte de governantes cristãos bem como de muçulmanos. Ademais, os reis da Espanha cristã costumavam enviar judeus como embaixadores para as cortes dos califas e príncipes muçulmanos. Eram especialmente próximas as relações entre a Coroa de Aragão e os comerciantes judeus de Barcelona e Maiorca, que se haviam estabelecido na Argélia.

Mulher com “hennin”, chapéu cônico muito usado na Idade Média. Argélia, 1890, óleo sobre tela

Em 1142, a comunidade judaica de Orã é arrasada; em 1145, a de Tlemcen; em 1146, a de Bougie. A situação piora em 1165, após a adoção de uma política de conversão em massa. Sinagogas e ieshivot são fechadas e, sob a ponta da espada, os judeus são obrigados a escolher entre o Islã e a morte. Em 1198, desconfiando da “veracidade de suas conversões”, os governantes os obrigam a usar um traje especial de cor amarela a fim de distinguilos dos muçulmanos “autênticos”. Em torno de 1236, com a desintegração do domínio almôada, outra dinastia muçulmana, os zianidas, toma o poder no Noroeste da atual Argélia. Centrados em Tlemcen, seus domínios estendem-se até Argel. Os zianidas conseguem manter certo controle sobre o Magrebe Central até a chegada dos otomanos, no século 16.

A chegada dos sefaraditas As ligações entre as comunidades judaicas do Magrebe e as da Espanha eram próximas, e não foram poucas as ocasiões em que, alvo de perseguições em determinada região, os judeus saíam em busca de refúgio no país vizinho.

Hennin, chapéu feminino. Argélia, séc. 19

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Em meados do século 13, Aragão passa a dominar o comércio entre as cidades costeiras de Tlemcen, Orã e a Europa. O controle de Tlemcen era de importância estratégica, pois permitia o controle da rota de caravanas que traziam o ouro do Sudão. A rota era também conhecida como “A estrada judia” devido à predominância judaica no comércio da região. O fluxo de judeus sefaraditas em busca de refúgio na costa africana aumenta após 1391, quando os judeus de Castela, Aragão e das Ilhas Baleares são alvo de violentas perseguições conhecidas na história judaica como os Massacres de 5151. São poucos os judeus que se estabelecem no Marrocos, que passava por um período de turbulência interna; a maioria se instala em cidades da moderna Argélia, como Tlemcen e Argel, e no litoral. Os zianidas, como vimos acima, que então dominavam grande parte da atual Argélia, autorizam os judeus ibéricos a se estabelecerem em seus domínios


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mediante o pagamento de uma taxa de admissão, e alguns dentre eles chegam a ocupar importantes cargos nas cortes. A conexão que havia entre os sefardim e a Península Ibérica foi o que fez com que os governantes muçulmanos os vissem com bons olhos. Em diversas oportunidades os judeus foram usados como diplomatas e intermediários em negociações ultramarinas. Nesse período, de modo geral, as relações judaico-muçulmanas eram boas, sendo que apenas ocasionalmente explosões de fanatismo davam origem a perseguições. Entre os judeus espanhóis que se refugiaram na Argélia havia grandes rabinos. Em Argel estabeleceram-se duas importantes autoridades talmúdicas: o Rabi Isaac ben Sheshet Perfet (1326 – 1408), conhecido como o Rivash, e o Rabi Shimon ben Zemah Duran (1361 – 1444), o Rashbatz. Em 1394, estes dois sábios redigem os estatutos da comunidade judaica de Argel, que, no século 15, tornase um grande centro religioso. Em Tlemcen, se estabelece o Rabi Ephraim ben Israel Enkaoua (1359-1442). Exímio médico, Rabi Enkaoua consegue curar, após terem falhado vários outros, a filha única do sultão zianida. Em agradecimento, o sultão lhe concede um bairro próximo ao Palácio, onde ele e outros judeus poderiam viver em paz. Nesse bairro, conhecido como Darb alYahoud, foi erguida uma grande sinagoga que leva o nome de Rabi Enkaoua. Gerações de judeus visitavam seu túmulo, anualmente, no mês de maio. Depois da independência da Argélia, em 1962, o governo proibiu acesso ao mesmo.

Edito de expulsão de 1492 Após o Edito de expulsão dos judeus da Espanha, em 1492, mais uma vez há um fluxo judaico em busca de refúgio no Norte da África, mas nessa ocasião, a maioria se estabelece no Marrocos. Não é certo o número de judeus que desembarcaram na atual Argélia. Como exemplo, há registros de que 12 mil chegaram a Tlemcen, enquanto outros afirmam que foram apenas algumas centenas. Os sefaraditas, chamados de megorashim, “exilados” ou “expulsos”, se estabelecem tanto em cidades do litoral quanto no interior da Argélia. Não foram poucas as vezes em que os judeus locais, chamados de toshavim, tiveram que interceder perante as autoridades islâmicas para que fosse permitido aos sefaraditas lá se estabelecer. Em suas crônicas, o rabino e historiador Eliyahu Capsali (c. 1483-1555), relata a chegada dos

sefaradim a Orã: “Alguns (judeus espanhóis) içaram velas em direção às terras muçulmanas, como Orã, Alcazar e Bougie (…) dezenas de milhares chegaram ao porto de Orã. Os habitantes … ao ver o grande número de embarcações, reclamaram… ‘eles veem como inimigos para destruir-nos e nos levar como escravos... Reúnam-se e vamos para as cidades fortificadas para lutar’... E eles atiraram nas naus… destruindo parte dos judeus. Mas, …quando soube da expulsão, o Califa os recebeu com amabilidade, depois que um mediador, na pessoa de Rabi Abraham, saiu em sua defesa no palácio..., a cidade ficou pequena para absorvê-los. O Califa, então, construiu para eles moradias de madeira fora dos muros da cidade”. Enquanto a grande massa de judeus autóctones vivia precariamente e, dentre eles, era pequeno o número de abastados, frequentemente os recém-chegados eram de um nível sociocultural e econômico mais elevado. Os sefaraditas passaram a viver em bairros separados, mantendo suas próprias sinagogas, cemitérios e entidades beneficentes. Vestiam-se de forma diferente, continuando a usar boinas ou capuzes. Por essa razão foram chamados de “Ba’alei ha-kapus” ou Kabusiyyin, contrastando com os “Ba’alei ha-miznefet”, os judeus nativos que usavam turbantes. As relações entre os dois grupos se tornam tensas por inúmeras causas: medo da concorrência comercial, diferenças nos costumes e tradições religiosas e no idioma.

Comerciante judeu da Argélia, séc. 19

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Mas, mesmo seus maiores detratores admitiam que os sefaraditas haviam dado novo elã à vida judaica na Argélia. Suas aptidões nos negócios JUNHO 2018


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viram obrigados a aprovar o costume local. Os regulamentos específicos a cada uma das comunidades davamlhes certa individualidade que os judeus locais tratavam de preservar para as gerações futuras. Por exemplo, as comunidades de Tlemcen, Orã e Argel tinham, cada uma, seu próprio Machzor, o livro das orações de Rosh Hashaná e Yom Kipur.

Orã, Argélia: O Forte de Santa Cruz erguidos pelos espanhois.

e ampla rede de contatos haviam impulsionado o comércio, fazendo com que prosperassem mesmo as comunidades judaicas mais remotas. Exportavam penas de avestruz e ouro, bem como cereais, tapetes, lã e peles para a Europa, de lá importando seus produtos. Sua erudição e devoção ao estudo da Torá fortaleceram as instituições comunitárias e a vida religiosa. Rabinos originários da Espanha

lideravam no século 16 quase todas as comunidades judaicas na Argélia, sendo que Argel, Constantina e Tlemcen se tornaram conceituados centros de estudos religiosos. Apesar de, com o tempo, os dirigentes comunitários locais acabarem adotando a liturgia sefardita, quando se tratava de questões relacionadas aos min’haguim, tradições religiosas, muitas vezes foram os rabinos sefaraditas que se

vista do mercado em BISKRA, argélia. cerca de 1899

Nos séculos 17 e 18 verifica-se, em Argel, um renascimento dos estudos talmúdicos, com os Rabinos Saadia Chouraqui e Juda Ayache (1690 – 1760), autores do tratado Beit Yehudá (Casa de Yehudá), onde descrevem os costumes dos judeus locais.

Ocupação espanhola A queda de Granada em mãos cristãs, em 1492, não pôs fim à cruzada dos espanhóis contra os muçulmanos. Com certa facilidade, a Espanha cristã impôs sua influência sobre a costa do Magrebe, construindo postos avançados fortificados ao longo da costa argelina. Assim, pouco a pouco a Espanha foi tomando controle de Mers el Kebir, em 1505; Orã, em 1509; e Bougie, Tlemcen, Mostaganem e Ténès em 1510. No mesmo ano os mercadores muçulmanos de Argel entregaram uma das ilhotas rochosas em torno de seu porto, onde os espanhóis construíram um forte. A ocupação espanhola em Orã e Bougie trouxe violência e morte na comunidade judaica local. Em 1509, após a tomada de Orã, as forças espanholas caíram sobre os judeus da cidade massacrando os homens e estuprando as mulheres. A sinagoga local foi transformada em igreja. No ano seguinte, ao conquistar Bougie, os espanhóis foram ainda mais brutais com os judeus.

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Mas, após algum tempo, os membros influentes da comunidade em Orã convencem os espanhóis de que seu papel de mediadores entre o enclave espanhol e os reinos muçulmanos era indispensável para o bom andamento da economia. Essa “utilidade”, de puro interesse econômico, lhes assegura a proteção da Coroa Espanhola. Durante o século 16 e grande parte do 17, viveu em Orã uma pequena comunidade judaica e, ao contrário do que ocorria em outros lugares sob domínio espanhol, seus integrantes eram abertamente praticantes. Mas, a tolerância chega ao fim em 1669, quando eles são expulsos da cidade e a sinagoga é convertida em igreja. O temor se alastrou entre os judeus de Argel quando, em 1541, o imperador Carlos V da Espanha tenta conquistar a cidade. No dia em que as tropas espanholas começavam a desembarcar, uma tempestade excepcional afunda no mínimo umas 30 embarcações, destruindo outras 15. A Frota Espanhola bate em retirada. Para a comunidade judaica de Argel, a Mão de D’us tinha intervindo em seu socorro. Portanto, declararam o dia da malfadada tentativa de invasão, 4o dia do mês judaico de Cheshvan, um segundo Purim, chamando-o de Purim Edom – sendo “Edom5” um eufemismo para o beligerante cristianismo espanhol.

sinagoga sanya, argélia, 1840

ameaçar Argel. O medo toma conta da comunidade judaica, mas a Espanha é mais uma vez milagrosamente vencida. Para celebrar o fato de escaparem ao domínio espanhol, os judeus de Argel declararam o 11o dia de Tamuz como uma outra festividade de Purim, o “Purim Tamuz”. Apesar de que a História atribua essa vitória à corajosa defesa comandada pelo Dey Mohammed Ibn Uman, corre a lenda entre os

judeus locais de que as “chamas que subiram dos túmulos dos dois Tzadikim, o Rivash e o Rashbatz, assustaram e fizeram os invasores bater em retirada”.

A Argélia otomana À época em que a Espanha mantinha poderosos enclaves na atual Argélia, os irmãos corsários Aruj e Khair ad Din – este último conhecido na Europa

orléansville - sinagoga

Duzentos anos depois, em 1775, a Frota Espanhola volta a 5

Edom que advém da palavra hebraica, Adom, “vermelho” é um dos nomes de Esaú assim como Israel é o nome de nosso Patriarca Jacob. Esaú é também chamado de Edom porque nasceu ruivo. Além disso, a cor vermelha, que representa o sangue, está associada ao seu nome pelo fato de ele ter sido um homem guerreiro e violento. Nossos Sábios ensinam que o Império Romano e o Ocidente são os descendentes físicos ou espirituais, de Esaú. 63

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comunidades

como Barbarossa, ou Barba Ruiva – agiam a partir da Tunísia governada pela dinastia hafsida. Em 1516, Aruj transfere sua base de operações para Argel. Ao ser morto, dois anos depois, toma seu lugar seu irmão, Khair ad Din. O sultão otomano, querendo anexar a região da atual Argélia ao Império Otomano, dá a ele o título de Beylerbey (comandante dos comandantes), com a função de governador provincial, e envialhe um contingente de janízaros (soldados otomanos).

Béjaïa: Cúpula da antiga sinagoga

Em pouco tempo Khair ad Din domina a região costeira entre Constantina e Orã. Apenas a cidade de Orã permanece em mãos espanholas até 1791. Em 1525, ele passa a governar a chamada Regência de Argel. Também chamada de Argélia Otomana, esta se torna o centro de poder otomano no Magrebe. Em 1710, ainda que Argel permanecesse como parte do Império Otomano, os Dey6 da Argélia se tornam os governantes de facto.

As massas judaicas eram desprezadas, sujeitas a um tratamento vil, forçadas a pagar pesados impostos. Eram forçados a residir em um bairro restrito, chamado de diferentes nomes: “harrah” e “sharah”, nas províncias de Argel e Constantina; e “mellah”, na de Orã. E, a usar uma roupa especial: um “shachiah” – gorro de tecido escuro, um albornoz cinzento e sapatos sem salto (tcharpi ou bettim) e as mulheres, um caftan,

Vida judaica sob os otomanos

sem o tradicional véu das mulheres muçulmanas para cobrir o rosto. Em Mzab (Sul da Argélia), deviam vestir-se de preto quando em público.

ORÃ - SINAGOGA

A sorte dos judeus na Regência de Argel foi bem pior do que em outros países governados pelos otomanos – pior ainda do que havia sido sob as dinastias islâmicas anteriores. A relativa tolerância do mundo islâmico em tempos medievais fora substituída por profundo desprezo que fomentava expressões de escárnio e abuso. Acusados de incitar o povo contra as autoridades, os judeus viviam sob constantes ameaças. Dey - título dado aos governantes da Regência de Argel e depois, da Argélia, antes da colonização francesa, em 1830.

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Entrar nas mesquitas era totalmente proibido a eles e, em frente a certas mesquitas, eram obrigados a andar descalços. Tampouco podiam andar a cavalo. Se um muçulmano decidisse acusar um judeu de ter proferido uma palavra desrespeitosa contra o Profeta Maomé, não havia defesa possível. Como se não bastasse, eram forçados a alojar os janízaros em suas residências. Se reclamassem, eram punidos com o maior rigor e, até mesmo, queimados vivos, em alguns casos. Ainda por cima, os judeus estavam expostos a atos arbitrários por parte de dirigentes locais de baixo escalão. O Pashá de Tuggurt, Mohammed al-Akhal ben Jallab, por exemplo, quis converter os judeus ao Islã pela força, e não foram poucas as vezes que os Deys de Argel permitiram ao populacho saquear as residências


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judias. Como escreveu o Rabi Solomon ben Simeon Duran, no século 15: “Assassinatos de judeus são uma ocorrência frequente que passa solenemente sem punição, e seus assassinos andam livremente, gabando-se de seus atos”. Por outro lado, os governantes adulavam os judeus da classe alta, entre os quais escolhiam seus conselheiros, médicos, banqueiros e diplomatas, bem como advisors competentes e influentes. Esses cargos, de extrema confiança, eram confiados em geral aos judeus abastados e influentes de Leghorn, Itália, os chamados Gorenim. Estes haviam-se estabelecido na Argélia nos séculos 17 e 18, especialmente em Argel. Sua própria riqueza e atividades comerciais haviam enriquecido os governantes. Os Gorenim se tornaram os banqueiros dos Dey e os intermediários entre estes e a Europa, ficando encarregados da difícil atribuição de manter relações com as nações europeias – tarefa complicada pelos assaltos repentinos dos piratas às embarcações europeias e sempre “perdoados” pelos governantes argelinos. Mas, mesmo para os judeus influentes e com altas posições, a vida na Argélia otomana era perigosa. Em 1805, é morto um dos principais assessores do Bey, Naphtali Busnach, principal dirigente da comunidade judaica de Argel, em uma das insurreições populares que arrasavam bairros

N.R. Não há sinagogas em atividade, na Argélia. Todas as imagens modernas de sinagogas, neste artigo, são de antigas sinagogas que foram transformadas em mesquitas após 1962.

Béjaïa: fachada da antiga sinagoga

judeus. O assassinato foi seguido de um grande massacre comunitário, segundo testemunho do Cônsul francês, Dubois Thainville, que abriu as portas de seu Consulado, salvando cerca de 200 judeus. Em 1815, o Grão-Rabino de Argel, Rabi Isaac Aboulker, é decapitado em uma dessas revoltas. Quando os franceses desembarcam em 1830 na Argélia, vivem no país entre 15.000 e 17.000 judeus, em meio a uma população total de 3 milhões de habitantes. A vida da população judaica muda drasticamente após a conquista do país pelos franceses. O período da colonização francesa não foi um mar de rosas para os judeus, mas a França os salva dos sofrimentos e humilhações que faziam parte de 65

sua vida, da opressão dos Deys, da tirania dos funcionários otomanos. Os judeus abraçam a França como sua pátria. Tornam-se cidadãos, adotam sua cultura e idioma. E apesar das desilusões com “la Patrie”, com a saída dos franceses da Argélia em 1962, 90% dos judeus locais partem para a França. Hoje não há mais nenhum judeu na Argélia.

BIBLIOGRAFIA

Gilbert, Martin, In Ishmael’s House: A History of Jews in Muslim Lands. eBook Kindle Bertrand, Jean Marc, Algeria Pre -colonial History, Colonial Era, and self-governance: Religious information, ethnic groups, government and politics . eBook Kindle Masters, Bruce, Christians and Jews in the Ottoman Arab World: The Roots of Sectarianism. eBook Kindle

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israel

Melhorando a vida no planeta Ao longo de seus 70 anos de existência, a despeito de toda a adversidade e OS desafios que enfrenta, Israel se tornou mundialmente respeitado por seus grandes avanços nas áreas de inovação científica em saúde, tecnologia, segurança e socorro em caso de desastres.

E

m 15 de abril deste ano de 2018, o jornalista canadense Robert Sarner escreveu um artigo no “Times of Israel”, intitulado “70 Razões recentes para admirar Israel em seu 70º aniversário” – “70 recent reasons to admire Israel on its 70th birthday”. Nesse artigo, ele diz: “Como as pessoas, as nações são melhor julgadas pelo que realizam.... e com base na qualidade e quantidade de suas conquistas, Israel claramente é um realizador. Pelo terceiro ano consecutivo, homenageando o aniversário de Israel, preparei uma lista de conquistas admiráveis que o país realizou no curto espaço dos últimos 12 meses”.

o lançamento de seus primeiros óculos para ciclistas baseados na tecnologia usada para os capacetes dos pilotos de aviões de combate. Denominados Everysight, os óculos fornecem informações sobre as condições de terreno e rota, além de projetar um mapa que dá aos usuários uma visão panorâmica sobre o ambiente ao seu redor. A lista incluiu, ainda, a Yarok Technology Transfer, empresa que recebeu um prêmio das Nações Unidas pelo desenvolvimento de um teste rápido e eficiente para detectar, em apenas 45 minutos, a presença de bactérias nos alimentos industrializados. Trezentos e trinta países participaram da competição “Innovative Ideas and Technology on Agribusiness” promovida pelas Nações Unidas, em 2017, e a Yarok foi uma das cinco empresas vencedoras.

O jornalista Sarner ainda ressalta que, em janeiro de 2018, de acordo com o Bloomberg Innovation Index, Israel era o 10º país mais inovador do mundo. A pesquisa, anualmente realizada, avalia os países utilizando sete critérios, entre os quais pesquisa, desenvolvimento e o número de graduados nas áreas de engenharia. O índice se baseia em dados de várias instituições, entre as quais o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Sarner incluiu em sua lista uma novidade tecnológica desenvolvida pela Elbit, empresa que atua na área de defesa e segurança. A empresa anunciou

Ainda na área de prêmios internacionais, a Organização de Pesquisa Agrícola – Instituto Volcani recebeu, em 2017, um prêmio da Unesco para Pesquisas na Área de Ciências da Vida por seus trabalhos para desenvolver metodologias e ferramentas que aumentem a segurança alimentar e a produtividade em áreas áridas, semiáridas e desérticas, visando a melhoria da qualidade de vida. 66


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Esta Organização, anteriormente conhecida como Estação de Pesquisa Agrícola da Agência Judaica na Palestina, é um conceituado centro israelense na área. Funciona como o braço de P&D do Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural do Estado de Israel. Neste ano, a ONU também premiou a organização não-governamental Israel Save a Child’s Heart (SACH, Israel Salva o Coração de uma Criança), com a láurea United Nations Population Award por suas realizações na área de saúde, salvando a vida de crianças com problemas cardíacos, independentemente de sua nacionalidade, religião, cor, gênero ou condições econômicas. Até o início deste ano, a SACH foi responsável pela realização de 4.500 cirurgias cardíacas para crianças de 55 países, totalmente grátis. As operações são realizadas no Wolfson

Medical Center, em Holon, e em alguns hospitais no exterior. A ONG é responsável, também, pelo treinamento de mais de 150 profissionais do mundo todo.

perdesse ossos por qualquer causa, teria que passar por procedimentos complicados e dolorosos que implicavam a transferências de ossos de outras partes do corpo.

O Hospital Hadassah, em Jerusalém, entrou na lista de Sarner por ter realizado uma cirurgia de reconstrução de ossos utilizando simultaneamente dois robôs. O paciente foi submetido à cirurgia por ter quebrado a perna em dois lugares, além de seis vértebras da coluna, em um acidente de trabalho. A operação permitiu ao paciente voltar a andar normalmente.

No final de dezembro de 2017, no Hospital HaEmek, de Afula, foi realizada uma cirurgia inédita no país e no mundo, que, a médio e longo prazo, poderá ser a solução para a perda de ossos. Isso porque pesquisadores israelenses conseguiram “cultivar” ossos em laboratório. O primeiro a passar pelo procedimento com a nova técnica foi uma pessoa que quebrou a perna em um acidente de carro e teve que extrair uma parte do osso. Os médicos retiraram tecido adiposo do corpo do paciente e o colocaram em um dispositivo especial que simula o ambiente do corpo e proporciona condições ideais para o crescimento ósseo. Após umas duas

Pioneiro em inúmeras áreas tecnológicas médicas, em 2017 Israel saiu na frente na realização de uma cirurgia para estimular o crescimento de ossos destruídos em acidentes ou por tumores cancerosos. Até há pouco tempo, se alguém 67

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israel

17,77% dos votos. Uma tecnologia que facilita a vida de bilhões de pessoas no mundo todo a circular pelo trânsito pesado do dia-dia e a realizar viagens por lugares poucos conhecidos. A tecnologia Waze foi vendida à Google por cerca de US$ 1 bilhão, em 2013.

semanas, o tecido estava pronto para ser transplantado, sendo transferido do laboratório, em Haifa, para o hospital, e injetado no paciente. Dentro de alguns meses, o osso voltou a crescer. A nova tecnologia foi desenvolvida há alguns anos pelo Bio Group. “Criamos milhares de pequenas partículas de osso, todas vivas, e isso nos permite implantá-las na área necessária, onde se conectam a um osso vivo”, explica o Dr. Shai Mertzky, CEO da Bio Group e que desenvolveu a tecnologia. A cirurgia é também adequada para idosos com osteoporose e para pacientes com câncer submetidos à remoção da medula óssea.

Internautas Israelenses elegem as melhores tecnologias Mas, de que maneira a tecnologia mudou o dia a dia dos israelenses e de todos nós? Em homenagem ao 70º aniversário de independência de Israel, o Ministério da Indústria e Economia lançou um concurso online, denominado “70 Grandes Invenções Azul e Branco” – cores da bandeira de Israel. A escolha das vencedoras ficou a cargo dos internautas. O sistema antimíssil Iron Dome (Cúpula de Ferro) foi votado pelos internautas como a maior invenção israelense dos últimos anos. Dentre as 70 invenções selecionadas pela Secretaria de Invenções de Israel, o Iron Dome levou 28% dos votos. Único no mundo no gênero, o Iron Dome foi desenvolvido pela empresa Rafael Defense Systems, em 2007, para conter ataques de mísseis de curto e médio alcance, permitindo abater, em pleno voo, projéteis com alcance de 4 a 70 km. Cada

O sistema antimíssil Iron Dome (Cúpula de Ferro)

bateria é composta de um radar de detecção e monitoramento, um software de controle de disparos e três lançadores, cada um equipado com 20 mísseis de interceptação. A primeira bateria foi instalada em março de 2011 na região de Beersheva, vítima de ataques constantes do grupo terrorista Hamas a partir da Faixa de Gaza. Naquele mesmo ano, mais cinco baterias foram posicionadas perto das cidades litorâneas de Ashkelon e Ashdod, ao sul da grande metrópole de Tel Aviv, e perto da cidade de Netivot, a 20 km da Faixa de Gaza. O sistema se revelou particularmente eficaz durante a operação “Pilar de Defesa” em novembro de 2012. Desde a sua instalação, o Iron Dome já interceptou mais de 1.700 mísseis e foguetes lançados principalmente pelo Hamas contra o território israelense a partir de Gaza. O sistema já interceptou foguetes lançados em direção às Colinas do Golã pelo Hezbolá, a partir do Líbano. Em 2º lugar na competição das 70 Grandes Invenções, classificou-se o sistema de navegação Waze, com 68

Em seguida, em 3º lugar, está o sistema de irrigação por gotejamento, que obteve 17,75% dos votos. A agricultura israelense é das mais avançadas do mundo. O método de irrigação “Tip, Tipá”, gota a gota, em hebraico, permite a produção de verduras, legumes, frutas e flores em solo desértico ou semiárido. Essa tecnologia está sendo exportada, possibilitando o aumento da produção agrícola em lugares como a África Subsaariana. O Ministério das Relações Exteriores de Israel está fazendo parcerias com ONGs, empresas e órgãos governamentais para oferecer a tecnologia a países da África, a baixo custo. Em 4º, 5º e 6º se classificaram o flash drive USB, seguido do micro robô para cirurgias desenvolvido pela Memic, e a tecnologia para produção de água diretamente do ar desenvolvida pela Water Gen. Em 7º foram escolhida as sandálias fabricadas pela Source Sandals, que não escorregam nem em áreas úmidas. A lista foi fechada pela Check Point Software Technologies, pela criação do primeiro e mais eficiente firewall do mundo; e pela Offek, pelo desenvolvimento de satélites de reconhecimento. Concordamos plenamente com as escolhas dos internautas israelenses! Cada uma dessas brilhantes invenções mudou nossa vida para muito melhor...


SHOÁ

A LISTA DE SCHINDLER CELEBRA 25 ANOS Em dezembro 1993, na estreia do novo filme de Steven Spielberg, A Lista de Schindler, ao se acenderem as luzes a plateia permaneceu em silêncio profundo, angustiada e pensativa. Era a mesma reação que tantos outros espectadores teriam ao longo dos anos que se seguiram. 25 anos após o lançamento, com o ressurgimento do antissemitismo e dos movimentos de negação do Holocausto, o filme se torna ainda mais relevante.

a

Lista de Schindler consegue chegar ao âmago de milhões de pessoas, fazendo-as compreender a extensão da Shoá. À época do seu lançamento, apesar do Holocausto ter ocorrido há menos de meio século, o assunto era desconhecido por grande parte da humanidade. Após a 2a Guerra Mundial, foram produzidos alguns livros, filmes e documentários a respeito do Holocausto, mas A Lista de Schindler foi o que conscientizou e emocionou centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo. Hoje, quando grande parte das novas gerações desconhecem o próprio fato e a história do Holocausto. O filme de Spielberg continua sendo instrumento indispensável para mostrar o intenso sofrimento judaico durante a Shoá e até onde a maldade humana pôde chegar.

O filme, como veremos adiante, é a história dramatizada, mas verdadeira, de Oskar Schindler, um ganancioso e oportunista empresário alemão, que se estabeleceu em Cracóvia durante a 2ª Guerra, para enriquecer. Num momento de heroísmo, ele decidiu utilizar a grande fortuna que ganhara para “comprar” dos nazistas os judeus que empregava, que se autodenominavam os Schindlerjuden, os judeus de Schindler. Impedindo que fossem enviados para Auschwitz mediante pagamento, ele salvou a vida de 1.200 judeus, entre homens, mulheres, velhos e crianças. Lançado em uma época em que o revisionismo histórico e o negacionismo do Holocausto estavam tomando força, o diretor afirmou, em entrevistas, que, enquanto produzia o filme, via-se como um “jornalista”. E queria produzir “um documento” sobre o Holocausto, tendo como alvo os que desconheciam a história dos judeus europeus durante a 2ª Guerra. “Estava preocupado em contar a história de Schindler da forma mais próxima possível da verdade. Este filme não deve jamais ser analisado como a história do Holocausto; é apenas uma das histórias do Holocausto”.

Em 26 de abril de 2018, o Festival de Cinema de Tribeca, um dos mais importantes do mundo, realizado no Beacon Theatre, em Nova York, organizou a exibição em homenagem ao 25º aniversário de A Lista de Schindler. Assistindo o filme na companhia de parte do elenco, Spielberg se disse muito orgulhoso de sua realização, afirmando que nenhum outro filme que tenha dirigido, antes e depois, lhe tinha dado tamanha sensação de missão cumprida. 69

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Contrariando a previsão de que seria um fracasso de bilheteria, o filme faturou mais de US 321 milhões nas primeiras semanas, valor 14 vezes superior ao custo da produção. Ao se decidir a dirigir o filme, Spielberg declarou que abriria mão de seu salário e destinou seus ganhos pelos direitos autorais à criação da Fundação Sobreviventes da Shoá, ajudando a preservar a memória do Holocausto através de testemunhos filmados dos sobreviventes, mundo afora. O filme foi indicado a 12 prêmios no Oscar de 1994. Venceu em sete categorias: melhor fotografia, melhor diretor (primeiro Oscar de Spielberg nessa categoria), melhor adaptação, melhor edição, melhor cinematografia, melhor direção artística e melhor trilha sonora original. Em 2007, o American Film Institute classificou-o em oitavo lugar na lista do 100 melhores filmes norte-americanos de todos os tempos. Para transmitir os horrores ocorridos e a forte mensagem de que um único homem pode salvar a vida de muitos outros, A Lista de Schindler se utiliza de inúmeras ferramentas artísticas. O longa-metragem foi filmado em branco e preto, para intensificar a dor e o sofrimento, à época e, ao mesmo tempo, tornar menos gráficas certas cenas. Spielberg utilizou as referências visuais do expressionismo alemão, o estilo que marcou os filmes europeus na época da 2ª Guerra. As únicas cores – além das cenas finais – são das velas de Shabat acesas no início do filme, no mundo pré-nazismo, onde ainda havia luz e cor, e o casaco vermelho de uma menina em plena Aktion nazista, no

Gueto de Cracóvia. A trilha sonora de John Williams tornou-se um clássico e reflete o drama da história, elevando cada sequência ao seu auge e mantendo o espectador suspenso e angustiado. Mas, não há dúvida que a ferramenta mais poderosa utilizada foi a individualização – das vítimas, dos algozes, da população polonesa perante o extermínio de judeus. Spielberg queria que os espetadores entendessem que o Holocausto foi algo personificado e contínuo – um nome, uma pessoa após a outra. Para os que não passaram pelos horrores da Shoá, é praticamente impossível compreender o sofrimento imposto aos judeus. Os números de judeus assassinados pelos nazistas e seus colaboradores, que hoje se acredita

O projeto Por mais de 40 anos, Poldek Pfefferberg, um dos judeus salvos por Schindler e que, em 1948, mudouse para Beverly Hills, na Califórnia, tentou tornar conhecida a história dos Schindlerjuden. Finalmente, em 1982, o assunto interessou Thomas Keneally, autor australiano, que escreveu o livro Schindler’s Ark. Steven Spielberg leu esse livro à época em que filmava E.T. Impressionado com a história, particularmente com a apresentação do Holocausto através de relatos individuais, sentiu que queria fazer um filme sobre o livro. Mas foram necessários 10 anos até que ele estivesse emocionalmente pronto para embarcar em projeto daquela magnitude. Tentou convencer outros diretores a dirigir o filme, entre eles Roman Polanski e Martin Scorsese, sem sucesso. Polanski recusou por considerar o filme “muito pessoal”, pois ele e seus pais foram trancados pelos nazistas no gueto de Cracóvia. Ele e o pai sobreviveram, mas sua mãe morreu em Auschwitz. Posteriormente, Polanski dirigiria “O Pianista”, seu próprio filme sobre a perseguição nazista aos judeus.

Steven Spielberg

tenham sido cerca de 7 milhões, são uma realidade difícil de se assimilar emocional e intelectualmente. É menos dolorido se perder nas estatísticas, discutir números, e não entrar na monstruosidade ocorrida... Mas isso seria desumanizar as vítimas, uma vez mais... 70

Após ler um roteiro que lhe fora enviado, Spielberg decidiu que chegara a hora de levar adiante o projeto, apesar de os executivos do estúdio lhe perguntarem “por que simplesmente não fazia alguma doação a entidades judaicas, ao invés de desperdiçar o tempo e o dinheiro de todos num filme tão ‘deprimente’”. Ao saber da intenção de Spielberg, muitos historiadores e críticos mostraram-se céticos, questionando se um diretor de blockbusters de


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Cena do filme: Schindler nota uma menina judia (Oliwia Dabrowska, três anos de idade), com um casaco vermelho, correndo durante uma Aktion nazista no Gueto de Cracóvia. O casaco vermelho é um dos raríssimos pontos de cor no filme

efeitos visuais, como ET e Tubarão, conseguiria abordar tema tão profundo quanto o Holocausto. Outros tinham receio de que a história de Schindler poderia ser capciosa, caso a ênfase recaísse mais sobre ele – e não nos judeus. Será que o filme criaria o mito de que na Polônia haviam surgido muitos heróis prontos a salvar judeus, ou que entre os membros do partido nazista havia Justos? – pois esse é muitas vezes o ônus por querer dar como exemplo uma pessoa que é uma exceção a regra. E se os documentários sobre o Holocausto, com suas dolorosas filmagens de crematórios e escavadeiras e cadáveres, mortos e vivos, são tão duros de se assistir – ao se misturar Hollywood com o Holocausto, os resultados seriam medíocres e melodramáticos, trivializados. Mas Spielberg provou estar à altura do projeto.

Os Schindlerjuden – sua história A Lista de Schindler é construído com base no cuidadoso roteiro de Steven Zaillian. Esse script, de um extremo realismo, contém informações históricas precisas sobre a perseguição aos judeus na Polônia, Pôster de divulgação da Lista de Schindler

a criação do Gueto de Cracóvia, em 1941, a invasão e fim do Gueto e a transferência de todos para o infame campo de concentração de Kraków-Płaszów, comandado pelo SS-Hauptsturmführer Amon Göth (Ralph Fiennes). Em termos históricos e pelos relatos das testemunhas, o roteiro atinge níveis de documentário. No filme, Spielberg consegue transmitir aos espectadores o horror que os judeus poloneses enfrentavam, fazendo com que se sintam participantes dos acontecimentos, não meros observadores. O espectador conhece os nomes e rostos dos judeus, acompanha seu sofrimento de perto, desenvolvendo uma conexão com cada vítima. Tal conexão é o objetivo principal de Spielberg. Ele quer que o espectador se identifique com os personagens, sinta sua dor e seu pavor.

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que tinha salvado, não suportando a noção de que poderia ter salvo ainda mais pessoas. Terminada a guerra, sem fortuna, às voltas com fracassos comerciais e a dissolução de seu casamento, Schindler foi ajudado financeiramente “pelos seus judeus” e por organizações judaicas internacionais. Em 1963, Oskar Schindler recebeu de Yad Vashem o honroso título de “Justo entre as Nações”. Ele veio a falecer em 1974.

Cena do filme: o nazista Amon Göth (Ralph Fiennes) e Oskar Schindler (Liam Neeson)

Essa individualização força a plateia a perceber que cada judeu vítima dos nazistas tinha a sua história, seus entes queridos, um lar, um negócio, e, sobretudo, uma vida Nos minutos iniciais do longametragem, conhecemos o protagonista, Oskar Schindler (Liam Neeson), um membro do partido nazista, entretendo os oficiais alemães. Determinado a lucrar com a guerra, ele utiliza pessoas em seu favor. Ele enriquece usando o trabalho de judeus em sua fábrica de panelas, dirigida por seu contador judeu, Itzhak Stern (Ben Kingsley), pois Schindler nada entende de negócios. A princípio, Schindler mantém-se afastado dos horrores que acontecem à sua volta, mas ao ver as atrocidades cometidas pelos nazistas, ele vai se modificando. O momento da transformação ocorre quando Schindler, a cavalo, do alto de uma colina durante uma importante operação nazista contra os judeus do Gueto de Cracóvia, avista uma menina com um casaco vermelho – único objeto de cor além das velas de Shabat até o final do filme – que corre, perdida, em meio à multidão de judeus e nazistas. Naquele

instante, ele é forçado a confrontar o horror e sua própria cumplicidade com aquele horror. Posteriormente, Schindler avista a menina numa pilha de cadáveres exumados, que estavam sendo levados para serem cremados em valas comuns. Schindler não consegue mais ser um mero espectador e deixar “seus” funcionários judeus, com quem já tinha uma conexão pessoal, serem mortos. Decide, pois, usar os recursos financeiros que já ganhara para salvar o máximo de judeus que fosse possível, passando então a subornar os nazistas. Em julho de 1944, a Alemanha nazista, ciente que irá perder a guerra, ordena às SS que fechem os campos de concentração e evacuem os prisioneiros que ainda estavam vivos. Schindler consegue “convencer”, através de um polpudo suborno, o SS-Hauptsturmführer Amon Göth a transferir sua fábrica e seus operários para Brünnlitz – e os salva mais uma vez da morte. A metamorfose de Schindler atinge seu clímax nos últimos momentos do filme, quando ele desaba frente a todos os judeus 72

A “consciência” de Schindler é Itzhak Stern, seu contador judeu. Stern é essencial para toda a narrativa. Desde o início do filme, salva judeus da morte certa, tudo enquanto convive com Schindler, incentivando-o a fazer algo. É Stern quem aproxima Schindler de centenas de judeus. Spielberg procurou “individualizar” também aos nazistas. O personagem de Amon Göth nos oferece a visão da mente doentia de um oficial nazista corrompido pelo antissemitismo. Ele é um perfeito psicopata, a encarnação da ideologia nazista. Göth não vê os judeus como seres humanos, mas como uma massa não-humana. Contudo, está apaixonado por sua criada judia. Luta contra seus sentimentos. De um lado, a atração por ela e, do outro, o ódio puro aos judeus que ele não consegue superar. Com interpretação brilhante, Ralph Fiennes se torna a manifestação física de todo o terror ali presente. O que mais choca e assusta é a causalidade com que Göth comete as maiores crueldades. De sua varanda, por exemplo, ele atira nos judeus para praticar a pontaria. (O verdadeiro Göth foi enforcado em 1946 por crimes contra a humanidade.) Spielberg não nos poupa nem por um momento sequer. Os focos pontuais nos personagens


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secundários ao longo da narrativa nos levam do interior do gueto e dos campos de concentração às câmaras de gás. Podemos sentir o medo de cada um daqueles judeus, sabendo que pode ser morto a qualquer instante, sem nenhuma razão. A hostilidade declarada aos judeus demonstrada pelos poloneses cristãos, seus compatriotas, aparece claramente no filme em várias ocasiões, uma delas quando os judeus de Cracóvia são forçados a entrar no gueto. Uma garotinha grita, na rua, repetidamente, “Adeus, judeus”. Através dela, Spielberg manda a mensagem de que a maldade nazista “infectara” comunidades inteiras.... Spielberg transformou a cena da “liquidação” no gueto de Cracóvia, apenas uma página no script original, em uma cena de 20 minutos de filme, com base em depoimentos dos sobreviventes. Por exemplo, a cena em que o jovem escapa da captura dizendo aos soldados alemães que tinha recebido ordens de retirar as bagagens da rua, foi tirada diretamente da história de um sobrevivente. A morte e o medo da morte governam a vida dos judeus em A Lista de Schindler. As cenas de mulheres, homens e crianças sendo friamente assassinados, de modo aleatório e indiscriminado, são cruas, difíceis de se ver, mas nunca apelativas. E, ao contrário do que alguns críticos temiam, os judeus de A Lista de Schindler demonstram um espírito inquebrantável e o desejo de sobreviver. O evento que talvez melhor ilustre esse triunfo do espírito é o casamento no campo de trabalhos forçados de Plaszów. Ainda que vivessem sob constante medo da morte, com praticamente nenhum futuro à sua frente, os dois jovens se casam na esperança de sobreviver.

Rodando uma cena sobre o campo de trabalhos forçados de Plaszów

Spielberg segue com a ideia de individualismo até a forte cena final do filme. Pela primeira vez, com todas as cores, aparecem os Schindlerjuden que sobreviveram. Enfileirados, a perder de vista, muitos ao lado de suas contrapartes no filme, eles colocam pedras no túmulo de Oskar Schindler. A decisão de Spielberg de mostrar os atores ao lado dos sobreviventes a quem representavam teve dois propósitos. Primeiro, mostrar aos espectadores que os personagens do filme são pessoas reais, não figuras inventadas. Segundo, com isso, ele está enviando uma mensagem a todos aqueles que colocam em dúvida a realidade do Holocausto, de que há provas humanas da tragédia e que a barbárie que lá ocorreu jamais poderá ser apagada. As testemunhas daquele horror estão vivas para contar sua história e assegurar-se de que jamais seja esquecida.

25 anos depois Como parte da programação, o Festival de Cinema de Tribeca promoveu um debate com Spielberg, Liam Neeson (Oskar Schindler), 73

Ben Kingsley (Itzhak Stern), Caroline Goodall (Emilie Schindler) e Embeth Davidtz (Helen Hirsch). No debate, cada um dos participantes contou suas experiências e impressões ao longo das filmagens. Spielberg revelou que quando levou para casa os Oscars pela Melhor Fotografia e por Melhor Diretor, ele não sentia motivo para festejar. “Aquela noite não foi uma celebração... Não julgo que este filme seja uma celebração. O tema e o impacto que o filme causou em nós todos… retirou qualquer confraternização que pudesse haver”, disse. “Vencer foi maravilhoso, mas ao mesmo tempo me fez lembrar como me emocionei quando Branko Lustig, nosso coprodutor mostrou ao mundo que ele também estivera em Auschwitz, como comprovavam os números em seu braço”. Spielberg e alguns atores relataram fatos que os marcaram durante a gravação. Spielberg contou que quando já haviam rodado a maior parte do filme, ele começou a temer que as pessoas não acreditassem que A Lista de Schindler era uma história verdadeira. Mas, vencer aquele JUNHO 2018


SHOÁ

Muitas cenas foram baseadas em traumas reais e, por isso, difíceis de serem rodadas, para os atores. Spielberg relembrou a cena das mulheres entrando nos chuveiros em Auschwitz. “Foi traumático. Duas atrizes israelenses ficaram tão impactadas que não conseguiram filmar por três dias”.

Cena do filme: Oskar Schindler (Liam Neeson) anuncia aos Schindlerjuden e guardas nazistas a derrota e rendição incondicional da Alemanha Nazista

temor levou a um dos momentos mais pungentes do filme, quando os sobreviventes e os atores que lhes representavam colocaram as pedras no túmulo de seu benfeitor, em Jerusalém. O diretor relembrou as longas caminhadas noturnas que fazia, quando lhe ocorreu a cena final com os sobreviventes salvos por Schindler. “Enquanto caminhava, pensei: Que tal se eu mostrasse muitos dos judeus de Schindler, sobreviventes do Holocausto, colocando pedras ao redor do seu túmulo?”. Ele também revelou que a maioria dos atores que interpretaram os judeus eram de Israel e a maior parte dos que fizeram o papel de alemães eram alemães ou austríacos. Foi uma decisão difícil, pois sabia que ele e sua equipe teriam muita dificuldade em ver os atores com os uniformes nazistas. Durante as primeiras semanas, Spielberg disse que evitou contatos pessoais, principalmente por causa do realismo das cenas. “Conscientemente, eu sabia que eram atores, homens gentis e educados, mas eu não conseguia ser diferente”. Mas o ambiente mudou completamente após a realização do Seder de Pessach, durante as gravações. Em meio ao jantar, os atores alemães e austríacos entraram

no local, sentaram-se ao lado dos demais participantes e começaram a acompanhar a Hagadá. “Algo se rompeu dentro de mim. Comecei a chorar e, a partir do dia seguinte, consegui conversar com todos”, contou Spielberg. Neeson relembrou uma cena inesquecível, fora dos portões de Auschwitz, quando o coprodutor Branko Lustig lhe disse: “Você está vendo aquela cabana? Foi nela que eu fiquei”...

Steven Spielberg, Liam Neeson e Ben Kingsley durante o Festival de Cinema de Tribeca. Nova York, 26 de abril de 2018

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O elenco se lembrou da sinistra realidade de sentir, enquanto filmavam, que mesmo após 50 anos, o antissemitismo não fora erradicado na Polônia. Spielberg lembrou que, quando Fiennes estava de uniforme das SS rodando uma cena, uma mulher no andar superior de um prédio próximo gritou, pela janela, que desejava que as SS ainda estivessem lá para protegê-los. Com frequência surgiam suásticas pintadas nas paredes ao redor dos sets de filmagem, lembraram. Kingsley recordou que, em um hotel, ele discutiu com um empresário, chegando ao ponto de expulsá-lo. A discussão tinha começado quando o homem fingiu estar amarrando uma corda no pescoço do ator Michael Schneider, que dissera ser judeu, respondendo a uma pergunta do tal empresário. O Holocausto foi, sem dúvida, um capítulo decisivo na história do Povo Judeu. A Lista de Schindler permitiu que um número incontável de pessoas, inclusive muitos judeus, aprendessem a respeito do extermínio de sete milhões de judeus, inclusive um milhão e meio de crianças, perpetrado pelo regime nazista. Passados 25 anos após o lançamento de A Lista de Schindler, o filme se tornou ainda mais relevante, especialmente com o ressurgimento da direita europeia, do antissemitismo e do negacionismo do Holocausto.


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Congratulações por terem entre seus colaboradores Lilia Wachsmann. Suas traduções encantam por seu estilo leve e fácil e que se lê com o maior prazer. Ao ler o discurso de Sir Jonathan Sacks, “A grandeza de ser judeu”, por ela traduzido, senti-me como se estivesse presente, entendendo tudo o que o rabino dizia. Obrigado, Morashá, por ter publicado o discurso. Obrigado, Lilia Wachsmann, por traduzir magistralmente. Anna Gedankien Santo André- SP

Recebi, em Nova York, a edição 99 da Morashá com o excelente artigo “A Polônia e a Negação do Passado”, de Jaime Spitzcovsky. Guga Chacra Nova York - EUA

O artigo “Israel 70 anos”, de Zevi Ghivelder, não é apenas didático para aqueles que desconhecem a autêntica história da criação do Estado de Israel, mas é o testemunho privilegiado de um grande jornalista, que enriquece esta excelente revista. Ricardo Goldenberg Lima - Peru

Impressionante o relato no artigo “A Vida dos judeus em Fez”, que nos ensina mais uma vez a jornada dos judeus que, em todos os cantos do mundo, contribuem para o desenvolvimento dos países nos quais se estabelecem e, em vários casos, são vítimas de perseguição e sofrimento. Claudio Pasternak Por email

Gostei muito da última edição da Morashá em que se comemora o 70ª aniversário da fundação do Estado de Israel e explica que o retorno do Povo Judeu à Terra Prometida é muito significativo para toda a Humanidade. Interessou-me muito o artigo sobre a comunidade judaica de Fez, Marrocos, sobre a qual não tinha muito conhecimento. Agradeço a valiosa informação religiosa e cultural que esta revista traz a cada edição. Marilyn Dana México

Sou um assíduo leitor da revista online e um grande admirador. De extrema importância a série de artigos sobre a Polônia. Parabenizo a iniciativa, principalmente hoje quando tantos jovens (e não tão jovens) não conhecem nossa história. Não podemos permitir que se esqueça o sofrimento e a bravura dos judeus poloneses durante o Holocausto, precisamos lutar contra os que tentam negar os acontecimentos. Eu tenho indicado a leitura dos artigos a todos meus familiares e conhecidos. Sugiro que vocês escrevam uma matéria sobre Emanuel Ringelblum, o grande herói e historiador que conseguiu juntar e enterrar informações sobre os amargos dias do Gueto de Varsóvia. Alex Rotter Rio de Janeiro - RJ

Entrei no site www.morasha.com.br e cada vez fico admirado com a quantidade e o nível das informações à disposição dos usuários. Não saberia que artigos destacar, tamanha variedade, mas acabei de ler a matéria sobre os Quatro Guardiães, que ajudou muito nos meus estudos.

Nossa kehilá agradece o constante envio dessa fonte de informações, indispensável para a Comunidade Sefaradi de Camboriú. Prof. Ivan Liñares Comunidade Sefaradi de Camboriú Camboriú - SC

A contribuição da Morashá para o judaísmo brasileiro é incomensurável, com seus artigos interessantes e feitos com bastante esmero. Importante salientar que nos chaguim recebemos mais um presente, os suplementos alusivos à festa, que na mesa dos sedarim nos instruem e nos alegram. Perla Moscovici Por email

Conhecer, através da Morashá, Iylia Schor foi uma surpresa agradável. Como é importante um artista perpetuar o judaísmo por intermédio de seu trabalho de maneira tão fidedigna. Pena que tantos pintores pereceram no Holocausto. Para nossa sorte, Schor foi poupado da barbárie nazista. Marcio Cohen Por email

Excelente reflexão sobre Purim, um texto esclarecedor e muito didático, digno de um povo que possui a certeza da presença de D’us em sua vida, como o nosso.

Agradecemos pela revista Morashá, que minha família e eu conseguimos ler no Shabat de Pessach. Amo ler sobre a nossa cultura e as matérias publicadas transmitem valores importantes. Parabéns à edição! Minha gratidão por enviarem tão rápido!

Eraldo Bentes Belém - PA

Michele Sabrine de Moura São Paulo - SP

Marco Svecovski Rio de Janeiro - RJ

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junho 2018



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