ANO XXVII - edição 107 ABRIL 2020
ANO xxvII edição 107 ABR 2020
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ANO XXVII - Abril 2020 - Nº 107
Prato de Seder, Keará, em prata, Com três andares. Viena, 1814
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Carta ao leitor A festa judaica que celebra a liberdade é o ritual mais antigo do mundo. Celebrada anualmente, Pessach nunca perdeu seu poder de inspirar a imaginação de sucessivas gerações de judeus com sua dramática história revivida ano a ano. Quando tudo parecia perdido para nosso povo, quando a intensidade da escravidão chegou ao ápice, iniciouse o processo de libertação dos Filhos de Israel. D’us enviou Moshé para os libertar e os levar de volta à nossa pátria ancestral – a Terra de Israel. Antes de deixar o Egito, Moshé reuniu nosso povo para lhes dizer que, em breve, íamos partir em direção à liberdade. Mas, nessa hora, Moshé não falou sobre liberdade, mas sobre educação. Dirigiu seu olhar não ao futuro imediato, mas ao futuro distante; não aos adultos, mas às crianças. Fez uma constatação fundamental: pode ser difícil escapar da tirania; no entanto, é ainda mais difícil construir e manter uma sociedade livre. E, a longo prazo, há uma maneira, apenas, de o fazer. Para defender um país, é preciso um exército; mas para defender uma civilização, é necessário haver instrução. É necessário transmitir aos nossos descendentes nossos conhecimentos, valores e história. Muitas nações alcançaram grandes alturas quando confrontadas com perigos e dificuldades. O verdadeiro teste para uma nação, no entanto, não é sobreviver às crises, mas poder fazê-lo quando tudo corre bem. Esse é o desafio que derrota todas as civilizações. Não deixe que seja a causa de sua derrota, diz Moshé. Ele ensinou, também, como essa situação poderia ser evitada; e sua percepção foi tão relevante na época quanto o é em nossos dias. Ele falou da importância da memória para a saúde moral da sociedade. As civilizações começam a morrer quando se esquecem. Ao Povo Judeu foi ordenado recordar o sofrimento da servidão egípcia e os 40 anos que passaram no deserto. E, em cada geração, somos obrigados a considerar como se cada um de nós tivesse realmente saído do
Egito. Como Yossef Chaim Yerushalmi observou em seu tratado Zachor: “Somente a Israel D’us ordenou ‘Zachor, lembra-te’ como um imperativo religioso para todo um povo”. Israel recebeu ordem de “Nunca esquecer”. E, somos moralmente obrigados a nunca esquecer o episódio mais doloroso em nossa História e que não ocorreu há mais de três milênios – quando éramos escravos no Egito – e, sim, há menos de um século. Durante o Holocausto, o Povo de Israel sofreu uma campanha de genocídio muito mais cruel do que a enfrentada por nossos antepassados no Egito. Na época muitos acreditavam estar presenciando o fim do Povo Judeu e da Fé Judaica. Mas, tal qual ocorreu no Egito, e apesar de 6 milhões de nossos irmãos terem sido mortos, após a derrota alemã e o fim da 2ª Guerra, a escuridão terminou e Israel sobreviveu. Reconstruiu sua nação e voltou a brilhar. Assim como a geração de judeus cujos filhos foram lançados ao Nilo testemunhou, no Monte Sinai, os milagre e a Revelação Divina – a geração que passou pelo Holocausto presenciou o milagre do retorno do Povo de Israel à Terra de Israel e à sua capital sagrada. Não foi apenas em janeiro deste ano, quando os líderes de todo o mundo livre se reuniram e discursaram em Jerusalém, no Fórum Mundial do Holocausto, nem tampouco em Auschwitz, quando Ronald Lauder, Presidente do Congresso Judaico Mundial, alertou contra o ressurgimento do ódio antissemita, e antiIsrael, que o mundo celebrou a força, a resiliência e a fé do Povo Judeu e a fidelidade de D’us ao Seu Povo. Celebramos isso todos os dias, e especialmente durante o Seder de Pessach, quando relembramos e relatamos aos nossos filhos a turbulenta, mas triunfante, história milenar do Povo Judeu.
ÍNDICE
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03 carta ao leitor 06 nossas festas O significado da
entrega da Torá
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HISTÓRIA Enquanto 6 milhões morriam POR ZEVI GHIVELDER
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comunidades A comunidade judaica de Arlon por JEAN-CLAUDE JACOB
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shoá Talentos musicais em Buchenwald: 1937-1945 POR reuven faingold 4
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israel O Lar da Dança em Israel
personalidade Zeev Jabotinsky
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destaque 100 anos do Keren Hayesod– United Israel Appeal POR Abrão Lowenthal
atualidade Sinagoga no Egito recupera seu esplendor
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comunidades Judeus da Alemanha: da República ao Terceiro Reich
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SHOÁ Dia Internacional do Holocausto
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NOSSAS FESTAS
O significado da Entrega da Torá O ápice e propósito da libertação do Povo Judeu de sua escravidão no Egito ocorreu 50 dias após o Êxodo. As 10 Pragas que se abateram sobre esse país, a abertura do Mar de Juncos e o início da jornada através do deserto, a caminho da Terra de Israel, foram o prelúdio da Revelação Divina no Monte Sinai e da Entrega da Torá, que são os eventos que celebramos na festa de Shavuot.
E
ssa festividade, celebrada na Diáspora nos dias 6 e 7 do mês judaico de Sivan, é o ponto culminante de um processo espiritual que se inicia 50 dias antes, em 15 de Nissan – primeiro dia de Pessach. O mandamento da Contagem do Omer, a partir da segunda noite de Pessach e terminando em Shavuot, ensina-nos que os dias entre as duas festividades são degraus de uma escada espiritual que nos leva a uma revelação Divina incomparavelmente superior a tudo o que vivenciamos durante o Seder.
A Revelação Divina no Monte Sinai foi um evento sem paralelo. Pela primeira e única vez na história humana, D’us Infinito revelou-Se a uma multidão de seres humanos. Poderíamos esperar que Ele fizesse o pronunciamento mais importante, mais inspirador e místico jamais ouvido: ensinamentos cabalísticos apresentados como lindos versos poéticos. No entanto, o que o povo ouviu foram algumas declarações – os Asseret HaDibrot. Se fôssemos analisar o teor desses Dez Pronunciamentos, perceberíamos que excetuandose o mandamento sobre o Shabat, há muito pouco de sublime ou inovador neles. A maior parte dos Dez Pronunciamentos Divinos – crença e lealdade perante D’us; honrar pai e mãe; não matar, não roubar nem cometer adultério; e não corromper o sistema de justiça com falsos testemunhos – são mandamentos que qualquer sociedade decente instituiria, cedo ou tarde, como parte de seu código de leis. De fato, havia outros povos que promulgavam e seguiam leis semelhantes – e já as praticavam antes mesmo da entrega da Torá. Obediência, lealdade e reverência com a sua própria fé – base dos três primeiros dos Dez Pronunciamentos – são comportamentos esperados mesmo de membros de sociedades que criavam sua própria religião e moldavam suas próprias divindades. Da mesma forma, a proibição
O Livro Êxodo – segundo livro da Torá – descreve a Revelação Divina no Monte Sinai como uma experiência quase surreal. Esse evento único na história humana jamais será repetido, nem mesmo na Era Messiânica. No Monte Sinai, D’us Se revelou a todo um povo – homens, mulheres e crianças. Em meio a trovões e raios e ao toque do Shofar, milhões de seres humanos vivenciaram uma revelação indescritível do Infinito. D’us revelou-Se perante todo o Povo de Israel, face a face, e proclamou os Asseret HaDibrot, os Dez Pronunciamentos – comumente e erroneamente traduzidos como os Dez Mandamentos. 6
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Detalhe sobre o Êxodo. Tapeçaria, Knesset. Parlamento de Israel, Jerusalém 1965
contra assassinato, roubo e adultério, são fundamentos atemporais de dignidade humana em praticamente todas as épocas. Foram poucas as exceções – algumas sociedades permitiam o roubo, praticavam a violência de forma desenfreada e não tinham o conceito de monogamia. Mas, os seres humanos lúcidos entendem que há um certo código de moralidade e conduta que precisa ser seguido se o povo ou a comunidade pretendem continuar a existir. Não há necessidade de se ter grande intelecto ou compasso moral para perceber que uma sociedade não pode funcionar adequadamente onde o assassinato e o roubo correm soltos, bem como o desrespeito aos pais e professores, ou uma quebra da estrutura familiar ou a corrupção do sistema de justiça.
Qual a importância superior da Revelação Divina no Sinai e da Outorga da Torá? Como perguntaram nossos Sábios: era necessário que D’us, Ele mesmo, tivesse que Se revelar em todo o
Qual teria sido, então, a inovação trazida pelos Dez Pronunciamentos? 7
Seu esplendor, diante de milhões de pessoas, para dizer ao povo que não roubasse? A questão sobre o significado da Entrega da Torá também pode ser abordada por outro ângulo. Como mencionamos acima, apenas um dos Dez Pronunciamentos era verdadeiramente inovador e original – o Shabat. Mas, nem mesmo esse mandamento era novidade para o Povo Judeu. Os Filhos de Israel guardavam o Shabat, em maior ou menor grau, antes mesmo da Revelação Divina no Sinai. Moshé Rabenu – nosso maior profeta e gigante espiritual de todos os tempos – percebeu a importância de guardar o Shabat mesmo enquanto crescia no palácio do Faraó, adotado que fora pela filha do rei egípcio. Moshé convenceu o Faraó a conceder aos escravos judeus um dia de descanso. E para isso usou um abril 2020
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não estudar a sabedoria Divina e não guardar o Shabat, ou que se alimentasse de algo que não fosse casher. Na verdade, Avraham Avinu, além de ter conhecimento da Torá, conhecia até mesmo seus segredos mais profundos, que encontram expressão no estudo da Cabalá. Acredita-se que nosso primeiro Patriarca tenha sido o autor do que constitui talvez o mais antigo trabalho cabalista, o Sefer Yetzirá (Livro da Formação). Como o conhecimento da Torá antecede a Revelação Divina no Sinai, o que teria sido acrescentado quando D’us Se revelou ao Povo Judeu, 50 dias após o Êxodo? Qual teria sido a mudança essencial revelada quando da Outorga da Torá e no período após essa revelação?
O desejo de se aproximar de D’us
LAUD MAHZOR. Livro de rezas no rito germânico para uso durante todo o ano. Sul da Alemanha, c. 1290
pretexto, alegando que se os judeus descansassem um dia, teriam uma boa recuperação de seu trabalho e seriam mais produtivos nos demais seis dias da semana. Mas o objetivo de Moshé não era apenas diminuir o peso que recaía sobre seu povo; ele queria permitir que respeitassem o Shabat. O conhecimento de vários mandamentos da Torá precedeu a Revelação Divina no Monte Sinai. O Talmud nos ensina que nosso Patriarca Avraham cumpria com todos os mandamentos da Torá. No Livro de Gênesis, D’us assim Se
refere ao nosso primeiro Patriarca, Avraham: “E ... guardou Minha sentença, Meus mandamentos, Meus estatutos e Minhas leis” (Gênesis 26:5). Não nos deve surpreender o fato de os Patriarcas terem cumprido com a Torá. Seria impensável pensar que os três Patriarcas Avraham, Itzhak e Yaacov – a quem a Cabalá se refere como “as rodas da Carruagem Divina”, e cujo mérito invocamos toda vez que rezamos o Shemone Esrê (a Amidá), poderiam desviar-se uma letra que fosse no cumprimento da Vontade Divina. Seria absurdo considerar a possibilidade de um dos Patriarcas 8
Todo ser humano contém dentro de si uma Neshamá, uma alma Divina – uma centelha Divina de luz que é o ponto central, o mais profundo e oculto de sua vida. É comum os seres humanos não conhecerem a natureza de sua alma. Não conseguem ver por trás dos véus que escondem a Essência Divina dentro deles. Contudo, esse ponto central, esse núcleo, sempre existe. Podemos ignorar e tentar reprimi-la, mas não conseguimos, jamais, extinguir essa Centelha Divina. E como esse ponto mais íntimo de nosso interior – “o sagrado dos sagrados” – é Divino, o homem, consciente ou inconscientemente, anseia por encontrar sua Origem – o Altíssimo. Consequentemente, a humanidade é atraída pelo metafísico e transcendental. Ainda que muitos seres humanos usem sua alma de forma errada, interpretem mal os seus chamados, e sigam uma enorme variedade de deuses e religiões falsos,
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o homem é, por natureza, uma criatura religiosa. As sociedades e ideologias que tentaram erradicar a religião não tiveram sucesso em suas tentativas, pois o ser humano é religioso em sua própria essência – e a essência de sua existência é sua alma Divina. Portanto, não nos surpreende o fato de que um número sem fim de seres humanos esteve disposto a entregar sua vida à sua religião. Ao longo da História Judaica, muitos judeus que nem sequer cumpriam os mandamentos da Torá optaram pela tortura e morte a renunciar à sua fé em D’us. Quando se incendeia a Centelha Divina no homem, essa alma fomenta seu desejo de se relacionar com D’us. Esse encandecer se manifesta de várias formas, mas o resultado é, em geral, o mesmo: o início da busca pelo Altíssimo. Algumas pessoas começam sua busca por D’us por meio da contemplação e profunda reflexão sobre si próprios e sobre o mundo. Elas percebem que não existe criação sem um criador, pois não há neste mundo nada que não se origine em outro algo. Portanto, é evidente que tem de haver um Criador por trás de toda a Criação. A missão do homem passa a ser, então, encontrar e se relacionar com Aquele que está por trás de tudo o que existe. Como ensinam nossos Sábios, é assim que nosso Patriarca Avraham iniciou sua jornada espiritual, percebendo que se uma grande construção precisa de alguém que a erga, o majestoso universo no qual habitamos certamente também tem que ser obra de um grande Arquiteto e Criador. No entanto, há vezes em que o desejo de nos aproximarmos de D’us é decorrência de eventos e experiências pessoais. Uma pessoa que esteja muito afastada do Judaísmo e dos pensamentos sobre
a Divindade pode subitamente descobrir, quando defrontada com um evento ímpar em sua vida – feliz ou doloroso - a grande força e significado do âmago de sua existência, e pode, então, buscar uma conexão com sua Origem. Ademais, há uma profusão de fenômenos que provocam no homem o desejo de se aproximar de D’us. Algumas pessoas adquirem uma consciência religiosa ao contemplar a grandeza Divina revelada no mundo que Ele criou e ao reconhecer as extraordinárias obras Divinas e Sua transbordante luz e bondade. Essa contemplação lhes faz alcançar um estado interior de entusiasmo, que leva a uma conscientização mais plena do desejo de se achegar a D’us. Há, porém, outra maneira que faz o ser humano desejar ter a Presença Divina em sua vida, que se faz por meio da contemplação de seu próprio ser e de sua própria existência. Como, pois, está escrito na Torá: “...pois Ele é a tua vida...” (Deuteronômio 30:20). Esse entendimento – a
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conscientização interior, verdadeira, de que D’us é a essência da vida: de que Ele é a fonte da vida – e não apenas do universo todo, mas também de nossa própria existência – leva muitos seres humanos a buscar D’us com todo o seu coração e todo o seu poder. No livro de Isaías, há um versículo que diz: “Minha alma Te tem buscado a cada noite; ...” (Isaías 26:9). O Zohar, texto básico da Cabalá, explica o profundo significado desse versículo: Tu, que és verdadeiramente minha’lma, meu ser, verdadeira origem da minha vida – A Ti desejo, por Ti espero à noite, na escuridão e na ocultação da existência (Zohar III, 67a). A percepção de que D’us não é apenas Quem dá a vida, mas é a nossa própria vida, desperta e revela o desejo de O alcançar, d’Ele nos aproximar, com Ele sempre estar.
“Qual o lugar de Sua glória?” Quando a aspiração do homem de se aproximar a D’us alcança o estágio de conscientização e conhecimento, ele se sente motivado a percorrer um caminho de busca da Divindade. Mas, mesmo quando o ser humano se propõe a buscar D’us como o objetivo supremo de sua vida, o caminho não lhe é claro, pois ele se depara com a pergunta transcendental feita por todos os que buscam o Eterno, mesmo os Anjos mais elevados: “Qual é o lugar de Sua glória? (Kedushá da oração de Mussaf de Shabat e das Festividades). D’us é Infinito e Onipresente; até as crianças aprendem que D’us está em toda parte. Mas, como declarou o profeta Isaías, o Eterno é um “D’us que Se oculta” (Isaías 45:15), e a Quem não podemos perceber com nossos cinco sentidos. Como, então, alcançar e nos relacionar com um D’us oculto e abril 2020
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infinito, que pode estar infinitamente próximo, mas também infinitamente distante? Muitos creem que a maneira de se aproximar de D’us é por meio da auto-elevação espiritual – na tentativa de transcender o físico e o mundano. Essa crença provém de uma concepção terrivelmente errada sobre D’us – de que Ele é um Ser espiritual. Essa ideia se baseia na concepção de que se os seres humanos puderem se libertar dos muitos desejos físicos que os rodeiam, eles automaticamente se aproximarão de D’us. Acreditam, erroneamente, que seu corpo, suas posses materiais e suas urgências físicas e instintos são o que os impedem de se aproximar a D’us. Assim sendo, os que buscam D’us geralmente se afastam do material para se voltar ao espiritual. Eles até podem se tornar ascéticos, acreditando que somente a privação física e a renúncia a tudo o que é matéria os levará mais perto de D’us. Essas tentativas são fúteis e, quase sempre, danosas e contraproducentes. Pois, se por um lado é verdade que D’us é totalmente despido do físico, Ele tampouco é um Ser espiritual. D’us está infinitamente acima do físico, mas está igualmente distante do espiritual – mesmo de suas formas mais elevadas. Atribuir-se qualidades espirituais a D’us é uma blasfêmia comparável a acreditar que Ele é físico. O Todo Poderoso não é físico nem espiritual; Ele é exaltado acima de tudo. Comparada à Sua Infinita grandeza, mesmo a mais elevada espiritualidade é tão insignificante quanto a mais baixa corporeidade. Podemos indagar: se D’us não é físico nem espiritual, o que Ele é? E respondendo: D’us é indefinível e incognoscível. O homem finito
Machzor Tripartite (Vol. 2). Livro de rezaS no rito alemão para uso em Shavuot e Sucot, com comentários. Sul da Alemanha, 1320
não pode nem sequer começar a compreender a essência de D’us. Como Ele está tão distante do físico quanto do espiritual, ignorar o físico e abraçar o espiritual não necessariamente leva a pessoa mais perto de D’us. O homem deveria perceber que tudo o que sabemos
Moshé e a Sarça Ardente. Marc Chagall, 1966
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acerca do Todo Poderoso, e até o que julgamos que podemos entender sobre Ele, não nos leva a entender absolutamente nada. D’us, por quem tantos seres humanos anseiam com todo o seu ser, é elevado e exaltado, estando acima e além de qualquer percepção. Ele é insondável. Nosso intelecto, por si só, é incapaz de conceber a Essência Divina. Como poeticamente colocou o Rabi Shneur Zalman de Liadi, o Baal HaTanya: assim como a mão humana é incapaz de agarrar um pensamento, a mente humana também é incapaz de tocar o Divino. Em nossas orações, frequentemente nos referimos a D’us como HaKadosh, Baruch Hu: “O Sagrado, Bendito é Ele”. Como nos ensina o Talmud, a definição correta da palavra hebraica Kadosh, “sagrado”, é “separado e distante”. Portanto, quando dizemos em nossas preces que D’us é sagrado - “Tu és sagrado e Teu Nome é sagrado… Bendito és Tu, Eterno, D’us sagrado” (a terceira bênção da oração da Amidá) –, estamos admitindo que D’us é separado, distante e elevado acima
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de tudo o que existe. Se D’us é a essência e a própria definição do sagrado – separação e elevação - como poderia ser alcançado? Portanto, todas as tentativas de se aproximar a D’us por meio do empenho do próprio homem estão fadadas ao fracasso. Como pode o homem, limitado e finito, alcançar um Ser que, além de Infinito, é sagrado – separado e remoto? Não é preciso ser um matemático para perceber que o infinito não tem fim e, assim sendo, é inatingível. Independentemente de quão longe for o homem, jamais alcançará o infinito. Sendo assim, o ser humano, mesmo no auge de sua exaltação espiritual – mesmo se pudesse levitar e meditar acerca da grandeza Divina em cada momento desperto de sua vida – não teria como entrar em contato com Quem, por natureza, é inatingível – o Infinito, Santificado e Remoto. Isso significa que mesmo se o homem ascende ao nível mais alto possível a ele – que, potencialmente é um nível acima do que o dos anjos –, ele continua distante e remoto de D’us. A distância infinita que separa o homem finito do Infinito não pode ser transposta por um ser humano. O homem não pode estar próximo – nem sequer “mais próximo” – de D’us apenas por meio de seu empenho, por maior que seja, e por mais sinceras as suas intenções. Assim, pois, o caminho até D’us parece intransponível. Não há ser humano que possa vencer os obstáculos e limitações inerentes às criaturas finitas em um mundo finito e alcançar D’us, Transcendente, Remoto, Ser Infinito, independentemente de quão nobre ou justo ele seja. Para muitos, seu maior desejo é chegar a D’us, mas não há como fazê-lo, por si sós.
A Ponte para o Infinito Considerando-se o acima exposto – particularmente o fato de que os homens, sozinhos, não conseguem alcançar D’us – podemos começar a entender o significado e propósito da Outorga da Torá. Como nós, humanos, por nosso próprio empenho, não conseguimos sozinhos alcançar a Divindade, D’us, Ele mesmo, em Seu infinito amor e bondade, Se transporta até nós para cumprir a intenção original da Criação. Somente, Ele, o Onipotente, pode vencer a distância que separa o que é finito de Sua Essência Infinita. Já sabemos que o finito não alcança o Infinito, mas o Infinito pode alcançar o finito. A Revelação Divina no Monte Sinai e a Outorga da Torá foi o evento mais importante na história humana, pois foi quando D’us venceu a distância entre o homem finito e Ele. E como
isso ocorreu? Por meio de Sua Torá, que contém Sua Essência – Sua Sabedoria e Sua Vontade. Sendo assim, a Torá não é apenas um livro de Autoria Divina, com relatos, leis e ensinamentos. A Torá é muito mais do que isso: é a ponte que permite que o homem finito alcance D’us em Sua Infinidade. A Torá é a interface que permite ao homem se aproximar a D’us e com Ele se comunicar – porque revela a maneira para poder unirse a D’us – ou seja, estudando a Sua Sabedoria e cumprindo Sua Vontade – que vêm revestidas por Seus textos sagrados e Seus mandamentos. Portanto, um mandamento da Torá é muito mais do que uma ordem Divina, um tzav; com um teor dentro de si bem mais profundo e mais essencial. A palavra Mitzvá, um mandamento da Torá, origina-se na palavra tzavta – estar junto, unido a D’us. Assim, pois, o cumprimento de uma Mitvzá une o homem a D’us.
Shavuot. Gravura em madeira, Moritz Daniel Oppenheim, 1880
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Altíssimo. Isso é válido para todos os mandamentos da Torá. Cada vez que seguimos uma de suas leis pelo fato de constituírem a Vontade do Todo Poderoso, estamos nos aproximando de D’us e nos conectando com o Infinito.
Ao descrever a Revelação Divina, a Torá afirma que D’us “desceu sobre o Monte Sinai”. O que isso significa? Como é possível que um Ser Infinito e Onipresente, que está em toda parte, desça em algum lugar? Uma das respostas é que a Torá utiliza a metáfora de D’us “descer” para nos ensinar de que, ao outorgar a Torá ao Povo Judeu, Ele Se tornou acessível ao homem: D’us “Se rebaixou”, em termos metafóricos, permitindo a nós, humanos, chegar até Ele. A Outorga da Torá no Sinai trouxenos, ao nível de nossa inteligência humana, o caminho para alcançar D’us. Assim sendo, no Monte Sinai, o Povo Judeu não recebeu uma dádiva Divina dos Céus – recebeu os próprios Céus. O propósito máximo da Torá e de seus mandamentos, entre os quais os Dez Pronunciamentos, é total e essencialmente diferente do que qualquer outro código de leis redigido pelos homens. Quando nós, seres humanos, instituímos nossas
leis, temos por propósito estabelecer e estabilizar a sociedade humana. As leis que elaboramos podem ser nobres, benéficas e voltadas para o futuro. Mas são motivadas por interesses de uma sociedade e limitadas por nossa natureza e caráter essencial. As leis dos homens não transcendem o reino humano. Contrariamente, as leis proclamadas por D’us no Monte Sinai, por mais mundanas que possam parecer, expressam a Vontade e Sabedoria Divinas. A adoção e cumprimento dessas Leis Divinas são o portal que nos permite chegar ao Ser Único e Transcendental, Abençoado o Seu Nome. É por meio da Torá que o homem finito e D’us Infinito comungam, por ser a ponte que permite ao homem verdadeiramente chegar a D’us. Quando o ser humano se abstém de roubar – não apenas porque a sociedade ditou ser isso um ato ilegal –, mas porque D’us o proibiu em Sua Torá, ele se aproxima do 12
Antes da Entrega da Torá, o mundo era um mundo onde o homem tentava alcançar D’us, mas ainda assim, apesar de seus esforços, continuava distante d’Ele. Foram poucas as exceções, tais como nossos três Patriarcas, que tinham conhecimentos de Torá sem que ela nos tivesse sido entregue, no Monte Sinai. A partir da Outorga da Torá, a forma de alcançar o Divino foi disponibilizada a todos nós, seres humanos. D’us, Ele próprio, “desceu” sobre o Monte Sinai e Se revelou por meio da Torá, dizendonos como é possível ao homem vencer os obstáculos de sua própria humanidade para se aproximar e se ligar ao Divino.
O mandamento de servir a D’us com alegria Uma vez tendo compreendido que a Torá é a ponte que permite conectar o homem finito a D’us Infinito, torna-se mais clara a razão pela qual somos ordenados a servir a D’us com alegria – estudar a Sua Torá e cumprir Seus mandamentos com o coração aberto e jubiloso. Sendo a Torá a interface que permite ao homem conectar-se a D’us, cada vez que um judeu estuda a Torá, ele está dialogando com o Sagrado, Bendito o Seu Nome. A Cabalá nos revela que quando nós, judeus, estudamos Torá, D’us estuda conosco, a nosso lado. O Pirkei Avot (“Ética dos Pais”), um Tratado da Mishná, ensina que mesmo quando um judeu está sozinho estudando a Torá, a Shechiná, a Presença
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Divina no mundo, paira sobre ele. Também a obra-prima cabalística do Baal HaTanya – Likutei Amarim (conhecida como o Tanya) – explica que quando um judeu está estudando Torá, ele está abraçando e sendo abraçado, ao mesmo tempo, pelo Rei Infinito. O Talmud e os livros cabalísticos também ensinam que os mandamentos da Torá são a Vontade de D’us e quando um judeu cumpre uma Mitzvá, ele se une ao Altíssimo. Por exemplo, a Shechiná habita naquele que coloca Tefilin. A compreensão de que a Torá e seus mandamentos são o vínculo que une o homem a D’us deve trazerlhe um sentimento de grande júbilo ao estudar os textos sagrados e cumprir as Mitzvot. Poucos minutos de estudo da Torá permitem o que nenhum tipo de meditação sobre o Divino consegue alcançar: uma verdadeira união com D’us. Portanto, é errado enxergar a Torá e seus mandamentos como um ônus imposto ao Povo Judeu, pois de fato são a maior dádiva ao mundo: algo que o homem vem buscando desde sua criação – o caminho até D’us.
simplesmente veio dos Céus; a Torá é os Céus. E sua outorga a nós, no Monte Sinai, significou que os Céus desceram até a Terra. Assim, sempre que a estudamos, emergimos dos confins de nosso mundo limitado e tocamos o Infinito.
SEFER TORÁ DA SINAGOGA BEIT YAACOV, VEIGA FILHO, São Paulo
Quem não encontra júbilo na Torá demonstra não entender seu ponto primordial, sua essência e propósito. Diferente do que muitos pensam, a Torá não visa a civilizar o homem. Isso os seres humanos podem fazer sozinhos. Nem nos foi dada como uma espécie de teste Divino, para medir nossa lealdade ou obediência. Em vez disso, a Torá é a maior expressão do amor de D’us por nós, Suas criaturas. A Torá não
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O significado da Entrega da Torá mudou o curso da História para sempre – não apenas para o Povo Judeu, mas para toda a humanidade. O mundo era um antes desse acontecimento magno e passou a ser outro mundo totalmente diferente após a Outorga. A festa de Shavuot, portanto, celebra o dia mais importante e grandioso na História humana – o dia em que D’us Infinito trouxe os Céus até a Terra e Se tornou disponível ao homem finito.
BIBLIOGRAFIA
Rabbi Adin (Even Israel) Steinsaltz – “The Significance of the Giving of the Torah – Change and Renewal – The Essence of the Jewish Holidays, Festivals & Days of Remembrance” - Maggid Books.
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HISTÓRIA
ENQUANTO SEIS MILHÕES MORRIAM Por ZEVI GHIVELDER
Ao longo de 75 anos de História, a pergunta mais instigante ainda não teve uma resposta convincente: Por que as grandes potências não impediram o Holocausto? Os Estados Unidos e a Inglaterra, líderes dos países aliados na 2ª Guerra Mundial, pouco ou nada fizeram para obstar o extermínio de seis milhões por uma razão tão lógica quanto simples: os judeus eram descartáveis.
A
partir da segunda metade da década de 1930, no século passado, os prenúncios do Holocausto foram se tornando cada vez mais visíveis, tendo como marco mais maligno, em novembro de 1938, a Noite dos Cristais, quando pelotões paramilitares do Partido Nazista quebraram as vitrines de 815 lojas pertencentes a judeus, depredaram 171 residências, vandalizaram 76 sinagogas e incendiaram outras 191 em todo o território alemão, além de assassinar 36 judeus. Dois anos antes daquela noite infame, a Agência Judaica se dirigiu ao governo do Reino Unido, formulando dois pedidos: intervenção dos mandatários britânicos para coibir a violência desencadeada por milícias árabes, que varria o território da antiga Palestina, e o aumento da cota de emigração para os judeus europeus. Era evidente que o nazismo logo assumiria proporções violentas e a Palestina era o único refúgio para os judeus que, se fosse possível, iriam ao encontro de outras centenas de milhares que ali já viviam numa moldura de estrutura social bemsucedida e bem organizada.
nomeou um distinto cavalheiro, Lord Peel, para chefiar uma comissão de averiguação dos distúrbios in loco. Assim foi concretizada a Comissão Peel que percorreu a Palestina com criterioso empenho investigativo e, no dia 7 de julho de 1937, apresentou um relatório final propondo a partilha do território entre árabes e judeus. A proposta dividiu a liderança judaica no Congresso Sionista Mundial daquele ano. Metade desaprovou o traçado da partilha, embora concordasse com o conceito em si da divisão que teve Chaim Weizmann e Ben Gurion como seus mais ardorosos defensores. Ambos julgavam que tal partilha seria um ponto de partida para a futura expansão. O gabinete inglês, por seu turno, aprovou o plano e fez o que lhe era de hábito: nomeou mais uma comissão para esmiuçar o relatório da Comissão Peel. Assim surgiu a Comissão Woodhead que mal saiu do papel. Frustrada com a Comissão Peel, a liderança judaica continuou pressionando as potências europeias no sentido de que fosse encontrada uma solução para abrigar a massa de refugiados judeus alemães que começava a vagar por diversos países, sem perspectivas de acolhimento.
Como se comporta a maioria dos governos, quando hesita para tomar alguma decisão, o governo inglês 14
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Grupo de judeus húngaros ao chegarem ao campo de extermÍnio de Auschwitz, Verão de 1944
Finalmente foi marcada para o dia 5 de julho de 1938 a Conferência de Evian, na França, com a participação de nações da Europa e da América Latina, inclusive o Brasil. Os delegados dormiram bem, comeram bem e beberam muita água mineral Evian, a atração daquela bucólica estação de repouso. A Agência Judaica foi representada por Golda Meir, que, em suas memórias, destacou a sonolência provocada pelos discursos dos delegados.
próximo que, com certeza, depois de acolhidos no Caribe, aqueles judeus encontrariam uma forma de aportar nos Estados Unidos. Esta decisão de Roosevelt foi apenas uma pequena mostra de sua postura indiferente e até mesmo hostil com relação aos destinos dos judeus antes e durante
Ao cabo de nove dias bem aproveitados pelos diplomatas, restou apenas uma proposição da República Dominicana, disposta a receber 10 mil judeus. Mesmo do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos, na pessoa do presidente Franklin Roosevelt, torpedearam a proposta. Roosevelt argumentou para seu círculo mais 15
todo o transcurso da Segunda Guerra Mundial. O ano de 1939, fora a invasão da Polônia pela Alemanha Nazista, foi particularmente sombrio para os judeus da Europa e também da Palestina, o chamado ishuv. No dia 7 de fevereiro o governo britânico instalou uma ampla conferência com a participação de árabes e judeus. Mais uma vez a violência na Palestina era o foco central dos debates, mas a delegação da Agência Judaica buscava, ao mesmo tempo, uma solução para os refugiados que se acumulavam na Europa. À frente da delegação judaica estavam Chaim Weizmann e Ben Gurion. Este insistiu que a delegação judaica não se limitasse apenas à Agência, uma entidade sionista, mas fosse rotulada como Delegação Judaica, de modo e a alcançar abril 2020
HISTÓRIA
que partira de Hamburgo rumo a Cuba, levando 937 refugiados de diferentes países europeus. Depois de inúmeras complicações e previsíveis evasivas diplomáticas, os St. Louis não pode atracar em Havana, nem em qualquer porto dos Estados Unidos, por ordem expressa de Roosevelt. O navio regressou ao porto de origem e seus passageiros foram levados para campos de concentração.
Reunião em Londres, janeiro de 1939, sobre a perseguição aos judeus na Alemanha. Ben Gurion e Chaim Weizmann em primeiro plano
maior abrangência, incluindo antissionistas, como o famoso escritor Sholem Asch, ali presente. Weizmann apresentou quatro itens para os debates: os judeus não deveriam ser considerados minoria na Palestina; o mandato inglês deveria ser continuado; permissão para a entrada na Palestina de maior número de imigrantes; incentivos econômicos para o desenvolvimento da região. Por estar fora do escopo da conferência, a questão dos refugiados foi discutida à parte, mas sem maiores avanços. Em maio, a resposta inglesa a todas as demandas foi terrível e traiçoeira: O governo de Sua Majestade emitiu o White Paper, um documento que fechou a ferro e fogo as portas da Palestina para a entrada de imigrantes judeus. Se o White Paper de 1939 não tivesse existido, o número de vítimas do Holocausto com certeza teria sido muito menor.
telegrama para o primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain. O telegrama implorava que lhes fosse permitido partir para a Palestina. Não houve qualquer resposta. Em 2019, um pesquisador encontrou o original daquela mensagem nos arquivos do Departamento Colonial Inglês, sem indicação de que tivesse chegado às mãos de qualquer autoridade do governo britânico. Enquanto o telegrama polonês percorria o cabo submerso do canal da Mancha, o mesmo mar era navegado pelo navio St. Louis,
Poucos dias antes da emissão daquela tirânica proibição, um numeroso grupo de proeminentes judeus poloneses enviou um 16
Naqueles anos terríveis que antecederam o Holocausto houve apenas um momento de alívio. Foi a iniciativa do Kindertransport (Transporte de Crianças), na qual países europeus se reuniram para organizar comboios que levariam crianças, sem seus pais, para a Inglaterra, aonde seriam acolhidas em casas de famílias espalhadas por todo o país. O gabinete inglês aprovou o transporte dois dias antes da Noite dos Cristais e o primeiro trem, com 400 crianças, partiu no dia 2 de dezembro de 1938. No total, foram conduzidas 10 mil crianças, a maioria das quais nunca mais tornou a ver seus pais e mães. As dúvidas e indagações que ainda pairam sobre o Holocausto começaram a ser, em boa parte, dissipadas a partir de setembro de 2019, em função do lançamento, nos Estados Unidos, do livro The Jews Should Keep Quiet (Os Judeus Deviam Ficar Quietos, em tradução livre). Seu autor é o professor Rafael Medoff, que lecionou história nas universidades de Ohio e de
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Nova York. Atualmente é diretor executivo do Instituto David S. Wyman de Estudos do Holocausto. O livro de Medoff é devastador ao escrutinizar, com extensa documentação e vasta bibliografia, o comportamento referente aos judeus por parte de Franklin Delano Roosevelt, a partir de sua primeira posse na presidência, em 1932, e durante todo o conflito mundial. Em paralelo, o livro aborda o relacionamento entre Roosevelt e o rabino Stephen Wise, um gigante do judaísmo americano e do sionismo internacional. Durante todo o período em que o Holocausto foi perpetrado, Roosevelt manteve uma atitude de inarredável intolerância. Afirmava que era muito difícil e arriscado salvar os judeus, que era impraticável o bombardeio da estrada de ferro que conduzia a Auschwitz. Acrescentava que, mesmo se pretendesse intervir de alguma maneira, suas mãos estavam atadas pelo Congresso e pela opinião pública que, na verdade, naquela época, abrigava uma forte corrente antissemita. Roosevelt mantinha estreita amizade com o rabino Wise, que tinha acesso ilimitado à Casa Branca. O presidente, inclusive, se referia a essa aproximação com o rabino como uma demonstração explícita de que nada tinha contra os judeus, muito pelo contrário. Stephen Wise nasceu na Hungria em 1874, filho e neto de rabinos. Chegou aos Estados Unidos com dois anos de idade e cresceu na cidade de Portland, Oregon. Adolescente, se destacou como orador carismático, advogando igualdade para os negros e apoiando o New Deal, programa social e
Dr. Bernard Deutsch, presidente do Congresso Judaico Americano (centro) e o rabino Stephen S. Wise (à direita) participam de uma manifestação em massa contra o tratamento nazista de judeus alemães. A manifestação ocorreu no mesmo dia da queima de livros na Alemanha. Nova York, Estados Unidos, 10 de maio de 1933
econômico formulado por Roosevelt, que resgatou os Estados Unidos da recessão após a catástrofe originada pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. Ao contrário da maioria dos rabinos de orientação reformista, Wise se engajou com extraordinário empenho na causa sionista. Foi uma das primeiras grandes vozes antinazistas na América e liderou um movimento de boicote a produtos importados da Alemanha. Em 1936, fundou o Congresso Judaico Mundial, com sede em Genebra, cuja principal incumbência era combater o crescente nazismo na Alemanha. Dois anos mais tarde, Wise já se notabilizara nos círculos políticos de Washington por suas discussões com Roosevelt a respeito da Palestina. O presidente lhe dissera, durante uma ocasião, que não havia a possibilidade de a Palestina absorver maior número de judeus. Wise lhe descreveu com pormenores as boas condições sociais e econômicas em que vivia o ishuv e pediu sua intervenção junto ao governo inglês para a liberação de 150 mil vistos de imigrantes para a Palestina. 17
A solicitação não foi além da conversa. Àquela altura, entrou no circuito o juiz judeu Felix Frankfurter, da Suprema Corte, que enviou ao presidente um longo dossiê sobre as perspectivas de desenvolvimento dos judeus na Palestina. Resultado: zero. Nos telegramas diplomáticos trocados entre Londres e Washington, os ingleses diziam que, no tocante
Kindertransport - crianças judias chegam a Londres, fevereiro de 1939
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HISTÓRIA
à Palestina, “os judeus já tinham atingido o seu ponto de saturação”. Em outubro daquele ano, Fankfurter foi à Casa Branca para um debate, como ele mesmo revelou, cara a cara com o presidente. Entre outros argumentos, lembrou que os Estados Unidos haviam apoiado a Declaração Balfour, em 1917. Roosevelt lhe prometeu que enviaria para Chamberlain uma carta substanciosa a favor dos judeus. A carta nunca foi enviada. Em 1942, a adoção da “Solução Final” pelo regime nazista vazou até Washington e Londres. Wise liderou uma denúncia emanada dos países aliados advertindo o mundo para o extermínio que se prenunciava. No ano seguinte, Wise tornou público seu desapontamento com Roosevelt. O governo americano permanecia irredutível na sua inação com relação aos milhões de judeus que estavam sendo deportados e assassinados na Europa.
Protesto próximo ao transatlântico alemão SS Bremen, quando o Embaixador americano na Alemanha é chamado de volta após a Kristallnacht, 1938
os acontecimentos da Noite dos Cristais pelas agências de notícias internacionais, um judeu assessor da presidência, chamado Benjamin Cohen, entregou à secretária particular do presidente uma carta do rabino Wise, na qual este pedia a Roosevelt alguma ação mais enérgica contra o nazismo. Ficou por isso mesmo. Quando os serviços de inteligência dos aliados informaram
A despeito de suas frustrações com o presidente americano, Stephen Wise continuou acumulando esforços para salvar os judeus e, depois da guerra, foi fundamental no auxílio aos sobreviventes refugiados. Redobrou suas atividades sionistas e ainda pôde testemunhar o nascimento do Estado de Israel. Morreu no dia 19 de abril de 1949, aos 75 anos de idade. O acervo de Roosevelt está preservado na Biblioteca e Museu Presidencial, localizado na Albany Post Road no estado de Nova York. Muitos documentos ali guardados fazem referência aos anos da ascensão do nazismo e ao Holocausto. Em face do assombroso número de notícias que chegaram à Casa Branca, fica evidente que as reações do presidente foram bastante comedidas. Ao serem divulgados
Carta de Heydrich para Martin Luther, sub-secretário do Ministério de Relações Exteriores, convidando-o para a Conferência de Wannsee (Casa Memorial da Conferência de Wannsee, Berlim)
sobre a Conferência de Wansee, em 1942, e a consequente resolução da “Solução Final”, os poderes em Washington simplesmente não souberam, ou não quiseram, 18
avaliar o que aquilo significava. Em dezembro de 1942, Edward Murrow, o famoso correspondente americano sediado em Londres durante a guerra, transmitiu pelo rádio, através do Atlântico, a seguinte notícia: “Não há mais campos de concentração na Europa, há campos de extermínio destinados aos judeus”. A Casa Branca então se limitou a emitir uma nota condenando
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“os bestiais assassinatos a sanguefrio”. O cientista político Henry L. Feingold escreveu num trabalho intitulado “A Política do Resgate”: “As informações sobre o extermínio dos judeus chegaram ao governo em novembro de 1942. Durante 14 meses o presidente não moveu uma palha. Só atuou quando sentiu que poderia estourar um escândalo sobre esse assunto”. Essa atuação consistiu numa proposta ao primeiro-ministro britânico Winston Churchill, para que ambos se reunissem no arquipélago das Bermudas, no Atlântico Norte, sob possessão inglesa, aonde os americanos já haviam instalado bases navais. A finalidade específica do encontro era tratar da questão dos refugiados. A conferência foi aberta no dia 19 de abril de 1943, por trágica ironia, o mesmo dia em que o exército nazista desfechou o ataque final e fatal contra os resistentes do Gueto de Varsóvia. O local escolhido, a principal ilha das Bermudas, correspondia a uma cínica estratégia. Como o lugar era de difícil acesso, haveria um número reduzido de jornalistas e os debates tratariam dos refugiados, em geral, e não dos judeus, em particular. Tanto assim, que o Congresso Judaico Mundial, embora tivesse formalmente solicitado, foi impedido de participar. A pauta da reunião foi encolhida ao máximo e houve uma firme recomendação de que não caberiam considerações sobre a “Solução Final”. Ao mesmo tempo em que os Estados Unidos se comprometiam a manter estagnado o número de cotas de imigração, a Grã-Bretanha asseverava que a Palestina permaneceria trancada para os judeus. Um item da reunião referente à possibilidade de serem enviados pacotes com suprimentos para os campos de concentração,
Delegados americano e inglês à Conferência de Bermudas acerca da questão dos refugiados, abril de 1943
foi descartado antes mesmo de ser discutido. As assessorias de Roosevelt e de Churchill, nas Bermudas, eram constituídas por funcionários de segundo escalão que passaram todo o tempo tentando elaborar a instituição de um comitê intergovernamental que discutiria diretamente com os alemães a questão dos refugiados. Era uma ideia rigorosamente absurda porque os desdobramentos da guerra não tornavam viável qualquer contato com o Terceiro Reich. A Conferência das Bermudas foi encerrada no dia 30 de abril e os protagonistas emitiram um
Shmuel Zygielboim
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comunicado abjeto, conforme relata o historiador Arthur Morse em seu livro While Six Million Died (Enquanto Seis Milhões Morriam, em tradução livre). As duas potências afirmaram, sem o menor resquício de pudor, que haviam alcançado resultados positivos “para a proteção de refugiados de todas as raças e credos”. No dia 12 de maio, onze dias depois do encontro nas Bermudas, suicidouse em Londres um judeu chamado Shmuel Zygielboim, de 48 anos de idade, que tinha escapado de Auschwitz. Ele deixou uma carta endereçada ao governo polonês no exílio, na qual escreveu: ”Não posso permanecer em silêncio. Não posso viver enquanto a comunidade judaica da Polônia, à qual pertenço, está sendo aniquilada. Meus amigos no Gueto de Varsóvia morreram com armas nas mãos em sua última e heroica batalha. Não foi meu destino morrer ao lado deles, mas estou ao lado de todos na nossa cova coletiva. Com a minha morte, pretendo fazer um último protesto contra a passividade com a qual o mundo está permitindo o extermínio do Povo Judeu. Sei que nos dias atuais a vida humana pouco vale, mas espero que minha morte possa abalar a indiferença daqueles abril 2020
HISTÓRIA
que, num último momento, ainda possam salvar os judeus poloneses que sobrevivem. Meu adeus a todos que amei”. Apesar de fazer parte das forças aliadas, a União Soviética não foi convidada, por insistência de Churchill, para a Conferência das Bermudas. O líder britânico não suportava Stalin e dele desconfiava antes, durante e depois da guerra. Na verdade, Churchill tinha toda a razão por não acreditar em Stalin que, ao mesmo tempo em que combatia na guerra já fazia planos para tornar comunista toda a Europa Oriental. É impossível determinar uma data precisa para o início do Holocausto, mas a matança dos judeus foi um sinal verde dado aos nazistas quando Stalin assinou com Hitler um improvável pacto de não agressão no dia 28 de setembro de 1939, menos de um mês depois da invasão da Polônia, o país da Europa que concentrava o maior número de judeus. Em maio de 1942, um grupo clandestino de judeus conseguiu mandar uma mensagem para o governo exilado polonês, informando que, de junho de 1941 a abril do ano seguinte, mais de 700 mil judeus tinham sido executados.
de judeus”. O Holocausto fazia sua estreia na imprensa internacional.
No dia 25 de junho o jornal inglês Daily Telegraph publicou a seguinte manchete: “Alemães assassinam 700 mil judeus na Polônia”. Dois dias depois, foi a vez do Daily Mail: “O maior pogrom. Morrem um milhão
Os arquivos soviéticos referentes à Segunda Guerra não registram uma só manifestação de Stalin relativa ao Holocausto. Quando a Alemanha invadiu a União Soviética, traindo o pacto então existente, as comunidades judaicas foram os alvos prioritários das tropas SS. O massacre de 33.771 judeus na floresta de Babi Yar, na Ucrânia, foi ignorado pelas autoridades do Kremlin que, apesar do conflito, mantinham o antissemitismo como política oficial do estado. Os soviéticos só se fizeram presentes no âmbito do Holocausto quando, em 1944, o Exército Vermelho libertou o campo de extermínio de Auschwitz. A par das narrativas sobre os crimes e atrocidades feitas pelos sobreviventes, uma pergunta avultou no mundo inteiro: por que os americanos, ou os ingleses, não destruíram os trilhos que cruzavam a Europa e tinham a monstruosidade de Auschwitz como estação final?
rudolf vrba
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A administração Roosevelt se manteve firme no propósito de não arriscar sua força aérea em quaisquer missões que tivessem como objetivo interromper o avanço da “Solução Final”. Em abril de 1944, dois judeus lograram fugir de Auschwitz. Percorreram a pé milhares de quilômetros até chegaram à Eslováquia aonde encontraram outros judeus. Os dois homens escreveram um dossiê com 30 páginas que ficou conhecido como “Protocolos de Auschwitz”. Além das descrições de todos os horrores, ambos desenharam um mapa do campo de extermínio, mostrando as exatas localizações das câmaras de gás e dos fornos crematórios. Seriam um alvo fácil para bombardeios, até porque os aliados tinham absoluta supremacia nos céus da Europa. Essa documentação foi enviada para os Estados Unidos e seria apresentada num Congresso AmericanoPolonês, recém-instalado. Era do interesse da Casa Branca agradar os poloneses, que constituíam uma das maiores comunidades de imigrantes dos Estados Unidos, com vistas às eleições que aconteceriam em novembro de 1944. Os “Protocolos” foram mencionados por alto no tal congresso e acabaram sumindo. O ataque a Auschwitz ou à ferrovia também poderia ser sido feito pela Inglaterra, mas nunca contou com a aprovação de Churchill que também cultivou uma atitude reticente durante os anos do Holocausto. O motivo exposto por Churchill por não ter bombardeado a via férrea que conduzia a Auschwitz é tão leviano quanto o americano. Ele argumentou BIBLIOGRAFIA
Morse Arthur, While Six Million Died, Martin Secker & Wurburg, 1968, UK. Medoff, Rafael, The Jews Should Keep Quiet, Jewish Publication Society, 2019, EUA.
Churchill, Roosevelt e Stalin na Conferência de Yalta, fevereiro de 1945
que no segundo semestre de 1944 o Exército Vermelho já tinha ocupado a Polônia Oriental e, portanto, aquele território estava praticamente anexado à União Soviética. Assim, na sua avaliação, Stalin não gostaria de ver aviões da Royal Air Force sobrevoando terras que já lhe pertenciam. Todas as atividades de Churchill durante a Segunda Guerra Mundial estão bem pormenorizadas pelo consagrado historiador Martin Gilbert na biografia que escreveu de Winston Churchill. Contudo, Gilbert peca por minimizar as ações de Churchill contrárias aos judeus e por maximizar suas poucas intervenções sobre este assunto. O livro se refere a uma reunião do Gabinete de Guerra britânico, na qual Churchill pede a seus membros que dediquem “especial atenção aos povos que estão sendo perseguidos”. Segundo Gilbert, o Gabinete ignorou a sugestão que, na verdade, sequer explicita os judeus. O biógrafo escreve que Churchill recomendava a seus subordinados que o mantivessem sempre muito bem informado sobre os deslocamentos de refugiados, porém, mais uma vez os judeus não são mencionados. Assim como também não foram mencionados nos noticiários radiofônicos da BBC, embora, 21
segundo o autor do livro, Churchill tivesse entrado em conflito com a emissora do governo. Os diretores da rádio julgavam que notícias referentes aos assassinatos em massa de civis poderiam ocasionar pânico em toda a Europa. Entretanto, Churchill ganhou a queda de braço e o noticiário passou a ser transmitido sem omissões, com exceção ao que dizia respeito aos judeus. Há, ainda, outro episódio que chega a ser inacreditável. O Conselho Judaico de Luxemburgo enviou um pedido ao governo britânico para que este aceitasse acolher a reduzida população judaica do país. Segundo Gilbert, a dita carta foi engavetada e jamais levada ao conhecimento do primeiro-ministro. Finalmente, no início do ano de 1942, quando a “Solução Final” ainda não estava em curso, Churchill deu uma ordem no sentido de que qualquer judeu oriundo da Alemanha nazista que chegasse à Inglaterra receberia permissão para partir para a Palestina. Não há notícia de que, alguma vez, isto tivesse ocorrido. O fato é que nas mais de mil páginas das memórias que publicou sobre a 2ª Guerra Mundial, Sir Winston Spencer Leonard Churchill não escreveu sequer uma linha sobre o Holocausto. Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.
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comunidades
A COMUNIDADE JUDAICA DE ARLON Por JEAN-CLAUDE JACOB
APÓS SER LIQUIDADA EM 1943, A COMUNIDADE JUDAICA DE ARLON RENASCE COM A RESTAURAÇÃO DA MAIS ANTIGA SINAGOGA DA BÉLGICA.
e
m 1245, Arlon possuía um conselheiro municipal judeu, chamado Babbus. Na Idade Média, há notícias de uma Rua dos Judeus. Em 8 de outubro de 1808, Félix Samuel, originário de Niedervisse, na Moselle 1 francesa , instala-se em Arlon. Comerciante, tem 28 anos. Muito rapidamente, a comunidade judaica aumenta, com a chegada da família Cerf. Félix Samuel casa-se com uma filha do chefe da família Cerf. Pouco depois, é a vez de Moïse Kahn et Alexandre Kahn se instalarem no local. Poucos anos depois, em 1815, três famílias compõem a comunidade, totalizando 13 pessoas. Em 1818, Félix Samuel é nomeado Presidente da Comunidade Judaica de Arlon. A partir de então, alguns famílias provenientes da Lorena (Lorraine), Alsácia e Sarre também se instalam no cidade. Em 1834, a comunidade já conta com 102 pessoas, subindo para 119, em 1846, e 250 em 1900. Pouco a pouco outras famílias se instalam em Habay, Messancy, Athus e Aubange, somando ao todo 83 judeus nessas cidades menores. O afluxo dessas famílias se deve aos distúrbios contra os judeus que ocorrem 1
pelo território da Alsácia e, posteriormente, à guerra franco-alemã de 1870. Os comerciantes valem-se da proximidade com diferentes fronteiras para exercer seus negócios no idioma francês, mas também no dialeto judeu-alsaciano ou até em iídiche. Certamente foi essa a razão do sucesso de Arlon, se comparado com a situação em Bruxelas ou Antuérpia. A comunidade judaica de Arlon é oficialmente reconhecida por um decreto real, em 1841. No plano jurídico, seus integrantes não são tratados como judeus, mas como belgas ou estrangeiros. Abraham Oungre, autoridade religiosa oficiante de 1867 a 1912 é perfeitamente intregrado na cidade e respeitado por todos. Em 1845, o abade Thill, professor de religião católica no Ateneu Real de Arlon, retoma as acusações de morte ritual contra os judeus. O Consistório Central, órgão máximo judaico, encaminha seu protesto ao Ministério do Interior, que exige uma retratação oficial – o que foi feito em um de seus tribunais. Em 1865, dentre os chefes das 32 famílias judias locais, 24 são comerciantes. Os demais são açougueiros, donos de albergues, lavradores, um deles é juiz no tribunal de Arlon e um é bancário. Em 1839, a província de Luxemburgo é separada do Grão Ducado de Luxemburgo. O cemitério judaico de Luxemburgo proíbe, a partir de então, os enterros de
Moselle ou Mosela é um departamento da França localizado na região de Lorena, cuja capital é a cidade de Metz. O nome do departamento vem do rio Mosela, que o atravessa. 22
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TANQUE AMERICANO DA 2A GUERRA MUNDIAL, “MARCO DO CAMINHO PARA A LIBERDADE”. PRAÇA LEOPOLD, ARLON
judeus belgas. Por essa razão, em 1852, uma parte do cemitério local é cedido à comunidade judaica de Arlon para lá enterrar seus mortos. Em setembro de 1860, o arquiteto Albert Jamot é encarregado de fazer o projeto para a futura sinagoga local. A prefeitura cede o terreno e contribui financeiramente para sua construção. Iniciada a obra em janeiro de 1864, durou até meados de 1865, no local chamado “Clos Hofbauer”, nome do antigo proprietário do terreno. Inaugurada em 21 de setembro de 1865, contou com a presença das autoridades locais. O ministro do culto oficiante foi o Sr. Model, mas a inaguração oficial ocorreu em 16 de dezembro de 1866, um ano depois, com a presença do Grão Rabino da Bélgica, Sr. Astruc.
bedel da Comunidade, Sr. Cerf Goldschmidt, que perdeu a vida juntamente com seus quatro filhos, Jeannette, Salomon, Flora e Bertha. Um monumento em sua homenagem foi erguido no cemitério judaico. Após a Noite dos Cristais, na Alemanha, em 9 de novembro de 1938, a Bélgica testemunhou a chegada de refugiados do Reich em seu território. O presidente da
Em 20 de fevereiro de 1897, um incêndio destruiu a moradia do 23
Comunidade de Arlon assumiu o controle na fronteira, dispersandoos para Bruxelas e Antuérpia, encarregando-se de parte deles. Os alemães não foram os únicos a buscar refúgio em solo belga. Poloneses, romenos, húngaros e pessoas de outras nacionalidades lá buscam refúgio. Na primavera de 1940, a polícia faz um levantamento e registra 98 judeus apátridas. O rabino oficiante, Lucien Behr, francês instalado em Arlon com sua esposa, Julie Hoenel, a partir de 1912, sucedendo Abraham Oungre, é um homem inteligente e trabalhador, que congrega toda essa comunidade composta de imigrantes de várias procedências. Em 10 de maio de 1940, entendendo os maus tempos que se aproximavam, os judeus arlonenses entendem que se fazia necessário tomar uma séria decisão. O caminho diante deles ABRIL 2020
COMUNIDADES
eram as estradas da França em direção das zonas livres. Max Lodner e seus pais, Walter Strauss em sua bicicleta agarrado a seu violoncelo, Léon Levy transportando sete pessoas em seu automóvel, Paquin Jacob com sua mulher e filha partem todos para La Creuse2. Seu filho, Nathan, mobilizado desde 1938, e sua companhia de Caçadores de Ardennes3, estavam prontos para enfrentar o inimigo. Feito prisioneiro, ele foi enviado a Sagane, depois a Görlitz, onde ficou durante cinco longos anos. Sua noiva também havia partido para La Creuse com seus pais, tendo reencontrado a família de Nathan em uma cidade pequena, Dun le Palleteau. Lá eles permaneceram até o fim da guerra, vivendo em dificuldade com o pouco que tinham. Mas mesmo para quem tinha dinheiro, era muito difícil encontrar com que sobreviver. Durante esse tempo, as medidas anti judaicas tomam corpo, em Arlon. Em 23 de outubro de 1940, uma medida do governo proíbe o abate ritual de animais. Em 28 de outubro, dois outros decretos são promulgados. O primeiro definia quem era judeu: “ Judeu é todo indivíduo descendente de no mínimo
três avós de raça judia. É considerado judeu todo indivíduo descendente de dois avós judeus, se posteriormente contratar casamento com uma judia”. Proibição de retornar à Bélgica àqueles judeus que haviam fugido do país. A criação de um registro dos judeus. Este registro foi aberto na Prefeitura de Arlon em 28 de novembro de 1940. Os judeus que ainda viviam lá se registram, sendo feitas 42 fichas, uma em Athus e uma em Thiaumont. Em 10 de junho de 1941, os comerciantes são obrigados a colocar um cartaz na fachada de suas lojas indicando sua origem. Pouco depois, suas contas bancárias são bloqueadas. Por volta de setembro, um decreto proíbe aos judeus a circulação fora dos limites de suas casas entre as 20 horas e as 7 da manhã. Em seguida, a palavra “Judeu” é colocada, em destaque, nos documentos de
identidade. O prefeito, Paul Reuter, recusa-se a entregar a lista dos judeus à Sipo (Sicherheits polizei), a polícia de segurança, mas o prefeito Eichorn cumpre a ordem após ter sido convocado, duas vezes, pelo governador Greindl. As crianças judias são proibidas de frequentar os colégios, e a placa da Praça Camille Cerf é removida. Em 27 de julho de 1942, os judeus apátridas de Arlon recebem uma convocação. A Feldgendarmerie (Polícia Militar) realiza as detenções e assume a escolta dos prisioneiros até Malines. À chegada do 21o comboio a Auschwitz, 262 deportados recebem uma “matrícula” tatuada no braço. Os demais 738 são diretamente levados às câmaras de gás. Dentre os arlonenses registrados, sobrevivem apenas 3 ao fim da guerra. Tudo volta à calma em Arlon até o dia 7 de abril de 1943. Os policiais militares batem com violência às portas das casas. A notícia da prisão do rabino Lucien Behr se espalha como um rastilho de pólvora. A multidão é reunida no pátio do Hôtel du Nord. Lá se encontram Lucien Behr e sua esposa, Julie Hoenel, Ida e Otto Popper, Joseph
La Creuse é uma comuna francesa na região administrativa de Franche-Comté, no departamento de Haute-Saône.
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Batalhão dos Caçadores de Ardennes um corpo de infantaria no Componente Terrestre das Forças Armadas Belgas. Essa unidade, com capacidade de batalhão, é parte da 7a Brigada. A unidade foi formada em 1933, quando o 10o Regimento do Line foi renomeado Batalhão dos Caçadores de Ardennes, assim permanecendo até 2011, quando foi reduzido a um batalhão. Seu nome advém da região montanhosa e rica em floresta da Bélgica, Ardennes.
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Crianças e equipe no acampamento de verão da Cruz Vermelha Bois d’Arlon, onde Pola e Hena Kohn foram escondidas no verão de 1942
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Losner, Camille e Irma Cahen, Gizela Schabes, Hilda HoffmannLoew e a decana da comunidade, Fanny Bonn, do alto de seus 86 anos, já muito doente. Eles são franceses, poloneses, austríacos, romenos, mas são arlonenses por adoção. No momento em que a esposa do Sr. Behr sobe no caminhão aberto, a professora Elvire Levy lhe joga um cobertor. Lucien Behr se cobre com seu Talit, seu xale de oração, e abençoa a população de Arlon. É a última imagem que os arlonenses conservam daquele homem tão respeitado. Uma testemunha libertada de Malines conta que na prisão Dossin, um homem velho de nome Behr visita sistematicamente os enfermos. Todos desapareceram em Auschwitz. No verão de 1943, restam apenas poucas famílias judias belgas, mantidas na mira dos alemães, mas que se convenceram que os alemães não iriam prender cidadãos belgas. No entanto, decidem passar para a clandestinidade, abrigando-se nas aldeias onde seus clientes e amigos os abrigariam.
A cidade de Arlon, e os membros da comunidade judaica, colocaram pedras da memória, Stolpersteine, em 29 de abril de 2019, em memória de uma parte dos deportados. Após a guerra e até o presente a comunidade judaica continuou a funcionar com cerca de 30-40 pessoas. Seus presidentes foram Max Lodner, Walter Strauss, Roger Jacob e Jean-Claude Jacob, que lhes traça estas linhas. Após a guerra, “Les Ministres-Officiants”, ministros do culto, em substituição aos rabinos, foram Simon Meisner e eu, Jean-Claude Jacob. Nunca mais recebemos, em Arlon, um rabino propriamente dito, apesar de que a população assim denomina os oficiantes do culto. Nossa linda sinagoga viu-se forçada a fechar suas portas em 15 de agosto de 2014, pois parte da abóbada despencou durante um ofício de Shabat. O incidente foi causado por um fungo que comprometeu
a estrutura da construção. Ficou fechada até 7 de setembro de 2019. As Jornadas do Patrimônio atraíram 1.700 pessoas em 2 dias, com grande frequência e homenagens, como se vê nas fotos. Com grande alegria os serviços religiosos de Rosh Hashaná foram realizados a partir de 29 de setembro de 2019. JEAN-CLAUDE JACOB É O PRESIDENTE DA COMUNIDADE E MINISTRO DO CULTO DA SINAGOGA. Piedade Levy Wallerand contribuiu com o artigo.
Em 18 de setembro de 1944, a minúscula comunidade judaica da Bélgica, reconstituída em companhia dos soldados americanos judeus que os haviam libertado, celebram Rosh Hashaná, o ano novo, na casa de Alexandre Levy, na Rue des Faubourgs. 25
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SHOÁ
TALENTOS MUSICAIS EM BUCHENWALD: 1937-1945 POR REUVEN FAINGOLD
Um campo sinistro, localizado na Alemanha, perto da cidade de Weimar, BUCHENWALD abrigou milhares de prisioneiros judeus, entre eles virtuosos músicos e compositores, como Arno Nadel, Hermann Leopoldi, Paul Morgan e Benzion Moskovitz.
médicas. Esse campo sinistro abrigou milhares de prisioneiros judeus, a maioria deles deportados após a Kristallnacht (9-10 novembro de 1938), meses após a anexação da Áustria e Checoslováquia.
O CAMPO Buchenwald, localizado a oito quilômetros da cidade de Weimar e edificado em 1937, foi considerado o primeiro lager, campo em alemão, estabelecido na Alemanha. Construído como campo de trabalho para comunistas e dissidentes políticos, tornou-se um enorme complexo presidiário que abrigou prisioneiros de diversas nacionalidades.
MÚSICA EM BUCHENWALD Apesar do clima de tortura reinante, os prisioneiros relembram músicas compostas e tocadas em Buchenwald. Um sobrevivente descreveu esses momentos: “As SS transmitiam pelos alto-falantes do lager as músicas e composições de Zarah Leander1”. Era uma música marcial e contagiosa, tocada pela orquestra de Buchenwald na praça central, pela manhã e à noite, durante o controle de prisioneiros e na saída e chegada dos grupos de trabalho. Havia, também, a música executada durante as chamadas das listas de detentos para controle de presença, momentos em que aquelas pessoas, naquele submundo, sonhavam com a tão almejada liberdade, julgando, em seu delírio, ser o momento mais fácil para fugir da vigilância dos guardas. Havia, ainda, a música clássica tocada geralmente à noite, no sótão do Effekten kammer2, interpretada por um quarteto de cordas dirigido por Maurice Hewitt3, e a música de jazz da orquestra de Jiri Zak”.
O primeiro grupo de prisioneiros foi conduzido ao campo em julho de 1937. No final da 2ª Guerra Mundial 50 mil prisioneiros haviam sido mortos em Buchenwald vitimados pela fome, excesso de trabalho, execuções diárias pelas SS e terríveis experiências Zarah Leander era uma cantora e atriz de origem sueca que fez enorme sucesso na Alemanha nazista, especialmente na década 1930-1940.
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Effekten kammer, recinto onde os objetos eram classificados, listados com detalhes e guardados em sacolas de papel. As joias eram trancadas em um armário de aço.
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Músico comunista tcheco que liderava uma pequena orquestra que tocava jazz em Buchenwald. Pouco se sabe sobre a vida de Jiri Zak.
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Entrada principal do campo de Buchenwald
Durante anos Buchenwald manteve atividades culturais, chegando a contar com renomadas figuras do mundo do espetáculo alemão, como o pianista judeu-austríaco Hermann Leopoldi (née Kohn), os músicos judeus alemães Jura Soyfer e Löhner Beda e o célebre comediante Paul Morgenstern ou Morgan. Como em Dachau, a vivência mais frequente em Buchenwald era a “tortura musical” organizada pelas SS. O canto forçado era uma forma de castigo para humilhar os prisioneiros. Depois de um dia extenuante de trabalho, os detentos eram obrigados pelos guardas a cantar, em voz alta, diversas músicas.
sabendo cantar, precisaria de semanas de treino para poder se apresentar... E como vencer, ainda, as leis da acústica? O espaço onde nos reuniam media 300 passos de largura; portanto, as vozes dos homens que estavam no extremo do recinto chegavam até os ouvidos de Arthur Rödl [comandante do campo] quase um segundo depois da voz dos que estavam perto da porta”.
O campo oferecia uma oportunidade única de castigo arbitrário para os prisioneiros. As autoridades planejavam concursos para selecionar a melhor música do campo. Com uma dose de ironia, prisioneiros e guardas escolhiam a canção vencedora. Daí surgiu o “Buchenwaldlied” (Canto de Buchenwald), considerado o hino oficial desse campo nazista.
Barracas do campo de Buchenwald
“BUCHENWALDLIED” Concebido em ritmo de marcha, o Buchenwaldlied fala da tão esperada liberdade além dos muros do campo. Para os prisioneiros, entoar essa música era um verdadeiro ato de resistência. Um prisioneiro revelou: “O Kapo andava pelo campo, enquanto os demais detentos cantavam. Se percebia que alguém não abria suficientemente a boca para entoar a música, batia na pessoa.
Um prisioneiro registrou o seguinte relato: “Como poderíamos cantar bem e de forma afinada? Éramos um coral de 10 mil homens, que, mesmo em condições normais, e 27
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Mas, a canção de Buchenwald também nos trazia momentos de prazer, pois era a nossa música”. Ao cantar a frase “Chegará ainda o dia em que seremos livres”, se os SS notavam a alegria estampada nos rostos dos detentos, castigavam-nos com a perda de alguma refeição. O compositor Fritz Löhner Beda foi preso em 1 de abril de 1938 e transportado de Dachau a Buchenwald em 23 de setembro desse mesmo ano. Lá, com Hermann Leopoldi (1888-1959), Beda compôs o hino “Das Buchenwaldlied”:
conseguido imigrar para os Estados Unidos, tentavam desesperadamente obter um visto também para ele. Após terem conseguido obtê-lo mediante suborno, esse visto chega às mãos de Leopoldi em 11 de abril de 1939 e ele parte para Nova York. Sua contribuição à vida artística americana é conhecida. Em 1949, voltou com sua esposa para Viena, onde faleceu em 1959.
“JUDENLIED” – UM HINO AO ANTISSEMITISMO Löhner Beda
Ó, Buchenwald, não posso te esquecer, porque és o meu destino. Só aquele que te abandona, pode apreciar quão maravilhosa é a liberdade! Ó, Buchenwald, não choramos nem reclamamos, seja qual for o nosso destino, no entanto vamos dizer “sim” à vida; pois chegará o dia da nossa liberdade! Löhner Beda foi deportado e morreu em Auschwitz em 1942. Dois anos após sua morte, o Buchenwaldlied ecoava durante a entrada triunfal das forças americanas. Pela primeira vez, os sobreviventes cantavam essa canção a plenos pulmões, em liberdade!
PARTITURA MUSICAL DE BUCHENWALD
Enquanto Hermann Leopoldi sofria maus tratos em Buchenwald, sua mulher e sogro, que já haviam
BUCHENWALD. CHAMADA DOS PRISIONEIROS RECÉM-CHEGADOS, EM SUA MAIORIA JUDEUS PRESOS APÓS A KRISTALLNACHT. 1938
Como na maioria dos campos, em Buchenwald os prisioneiros recebiam trato diferenciado de acordo com a hierarquia racial do Terceiro Reich. Os judeus estavam na base da pirâmide e os abusos eram diários. Esses maus tratos foram descritos no “Judenlied” (Canção do Judeu), um grotesco hino antissemita de cinco linhas, composto por um prisioneiro alemão que queria cair nas graças das SS. Descreve minuciosamente os abusos infligidos aos prisioneiros de Buchenwald. Este hino de cinco linhas era entoado durante as chamadas diárias para conferência de prisioneiros, e os judeus eram obrigados a cantá-lo durante horas. A música diz: “Tudo aquilo que fizemos foi explorar, especular e mentir. Agora nossas mãos calejadas deverão fazer o primeiro trabalho. Somos conhecidos por nossas caras feias. Da noite para o dia, a nação descobriu que somos uma fraude. Agora, nossos narizes aduncos de judeu estão de luto”. Em dezembro de 1938, vários judeus foram convocados à praça central do campo. A banda foi forçada a tocar até os prisioneiros esgotarem suas forças. Depois os obrigaram a dançar uma valsa e, finalmente, já sem forças, foram açoitados ao ritmo da música.
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Na hora de matar prisioneiros de guerra soviéticos, a administração de Buchenwald utilizou a música para ocultar o ruído causado pelos disparos. Certa vez, o campo inteiro foi forçado a cantar durante os fuzilamentos de prisioneiros. Como em Dachau, os guardas usavam altofalantes para transmitir suas ordens, colocar música germânica e difundir propaganda nazista. Nesse campo também se desenvolviam atividades musicais clandestinas. Uma das primeiras bandas foi composta por prisioneiros judeus, como lembrou o prisioneiro Carlebach: “Uma noite, esgotados e sujos, alguns até cobertos de sangue, voltamos do trabalho e ficamos paralisados e chocados. Sobre duas mesas da barraca, havia quatro dos nossos, todos judeus, tocando Mozart. Somente quem passou pelos horrores de Buchenwald entende o significado daquilo. O impacto foi incrível, pois aqueles prisioneiros, que estavam à beira do suicídio, reagiram com coragem e confiança”. Obviamente, os quatro músicos foram descobertos e severamente castigados. Aquilo era considerado uma “prática ilegal da música”.
Paul Morgan
Fritz Grünbaum (20 à esquerda)
alistado. Estudou teatro e literatura, atuando também em casas de teatro de menor porte.
em Berlim. Naquela época, estrelas de renome internacional já haviam atuado com eles. Mas a tranquilidade da dupla MorganGrünbaum chega ao fim quando jornais alemães colocam na lista negra a casa de espetáculos onde atuavam. Com isso, ambos tiveram grandes problemas econômicos e, pouco tempo depois, grupos das SA (polícia nazista à paisana) invadiram o teatro, interditando suas apresentações por fazerem uma sátira contra Hitler.
Em 1917, Morgan se casou e poucos anos depois começou uma carreira de sucesso no cinema. Três anos mais tarde já era ator, cantor e compositor de teatro amplamente reconhecido na Alemanha. Por 1920, Paul Morgan e Fritz Grünbaum (retornado do front), montaram uma parceria atuando
PAUL MORGAN ATOR E COMEDIANTE George Paul Morgenstern ou Paul Morgan (1886-1938) foi uma das estrelas do espetáculo da década de 1920. Junto com Kurt Robitschek abriu, em Berlim, uma das casas de shows mais destacadas da época do Weimar: o Kabarett der Komiker, abreviado, Kadeko. Nascido de família judia austríaca, desde criança gostava do palco. Ao eclodir a 1ª Guerra, obteve trabalho na casa de shows “Simpl”, substituindo Fritz Grünbaum, artista judeu que se havia
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Após receber um convite para Hollywood, Morgan viajou à Califórnia por nove meses. Também tentou abrir uma casa de espetáculos na Suíça, mas, sem êxito, volta à Áustria. Em Viena, a vida estava difícil para os artistas judeus, mas Morgan tinha esperança de que Hitler deixasse o poder. Quando decide deixar a Europa, já era tarde demais. Paul Morgan foi detido em março de 1938 e levado a Dachau com outros artistas. Depois, é deportado a Buchenwald onde atuaria em performances informais que os prisioneiros realizavam nas barracas. Em paralelo, desde Viena, sua mulher trabalhava desesperadamente para obter documentos e resgatar Morgan. Conseguiu visto para a Holanda, mas já era tarde. Em 10 de dezembro 1938, Paul Morgan falece em Buchenwald por esgotamento físico.
ARNO NADEL DIRETOR E COMPOSITOR Na última carta, pouco antes de sua deportação a Buchenwald, Arno Nadel invocou a D´us para “proteger a Alemanha, uma civilizada nação de poetas e pensadores”, mas não sobreviveu a seu próprio destino, e, mesmo alimentando patriotismo, acabou morrendo em Auschwitz, em 1943. Compositor e diretor de orquestra, pintor, poeta e dramaturgo, Arno Nadel era um talento versátil. Amante da música judaica, ele colecionou temas do shtetl e músicas litúrgicas de sinagoga. O crítico Max Osborn (1870-1946) assim se referiu a ele: “Nadel era um ser humano talentoso, com uma criatividade suprema”.
Chazan, cantor litúrgico, plural chazanim
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lhe renderia a supervisão musical de todas as sinagogas de Berlim. Nessa época, Nadel dedicava-se a fazer arranjos de obras litúrgicas, das melodias de porções semanais da Torá e da música popular judia. Suas obras mais conhecidas foram Jüdische Liebeslieder (Berlim, 1923); Jontefflieder (Berlim, sem data) e Jüdischer Verlag (Berlim, 1919). Com exceção das Zemirot Shabat (Berlim, 1937), muitas de suas composições de 1933 sobreviveram em manuscritos. Arno Nadel
Nascido na Lituânia em 3 de outubro de 1878, de família chassídica, Nadel iniciou sua educação musical em Köenigsberg com o famoso chazan4 Eduard Birenbaum, continuando com Robert Schwalm. Em 1895 matriculou-se no “Instituto Judaico para Formação Docente”, de Berlim. Formado, lá se estabeleceu, iniciando seus estudos de composição com Max Julius Loewengard e Ludwig Mendelssohn. As primeiras composições de Nadel incluem uma Marcha Fúnebre pela morte do Imperador Frederico, 1901 e Der Parom (O Ferry, 1910). Escreveu ainda música de câmara para quartetos de cordas, uma para quintetos e uma suite para dois pianos, além de canções. Ele foi responsável pelo suplemento musical do jornal dos judeus sionistas. Trabalhou também como crítico para o Vossische Zeitung, Vorwärts e a Freiheit die Musik (Revista Liberal da Música), escrevendo também para periódicos. Nadel ministrava aulas particulares de Teoria Musical e História da Arte. Em 1916, dirigiu o coral da sinagoga Kottbusser Ufer, cargo que 30
A comunidade judaica de Berlim encomendou a Arno Nadel arranjos para suas músicas litúrgicas. Assim, em 1938, compilou uma coletânea de sete volumes de música para sinagogas, isto é, para chazanut, a música cantada pelos cantores litúrgicos, e para coral e órgão. Esta antologia reflete a paixão de Nadel pelo repertório de música judaica, principalmente canções da Europa Oriental, comumente apresentadas pelos chazanim. Nadel colecionou manuscritos antigos de música judaica. Partituras feitas à mão por Birnbaum e manuscritos com dedicatórias de grandes mestres faziam parte de sua extensa biblioteca musical. Escreveu libretos, sete dramas e mais de mil poemas e peças de teatro judeu polonês e russo. Dentre os principais, a coleção de poesias “Der Ton: Die Lehre von Gott und Leben” (O tom: Um estudo acerca de Deus e a Vida), datado em 1920. Como músico expressionista, ele ganhou popularidade com poesias inspiradas na filosofia taoísta. Sua coletânea Der weissagende Dionysos (1925), foi fruto de 25 anos de intensa pesquisa. Com o advento e fortalecimento do Nazismo, suas publicações foram proibidas. O talentoso e versátil
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Nadel também se dedicou à pintura. Admirador do expressionismo, criou o ciclo Vierzig Gestalten der Bibel (Quarenta Personagens Bíblicos) e vários autorretratos. Ao receber um visto de entrada para a Inglaterra, já estava debilitado e desanimado. Foi deportado do campo de Buchenwald para Auschwitz em 12 de março de 1943, onde foi assassinado.
lhe perguntou o que fazia ali, pois tinha sido o vencedor do concurso de cantores litúrgicos, tendo sido nomeado chazan de uma sinagoga em Amsterdã. Imediatamente, retornou à Holanda, assumindo o posto de cantor principal da “Congregação Benei Teiman”, uma sinagoga também conhecida como “Lekstraat Shul”.
Pouco antes de sua deportação, entregou sua biblioteca a um vizinho, que salvou parte do material. Terminada a guerra, esse vizinho a entregou a um colecionador amigo da família Nadel, Eric Mandell (1902-1988), que adquiriu essa coleção de manuscritos e partituras e as levou aos Estados Unidos. Atualmente, a coleção está no “Arquivo do Graetz College”, na Filadélfia.
Em 1940 os nazistas invadiram os Países Baixos. Dois anos depois, Moskovits foi deportado a Westerbork, campo de trânsito nazista. Em 1944, chega a Buchenwald. Ele cantava para prisioneiros com partituras achadas em um caderno contrabandeado. Comandou as orações de Rosh Hashaná e Yom Kipur no campo. Obrigado a cantar para os nazistas, foi sua voz quem lhe salvou a vida.
O chazan Benzion Moskovits nasceu em 03 de fevereiro de 1907 em Leordina, na época Hungria e hoje Romênia. Ainda criança, frequentava a Yeshivá de Bratislava, acompanhando com sua bela voz o rabino Viznitzer. Posteriormente, em 1923, estreou oficialmente como chazan nos Yamim Noraim, os dias santos de Rosh Hashaná e Yom Kipur, na sinagoga de Kosice. Como outros tantos cantores litúrgicos, Moscovitz trabalhava também como mohel fazendo circuncisões.
Moses Shreiber, apelidado de “Chatam Sofer”
de Amsterdã. Candidatou-se, competindo com 78 candidatos e chegando à fase final. Moskovits portava uma carta de recomendação escrita por um conceituado rabino da Bratislava, bisneto de Moses Schreiber z”l (1762-1839), o Chatam Sofer. Viajou à Amsterdã dias antes da competição para ensaiar com o coral, tocando partituras da chazanut holandesa. Em 1939, sem aguardar o resultado da competição, Benzion Moskovits voltou à Antuérpia para embarcar rumo ao Reino Unido. Grande foi sua surpresa quando um amigo o encontrou na estação de trem e TÚMULO DO CHATAM SOFER, BRATISLAVA
Em 1931, Benzion Moscovits estava em Bratislava. Por volta de 1938, o rabino de Viznitz o aconselhou a procurar uma vaga de chazan na Grã-Bretanha. Enquanto solicitava essa vaga no Reino Unido, morava numa casa de família judia na Antuérpia, Bélgica. Em 1938, ele viu um anúncio de jornal sobre uma vaga de cantor litúrgico que se abria na sinagoga 31
Em 1945, Benzion Moskovits foi enviado a Theresienstadt, participando das marchas da morte. Ele sobreviveu à Shoá, mas seus pulmões estavam danificados pelo trabalho forçado em minas de asbesto. Segundo um depoimento dele próprio, sua voz estava deteriorada, e chegando a Amsterdã teria afirmado: “Isto acontece quando não escutas teu rabino! ”, uma alusão àquele conselho do Viznitzer Rebe de procurar um trabalho no Reino Unido. Encerrada a 2ª Guerra, Moskovits retomou seu lugar na sinagoga “Lekstraat Shul”, trabalhando também como desenhista e gravador de joias. Logo depois, abriu sua joalharia em Amsterdã. Sua doença piorou, desenvolvendo um câncer de pulmão. Seu último serviço religioso foi em Pessach de 1968. Moskovits faleceu em 18 de setembro daquele ano, dias antes de Rosh Hashaná. Foi enterrado em Muiderberg e, depois, trasladado a Israel. ABRIL 2020
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O canto forçado era um castigo para humilhar os reclusos. Encerrado mais um dia extenuante de trabalho, no início da noite, os detentos eram obrigados a entoar, em voz alta, as mais diferentes melodias.
A LIBERTAÇÃO DE BUCHENWALD Durante os últimos anos da guerra, Buchenwald manteve o costume de organizar apresentações musicais curtas dentro do campo, principalmente aos domingos. O público era composto geralmente pelos próprios detentos. Concertos, cantos e sátiras faziam parte desses “programas”. Foram contabilizados 25 concertos com salas sempre lotadas, não apenas de prisioneiros, mas também de guardas, oficiais e até dos próprios comandantes do campo. Buchenwald foi libertado pelas tropas americanas em 11 de abril de 1945. Milhares de prisioneiros haviam sido encaminhados às marchas da morte. Até esvaziar-se por completo todo o campo, os detentos foram transferidos a um campo de refugiados. Durante todo esse tempo, o exército americano retirou-se dessa zona, e no início de julho de 1945 o campo foi evacuado totalmente e entregue às tropas soviéticas.
BIBLIOGRAFIA
Arno Nadel Collection. Graetz College Archives, Philadelphia. Berl, H. (1926). Das Judentum in der Musik, Stuttgart: Deutsche VerlagsAnstalt.
Então com 7 anos, o futuro Rabino Chefe de Israel, Meir Lau, deixa o campo de Buchenwald após a libertação
PALAVRAS FINAIS Como no campo de Dachau (ver Faingold, Morashá, Ed. 90, dez. 2015). Buchenwald também utilizou a música como forma de pressão e tortura. A Kristallnacht levou ao campo prisioneiros judeus, aumentando consideravelmente o número de profissionais da música. A experiência mais marcante em Buchenwald era a famosa tortura musical organizada pelos homens das SS.
O Buchenwaldlied era uma música que falava da liberdade além dos muros do campo. Para os prisioneiros, entoar o Buchenwaldlied era um ato de resistência e heroísmo. A possibilidade de poder cantá-la trazia aos judeus momentos de prazer, mantendo a esperança da tão sonhada liberdade. Essa canção foi cantada com a força que ainda lhes restava quando da entrada das tropas americanas no campo. Renomadas personalidades de talento passaram por Buchenwald. Figuras do mundo artístico como Jura Soyfer, Arno Nadel, Hermann Leopoldi, Fritz Löhner-Beda, Benzion Moskovits e Paul Morgan fazem parte de uma galeria de artistas judeus que iluminaram a época da Segunda Guerra. Alguns não conseguiram suportar os maus tratos administrados no campo, enquanto outros tiveram a sorte de poder sobreviver a ele. Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.
CRIANÇAS E PRISIONEIROS DE BUCHENWALD LIBERTADOS PELO EXÉRCITO AMERICANO EM ABRIL DE 1945
Hippen, R., 1988. Es Liegt in der Luft: Kabarett im Dritten Reich, Zürich: PendoVerlag. Kasack, H. (1956). ‘Arno Nadel.’ Mosaiksteine: Beitrage zu Literatur und Kunst. Frankfurt am Main, Suhrkamp, 243–48.
Keller, M., (Ed.). (2006). Erich Mendel/ Eric Mandell: Zwei Leben für die Synagoge. Essen, Klartext. Stompor, S., (2001). Judisches Musikund Theaterleben unter dem NS-Staat, Hannover: Europaisches Zentrum fur Judische Musik.
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PERSONALIDADE
Zeev Jabotinsky Amado por seus admiradores e odiado por seus opositores, Jabotinsky é uma das figuras mais importantes e controvertidas na história do sionismo. Ele é parte de uma geração de grandes líderes sionistas como Herzl, Ben Gurion, Weizmann, entre tantos outros, cujo sonho era criar um Estado Judeu. Apesar de divergir, todos eram imbuídos de um incansável idealismo e um profundo amor por seu povo.
C
arismático, Jabotinsky possuía muitas facetas e um extraordinário magnetismo pessoal. Intelectual brilhante, de invejável cultura, era escritor, poeta, jornalista e poliglota – dominava 12 idiomas, entre eles o hebraico. Filósofo, o epicentro de sua filosofia sociopolítica era estabelecer um Estado Judeu soberano. Um dos melhores oradores de sua época, ele magnetizava as plateias. Era dirigente político e lutou como soldado portando a farda do primeiro Exército Judeu dos tempos modernos após 2000 anos de exílio, organizado por ele mesmo.
adeptos do sionismo trabalhista – o que provocou profunda animosidade entre os dois líderes e seus seguidores. Desde jovem, Jabotinsky escolheu não ser apenas um intelectual. Após abraçar o sionismo, organizou na Rússia e em Eretz Israel grupos de autodefesa judaica. Foi o responsável, ou um dos responsáveis, por criar organizações de autodefesa judaica na Rússia e em Eretz Israel: como a Legião Judaica, o Keren Hayesod, o movimento juvenil sionista Betar, a Haganá, a Nova Organização Sionista, o Irgun Tzvaí Leumi (organização paramilitar underground de direita), a União Mundial dos Revisionistas Sionistas (URZ) antecessora do Likud, entre outras.
Inúmeras lendas foram criadas em torno de sua pessoa, e seu pensamento foi deturpado por seguidores e opositores. Hoje, sua figura e suas ideias estão sendo resgatadas tanto dentro de Israel quanto na Diáspora.
Os primeiros anos de vida Vladimir Evgenevich Jabotinsky, Zeev Jabotinsky, nasceu em 17 de outubro de 1880, em Odessa, então parte do Império Russo. Era o caçula dos 3 filhos de Zach Yona Ben-Zvi e Chava Jabotinsky.
Acusado por seus opositores de ter ideias fascistas, Jabotinsky se declarava um adepto do liberalismo; rejeitava qualquer pensamento dogmático e via no coletivismo uma nova forma de escravização. Ele enfatizava a primazia do indivíduo e de suas liberdades sobre o coletivo. Foi sua ferrenha oposição às teorias socialistas – tão amadas por Ben Gurion e pelos
Seu pai, rico comerciante, faleceu quando Zeev ainda era criança, deixando a família em dificuldades financeiras. 33
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“Meu pai morreu quando eu tinha seis anos, deixando-nos na pobreza”, na lembrança de Jabotinsky. Odessa era um centro de atividade judaica, mas o jovem cresceu mergulhado mais na cultura russa do que no judaísmo. Menino brilhante, escrevia poesias aos 10 anos. Aos 14, um de seus artigos, Um Comentário Pedagógico, escrito sob o pseudônimo de Vladimir Ilyich, foi publicado em um dos jornais de Odessa. Era o início de sua carreira jornalística. Quatro anos depois, já com 18 anos, deixou Odessa indo para Berna estudar Direito e trabalhar como correspondente do influente jornal Odesky Listok. Durante uma viagem de trem de Odessa a Berna, ele pôde observar a difícil vida dos judeus: “Lá no trem, tive o meu primeiro contato com o gueto... perguntandome, silenciosamente: É esse o nosso povo?”. Durante sua estada em Berna, aproxima-se do sionismo, tendo proferido o que ele considerava “seu primeiro discurso sionista”. Neste ele fazia seu primeiro alerta: os judeus da Europa estavam à beira de um grande desastre e deviam abandonar o continente europeu! Esta convicção tornou-se o aspecto central de seu pensamento e ação sionistas. No outono de 1898, Jabotinsky foi para Roma, na Itália. Matriculouse na universidade para cursar Direito, Economia Política, Filosofia e História. Foi, também, o correspondente de vários jornais russos, escrevendo sob o pseudônimo de “Altalena”. Seus despachos e artigos eram lidos por todos, sendo considerado, à época, um dos maiores nomes do jornalismo russo. No verão de 1901, retorna a Odessa, onde se torna editor do Odesskije Novosti, com uma coluna diária no jornal.
presenciara em Kishinev o fez tomar a decisão de se envolver de corpo e alma no movimento sionista. Nesse período, Jabotinsky defendeu a disseminação da cultura e da língua hebraica em toda a Rússia.
jabotinsky vestido com traje da Boêmia Checa
Após testemunhar incidentes antissemitas nessa cidade, Jabotinsky juntou-se à Organização para a Autodefesa Judaica, comprometendo-se a levantar fundos, comprar armas, e escrever material informativo sobre a organização.
Início da atividade sionista Em abril de 1903, Kishinev foi palco de um devastador pogrom durante o qual 49 judeus foram mortos, centenas feridos e inúmeras mulheres judias estupradas. Além disso, 1.500 propriedades judias foram depredadas. Jabotinsky foi até o local para investigar e lá conheceu Bialik e vários outros líderes do Movimento Sionista Russo. No ano seguinte, ele traduziria para o russo o poema de Bialik, “Um Conto de Nemirov” (“Na Cidade do Massacre”). Abismado com os acontecimentos, ele forma o primeiro grupo de judeus, na História Moderna, a usar armas em sua defesa. Pouco depois, eram criadas unidades de autodefesa em todo o território russo. De volta a Odessa, juntou-se à Organização Sionista, pois o que 34
Aos 22 anos, ele é enviado como um dos delegados ao 6º Congresso Sionista, na Basiléia, onde conhece Theodor Herzl, de quem se torna grande admirador. Nesse congresso surge a proposta de se estabelecer um Estado judeu em Uganda, parecendo ser uma solução para a angustiante situação dos judeus na Europa. Para Jabotinsky, a criação de um Lar Nacional Judaico era algo fundamental e premente, mas não tinha dúvidas de que esse estado somente poderia ser criado em Eretz Israel, a então Palestina Otomana. Afirmava que os judeus não deviam aceitar proposta alguma que os desviasse dessa meta, votando contra a proposta de Uganda. Após seu retorno à Rússia, passa a dedicar todo seu tempo ao sionismo. Ao mudar-se de Odessa para São Petersburgo, continua sua carreira de jornalista. Passa a viajar por toda a Europa, ganhando destaque como jornalista profissional e publicitário, além de orador vibrante e apaixonado. Perante as várias comunidades judaicas, ele expunha com ardor as aspirações sionistas. Encantado com o hebraico fluente que ouvira no Congresso, Jabotinsky voltou a estudar esse idioma, tornando-se orador e tradutor de grande talento. Foi ele quem traduziu para o russo toda a obra do maior poeta da língua hebraica e poeta nacional de Israel, Chaim Nachman Bialik. Em 27 de outubro de 1907, Jabotinsky casa-se com Johanna (Anya) Galprin, que conhecera
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quando tinha 15 anos e ela, apenas 10 anos. Seu único filho, Eri, nasce em 1910.
forma de salvação – fosse em nível pessoal fosse como entidade nacional – residia apenas na Terra de Israel.
em Jerusalém, sendo Jabotinsky escolhido como um dos membros de seu comitê fundador.
Em 1908, o Império Otomano foi sacudido pela Revolução dos Jovens Turcos. Jabotinsky foi enviado para lá como correspondente de jornais russos. No ano seguinte, ele fez sua primeira visita a Eretz Israel, ficando impressionado com a juventude judaica, que se desenvolvia livre de medos e segregações.
Nesse Congresso, decidiu-se fundar uma Universidade Hebraica
1a Guerra Mundial
Em agosto de 1913, no 11º Congresso Sionista, em Viena, Jabotinsky se dá conta de que sua abordagem aos problemas na Diáspora divergia da dos outros delegados da Organização Sionista. Enquanto os sionistas socialistas ainda acreditavam que havia uma esperança para a vida judaica na Europa e que os judeus deviam lutar por seus direitos civis dentro de seus países de origem, para ele a única
Com o início da 1a Guerra Mundial, em 1914, Jabotinsky foi enviado para a Frente Ocidental como correspondente do jornal Russkie Vedomosti. Quando a Turquia entra na Guerra, ao lado dos Impérios Centrais, Alemanha e Áustria, ele vê uma oportunidade de ação. Acreditava que o destino de nosso povo dependia “da libertação do domínio turco em Eretz Israel”. Parafraseando suas palavras, “Nós, o Povo Judeu, devemos participar desta libertação, como uma unidade militar judaica”. Ele queria criar uma força judaica para lutar ao lado dos Aliados e libertar Eretz Israel do jugo turco, ganhando, assim, um
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lugar na mesa de negociação da paz, com o direito de exigir a criação de um Estado judeu independente, em Eretz Israel. Mas suas ideias foram mal recebidas. Em Madri, reúne-se com Max Nordau, líder da seção política da Organização Sionista, a quem conta seu plano. Nordau o rejeita, escrevendo a Nahum Sokolov: “Rejeito definitivamente o plano de Jabotinsky, que é imaginário e indesejável”. Durante a 1ª Guerra, os turcos deportaram 10 mil judeus da então Palestina para o Egito, confinandoos em campos de detenção. Enquanto estava em Alexandria, Jabotinsky conheceu Joseph Trumpeldor, encontrando nele um ardente aliado à sua ideia de criar uma Legião Judaica. Mas, tanto os Aliados quanto a liderança da Organização Sionista estavam relutantes. Os sionistas queriam manter a neutralidade, temendo, entre outros, comprometer a segurança dos judeus na Palestina Otomana. Insistente, ele consegue convencer o governo britânico a criar uma Legião composta de voluntários judeus que, sob o comando da Grã-Bretanha, lutariam para libertar Eretz Israel dos turcos. Os britânicos limitaram a participação judaica a uma unidade de transporte, com o nome de Corpo de Animais de Carga de Sion. Organizada por Jabotinsky juntamente com Joseph Trumpeldor e Pinhas Rutenberg, a unidade foi formada em março de 1915. O Coronel John Henry Patterson, pró-sionistas, foi nomeado Comandante dessa unidade, tendo Trumpeldor como seu vice. Em final de 1916, após esse Corpo de Animais de
Zeev Jabotinsky com a esposa, Joanna, e o filho Eri
Carga ter sido desmontado pelos britânicos, 120 de seus soldados chegam a Londres, onde se tornam o núcleo da Legião Judaica. Passados dois anos nos quais Jabotinsky
“lutou sozinho a sua batalha” para criar aquela força, o governo britânico autorizou a Legião Judaica. Era agosto de 1917. Nascia o “38o Batalhão dos
“Cabe-nos defender Eretz Israel, não confiando nos favores do soldado inglês nem na bondade do policial árabe” Fuzileiros Reais” (que, com o tempo, mudou seu nome para “Os Primeiros na Judeia”). Seu símbolo era a Menorá.
LOBO SOLITÁRIO: UMA BIOGRAFIA DE VLADIMIR (ZE’EV) JABOTINSKY. ED. KINDLE
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Um ano depois, em agosto de 1917, a Legião foi enviada para lutar no Vale do Jordão, sob o comando de Tenente Coronel Patterson e do 1º Tenente Jabotinsky. A operação foi um sucesso e Patterson elogiou Jabotinsky: “Nunca esquecerei sua coragem no comando dos Fuzileiros”. Ao término da guerra a Legião é desativada e seus veteranos se tornaram a semente que formaria a Haganá, exército de defesa do Yishuv antes de declaração do Estado de Israel.
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O período entre as duas guerras Ao término da 1ª Guerra, o Império Otomano é desmembrado e a Conferência Internacional de San Remo, em 1919, concede à Inglaterra, em forma de mandato, a administração da Palestina sobre as duas margens do Jordão, com a obrigação de lá estabelecer um Lar Nacional Judaico. Esta decisão de âmbito internacional é ratificada pela Liga das Nações, em 1922. Pouco durou a alegria judaica, pois dois meses mais tarde, a Inglaterra estabeleceu na Margem Ocidental do rio Jordão o Reino Hashemita da Transjordânia. Quatro-quintos da área do mandato passaram a ser território jordaniano. Com isso, a maior parte da população árabe estava concentrada na negião da Judeia e da Samaria, no que hoje se chama Cisjordânia. A imigração judia passou, portanto, a ser restrita à menor e mais populosa área do Mandato, o que levou a uma violenta oposição árabe. Jabotinsky decidira se estabelecer em Jerusalém com sua família, tornando-se editor do jornal hebraico, Hadoar. Suas ideias entravam, cada vez mais, em choque com a corrente mais forte dentro da Organização Sionista, o sionismo trabalhista. A liderança trabalhista almejava a criação de uma sociedade socialista, de base agrícola, na então Palestina. Por esse motivo, incentivavam uma imigração seletiva, a hachshará. Além disso, Chaim Weizmann, que, à época, presidia a Organização Sionista Mundial e era conhecido por sua diplomacia, comprometera-se a manter estreita cooperação com os ingleses. Em 1920, o massacre de Tel Hai, durante o qual Trumpeldor foi
morto, deixou Jabotinsky chocado. Ele havia alertado o Va’ad Le’umi, o Conselho Nacional, que os assentamentos na Galileia Superior eram indefensáveis e que deviam retirar de lá os combatentes judeus. Avisara, também, que se uma unidade judaica fosse capturada por forças árabes, seria uma sentença de morte para os combatentes judeus. Mas nada foi feito. Em 1o de março de 1920, quando os árabes atacaram, Tel Hai caiu e seus bravos defensores foram todos mortos. Para Jabotinsky, a tragédia de Tel Hai comprovava que a existência de
de Jerusalém, chefiado por Zeev Jabotinsky e Pinchas Ruttenberg, assume a liderança. Jabotinsky ficou encarregado de organizar a defesa de Jerusalém. Em abril de 1920, quando ele compreendeu que o Governador Militar britânico de Jerusalém ignorara suas advertências de que os árabes estavam planejando executar um massacre de judeus durante a festa de Nebi Musa, ele decide preparar-se. Junto com Pinchas Ruttenberg, ele organiza cerca de 600 soldados desmobilizados, veteranos da Legião e outros
Jabotinsky, Sokolow, Warburg e Goldstein, 1900
uma força de defesa era a primeira condição para a segurança do Yishuv, e o desenvolvimento do projeto sionista em Eretz Israel. “Cabe-nos defender Eretz Israel, não confiando nos favores do soldado inglês nem na bondade do policial árabe”, foram suas palavras. A partir de janeiro de 1920, os ativistas já tinham formado comitês de defesa, adquirido algumas armas leves e recrutados e treinado voluntários. Após a queda de Tel Hai, em março de 1920, o comitê 37
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voluntários e cria a primeira unidade de defesa de Eretz Israel. Nascia a Haganá-Bet. Quando os árabes atacaram os judeus de Jerusalém, defrontaram-se com uma defesa judaica armada, liderada por Jabotinsky. Durante os ataques, seis judeus foram mortos e mais de 200 ficaram feridos.
Em 1920, em sua capacidade de membro do Executivo Sionista, Jabotinsky se torna um dos fundadores do Keren Hayesod, instituição que este ano completa seu centenário. Após vários congressos sionistas muito tumultuados, em 1923, desiludido com a Grã-Bretanha e irritado com que ele via como aquiescência sionista face à política britânica, Jabotinsky pede demissão do Executivo do Congresso Sionista Mundial.
Os ingleses acabaram prendendo 19 dos combatentes judeus. Enfurecido pela atitude britânica Jabotinsky vai ao Departamento de Polícia e declara: “Se vocês os consideram culpados, eu, também, sou... Se insistem em mantê-los presos, prendam-me, também”. Ele é preso em 7 de abril e sentenciado a 15 anos de prisão. Em 26 de abril, o Yishuv declara um dia de luto e jejum geral.
um clamor mundial tão grande, que os ingleses tiveram que libertar Jabotinsky no ano seguinte.
Durante sua permanência na prisão de Acco, ele escreve o poema “Prisioneiros de Acco”, em memória de Trumpeldor. Esse poema se tornaria o símbolo de sua campanha pela libertação nacional do Povo Judeu. A atitude britânica provocou
Em 1o de julho de 1920, o governo militar britânico foi substituído por um governo civil, a cargo de Herbert Samuel, primeiro Alto Comissário em Eretz Israel. Em um de seus primeiros atos, ele perdoa todos os envolvidos na defesa de Jerusalém.
JABOTINSKY NA 3a CONVENÇÃO DOS OFICIAIS DA Brit Trumpeldor of Betar, TEL AVIV, 1921
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Ademais, ele se opunha à política adotada pela Organização Sionista, que baseava sua legitimidade na Declaração Balfour e não nos direitos legais internacionalmente conferidos pela Conferência de San Remo. Segundo ele, faltava à Declaração Balfour reconhecimento internacional. Expressava, apenas, o compromisso do governo britânico com o estabelecimento de um Lar Nacional Judaico, na Palestina, em uma carta do Secretário do Exterior britânico ao presidente da comunidade judaica de Londres. Além de ser um assunto interno britânico, esse compromisso fora enfraquecido por promessas semelhantes feitas aos árabes. No mesmo ano, 1923, forma o movimento juvenil Betar, abreviatura de Brit Trumpeldor of Betar (Aliança Yosef Trumpeldor do Betar). O novo movimento juvenil, tendo Jabotinsky em sua direção, imbuía seus membros com um espírito militar nacionalista. E, em 1925, ele cria a União Mundial dos Revisionistas Sionistas (URZ) para fazer uma “reavaliação” da relação entre o movimento sionista e a Grã-Bretanha, poder colonial. Entre os objetivos, estava a imigração em massa – que pretendia chegar a 40 mil judeus por ano.
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Jabotinsky ainda residia em Jerusalém, em 1929, mas quando deixou Eretz Israel para fazer um tour fora do país, os ingleses que o consideravam “o inimigo”, negamlhe entrada de volta ao país. Daquele momento em diante, até sua morte em 1940, Jabotinsky viveu fora de Israel.
Os judeus na Europa Para Jabotinsky a situação dos judeus era desesperadora, na Europa, estando a um passo do abismo. Insistia que o principal objetivo sionista era construir, o mais rápido possível, um Estado Judeu na então Palestina. Sentindo que os judeus da Europa Oriental corriam grande perigo, ele convocou, em 1936, para a realização de uma “evacuação” total dos judeus para a então Palestina. Passa, então, a dedicar seus esforços para ajudar os judeus a saírem da Europa e chegarem à Palestina britânica de qualquer maneira possível, legal ou ilegal.
DR. IGNACY SCHWARZBART, LÍDER SIONISTA POLONÊS, E JABOTINSKY. BASILÉIA, 1931
ROBERT STRICKER, ZEEV JABOTINSKY, MEIR GROSSMANN, LÍDERES DO SIONISMO REVISIONISTA. DIA EM MEMÓRIA A THEODOR HERZL. VIENA, 1932
Em 1935, após o Executivo Sionista ter rejeitado seu programa político e se recusado a definir, de forma clara, o objetivo do Sionismo quanto à “criação de um Estado Judeu”, Jabotinsky renuncia a seu cargo no Movimento Sionista. Fundaria, mais tarde, a Nova Organização Sionista, que apoiava a atividade política independente, a livre imigração e a criação de um Estado Judeu. Em 1936, a liderança árabe da Palestina inicia uma guerra praticamente declarada contra os judeus, em uma luta generalizada que durou seis meses entre revoltas e guerrilhas.
Jabotinsky alertou os ingleses de que ele recebera informações de que o Alto Comissariado Árabe planejava um ataque contra os judeus, mas os ingleses ignoraram os alertas. Perante a irrupção de violentos ataques os ingleses permaneceram passivos frente aos árabes.
JABOTINSKY E MEIR GROSSMAN LADEIAM O CEL. JOHN PATTERSON. 1930
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Em 1936-37, a abordagem de Jabotinsky em relação a situação era continuar com a política de contenção. No entanto, à luz da crescente violência em meados de 1937, ele dá uma ordem para romper a contenção e iniciar ações militares contra os árabes. O dia do rompimento da ABRIL 2020
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política de contenção foi intitulado “Domingo Negro”. Era o dia 14 de novembro de 1937. Os seguidores de Jabotinsky retiraram-se da Haganá, formando o Irgun Tzvaí Leumi que se tornou o braço militar de seu movimento, tendo ele como comandante.
Eretz Israel, com a seguinte comparação: “As reivindicações árabes versus as demandas judias são como as reclamações do apetite versus as reclamações da fome”. Para ele era imprescindível o emprego de tropas judaicas como parte da guarnição permanente de autodefesa.
As três entidades que ele liderava, a Nova Organização Sionista, o movimento juvenil Betar e o Irgun Tzvaí Leumi, eram os três braços operacionais do movimento de Jabotinsky. A Nova Organização Sionista servia como o braço político, mantendo contatos com os governos e outras instituições políticas; o Betar instruía a juventude da Diáspora no sentido de libertar e erguer Eretz Israel; e o Irgun Tzvaí Leumi era o braço militar que lutava contra os inimigos do Sionismo. Todas sincronizavam seus esforços para organizar a imigração ilegal, conhecida como Af Al Pi (“no entanto”, em hebraico). Essa dramática e complicada campanha de resgate envolveu mais de 30 navios que partiram dos portos da Europa levando dezenas de milhares de imigrantes ilegais para Eretz Israel.
Quando a Comissão Peel recomendou a partilha do que restava da Palestina do Mandato em dois estados, um judaico e um árabe, Jabotinsky se opôs ao plano, mas a liderança judaica relutantemente aceitou a proposta, justificando que um estado truncado era melhor do que nenhum estado. Os árabes, no entanto, rejeitaram-na.
rio Jordão, e uma imigração judia ininterrupta, pois era essencial o rápido alcance de uma maioria judaica dentro do Estado. Dono de grande poder oratório, ele declarava que “a demanda por uma maioria judaica não é o nosso máximo – é o nosso mínimo”, e enfatizava que logo haveria 3 a 4 milhões de judeus europeus em busca de um porto seguro em
A catástrofe Durante a década de 1930, Jabotinsky incansavelmente alertava os judeus da Europa. “Saiam de qualquer forma possível, porque a catástrofe se aproxima! ”. Em sua análise do Terceiro Reich ele concluíra que “o antissemitismo era parte integrante do nazismo”.
A Comissão Peel Como resultado dos conflitos entre árabes e judeus na então Palestina, em 1937 é criada uma Comissão Real Britânica de investigação, a Comissão Peel. Testemunhando, nesse mesmo ano, diante da Comissão Real Britânica na Palestina, Jabotinsky fez comovente declaração. Disse que a origem do sofrimento judeu não era somente o antissemitismo, mas a Diáspora, a dispersão judaica pelo mundo. Os judeus eram apátridas. Ele defendia a urgente criação de um Estado Judeu em ambas as margens do
Comissão Peel e Partilha - 11 de novembro de 1936, em Jerusalém.No jardim do Hotel King David, logo após sua primeira reunião
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JABOTINSKY COM OS LÍDERES DO BETAR. VARSÓVIA, POLÔNIA, 1928-29
Apesar de jamais ter imaginado que este antissemitismo levaria à destruição física dos judeus, entendera que “se Hitler não fosse contido, a catástrofe que se abateria contra eles seria completamente diferente, tanto em método quanto em objetivo, de tudo o que haviam enfrentado no passado”. Via que Hitler representava um perigo não somente para os judeus, mas para o mundo todo. E alertara: “Se os judeus do mundo e a comunidade internacional permanecerem em silêncio, Hitler destituirá os judeus de suas posses, colocá-los-á em quarentena, e os expulsará”.
Em 1937-38 entabula negociações com as autoridades polonesas, também dispostas a dar apoio financeiro, político e logístico para que Jabotinsky planejasse a evacuação dos judeus poloneses. Para piorar a situação dos judeus europeus, em 1939, com medo de perder o apoio árabe, os ingleses tinham decidido abandonar seu
endosso à ideia de uma pátria judaica e publicaram o Livro Branco que limitava drasticamente a imigração judaica. Apesar de ter pressentido a catástrofe, o início da 2a Guerra e da invasão alemã da Polônia deixaram-no completamente arrasado, mas logo passou a se movimentar politicamente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, tentando convencê-los a formar um exército judaico que combatesse a Alemanha Nazista. Em 1940, em sua ida aos Estados Unidos para “vender” a ideia, ao visitar uma sede do Betar, perto de Nova York, teve um infarto que lhe tirou a vida. Seu testamento estipulava o desejo de ser enterrado em Eretz Israel, o que só poderia ocorrer com ordem expressa do Governo Judaico do futuro Estado Judeu. Seu último desejo e testamento foram atendidos por Levi Eshkol, terceiro Primeiro Ministro do Estado de Israel soberano. Em 1964, os restos de Jabotinsky e de sua esposa foram reenterrados no Monte Herzl, em Jerusalém. Zeev Jabotinsky foi inscrito, para sempre, nas páginas da História do Povo Judeu como grande líder político, filósofo, um homem que lutou, sem trégua, para o retorno do Povo Judeu a Eretz Israel, sua terra, e para a criação de um Estado Judeu.
Fiel a suas convicções, apesar da desaprovação das lideranças sionistas que não queriam contatos com governos antissemitas, Jabotinsky negociou para que alguns facilitassem a saída dos judeus para a então Palestina. E em 1934-35, já ciente de que o governo alemão estava inclinado a permitir a transferência dos judeus alemães, retomou o contato com o governo nazista interrompido após a morte do presidente da Agência Judaica, Haim Arlozorov, assassinado em junho de 1933.
BIBLIOGRAFIA
Jabotinsky, Vladimir, “Vladimir Jabotinsky’s Story of My Life”, eBook Kindle Kupfert Heller, Daniel, Jabotinsky’s Children – Polish Jews and the Rise of Right– Wing Zionism, eBook Kindle Katz, Shmuel, Lone Wolf, A Biography of Vladimir (Ze’ev) Jabotinsky, eBook Kindle 41
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100 anos do Keren Hayesod– United Israel Appeal Por Abrão Lowenthal
“Os méritos e sucessos do Keren Hayesod estão gravados no solo da Terra de Israel e seu valor guardado na alma da nação”. David Ben-Gurion, futuro Primeiro Ministro de Israel, 1930
o
Keren Hayesod – United Israel Appeal foi constituído em Londres em 1920, para servir como o braço arrecadador do Povo Judeu e do Movimento Sionista. Desde sua fundação, a instituição tem-se dedicado e atuado para o crescimento e progresso do Estado de Israel.
A entidade, que desde sua fundação tem estado à frente do crescimento e progresso do Estado de Israel, tornouse, em 1956, uma Instituição Nacional, garantindo sua posição única na conexão entre Israel e o mundo judeu e os amigos de Israel.
Desde seu primeiro apelo convocando os judeus de todo o mundo a ajudar na construção de um Lar Nacional Judaico, o Keren Hayesod fez história. No início, cuidou da Aliá, estabelecendo mais de 900 assentamentos urbanos e rurais e desenvolvendo a estrutura econômica, industrial, educacional e cultural para o Estado em crescimento. Apoiou também o estabelecimento de organizações nacionais e públicas, como, por exemplo, a companhia aérea nacional El Al, a Companhia Israelense de Energia, a Orquestra Filarmônica Nacional, a Universidade Hebraica, dentre outras. Em nossos dias, o Keren Hayesod faz-se presente pelo mundo em mais de 40 países, cobrindo 9 idiomas, sempre com a finalidade de estreitar os laços culturais e sociais com o Israel.
Entre 1917 e 1918, acontecimentos históricos mundiais lançam uma pequena esperança sobre o retorno dos judeus à Terra de Israel.
A fundação
Em 1917, por meio da Declaração Balfour, o governo britânico se comprometera com o estabelecimento de um Lar Nacional Judaico, na então Palestina, em uma carta do Secretário do Exterior britânico ao presidente da comunidade judaica de Londres. No ano seguinte, termina a 1ª Guerra Mundial, cai o império Otomano e a Conferência Internacional de San Remo, em 1919, concede à Inglaterra, em forma de mandato, a administração da então Palestina sobre as duas margens do Jordão, com 42
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CRIAÇÃO DO KEREN HAYESOD. Londres, 1920
a obrigação de lá estabelecer um Lar Nacional Judaico. Esta decisão de âmbito internacional é ratificada pela Liga das Nações, em 1922.
Decidiu-se que a organização recém-fundada apelaria a sionistas e não-sionistas pedindo contribuições, em sistema sem fins lucrativos, para financiar a imigração e a colonização do tão sonhado Lar Nacional Judaico e estimular empreendimentos comerciais em parceria com o capital privado.
As ideias antigas de retorno a Sion, sonho sionista, tornaram-se um objetivo politicamente viável. No entanto, eram necessários amplos recursos financeiros para viabilizar a volta do Povo Judeu à sua terra, sendo a solução a criação de uma organização mundial arrecadadora com a finalidade de estabelecer um Lar Nacional Judaico em Eretz Israel. Assim, em 1920, o Keren Hayesod foi fundado em Londres para servir como braço arrecadador do Povo Judeu e do Movimento Sionista. Entre seus fundadores estavam Chaim Weizmann, Aharon Barth e Isaac Naidich. Os primeiros diretores foram Berthold
Feiwe, na capacidade de diretorgerente, George Halpern, Vladimir Jabotinsky (também diretor de propaganda), Shelomoh Kaplansky, Shemaryahu Levin, Isaac Naidich, Lorde Israel M. Sieff e Hillel Zlatapolsky. 43
Na ocasião, Chaim Weizmann, eleito presidente da organização e que viria a ser o primeiro Presidente de Israel, declarou: “A chave para Eretz Israel está agora em nossas mãos e devemo-nos esforçar para ter a certeza de que, através desses portões, que se abrirão amplamente, o maior número possível de judeus entrem, fixem-se e integrem o país. Devemos fornecer a nós mesmos os meios para este maravilhoso trabalho e devemos começar ainda hoje.” ABRIL 2020
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ALBERT EINSTEIN E LÍDERES DA ORGANIZAÇÃO SIONISTA MUNDIAL. 1921
O início das atividades Grupos de representantes viajaram para o exterior para estabelecer os escritórios do Keren Hayesod em vários países e conseguir o apoio das comunidades judaicas. Em um curto período, arrecadaram-se substanciais fundos de organizações mundiais, na Europa Ocidental e Central. Alguns dos mais famosos nomes do movimento sionista participaram intensamente nessa movimentação, dentre os quais Chaim Weizmann e Zeev (Vladimir) Jabotinsky.
Em 1926, foi decidido transferir o escritório central de Londres para Jerusalém. Com o estabelecimento da Agência Judaica, em 1929, o KH se tornou o seu braço arrecadador enquanto continuava com suas atividades. Os efeitos da depressão econômica mundial de 1929 afetaram as
campanhas de arrecadação do Keren Hayesod. Quando finalmente ocorreu a tão esperada recuperação econômica, veio acompanhada por uma virada dramática de eventos na Alemanha e uma necessidade cada vez maior de fundos. Após Adolf Hitler ser nomeado chanceler, em 1933, a vida dos judeus da Alemanha tornou-se cada vez mais difícil. Eles corriam grande perigo e os sionistas consideravam imprescindível agir para ajudá-los a deixar a Alemanha. O Keren Hayesod, que desde 1922 tinha um escritório na Alemanha, teve um papel central em desenvolver planos para tirar os judeus do Terceiro Reich, levá-los para a Terra de Israel e dar-lhes condições de se estabelecerem. Um desses projetos foi a criação e desenvolvimento dos subúrbios da baía de Haifa. Como parte deste esforço, a Companhia de Assentamento Rural e dos Subúrbios (Rasco) foi fundada em 1934. Apesar da urgência em assentar os judeus alemães, a organização continuou a apoiar o estabelecimento, em Eretz Israel, de várias instituições culturais, como a orquestra que hoje é conhecida como a Orquestra Filarmônica de Israel (1936), mundialmente reconhecida.
Em 1921, Chaim Weizmann e Albert Einstein viajaram aos Estados Unidos para arrecadar fundos especiais para a construção da Universidade Hebraica de Jerusalém, com o suporte do Keren Hayesod. Quatro anos depois, a universidade se tornava realidade e, em sua abertura, Einstein fez um discurso que entraria para a História.
No fim da década de 1930, os judeus americanos se separaram do KH para criar sua própria organização de arrecadação, o United Jewish Appeal (Campanha Judaica Unificada). Desde então, o KH vem arrecadando fundos em todos os países pelo mundo, à exceção dos Estados Unidos.
No mesmo ano, o Keren Hayesod ajudou a fundar o Banco Hapoalim e começou a construir projetos físicos na Terra de Israel, iniciando com Beit Ha’Am, em Ramat Yashay, na Baixa Galileia, em 1927. 44
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foi marcada por imensas ondas imigratórias. Além dos refugiados da Europa, vieram judeus do Norte da África, Iêmen, Curdistão, Iraque e Síria. Em apenas alguns anos, a população de Israel triplicou, criando uma alta demanda por empregos, habitações, escolas, hospitais, serviços culturais, educacionais e sociais, em geral.
2ª Guerra Mundial e pós-guerra Durante a 2ª Guerra Mundial o KH lançou campanhas de emergência para ajudar judeus europeus e cooperar com as forças aliadas contra a Alemanha nazista. No final da guerra, o Povo Judeu estava de luto, com mais de 6 milhões de seus irmãos assassinados pelos nazistas. Muitos líderes do KH haviam perecido no Holocausto. Mas a hora não pedia lamentos – era imprescindível ajudar os sobreviventes. A organização viu-se obrigada a se recuperar rapidamente face às prementes necessidades daqueles anos. Atuou, entre outros, para providenciar o transporte de milhares de sobreviventes para a então Palestina sob mandato britânico, em flagrante desafio às restrições impostas à imigração judaica pelos britânicos.
O KH redobrou seus esforços na construção do país, ajudando a estabelecer dezenas de assentamentos urbanos, como Sderot, em 1951, e Eilat, em 1956, assim como kibutzim e moshavim.
Na Palestina britânica os judeus lutavam pela criação de um Estado Judaico soberano. Os intensos combates atingiram o KH. Em março de 1948, um carro bomba foi detonado no pátio da Agência Judaica, em Jerusalém, matando 12 pessoas, entre as quais o diretor do Keren Hayesod, Leib Yaffe.
O Keren Hayesod e o Estado de Israel Em 14 de maio de 1948, no Museu de Arte de Tel Aviv, David BenGurion declarava a Independência do Estado de Israel. Era a realização de um sonho há muito acalentado. Mas, ao mesmo tempo em que festejava, a população também se preparava para uma guerra que já se anunciava desde que se iniciara a contagem regressiva para a retirada dos britânicos, com a Partilha da
Ben Gurion visita o condutor nacional de águas
Palestina decidida pelas Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947. A Guerra da Independência durou quase um ano e meio, encerrando-se em meados de 1949 com armistícios entre Israel e os demais países envolvidos. A atuação do KH tornava-se imprescindível para a nova nação. A primeira década inteira após o nascimento do Estado de Israel 45
A instituição forneceu consideráveis fundos para essas comunidades, organizando novas campanhas de arrecadação pelo mundo. E, em 1955, o KH voltou a se estabelecer na Alemanha. Em reconhecimento ao papel proeminente da organização para o desenvolvimento do país, em janeiro de 1956, o Knesset, Parlamento de Israel, aprovou uma lei – a Lei do ABRIL 2020
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Sobre a campanha, Pinchas Sapir, lendário Ministro das Finanças, escreveu em 1968: “Um capítulo especial, mesmo em sua extraordinária história, foi escrito pelo Keren Hayesod na Guerra dos Seis Dias. Nesse período viu-se a criação de uma campanha de emergência, com dimensões sem precedente. A história dessa campanha ainda não foi escrita, mas a memória desses dias, em que tive o privilégio de participar, ficará para sempre. É melhor que o texto dessa história seja escrito por poetas do que por historiadores.”
Keren Hayesod – reconhecendo seu status único como o braço oficial de arrecadação do Estado de Israel pelo mundo (à exceção dos Estados Unidos). Na primeira metade da década de 1960, Israel passou por uma profunda recessão econômica. O KH buscou aliviar as crescentes necessidades da população, enquanto continuava a criar novos centros comunitários. Lançou, também, uma campanha emergencial para arrecadar fundos para a imigração de judeus do Marrocos.
Na década de 1970, o KH focou seu trabalho em duas tarefas de importância nacional. A primeira envolvia a onda maciça de imigração para Israel. Na década anterior, a difícil situação dos judeus soviéticos tornara-se prioridade para os judeus do mundo todo, que se movimentaram de todas as formas para conseguir fazê-los sair da União Soviética. As portas da URSS finalmente se abriram, e a metade
dos cerca de 185 mil imigrantes que chegaram a Israel, entre 1971 e 1974, eram judeus soviéticos. No entanto, essa imigração maciça criou uma ampla gama de necessidades e o KH se movimentou para ajudar a atender este importante desafio nacional. A Guerra de Yom Kipur, em 1973, fez o Keren Hayesod lançar uma nova campanha emergencial arrecadatória recorde, ultrapassando o montante de 1967. A segunda tarefa principal foi o Projeto Renewal (Renovação), um programa de reabilitação de bairros no qual o KH teve um papel fundamental. Com início em 1978, em parceria com comunidades mundiais, a instituição construiu cidades em Israel, criando assim relações diretas com as mesmas – algumas das quais ainda existem. Nessa época, o KH passou por mudanças organizacionais, entre as quais se incluem a criação da International Women’s Division e Young Leadership. A Divisão Feminina (International Women’s Division) foi responsável por
As décadas de 1960, 1970 e 1980 Na Guerra dos Seis Dias, em 1967, foi lançada uma campanha emergencial cuja meta era arrecadar cifras recordes, o que foi conseguido com extremo sucesso, aumentando 12 vezes a receita anual do KH.
Celebrações do jubileu do Keren Hayesod em 1970
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inúmeros projetos de alta relevância, permanentemente mantidos, além de sempre criar novos projetos sociais visando a mitigar as necessidade das periferias, além de projetos específicos para crianças e adolescentes. A Divisão Feminina criada replicou-se em todas as unidades do KH ao redor do mundo, atuando intensa e significativamente até os dias de hoje. No início da década de 1980, Israel enfrentou a Primeira Guerra do Líbano. A profunda crise econômica que se abateu sobre Israel, em 1983 e 1984, levou o KH a criar programas para aliviar a angústia social. Apoiou, também, a Operação Moshé, em 1984, que conseguiu trazer 5 mil judeus etíopes da Etiópia para Israel, em uma dramática viagem a pé pelo Sudão, onde, depois de percorrerem 600km, embarcaram em um avião israelense. A organização imediatamente se mobilizou para arrecadar fundos para suprir as prementes necessidades dos novos imigrantes, diferentes de tudo com que o Ministério de Absorção de Israel já lidara. Na época, Israel encontravase em uma situação interna difícil, pois eclodira a Primeira Intifada (1987-1993).
A caminho de Israel, imigrantes do Iêmen, na Operação Tapete Mágico, 1949-1950
livremente para Israel. Logo após, mais de um milhão de judeus que, por anos, haviam lutado pelo direito de emigrar para a terra de seus ancestrais, deixaram o país para Israel. Essa imigração mudou drasticamente a história do KH e de Israel.
O KH tem apoiado o povo de Israel por 100 anos. Nossa história é baseada em Israel e no Povo Judeu
Ademais, em 1991, mais de 14 mil judeus etíopes foram trazidos via aérea na Operação Shlomó. Cerca de 1 milhão de judeus imigraram para Israel durante essa década, sendo 900 mil somente da União Soviética. O grande número de novos imigrantes criou, mais uma vez, uma imensa demanda por serviços de imigração, habitação e empregos. Foi então que o KH lançou uma campanha especial, a Exodus, que foi muito bem sucedida entre 1990 e 1992. O processo Oslo, em 1993, permitiu ao KH organizar eventos que não eram possíveis, anteriormente, como a realização de um tour pela Jordânia, em 1994, para participantes de sua tradicional Conferência Mundial Anual, em que se incluía um encontro com o Rei Hussein. No ano seguinte, em 1995, o Keren Hayesod patrocinou uma missão ao Marrocos. O ano de 1993 terminaria tragicamente com o assassinato do Primeiro Ministro Yitzhak Rabin, que causou um choque generalizado.
A década de 1990 Essa década dramática começou com dois eventos históricos: o colapso final da União Soviética, por um lado, e a Guerra do Golfo, por outro. Ninguém podia prever que a poderosa URSS chegaria ao fim. Era o ano de 1991, no governo de Mikhail Gorbatchev. Com o fim do regime comunista, tornou-se possível aos judeus emigrarem 47
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Na ocasião do 50º aniversário de Israel, em 1998, o KH estabeleceu o Prêmio Yakir para reconhecer os melhores líderes e contribuintes da organização. Em 1991, Yitzhak Shamir, então Primeiro Ministro, havia declarado ao se referir às atuações e realizações do KH: “O Keren Hayesod e todos que o lideraram e apoiaram foram parte desta incrível saga moderna do Povo Judeu, desde o início, e você é parte de nossa satisfação atual e orgulho”. Nesse mesmo ano, de 1998, os participantes da Conferência Mundial do KH visitaram os restos dos campos em Chipre onde, durante seu Mandato, os britânicos detinham os judeus que tentavam chegar à Terra de Israel “ilegalmente”, antes da independência do país.
80º e 90º Aniversários Em 2000, o Keren Hayesod celebrou o seu 80º aniversário com um evento magnífico no Monte Scopus, em Jerusalém. Para marcar a ocasião foi criado um novo prêmio do KH, o prêmio Nadiv.
A onda de terror lançada pela Segunda Intifada, de 2000 a 2004, teve um impacto devastador na economia israelense, resultando em grande sofrimento social. O Keren Hayesod foi o parceiro principal na arrecadação de fundos da Agência Judaica para vítimas do terror.
Durante este período, o KH intensificou as suas atividades com o público não judeu, através da sua parceria com a Irmandade Internacional de Católicos e Judeus, liderada pelo Rabino Yechiel Eckstein, criando um novo grupo de ação: “Amigos de Israel”.
A situação foi exacerbada pela crise na indústria do turismo e pela implosão da bolha da alta tecnologia. Em resposta, o Keren Hayesod desenvolveu projetos sociais de longo alcance, aos quais deu alta prioridade, sem, no entanto, parar de investir nas áreas tradicionais de atividade, absorção de imigrantes e educação judaica sionista na Diáspora.
Em 2010, quando o Keren Hayesod fez 90 anos, estipulou como principais metas atender as necessidades da periferia social e geográfica de Israel, não medindo esforços para cobrir a disparidade social no país. Isso se tornou seu principal foco de trabalho.
Por exemplo, o Keren Hayesod, em parceria com a Agência Judaica, a Cisco Systems Inc. e a Academia Appleseeds, criou o programa Net@, que oferece treinamento de alta tecnologia para jovens da periferia social e geográfica de Israel. Esses jovens, alunos da 5ª à 12ª séries, são treinados durante quatro anos e saem como técnicos em redes de computação. 48
Na ocasião, o grande líder já falecido, o Presidente Shimon Peres, declarou: “É difícil crer que qualquer outra organização similar, emergida de outros povos do mundo, fosse tão criativa e envolvida em uma missão tão única de renascimento nacional. Por isso, o Keren Hayesod teve um papel central na reunião de nosso povo, e parte vital em mobilizar recursos para criar algo do nada.”
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A década de 2010 A segunda década do século 21 teve início com a reafirmação do Acordo Histórico de Cooperação entre o Governo de Israel e o Keren Hayesod-United Israel Appeal para apoiar os objetivos estratégicos do país: fortalecer a sociedade israelense, particularmente em suas áreas mais carentes, sua periferia social e geográfica; tornar o processo de Aliá e absorção mais fácil; e apoiar a educação sionista na diáspora. Em 2011, o Keren Hayesod tornouse uma empresa de benefício público (PBC). Nos últimos 10 anos, os doadores do KH se mobilizaram repetidamente fornecendo assistência de emergência para crises humanitárias, como o incêndio devastador do Carmel (2011), e apoio durante as operações “Pilar
da Defesa” (2012) e “Margem Protetora” (2014), em resposta a ataques intensos feitos pelo Hamas na região Sul do país. O KH também prestou ajuda à comunidade judaica grega em face de sua crise econômica (2012). Prestou ainda ajuda contínua às comunidades da fronteira com Gaza, que sofriam perdas humanas e materiais oriundas de ataques terroristas. Infelizmente, essa década testemunhou o ressurgimento do vicioso antissemitismo mundial. Ocorreram ataques terroristas contra judeus e comunidades judaicas, em Israel e na Diáspora, intensificando-se o boicote econômico e intelectual contra o Estado Judeu. Somaram-se as tentativas de enfraquecê-lo – de todas as formas. Na Diáspora, o clima hostil antijudaico e antissionista gerou um crescimento dramático do movimento de Aliá iniciado em 2015, particularmente da França, Ucrânia e Rússia, e retomou a Aliá da Etiópia. Pela primeira vez, em 2 mil anos, o número de judeus em Eretz Israel ultrapassou o número de judeus da Diáspora. 49
Celebrando seu Centenário Em julho de 2020, o Keren Hayesod celebrará 100 anos desde sua fundação. A instituição continua viva, ágil, sempre presente as necessidades de Israel e do Povo Judeu. O Keren Hayesod continua e continuará pulsando no coração do Povo Judeu. A organização é e continuará a ser líder mundial na colaboração com o Povo de Israel. O Keren Hayesod continuará a ser a ponte que assegura uma conexão inquebrantável entre os judeus da diáspora e os judeus de Israel, tornando possível que todos sejam uma só força coletiva em prol de um Israel forte no coração do Povo Judeu, um país seguro que possa garantir uma casa para todos os judeus e um país de sucesso do qual todos possam se orgulhar. Abrão Lowenthal é advogado, expresidente da B’nai-B’rith do Brasil é atual Presidente do Fundo Comunitário de São Paulo e Chairman do The Budget & Finance Committee do Keren Hayesod.
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DIA INTERNACIONAL DO HOLOCAUSTO O tema do evento da Fundação Mundial Fórum do Holocausto, no Yad Vashem, o Memorial do Holocausto, em Jerusalém, foi “Relembrando o Holocausto, combatendo o Antissemitismo”. Participaram delegações de 49 países, incluindo 45 chefes de Estado e membros da realeza europeia, Recordando o que não se pode esquecer, jamais!
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ste ano, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, criado pela Organização das Nações Unidas para homenagear os seis milhões de judeus vítimas do Holocausto, foi particularmente significativo. Há 75 anos era libertado o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau e seus horrores, revelados. Hoje, no entanto, o mundo parece tê-los esquecido, quando atos antissemitas se tornam cada vez mais frequentes em vários países da Europa e nos Estados Unidos.
torno da data ao redor do mundo duas foram centrais, e muito impactantes. Uma, em 23 de janeiro, em Jerusalém, organizada pela Fundação Mundial Fórum do Holocausto, criada pelo filantropo e ativista judeu Moshe Kantor, e em parceria com a Presidência de Israel, do Yad Vashem e do Ministério das Relações Exteriores de Israel – o 5º Fórum Mundial sobre o Holocausto. E a outra, no dia 27 do mesmo mês, dia exato da libertação, em Auschwitz-Birkenau, organizada pelo Congresso Judaico Mundial (WJC).
O evento em Jerusalém
O Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, ou International Holocaust Remembrance Day, entrou no calendário mundial em novembro de 2005, quando a Assembleia-Geral da ONU aprovou uma resolução designando o dia 27 de janeiro, data em que, em 1945, as tropas soviéticas entraram no famigerado campo de extermínio, localizado na Polônia, como uma data a ser celebrada anualmente.
O tema do evento da Fundação Mundial Fórum do Holocausto, no Yad Vashem, o Memorial do Holocausto, em Jerusalém, foi “Relembrando o Holocausto, combatendo o Antissemitismo”. Participaram delegações de 49 países, incluindo 45 chefes de Estado e membros da realeza europeia Entre os presentes, o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, os presidentes da Rússia, Vladimir Putin; da França, Emmanuel Macron;
Este ano, entre as inúmeras cerimônias que foram realizadas em 50
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da Alemanha, Frank-Walter Steinmeir; da Geórgia, Salome Zourabichvili; do Conselho Europeu e ex-primeiro-ministro da Bélgica, Charles Michel; os reis da Holanda, Willem-Alexander; e Philippe, da Bélgica; Filipe VI, da Espanha; o príncipe Charles, da Inglaterra, além de representantes da Austrália, Canadá, Itália, Ucrânia e Argentina. “Esta é uma reunião histórica não apenas para Israel e o Povo Judeu, mas para toda a humanidade”, afirmou o presidente de Israel, Reuven Rivlin. Autoridades israelenses afirmaram que o evento foi o maior encontro diplomático e político desde a criação do Estado de Israel, em 1948. O objetivo do encontro era não apenas marcar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto e os 75 anos de libertação do campo de extermínio
de Auschwitz-Birkenau, mas também debater o aumento do antissemitismo na Europa e nos Estados Unidos. A organização americana Liga Anti-Difamação (ADL) concluiu, em novembro passado, que as atitudes antissemitas aumentaram em todo o mundo – especialmente na Europa Central e Oriental. A pesquisa apontou que
um em cada quatro europeus tem atitudes fortemente negativas em relação aos judeus. Outras entidades de pesquisa revelavam que o número de jovens com conhecimento do que ocorreu durante o Holocausto é pequeno – um fato muito alarmante após meros 75 anos. A presença de tantas autoridades foi um sinal inegável da determinação dos líderes presentes de lutar contra o aumento do preconceito contra os judeus não apenas na Europa, mas, também, nos outros continentes, meras sete décadas após o término da 2ª Guerra Mundial. Ao dar as boas-vindas às autoridades, no Yad Vashem, o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu enfatizou o fato de líderes mundiais virem a Jerusalém para marcar, com os israelenses, os 75 anos da libertação de Auschwitz.
Reuven Rivlin
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Um dos discursos mais emocionantes foi proferido pelo presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, um verdadeiro “meaculpa”. Steinmeier falou em inglês, como um gesto de respeito às vítimas, para “não falar a língua dos criminosos neste local”.
“É importante que eles se lembrem de onde nós viemos e é importante que vejam aonde chegamos”, ressaltou. Falou, também, da gratidão de Israel aos Aliados que derrotaram Hitler, mas enfatizou que quando o Povo Judeu enfrentava a aniquilação, a maior parte do mundo virou-lhe as costas. “Auschwitz é o último símbolo da fraqueza judaica. Hoje, temos uma voz, temos uma terra e temos um escudo – as Forças de Defesa de Israel”, afirmou, num discurso carregado de emoção. Criticou, também, o regime iraniano por ser “o mais antissemita do planeta”, em suas palavras. “Estou preocupado que ainda não tenhamos encontrado uma posição unificada e resoluta contra o regime mais antissemita do planeta; um regime que busca abertamente desenvolver armas nucleares e aniquilar o Estado judeu”, disse Netanyahu. O vice-presidente dos EUA, Mike Pence, endossou as observações do primeiro-ministro israelense, sugerindo que o mundo “deve permanecer firme contra o Irã”. “Devemos estar preparados para enfrentar e expor a onda vil de antissemitismo que está alimentando o ódio e a violência em todo o mundo.... Dentro desse
Binyamin Netanyahu
mesmo espírito, também devemos permanecer firmes contra o principal promotor do antissemitismo, o único governo do mundo que nega o Holocausto por uma questão de política estatal e ameaça varrer Israel do mapa.... O mundo deve permanecer firme contra a República Islâmica do Irã”, destacou.
Começando com a bênção de Shehecheianu, em hebraico, agradecendo a D’us que nos permitiu chegar com vida para testemunhar aquele momento, o presidente afirmou que a memória dos crimes alemães no Holocausto jamais terá fim e que o antissemitismo e o veneno do nacionalismo devem ser combatidos hoje e sempre. Ele ressaltou a responsabilidade alemã pela morte de milhões de judeus pelos nazistas, dizendo que “os assassinos, os vigilantes, os ajudantes dos ajudantes, os simpatizantes: eles eram alemães.... Por isso a lembrança jamais deverá ter fim (…) Eu gostaria de poder dizer que os alemães aprenderam para sempre com a História, mas isso não é possível diante dos casos recentes de ódio contra judeus e dos ataques a escolas judaicas e sinagogas...”. Ele se referia a uma tentativa frustrada de invasão, por um homem armado, em uma pequena sinagoga na cidade de Halle, ocorrida em outubro de 2019. Continuou dizendo “Não são as mesmas palavras, não são os mesmos criminosos. Mas é o mesmo mal.... E a resposta permanece a mesma: Nunca Mais! A terrível guerra que custou mais de 50 milhões de vidas começou em meu país. Setenta e cinco anos após a liberação de Auschwitz, eu estou aqui como presidente da Alemanha, cheio de culpa (...) Os espíritos do mal estão emergindo em nova forma, apresentando-se em pensamentos
mike pence
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antissemitas, racistas e autoritários, como uma resposta para o futuro. Eu gostaria de afirmar que, nós, alemães, aprendemos com a História de uma vez por todas, mas não posso dizer isso quando o ódio se está espalhando (...). Esta Alemanha viverá em paz consigo mesma apenas se assumir sua responsabilidade histórica. Nós combatemos o antissemitismo. Nós resistimos ao veneno que é o nacionalismo. Nós protegemos a vida judaica. Nós estamos com Israel. Aqui, no Yad Vashem, eu renovo esta promessa diante do mundo”. Em sua mensagem, o presidente Putin também reafirmou o compromisso da Rússia no combate ao antissemitismo ao dizer: “Sabemos como o antissemitismo acaba: ele acaba em Auschwitz. Mais de um milhão de pessoas, em sua maioria judeus, foram assassinados no campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Seis milhões de judeus foram mortos no Holocausto. Este foi um capítulo terrível na história da humanidade.... Nós não devemos esquecer que estes crimes (nazistas) tiveram cúmplices que eram, com frequência, mais cruéis que seus mestres. As fábricas da morte e os campos de extermínio não eram usados unicamente pelos nazistas, mas também por seus cúmplices na Europa.”
vladimir putin
Clamando por amizade e não ódio, disse: “Que símbolo poderia ser maior ou melhor do que estarmos todos reunidos aqui, hoje, unidos. É fundamental que a Europa permaneça unida”. Frank-Walter Steinmeier
Disse ainda “Todos nós devemos assumir a responsabilidade de garantir que as terríveis tragédias do passado nunca mais se repitam. Nós devemos garantir que as futuras gerações lembrem dos horrores do Holocausto. Devemos estar vigilantes para perceber quando os primeiros brotos do ódio, do chauvinismo, da xenofobia e do antissemitismo começarem a mostrar sua feia face”. O presidente francês, Emmanuel Macron, fez um apelo para a união entre as nações, pedindo que deixem de lado controvérsias históricas.
O príncipe Charles, herdeiro do trono da Grã-Bretanha, afirmou que as lições do Holocausto são importantes nos dias de hoje. “Ódio e a intolerância ainda vivem no coração humano, ainda contam novas mentiras, ainda adotam novos disfarces e procuram novas vítimas (...). Violência e atos indescritíveis de crueldade ainda são perpetrados ao redor do mundo por razões religiosas, de raça ou crenças”. Falou ainda de sua avó, a princesa Alice de Battenberg, que escondeu e salvou uma família judia, na Atenas ocupada pelos nazistas, na década de 1930, e que, por sua vontade expressa, está enterrada no Monte das Oliveiras, em Jerusalém. Uma árvore foi plantada em seu nome na ala
“Eu gostaria de afirmar que, nós, alemães, aprendemos com a História de uma vez por todas, mas não posso dizer isso quando o ódio se está espalhando (...).” Frank-Walter Steinmeier, Presidente da Alemanha
Emmanuel Macron
príncipe charles
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Cerimônia em Auschwitz No dia 27 de janeiro foi realizada no local do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau a cerimônia organizada pelo World Jewish Congress – Congresso Judaico Mundial, para marcar os 75 anos da libertação do campo. A cerimônia foi realizada numa tenda aquecida, especialmente construída, que se estendia acima dos trilhos dos trens que, naquela época infame, transportaram nossos irmãos para sua morte.
Rabino Israel Meir Lau
dos Justos Entre as Nações, no Yad Vashem. “Este é um fato que muito orgulha a mim e à minha família”. O Rabino Israel Meir Lau, de 82 anos, discursou como representante dos sobreviventes do Holocausto. Nascido na Polônia é descendente de uma antiga dinastia rabínica, atualmente Rabino Chefe de Tel Aviv e presidente do Conselho do Yad Vashem, serviu anteriormente como Rabino-Chefe de Israel. Rabino Lau foi enviado juntamente com seu irmão para o campo de concentração de Buchenwald ainda criança – aos sete anos não tinha nome, apenas um número. Foi libertado aos oito anos pelas forças norte-americanas. Respeitado em Israel e na Diáspora, é considerado a voz moral de sua geração. “Vim aqui hoje especialmente para lhes dizer que eu não posso perdoar, porque não tenho autorização”. Pois, somente os 6 milhões de mortos podem perdoar. O Rabino Lau continuou dizendo que uma das últimas lembranças que tem de seus pais, antes de serem separados, foi o pedido que lhe fizeram: continuar a corrente judaica, assim a corrente judaica será inquebrantável, para sempre. “Eu não posso nunca esquecer”, afirmou emocionado.
Quando o campo foi libertado pelos soldados soviéticos, em 27 de janeiro de 1945, eles encontraram 7 mil prisioneiros, sombras humanas, no campo onde as SS alemãs mataram sistematicamente no mínimo 960 mil judeus. Entre as outras vítimas encontravam-se cerca de 74 mil poloneses, 21 mil romanos, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticas e uns 10 mil, por baixo, de outras nacionalidades. Num discurso de grande carga emocional, o Presidente do WJC, Ronald Lauder, afirmou: “Há exatos 75 anos, hoje, quando as tropas soviéticas adentraram por estes portões, seus soldados não tinham ideia do que os esperava. E desde aquele dia, o mundo inteiro se esforça para entender aquilo com que eles se depararam”... Presentes no histórico evento havia 200 judeus que sobreviveram a Auschwitz-Birkenau e a outros campos, bem como familiares enlutados das vítimas daquele genocídio. A cerimônia contou com a presença de dezenas de líderes e representantes de comunidades judaicas de todo o mundo e dignitários de cerca de 50 países. Entre eles estavam os presidentes de Israel, Áustria, Alemanha, Irlanda e os primeiros-ministros da Bulgária, Croácia, França, Grécia, Hungria e República Checa, e os reis da Bélgica, Espanha e Países Baixos. O Holocausto não começou com atos brutais de violência, mas com palavras cáusticas, propaganda perniciosa, mitos, mentiras e muito ódio. Em seu discurso, Lauder enfatizou que o que levou ao Holocausto foi um antissemitismo desenfreado, aliado à indiferença do mundo. Sendo assim, e na sombra do ressurgimento das atividades anti-judaicas e anti-Israel, no mundo todo, ele conclamava os cidadãos do mundo e os líderes dos governos, em todas as partes, a protestar contra o ódio e a intolerância, exortando todos os presentes: “Não silenciem. Não sejam indiferentes. E não apenas pelo Povo Judeu, em todo o mundo. Façam-no por seus filhos. Façam-no por seus netos”.
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O Lar da Dança em Israel O Centro Suzanne Dellal, em Neve Tzedek, é atualmente a principal referência quando se trata da dança contemporânea do país, com a realização de seminários, programas de formação, festivais de dança e teatro, nacionais e internacionais.
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ndicadores internacionais de inovação tecnológica e excelência em educação e segurança listam continuamente Israel entre os principais países do mundo. Israel, no entanto, é destaque também em áreas como cultura e arte, surpreendendo muitas vezes os que visitam a região em busca de suas muitas facetas. No coração da antiga Tel Aviv, na área onde a cidade nasceu em 1909, está o bairro de Neve Tzedek. Restaurado nas últimas décadas, sedia, desde 1989, o Centro Suzanne Dellal para Dança e Teatro.
ensaios, restaurante e café, além de amplas praças onde são realizados eventos e espetáculos a céu aberto. “O Lar da Dança em Israel”. Assim é considerado o Centro Dellal, passagem obrigatória das companhias do país e do exterior, tanto de dança quanto de artes cênicas. Foi criado pela família Dellal, de Londres, em homenagem a sua filha Suzanne, em parceria com a Prefeitura de Tel Aviv-Yafo, a Fundação Tel Aviv e o Ministério de Cultura e Educação de Israel. Desde então, está sob a direção do empresário Yair Vardi, que desde o início compartilhou os objetivos da instituição com seus idealizadores: criar um espaço de referência para a dança contemporânea israelense. Dentro desta perspectiva, a agenda de eventos inclui festivais, eventos e workshops com artistas e profissionais do mundo inteiro nas áreas de dança e teatro.
Berço da dança contemporânea israelense e internacionalmente reconhecido como tal, abriga em seu complexo importantes companhias. Entre estas, a Companhia de Dança Batsheva, a Companhia Dança e Teatro Inbal e Inbal Pinto, a Companhia de Dança Avshalom Pollak, que deram ao mundo nomes consagrados como Ohad Naharin, bailarino, coreógrafo e durante 30 anos diretor do Batsheva, entre outros. O Centro possui, atualmente, quatro espaços para apresentações, estúdios para
A agenda de eventos comprova o sucesso do Centro, confirmando que as metas traçadas têm sido superadas. Em 2010 a instituição recebeu o Prêmio Israel durante a comemoração dos 62 anos 55
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de renascimento do Estado Judeu. Esta é a mais importante láurea concedida pelo governo. Na ocasião, o então ministro da Cultura Gideon Saar afirmou: “Em seus 20 anos de atividade em Neve Tzedek o Centro conseguiu elevar a arte da dança em Israel. O esforço e empenho dos profissionais que ali atuam têm formado uma nova geração de artistas e dançarinos. A excelência e a criatividade vistas nos palcos têm ampliado o círculo dos amantes da dança. O Centro abriu os portões dos palcos mundiais de dança e, sem dúvida, foi responsável por colocar a dança israelense no mapa internacional. Desde o seu estabelecimento a instituição tornou-se o lar e a âncora para todos os empreendimentos artísticos no campo da dança contemporânea em Israel, formando coreógrafos, dançarinos, produtores e diretores”. Anualmente o Centro lança vários programas inovadores que permitem a jovens artistas mostrar sua arte e levar a dança a novos públicos.
No início do século 20 era o lar de artistas e escritores, entre os quais o Prêmio Nobel de Literatura S.Y. Agnon. Nos seus primeiros anos anteriores à independência de Israel, abrigava a Escola Yechiely para Meninas e a Escola Alliance para Meninos. Em 1913, foi fundado o Seminário Lewinsky, o primeiro para formação de professores em Tel Aviv, e, em 1914, o primeiro cinema israelense. No entanto, a partir da fundação de Tel Aviv, em 1909, e, principalmente após a independência, a região foi sendo abandonada. A cidade expandiuse para o norte e para o leste. As construções foram se deteriorando. O antigo bairro, charmoso pelas suas casas, edifícios e ruas, foi sendo substituído por muros e paredes desbotadas e entulhos em quase todas as esquinas. A partir do início da década de 1980, deu-se início a um plano de revitalização da região com o objetivo de ocupar espaços
Plano de revitalização A escolha do local para o estabelecimento do Centro Suzanne Dellal – Neve Tzedek – não foi um acaso e veio de encontro ao projeto municipal de revitalização do antigo centro histórico, a poucos metros da orla mediterrânea, repleta de construções do século 19, muitas delas deterioradas. Neve Tzedek (Morada da Justiça) foi fundada em 1887, 22 anos antes da fundação de Tel Aviv por um pequeno grupo de famílias judias que desejavam viver fora do limite da cidade portuária de Yaffo, já superpovoada na época.
abandonados e recuperar o charme do passado. Em meio a esse contexto, foi idealizado o Suzanne Dellal Center. Desde então, Neve Tzedek gradativamente voltou à glória de seus primeiros dias, tornando-se um bairro sofisticado e artístico, com lojas de design de vanguarda, moda e artesanato, além de uma feira semanal de agricultores em HaTachaná, a antiga estação ferroviária de Tel Aviv restaurada há alguns anos e transformada em mais um local de lazer. Ali restaurantes badalados estão ao lado de bistrôs elegantes e, à noite, muitos dos cafés ao ar livre se transformam em bares de jazz ao vivo e lounges em meio a um cenário histórico. As ruas antigamente cheias de entulho e lixo foram totalmente recapeadas, com faixas para pedestres para caminhadas pelas ruelas, entre pequenos prédios de um ou dois andares. Andar pelas alamedas de Neve Tzedek é, atualmente, muito comum entre turistas estrangeiros e também israelenses interessados em conhecer a sua história ou simplesmente passar uma tarde agradável em um dos lugares mais charmosos da cidade. Um point onde a arte vive um constante desabrochar. Ali estão localizados, entre outros pontos importantes, além do Suzanne Dellal Center, as Casas Shimon Rockah e Sheloush e a antiga Casa dos Escritores, um edifício que recebeu intelectuais como Yosef Haim Brenner, Devorah Baron e Yossef Aharonovitch. A casa abriga atualmente o Museu Nahum Gutman, renomado artista de Tel Aviv, onde exposições permanentes e atividades interativas realçam o cenário artístico deste bairro sereno, bem como outras galerias locais e estúdios de cerâmica.
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CENTRO SUZANNE DELLAL, NEVE TZEDEK, TEL AVIV, ISRAEL
Núcleo de referência A sede central do complexo Suzanne Dellal está instalada desde os seus primeiros dias no restaurado Edifício Yerushalmi, quando se projetou a criação de um núcleo para dança como jamais existira em Israel, até então. A maioria dos edifícios estavam vazios e em péssimas condições. O Seminário Lewisnksy colapsara e a Escola para Meninas estava desativada, funcionando no prédio apenas um grupo de teatro dirigido por Oded Kotler e Miki Yerushalmi, que se reunia no segundo andar. No pátio externo havia apenas uma pequena construção na qual ensaiava a Companhia de Dança Inbal, fundada por Sara Levi-Tanai. O projeto do complexo Suzanne Dellal, assinado pelo arquiteto Elisha Rubin, tinha como objetivo transmitir a ideia de movimento e
não obstrução. Todo o piso da área ocupada foi nivelado para que as pessoas possam caminhar livremente em qualquer hora do dia, mesmo quando não há atividades no local. Para realizar suas ideias, Rubin pediu à Prefeitura de Tel Aviv autorização para eliminar a Rua Yechieli, situada entre as duas construções principais do complexo, o que lhe foi permitido. Como resultado, muros e portões foram demolidos e os dois edifícios principais foram ligados por uma praça central que funciona como pátio e faixa de pedestres. Uma faixa para caminhada liga o Centro à Avenida Tel AvivYaffo, começando neste ponto, passando pela ponte situada na Rua Aharon Chelouche em direção às Rua Amzaleg. Em seguida corta através dos pátios, passa pelo poço descoberto durante a construção, cruza a praça principal e adentra através das colunas do edifício 57
principal. A partir desse local, uma fileira de eucaliptos leva diretamente ao Parque Charles Clore e à praia. O projeto apresentado tinha como objetivo a preservação tanto quanto possível da arquitetura original dos edifícios. O Edifício Yerushalmi teve sua fachada reforçada e restaurada, as paredes internas demolidas e redesenhadas de acordo com as necessidades do futuro teatro. Outras construções também foram preservadas ou reconstruídas seguindo o projeto original. A sede da Companhia de Dança Batsheva, apesar de estar em um novo edifício, foi erguida acompanhando o estilo das demais construções dos arredores, mantendo nas cores e nos detalhes a atmosfera histórica da área. Entre os anos de 2017 e 2018 o Centro passou por uma reforma que incluiu um novo núcleo, o Studio Zehava e Jack Dellal Studio, ABRIL 2020
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assim nomeado em homenagem a dois membros da família Dellal. Localizado no terraço, no terceiro andar, o novo estúdio com 400 metros quadrados e 100 lugares, foi inaugurado por Guy Dellal e contou com apresentações da Batsheva, Escola de Dança Ironi e do Maslool, Programa Profissional de Dança do Centro Ha’itim Bikurey. O segundo andar inclui o Teatro Yerushalmi, agora reformado. Na inauguração, Guy Dellal falou que a criação do Centro Suzanne Dellal é a realização do desejo de seus pais de celebrar a vida de sua filha e enriquecer a vida da população de Tel Aviv.
Programas de sucesso Ao longo de seus 30 anos de existência, o Centro Suzanne Dellal implantou diferentes programas para o fortalecimento da dança contemporânea e das artes cênicas israelenses através de cursos para formação de profissionais, organização de eventos e espetáculos. “Shades in Dance” é um programa bienal que aproxima jovens coreógrafos e diretores artísticos profissionais para produção conjunta de um espetáculo que serve como estreia de novos talentos no cenário da dança israelense. Muitos dos grandes nomes na área de coreografia da atualidade começaram sua carreira nesse projeto, incluindo Barak Marshall, Yasmeen Godder, Inbal Pinto, Emanuel Gat, Noa Wertheim, da Companhia de Dança Vertigo, e muitos outros. Anualmente realiza, também, uma vez por ano, uma Mostra Internacional levando ao público o que há de mais inovador na dança contemporânea israelense em termos de coreografia, cenários e direção. Participam da mostra tanto companhias tradicionais
quanto grupos alternativos e emergentes. A mostra é uma forma de aumentar o intercâmbio entre profissionais e iniciantes. O Centro promove, também, anualmente, o Festival de Dança de Tel Aviv com apresentações de companhias e coreógrafos do mundo todo. Em 1999 foi realizado pela primeira vez, com o nome de Dance Europa, passando a se chamar Festival de Dança de Tel Aviv, em 2003. Estimular novos talentos é um dos objetivos permanentes da instituição. Dentro desta perspectiva, foi lançado em 1989 o “Curtain Up”, um programa para coreógrafos iniciantes, garantindo subsídios para que sejam apresentados novos trabalhos e divulgados em turnês em Tel Aviv e em várias cidades israelenses. Em todas as suas iniciativas, o Centro Suzanne Dellal conta com o apoio de diferentes ministérios. O Centro abre espaço também para trabalhos de atores, coreógrafos e 58
companhias de destaque. Nesta linha, recebeu Barak Marshall com os espetáculos Monger (2008), Rooster (2010, Wonderland Part 1 (2011); Renana Raz, em The Diplomats (2011), de Gadi Dagon; e Itzik Galili, com Man of the Hour (2016), entre outros. Passear pelas ruas e travessas de Neve Tzedek e adentrar o complexo Suzanne Dellal pode acabar se tornando uma experiência surpreendente, pois é sempre possível esbarrar por acaso com diferentes personalidades do cenário intelectual, musical, da dança e do teatro israelense. Talvez em um café ou restaurante, ou mesmo durante uma caminhada descompromissada pelo calçadão, num fim de tarde de verão, na primavera ou no meio da madrugada. Quem sabe, até assistir a um ensaio improvisado de um jovem talento em busca de seu caminho no universo da arte. Afinal, como diz o slogan, Tel Aviv é a cidade que nunca dorme.
atualidade
Sinagoga no Egito recupera seu esplendor Na cidade de Alexandria, nos dias 14 a 16 de janeiro deste ano de 2020, mais de 180 judeus de origem egípcia participaram de momentos emocionantes celebrando o Shabat na recém-restaurada Sinagoga Eliyahu Hanavi.
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escrito pelos presentes como “um Shabat muito festivo, de orações e músicas litúrgicas tradicionais muito, muito emocionantes”, o serviço foi parte das comemorações da reabertura, alguns dias antes, da sinagoga fechada desde 2012 por motivos de segurança.
A milenar presença judaica em Alexandria
“Pela primeira vez em décadas nós nos sentamos, para um serviço religioso, nos lugares que nossos pais ocupavam… Há décadas que a prece Lechá Dodi não ressoava entre estas colunas, com tantos judeus reunidos”, disse Alec Nacamuli. Nascido em Alexandria e membro do Conselho da Nebi Daniel Association, organização com sede na França, Nacamuli tem trabalhado na preservação do patrimônio judaico no Egito e foi o responsável pela comitiva que visitou o país.
Os judeus somente voltariam a se estabelecer, em grande número, no Egito, após a o país ter sido conquistado por Alexandre, o Grande, em 332 aEC. Dentre todas as cidades que Alexandre fundou, nenhuma se comparava à magnificência de Alexandria. Até o final do século 1 desta Era, a rica e educada comunidade judaica de Alexandria era uma das maiores do mundo e inúmeros de seus membros ocuparam importantes cargos no governo. Eles constituíam mais de um terço da população da cidade e o bairro judaico era tão extenso, que se acreditava que lá vivessem mais judeus do que em Jerusalém. As sinagogas, espalhadas por toda a cidade, eram em grande número.
A relação entre os judeus e o Egito é muito antiga. Foi o local do primeiro exílio dos Filhos de Israel, que lá permanecem 210 anos. Escravizados, são libertados por Moshé, provavelmente no início do século 13 aEC.
A reinauguração oficial da Eliyahu Hanavi, testemunha da outrora pujante comunidade que vivia na cidade, foi realizada em 10 de janeiro último.
A importância da comunidade judaica egípcia prevaleceu até a chamada Guerra da Diáspora, no ano de 115-117, quando os romanos lutaram
A cidade conta atualmente com apenas oito judeus, em sua maioria, senhoras idosas. 59
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atualidade
interior da Sinagoga Eliyahu Hanavi
contra a população judaica local. Roma praticamente aniquilou a comunidade de Alexandria, a mais culta e numerosa da Diáspora, destruindo suas sinagogas e tendo as propriedades judaicas sido confiscadas pelas autoridades romanas. Mas a comunidade se reergueria sob o domínio árabe. Rabi Benjamin de Tudela, encontrou 12 mil judeus vivendo no Cairo e 3 mil em Alexandria. Quando os mamelucos, em meados do século 13, tomam o poder no Egito e empreendem sérias medidas discriminatórias contra os dhimmis, cidadãos de 2ª classe, milhares de judeus deixam o país em direção de lugares mais acolhedores. O italiano Meshullam da Volterra, que visitou o Egito em 1481, relata ter encontrado apenas 800 famílias judias no Cairo e somente 61 em Alexandria.
Essa cidade volta a florescer, passando a ser a capital comercial do país. A partir do final do século 18, atraídos pelas novas oportunidades comerciais, milhares de imigrantes, entre eles muitos judeus, estabelecem-se na cidade. E no final do século seguinte, Alexandria era o mais importante centro comercial e financeiro do Egito. Para a comunidade judaica, o final do século 19 foi uma época áurea, pois o comércio internacional estava, grandemente, nas mãos de nãomuçulmanos, europeus, judeus e cristãos. A comunidade judaica egípcia que, em 1800, contava com cinco mil pessoas, salta para 25 mil em 1897. Com uma comunidade de 10 mil pessoas, Alexandria ultrapassa numericamente a do Cairo, que tinha nove mil. Em 1907 havia 60
quadruplicado o número de judeus de Alexandria. A comunidade mantinha inúmeras instituições beneficentes, um moderno hospital judaico, um orfanato e um lar de idosos, além de várias sinagogas. A mais famosa era a Sinagoga Eliyahu Hanavi. Mencionada em 1354 num relato de um viajante, é destruída pelos canhões de Napoleão e reconstruída em 1850. A partir da década de 1930, começam a aparecer no Egito manifestações abertas contra os judeus. Eram o resultado do crescente nacionalismo árabe, infectado por violento antissionismo e consequente antissemitismo. Em abril e março de 1933, milhares de egípcios foram às ruas de Alexandria, do Cairo e de outras cidades para protestar contra as políticas antissemitas nazistas. Mas a situação
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dos judeus piora em 1940, com a ocorrência de violentos ataques. Nos primeiros anos da 2ª Guerra Mundial a comunidade judaica do Egito observava, temerosa, a proximidade do exército alemão de Rommel e a simpatia do governo egípcio pela Alemanha nazista. Em julho de 1942, quando, em seu avanço sobre o Egito, Rommel se aproxima de Alexandria, milhares de judeus fogem da cidade. Porém o avanço nazista é detido pelas forças britânicas na batalha de ElAlamein. Em novembro, os exércitos anglo-americanos desembarcam no Magrebe e, em maio de 1943, derrotados, os alemães abandonam a África. Nos anos de 1940-1946 os judeus egípcios chegam a seu apogeu financeiro, vivenciando um verdadeiro boom econômico. Durante a 2ª Guerra, crescem ainda mais o nacionalismo árabe e o pan-arabismo entre as populações muçulmanas e grupos militantes, como a Sociedade da Fraternidade Muçulmana, que já era poderosa força popular. No final da Guerra, a concatenação de uma série de forças e eventos deu início a um processo que, em tempo relativamente curto, minou a posição das comunidades
judaicas no mundo árabe e levou à sua total desintegração. Um forte antissionismo tomara conta de todo o mundo árabe e o Egito foi palco de distúrbios. Em 1945, a comunidade judaica, composta de 65 mil pessoas, concentrada majoritariamente em Alexandria e no Cairo, era uma das mais urbanizadas e com o maior grau de instrução de todo o mundo árabe. Nesse ano, a de Alexandria foi sacudida por violentas ações antissemitas. No dia de 2 novembro daquele ano, maciças demonstrações organizadas por grupos nacionalistas islâmicos ocorreram em Alexandria, Cairo e em outras cidades. Centenas de pessoas ficaram feridas e um policial morreu. Em Alexandria, a violência provocou a morte de seis pessoas, cinco das quais eram judias, e feriu outras 15. A proclamação do Estado de Israel, em maio de 1948, deteriorou ainda mais a situação da comunidade. Após o Egito, juntamente com as demais nações árabes, atacar o recém-criado Estado, aviões de combate de Israel bombardearam Alexandria e Cairo levando as manifestações anti judaicas ao seu pico. Para os judeus, a situação se
Rahmo Nehmad no casamento da filha Paulette. Alexandria, 1947
tornava insustentável, o que fez com que entre 1948 e 1952 por volta de 24 mil deixassem o Egito. Na Guerra de Suez o governo egípcio declarou que, como todos os judeus eram sionistas, inevitavelmente eram “inimigos do Estado”. Deviam, portanto, ser expulsos do país. Cerca de 30 mil judeus, 60% da comunidade, deixaram o Egito. Na véspera da Guerra dos Seis Dias, em 1967, somente lá restavam entre 2.500 e 3 mil. Hoje, vivem no Egito apenas uma centena de judeus. Apesar do Tratado de Paz com Israel em março de 1979, durante esse tempo todo
Bar Mitzvá de Cesar Sasson. Alexandria, 1955
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atualidade
“Estou muito orgulhosa do que fez meu país”, afirmou Magda Haroun, presidente da Comunidade Judaica do Cairo, durante a cerimônia de reinauguração da Eliyahu Hanavi. Com lágrimas nos olhos, ela disse que tem lutado por anos para preservar a herança judaica no Egito e nunca imaginou que o governo destinaria tantos recursos para reconstruir o edifício. “Eu serei a última mulher judia do Egito a fechar a porta da sinagoga”. Ela relembra o que lhe disse sua mãe, em 2017, do alto de seus 91 anos: “Os judeus viviam no Egito desde a época dos faraós. Você quer que desapareçam séculos de História? ”.
o antissionismo é um tópico quase diário na mídia egípcia.
Restaurando a Sinagoga Eliyahu Hanavi Uma das maiores do Oriente Médio, a Sinagoga Eliyahu Hanavi é uma das duas sinagogas ainda existentes na cidade. Como vimos acima, a sinagoga data do século 14 e foi reconstruída em 1850. Essa reconstrução contou com doações da dinastia Mohammad Ali. Com capacidade para 700 pessoas, funcionou precariamente até meados de 2012, quando foi fechada por razões de segurança. Desde então, o edifício foi-se deteriorando ainda mais até que, em 2017, o Ministério das Antiguidades do Egito destinou recursos para reparos e restauração do edifício. A obra faz parte da política de recuperação da herança cultural e religiosa do país para promover a indústria do turismo e custou US$ 6,2 milhões. Em 2018, a Eliyahu Hanavi foi incluída no World Monuments Watch, com o intuito de manter viva a memória da outrora florescente comunidade judaica egípcia. A restauração da sinagoga foi ampla e lhe restituiu o esplendor. Incluiu
a fachada, a decoração interna e externa e o sistema de iluminação. Em seu interior, pode-se ver o piso de mármore e as imensas colunas cor-de-rosa no salão principal. Nas cadeiras, placas com o nome dos fiéis que costumavam participar dos serviços religiosos e festividades, além de uma ala para mulheres. Espaços abertos no piso permitem visualizar as estruturas das construções anteriores. Para os judeus egípcios, a Eliyahu Hanavi ainda é o símbolo do seu legado comunitário. Para o governo, uma ferramenta para demonstrar a pluralidade histórica nacional, que permitiu que diversas etnias e comunidades religiosas outrora vivessem e trabalhassem juntas. 62
Sentada em um dos bancos de madeira restaurados, Yolanda Mizrahi diz ser a única da sua família que não deixou o país. “Este é meu país, eu pertenço a este lugar. Por que deveria partir? Espero que a minha família venha visitar a nossa sinagoga, em breve”. Para ela, o principal responsável pela revitalização da Eliyahu Hanavi é o presidente Abdel Fattah al-Sissi. “Se não fosse por ele”, diz, “esta restauração jamais aconteceria”. Em 2018, o chefe da nação determinou como prioridade de seu governo a preservação dos locais de orações dos judeus e coptas cristãos.
Volta às origens A ideia de organizar a visita de judeus de origem egípcia à sua terra natal surgiu quando foi anunciado, há três anos, o projeto de restauração da sinagoga. Sob forte esquema de segurança, a delegação participou, na sexta-feira à noite, do serviço religioso na Eliyahu Hanavi. Antes do serviço foi colocada uma mezuzá no umbral interno da porta principal. Entre os membros da comitiva, o rabino Andrew Baker, dos EUA, e o
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filho do último rabino de Alexandria, rabino Yosef Nefussi. Presentes também ao Shabat, o embaixador norte-americano no Egito, Jonathan Cohen, e o ex-embaixador israelense David Govrin e adidos culturais de vários países. Para o kidush tradicional, vinho e chalot foram trazidos de Israel. No sábado foi realizado um serviço de Shacharit completo, com as preces tradicionais e a leitura da Torá. Na ocasião, 12 dos cerca de 60 Sifrei Torá guardados no local foram retirados do Hechal (ou Aron HaCodesh, para os judeus ashquenazim). Vinda da França, Inglaterra, Israel e Estados Unidos, entre outros países, a delegação visitou, como parte do programa oficial, os três cemitérios judaicos da cidade: um no bairro de Mazarita e dois em Chatby. Por iniciativa da Nebi Daniel Association, os três locais passaram por uma grande limpeza, algo que não acontecia há 40 anos. Levana Zamir, presidente da Associação de Judeus do Egito em Israel, fez parte do grupo. Nascida no Cairo, veio com sua filha e seus dois netos, coordenando uma delegação de 20 pessoas. Segundo ela, os Sifrei Torá são uma homenagem às 12 tribos de Israel e permaneceram fechados durante décadas, até aquele sábado, 15 de janeiro de 2020. Em entrevistas a jornalistas estrangeiros, disse, mal contendo as lágrimas, disse que jamais imaginou ver, um dia, seu neto naquele local, carregando um Sefer Torá, com seu talit nos ombros. No entanto, apesar da iniciativa governamental de restaurar a sinagoga e preservar o patrimônio judaico no país, há, ainda, alguns pontos delicados no relacionamento entre os judeus que deixaram o Egito nas décadas de 1950 e 1960 e as autoridades. Um dos temas é o fato do governo não liberar o acesso aos
registros comunitários do passado, como, por exemplo, livros com registros de nascimentos, óbitos e casamentos. Durante o Império Otomano, todos os eventos ligados ao ciclo da vida eram registrados no Rabinato Central das comunidades. Nos grandes centros, como Alexandria e Cairo, os registros são anteriores a 1830. Há três anos foram todos levados ao Arquivo Nacional Egípcio, ao qual ninguém tem acesso. Através de seu conteúdo, os judeus de origem egípcia podem acessar suas certidões de nascimento, ketubot e seus atestados de óbitos, entre outros. Isso permite traçar a genealogia das famílias e outros. São documentos que constituem uma coleção rara, referente a 150 anos de história da comunidade judaica. A Nebi Daniel Association tem-se dedicado, nos últimos tempos, a obter cópias digitais desses documentos, mas enfrenta entraves com as autoridades. Apesar desse embate, Levana Zamir diz estar otimista quanto às perspectivas da preservação da memória judaica no país. Sob a
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presidência de Hosni Mubarak, diz ela, quase toda a memória judaica foi eliminada e a geração de jovens egípcios atualmente entre 20 e 30 anos não tem a menor ideia da participação dos judeus na história de seu país. “Al-Sissi, como Anuar el-Sadat, conseguirá mudar este quadro e também melhorar as relações com o governo israelense. Gradativamente, o presidente está conseguindo manter um bom relacionamento com Israel, mas a população ainda não está pronta para aceitar o Estado Judeu”, afirma Levana Zamir. Prova da dificuldade, no tocante a esse assunto, é o fato de o governo ter recusado o visto para 25 israelenses que desejavam integrar a comitiva. Ainda assim, ela acredita que, ao reconhecer seu passado judaico, o Egito estará mais aberto a aceitar seus vizinhos sionistas. “Daqui a 200 ou 500 anos, o Egito ainda preservará todos os monumentos judaicos. Isto é importante porque as futuras gerações saberão que os judeus estiveram aqui”, finalizou.
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Judeus da Alemanha: da República ao Terceiro Reich Nas primeiras décadas do século 20, os judeus alemães eram os mais cultos, ricos e poderosos dentre seus irmãos de outras nacionalidades, exercendo profunda influência no mundo judaico. Em Berlim, eles atingiram seu ponto mais alto. Mas, no início da década de 1930, desabou sobre sua tranquilidade e prosperidade uma sombra que aumentava assustadoramente. O ano de 1933 é o divisor de águas em sua história, o início da guerra que Hitler declarou contra os judeus.
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o início do século 20, viviam 587 mil judeus no Império Alemão (Deutsches Reich1), criado em janeiro de 1871 após a vitória da Prússia na Guerra Franco-Prussiana. O novo Deutsches Reich, que congregava todos os estados alemães, era governado pelo imperador, o Kaiser Wilhelm I. A população judaica havia sido emancipada em 1867, mas a maioria das restrições civis e políticas que ainda restavam somente foram abolidas com o novo império. Eram muitas as portas que ainda permaneciam fechadas, mas o antissemitismo era mais brando que em outros países e eles se consideravam privilegiados por viverem na Alemanha, a nação mais poderosa do continente europeu, econômica e militarmente.
O crescente bem-estar judaico e a convicção de que tinham seu lugar no seio da nação alemã os levaram à construção de majestosas sinagogas.
Os judeus participavam de seu florescimento; prosperaram e alguns se tornaram muito ricos. Metade dos bancos privados estavam em mãos de judeus, tendo os empreendedores da comunidade fundado indústrias inovadoras e cadeias de lojas de departamentos.
1ª Guerra Mundial
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Embalados na recém-adquirida segurança, poucos perceberam as mudanças que sofrera o nacionalismo alemão. A unificação do país era fruto da ação das elites militares prussianas autocráticas e antissemitas, e, resultou num nacionalismo com ranço conservador e xenofóbico. Embora variasse a intensidade de sua virulência, as manifestações antissemitas existiram até mesmo nos anos dourados do judaísmo alemão. Mas, como não afetava o status legal, esse antissemitismo era visto pelos judeus como um problema social e cultural e poucos perceberam seu perigo.
A 1ª Guerra eclodiu na Europa em agosto de 1914. Além da Alemanha, o conflito envolveu a França, Inglaterra, o Império Austro-Húngaro, Sérvia, Itália, o Império Russo e Otomano e os Estados Unidos. Havia judeus lutando em todos os exércitos.
Também chamado de Kaiserlich Deutsches Reich ou Kaiserreich. Note-se que o termo Deutsches Reich foi o nome oficial da Alemanha não apenas no período dos Kaisers, mas também durante a República de Weimar e no regime nazista
Na Alemanha era grande o apoio público à guerra, como mostram as fotografias da época. 64
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Portão de Brandemburgo, Berlim
Um judeu, Walther Rathenau, assumiu o Departamento de Suprimentos do Ministério da Guerra. Uma das mentes mais brilhantes de Berlim, nos oito meses em que ficou à frente do cargo ele implantou a primeira economia moderna planificada da Europa. À medida que foi-se arrastando o conflito que os alemães haviam previsto vencer em alguns meses, eles começaram a procurar “culpados”. Surgiram rumores de que a culpa era dos judeus, “pelo fato de ainda não terem acumulado riqueza suficiente”. Em agosto de 1916, Rathenau escreveu: “Quanto mais judeus morrerem neste conflito, mais persistentes serão as queixas de que eles não fizeram nada além de ficar atrás das linhas de frente e de lucrar”. Palavras proféticas. Em outubro, o Ministério da Guerra realizou de um censo nas Forças Armadas para
determinar o número de judeus na linha de frente. O levantamento teve um efeito devastador sobre a moral judaica. O censo refutou as acusações: 80% dos soldados judeus estavam na linha de frente, mas, convenientemente, tornaram-se públicas apenas as acusações de “covardia” e não os resultados.
RETRATO DE walther rathenau, 1896
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Em meados de 1918, a derrota alemã era inevitável. Cinco milhões de seus concidadãos estavam mortos e, dos 100 mil judeus que lutaram nas fileiras do exército alemão, 12 mil morreram. O país estava à beira do colapso e nas ruas o povo clamava por paz. O Kaiser Guilherme II foi forçado pelas elites militares a abdicar e, para facilitar as negociações de paz com os Aliados, o Oberste Heeresleitung (Comando Supremo do Exército) apoiou a constituição de um governo civil. Em 9 de novembro de 1918 foi criada a República de Weimar. A Constituição entrou em vigor no final do ano seguinte, cabendo a um judeu, Hugo Preuss, na época Ministro do Interior, redigir seu anteprojeto. Querendo salvar as forças armadas, as elites militares pressionaram o abril ABRIL 2020
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e seis serviam como ministros do governo central. Outros foram eleitos primeiros-ministros da Prússia, Saxônia e Baviera. Walther Rathenau tornou-se Ministro da Reconstrução e, em seguida, das Relações Exteriores.
Saindo da sinagoga, leverzow Shul, Berlim ca. 1912
governo republicano a aceitar um humilhante acordo de paz. O Tratado de Versalhes, assinado em junho de 1919, atingiu a Alemanha moral e economicamente. Os republicanos deveriam ter obrigado os generais a assumir a responsabilidade sobre os acordos, mas não o fizeram, e as consequências foram desastrosas.
Mannheim, Adorno, Fromm, Marcuse, Horkheimer e Walter Benjamin. Berlim, epicentro da cultura de Weimar, foi onde os judeus atingiram seu ponto mais alto.
Os judeus se tornaram jornalistas, dramaturgos, poetas, diretores e críticos de teatro; donos de galerias, atores, pianistas, maestros. Não havia quem amasse a arte, o teatro e a música mais do que um judeu alemão, e os mais ricos patronos e colecionadores de arte pertenciam à burguesia judaico-alemã. Eles tiveram um papel de destaque nas ciências. Albert Einstein, por exemplo, mudou radicalmente nossa visão do universo; e Paul Ehrlich descobriu a quimioterapia. Muito do que é admirado, hoje, como a Era de Ouro da cultura de Weimar foi criado por judeus como Mahler, Zweig, Werfel, Husserl, Hofmannsthal, Ehrlich, Willstättter, Mauthner, Kafka. Os principais nomes da famosa Escola de Frankfurt também eram judeus:
Cartaz do Partido Popular Nacionalista Alemão faz lembrar aos eleitores que a Alemanha perdera a 1ª Guerra por ter sido “apunhalada pelas costas” . Novembro de 1924
A República de Weimar A República começou com uma onda de esperança, principalmente para os judeus, que, finalmente, estavam em pé de igualdade com os outros cidadãos. Eles se engajaram na reconstrução da nação e sua participação na vida econômica, política e cultural alcançou proporções sem precedente. Até então, eles haviam sido excluídos das universidades, dos cargos no governo e dos altos postos no Judiciário e na administração pública. Na nova República havia 24 judeus no Reichstag (Parlamento Alemão)
Até 1933 muitos dos membros da Academia Prussiana de Arte eram judeus. Sentados à mesa de reuniões, entre outros, Thomas Mann, Heinrich Mann e Oskar Loerke. Berlim, 1929
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Os antigos preconceitos, porém, estavam vivos, e a estes foram adicionadas acusações do tipo “na guerra, os judeus esfaquearam a Alemanha pelas costas” ou “a República é parte de uma conspiração bolchevique judaica para dominar o mundo”. E, quando a hiperinflação detonou uma grave crise, a direita não precisou de muito esforço para “convencer” um grande número de alemães de que os “culpados” de todos os males – a derrota militar, a crise econômica, o capitalismo, o comunismo, a sífilis e assim por diante, eram os judeus. Nos anos de hiperinflação o antissemitismo era mais feroz do que em 1933. Em Munique, um dos grupos de direita, o então inexpressivo Partido Nacional Socialista do Trabalhadores (NSDAP), elegeu Adolf Hitler para encabeçar o movimento. Sua plataforma política advogava a erradicação dos judeus da Alemanha, por meios legais, se possível; caso contrário, através da violência, deportação e morte. Esses grupos de direita foram responsáveis por um dos assassinatos mais devastadores do pós-guerra: em 24 de junho de 1922, Rathenau foi baleado e morreu. Em Munique, em 8 de novembro do ano seguinte, Hitler tentou um coup d’état, o chamado Putsch da Cervejaria. Preso, é julgado por alta traição e condenado a cinco anos de prisão. Após 8 meses, no entanto, estava em liberdade. Enquanto esteve preso escreveu seu testemunho político, Mein Kampf, Minha Luta. Seu ódio contra os judeus transborda pelas páginas. Para ele, dois perigos ameaçavam destruir a Alemanha – os judeus e o bolchevismo. Em conversa com o major Josef Hell, em 1922, declarou que, se chegasse ao poder,
Mansão de Alben Ballin (1857-l918) na Feldbrunnenstrasse em Hamburgo, 1916
seu objetivo seria uma Alemanha Jüdenrein – livre de judeus, e sua prioridade, “o extermínio de judeus”.
Vida judaica na década de 1920
Cartaz antissemita anunciando eleições: “O golpe tem que atingir o alvo certo!”, 1928
Em 1925, viviam na Alemanha 564 mil judeus, um terço dos quais em Berlim. O judaísmo reformista ou liberal era dominante. As altas taxas de conversão e casamentos mistos, que, em 1918, atingiam 21% e 30%, respectivamente, haviam resultado num encolhimento da população judaica. Apenas o constante fluxo de imigração de “Ostjuden” (como eram chamados os judeus do Leste, especialmente os de língua iídiche) mantinha os números relativamente estáveis.
No final da década de 1920, o Partido Nazista se tornara um movimento de massa. Uniformes de estilo militar e a suástica predominavam. Weimar,Alemanha, CA. 1931
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A maioria da população judaica pertencia à classe média e ganhava a vida no comércio e profissões liberais. Nos centros urbanos, mais de um terço dos advogados e médicos eram judeus. Eles também desempenhavam um papel proeminente em todas as formas de entretenimento. Em final do século 19, fora criada, em Berlim, a Centralverein (União Central dos Cidadãos Alemães da Fé Judaica). O nome foi cuidadosamente escolhido. “Não somos judeus alemães, mas sim cidadãos alemães da fé judaica”. A organização defendia uma síntese do judaísmo e do “do germanismo” e rejeitava o sionismo. Até 1904, o número de sionistas era irrisório, apenas seis mil. Mas o sionismo alemão mudaria com o advento de uma nova geração comprometida em travar uma guerra contra a assimilação e a conversão. Um dos seus porta-vozes, Kurt Blumenfeld, de família rica e bem integrada, chegou a declarar: “A falência da emancipação foi o ‘segredinho escuso’ suprimido pela burguesia judaico-alemã”.
PEDESTREs olham os destroços do edifício do Reichstag. Berlim, fev. 1933
extrema direita. O desemprego aumenta extraordinariamente, o número de comunistas cresce e o extremismo substitui o ideal democrático de Weimar. Anunciavase um futuro muito sombrio.
O fatídico ano de 1933 No dia 30 de janeiro de 1933, o então presidente Hindenburg nomeia Adolf Hitler chanceler. Ele vai rapidamente transformar a frágil democracia alemã em uma
A juventude contava com inúmeros movimentos juvenis judaicos e, em 1917, a comunidade judaica estruturou seu programa de assistência social criando a Zentralwohlfahrtstelle. O antissemitismo, porém, continuava vivo e ativo. Até os que defendiam a assimilação reconheciam sua virulência. O dramaturgo Arthur Schnitzler o definiu como “uma emoção desenfreada, mas sem um papel importante na política ou na sociedade”. No final da década, os eventos favoreceram o crescimento da
Nazista coloca pôster conclamando à eleição de Adolf Hitler para Presidente da Alemanha, 1932
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ditadura unipartidária baseada em um nacionalismo e autoritarismo e uma ideologia racista e antissemita. O evento não gera pânico entre os judeus, apenas apreensão. A Centralverein exorta a comunidade: “Devemos esperar com calma”. Apesar dessa exortação, logo em seguida houve um êxodo de artistas, intelectuais e cientistas judeus, entre eles Otto Klemperer, Bruno Walter, Max Liebermann e Albert Einstein. Mal chegado ao poder, o Führer, “o líder” em sua tradução, ordena o aprisionamento de comunistas e oponentes. Quando, em 27 de fevereiro, um “oportuno” incêndio destrói o Reichstag, os nazistas acusam os comunistas. Na manhã seguinte, um decreto presidencial dá à Hitler poderes emergenciais. O decreto suspendia os direitos civis constitucionais e declarava estado de emergência. Tropas de choque, as Sturmabteilung (SA), entram em ação, efetuando prisões em massa. Em 23 de março, o Reichstag dava plenos poderes legislativos e executivos a Hitler. Desde os primeiros meses Hitler tinha a última palavra tanto na legislação nacional quanto na política externa
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e sua visão acerca da “Questão Judaica” foi essencial para o desenvolver dos eventos que culminariam no Holocausto. Para o Führer, a luta contra os judeus era uma confrontação de dimensões apocalípticas, uma guerra contra um inimigo que ameaçava a própria sobrevivência da Alemanha.
Salvaguardando a “pureza“ ariana O choque causado pelo boicote foi suplantado pelo abalo provocado pelas leis antissemitas introduzidas logo a seguir, quando foi legalmente adotada a definição de um Nicharier, “um não ariano”. No Terceiro Reich, um Nicharier era qualquer pessoa que descendesse de um não-ariano, especialmente de pais ou avós judeus. No deturpado pensamento nazista, um Nicharier era uma pessoa “racialmente inferior” e a força da nação germânica era baseada na “pureza do sangue”.
A vida judaica entra em colapso A primeira manifestação antijudaica organizada ocorreu na Alemanha nazista (também chamada de Terceiro Reich) no dia 1º de abril. O Führer ordenara o boicote a todas as lojas e escritórios pertencentes a judeus. Nesse dia, tropas de choque das SA tomaram posição na frente dos mesmos. Janelas e portas foram pichadas com o Maguen David (Estrela de David) ao lado de termos pejorativos, caricaturas grotescas e suásticas. Houve protestos, num primeiro momento. Os judeus pediam aos nazistas que se lembrassem de sua contribuição e lealdade à Alemanha, mas seus esforços foram inúteis. Os judeus da Diáspora também protestaram contra os maus-tratos aos quais seus irmãos estavam sendo submetidos. Quando se espalhou a notícia de um boicote iminente às lojas judaicas, programou-se uma manifestação no Madison Garden, em Nova York, em 27 de março. Começava, também, uma campanha de boicote aos produtos alemães. Para as igrejas cristãs, o boicote foi o primeiro teste em relação à atitude oficial que adotariam nos 12 anos seguintes em relação à “questão judaica”. Como escreveu o historiador Klaus Scholder,
“Nenhum bispo, nenhum representante da Igreja fez uma declaração pública contra a perseguição”. Em geral, a atitude das Igrejas Cristãs foi a de um “antissemitismo moderado”. Eram contra a violência nazista, mas apoiavam a “luta contra a influência judaica na economia e na vida cultural na Europa”. E, quando externava preocupação, esta era apenas em relação aos judeus convertidos.
O objetivo das novas leis era “limpar” a nação alemã da presença judaica, e resultaram na exclusão dos judeus de áreas importantes: a própria estrutura estatal (Lei do Serviço Civil), saúde (Lei dos Médicos), a estrutura social (a revogação das licenças dos advogados judeus). Durante algum tempo, os veteranos da 1ª Guerra não foram incluídos, causando, assim, uma cisão na comunidade judaica.
Queima de livros organizada pelos nazistas em toda a Alemanha. 10 de maio de 1933
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de 1933 foi criada a Representação Nacional dos Judeus Alemães (Reichsvertretung Deutscher Juden). Sediada em Berlim, a entidade coordena as atividades comunitárias e o Rabino Leo Baeck é eleito presidente. As atividades educacionais e culturais do Reichsvertretung foram o início de um movimento judaico de resistência moral.
Bandeiras com suásticas no lançamento do filme Triunfo da Vontade, 1935
Uma agressiva campanha para disseminar os “ideais” do regime é iniciada por Joseph Goebbels, ministro da Propaganda. Uma das metas era “limpar” a vida cultural alemã da influência judaica. O primeiro grande passo foi dado pelos estudantes das universidades que determinaram “a queima pública de livros indesejáveis”, em sua maioria de autores judeus. Na noite do dia 10 de maio, foram acesas fogueiras e, em grandiosas cerimônias mais de 20 mil livros foram queimados em todo o Reich, 10 mil deles em Berlim apenas.
da vida judaica na Alemanha não estava irremediavelmente ameaçado”. A situação causou um despertar espiritual no judaísmo alemão, com um sopro de vitalidade em sua vida comunitária. A imprensa judaica também teve um papel preponderante no fortalecimento do espírito dos judeus alemães. Determinados a manter, de alguma forma, a vida judaica, em setembro
Em um discurso, Hitler reafirmou a necessidade de acelerar o ajuste de contas com os “criminosos” da cultura alemã. A ofensiva nazista ultrapassava todos os limites.
Tentando manter a vida judaica As principais figuras da comunidade judaica procuravam tranquilizar a comunidade, afirmando que “o futuro Reinhard Tristan Eugen Heydrich, oficial
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superior nazista durante a 2ª Guerra Mundial, um dos principais arquitetos do Holocausto. Era Chefe da Segurança.
Jovem sionista em treinamento agrícola para eventuais emigrantes à Palestina. Fazenda-escola em Brandemburgo, c. 1935
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A Organização Sionista da Alemanha, que conquistara uma força extraordinária, levou a metade dos assentos no conselho comunitário, entre todas as organizações, em 1935. E, entre os movimentos sionistas juvenis, estava o Habonim Noar Chalutzi, fundado em 1933. O movimento Hechalutz, o maior de todos, preparava seus membros para se estabelecerem em Eretz Israel. Entre outros, as novas leis do Terceiro Reich levaram a comunidade a estabelecer suas próprias escolas, em todos os níveis, para as crianças judias que haviam sido expulsas das escolas públicas. E o Kulturbund, um projeto através do qual judeus organizavam e realizavam atividades culturais para a sua comunidade, absorveu milhares de artistas judeus, sumariamente excluídos da vida cultural e artística alemã. Em seu primeiro ano, o projeto apresentou 69 óperas e 117 concertos para plateias exclusivamente judias. Mas, os nazistas queriam que os judeus perdessem suas esperanças de um futuro no Reich. Em 1934, um memorando endereçado a Heydrich2 deixa claro a sua intenção: “O objetivo da política judaica deve ser a total emigração dos judeus… Devem ser restritas as oportunidades de vida, não apenas em termos econômicos. Para os judeus, a Alemanha tem que se tornar um país sem futuro”.
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Apesar da crescente perseguição e segregação, algumas lideranças ainda eram contrárias à emigração “apressada”. Outros, como Georg Kareski, por exemplo, representante dos Sionistas Revisionistas, pregavam uma emigração imediata, a qualquer custo. Kareski, inclusive, não descartava a cooperação, se necessário, com a Gestapo para ajudar os judeus. Trinta e sete mil dos cerca de 525 mil judeus na Alemanha deixaram o país em 1933. Os que queriam partir se defrontavam com sérias dificuldades. Uma era encontrar um país que lhes abrisse as portas, outra era de origem econômica. O imposto sobre a emigração era proibitivo e os judeus que emigravam eram obrigados a deixar a Alemanha sem recursos. Os nazistas queriam se livrar deles, mas estavam determinados a depená-los, antes. Estranhamente, as autoridades amenizavam as exigências para a emigração judaica quando o destino era a então Palestina. Em agosto de 1933, foi concluído o Acordo de Haavará (Acordo de Transferência) entre a Federação Sionista da Alemanha, o Banco Anglo-Palestino (sob a direção da Agência Judaica) e as autoridades alemãs. Este acordo permitia aos judeus vender seus bens na Alemanha e, com os recursos, adquirir produtos alemães enviados em seguida à Palestina britânica. O acordo permitiu a saída de cerca de 60 mil judeus alemães para Eretz Israel.
As Leis de Nuremberg de 1935 Em 1935, são publicadas as Leis de Nuremberg. São proibidos os casamentos e relações sexuais entre judeus e alemães, para não “manchar a pureza da raça ariana”. A lei da Cidadania definia a diferenciação
legal entre os “cidadãos do Reich” – pessoas de sangue ariano, que gozavam de direitos políticos e civis plenos, e os não-arianos classificados como “sujeitos do Estado”, sem direitos. O decreto racista de que “nenhum judeu poderia ser alemão” afetou-os gravemente, pois a grande maioria deles se consideravam alemães e eram genuinamente assimilados na cultura alemã. O alemão era sua língua; a literatura alemã, a sua literatura. E a filosofia alemã e seus valores eram os seus valores. Os judeus alemães começam a funcionar como um corpo único, pois os eventos externos haviam apagado as diferenças que costumavam dividi-
judeus, fruto de casamentos mistos, de primeiro e segundo grau. Apesar de abalados, ainda havia os que mantinham a esperança de que as novas leis permitissem uma vida judaica segregada, porém, viável, no Terceiro Reich. A situação era desesperadora e deixar o país, algo que até então era impensável, era a única saída para aquele sofrimento. Até 1935, milhares conseguiram emigrar, mas isso era cada vez mais difícil. As poucas portas abertas a refugiados judeus estavam-se fechando ainda mais, inclusive para a Palestina britânica. Em 1936, estourara em Eretz Israel a Grande Revolta nacionalista árabe, contra o domínio
Gráfico explicativo das Leis de Nuremberg, c. 1936-1939
los. De acordo com a definição nazista, viviam então na Alemanha cerca de 475 mil “judeus de religião judaica” e 300 mil “judeus cristãos” (convertidos ao Cristianismo). Perante a lei eram iguais o “judeujudeu” ou o “judeu-cristão. Ainda havia 750 mil Mischlinge – meio71
colonial e a imigração judaica. A reação britânica foi o aumento de restrições impostas à entrada de judeus. Como afirmou Chaim Weizmann, em 1936: “O mundo parece estar dividido em duas partes – os lugares onde os judeus não podem viver, e aqueles onde não podem entrar”. ABRIL 2020
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Jogos Olímpicos de 1936 Em 1931, o Comitê Olímpico Internacional escolheu Berlim para a realização dos Jogos Olímpicos de 1936. Um ano antes da realização dos Jogos, as Leis de Nuremberg haviam excluído os judeus dos esportes. Os atletas judeus que se haviam qualificado para os Jogos foram dispensados pelo comitê. A delegação alemã não queria judeu algum em suas fileiras e seus atletas tinham como objetivo provar a superioridade da raça ariana. Em protesto a essas medidas, as associações atléticas norte-americana e inglesa ameaçaram boicotar os Jogos. O Führer decidiu adotar uma trégua “olímpica”. “É da maior importância o desenrolar grandioso e sem incidentes dos Jogos Olímpicos para a imagem da nova Alemanha aos olhos dos estrangeiros”, revela um memorando da época. Mestres em propaganda, mascaram o racismo, o crescente militarismo e o antissemitismo retirando as evidências das áreas olímpicas e locais turísticos. A estratégia foi um sucesso, e praticamente todos os convidados, inclusive o Presidente Roosevelt, dos Estados Unidos, saíram da Alemanha tranquilizados. Até alguns judeus foram ludibriados, passando a acreditar que o pior estava para trás. Mas os eventos sucessivos indicaram que o pior ainda estava por vir...
cena de rua. Berlim durante a 11a Olimpíada, os Jogos Olímpicos Nazistas, agosto de 1936
As deduções de Hitler estavam corretas. Perante as sucessivas agressões alemãs – em fevereiro de 1936, Hitler reocupara Renânia e na sequência incorporara, em março, a Áustria e, em setembro, a Checoslováquia – Neville Chamberlain, primeiro ministro da Grã-Bretanha, declara, após reunirse com Hitler em 30 de setembro de 1938: “Volto da Alemanha trazendo a paz para nossos tempos”. Hitler volta a esbravejar nos imensos comícios: “O perigo não eram os bolcheviques, eram os judeus (…) uma conspiração judaica mundial ameaçava destruir a Alemanha e o mundo.
É intensificado o processo de “arianização”, um eufemismo para o sequestro e roubo de propriedades judaicas. O confisco do capital judaico e a venda forçada de empresas controladas (Arianisierung) por judeus se torna prática diária. Enquanto cresciam, em todo o Terceiro Reich, a brutalidade e o assassinato, o mundo assistia, inerte. A situação tornara-se tão desesperadora que Franklin D. Roosevelt, presidente dos EUA, convocou uma conferência internacional, em julho de 1938, em Evian-les-Bains, para tentar encontrar uma solução para os refugiados que queriam sair da Alemanha e da Europa. Apesar de manifestarem sua “simpatia”, nenhum dos países presentes abriu suas portas para abrigá-los. Para Hitler, a conferência em Evian-les-Bains foi uma prova de que “ninguém queria os judeus” e “ninguém se importava com o seu destino, não havendo para onde mandá-los”. A expansão militar do território alemão tornava impossível conseguir um Reich Jüdenrein, pois centenas de milhares de judeus nas nações a serem conquistadas acabariam sendo incorporados ao Reich. Para o ditador, era preciso encontrar-se outra “solução”, algo “definitivo” ao “problema judaico”.
‘Fora com a mente barganhadora dos judeus! Promova a ‘arianização das empresas alemãs!’, 1936-1937
Até então, a estabilização do regime e o crescimento econômico haviam exigido uma relativa “moderação”, por parte dos nazistas. Mas, a Alemanha já economicamente forte e a política de apaziguamento adotada pela França e Grã-Bretanha sinalizavam que não haveria uma retaliação ao antissemitismo e expansionismo alemão. 72
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Kristallnacht, a Noite dos Cristais A noite de 9 de novembro de 1938, Kristallnacht – Noite dos Cristais, marcou o início da segunda fase da perseguição judaica, mais brutal e violenta, e mais mortal. Hitler precisava apenas de um pretexto para dar vazão à violência contra os judeus. O pretexto surgiu em 7 de novembro, quando Herschel Grynszpan, jovem refugiado judeu que vivia em Paris, entrou armado na embaixada alemã e atirou em Ernst von Rath, terceiro-secretário. Hoje sabemos que o jovem tomara aquela atitude “incentivado” por agentes alemães. Ele estava transtornado pela notícia de que seus pais e milhares de outros Ostjuden havia sido sumariamente expulsos da Alemanha e abandonados em terrade-ninguém, na fronteira alemãpolonesa. No dia 9, morre von Rath. A violência que se segue não foi, absolutamente, «uma reação espontânea aos acontecimentos na embaixada alemã, em Paris”, mas uma violência orquestrada com precisão por Hitler e outros líderes nazistas. Dentro de poucas horas, irromperam tumultos em todo o território alemão e austríaco. Turbas enlouquecidas percorriam as ruas das cidades, atacando os judeus e vandalizando suas propriedades. Oficiais nazistas deram ordens para incendiar as sinagogas e os rolos da Torá, e os céus ficaram iluminados pelas labaredas. Um barulho ensurdecedor de milhares de vidraças estilhaçadas convenceu os judeus de que não havia mais lugar para eles no Terceiro Reich. A violência matou 91 deles, milhares ficaram feridos e desabrigados.
Uma sinagoga em ruínas em Munique depois da Kristallnacht
Trinta mil judeus foram enviados aos campos de concentração de Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen,10 mil dos quais morreram e os demais foram libertados, sob a condição de deixar a Alemanha. Os danos materiais foram imensos: saquearam 7.500 lojas, destruíram cemitérios judaicos e atacaram mais de mil sinagogas, das quais 267 foram arrasadas. Os nazistas responsabilizaram os judeus pelos “distúrbios” e destruição, impondo uma multa exorbitante a ser paga por eles. Não se ouviu nenhuma voz em seu favor. As igrejas cristãs mantiveram-se em total silêncio, com exceção do padre católico Bernhard Lichtenberg que declarou: ”Os templos que foram destruídos também são a Casa de D’us”. Ele pagou com a vida por suas manifestações públicas em favor dos judeus. Nos meses seguintes, a expulsão dos judeus do Reich tornou-se prioridade e novas medidas foram instituídas para dificultar ainda mais sua vida. 73
Foram banidos de teatros, cinemas, museus, clubes esportivos, parques, instituições, hospitais e banheiros públicos. Viram-se obrigados por lei a vender propriedades, empresas, obras de arte, joias. Não lhes era permitido possuir carro, carteira de motorista, passaportes. A imprensa judaica também é banida. A comunidade judaica estava à beira da falência e seus membros procuravam deixar o país. Algumas rotas de fuga estavam temporariamente abertas. Xangai tornou-se um asilo para judeus alemães e austríacos; dezenas de milhares encontraram refúgio nos países europeus vizinhos e, outros, nas Américas. A Grã-Bretanha aceitou 10 mil crianças judias vindas da Alemanha, Áustria e Checoslováquia, os chamados Kindertransports. E, apesar das restrições impostas pelos britânicos em 1939, muitos judeus conseguiram chegar à então Palestina por meio de viagens ilegais organizadas pelos sionistas. Nos primeiros seis anos da ditadura ABRIL 2020
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nazista, segundo estimativas do Alto Comissariado para Refugiados da Liga das Nações, 315 mil judeus deixaram o país. Os que se refugiaram em países ocupados pelos nazistas seriam capturados por eles e exterminados. De acordo com o censo nazista de maio de 1939, viviam no Terceiro Reich (nas fronteiras de 1937) 213 mil judeus (segundo definição das Leis de Nurenberg). No final do ano eram 190 mil – 90% deles viviam em 200 cidades. Os que haviam permanecido eram, em sua maioria, judeus de meiaidade ou idosos. A esperança de conseguir sair do país era cada vez menor. Ainda havia alguns com posses, mas a grande maioria havia empobrecido, dependendo das organizações sociais para sobreviver. Apenas 16% dos chefes de família tinham algum emprego fixo.
A 2ª Guerra Mundial A Alemanha invadiu a Polônia em 1º de setembro de 1939, deflagrando a 2ª Guerra Mundial. A partir de abril do ano seguinte a Alemanha nazista conquistaria rapidamente o resto da Europa: Dinamarca (abril de 1940), Noruega (abril de 1940), Bélgica (maio de 1940), Holanda (maio de 1940), França (maio de 1940), Iugoslávia (abril de 1941), Grécia (abril de 1941) e Luxemburgo (maio de 1940). Em 22 de junho de 1941, as forças alemãs invadiram a União Soviética, mas encontraram resistência.
a viver em áreas determinadas, concentrando-os em “casa judaicas” (“Judenhäuser”). Os judeus fisicamente aptos eram obrigados a trabalho forçado compulsório. E tiveram que abrir mão de seus bens considerados “essenciais para o esforço de guerra”, tais como rádios, câmeras, bicicletas, eletrodomésticos, assim como casacos de pele, pianos e outros objetos de valor.
Grupo juvenil judaico da Alemanha chega em Israel, abril de 1939
foram segregados, expropriados, concentrados em guetos, levados à morte por fome e doenças, deportados e exterminados. Como morriam, pouco importava; o importante era o resultado final. O tratamento reservado pelos nazistas aos judeus que haviam permanecido na Alemanha era diferente, mas a meta final era a mesma. Desde o primeiro dia da guerra foram proibidos de deixar suas casas depois das 20 horas, sendo-lhes vedada a entrada em determinadas áreas, em várias cidades. Não foram criados guetos na Alemanha, mas as severas leis de moradia forçavam os judeus pôsteres antissemitas : “Os judeus são seu eterno inimigo“, “Stalin e os judeus: farinha do mesmo saco”, outubro de 1941
Uma lei promulgada em julho de 1939 transformou a Representação Nacional dos Judeus Alemães, a Reichsvertretung, em Associação do Reich de Judeus na Alemanha (Reichsvereinigung der Juden in Deutschland). Seu trabalho ficou sujeito às ordens do Ministro do Interior. A associação absorveu todas as 1.500 organizações e instituições e as 1.600 instituições religiosas da comunidade existentes em 1939. Leo Baeck, que permanecera à frente das novas organizações, empenhava-se a organizar a saída de judeus do país e a manter em funcionamento as escolas judaicas e as instituições beneficentes. Mas, todas as atividades chegam ao fim em 1943, pois quase todos os seus dirigentes e a maioria dos assistidos haviam sido “transferidos”, a maioria direto para sua morte nas câmaras de gás. Leo Baeck foi deportado em janeiro de 1943 para Gueto de Theresienstadt, sobrevivendo à Shoá. Os bens da Reichsvereinigung (cerca de 170 milhões de marcos), foram confiscados pelos nazistas. Com o início do racionamento de alimentos, os judeus recebiam rações cada vez menores. Também foram restringidos os horários em que comprar alimentos e outros suprimentos. As famílias judias enfrentavam escassez dos produtos mais básicos, mas nada comparado à “política de inanição” adotada pelos
Milhões de judeus que viviam nos países tomados pelos alemães caem em mãos nazistas, que, com a maior rapidez e violência, aplicaram as políticas antissemitas já “elaboradas e testadas” na Alemanha. Os judeus 74
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nazistas nos guetos do Leste. Em outubro de 1940, cerca de sete mil judeus de Baden e Saarpfalz, ao sudoeste do país, foram deportados para regiões da França ocupada, para ceder lugar aos alemães que haviam sido repatriados após o início da guerra. As autoridades francesas prenderam a maioria desses judeus alemães no campo de internação de Gurs, nos Pireneus. A situação foi-se deteriorando, rapidamente. Em maio de 1941, ainda havia 169 mil; até outubro desse ano, outros 5 mil haviam conseguido deixar a Alemanha, Todos os bens de judeus alemães que “deixavam o Reich” em virtude de imigração, morte ou “deportação para o Leste” eram automaticamente confiscados. Em setembro de 1941, um decreto proibiu os judeus de usarem transporte público e tornou-se obrigatório que todos, com mais de 6 anos de idade, que viviam sob domínio alemão, portassem a Estrela de David amarela (o Maguen David) preso na roupa. A deportação sistemática de judeus da Alemanha iniciou-se naquele setembro, após ordens explícitas de Hitler. A princípio, os veteranos de guerra judeus e os parceiros em casamentos mistos, considerados “casamentos privilegiados”, foram excluídos da política de deportação.
1ª Guerra e os judeus de países da Europa Ocidental eram deportados para o gueto de Theresienstadt (Terezin), próximo a Praga. Usado pelas SS como “vitrine” do tratamento “humano” dispensado aos judeus, esse campo era mais uma “estação de trânsito”, “a caminho do Leste”, para os centros de matança na Polônia. Mais de 30 mil morreram no próprio gueto de Theresienstadt devido à fome, doenças e maus tratos. No período de outubro de 1942 a março do ano seguinte, os judeus da Alemanha foram “transferidos” diretamente para Auschwitz e outros centros de matança sistemática. Foram exterminados na Shoá 90% dos judeus que viviam na Alemanha, em 1939. Nos primeiros meses de 1943, as autoridades nazistas anunciaram que o Reich finalmente estava Judenrein, livre de judeus. Em Berlim, a cidade que vira o ponto alto dos judeus da Alemanha, no final de 1942 restavam
apenas 32 mil judeus. No ano seguinte tinham sido drasticamente reduzidos a 238 pessoas. Eram chamados “U-Boats” ou “submarinos”, viviam escondidos e conseguiram salvar-se quase sempre com a ajuda de não judeus. Havia também 800 Mischlinge e outros cerca de 5 mil que conseguiram escapar à deportação por serem casados com não-judeus. No dia 2 de maio de 1945, quando Berlim se rendeu ao Exército Vermelho, restavam apenas 162 judeus da outrora poderosa e orgulhosa comunidade.
BIBLIOGRAFIA
Friedlander, Saul, Nazi Germany and the Jews: 1933-1945. eBook Kindle Elon, Amos, Pity of It All: A Portrait of Jews in Germany, 1743-1933. Kindle Edition www.educabras.com Sachar, Howard M, The Course of Modern Jewish History. Kindle Edition Friedlander, Saul, Nazi Germany And The Jews: The Years Of Persecution: 1933-1939. eBook Kindle
Mais de 50 mil judeus do chamado Grande Reich Alemão (que incluía a Áustria) foram deportados para os guetos no Leste Europeu, Lodz, Vinsk, Riga e Kovno, entre o início de novembro de 1941 e o final de outubro de 1942. Os judeus proeminentes do Grande Reich Alemão, os veteranos da 75
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