ANO
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edição
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SET 2015
ANO XXII - Setembro 2015 - Nº 89 Coordenação Editorial: Vicky Safra
Assistentes de Coordenação: Clairy Dayan Fortuna Djmal Colaboração: Adina Sakkal Heddy Dayan Josette Lisbona Muriel Sutt Seligson Natalie Kachani Sarine Dayan ANO
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edição
89
SET 2015
CAPA rimonim, itália, meados séc. 19 prata
Supervisão Religiosa: Rabino Y. David Weitman Rabino Efraim Laniado Rabino Avraham Cohen Jornalista Responsável: Desirée Nacson Suslick MTb 13603
Colaboradores especiais: Jaime Spitzcovsky Tev Djmal Zevi Ghivelder
Revisão e tradução de texto: Lilia Wachsmann
Coordenação de Marketing: Ernesto Chayo
Produção Gráfica: Joel Rechtman JR Graphiks - Tel: 3873 0300 Projeto Gráfico: LEN - Tel: 3815 7393
Serviços Gráficos: C&D Editora e Gráfica - Tel: 3862 7635 Tiragem: 26.200 exemplares
A distribuição é gratuíta sendo sua comercialização expressamente proíbida. Morashá significa Herança Espiritual; contém termos sagrados.
Por favor, trate-a com o devido respeito. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo necessariamente a opinião
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Carta ao leitor Muitas pessoas acreditam, erroneamente, que Rosh Hashaná é a data da criação do mundo. Na realidade, o mundo foi criado seis dias antes, em 25 de Elul. Celebrado no primeiro dia de Tishrei, Rosh Hashaná é o Sexto Dia da Criação, em que D’us criou o homem – o ápice de Suas obras. Nosso Sábios explicam que a criação do homem foi diferente da de outras criaturas, pois fomos criados como indivíduo único, enquanto os outros seres foram criados aos pares. A primeira mulher, Eva, era originalmente parte do corpo de Adão. O primeiro casal era, a princípio, duas metades de um mesmo organismo, que foi posteriormente dividido, formando dois seres humanos distintos. Isto significa que tanto o homem quanto a mulher descendem de um único ser humano. De acordo com nossos Sábios, um dos motivos para D’us ter criado o homem como um único indivíduo foi para que todo ser humano soubesse que todos os demais indivíduos possuem o mesmo progenitor. Todos compartilhamos a mesma origem. Todos descendemos de Adão, que foi criado à imagem de D’us. Sendo assim, ninguém pode alegar superioridade ancestral ou racial. Este fato nega a crença e a alegação – que causou tanto sofrimento e tanta injustiça ao longo da história – de que há homens, nações, raças ou etnias superiores às demais. Há vários outros motivos para D’us ter criado um único ser humano. Um deles é para nos ensinar que todo indivíduo abriga dentro de si toda a humanidade. Adão possuía dentro dele a alma de todos os seres humanos que viriam a nascer. A vida de cada ser humano se originou e, portanto, dependia, da de Adão. Se ele não tivesse sido criado – ou se houvesse perecido antes de ter tido filhos – a humanidade não teria existido. À luz disso, nossos Sábios ensinam que
aquele que salva uma única vida humana é como se tivesse salvado toda a humanidade. O oposto também é verdadeiro. O judaísmo atribui, portanto, suprema importância à vida humana. A santidade da vida tem precedência sobre quase todos os mandamentos da Torá. As lições de Rosh Hashaná – de que todos os seres humanos descendem do mesmo ser humano e que o valor da vida é imensurável – são o antídoto da desumanidade e violência que se espalham pelo mundo, especialmente no Oriente Médio. Nos últimos anos, presenciamos Estados e organizações – algumas delas ditas religiosas – cometerem atos de barbárie contra membros de outras religiões, seitas e etnias. Há uma terrível guerra civil na Síria e no Iraque que não poupa nem os inocentes. Ao mesmo tempo, o mundo corteja um país que almeja adquirir armas nucleares e que ameaça o Estado Judeu, seus vizinhos árabes e, por que não – o mundo todo. Todas essas guerras e conflitos são a antítese do que D’us espera de nós, Suas criaturas. Neste Rosh Hashaná pediremos a D’us um ano de paz para toda a humanidade. Nas orações do Ano Novo Judaico, pede-se que D’us elimine o mal do mundo e que o homem abrace os ideais do judaísmo, que, ao longo dos tempos, influenciaram a humanidade. Esta precisa redescobrir que somos todos iguais, que o homem foi criado à imagem de D´us e que vida de cada indivíduo tem valor inestimável. Quando o mundo internalizar tais ensinamentos, eternos e atemporais, seremos todos abençoados com paz universal, com júbilo e prosperidade.
SHANÁ TOVÁ UMETUCÁ!
NOSSAS GRANDES FESTAS
Rosh Hashaná e os Três Pilares do Universo O Pirkei Avot, livro sagrado de sabedoria e ética judaicas, ensina que o mundo se mantém sobre três pilares: Torá, Avodá – o serviço Divino – e Guemilut Chassadim – atos de bondade (Pirkei Avot 1:2).
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sse ensinamento é um dos temas principais de Rosh Hashaná. Nas orações que recitamos nos dois dias do Ano Novo Judaico, proclamamos que os caminhos para se evitar os decretos Celestiais negativos e atrair os positivos são os da Teshuvá (arrependimento), Tefilá (oração) e Tzedacá (caridade). Estes são sinônimos de Torá, Avodá e Guemilut Chassadim. Teshuvá é sinônimo de Torá, pois o que é a Teshuvá? É o retorno a D’us por meio do cumprimento de Sua Vontade, a dizer, a Torá. Ensina-nos o Pirkei Avot que um dos pilares do Universo é a Torá e seu estudo, que nos leva à Teshuvá – ao cumprimento de seus mandamentos. Tefilá ou oração é outro nome para Avodá – o serviço Divino. Como ensina o Talmud, a oração é o serviço do coração. Na ausência do Templo Sagrado de Jerusalém, as preces tomaram o lugar dos serviços que lá eram realizados, particularmente os sacrifícios. O Profeta Hoshea (Oseias) declarou: “… e (D’us) aceita o pronunciamento de nossos lábios em substituição à oferenda de novilhos” (Capítulo 14:3), revelando que as palavras podem ocupar o lugar dos sacrifícios. De fato, o Talmud nos indica que,
“Aquele que ora na Casa de orações é como se trouxesse uma oferenda ao Templo”. Tzedacá, palavra frequentemente traduzida como caridade, é um sinônimo de Guemilut Chassadim – a prática de atos de bondade. Em geral, o ato mais simples de caridade é dar dinheiro aos necessitados. No entanto, a prática de Guemilut Chassadim é um mandamento mais abrangente do que a Tzedacá, pois se podem realizar atos de bondade com qualquer pessoa, e não apenas com os pobres, e há várias maneiras de fazê-lo: visitando doentes, convidando alguém para vir à sua casa, oferecendo bons conselhos e ajudando a erguer a moral de quem está desanimado. Já a Tzedacá limita-se, em geral, à assistência financeira. Teshuvá (Torá), Tefilá (Avodá) e Tzedacá (Guemilut Chassadim) são os pilares do Universo e do judaísmo. Assumem particular importância nos dias em que o Todo Poderoso decide se os pilares do mundo são fortes o bastante para sustentá-lo por mais um ano. Pois, apesar de Rosh Hashaná ser uma data festiva – dois dias nos quais usamos nossas melhores roupas e fazemos refeições suntuosas – é também uma época de Julgamento Divino. Nessa data, o Rei do Universo julga e decide se renovará
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Natureza-morta com romãs. Reuven Rubin.Óleo sobre tela
Seu contrato com o mundo. No Ano Novo judaico, a Corte Celestial julga se o Universo merece viver por mais um ano. Se o mundo continuará a existir, não depende dos caprichos da Corte Celestial, mas do próprio mundo – depende da firmeza de seus pilares. Se nós, o Povo Judeu, pudermos demonstrar a D’us que esses três pilares estão realmente firmes – que fizemos nosso melhor para fortalecê-los – poderemos sair vitoriosos em Rosh Hashaná: poderemos garantir ao mundo não apenas mais um ano de existência, mas um ano de paz e fartura. Por outro lado, se negligenciarmos esses três pilares – se permitirmos que se enfraqueçam as fundações do mundo – tornar-se-á mais difícil merecer bênçãos Divinas. O destino do mundo – não apenas dos judeus, mas de toda a humanidade – apoiase nos ombros de cada um de nós, judeus.
O conceito dos três pilares do Universo é relevante não só em Rosh Hashaná, mas no dia-a-dia da vida judaica. Ao se dedicar à Torá, Avodá e Guemilut Chassadim, o judeu desempenha os três papeis que tem que cumprir para viver como ser humano verdadeiramente espiritual e justo: o papel de um Chacham, um Sábio; de um Navi, um Profeta; e de um Cohen, um Sacerdote.
Torá e Teshuvá A Torá é a Palavra de D’us. É um livro de leis e reconta importantes eventos na História Judaica antiga. No entanto, não se trata de um livro de História, e sim, de um trabalho de Autoria Divina e Sabedoria Divina. A palavra “Torá” deriva de Hora’á, que significa ensinamento. Cada mandamento e cada história da Torá contêm muitas lições relevantes à vida de cada um de 7
nós, judeus. Quando estudamos a Torá, não devemos apenas assimilar informações e aprender as Leis Divinas. Devemos também tirar lições sobre a melhor forma de viver a vida. Um dos principais propósitos do estudo da Torá é a aquisição de sabedoria. A sabedoria trata do aqui e agora – o mundo real, empírico, de todo dia. A Torá ensina que D’us criou o Universo com Sua Sabedoria e que, portanto, Ele o preencheu com leis científicas e morais. Assim como existe a lei da gravidade – e pobre daquele que a ignorar – há também certas leis morais no Universo que nenhum indivíduo em sã consciência deve violar. Aqueles que as mantêm, florescem; aqueles que as ignoram, fracassam. Ser sábio significa estar em sintonia com as leis morais do Universo. Ser sábio não significa ser instruído. Ser instruído setembro 2015
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“ensinamento”, mas também Or, “luz”. O Talmud se refere à Torá como Oraita – “luz”. Teshuvá significa “resposta” e, também, “retornar” (Shuva): retornar a D’us, à Sua Torá e à nossa própria essência. O conceito de Teshuvá é nossa resposta ao chamado Divino. Dia após dia, Ele faz a cada um de nós a mesma pergunta que fez a Adão após este ter comido o fruto proibido: “Onde estás?”. Essa pergunta é especialmente pertinente em Rosh Hashaná, quando cada indivíduo tem de prestar contas à Corte Celestial. A única resposta adequada, a Teshuvá de todo judeu, deve ser que ele está continuamente buscando retornar à Origem de Tudo e à Sua Sabedoria, que Ele transmitiu a nós. Machzor de Rosh Hashaná. França, c. 1300
significa possuir grande cabedal de informações, ao passo que ser sábio é saber viver a vida da melhor maneira possível. Uma pessoa com muitas informações pode ser tola, enquanto que uma pessoa não tão informada pode ser sábia. Esperamos que, estudando a Torá, os judeus se tornem não só um repositório de conhecimentos, mas também uma fonte de sabedoria. A Torá deve ajudar-nos a fazer uma avaliação mais realista do momento presente para que possamos tomar decisões prudentes acerca do futuro. Praticar sabedoria não significa absorver muitas informações ou raciocinar rápida e profundamente. Significa aprender a fazer melhores escolhas na vida. Como ensina o Talmud, sábio é aquele que pode prever as consequências de seus atos. Os seres humanos que vivem uma vida despida de sabedoria, mesmo
se inteligentes e instruídos, em geral tomam decisões que lhes podem ser altamente prejudiciais. Líderes que agem sem sabedoria podem causar muito sofrimento e destruição a si próprios e ao povo que têm sob sua responsabilidade. A Torá é a forma pela qual D’us compartilha Sua Sabedoria conosco: é o local propício para a realização da sabedoria. Portanto, não surpreende o fato de que quando muitos de nossos grandes líderes se viam diante de grandes dilemas, consultassem a Torá. Isso foi muito comum com o Rei David – o maior e mais exitoso de todos os reis judeus. Diz-se que quando um judeu ora, ele fala com D’us, e quando estuda a Torá, D’us a ele se dirige. Quando nos dedicamos a estudar a Torá, D’us fala conosco. Qual deveria ser nossa resposta? A Teshuvá, que, em hebraico, quer dizer “resposta”. A Torá e a Teshuvá se entrelaçam. Torá não só significa Hora’á, 8
Tzedacá e Guemilut Chassadim Por mais fundamental que a Torá possa ser para o mundo, é apenas um de seus três pilares. Ainda há outros dois. Isso significa que o judeu não pode ser um justo se tudo o que ele possui é sabedoria. Pois a sabedoria, ainda que seja adquirida por meio do estudo da Torá, que é Divina, não se traduz, necessariamente, em retidão de caráter. A pessoa pode ser dona de grande sabedoria e não a pôr em prática, ou o que é pior, usá-la para propósitos malignos. O judaísmo não faz segredos sobre o fato de que, em nossa história, muitos eruditos em Torá eram seres humanos maus e cruéis. A pessoa pode ser sábia e vil. Infelizmente, de tempos em tempos, lemos histórias sobre rabinos e eruditos religiosos, em Israel e na Diáspora, que se envolvem em atos desonestos e imorais. Isso leva as pessoas a se perguntarem: “Para que serve o estudo da Torá se não previne esse tipo de comportamento? ”. A resposta é
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que o homem pode ser sábio, um grande conhecedor da Sabedoria Divina, e, ainda assim, agir de forma desprezível. Pode-se estudar a Torá todos os dias, dia e noite; pode-se conhecer o Talmud de cor e entender profundamente o Zohar – e, ainda assim, comportar-se como um ser humano imoral e malvado. Pode-se partilhar da Sabedoria do Divino por razões egoístas e nunca atender honestamente ao chamado da Teshuvá. Assim como o mundo não se sustém sobre apenas um pilar – a Torá – o ser humano não pode viver uma vida de integridade e retidão se tudo o que possui é sabedoria – ainda que Divina. Portanto, cabe aos judeus não apenas se empenharem em adquirir sabedoria por meio do estudo da Torá, mas também procurarem viver como profetas, ainda que não o sejam e que provavelmente nunca venham a sê-lo. Diferentemente da sabedoria, que quase todos os seres humanos podem adquirir, quase ninguém pode tornar-se profeta. Trata-se de uma dádiva dos Céus, que muito poucos recebem. Contudo qualquer judeu pode emular os profetas. Os profetas não foram meramente homens e mulheres que receberam mensagens Divinas e as transmitiram ao povo. Eram visionários que desafiavam os demais. Incomodavam os complacentes. Estavam prontos a repreender a quem quer que fosse – sábios, outros profetas, sacerdotes e até os reis. Um profeta repreendia o povo por suas fraquezas morais. Na maioria das vezes, eles falavam sobre a moral, não sobre sabedoria. Falavam sobre justiça social – sobre a necessidade de se ter piedade e compaixão pelos demais. Os temas principais dos profetas eram a Tzedacá e Guemilut Chassadim.
Seu papel era fortalecer esses pilares do Universo. Raramente falavam sobre o cumprimento dos mandamentos diários. Falavam, sim, sobre as falhas do homem perante seus semelhantes. Sua principal tarefa era ensinar os princípios da retidão moral. Quando viam as pessoas agindo de forma complacente e insensível, alertavam: “Continuem a se comportar dessa forma e provocarão a ruína. Lembrem-se: a vida é como uma roda. Hoje, podem estar em cima, amanhã podem estar em baixo”. No entanto, os profetas não alertavam apenas sobre as catástrofes que se avizinhavam. Eram também a voz do consolo. Quando os demais choravam, eles os consolavam. Onde os demais viam apenas destruição e desespero, os profetas viam o renascimento e a glória.
Preocupavam-se intensamente sobre a maneira como honrar os seres humanos e sobre o relacionamento entre os homens e D’us. Falavam a verdade aos poderosos – sábios e reis – e também aos mandatários religiosos. Ensinavam que não podemos amar a D’us e a Sua Torá e odiar os seres humanos. Eles não se cansavam de repetir que era hipocrisia e futilidade oferecer sacrifícios no Templo enquanto se oprimia os demais. “D’us não atenderá tuas preces se não atenderes o grito dos que te cercam”, ensinavam. “Os pobres clamam e não ouves; chegará o dia em que tu clamarás e D’us não te ouvirá”. O profeta é a voz de D’us nos conclamando ao trabalho de redenção e fazendo da sociedade um lugar de justiça, de graça, de misericórdia e de generosidade.
As palavras cruciais para os profetas eram Tzedek e Mishpat – justiça social e legal – Chessed e Rachamim – bondade e misericórdia.
O Talmud ensina que ainda que não sejamos profetas, somos todos descendentes de profetas, devendo agir de acordo com essa ascendência. Devemos fortalecer o pilar de Guemilut Chassadim copiando os profetas, envolvendo-nos em atos de bondade, realizando Tzedacá na medida de nossas possibilidades e estimulando os demais a também fazerem-no. Devemos combater a complacência e a arrogância – dentro de nós e entre os outros – mas devemos também animar os que estão oprimidos: devemos consolar e fortalecer os desesperados. Ao praticar a justiça e a retidão moral, podemos evitar que a sabedoria que adquirimos com o estudo da Torá seja mal direcionada e mal empregada.
Caixa de Tzedacá em prata trabalhada, Polônia. Meados do séc.19
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Vemos, com frequência, judeus que estudam muito a Torá e são extremamente cuidadosos no cumprimento dos mandamentos Divinos referentes ao homem e a setembro 2015
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D’us – eles estudam e oram durante horas, conhecem de cor o Código de Leis Judaicas, o Shulchan Aruch, e são impecáveis no serviço a D’us. Mas, ainda assim, podem ser insensíveis e cruéis, injustos e arrogantes. Podem ter adquirido muita sabedoria, podem servir a D’us como se fossem o próprio Cohen Gadol – o Sumo Sacerdote – mas negligenciam a voz da profecia, que se recusa a silenciar. Ao fazê-lo – ao buscar a sabedoria e negligenciar a retidão – eles desonram o judaísmo, cometendo o maior dos pecados: Chilul Hashem – a profanação do Nome de D’us.
A Torá é a forma pela qual D’us compartilha Sua Sabedoria conosco: é o local propício para a realização da sabedoria.
Sobre essas pessoas, ensinam nossos Sábios: “Seria melhor se nunca tivessem nascido”. Se a pessoa ignora o pilar de Guemilut Chassadim – vivendo uma vida despida de retidão moral, de bondade e de generosidade – talvez fosse melhor que ignorasse também os dois outros pilares e não desonrasse o D’us de Israel, a Torá de Israel e o Povo de Israel.
Tefilá e Avodá Assim como nem todos podem ser profetas, tampouco todos podem ser um Cohen – um sacerdote. Apenas os descendentes de Aharon, irmão de Moshé e primeiro Cohen Gadol, do sexo masculino, podem ser um Cohen. Contudo, assim como todos nós, judeus, devemos emular os profetas ainda que provavelmente jamais nos tornemos profetas, devemos também emular os sacerdotes, apesar de que apenas um Cohen possa ser um deles. Na época do Mishkan – o Tabernáculo – e, mais tarde, do Beit HaMikdash, o Templo Sagrado de Jerusalém, os sacerdotes personificavam um dos pilares do Universo: Avodá – o serviço Divino. Enquanto a grande maioria do Povo Judeu dedicava a maior parte de seu tempo e empenho a assuntos mundanos, os sacerdotes (os Cohanim) realizavam a Avodá – o serviço Divino – dentro e fora do Templo Sagrado. Os Cohanim eram responsáveis pelos trabalhos do Templo e por realizar vários rituais e ritos religiosos. No entanto, após a destruição do Segundo Templo Sagrado 10
– uma crise praticamente sem precedente na História Judaica – os Sábios democratizaram o serviço do sacerdócio. Destituído de Templo e de sacrifícios, todo o sistema de Avodá se tornou parte da vida de todos os judeus. Ao orar, cada judeu se torna um sacerdote oferecendo um sacrifício e expiando por seus próprios pecados e pelos de seu povo. Cada sinagoga se tornou um fragmento do Templo Sagrado de Jerusalém. Assim, após a queda do Templo, os judeus realizaram a visão da Torá de se tornarem um “reino de sacerdotes e uma nação santa”. Um não-Cohen não se tornou um Cohen, mas muitas das responsabilidades que jaziam sobre os ombros dos Cohanim na época do Templo Sagrado hoje repousam nos ombros de cada um de nós, judeus. O mundo do sacerdote era diferente do mundo do sábio e do profeta. Seu mundo era um lugar estruturado e ordenado, de harmonia e plenitude. Para o sacerdote, existe uma ecologia biológica e também moral no mundo. O que ele entendia, devido à natureza de seu trabalho Divino, era que assim como o Universo tem uma estrutura física e biológica básicas, também tem uma estrutura moral básica criada pela Palavra e Vontade de D’us. Quando obedecemos às ordens Divinas, alinhamo-nos com essa estrutura, e o resultado são bênçãos. Por outro lado, quando desobedecemos às Suas ordens, o resultado é o oposto. Para o sábio, a principal virtude é a sabedoria – Torá (Teshuvá). Para o profeta, é a justiça e a compaixão – Guemilut Chassadim (Tzedacá). Para o sacerdote, é obediência e serviço: Avodá (Tefilá). Pois está escrito: “E Aharon e seus filhos fizeram todas as coisas que o Eterno ordenara por meio de Moshé” (Levítico 8: 36).
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Interior da Sinagoga Veiga Filho
Para o sacerdote, precisamos fazer tudo o que D’us nos mandou fazer exatamente como Ele ordenou. Para o sacerdote, vivemos para executar a Vontade de D’us. Quando a vontade do homem coincide com a Vontade Divina, a ordem está salvaguardada contra a onipresente ameaça do caos. A palavra-chave da ética sacerdotal não é “sabedoria”, como é para o sábio, nem “retidão moral”, como para o profeta. Mas, sim, “sagrado”, e seu texto principal é o capítulo 19 do terceiro livro da Torá, Levítico. Esse capítulo ordena que amemos nosso próximo e o estrangeiro, que não guardemos ódio em nosso coração e que não nos vinguemos. Ordena-nos, também, não semear os campos com diferentes sementes, nem usar roupa misturada de linho e lã; não comer frutos de uma árvore em seus primeiros três anos e não cortar o cabelo na lateral da cabeça.
As leis encontradas nesse capítulo de Levítico podem parecer aleatórias, sem nada em comum entre si. Isto porque a maioria de nós não entende o significado da santidade. Santidade não significa algo valorizado ou excepcional. Significa honrar a ordem Divina na criação, quer se refira à vida vegetal ou animal, ou às relações entre seres humanos. Para o sacerdote, a vida moral não é determinada apenas pela sabedoria (o Sábio) ou por empatia (o Profeta), mas também por honrar as distinções que D’us nos ensinou a ver na estrutura da realidade. Por exemplo, há o leite – símbolo da vida – e a carne – símbolo da morte – e os dois não podem ser comidos junto. Há a vida vegetal e a vida animal – e nós não devemos usar um artigo de vestimenta que contenha linho e lã. Isto é ontologia sagrada e cria uma ética da santidade: “Sê sagrado, porque Eu, o Senhor, teu D’us, sou Sagrado”. 11
Hoje já não existe o Templo Sagrado e são poucas as diferenças entre os mandamentos religiosos que cabem aos sacerdotes, os Cohanim, e ao restante do Povo Judeu. Isso significa que até a construção do Terceiro Templo Sagrado, o serviço Divino, a Avodá, é de responsabilidade de cada um de nós, judeus. Cada judeu deve viver como se fosse um sacerdote, entendendo que o judaísmo não reside apenas em sabedoria e bondade, mas também em santidade. O judaísmo não se manifesta apenas em quanto de Torá a pessoa estuda e quantos atos de bondade realiza, mas se manifesta também no cumprimento dos mandamentos de D’us. Já não temos um Templo Sagrado em Jerusalém, mas há sinagogas praticamente em toda parte. Sempre que possível – e não apenas em Rosh Hashaná e Yom Kipur – devemos empenhar-nos em ir ao Mikdash Me’at – o pequeno Templo – a sinagoga, e realizar nossa própria Avodá – nosso serviço setembro 2015
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Divino – por meio da Tefilá – o serviço do coração. Ensinam-nos nossos Sábios que um judeu que, pela manhã, ao acordar, faz Netilat Yadaim (o ritual de lavar as mãos), coloca os Tefilin e recita as orações matinais, é comparável a um Cohen que oferece um sacrifício no Templo. Aquele de nós que cumpre meticulosamente os mandamentos de D’us, vive como um Cohen. Aquele que diariamente invoca a D’us em suas orações, que diferencia entre o sagrado e o profano e que cumpre os mandamentos da Torá, tanto os positivos quanto os negativos, tornase um servo de D’us, porque vive sua vida de acordo à Vontade Divina. Como um sacerdote, esse judeu entende que a santidade não está apenas nas grandes ações, mas também nos pequenos detalhes. As ações diárias do ser humano têm enorme importância. Colocar Tefilin e orar são ações do serviço Divino de importância inestimável. Os inúmeros detalhes que regem a Lei Judaica – como rezar, como comer, como conduzir os negócios, como se relacionar e falar com os demais – permitem que um judeu viva em um plano mais elevado, como se fora um sacerdote que servisse em Jerusalém, na Casa de D’us. Como ensinou, certa vez, o Rabi Meir de Premishlan, grande mestre chassídico: “Aquele que está conectado Acima não cai abaixo”.
essas duas festividades. Em todos os dias de sua vida, um judeu deve empenhar-se em ser sábio, profeta e sacerdote. Não basta que o judeu viva como um profeta – fazendo atos de bondade e lutando pela justiça. O judeu que assim age é um bom ser humano – como qualquer outro, independentemente de nacionalidade ou religião, que realiza atos de bondade – mas ele não é, necessariamente, um bom judeu. Bondade e generosidade não são domínio exclusivo do judaísmo. Além disso, buscar a justiça e a generosidade destituídas de sabedoria pode levar a erros tolos e graves. Muitas revoluções, inclusive a que levou ao socialismo, na Rússia, começaram com boas intenções, mas resultaram em injustiças, sofrimento e morte de milhões. O inferno está, de fato, cheio de pessoas com boas intenções. Na vida, não basta ser bom. É preciso, também, ser sábio.
Além de adquirir sabedoria e conhecimento e praticar a bondade e a justiça, o judeu deve também realizar atos de santidade. Estudar a Torá e realizar muita Guemilut Chassadim não substituem a colocação de Tefilin ou o cumprimento dos outros mandamentos da Torá. Ser uma nação de sacerdotes e um povo santificado significa viver de acordo com as Leis de D’us: fazendo o que Ele nos pede e não fazendo o que Ele nos proibiu de fazer. O judaísmo nos ensina que o bem e o mal são fatos objetivos, não normas de nossa própria imaginação. É D’us, não o homem, quem determina o que é certo e o que é errado, próprio e impróprio, sagrado e profano. Há uma ética de santidade no mundo de D’us e esta consiste em fazer distinções, manter as fronteiras, honrar a ordem e restaurála quando for violada. Há boas ações e más ações; mitzvot e pecados. Até o estudo da Torá e a Tzedacá não conseguem ofuscar essa realidade.
A abordagem tríplice à vida judaica Assim como a existência do mundo se sustenta em seus três pilares – Torá, Avodá e Guemilut Chassadim, também os judeus devem viver uma vida baseada em Teshuvá, Tefilá e Tzedacá – não apenas em Rosh Hashaná, Yom Kipur e nos dias entre
Por outro lado, um sábio que seja cruel, injusto ou insensível, profana sua sabedoria. A sabedoria deve levar à bondade e esta deve seguir o caminho da sabedoria. Portanto, até o mais generoso dos judeus deve dedicar parte de seu tempo a estudar a sabedoria Divina – estudar o que significa ser judeu, estudar o judaísmo, aprender sobre D’us e sobre o que Ele espera de cada um de nós.
cartão de rosh hashaná, alemanha. final do século 19 - início do séc. 20.
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O judeu que é generoso e justo e que frequenta aulas de Torá na sinagoga, mas ignora os demais mandamentos do judaísmo, não está alcançando seu potencial completo. Dois dos três pilares de sua vida podem ser fortes, mas se um faltar, seu judaísmo está carente. Evidentemente,
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mishnê torá de maimônides, cópia de manuscrito, norte da itália, c. 1457 shofar de carneiro e menorá. Ben Shahn, 1958
todos nós temos nossos pontos fortes e fracos. Para algumas pessoas, mesmo dois pilares são mais fáceis de atingir do que um terceiro. Contudo, todos nós devemos empenhar-nos em fortalecer todos os três pilares em nossa vida pessoal, que, por sua vez, irão fortalecer os pilares do mundo.
O mês de Elul e os Dez Dias de Arrependimento No início de Elul, o mês que precede Rosh Hashaná, todo judeu deve fazer um Cheshbon HaNefesh: uma avaliação espiritual do ano que transcorreu. Muitas pessoas se concentram em pormenores – pequenos incidentes que ocorreram ao longo do ano – e não avaliam a sua vida como um todo. Muitos também fazem o erro de se comparar a outros, e dependendo contra quem eles se comparam, podem sentir-se complacentes ou desanimados.
Conduzir um verdadeiro Cheshbon HaNefesh significa fazer uma auto-avaliação honesta, de acordo com seu potencial. Considerando minha capacidade intelectual e o tempo disponível, estudei Torá e adquiri tanto de sabedoria quanto poderia ter feito? Considerando meus recursos financeiros e minha influência, fui generoso e justo como podia ter sido? Considerando meus conhecimentos sobre o judaísmo, cumpri seus mandamentos da melhor forma possível? Todos os judeus devem fazer-se essas perguntas, especialmente no mês de Elul e durante o período de Julgamento Divino, que se inicia em Rosh Hashaná e termina em Hoshaná Rabá. Independentemente de suas respostas a tais perguntas, todos devem decidir ter um melhor desempenho no próximo ano, pois em se tratando de sabedoria, bondade e santidade, sempre podemos e devemos melhorar. 13
Em Rosh Hashaná, D’us conclama todos os judeus à sinagoga para prestar contas do ano que termina. O destino do mundo depende de cada um de nós. Devemos, cada um de nós, aproximar-nos de D’us, em Rosh Hashaná, com um relatório positivo, dizendo que no ano que findou esforçamo-nos para fortalecer os três pilares do Universo, e que, portanto, nós, o Povo Judeu, e o mundo inteiro, merecemos não somente um outro ano de vida, mas que seja um ano de paz e plenitude. Mas isso ainda não é suficiente. Devemos também assumir a responsabilidade de que no ano que se inicia em Rosh Hashaná desempenharemos nossa missão no mundo com mais força e afinco do que em anos passados.
Bibliografia
Rabbi Sacks, Jonathan, Leviticus:The Book of Holiness (Covenant & Conversation 3) – The Toby Press setembro 2015
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Yom Kipur e o Poder do Perdão Por Rabino Gabriel Aboutboul
Yom Kipur é a oportunidade dada por D’us de virar a página de nossa vida e acreditar em nossa capacidade de melhorar. Devemos corrigir os erros, mas não nos tornarmos reféns do passado, incapazes de olhar para o futuro.
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urante os dias que antecedem Yom Kipur, o Dia da Expiação, recitamos antes das orações matinais as Selichot – os pedidos de perdão a D’us. Sempre nos referimos a essas orações no plural – Selichot – e não no singular, Selichá. Nossos Sábios explicam que isso significa que o pedido de perdão tem duas vias: não apenas pedimos perdão, mas, também, perdoamos. A quem precisamos perdoar? Às outras pessoas, a D’us e a nós mesmos. Na língua hebraica, há várias palavras que significam perdão. As preces de perdão foram chamadas de Selichot porque o valor numérico de Selach é 98, que é o número de maldições mencionadas na Torá. Isso para nos ensinar que o perdão tem o poder de transformar a maldição em bênção, neutralizando tudo o que há de negativo no mundo. Mas o que significa perdoar, de acordo com o judaísmo?
O que significa perdoar? Na Torá, há mandamentos que determinam tanto nossa relação com D’us quanto com relação a outros seres humanos. Consequentemente, há dois tipos de erros 14
que o homem pode cometer contra: D’us e contra seus semelhantes. O que significa pedir perdão a D’us pelos erros e transgressões cometidas contra Ele? Significa reconhecer que, ao longo do ano, nem sempre cumprimos Seus mandamentos. Em Yom Kipur, D’us pode perdoar-nos apenas por esse tipo de transgressões e não pelas faltas que cometemos contra outros seres humanos. E o que implica pedir perdão a uma pessoa? Não significa apenas dizer “Me perdoe”, apesar disto ser um bom começo. Pedir perdão implica procurar reparar o erro. Se tivermos prejudicado alguém financeiramente, devemos devolver o que devemos ou, no mínimo, admitir a dívida. Se tivermos denegrido a imagem de alguém, devemos tomar as medidas necessárias para redimi-la. (Vale ressaltar, porém, que quando ofendemos ou prejudicamos outra pessoa, é necessário um pedido de perdão duplo – tanto a ela quanto a D’us. Pois ofender, ferir ou prejudicar outra pessoa de qualquer forma é, também, uma transgressão dos mandamentos Divinos, que nos ordenam amar a todos, fazer o bem e nunca fazer mal a ninguém).
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yom kipur celebrado por judeus ashquenazitas, na sinagoga. bernard picart
Portanto, para se obter o perdão em Yom Kipur, precisamos procurar consertar nosso relacionamento tanto com D’us como com as outras pessoas. Porém, não adianta bater no peito e confessar os pecados, e esperar que D’us nos perdoe inclusive pelos erros que cometemos contra os outros. Para sermos perdoados desses erros, precisamos, antes do início de Yom Kipur, pedir desculpas àqueles que, de alguma forma, prejudicamos ou magoamos. Precisamos fazer de tudo para retificar nossos erros – tanto com atos como com palavras. A verdade é que cada um de nós precisa pedir perdão e também perdoar os outros. Assim como quem falhou com outra pessoa deve pedir perdão, cabe à pessoa que recebeu um pedido de desculpas perdoar, contanto que o pedido dela seja sincero e de fato faça
o possível para corrigir o erro cometido. Acima, mencionamos que há três tipos de perdão. Devemos perdoar as outras pessoas, devemos perdoar a D’us e devemos perdoar a nós mesmos. Para muitos, é mais fácil perdoar aos outros seres humano e a D’us do que a si próprio. Muitas pessoas se condenam por suas falhas e são incapazes de se perdoar. Esta inabilidade é algo negativo, pois nossa vida fica presa ao passado. O auto-perdão é uma demonstração de humildade, pois demonstra que reconhecemos que somos humanos e não infalíveis. A grandeza de Rosh Hashaná e Yom Kipur é que D’us instituiu um dia no qual temos a oportunidade de “virar a página”. Precisamos estar cientes de nossos erros – e fazer todo o possível para corrigi-los – 15
mas não podemos permitir que eles nos definam. Não podemos nos tornar reféns dos erros do passado, incapazes de olhar para frente. Yom Kipur não é o dia em que falamos para D’us que somos “inocentes”, e sim, em que admitimos nossa culpa. Mas é, também, o dia em que expressamos o desejo de melhorar. Assumir nossos erros já é parte integrante da obtenção do perdão. Há uma enorme diferença entre o que a pessoa é e o que ela faz. Fazer algo errado não significa ser errado. Um mau comportamento, uma má atitude não pode definir quem a pessoa é. Isso, evidentemente, não significa que nossos atos não sejam importantes e significativos. Significa que eles não podem nos definir: talvez erramos ontem, talvez erramos hoje, mas amanhã podemos agir corretamente. O fato de uma SETEMBRO 2015
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pessoa errar não significa que ela não deva ser perdoada ou que não possa modificar-se. Rabi Shneur Zalman de Liadi, o Alter Rebe, fundador do movimento Chabad-Lubavitch, explica o significado de um verso nos Salmos que, aparentemente, não faz sentido. Está escrito que “D’us nos perdoa para que possamos temê-Lo”. À primeira vista, esse conceito parece ser ilógico: se alguém sabe que será perdoado, deveria ter menos medo de pecar. O Alter Rebe explica esse verso com uma metáfora. Suponhamos que alguém tomou um grande empréstimo no banco para investir em um negócio. Infelizmente, não teve sucesso. Se o gerente do banco for exigir a devolução do empréstimo, além do pagamento de todos os juros, ele fará com que a dívida se torne impagável. Mesmo se o devedor quisesse pagar a dívida, não conseguiria. Consequentemente, ele não fará qualquer tentativa para devolver o dinheiro que tomou emprestado. Contudo, se o gerente do banco estiver disposto a negociar – se oferecer um plano viável para o devedor pagar o que deve –, haverá mais chance de o banco recuperar o empréstimo.
Um fenômeno parecido ocorre no relacionamento entre o homem e D’us. Se D’us fosse excessivamente exigente – se Ele cobrasse todo pecado cometido – romperíamos a relação com Ele: passaríamos a fugir Dele, a ignorá-Lo. O Eterno, então, propõe um acordo – Ele nos perdoa e facilita o pagamento de nossa dívida com Ele – para que seja possível manter o relacionamento. Muitas pessoas acreditam que perdoar é um sinal de fraqueza. Na realidade, é exatamente o oposto. A falta de perdão é sinal de fraqueza e insegurança enquanto perdoar é um ato de coragem, de força. Perdoar não significa dar permissão para que a pessoa volte a cometer o mesmo erro. Significa ter fé que a pessoa que errou não voltará a errar no futuro. Perdoar alguém significa acreditar nela. D’us nos perdoa porque Ele acredita em nós: Ele confia que nosso futuro será melhor que nosso passado. Em muitos casos, não conseguimos compreender por que alguém deveria merecer ser perdoado: por que deveria ter uma segunda ou até uma terceira chance. Daí ocorre que D’us nos faz passar por algo parecido – nós, também, acabamos falhando
– e clamamos por perdão – algo que não queríamos dar a outra pessoa. Muitas pessoas não querem perdoar os outros, mas a pergunta que se deve fazer a elas é: se fosse você que tivesse errado, você também gostaria de não ser perdoado? Nossos Livros Sagrados nos ensinam que D’us se comporta conosco da forma como nos comportamos com as outras pessoas. Se formos tolerantes com outros, Ele será tolerante conosco. Por outro lado, se formos excessivamente rigorosos com as outras pessoas, Ele será excessivamente rigoroso conosco. O Baal Shem Tov, fundador do Movimento Chassídico, ensinou que depois que a pessoa deixa este mundo, é ela própria que decreta seu próprio veredicto perante a Corte Celestial. Mostram a ela os atos de uma pessoa – sem revelar que se trata dela mesmo – e se lhe pergunta: “Qual deve ser o veredicto?”. Após a pessoa julgar o caso, é revelado a ela que se trata dela própria. Isso significa que as pessoas que estão acostumadas a julgar os outros favoravelmente acabarão julgandose favoravelmente perante a Corte Celestial. Por outro lado, aqueles que são demasiadamente rigorosos com os outros, arriscam-se a se autocondenar. Quando alguém é rigoroso demais, esse rigor acaba se voltando contra si próprio. O que impede o ato de perdoar ou de pedir perdão? Orgulho, arrogância e medo. E esses sentimentos estão entrelaçados. Muitas pessoas não pedem perdão às outras por motivo de orgulho: Por que eu deveria pedir perdão a tal pessoa? Afinal, sou muito mais importante, mais experiente, mais inteligente, mais bem-sucedido do que ela... O outro motivo é o
fivela de cinto em prata para yom kipur. polônia
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medo da resposta. Muitos temem não serem atendidos e que isso seja motivo de vergonha, ou seja, de orgulho ferido. Em Yom Kipur, pedimos perdão a D´us, mas, também, precisamos perdoar D’us. Conta-se a seguinte história sobre um grande mestre chassídico, o Rabi Elimelech de Lijensk. Na noite que antecede Yom Kipur, ele enviou um de seus alunos a certo botequim, para que este aprendesse o significado do perdão duplo. Ao chegar ao botequim, o aluno nota que o dono pede à sua esposa uma caderneta. Ela leva uma caderneta para o marido onde ele havia recordado, ao longo do ano, tudo que D’us fizera de errado com ele: todos os sofrimentos que ele tinha passado durante o ano. Após terminar de ler essa caderneta, ele pede à sua esposa uma outra caderneta onde ele havia escrito todos os pecados que ele fizera contra D’us, ao longo do ano. Após ler essa caderneta, o dono do botequim se dirige a D’us, diz “Le’Chaim” e toma uma dose de bebida. Aí, diz: “D’us, você me perdoa por tudo que eu fiz de errado com o Senhor ao longo do ano e eu O perdoo por tudo de mal que o Senhor fez comigo ao longo do ano”. Essa história pode fazer as pessoas sorrirem, mas é algo sério. Cada um de nós falha contra D’us ao longo da vida, mas todos nós temos, também, nossas chateações e ressentimentos em relação a Ele. Às vezes, brigamos com D’us, mesmo quando certas coisas acontecem em nossa vida que não têm nenhuma ligação com Ele. Por exemplo, brigamos com alguém na sinagoga, e deixamos de frequentá-la, ou algo não ocorre
ARON KODESH. ILYA SCHOR, 1904-1961. guache sobre papel cartão
como esperávamos e deixamos de colocar Tefilin. Em certos casos, porém, é justificado o sentimento de que D’us nos desapontou. Muitos de nós carregamos esse tipo de sentimento, principalmente, quando coisas difíceis acontecem ao longo do ano. Infelizmente, esse tipo de sentimento negativo acaba tomando conta de nosso coração. Yom Kipur é o período do ano em que devemos livrar-nos desse tipo de sentimento. Yom Kipur – e os dias que antecedem essa data – é a época do ano para abrir um espaço para D’us em nossa vida, mesmo se acharmos que Ele “não merece”: mesmo se acreditamos que Ele não foi “tão bom” conosco no ano que se passou. 17
Yom Kipur é o dia mais sagrado do ano. É o momento em que se revela a essência de nossa alma. Nesse dia, revela-se o nível de conexão essencial que existe entre nós e D’us. SETEMBRO 2015
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Muitas pessoas pensam, “Fiz tantas coisas boas e como é possível que D’us permitiu que tal coisa ruim acontecesse comigo ?”. Na realidade, nenhum de nós tem noção da Contabilidade Celestial e do que é, de fato, bom ou ruim para nós. De qualquer forma, vale ressaltar que mesmo esse tipo de ressentimento contra D’us é uma grande mostra de fé. Pois nós não nos zangamos com alguém em quem não acreditamos, tampouco nos chateamos com alguém de quem não esperamos nada de bom. As pessoas se chateiam com D’us porque acreditam Nele e esperam que Ele faça apenas o bem. Portanto, decepcionar-se com D’us é um sinal de grande fé, tanto na existência como na bondade infinita Dele. Mas apesar desses sentimentos serem um sinal de fé, precisamos removê-los do nosso coração, pois eles obstruem nosso caminho e nossa felicidade. Sentimentos de dor, raiva e ressentimento, mesmo que totalmente justificáveis, são um grande obstáculo para tudo de bom na vida. Sentir raiva é o mesmo que tomar um copo de veneno e desejar que outra pessoa morra. Quem se prejudica é quem sente raiva – não o objeto da raiva. Como então, lidar com a dor, principalmente quando ela é profunda? A forma de lidar com a dor é tentar enxergar as coisas de forma diferente.
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Yizkor (do hebraico “que Ele se lembre”) é o serviço judaico in memoriam pelos finados, executado quatro vezes ao ano - em Yom Kipur , Pessach, Shavuot e Sucot (em Shemini Atzeret ) - após a leitura da Torá na sinagoga, como lembrança pelos familiares mais próximos falecidos. Esta cerimônia fornece ao enlutado a oportunidade de rezar pela alma do falecido, de renovar seu próprio comprometimento espiritual e de contribuir para caridade para elevação da alma daquele que partiu.
disse a ele: “Moshé, nosso mestre. Um verso da Torá afirma, ‘Lembre-se o que Amalek fez para ti’. Outro verso diz: ‘Lembre-se do dia do Shabat para santificá-lo’. Como se cumprem ambos os versos? Um nos ordena lembrar e o outro, também. Moshé respondeu: “Um copo de vinho não é o mesmo que um copo de vinagre, mas esse é um copo e aquele também é um copo. Há a lembrança do Shabat e a lembrança de Amalek”.
Yom Kipur é o dia de lembranças. Nesse dia, lembramo-nos de Amalek (o arqui-inimigo histórico do Povo Judeu), do mal, do Holocausto, das perseguições, dos 10 mártires que foram assassinados por Roma. Em Yom Kipur, lembramo-nos de nossos entes queridos que não mais estão entre nós. Quando nos lembramos desses entes queridos, podemos lembrar a dor causada pela perda e pela ausência ou podemos nos lembrar dos momentos alegres com eles. Quando se recita o Hashkabah ou Yizkor1 em Yom Kipur e lembramos as almas que partiram deste mundo, devemos nos lembrar dos momentos preciosos que passamos com elas e do privilégio de as termos tido entre nós. O Midrash nos ensina o seguinte: Quando Moshé Rabenu ensinou ao Povo de Israel o verso da Torá, “Lembre-se o que Amalek fez quando você saiu do Egito”, o povo 18
Esse Midrash contém lições profundas. O vinagre é um derivado do vinho, mas este é doce e aquele é azedo. Ambos, o vinho e o vinagre, advêm da uva e ambos são bebidos em um copo. Na vida, temos a opção de beber um copo de vinho ou de vinagre. Tudo depende de como enxergamos as coisas, como lidamos com as lembranças. Isso é uma lição muito importante para esta e para as futuras gerações de judeus. Evidentemente, elas precisam aprender sobre a dor que nosso povo passou, as perseguições, o Holocausto. Mas também precisam aprender que o judaísmo é um copo de vinho e não de vinagre. Quando o pai traz o filho à sinagoga, deve ser não apenas em Yom Kipur, mas em Simchat Torá também, para que o filho aprenda que o judaísmo não se restringe a orações e jejuns, mas é, também, um modo de vida baseado na alegria. De fato, um dos fundamentos da Torá é o mandamento de servir a D´us com alegria. Mas para poder viver com alegria, precisamos aprender a perdoar. Precisamos perdoar a D’us, as outras pessoas e a nós mesmos.
Uma história verídica Cabe relatar uma história verídica, que expressa as ideias transmitidas acima.
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Em certa ocasião, um judeu religioso, um rabino, estava viajando pela British Airways para Nova York. Ao lado dele, estava sentado um homem que, após o avião decolar, vira-se para ele e diz “Shalom”, e revela, também, ser judeu. Ambos passam a conversar e descobrem que ambos estão a caminho de Israel. O rabino, que estava viajando para passar Rosh Hoshaná e Yom Kipur em Israel, começa a falar de religião, mas o judeu sentado ao lado dele diz “Não me fale de D’us. Tenho raiva Dele. Não posso perdoá-Lo pelo o que Ele me fez”. Este homem, que tinha 70 anos de idade, havia passado pelo Holocausto. Ele teve um filho, mas tinha sido separado dele durante a guerra e presumia que havia morrido. Disse ao rabino que nunca perdoaria D’us por lhe ter tirado seu filho. O rabino pergunta: “Por que então você vai a Israel?”, e o homem responde, “Não quero saber de D’us, mas o Povo Dele é ótimo. Não existe lugar no mundo como Israel”. O rabino tenta convencer o homem a ir à sinagoga, em Israel, durante as Grandes Festas – diz que a sinagoga que frequenta em Israel é pequena, mas possui um ótimo chazan”. O homem se recusa. Dias mais tarde, o rabino está em Israel. É Yom Kipur. Após a leitura da Torá, ele sai da sinagoga, durante o curto intervalo em que é recitado o Yizkor. Ele vai a uma pracinha e nota que há alguém fumando: é o seu amigo da viagem. Ele se aproxima dele e tenta convidá-lo à sinagoga. “Venha rezar um pouco,” diz o rabino. Mas o homem se recusa. O rabino diz o seguinte, “Pelo menos entre para recitar o Yizkor pelo seu filho. Sim, você brigou com D’us, mas por que seu filho deveria sofrer por isso? Todos serão lembrados no
coroa de torá em prata. JACOB HENDRIK HELWEG, AMSTERDã, 1887
Yizkor – seu filho deveria ser um deles”. O homem responde que por seu filho faria tudo, inclusive ir à sinagoga para o Yizkor. Era uma sinagoga pequena. E por ser pequena, havia o costume de que quem quisesse, podia ir ao chazan, dar o nome do falecido e o próprio chazan recitava o nome da pessoa cuja memória seria lembrada. Ao entrar na sinagoga, esse senhor se aproxima do chazan que lhe pergunta o nome do filho. Quando o chazan ouve o nome, ele olha para esse senhor, fica pálido e grita em iídiche: “Pai!” Durante muitos anos, esse senhor pensou que seu filho havia morrido no Holocausto. Na realidade, seu filho havia sobrevivido, imigrara para Israel e se tornara um judeu religioso. Ele manteve as tradições que aprendeu com o pai – a mesma 19
pessoa que desde a guerra não queria mais se relacionar com D’us. Se o pai nunca tivesse entrado em uma sinagoga em Yom Kipur – se não tivesse dado essa “brecha” para D’us – ele passaria o restante da vida acreditando que seu filho havia morrido. No momento em que ele deu uma chance a D´us e entrou na sinagoga em Yom Kipur, mesmo que fosse apenas para recitar Yizkor pelo seu filho, ele reencontrou aquilo na vida de mais caro, que ele acreditava ter perdido. Essa história, além de verídica, serve também como metáfora. O pai da história é D’us e todos nós somos Seus filhos. Yom Kipur é o dia em que nos reencontramos: em que Ele e nós descobrimos que Ele não nos perdeu. Yom Kipur é o dia em que vamos à sinagoga para dizer a D’us que ainda estamos juntos e que assim continuaremos, SETEMBRO 2015
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onde vivam. Se todos os filhos não puderem comparecer, o pai prefere que não haja festa. Yom Kipur é o dia em que nosso Pai deseja que todos os Seus filhos venham à sinagoga. É por esse motivo que antes de se iniciarem as orações em Yom Kipur, o chazan recita uma frase, “Anu Matirim”, afirmando que todos, mesmo aqueles que cometeram grandes pecados e renunciaram ao judaísmo, podem rezar juntos na sinagoga naquele dia. Pois nesse momento, o Pai convoca todos os Seus filhos. Ele não quer apenas alguns deles – os que se comportaram bem. Ele quer todos eles.
“O DIA DO PERDÃO”, ÓLEO DE JACOB KRAMER, 1919
eternamente. Mas como na história relatada acima, esse nível de ligação e conexão com D´us só é alcançado quando retiramos de nós sentimentos negativos contra Ele, contra outras pessoas e contra nós mesmos. Yom Kipur é o dia mais sagrado do ano. É o momento em que se revela a essência de nossa alma. Nesse dia, revela-se o nível de conexão essencial que existe entre nós e D’us. Nesse dia do Perdão não interessa o que fizemos, e sim, o que somos. Ao tomarmos consciência de quem somos, torna-se possível expressar a essência do nosso ser. Por que as pessoas que não vão à sinagoga o ano inteiro fazem questão de ir em Yom Kipur? Há judeus que praticamente não cumprem nenhuma mitzvá, mas jejuam em
Yom Kipur. A única explicação é que em Yom Kipur, o dia mais importante do ano, revelamos quem, na verdade, somos. Nesse dia, é revelado que nossa conexão com D’us é atemporal e independente de nossas ações. Em Yom Kipur, nós nos sentimos conectados com D’us, com a comunidade judaica e também com as almas dos falecidos. É na sinagoga que recitamos o Yizkor e nos lembramos dos falecidos, porque no Mundo da Verdade, as almas desejam ser lembradas em um lugar sagrado – na sinagoga. Yom Kipur é, portanto, um dia de amor: amor a D’us e amor às outras pessoas – as que se encontram conosco e as que estão no Mundo da Verdade. Sabe-se que quando um pai deseja fazer uma festa de aniversário, ele quer que todos os seus filhos estejam presentes, independentemente de 20
Em Yom Kipur, recita-se o “Avinu Malkenu” – “Nosso Pai, nosso Rei”. O Baal Shem Tov transmitiu um ensinamento a respeito dessa prece, que nos ajuda a ter uma percepção bastante diferente a respeito do Yom Kipur. De fato, é um dia em que somos julgados. Por que, então, é um dia de tanta alegria, felicidade e união? Porque o Juiz é o nosso Pai. Diz-se que nunca se sabe o que pode sair da cabeça de um juiz, mas se o Juiz é o próprio Pai, podemos ficar tranquilos. D’us é nosso Rei, que nos julga, mas antes de ser Rei, Ele é Pai. Por esse motivo, falamos Avinu Malkenu, não Malkenu Avinu. E um pai é sempre misericordioso e bondoso com seus filhos. Yom Kipur é o Dia da Expiação, o Dia do Perdão. Pedimos perdão a D’us e perdoamos aos outros, mas só podemos perdoar a D’us quando sabemos que Ele é nosso Pai, pois quando é nosso Pai quem fala, ouvimos apenas bênçãos.
Rabino Gabriel Aboutboul é um renomado palestrante, autor e rabino atuante no Rio de Janeiro.
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Algumas leis relacionadas com Yom Kipur Neste ano, Yom Kipur se inicia no dia 22 DE SETEMBRO, TERÇA-feira, às 17:45h, e termina na noite do dia 23 DE SETEMBRO, ÀS 18:30H. .
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ostuma-se fazer caparot – abate de um galo, para um homem, e de uma galinha, para uma mulher, no dia 9 de Tishrei de madrugada, 22 de setembro, por um shochet qualificado. Também é possível cumprir este costume com dinheiro, doando-o para tzedacá. É proibido jejuar no dia que precede Yom Kipur, mesmo se este jejum for por Taanit Halom. É, ao contrário, uma mitzvá fazer uma refeição adicional. A refeição que antecede o jejum deve ter pão e pratos de fácil digestão e ser concluída 20 minutos antes do pôr-do-sol. Bebidas alcoólicas são proibidas. As mulheres devem acender as velas antes de ir à sinagoga, dizendo a bênção “Lehadlik Ner Shel Shel Shabat Veshel Yom HaKipurim”. Se a mulher quiser locomover-se de automóvel ou usar o elevador antes do início de Yom Kipur, deverá, antes de acender as velas, fazer uma ressalva dizendo que não está
recebendo Yom Kipur com o ato de acendimento das velas. É, porém, necessário antecipar o recebimento de Yom Kipur para antes do pôr-do-sol. É costume os pais abençoarem os filhos, pedindo que estes sejam selados no Livro da Vida e que, em seus corações, permaneça sempre o amor a D’us. Convém também ir à sinagoga antes do pôrdo-sol, para poder participar do Kol Nidrei, a “anulação dos votos”.
Restrições durante Yom Kipur Yom Kipur é o Shabat dos Shabatot e, portanto, todo trabalho profano deve cessar e todas as leis do Shabat devem ser respeitadas. Assim como no Shabat, é proibido carregar sobre si qualquer objeto durante Yom Kipur. Além de observar as leis do Shabat, em Yom Kipur outras cinco restrições são acrescidas: “Não comer, não beber, não trabalhar, não se lavar e nem massagear a 21
pele (perfumes, cremes etc.), não calçar couro, não ter relações conjugais”. O jejum diz respeito tanto aos homens quanto às mulheres, mesmo grávidas ou amamentando. Só em caso de doença ou onde haja algum perigo à vida, o jejum pode ser suspenso (consulte seu rabino). As crianças de 9 a 10 anos podem jejuar algumas horas, e, a partir dos 11 anos, conforme avaliação dos pais, podem jejuar o dia todo. Mas o jejum tornase obrigatório aos 12 anos, para meninas, e aos 13, para meninos. O uso de sapato, sandálias ou tênis de couro é proibido tanto para homens como para mulheres. As crianças também devem ser orientadas neste sentido. Ao término de Yom Kipur, a Havdalá deve ser feita sem bessamim, e a Bênção da Luz deve ser feita sobre uma vela que permaneceu acesa desde o dia anterior. SETEMBRO 2015
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Hoshana Rabá O sétimo e último dia da festividade de Sucot é Hoshana Rabá - a “Grande Salvação”. É o dia final do Julgamento Divino, quando é determinado o destino do ano iniciado 20 dias antes. Hoshana Rabá – 210 dia do mês judaico de Tishrei – é o dia em que D’us finaliza o veredicto assinado em Rosh Hashaná e selado em Yom Kipur.
E
nsina o Midrash que D’us disse a nosso patriarca Avraham: “Se a expiação não for concedida a seus filhos em Rosh Hashaná, Eu a darei em Yom Kipur. Se eles não a conseguirem em Yom Kipur, esta lhes será dada em Hoshana Rabá”. O profeta Isaías, falando em nome de D’us, declara: “Eles me procuram dia (após) dia”. O Talmud de Jerusalém (Tratado Rosh Hashaná 4:8) explica que esses dois dias são Rosh Hashaná – o dia em que o julgamento Celestial se inicia – e Hoshana Rabá – o dia em que termina. O Zohar, obra fundamental da Cabalá, ensina que Hoshana Rabá é o dia em que o veredicto de Yom Kipur é finalmente selado e os pergaminhos contendo os decretos são entregues aos anjos que os distribuem. Consequentemente, Hoshana Rabá assume especial importância como um dia de oração e arrependimento. Os comentaristas esclareceram da seguinte forma a metáfora de “anjos, pergaminhos e selos” empregada pelo Zohar para explicar o que ocorre em Hoshana Rabá. Poderemos melhor entender o Reino de D’us se compararmos seu procedimento com o de um governo humano. Quando um rei misericordioso emite um 22
julgamento sobre seus súditos, ele busca formas de evitar puni-los. Eles podem ter violado a lei, podem ter-se revoltado contra seu regime, mas talvez haja circunstâncias atenuantes. Talvez os infratores sintam algum remorso, e isso seria uma garantia de que terão melhor comportamento no futuro, especialmente porque os erros passados lhes ensinaram lições que lhes ajudarão a construir um futuro melhor. Se o rei, ao examinar os autos do caso, encontrar razões para clemência, ele pode anular a acusação e declarar a inocência do réu. Mesmo em caso contrário, ainda há esperança: o réu pode ter testemunhas que se apresentem em sua defesa. É sensato que o rei postergue sua decisão: sempre há tempo para condenar e punir, ao passo que uma decisão apressada pode ser irrevogável. Portanto, o rei aguarda, paciente. O tempo passa, e se ele acabar encontrando razões para clemência, emitirá sua decisão de absolvição. Ainda que haja muitas evidências contra o réu e o veredicto lhe seja desfavorável, o rei ainda assim adia sua sentença. Como o veredicto não entra em vigor até que seja inscrito, selado e entregue, existe a possibilidade de que o réu possa demonstrar que ele, que se opôs à vontade do rei, agora se tornou um servo leal. Por exemplo, suponhamos que o rei mande um mensageiro à casa do condenado
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SINAGOGA PORTUGUESA DE AMSTERDÃ DURANTE HOSHANA RABÁ, GRAVURA DE BERNARD PICART, 1725
e o mensageiro o encontre extremamente envolvido em servir ao rei, cumprindo, com devoção, suas leis. O mensageiro retorna e diz ao monarca: “Certamente ele era culpado, mas hoje é outro homem”. O rei concorda em anular o veredicto. O Reino Celestial funciona de modo semelhante. A analogia não é precisa: D’us é onisciente e não necessita mensageiros para saber o que fazemos, dizemos ou pensamos. Contudo, apesar de sua imprecisão, a analogia ajuda porque transmite a ideia de que D’us não pune automática ou imediatamente. Primeiro assina, depois sela o destino, e só depois entrega Seus decretos. O Todo Poderoso dá ao ser humano tempo de mudar seu comportamento, possibilitando assim alterar seu destino. Em Rosh Hashaná, a Corte Celestial julga
todas as pessoas. Os justos são julgados favoravelmente e aqueles que estão em falta têm até Yom Kipur para se arrepender. Se não o fizerem, o veredicto desfavorável é selado, mas ainda não é entregue. Isso só ocorre em Hoshana Rabá – o último dia da festa de Sucot – o dia quando os judeus se reúnem para orar, suplicar e cumprir mandamentos da Torá. A festa de Sucot, que dura sete dias, é alegre – é chamada de Zman Simchatenu (época de nosso júbilo), mas é, contudo, uma oportunidade para que o Povo Judeu influencie os decretos Divinos assinados em Rosh Hashaná e selados em Yom Kipur. E Hoshana Rabá é a conclusão e culminação do período de Julgamento Celestial iniciado em Rosh Hashaná. Assim sendo, é um dia de importância espiritual extraordinária. É a oportunidade 23
final para os judeus, individual e coletivamente, fornecerem amplas razões a D’us para anular quaisquer pergaminhos que contenham sentenças severas.
Dia do Salgueiro Quando existia o Primeiro Templo Sagrado de Jerusalém, na festa de Sucot, os Cohanim (sacerdotes) costumavam colocar galhos de salgueiro, Aravot, ao redor do Altar, voltados sobre o mesmo. Os sacerdotes tocavam o Shofar, davam uma volta em torno do Altar, tendo nas mãos Arbaat Haminim – as Quatro Espécies de Sucot (Lulav, Etrog, Hadass e Aravá), e invocavam as súplicas “Ana, Hashem, Hoshia Na. Ana, Hashem, Hatzlicha Na” (Ó, D’us, traz-nos salvação. Ó, D’us, traz-nos sucesso). No último dia de Sucot, o dia de Hoshana Rabá, os Cohanim davam sete voltas em torno do Altar. SETEMBRO 2015
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Com a queda do Templo Sagrado, esse serviço cessou, temporariamente. Após a construção do Segundo Templo, retomou-se o serviço, ampliando-o. Os profetas Haggai, Zecharia, e Malachi, que eram membros da Grande Assembleia, instituíram o costume de que em Hoshana Rabá, os judeus podiam cumprir esse mandamento mesmo fora do Templo. Derrubado o Segundo Templo Sagrado, nossos Sábios decretaram que, como cada sinagoga e casa de estudo é um Mikdash Me’at – um Santuário em miniatura, os serviços que eram realizados no Templo, nos sete dias de Sucot, seriam realizados em todas as sinagogas. A partir de então, abria-se a Arca Sagrada e retiravam-se os rolos da Torá, que eram levados à Bimá – o pódio de onde se lê a Torá, na sinagoga. Os homens da congregação, com as Quatro Espécies nas mãos, davam voltas em torno da Bimá, onde já estava a Torá, e oravam pedindo a ajuda Divina. O conceito de dar voltas ao redor de um rolo da Torá baseia-se em um ensinamento de um Sábio talmúdico, Rabi Chiya, que dizia que um representante da congregação segurando um rolo da Torá é equivalente ao próprio Altar do Templo Sagrado (Yalkut Tehilim, 730). Já no tempo de Rabi Saadia Gaon e do Rabi Chai Gaon, esse costume era muito difundido. Maimônides (o Rambam) escreveu que todas as comunidades judaicas rodeavam a Bimá em cada dia de Sucot em comemoração aos dias em que tínhamos o Templo, e que, no sétimo dia dessa festa (Hoshana Rabá), batia-se no chão com um feixe de Aravá, assim como
se fazia no Templo durante a época do Primeiro Reinado e em toda a Terra de Israel na época do Segundo Reinado. As orações que recitamos durante as voltas em torno da Bimá são chamadas de Hoshanot, porque seu refrão constante – reminiscente do que era usado no Templo – é Hoshana, que significa “salva, por favor”. Os poetas judeus medievais, especialmente o Rabi Elazar HaKalir, compuseram várias orações belíssimas, em acróstico, para cada dia do serviço de Hoshanot, mas o tema central de todas é a súplica, constantemente repetida, “Hoshana!”
O serviço das Hoshanot Realizamos o serviço de Hoshanot durante os sete dias de Sucot (exceto no Shabat), como parte das orações matinais. Muitas comunidades o realizam logo após as preces de Hallel; outras a realizam após a leitura da Torá ou após a oração de Mussaf.
O serviço de Hoshanot se inicia com a retirada de um rolo da Torá da Arca Sagrada. Este é levado e colocado sobre a Bimá ou é carregado por um membro da congregação. Os outros homens presentes na sinagoga rodeiam a Bimá, portando as Arbaat Haminim. A razão para as voltas em torno da Torá é porque após a destruição do Templo, a Torá nos traz expiação como o Altar o fazia, no passado. Antes de rodear a Bimá, onde está colocada a Torá, seguram-se as Quatro Espécies juntas, apertandoas contra o coração. O Chazan (cantor litúrgico) recita em voz alta as seguintes frases e a congregação repete em seguida: “Salva-nos, rogamos-Te: Em Teu nome, nosso D’us, salva-nos, rogamos-Te. “Salvanos, rogamos-Te: Em Teu nome, nosso Criador, salva-nos, rogamosTe. “Salva-nos, rogamos-Te: Em Teu nome, nosso Redentor, salva-nos, rogamos-Te. “Salva-nos, rogamosTe: Em Teu nome, Tu que nos buscas, salva-nos, rogamos-Te”. A seguir, circunda-se a Bimá, no sentido anti-horário, recitando a liturgia específica das Hoshanot para o respectivo dia de Sucot, que se encontra no livro de orações, o Sidur. Depois de dar uma volta, terminase de ler o restante das Hoshanot. Continua-se segurando as Arbaat Haminim até o momento em que o Chazan inicia o Kadish (algumas sinagogas o fazem até depois do Kadish).
inspeção do ETROG. MAURYCY TREBACZ 1861-1941. óleo sobre tela
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Em Hoshana Rabá, sétimo dia de Sucot, dá-se sete voltas em torno da Bimá, como o faziam nossos antepassados no Templo, nesse dia. Durante as primeiras seis voltas, repetem-se as Hoshanot dos seis primeiros dias anteriores da
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festividade. Na sétima e última volta, recitam-se as preces adicionais de Hoshana Rabá. Ao término das súplicas das Hoshanot, em Hoshana Rabá, quando os rolos da Torá já estão de volta na Arca Sagrada, o Chazan recita o Kadish. A seguir, há um costume antigo, também instituído pelos profetas Haggai, Zecharia e Malachi, e, como dissemos acima, encontrado nos escritos do Rambam, de se tomar os ramos de salgueiro, as Aravot, recitar um trecho especial e batê-las contra o chão. Segundo uma tradição cabalista, juntam-se os cinco ramos de Aravot para suavizar os “cinco rigores” celestiais. Esses ramos também são conhecidos como Hoshanot. É costume que todos – homens, mulheres e crianças – realizem esse ritual. Não se deve usar um feixe de salgueiro que já foi usado por outra pessoa; cada membro da família deve ter o seu próprio. Após usar o feixe, muitos têm o costume de jogá-lo acima da Arca Sagrada, o Aaron HaKodesh. Esse costume de bater com o feixe de cinco Aravot no chão tem grande significado místico.
Outros costumes de Hoshana Rabá À luz da importância espiritual desse dia, muitas comunidades costumam permanecer acordadas na noite de Hoshana Rabá. Recitam todo o Livro de Deuteronômio – o quinto livro da Torá, que expõe os preceitos do amor e reverência a D’us. Após a meia-noite, recita-se todo o Livro dos Salmos. Em algumas congregações, é costume que o Gabai, o administrador da sinagoga, distribua maçãs aos congregantes, como símbolo de um bom ano para todos. Levadas para casa, as frutas
festa dos tabernáculos (Sucot), Marc Chagall. c. 1916
são mergulhadas no mel e comidas na Sucá. No dia de Hoshana Rabá, comese uma refeição festiva na Sucá. Esse último dia de Sucot é a última ocasião em que se recita a bênção por comer na Sucá, já que o mandamento bíblico de morar nas cabanas dita que isso seja feito durante sete dias. No entanto, muitas comunidades que vivem fora da Terra de Israel continuam comendo na Sucá na festa que se segue imediatamente – Shemini Atzeret. No entanto, não dizem a bênção por estar comendo nas cabanas.
Aravá: elemento mais humilde das Quatro Espécies Hoshana Rabá é conhecido como “o dia de bater o Aravá”. O auge dos serviços de Hoshanot é o bater do feixe de cinco Aravot no chão. Por que Hoshana Rabá – último dia de Sucot, dia tão importante ao ponto de ser comparado a Yom Kipur – é associado com o salgueiro, Aravá? 25
Lembremo-nos que um dos principais mandamentos da festividade de Sucot se refere às Quatro Espécies. Cada uma destas simboliza um tipo diferente de judeu. O Lulav (a folhagem da palmeira) representa o erudito em Torá; Hadáss (o mirto), o judeu que pratica muitas ações boas; o Etrog (o citro), o judeu que estuda a Torá e pratica muitos atos de bondade, ao passo de que o Aravá (o salgueiro) representa o judeu que nem estuda muito a Torá nem cumpre muitos mandamentos. O Aravá, aparentemente, é o menos importante entre as quatro espécies; simboliza aquilo que um judeu não deve ser. Como, então, explicar que seja o protagonista de Hoshana Rabá, entre as demais? Por que tomamos o feixe de salgueiros e não um feixe das outras três espécies, como antídoto contra os rigores celestiais? A razão para tal é que em sua simplicidade e humildade, o Aravá triunfa sobre as outras três espécies. Em muitos casos, a humildade a tudo supera. Nossos Sábios explicam SETEMBRO 2015
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que o maior obstáculo entre o homem e D’us é o nosso ego. O Aravá – por ser o menos importante das Quatro Espécies – simboliza a antítese do ego. A Torá aponta que Moshé Rabenu, o maior líder e profeta judeu dentre todos, a maior alma que já veio ao mundo, foi o homem mais humilde que já existiu. Foi sua humildade – sua total falta de ego – o que lhe fez chegar a tão grandes elevações espirituais. Em Hoshana Rabá, o feixe de Aravá tem um papel central porque simboliza a humildade, essência desse dia. D’us eleva aqueles que aperfeiçoam sua humildade pessoal. Em Hoshana Rabá – data em que os Cohanim rodeavam o Altar do Templo Sagrado sete vezes – o Aravá nos lembra o ensinamento de nossos Sábios: “Aquele que traz um
sacrifício animal recebe recompensa por ter trazido um sacrifício animal. Aquele que traz um sacrifício de refeição (a oferenda de farinha) recebe recompensa por ter trazido um sacrifício de refeição. Mas quem é humilde é considerado como se tivesse trazido todos os sacrifícios, pois está escrito: “O verdadeiro sacrifício ao Eterno é o coração contrito; o Eterno jamais desprezará um coração angustiado e pleno de arrependimento” (Salmos, 5119; Talmud, Sanhedrin 43b). O judeu personificado pelo Aravá, o modesto e humilde salgueiro, em virtude de sua humildade e falta de ego, eleva-se espiritualmente cada vez mais alto. Hoshana Rabá, o Dia do Julgamento Final, ensinanos que se pudermos dobrar nosso ego e aceitar o jugo Divino, poderemos influenciar a Corte
Celestial a anular qualquer decreto negativo e nos abençoar com um ano bom e doce.
As Hoshanot e as sete Sefirot da Emoção Um dos ensinamentos centrais da Cabalá diz respeito às Sefirot – energia Divina que D’us usa para criar e manter o Universo. As dez Sefirot – três intelectuais e sete emocionais – são as bases de toda a Criação. A alma humana contém todas elas. As três relacionadas ao intelecto são Chochmá (Sabedoria), Biná (Compreensão) e Da’at (Conhecimento). As sete ligadas à emoção são Chessed (Bondade, Generosidade, Expansividade), Guevurá ( Justiça, Disciplina, Restrição), Tiferet (Misericórdia, Beleza, Equilíbrio), Netzach (Vitória, Ambição, Eternidade), Hod (Glória, Humildade, Submissão), Yessod (Estrutura, Carisma, Conectividade) e Malchut (Realeza, Liderança, Supremacia). Vimos no artigo “A Cabalá de Sucot” (Morashá, Edição 69 setembro de 2010) que os sete dias da festa de Sucot correspondem às sete Sefirot da emoção. O primeiro dia da festa é associado à Sefirá de Chessed; o segundo dia, à de Guevurá; o terceiro, à de Tiferet, e assim por diante. Sucot – festa de nosso júbilo – é a época em que cada um de nós, judeus, refina os poderes emocionais de sua alma: torna-se mais generoso (Chessed); mais disciplinado (Guevurá); mais equilibrado (Tiferet); mais determinado (Netzach); mais humilde (Hod); mais inteligente emocionalmente (Yessod) e mais nobre (Malchut).
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Em cada dia de Sucot (excetuando-se o Shabat), enquanto damos voltas em torno da Bimá e recitamos as orações de Hoshanot, mencionamos, explícita ou implicitamente, uma Sefirá da emoção. Em Hoshana Rabá, último dos sete dias de Sucot, damos sete voltas: nas seis primeiras, repetimos as passagens recitadas nos seis primeiros dias da festa – que correspondem às seis primeiras Sefirot emocionais. Então rodeamos a Bimá uma sétima vez e recitamos as passagens referentes a Hoshana Rabá, cujo tema é a sétima e última delas – a Sefirá de Malchut. A Cabalá ensina que esta Sefirá de Malchut absorve e inclui as outras seis Sefirot da emoção, pondo-as, então, em ação. Em outras palavras, Malchut é a materialização dos planos teóricos. É esta Sefirá que absorve e canaliza para o mundo as demais: Chessed, Guevurá, Tiferet, Netzach, Hod e Yessod. Hoshana Rabá, portanto, é o sétimo dia e a somatória dos seis dias anteriores de Sucot. Simboliza a perfeição dos sete atributos emocionais da alma humana. A Torá espera que até Hoshana Rabá tenhamos aperfeiçoado nossa habilidade de usar nossas sete Sefirot emocionais. Sabemos perfeitamente que a maioria de nossos erros e transgressões na vida são decorrentes de algum problema emocional. Para viver sábia e produtivamente, precisamos aprender quando dar e quando refrear, quando ser contundente e quando ser submisso, como relacionar-nos com os demais e como influenciá-los. Refinando nossas qualidades emocionais, podemos viver uma vida melhor. O homem geralmente sofre e erra porque sua mente e seu coração estão em perene guerra entre si.
Ao aperfeiçoar nossas Sefirot emocionais, podemos alinhar nossas qualidades intelectuais e emocionais e, assim, viver uma vida de paz interna, integridade, propósito, virtude e bondade. Devemos celebrar Sucot e, particularmente, Hoshana Rabá – ponto alto dessa festa de sete dias – com a conscientização de que apesar de ser uma época de júbilo, é também uma época de auto aperfeiçoamento, para que o período de Julgamento Divino, iniciado em Rosh Hashaná, somente traga decretos Celestiais positivos. No último dia do Julgamento, o dia da “Grande Salvação”, nós, o Povo Judeu, temos a oportunidade de transmitir a D’us que além de ter expiado nossos pecados em Yom Kipur, também refinamos nossa alma e modificamos o que estava errado, e que nossas ações futuras serão melhores do que as passadas. Hoshana Rabá representa o ponto culminante de todas as nossas preces e empenho espiritual, iniciados em Rosh Hashaná. Por essa razão, é o dia final do Julgamento Divino. Nesse dia, devemos concentrar-nos na 27
Sefirá de Malchut, tendo em mente que a mesma contém as outras seis Sefirot da emoção, sendo o veículo que permite a cada um de nós fazer mudanças positivas e permanentes neste nosso mundo. CuriosidadE: No dia 1o de outubro de 1946, após 216 sessões no tribunal, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg proferiu seus veredictos sentenciando os líderes do Partido Nazista à morte pela forca. A data da execução (16 de outubro de 1946) caiu em Hoshana Rabá, (21 de Tishrei) – o dia em que D’us sela os veredictos de Rosh Hashaná para o ano seguinte.
Bibliografia
Rabi Scherman, Nosson, Hoshanos – The Hoshana Prayers, The Artscroll Mesorah Series Adilman, Binyomin, The High Humble Willow - Hoshana Rabbah – www. chabad.org SETEMBRO 2015
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A VIAGEM DOS CONDENADOS POR ZEVI GHIVELDER
No dia 30 de janeiro de 1933, Franklin Delano Roosevelt completou 51 anos de idade. Em menos de um mês seria eleito presidente dos Estados Unidos. No mesmo dia, Adolf Hitler tornou-se o chanceler da Alemanha. Seis anos mais tarde, no oceano que separava estes dois homens, navegou um navio chamado St. Louis, abarrotado por refugiados.
O
Führer alemão arquitetou e executou contra o Povo Judeu um genocídio alheio aos mais elementares valores e princípios da civilização ocidental. O presidente americano tratou-os com um comportamento ambíguo e até hoje controverso.
Naquele final dos anos 1930, os Estados Unidos estavam dispostos a aceitar exatamente 25.957 imigrantes oriundos da Alemanha. Mas, desse total, qual seria o número de judeus? Eleanor, a mulher de Roosevelt, era solidária com relação aos refugiados judeus. O presidente, porém, temia a reação da maioria da opinião pública americana, que não queria acolher “essa gente”, além do fato de boa parte dos funcionários do governo explicitarem seu antissemitismo. De qualquer maneira, a pergunta tinha duas respostas. A primeira dependia da emissão de vistos que deveriam ser concedidos pelos diplomatas americanos que serviam em Berlim e outras grandes cidades da Alemanha. A segunda dependia das diretivas do recém-implantado regime nazista, que impunha toda a sorte de dificuldades para os judeus que pretendiam emigrar, incluindo o confisco de seus bens e a cobrança de taxas exorbitantes,
em moeda forte, para as permissões de saídas. Além disso, nenhum imigrante poderia partir com mais de 1 dólar no bolso. No dia 3 de maio de 1939, o navio de passageiros St. Louis, pertencente à Hamburg-America Line, chegou à Alemanha, vindo dos Estados Unidos, comandado por Gustav Schroeder, um homem do mar, com 37 anos de experiência em viagens transatlânticas. Era uma pessoa correta que, no decorrer dos últimos seis anos, não aceitava filiar-se ao partido nazista embora sofresse frequentes pressões nesse sentido. Ele foi chamado para uma conversa com o diretor da companhia naval, de nome Holthusen, que começou a distrair-lhe com banalidades até chegar ao que de fato pretendia: “Você vai levar o St. Louis com cerca de mil passageiros, todos refugiados, para Cuba, o que é uma coisa formidável em face da crise financeira que o país está atravessando”. Schroeder indagou quem eram os viajantes e recebeu a seguinte resposta: “São apenas judeus que não querem mais viver na Alemanha, nada fora do comum. Mas este é um assunto sobre o qual lhe aconselho a não fazer muitas perguntas. Só posso adiantar que em Havana você será recebido por um dos nossos funcionários, chamado Robert Hofman, a 28
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o St. Louis rodeado por navios menores, em hamburgo
quem entregará uma encomenda”. Schroeder deixou o escritório do diretor convicto de que este não lhe tinha passado as informações mais importantes. Naquele mesmo dia, em Havana, o tal Hofman estava sendo vigiado por agentes americanos a serviço da Inteligência Naval Militar, do Departamento de Imigração dos Estados Unidos e do FBI, todos sob o comando do coronel Ross Rowell, da Inteligência Naval. No dia seguinte, em seu escritório na embaixada americana em Cuba, Rowell enviou um comunicado para Washington informando que uma agente nazista chegaria em breve a Havana, vinda do canal do Panamá, com a missão de encontrar-se com o dito alemão e entregar-lhe um pacote. Àquela altura, Rowell já possuía elementos sobre a rede de espionagem instalada pelo regime
nazista em Cuba, compreendendo cerca de sessenta agentes que, na eventualidade de um conflito, já estariam perto da costa americana. Em um de seus relatórios oficiais, enfatizou: “O elemento de contato dos espiões chama-se Julius Otto
comandante Gustav Schroeder
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Ott, que não logrei apurar se é suíço ou alemão, proprietário do restaurante Swiss Home”. Rowell só não sabia que o dito pacote continha papéis e microfilmes com informações pormenorizadas sobre locais a serem sabotados nos Estados Unidos caso estourasse uma guerra por iniciativa da Alemanha. O restante das informações secretas e complementares chegariam a Cuba no navio St. Louis e seriam entregues pelo comandante Gustav Schroeder. No dia 13 de maio de 1939, o navio St. Louis acolheu em Hamburgo 936 homens, mulheres e crianças (há fontes que citam o número 937). Desse total, 930 eram judeus, em cujos passaportes estavam impressos em vermelho uma grande letra “J”, referência a Jude (judeu, no idioma alemão). Assustados desde os dramáticos acontecimentos da Noite dos Cristais, seis meses antes, além SETEMBRO 2015
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atenções e cortesias por parte da tripulação, que incluía alguns ferrenhos a adeptos do nazismo. Mas, em função, dos regulamentos marítimos internacionais, estes não ousavam desrespeitar quaisquer ordens superiores. A viagem através do oceano Atlântico transcorreu na mais absoluta tranquilidade com os passageiros tendo acesso às chaises longues do convés e a excelentes refeições.
o ex-governador de nova york, alfred e. smith, no madison square garden, em protesto contra a perseguição nazistas aos judeus. 27 de março de 1933
de frequentes medidas de caráter antissemita, aqueles judeus haviam decidido deixar a Alemanha para sempre. À custa de muito dinheiro e sacrifícios, tais como se despojarem de todos os seus bens e abdicarem de suas profissões e ocupações, tinham obtido vistos de entrada para um país distante chamado Cuba. Dali, julgavam, tomariam diferentes destinos, mas tendo como ponto final e preferencial os Estados Unidos. Com essa finalidade, 734 deles já tinham preenchido formulários exigidos pela imigração americana e poderiam entrar no país de três meses a três anos depois de aportarem em Cuba. De qualquer maneira ainda lhes restava uma sombria dúvida. Depois de terem pagado 262 dólares pela passagem (volumosa quantia naquela época), além do custo dos vistos, foram obrigados a desembolsar mais 181 dólares a título de uma espécie de seguro caso o governo de Cuba impedisse seu desembarque, embora os vistos contivessem a assinatura do coronel Manuel Benites, diretor do Departamento de Imigração de Cuba. Esses vistos lhes tinham sido entregues pela Hamburg Line, que os comprara por uma quantia ridícula
do Coronel Benites e os havia revendido ao custo de 150 dólares por pessoa, contabilizando um lucro expressivo. Dentre os passageiros do St. Louis encontravam-se judeus proeminentes. Um deles era o famoso advogado Max Loewe, que lutara pela Alemanha na 1ª Guerra Mundial, tendo sido condecorado por heroísmo. Ele estava com a mulher, a mãe, e dois filhos adolescentes. Viajava, também, o artista plástico Moritz Schoenberger, celebrizado pelos cartazes que concebera para os filmes alemães produzidos pela empresa UFA. O rabino Gelder, de 67 anos de idade, ansiava por encontrar na América seus dois filhos que já tinham emigrado. A senhora Feinchfeld, de Breslau, levava seus quatro filhos com idades de um a onze anos. O marido estava à espera de todos em Nova York. Por ordem do comandante Schroeder, os passageiros não eram tratados como refugiados, mas como passageiros comuns, que haviam comprado suas passagens e, portanto, mereciam todas as 30
Antes que o navio chegasse a seu destino, o comandante começou a receber telegramas que aludiam à frágil validade dos vistos repassados pela empresa de navegação. Isto se deveu à ação de antissemitas cubanos instigados pelos agentes nazistas infiltrados no país. Logo essa informação correu entre os passageiros, que foram ficando ansiosos e deprimidos. Durante os jantares a bordo, os viajantes eram entretidos pelo comediante Max Schlesiger, de Viena, que, em face do ambiente reinante no navio, interrompeu suas apresentações. Os menos preocupados, pelo menos na aparência, eram aqueles 734 que haviam preenchido os papéis americanos. Achavam que, mesmo se o St. Louis fosse obrigado a retornar à Europa, estariam sob a proteção das leis de imigração dos Estados Unidos. A atmosfera no navio ficou tão carregada que um de seus mais importantes passageiros, o professor Moritz Weller, sofreu um infarto e morreu. Os judeus insistiram em que seu corpo fosse acomodado no frigorífico da embarcação para que, uma vez em terra, tivesse um funeral judaico. Schroeder invocou as leis marítimas, segundo as quais um corpo inanimado deveria ser jogado ao mar. A revolta dos refugiados foi quase incontrolável. Schroeder, então, valeu-se de um argumento
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que não comportava contestação: a existência de um cadáver a bordo poderia concorrer para que as autoridades cubanas impedissem a atracação do navio. O corpo do professor foi jogado ao mar tendo o próprio Schroeder proferido um emocionado elogio fúnebre. No dia 27 de maio o St. Louis chegou ao porto de Havana. Ninguém teve permissão para desembarcar, nem as pessoas que se encontravam no cais puderam subir 1 ao navio. Os judeus que aguardavam familiares e amigos alugaram pequenos botes e margearam o transatlântico, na esperança de que, protegidos pela escuridão noturna, alguns se atirassem na água e nadassem ao seu encontro. Os cubanos, entretanto, instalaram poderosos holofotes em torno do navio e essa arriscada fuga tornou-se impossível. Entretanto, 28 passageiros obtiveram permissão para desembarcar. Desconfiados dos vistos sob responsabilidade da Hamburg Line, eles haviam contratado advogados na Europa que lhes obtiveram documentos adicionais emitidos pelo Departamento do Tesouro e pelo Departamento do Trabalho do governo cubano. Outros seis que escaparam, foram um casal cubano que retornava de uma viagem de lua de mel na Europa e quatro turistas espanhóis. A bordo permaneceram 908 judeus. As autoridades cubanas alegaram que seus vistos tinham origem ilegal e assim careciam de validade. Além disso, argumentavam que Cuba, uma pequena ilha, já tinha recebido desde a segunda metade da década de 1930 milhares de imigrantes (2.500 dos quais eram judeus), muito mais, em proporção, do que países muito maiores e muito mais ricos. O drama do St.
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refugiados judeus embarcam no st. louis. hamburgo, maio, 1939
Louis chegou às páginas de todos os jornais do mundo, notadamente dos Estados Unidos, que ressaltavam o perigo com que se defrontavam os refugiados judeus caso fossem obrigados a retornar à Alemanha. Apesar de atento à imprensa, o presidente Roosevelt nada fez para aliviar o sofrimento dos refugiados do St. Louis. Por essa razão, diversos segmentos da sociedade americana, judeus e não-judeus, até hoje acusam seu presidente de ter permanecido indiferente à sorte dos judeus europeus que viriam a ser assassinados no Holocausto. No entanto, um livro lançado em novembro de 2014, da autoria de Richard Breitman e Allan J. Lichtman, isenta Roosevelt de tal comportamento. Os autores afirmam que os refugiados do St. Louis só conseguiram embarcar rumo a Cuba graças a importantes medidas tomadas pelo governo americano. Quando Roosevelt tomou conhecimento da ocorrência da Noite dos Cristais (novembro de 1938), ordenou que o Departamento de Estado entrasse em contato com diversos países latino-americanos, 31
pedindo-lhes que dessem acolhida aos judeus perseguidos pelo nazismo. Roosevelt, inclusive, teve um encontro pessoal com o segundo homem do governo cubano, porém o mais influente, chamado Fulgencio Batista, que lhe prometeu total colaboração. Mas não foi de graça. Por conta da sua aquiescência, Batista conseguiu que o governo americano diminuísse as tarifas referentes às operações comerciais do açúcar importado de Cuba, além de obter por parte de Washington ajuda militar e tecnológica. O fato de Batista não ter cumprido o acordo firmado com Roosevelt não chega a admirar em face do seu caráter pouco confiável. Tornado ditador de Cuba, anos mais tarde, ele acabou sendo deposto por Fidel Castro, em 1959. Há um outro livro, intitulado Refugees and Rescue, de 2009, escrito por James McDonald, que foi assessor de Roosevelt para todos os assuntos referentes aos refugiados. O autor afirma que, já em abril de 1938, o presidente elaborou um plano segundo o qual os judeus perseguidos na Alemanha SETEMBRO 2015
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nazista seriam absorvidos por dez nações democráticas e até pediu ao Congresso um orçamento de 150 milhões de dólares a título de compensações para os países que os recebessem. Era uma quantia fabulosa e McDonald afirma que ouviu de Roosevelt o seguinte comentário: “Não se trata de dinheiro, trata-se de seres humanos”. O autor afirma que o plano do presidente teve de ser abandonado porque, em 1940, a prioridade dos Estados Unidos era a segurança nacional e não ações humanitárias. Mas, a posição americana, vista pelo aspecto humano, não apagava a frustração dos refugiados do St. Louis que avistaram, nas proximidades da Flórida, embarcações da guardacosteira americana e tiveram a esperança de que estas fariam algum tipo de intervenção em seu favor. No dia 29 de maio, a entidade beneficente americano-judaica Joint ( Joint Distribution Committee) enviou dois representantes a Havana. Eram a assistente social Cecilia Razovsky e um famoso advogado de Nova York, Lawrence Berenson, presidente da Câmara de Comércio Cubano-Americana e amigo pessoal de Fulgencio Batista, àquela altura posicionado como chefe do Estado Maior do exército de Cuba. Cecília garantiu às autoridades locais que, se os judeus pudessem desembarcar, o Joint cuidaria de seus alojamentos e refeições até que pudessem partir para outros países. Em um encontro com Batista, o advogado Berenson comprometeu-se a fazer uma doação de 125 mil dólares ao governo cubano, como garantia de que os passageiros, uma vez em terra firme, não se tornariam dependentes da economia do país. De bordo do navio, Schroeder solicitou uma audiência com o presidente de Cuba, Laredi Bru,
mas não foi atendido. No telegrama enviado ao chefe do governo, o comandante havia advertido, com todo o respeito, que se o St. Louis tivesse que retornar para a Europa, um número incerto de refugiados poderia optar pelo suicídio. Mas, Bru aceitou receber Berenson para uma conversa inútil: nenhum judeu tocaria o solo cubano. Disse que tinha simpatia pelos refugiados, mas não aceitava a intermediação dos vistos pela Hamburg Line porque aquele expediente atentava contra a dignidade de seu governo. Enquanto isso, o passageiro Max Loewe, cortou os pulsos, foi socorrido e levado para um hospital em Havana. Sua mulher e filhos não tiveram permissão para acompanhá-lo. Ele só reencontrou a família anos mais tarde, na França. No dia 1º de junho, o presidente Bru assinou um decreto ordenando que o St. Louis levantasse âncora e navegasse até doze milhas além do porto de Havana, caso contrário seria conduzido à força pela marinha cubana. Era o tempo que Berenson, bastante otimista, precisava para orquestrar a entrega dos dólares prometidos. Em contato telefônico com a sede do Joint em Nova York, Berenson foi informado de que, segundo a avaliação do Departamento de Estado, aquelas pessoas que haviam preenchido 32
formulários para a obtenção de vistos não se enquadravam nas leis americanas de acolhimento de imigrantes. Berenson ainda tentou oferecer mais dinheiro (500 mil dólares) ao governo cubano e acabou enredado numa disputa entre Bru, candidato a um novo mandato, e Batista, também candidato à presidência. Nos dias seguintes, Berenson sofreu as mais repugnantes chantagens e manobras escusas, inclusive ameaças físicas, das quais acabou se descartando e regressou para os Estados Unidos. No dia 2 de junho o St. Louis partiu para Hamburgo, às onze horas da manhã. O comandante Schroeder, ciente de um novo encontro de Berenson com Bru, no dia 4, cuidou de ganhar tempo navegando na direção de Miami. Ali o navio passou a ser monitorado pela lancha da guarda-costeira americana de número 244, incumbida de impedir que algum passageiro se aventurasse a nadar até a costa. A imprensa americana continuou publicando reportagens sobre o drama do St. Louis. No jornal The Richmond Times Dispatch, o bispo James Cannon Jr. escreveu: “A indiferença com relação a esses judeus, que vivem um momento de extrema angústia, é uma desgraça para a história americana e cobre nossa nação com uma mancha de vergonha”. No dia 6 de junho, às 23 horas e 40 minutos, sem receber qualquer notícia por parte de Berenson, o comandante Schroeder decidiu partir rumo a Hamburgo. Um comitê formado pelos refugiados enviou um telegrama ao presidente Roosevelt dizendo que dentre os 907 passageiros do navio mais de 400 eram mulheres e crianças. Não obtiveram resposta. Mandaram, então, outro telegrama para a sede
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1. passageiros do st. louis se preparam para desembarcar no porto de antuérpia, 17 de junho de 1939 2. membros da família dublon no deck do st. louis, 22 de maio de 1939 3. passageiros do st. louis a bordo do rhakotis, a caminho da inglaterra, chegam ao porto de southampton, 26 de junho de 1939 4. dr. josef joseph, lilly joseph, morris troper e liesl joseph depois que st. louis retornou à antuérpia, 17 de junho de 1939
do Joint: “Em grande desespero pedimos sua ajuda para desembarcar em Southampton ou receber asilo da benevolente e nobre França”. Em Paris, o representante do Joint, Morris Troper, tinha acumulado uma série de telegramas recebidos do escritório central em Nova York. Estes diziam: “Imigração fechada na Colômbia”. “Nada de positivo no Chile”. “Situação política conturbada no Paraguai. Nada”. “Argentina receptiva, porém resultado incerto”. Troper entrou em contato com o ministro da justiça da Bélgica, que, após consultar o primeiro-ministro, deu sinal verde para o desembarque de 200 refugiados. Em seguida, falou com a responsável pelo comitê de refugiados da Holanda. A Rainha Guilhermina permitiu, então, o acolhimento de 194 passageiros.
O representante do Joint estabeleceu contatos com as autoridades da Grã Bretanha, Portugal e Luxemburgo. Não lhe disseram que sim, mas também não lhe disseram que não, razão pela qual enviou um telegrama para Schroeder: “Talvez tenha boas notícias em 36 horas”. O comandante seguiu curso para Hamburgo, porém, de propósito, da forma mais lenta possível. Em Paris, Troper encontrou-se com Louise Weiss, secretária do Comitê Central de Refugiados, que, por sua vez, recorreu ao ministro das relações exteriores da França. Enquanto esses conluios se desdobravam, Troper recebeu um telegrama informando que a Grã Bretanha aceitava receber 250 refugiados. Isto fez com que os franceses concordassem com 33
igual número. No fim das contas, 214 judeus ficaram na Bélgica, 181 na Holanda e 224 na França. Às vésperas de receber os 250 destinados à Inglaterra, o Subsecretário britânico do Interior declarou, numa entrevista coletiva: “Estamos dando um exemplo, mas não estamos abrindo um precedente. Não há mais lugar para refugiados em nosso país”. Os judeus restantes no St. Louis se viram obrigados a descer em Hamburgo, no dia 20 de junho, e enfrentar os mais incertos destinos. A passageira Gerda Blachmann, nascida em Breslau, foi para o interior da Alemanha, se disfarçou como camponesa, junto com a mãe. Ambas conseguiram atravessar a fronteira para a Suíça. Ali trabalharam como SETEMBRO 2015
SHOÁ
de idade, Messinger fora passageiro do St. Louis e descera na Bélgica junto com os pais. Em setembro, eles embarcaram num trem oriundo de Antuérpia rumo à França.
sr e sra. Morris Troper (centro) com refugiados judeus no deck do st. louis
operárias numa fábrica de tecidos e emigraram para os Estados Unidos em 1949. A viúva polonesa Klara Gottfried Reif, um filho e uma filha encontraram refúgio em Paris até a normalidade de suas vidas ser devastada pela invasão nazista. Eles deixaram a capital francesa e se esconderam na pequena cidade de Limoges. Um ano depois, seus parentes que moravam nos Estados Unidos tiveram a sorte de resgatálos e levá-los via Portugal para Nova York, onde Liane, filha de Klara, completou seu doutorado em química. No dia 1º de setembro de 1939 eclodiu a 2ª Guerra Mundial. Por este motivo, só ficaram a salvo os judeus acolhidos na Inglaterra. Os outros, após as invasões nazistas nos países que os tinham abrigado, acabaram sendo deportados junto com as demais populações judaicas para campos de concentração, onde a maioria encontrou a morte em câmaras de gás. Dez anos depois do fim do conflito, o comandante Gustav Schroeder recebeu uma condecoração do governo da Alemanha Ocidental por sua corajosa e impecável conduta. Ele morreu em janeiro de 1959, aos 74 anos de idade.
O último país a negar ajuda ao St. Louis foi o Canadá. Por isso, em janeiro de 2011, foi inaugurado no Museu Marítimo da cidade costeira de Halifax, na província da Nova Escócia, um memorial em homenagem aos refugiados daquele navio, criado pelo arquiteto israelense David Libeskind. O memorial, uma grande instalação à feição de um tambor e contendo dezenas de fotografias, recebeu o significativo nome de Roda da Consciência. Dentre as centenas de pessoas presentes à solenidade, encontrava-se um prestigioso médico canadense chamado Sol Messinger, então com 74 anos. Aos sete anos
O comboio foi bombardeado por aviões alemães e Messinger nunca mais se esqueceu do peso de sua mãe sobre ele, para livrá-lo dos explosivos. A família conseguiu chegar ao sul da França, de onde partiu para o outro lado do Atlântico, pouco depois de parte dos judeus de Vichy terem sido conduzidos para campos de concentração. Em Halifax, o doutor Messinger declarou aos jornalistas: “Que brilhante simbolismo! Neste mesmo porto de Halifax, que fechou as portas para os judeus do St. Louis, ficará para sempre um monumento em sua memória”. É pouco provável que o comandante Schroeder tenha entregado os documentos secretos para o espião nazista sediado em Havana, porque em nenhum momento pisou o solo de Cuba e ninguém obteve permissão para subir a bordo. Ross Rowell foi um dos mais destacados pilotos da marinha militar americana durante a guerra, tendo sido promovido a general e recebido uma série de condecorações por bravura. Morreu em 1947. É preciso acentuar que todos os acontecimentos referentes à malograda viagem do St. Louis se desenrolaram durante três meses e dezessete dias antes do início da 2a Guerra Mundial. A perspectiva histórica evidencia que o St. Louis foi o prenúncio do Holocausto.
Bibliografia
Thomas, Gordon e Morgan-Witts, Max, “Voyage of the Damned”, editora Coronet Books, EUA, 1976.v ZEVI GHIVELDER é escritor E JORNALISTA
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bibi, obama e o acordo nuclear POR jaime spitzcovsky
Após uma crise iniciada em 2002 e de uma rodada de negociações com 20 meses de duração, as potências globais, reunidas no grupo P5+1, e o Irã anunciaram, a 14 de julho em Viena, um acordo sobre o programa nuclear de Teerã.
P
ara os arquitetos da iniciativa, entre eles o presidente Barack Obama, trata-se de um momento histórico e um passo para evitar uma guerra. Para os críticos, entre eles o primeiro-ministro Benyamin Netanayahu, um erro de proporções catastróficas, responsável por fortalecer um país que defende a destruição de Israel e patrocina grupos terroristas. Assim que o acordo foi anunciado, começou uma batalha política tendo o Congresso norte-americano como palco. O presidente Obama, sabedor da polêmica envolvendo a estratégia, concordou em buscar a aprovação de senadores e deputados para o acordo, num cálculo arriscado. As duas casas legislativas abrigam hoje maioria da oposição, e a Casa Branca espera contar com votos republicanos para aprovar o acordo e compensar a perda de apoio entre alguns parlamentares democratas. A votação deverá ocorrer a 17 de setembro, fim do prazo de 60 dias que o Congresso dispõe para estudar o acordo. Até a decisão, intensa movimentação política produziu um embate claro entre o presidente Obama e os opositores ao acordo, liderados por Netanyahu e por parlamentares republicanos.
No olho do furacão, um documento de mais de 150 páginas, conhecido como Acordo de Viena e produzido em arrastadas e tensas negociações entre o regime teocrático iraniano e o P5+1, formado por Estados Unidos, China, Rússia, França, Reino Unido e Alemanha. A premissa básica do acordo repousa sobre a ideia de o Irã recuar de suas ambições nucleares em troca do fim de sanções econômicas internacionais, responsáveis por asfixiar nos últimos anos a economia do país. O desemprego atinge a taxa de 20% e a indústria petrolífera, por exemplo, enfrenta sucateamento pela dificuldade em importar tecnologias mais modernas. Com bomba atômica, o regime de Teerã se tornaria uma ameaça maior não apenas a Israel, cuja destruição prega abertamente. Países árabes sunitas também protagonizam com o Irã xiita uma disputa por liderança no mundo muçulmano e por hegemonia no golfo Pérsico, ponto vital para escoamento da produção petrolífera da região e, portanto, nevrálgico para economia global. Frear ambições nucleares iranianas também desponta como sinal importante para avançar políticas globais de nãoproliferação de armas atômicas. 35
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as potências globais reunidas com john kerry, secretário de estado americano
No entanto, foi com Hillary Clinton à frente da diplomacia dos EUA, no primeiro mandato de Obama, que a ideia começou a ganhar contornos mais concretos. Nas últimas décadas, devido aos fatores terrorismo e petróleo, o Oriente Médio despontou como foco privilegiado. A meteórica ascensão da China e o dinamismo das economias como Índia e Indonésia, entre outras, levaram a Casa Branca a tentar acelerar a transferência do “pivô” a paragens asiáticas.
Tais ameaças levaram à formação de uma coalizão entre as potências globais, com o objetivo de pressionar o governo dos aiatolás. Porém, no grupo, evidenciaram-se também estratégias distintas, já que Rússia e China defendiam uma linha de enfrentamento mais moderada com o Irã, pois temem o país com armas nucleares, mas não querem comprometer o relacionamento comercial existente com Teerã.
Segue a lógica da Casa Branca: transformar a Ásia em prioridade para ações diplomáticas, comerciais e militares dos EUA implica diminuir presença no Oriente Médio, a fim de drenar recursos para atuação no novo “pivô”. O presidente Obama acredita também que uma melhora nas relações com o Irã seja fundamental para diminuir tensões na região e permitir à Casa Branca deslocar recursos políticos e militares rumo à Ásia.
A liderança no P5+1, apesar das diferenças, coube aos EUA, que não têm relações diplomáticas com o Irã desde a Revolução Islâmica de 1979, que depôs o xá Reza Pahlevi e levou o aiatolá Khomeini ao poder. E Barack Obama, na reta final do seu segundo mandato, elegeu como uma de suas prioridades a obtenção de novas relações com seus adversários históricos, Cuba e Irã. O acordo histórico com os irmãos Castro veio em dezembro. Restava o intricado tema nuclear. Ao tentar escrever seu legado na arena diplomática, Obama apostava em deixar a marca de presidente que terminou a Guerra do Iraque. Mas o surgimento do Estado Islâmico inviabilizou a estratégia da Casa Branca. Cuba e Irã passaram a
ocupar mais destaque na agenda de Washington, o que se evidenciou nos últimos seis meses. Obama também pretende inscrever nos anais da Casa Branca a ideia de ter sido o presidente responsável por transferir o “pivô” da política externa de seu país do Oriente Médio para a Ásia. No jargão da diplomacia, a expressão se refere ao foco principal, para receber mais atenção dos estrategistas do Departamento de Estado e do Pentágono. A ideia de mudar o “pivô” permeou diversas administrações anteriores.
Com essa lógica na pasta, Obama se transformou no primeiro líder norte-americano, desde 1979, a ter um contato direto com um dirigente iraniano. Conversou com o presidente do Irã, Hassan Rouhani, por telefone, em 2013. E colocou nas mãos de seu secretário de estado, John Kerry, a tarefa de liderar as espinhosas negociações. O acordo de Viena foi construído sobre alguns pilares básicos. Um deles é o “breakout time”, expressão usada para descrever o tempo consumido entre o Irã decidir fazer a bomba atômica e ter o artefato pronto. A maioria das estimativas aponta que o regime teocrático conseguiu montar uma infraestrutura, com usinas, centrífugas e armazenamento de
hillary clinton
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urânio, que coloca o país, caso “aperte o botão para obter a bomba”, a dois ou três meses de seu objetivo. No acordo anunciado a 14 de julho, uma dos pontos é levar o “breakout time” a um ano. Ou seja, diminuir a infraestrutura nuclear do país a fim de deixar um intervalo de doze meses entre o governo dos aiatolás ordenar a produção e obter as primeiras peças prontas. Concretamente, o Irã se compromete a diminuir número de centrífugas e abrir mão de parte significativa de seu estoque de urânio enriquecido, matéria-prima para a bomba atômica, enviando-o a um terceiro país, provavelmente a Rússia. O monitoramento do programa nuclear, a ser liderado pela Agência Internacional de Energia Atômica, desponta como outro ponto básico. O regime de fiscalizações será reforçado, com ampliação do acesso de inspetores e de câmeras de vídeo a instalações do sistema atômico iraniano. Segue a lógica do acordo: caso nos seis meses iniciais de implementação, o Irã cumpra o entendimento, a parte mais significativa das sanções econômicas serão levantadas. Alguns estudos apontam que, com o fim do embargo, o país receberá uma injeção de cerca de 100 bilhões de dólares, oriundos de investimentos estrangeiros e outras fontes. Para Obama, sem um acordo, o Irã caminharia inexoravelmente à bomba atômica, o que tornaria uma guerra no Oriente Médio inevitável. O premiê Benyamin Netanyahu contesta a tese, classifica o acordo como “erro histórico” e aponta para o fortalecimento do regime dos aiatolás, graças ao fim do isolamento político e econômico. O governo
barack obama
benyamin netanayahu
israelense lembra ainda dos vínculos de Teerã com grupos terroristas como o Hezbolá, que controla atualmente, na prática, o Líbano, e conta com milhares de foguetes apontados para solo israelense.
armamentos e do programa nuclear norte-americano.
Ao lado de republicanos e com apoio do líder da oposição trabalhista, Chaim Herzog, Netanyahu embarcou numa ofensiva com intuito de brecar o acordo no Congresso norte-americano. Mobilizou ainda em seus esforços o AIPAC e políticos democratas, incluindo alguns pesos-pesados do partido, contrários à estratégia iraniana de Obama. Entre eles, o senador Chuck Summer, de Nova York, uma das vozes judaicas mais influentes no debate político dos EUA. De seu lado, Obama também amealha apoios para o embate final, em setembro. Internacionalmente, conseguiu adesão da Arábia Saudita e do Egito, potências sunitas e que veem também com desconfiança e temor o papel do Irã no Oriente Médio. No começo de agosto, a Casa Branca recebeu uma carta de apoio assinada por 29 cientistas, entre eles seis Prêmio Nobel e veteranos da área de controle de 37
Em Israel, apesar da rejeição maciça da opinião pública ao acordo, algumas vozes saíram em defesa da estratégia de Obama e com críticas à ação de Netanyahu, como Amy Ayalon, ex-chefe do Shin Bet, e Efraim Levy, que comandou o Mossad. O Congresso norte-americano, já contaminado pelo início da campanha pela Casa Branca em 2016, se transformou num palco de enfrentamento principal do acordo de Viena, após o anúncio de 14 de julho. Na primeira votação, para aprovar ou não o entendimento, basta uma maioria simples, ou seja, 50% mais 1 dos votos. Se a iniciativa obamista for rejeitada, o presidente reúne poder para vetar a decisão parlamentar. Mas o enfrentamento continua. Senadores e deputados podem derrubar o veto presidencial, embora nessa fase precisem reunir dois terços dos votos. Ou seja, mais batalhas políticas surgem no horizonte de Washington. JAIME SPiTZCOVSKY, foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.
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OPINIÃO
Pacto com Irã é importante para a política POR michael BLOOMBERG
S
e você é contra o acordo nuclear firmado com o Irã, está aumentando o risco de uma guerra. Caso seja um democrata contrário a esse acordo, também está colocando em risco sua carreira política. Essa é a mensagem que a Casa Branca e alguns líderes de esquerda estão enviando. Eles têm de parar com isso agora, pois estão corroendo sua credibilidade. Tenho profundas reservas com relação ao acordo, mas, como muitos americanos, ainda estou avaliando todas as evidências a favor e contra. Esse é um dos mais importantes debates de nosso tempo, com enormes implicações para o futuro dos Estados Unidos, a segurança e a estabilidade do mundo. No entanto, em vez de tentar convencer os americanos sobre os méritos do acordo, seus defensores recorrem à intimidação e, ao mesmo tempo, extrapolam sua defesa. Na semana passada, o presidente Barack Obama declarou que endossar o acordo não é uma decisão difícil. Discordo inteiramente. Trata-se de uma decisão extraordinariamente difícil e a posição do presidente seria mais convincente se deixasse de banalizar as fragilidades do pacto e exagerar seus benefícios.
Se ele acredita que o acordo “proíbe permanentemente o Irã de produzir uma arma nuclear”, como afirmou em seu discurso em uma universidade americana há uma semana, então deveria examinar novamente o texto, cujas restrições terminam repentinamente após 15 anos, e algumas limitações com relação ao enriquecimento de urânio desaparecem depois de apenas dez anos. 38
A defesa exagerada do acordo esconde a gravidade da situação e contribui para gerar desconfiança, ao invés de ganhar apoio. Difamar os críticos é ainda menos eficaz. Em seu discurso, o presidente insinuou que aqueles que condenam o acordo são os mesmos que defenderam a guerra no Iraque. A mensagem não foi muito sutil. Os que se opõem ao pacto são belicistas. (Naturalmente, entre os que votaram a favor da resolução sobre a Guerra no Iraque, em 2002, estão o vice-presidente e o secretário de Estado de Obama).
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Conselho de Segurança da ONU adotou por unanimidade a resolução que estabelece um sistema de monitoramento para o programa nuclear iraniano.
E Obama foi mais longe, afirmando: “São aqueles radicais que entoam ‘morte aos EUA’ os que mais se opõem ao acordo. Estão fazendo causa comum com a tática republicana”. De um presidente que com frequência se queixa do excesso de partidarismo e cujo objetivo declarado é elevar o discurso, o público merecia algo melhor. O que foi emblemático em tudo isso - e me levou a escrever este artigo foi o tratamento dado ao senador democrata Chuck Schumer. Em seus argumentos muito sensatos, ele observou que a linha de conduta no acordo não ficou clara. Pessoas sensatas podem discordar e o fazem. Mas, em vez de aceitar uma diferença de opinião apresentada com todo o respeito, o porta-voz do presidente e outras pessoas próximas à Casa Branca insinuaram que a decisão de Schumer poderá lhe custar a oportunidade de se tornar o líder do Partido Democrata no Senado. O que deveriam ter dito é que o presidente Obama ratificou a
legislação que dá ao Congresso autoridade para se expressar sobre o acordo. Esse debate é muito mais importante do que política partidária e considerações pessoais não devem interferir na decisão envolvendo o acordo. Schumer está certo, esse é um voto de consciência. Cada membro do Congresso, depois de estudar a fundo o teor do acordo e de ouvir todos os argumentos, de ambos os lados, deverá decidir sobre o seu mérito e a Casa Branca tem de se concentrar em defender o mérito, não em usar táticas de campanha para pressionar os democratas a votar unidos. O comportamento da Casa Branca é especialmente decepcionante quanto à maneira como as coisas se desenrolaram. Toda negociação envolve uma troca. Essa não foi exceção. Concessões importantes foram feitas no último momento, até mesmo em termos de armas e mísseis balísticos. Foram mudanças surpreendentes que terão amplas implicações que exigem um exame cuidadoso. 39
Durante todo o processo, o presidente e seu secretário de Estado deram garantias de que os EUA não ficariam cercados em um mau acordo. Mas, em seu discurso, na semana passada, o presidente afirmou que o Congresso tem de decidir “se apoia o avanço diplomático histórico” ou o bloqueia “com a objeção da maior parte do mundo”. O Congresso não deve decidir com base na opinião do restante do mundo, nem na opinião da sociedade americana, que se opõe a esse pacto numa proporção de dois para um, segundo pesquisa recente. O Congresso tem de fazer a própria avaliação, cuidadosa e árdua - o que possivelmente não conseguirá sem examinar os acertos que ainda precisam ser revelados. Como alguém pode se manifestar sobre um acordo que não conseguiu ler do início ao fim? michael bloomberg, É CEO DA BLOOMBERG E EX-PREFEITO DE NOVA YORK Tradução: Estadão Conteúdo Reprodução autorizada por Bloomberg L.P. Copyright© 2015. Todos os direitos reservados
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PERSONALIDADE
Sir Nicholas Winton Morreu no dia 1 de julho último, aos 106 anos, sir Nicholas Winton, responsável, em 1939, pela organização do resgate de 669 crianças judias checas. Durante nove fatídicos meses, numa Checoslováquia sob ameaça de invasão alemã, ele e um pequeno grupo de voluntários estiveram numa frenética corrida contra o tempo para evacuar e levar para a Grã-Bretanha o maior número possível de crianças judias.
A
intervenção desse “Schindler britânico”, como foi apelidado pela mídia inglesa, salvou esses menores do que, para quase todo o restante de suas famílias, seria o destino de internação e assassinato nos campos de concentração. Hoje em dia, acredita-se que são cerca de 60 mil os descendentes das chamadas “Crianças de Winton”. Sir Winton jamais se considerou um herói e tampouco gostava quando se referiam a ele assim. Mas, por suas ações e para as milhares de pessoas que descendem das crianças que ele salvou, ele é um herói da mais alta estirpe. O mundo e as próprias “Crianças de Winton” tomaram ciência das ações de sir Winton apenas 50 anos mais tarde. Em fevereiro de 1988, Esther Rantzen, apresentadora do programa da TV britânica, “That’s life”, convidou-o para participar do show sem revelar do que se tratava. Sir Winton não estava preparado para o que viria a seguir. A apresentadora revelou ao público como ele resgatara da Checoslováquia 699 crianças judias. Mostrou um álbum contendo fotografias, documentos e cartas, e uma lista onde
constava o nome das crianças, com detalhes e endereços das famílias que as acolheram. O álbum havia sido montado por um dos voluntários, W.M. Loewinsohn, em setembro de 1939, e entregue a Winton. Após a eclosão da 2ª Guerra, quando as atividades do grupo tiveram que ser interrompidas, pois não era mais possível organizar a partida dos trens, Loewinsohn reunira o máximo de informações possíveis sobre a frenética corrida contra o tempo executada pelo pequeno grupo de voluntários que se haviam juntado a Winton. Num dos momentos mais emocionantes do programa de TV, a apresentadora lhe disse: “Senhor Winton, tenho uma surpresa. Sentados ao seu lado estão duas das pessoas que o senhor salvou, em 1939”. Perguntou ainda se alguém na plateia devia a sua vida a Winton, e, em caso afirmativo, que ficasse em pé. Mais de vinte pessoas ao redor de Winton se levantaram e o aplaudiram. Em 2014, a pedido do pai, sua filha Barbara Winton publicou sua biografia. “If It’s Not Impossible...” The Life of Sir Nicholas Winton”. O título faz referência a seu lema: “Se algo não é impossível, então deve haver uma maneira de fazê-lo”, que o levou a seguir 44
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o presidente checo, milos zeman, condecora sir winton com a mais alta honraria de seu país
suas próprias convicções e assumir uma operação que outros haviam desconsiderado por julgar desnecessária ou muito difícil. O livro, além de dar os pormenores da operação de salvamento que o tornaria conhecido, revela que as atitudes tomadas por sir Winton ao longo daqueles nove meses são reflexo de sua personalidade e da crença que norteou sua vida: cada um de nós pode e deve agir para fazer uma diferença na vida dos outros. Para ele, “há uma diferença entre a bondade passiva e a ativa, que, em minha opinião, é doar de seu tempo e energia para aliviar a dor e o sofrimento dos demais. Isso requer sair de sua zona de conforto, ir atrás e ajudar aqueles que sofrem e estão em perigo. Não basta levar uma vida exemplar, de forma meramente passiva, apenas não fazendo o mal”.
Sua vida Nicholas George nasceu em Hampstead, Londres, em 19 de maio de 1909. Era o segundo filho de Rudolf e Babette Wertheim, judeus alemães que se haviam mudado para Londres dois anos antes. O lar dos Wertheim era semelhante a muitos outros de famílias da alta classe média britânica da época. A única
com sua filha, Barbara Winton
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diferença é que eles eram judeus. Rudolf e Babette, no entanto, não davam muita importância à sua herança religiosa: não frequentavam sinagoga e não mantinham nenhum ritual judaico em casa. Considerando-se acima de tudo pessoas “pragmáticas”, para facilitar a integração à sociedade britânica se converteram e converteram seus filhos ao cristianismo. Mudaram também de sobrenome, abandonando “Wertheim” para adotar “Winton”. Nicky, como ele era conhecido pelos mais próximos, começou a frequentar a escola aos sete anos, em 1916. Foi matriculado na University College School em Frognal, Hampstead. Aos 17 anos, deixou os estudos para iniciar um estágio no Japhet’s Bank, mas decidiu sair do setor bancário em 1937 para trabalhar como operador na Bolsa de Valores. SETEMBRO 2015
PERSONALIDADE
levado ao Comitê Britânico para Refugiados onde foi apresentado a Doreen Warriner, o verdadeiro dínamo que dirigia o Comitê, que imediatamente o recrutou para ajudá-la.
Nicholas Winton e Hansi Beck, uma das 20 crianças que desembarcaram em 12 de janeiro de 1939, em Londres
O ativismo político de Winton teve início em meados de 1930, quando, levado por sua visão de igualdade social, começa a participar de reuniões dos movimentos de esquerda. Nesse período fez novas amizades, entre as quais, Martin Blake, diretor da Westminster School, e responsável por sua ida para Praga, em 1938. Winton seguia com preocupação os acontecimentos na Europa, pois estava ciente da atmosfera perigosa e violenta que permeava esse continente e da ameaça à paz representada por Hitler. Ele ficou abismado quando, em setembro de 1938, Inglaterra e França assinaram o Acordo de Munique que, praticamente, entregava a Checoslováquia aos alemães. Para ele, a política de apaziguamento de Chamberlain, sob o slogan “paz em nosso tempo”, não deteria Hitler, pelo contrário, apenas o fortaleceria. Ademais, sabia do grande perigo que a Alemanha nazista representava para os judeus. E os acontecimentos durante a Kristallnacht (Noite dos Cristais),
em 9 de novembro de 1938, a seu ver, eram uma nítida indicação das intenções nazistas.
Salvando as crianças O envolvimento de Winton da operação de salvamento começou no final de dezembro de 1938, quando recebeu uma ligação de seu amigo Martin Blake. Eles haviam planejado passar duas semanas esquiando na Suíça. Blake, que na época fazia parte da Comissão Britânica para Refugiados da Checoslováquia (CBRC), cancelara a viagem. Convidou-o a visitar a Checoslováquia. Queria que ele visse o que acontecia nesse país. Após a anexação dos Sudetos por tropas alemãs, em 10 de outubro, milhares de refugiados dessa região haviam-se deslocado para a parte central da Checoslováquia. Segundo dados da imprensa, eram mais de 250 mil, entre eles judeus, comunistas e democratas sudetos e alemães. Winton tinha duas semanas de férias e não hesitou em alterar seus planos. Ao chegar a Praga foi 46
Ela sugeriu que Winton visitasse um campo de refugiados nos arredores da capital, para que visse o que lá ocorria. Em meio a um duro inverno europeu, milhares de pessoas aglomeravam-se em barracões. As condições no campo eram terríveis, com instalações precárias, racionamento de alimentos, frio intenso. Como revelaria em sua biografia: “Quando vi todas aquelas pessoas, percebi que tinha que fazer algo para ajudá-las”... Rapidamente percebeu que eram muitas as crianças refugiadas, e ninguém se preocupava com seu futuro. Ofereceu-se, então, para concentrar seus esforços nesses menores. Sem condições de fazer mais do que já fazia, Doreen encorajou-o a assumir a tarefa. Após ouvir mães implorando para que seus filhos fossem enviados para a Inglaterra, começou a pensar que deveria haver uma forma de salvar as crianças, se as mandassem para outros países. Tinha apenas duas semanas de férias, o que sequer era uma fração do tempo necessário para iniciar tal empreitada. Mesmo assim, começou a agir. Telefonou para sua mãe, em Londres, perguntando-lhe se ela poderia ir até o Departamento de Imigração e verificar quais as garantias exigidas para fazerem entrar crianças na Inglaterra. Em 10 de janeiro de 1939, Nicholas Winton escreveu ao escritório em Londres do Comitê Britânico de Refugiados da Checoslováquia, o BCRC, pedindo-lhes ajuda.
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No momento em que se tornou público que alguém se estava dedicando a salvar as crianças, Winton se viu praticamente sitiado no hotel, de manhã à noite, por pais que, desesperados, vinham implorarlhe que mandasse seus filhos para a Inglaterra. Ele passava grande parte do dia anotando nomes das crianças e inúmeros outros detalhes, e tirando fotos. No dia 12 de janeiro, um avião partiu rumo a Londres, com as primeiras 20 crianças a bordo. Decidiu estender suas férias por mais uma semana, apesar da recusa de seus empregadores, que não ficaram sensibilizados com o trabalho humanitário que estava fazendo. Mas teve que retornar a Londres no dia 21 de janeiro. Retomou seu posto na Bolsa de Valores, mas sua mente estava concentrada nos esforços para trazer crianças para Inglaterra. Alguns dias após sua chegada a Londres foi informado sobre as exigências do governo britânico para permitir a entrada dos menores refugiados: o preenchimento de um formulário por criança, com um
A partir daí Winton se dedicou a cumprir as exigências das autoridades. Ao término de sua jornada de trabalho escrevia cartas, artigos, fazia cartões com fotos das crianças e se mobilizava para obter os recursos financeiros necessários, além de procurar lares adotivos. Ele conseguiu encontrar pessoas interessadas em adotar os pequenos refugiados, bem como outros que lhe doassem os recursos necessários.
NIcholas Winton e seus dois irmãos durante a Guerra
atestado médico; o pagamento de 50 libras (valor equivalente atualmente a 2.500 euros) por criança para cobrir um eventual retorno, além de um lar adotivo ou alguém que se responsabilizasse pelo menor até completar 17 anos. Sem o cumprimento de tais requisitos os britânicos não concederiam o visto de entrada.
Enquanto isso, Doreen Warriner enviara uma carta à sede da CBRC, em Londres, solicitando que Winton fosse nomeado encarregado do Departamento de Crianças, até então inexistente. No entanto, isso só foi oficializado em 24 de maio, quando ele foi nomeado Secretário da Seção Infantil da Comissão. Mas, ele não esperaria a nomeação oficial para começar a agir. Conseguindo papel timbrado da CBRC, ele apenas adicionou seu nome e título, com o endereço de sua residência. Mandou imprimir uma resma de papel com esses dados e saiu em campo enviando relatórios para os jornais sobre a desesperadora situação das
algumas das 600 crianças de winton
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crianças checas, escrevendo a várias organizações relacionadas com refugiados e inúmeras tratativas junto ao Ministério do Interior.
de informar os pais assim que um lar adotivo fosse encontrado e a autorização de saída e os vistos de entradas estivessem em ordem.
tenham sido enviados aos campos de concentração, sendo assassinadas pelos nazistas, como o foram milhões de outros judeus.
O primeiro trem com as crianças partiu de Praga em 14 de março; outros sete deixariam a Checoslováquia ao longo dos seis meses seguintes. No dia seguinte, 15 de março, Hitler invadiu o resto da Checoslováquia. A Comissão Britânica para Refugiados em Praga teria que atuar de acordo com as determinações nazistas. Para poder sair do país tornara-se necessária a autorização da Gestapo.
Lembra Winton: “No dia da partida as crianças eram escoltadas até a estação Wilson, no centro de Praga, por um membro da Gestapo, com etiquetas penduradas no pescoço preparadas pelos meus assistentes. E eram embarcadas sob os olhares dos soldados nazistas espalhados pela plataforma”. Ao desembarcar em Londres, na estação de Liverpool, após uma longa viagem, elas eram recebidas por Winton e sua mãe, que ajudavam na entrega formal das crianças a suas famílias adotivas.
Declarada a guerra não havia muito mais que Winton pudesse fazer por elas. Ele passou, então, a trabalhar nas equipes de salvamento da Cruz Vermelha, em Londres.
Um dos voluntários, Trevor Chadwick, estava encarregado de negociar com a Gestapo as autorizações de saída para as crianças, que, em geral, eram concedidas sem dificuldade, apesar de os nomes serem cuidadosamente examinados. Contudo, apesar da atitude relativamente condescendente dos alemães, podia ocorrer uma interferência imprevisível, a qualquer momento, e o nível de tensão no escritório de Praga se intensificava. Por vezes, as licenças de entrada do Ministério do Interior do Reino Unido tardavam para chegar, significando que um trem estava pronto, mas ainda não havia os documentos de entrada na Inglaterra. Para resolver o impasse, Trevor Chadwick arranjara uma gráfica que falsificava os documentos de entrada para que os alemães os carimbassem. Assim o trem podia partir. Quando chegavam à fronteira britânica, as falsificações eram substituídas pelos documentos verdadeiros do Ministério. O grupo sabia que estava se arriscando cada vez mais, mas também sabia que esperar não era uma opção. Chadwick se encarregaria
O nono transporte estava marcado para partir no dia 1o de setembro, com 250 crianças, o maior até então. Foi quando a guerra eclodiu. Todos os meios de transporte foram bloqueados. Não se soube mais nada dessas crianças; acredita-se que
No final de 1941, ele se candidatou à Força Aérea inglesa, a RAF, mas foi recusado para piloto e para serviço de tripulação pelo fato de usar óculos. Serviu como instrutor da RAF.
Após a 2a Guerra Ao término da 2a Guerra Mundial, em meio a uma Europa destroçada e tendo dado baixa da Real Força Aérea, Winton começou a pensar em seu próximo passo. Lembrando-se daquelas crianças que tinha ajudado a salvar, sua prioridade passou a ser o destino dos milhões de refugiados espalhados por toda a Europa. Começa a trabalhar no Fundo para Refugiados Checos, com o objetivo de ajudá-los a retornar ao seu lar ou a reconstruir uma nova vida em qualquer outro lugar. Tempos depois, passa a atuar no Comitê Internacional para Refugiados, em Londres. Fazia parte de uma equipe pequena, cerca de uma dúzia de pessoas, que trabalhavam pela repatriação dos refugiados. O grupo foi, depois, integrado à Organização Internacional de Refugiados (International Refugee Organisation - IRO), parte da nova Organização das Nações Unidas, criada no final da guerra. O trabalho de Winton com o IRO terminou na primavera de 1948.
estátua de nicholas winton na estação wilson, praga
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A seguir, assume um cargo em Paris, no International Bank for
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1. A rainha da Inglaterra, Elizabeth II, cumprimenta Sir Nicholas Winton. Bratislava, Eslováquia, out. 2008 2. Rainha Elizabeth II o condecora com o título de Cavaleiro do Império Britânico, 2008 3. Sir Winton diante do trem a vapor que trouxe as crianças refugiadas. Londres, 2009
Reconstruction and Development. Para ele, esse trabalho era uma espécie de continuação do empenho mundial de tentar reerguer a Europa após os traumas da guerra. Ao chegar ao Banco, no dia 1o de abril de 1948, as duas primeiras pessoas que encontrou foram o diretor e sua secretária, Grete Gjelstrup, uma jovem dinamarquesa de 28 anos. A jovem, quieta e reservada, tinha opiniões fortes sobre a vida e valores parecidos aos do Nicholas. Embora fosse, às vezes, retraído e circunspecto, Nicholas era autoconfiante e divertido. Os dois se casaram e tiveram 3 filhos, Nick, Robin e Barbara. Robin, que nasceu com Síndrome de Down, faleceu na infância. Nicholas e Greta Winton passaram a vida em Maidenhead, perto de Londres. Aos 62 anos, ainda cheio de energia e motivação, mas já aposentado, Winton estava pronto para dedicar o tempo que lhe restava e sua atenção para o que mais gostava de fazer desde a década de 1950: ajudar o próximo. Sobre o trabalho voluntário que sempre fez parte de sua vida,
Winton disse em sua biografia: “O tipo de ajuda ao próximo a que me dediquei sempre cruzou o meu caminho fortuitamente. Nunca foi uma escolha pessoal planejada. O trabalho com os refugiados, em 1938, aconteceu porque um amigo me pediu que me unisse a ele em Praga, aonde tinha sido enviado pela Comissão Britânico para Refugiados na Checoslováquia, após a ocupação alemã. O envolvimento com pessoas com necessidades especiais aconteceu quando nosso filho nasceu com Síndrome de Down e percebemos que as autoridades britânicas não tomavam conhecimento das famílias nessa situação. Por sua vez, envolvi-me no trabalho com pessoas da Terceira Idade quando o Secretário Geral do Lar de Idosos de Abbeyfield pediu a um dos membros do nosso Rotary que um voluntário presidisse um comitê na cidade de Maidenhead”. Sir Nicholas Winton recebeu inúmeros prêmios por seu trabalho humanitário. No aniversário da rainha Elizabeth II, em 1983, foi nomeado membro da Ordem do Império Britânico por seu trabalho na instalação de lares de idosos. Em 2002, foi elevado a cavaleiro, pela 49
Rainha, em reconhecimento por seu trabalho no salvamento das crianças e, em 2010, recebeu o título de “Herói britânico do Holocausto”. Foi agraciado com a Ordem de Tomáš Garrigue Masaryk, (uma das mais altas distinções checas) pelo presidente checo, em 1998, e ano passado, recebeu a Ordem do Leão Branco, das mãos do presidente checo Milos Zeman. Também foi indicado pelo governo checo para o Prêmio Nobel da Paz de 2008. Devido ao fato de seus pais serem judeus (apesar de se terem convertido), Winton não foi agraciado com o título de Justos entre as Nações – uma honraria somente prestada a não judeus. Sua morte foi comentada por líderes de vários países. “O mundo perdeu um grande homem. Não podemos esquecer jamais a humanidade demonstrada por Sir Nicholas Winton ao salvar tantas crianças do Holocausto”, afirmou o primeiroministro britânico David Cameron. “Ele sempre será um símbolo de coragem, profunda humanidade e incrível humildade”, declarou, por sua vez, o primeiro-ministro checo Bohuslav Sobotka. SETEMBRO 2015
MEIO AMBIENTE
o que será das abelhas? O mel, com sua doçura, é um dos símbolos principais de Rosh Hashaná. Mas sua produção está sendo ameaçada e os cientistas têm lançado um alerta sobre o forte declínio no número de abelhas no mundo.As abelhas estão no centro de um debate internacional.
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ários governos estão alarmados com o forte declínio no número de abelhas, cujo papel é fundamental nos ecossistemas. Dizimadas em algumas regiões, seja pela propagação de pragas incontroláveis por pesticidas, seja pela ação do homem no meio ambiente, as abelhas ocupam um espaço importante na agricultura – inversamente proporcional ao seu reduzido tamanho. Sua extinção teria efeitos desastrosos, não apenas pelo fim da produção de mel, mas, principalmente, pelo seu papel na polinização de milhares de hectares destinados à agricultura. É preciso ressaltar que 3/4 das espécies utilizadas pelo homem na produção de alimentos dependem da polinização para uma produção de qualidade e em quantidade.
A polinização é o processo que garante a produção de frutos e sementes e a reprodução de diversas plantas, sendo um dos principais mecanismos de manutenção e promoção da biodiversidade na Terra. Para que aconteça, entram em ação os polinizadores, como abelhas, vespas, borboletas, pássaros e morcegos responsáveis pela transferência do pólen entre as flores masculinas e femininas. Das espécies conhecidas de plantas com flores, 88% dependem, em algum
momento, de polinizadores. Em Israel, o tema vem sendo estudado profundamente por especialistas em apicultura, agricultores e segmentos governamentais.
Na Antiguidade O mel faz parte da história de Israel desde a Antiguidade. O Livro da Sabedoria exalta a bondade do mel, mostrando como as palavras agradáveis são como um favo de mel, doces para a alma, e representam saúde para os ossos. Na Torá, a Terra que nos foi Prometida pelo Todo Poderoso foi descrita como uma terra que emana leite e mel, um sinal da abundância e prosperidade nela encontrada. Estudiosos judeus e não judeus têm procurado decifrar o significado por trás desta frase. Há os que tentam identificar o mel que fluía como sendo de tâmaras ou do néctar de alguma fruta e não necessariamente de abelhas. No entanto, não há dúvida de que o mel encontrado na Terra de Israel era originário de abelhas desde épocas muito antigas. Elas construíam suas colmeias em grutas, em penhascos e, algumas vezes, em um esqueleto de leão, como mostra 50
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a narrativa referente a Sansão quando estava a caminho de seu casamento na terra dos filisteus: “No esqueleto do leão, ele (Sansão) encontrou um enxame de abelhas e mel. Ele o colheu com suas mãos e o comeu e foi caminhando. De fora daquele que come veio algo para comer. Do forte veio algo doce” (Juízes 14: 8-14).
fim na discussão sobre a prática da apicultura na região. Durante escavações feitas em Tel Rehov, no vale de Beit Shean, no norte de Israel, ele encontrou um apiário datado do século 9 a.E.C.
Há outros relatos bíblicos que confirmam a crença de que o mel jorrava na Terra de Israel produzido por abelhas silvestres: “Ele alimentou-se de mel do penhasco” (Deuteronômio 32:13). “Eu te saciei com mel da rocha” (Salmos 81:17).
O mais antigo encontrado, até então, possuía entre 100 e 200 colmeias que outrora abrigaram mais de um milhão de abelhas. Foram encontrados, também, 25 cilindros onde eram depositados os favos. Feitas de palha e de barro, cada colmeia media 80 centímetros de cumprimento e 40 de diâmetro. Estavam dentro de um recinto feito com tijolos, que foi destruído por um incêndio. Os pesquisadores estimam que o apiário tivesse uma produção anual de cerca de 500 quilos de mel e 70 de cera. Segundo declarações de Mazar na época do achado, trata-se de uma evidência, sem precedentes, da existência da apicultura avançada na Terra Santa em tempos bíblicos, muito mais do que se acreditava, até então, confirmando a denominação de “terra que emana leite e mel”, tantas vezes mencionada no
Uma descoberta feita em 2007 pelo acadêmico israelense, Amihai Mazar, professor do Instituto de Arqueologia da Universidade Hebraica de Jerusalém, colocou um 51
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O tema é crucial para Yossi Slavsky, chefe do Departamento de Cultivo do Ministério de Agricultura e do Serviço de Desenvolvimento e Extensão Rural. Como responsável pelo setor, ele não está apenas preocupado pelo fato de haver inúmeros tipos de grãos produzidos pelo país que dependem da polinização. Tais grãos constituem um terço da produção israelense.
Tanach1, a Bíblia. Diz, ainda, pelas suas pesquisas, que a apicultura era amplamente praticada na Antiguidade, onde o mel tinha aplicações religiosas e medicinais, além de alimentares, e a cera era usada na fabricação de moldes e como superfície de escrita. Outra descoberta que surpreendeu os arqueólogos foi a de que as abelhas do apiário de Tel Rehov não eram as chamadas abelhas sírias, comuns em Israel até algumas décadas atrás. Eram abelhas do gênero Apis Anatolia, oriundas da Turquia, e que produzem de cinco a oito vezes mais mel que as “sírias”, sendo também mais fáceis de criar para uso comercial, e mais tranquilas.
Dados alarmantes Por que esse interesse aparentemente repentino sobre o início da apicultura, em Israel, e que espécies havia na região, na Antiguidade? Porque, como outros países, Israel também se encontra, hoje, ameaçado da extinção de suas abelhas. Na realidade, estudiosos já afirmam que, atualmente, não mais se encontram em Israel espécie ou subespécies da época de Sansão e que, a continuar a tendência mundial atual de morte de abelhas, estas não mais poderão ser encontradas sequer em fazendas israelenses.
Foram tais características que, segundo Mazar, possibilitaram a construção de um apiário em uma cidade como era Tel Rehov na época bíblica.
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O Tanach é composto de 24 livros. Esta palavra simboliza o conteúdo desses livros e contém a inicial de cada grupo de livros: Torá, Nevi’im (Profetas) e Ctuvim (Escrituras Sagradas).
voo das abelhas (doron zucker)
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Em um artigo publicado na edição de janeiro de 2015 da revista israelense “Eretz”, Slavsky e outros especialistas, incluindo acadêmicos e apicultores, analisam a situação. Em muitos países a situação é preocupante, inclusive nos Estados Unidos. Em maio desse ano, um relatório preliminar do Departamento de Agricultura americano apontou para o fato de que os apicultores do país perderam 42% de suas colônias de abelhas no ano passado, a segunda maior perda anual registrada até hoje. As abelhas são importantes polinizadores de culturas-chave para os EUA, como amêndoas e maçãs.
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1 e 2. acomodando as abelhas para facilitar a polinização (adva ofir e yossi slavsky)
As causas desse colapso ainda não estão completamente explicadas pela ciência. Várias teorias foram formuladas e os ambientalistas culpam o uso indiscriminado de agrotóxicos. O presidente norteamericano, Barak Obama, já anunciou um plano para tentar reverter o quadro, com medidas que incluem a redução do uso de pesticidas, entre outras.
Varroa destructor é considerado, a principal praga que afeta as abelhas. Esse ácaro ataca as colmeias, onde se reproduzem, e abre as portas para um vírus que infecta as abelhas. O ácaro foi responsável pelo colapso de colmeias no Havaí, no Canadá e, também, em Israel.
De acordo com Slavsky, “Abelhas produtoras de mel estão morrendo em grande número, nos últimos anos, por razões que continuam mal compreendidas. Ácaros, parasitas, doenças, pesticidas e poluição e diminuição da área verde foram apontados como culpados pelo Distúrbio do Colapso das Colônias (DCC), que tem causado uma dizimação na população mundial de abelhas. O DCC espalhou-se rapidamente pelos Estados Unidos e Europa, nos últimos anos, não deixando praticamente nenhum país com sua população de abelhas intacta... O colapso das colmeias coloca em risco não só as abelhas, mas toda a cadeia de alimentos, já que as lavouras de grãos e frutas dependem da polinização”. Ainda de acordo dom Slavsky, o ácaro
A moderna indústria de apicultura em Israel se baseou nas chamadas abelhas sírias e suas subespécies, que sobreviveram ao longo de milhares de anos na região, adaptandose às condições climáticas e às plantas locais. Desenvolveram um sistema de defesa que lhes permitiu sobreviver a predadores e à ação do homem, bem como às intempéries climáticas, como secas e fortes ondas de calor. Esta capacidade espalhouas pelas terras de Israel, onde criaram colmeias, com uma abelha rainha e enxames de trabalhadoras. Sua agressividade e irritabilidade, que garantiram sua sobrevivência, no entanto, tornaram-nas menos atraentes para os apicultores.
Situação atual em Israel
Assim, em 1914, os produtores resolveram fazer uma experiência 53
e importaram abelhas da Itália. Estas, além de produzirem maiores volumes de mel, são mais tranquilas e mais fáceis de criar, com capacidade de se adaptar tanto a altas quanto baixas temperaturas. O processo de substituição das abelhas sírias pelas italianas levou cerca de 80 anos e levou à extinção das abelhas sírias em Israel, principalmente a partir da década de 1980, quando foram dizimadas pela praga Varroa. Israel possui atualmente cerca de 500 apicultores, instalados das Montanhas do Golã ao deserto
as abelhas destas colmeias no sul de israel morreram sem razão aparente (yossi slavsky)
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verdes em função do crescimento urbano e ocupação humana – levou a uma experiência que parece estar dando certo em Israel. O caso é citado por Sima Kagan, da Organização Israelense de Pesquisa Agrícola (Israel Agricultural Research Organization – ARO), apesar das restrições iniciais.
de Aravá. Segundo Hertzel Avidor, diretor executivo do Departamento de Mel de Israel, cerca de 100 deles então envolvidos com atividades comerciais, possuindo milhares de colmeias, enquanto os demais são pequenos produtores. No total, há cerca de 100 mil colmeias em Israel, com uma média anual de produção de 3 mil toneladas de mel – 30 quilos por colmeia ao ano. A demanda interna, no entanto, é maior, algo em torno de 4 mil toneladas anuais, pois o consumo médio per capita é de meio quilo por ano. As colmeias estão espalhadas em cerca de 6 mil instalações por todo o país e estão sob supervisão direta do Departamento de Mel. A cadeia produtiva das abelhas inclui a criação em separado de abelhas rainha, para serem colocadas em colmeias onde são fertilizadas pelos machos, que morrem em seguida. Todas as demais tarefas nas colmeias são desempenhadas pelas fêmeas. Noga Reuven, apicultora da Galilee Flowers Apiary, em Mitzpe Manot, na Galileia Ocidental, é responsável por cerca de 650 colmeias, que produzem mel, e centenas de outras para criação de rainhas. Este apiário está
envolvido em várias atividades da cadeia produtiva, com a fabricação de 11 tipos diferentes de mel natural vendidos em todo o país, incluindo mel de abacate, eucalipto, ameixa, entre outros. Durante a primavera, o apiário executa tarefas de polinização em campos de abacate, kiwis e lichias.
Experiência de sucesso Um dos problemas mencionados por Slavsky – a diminuição das áreas
Como em muitos países de regiões desérticas, os apicultores de Israel enfrentam dificuldades porque a grande maioria das plantas nativas floresce somente na primavera. Isso significa que, em outras estações, as abelhas têm que ser alimentadas com soluções de açúcar ou transportadas a lugares do país onde as flores ainda não caíram – o que é muito caro. Mas um trabalho conjunto do Dr. David Brand, chefe do departamento florestal do Keren Kayemet LeIsrael (KKL); Dr. Dan Aizikovich, professor da Universidade de Tel Aviv; e do Departamento do Mel, encontrou a solução: eles transplantaram para Israel um tipo de eucalipto australiano que floresce o ano todo. As primeiras mudas foram trazidas em 1998. Depois de dois anos de experiências, os professores israelenses iniciaram a produção. Desde então, mais de cem mil árvores foram distribuídas anualmente aos apicultores – um total de dez milhões nos últimos dez anos. Segundo a previsão do Dr. Brand, do KKL, a produção de mel israelense vai aumentar significativamente...
BIBLIOGRAFIA apiário galilee flowers, em mitzpe manot (avital hershkovitz)
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Revista Eretz, The Magazine of Israel, Nº 149. Jan-Fev 2015
PERSONALIDADE
Lloyd Blankfein e o “Sonho Americano” Ao falar aos formandos de 2013 do LaGuardia College, Lloyd Blankfein perguntou-lhes “Quais as chances de um garoto dos conjuntos habitacionais de moradias populares do Brooklyn dirigir uma das maiores instituições financeiras do mundo” – E ele mesmo respondeu: “Nunca se sabe. Essa imprevisibilidade é o que a vida tem de bom!”
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loyd Blankfein é a concretização do “Sonho Americano”. O garoto judeu que cresceu no Brooklyn, nos conjuntos habitacionais de Nova York, e vendeu amendoins e cachorros-quentes no Yankee Stadium, tornou-se o Chief Executive Officer, o CEO, do Grupo Goldman Sachs, um dos mais prestigiados cargos no mundo financeiro. Quando, em 2006, Henry Paulson, então CEO da Goldman Sachs, foi nomeado para o cargo de secretário do Tesouro no governo de George W. Bush, Lloyd Blankfein tomou seu lugar. Paulson disse, na época, que não havia ninguém mais adequado para assumir tal função. Em 2014 Blankfein supervisionava cerca de US$ 915 bilhões em fundos de investimentos e 32.900 funcionários. De acordo com a revista Fortune, na ocasião ele era o CEO mais bem pago de Wall Street e a Forbes o apontou como sendo o 27º indivíduo mais poderoso do mundo, logo após o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. Neste ano de 2015 entrou para a lista dos bilionários do mundo.
Sua vida Lloyd nasceu em 1954, no Bronx, em uma família judaica de poucos recursos. Em 1957, quando ele tinha
três anos, sua família mudou-se do Bronx para o Brooklyn, também em busca de melhores condições de vida. A família se instalou numa das Linden Houses – conjuntos habitacionais da parte leste de Nova York, o Brooklyn. Linden Houses é um complexo de 19 edifícios inaugurados em 1957, com 1.600 apartamentos. Na época, a maioria dos moradores eram judeus. Seu pai, Seymor Blankfein, após perder o emprego como motorista de uma padaria, trabalhou em uma agência de correios. Trabalhava à noite, pois o salário para o turno da noite era 10% mais alto. Em uma de suas entrevistas, Blankfein disse ter certeza de que “nos últimos anos de sua vida, meu pai, fazia algo que uma máquina faria melhor e de forma mais eficiente. Mas a agência de correio manteve-o na função até que se aposentasse”. Sua mãe trabalhava como recepcionista em uma empresa de alarmes contra roubos. Ele recorda que, na época, “todas as famílias que eu conhecia lutavam para sobreviver. Eu pensava que todo pai judeu dirigia um caminhão ou trabalhava no correio. Não conhecia ninguém cujo pai fosse médico, advogado ou coisa parecida... O único judeu que eu conhecia que usava terno era o rabino”. 55
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sofisticados que sabiam de quem deveriam ser amigos. Não era de Blankfein. Ele era bolsista e precisava trabalhar na lanchonete da universidade para se sustentar. Fez amizade com jovens que compartilhavam seu modesto background, e que até hoje estão entre seus melhores amigos. Muitos se lembram de seu senso de humor e sua incrível memória. Terminou o Harvard College, com especialização em História, e logo em seguida foi aceito para a Escola de Direito de Harvard, de onde se formou em 1978. Quando Blankfein era adolescente, a área do Brooklyn onde ele morava entrou num processo de deterioração econômica e a segurança tornou-se questão primordial. Duas gangues haviam praticamente tomado conta da escola onde estudava e ele guarda muitas lembranças da violência da época, quando era forçado a correr para pegar o ônibus, ou quando a polícia baixava na escola para acabar com a confusão.
Educação Lloyd estudou em escolas públicas e na escola judaica B’nai Israel de Nova York, perto de onde morava. Participou de um programa no Ensino Fundamental que permitia que os alunos fizessem três anos em dois, pulando a 8ª série. Ele poderia ter-se formado aos 15 anos, mas preferiu permanecer mais um ano na escola, e foi o melhor aluno de sua turma, em 1971. Enquanto cursava o Ensino Médio, para ganhar algum dinheiro trabalhou como salva-vidas e como vendedor de amendoins, cachorroquente e refrigerantes no Yankee Stadium, no Bronx. Lloyd era um jovem charmoso e inteligente.
Aluno aplicado, era adorado pelos professores. De acordo com o Rabino Abner German, “aos 12 anos, ele era um menino brilhante”. No entanto, Blankfein costuma afirmar que seu bom desempenho na escola não foi porque era “algum tipo de gênio”, mas porque queria ter sucesso, enquanto a maioria dos seus colegas de classe não pareciam dar a mínima para os estudos. Ele credita ao seu rabino a sua participação nos programas extracurriculares patrocinados pela Federação Judaica local e nas colônias de férias judaicas. Ao participar dessas atividades, ele começou a entender que havia um mundo “além de East New York”. Isso foi fundamental para sua decisão de cursar uma faculdade. A Universidade de Harvard recrutava os melhores alunos na Thomas Jefferson High School. Imediatamente detectou Blankfein, aceitando-o para lá estudar. Ofereceram-lhe um misto de ajuda financeira e bolsa de estudo, que lhe permitiu frequentar o curso. Ao chegar em Harvard, encontrou um ambiente intimidador. Viuse rodeado de jovens ricos, filhos de pessoas proeminentes, com sobrenomes famosos. Eram jovens 56
Carreira extraordinária Blankfein não se encontrou, de imediato. Logo após se formar, entrou como associado no escritório de advocacia Donovan, pequeno e tradicional, onde ficou por alguns anos. Mas não estava feliz, não era o que ele queria fazer. Decidiu, então, deixar a firma Donovan e entrar no mundo das finanças, que lhe parecia mais interessante do que o Direito. Quando disse à sua futura esposa, Laura Jacobs, moça judia, de família tradicional de Nova York, que estava mudando de área, ela ficou preocupada, pensando que não teria a vida confortável com a qual sonhara. Mas ele seguiu em frente, começando a operar com commodities, negociando com ouro em barras. Eles se casaram em 19 de junho de 1983 e tiveram três filhos: Alexander, Jonathan e Rachel. Blankfein procurou emprego em várias empresas, entre as quais, Morgan Stanley, Dean Witter e Goldman Sachs. Mas nenhuma dela o contratou. Acabou entrando na J. Aron & Company, uma pequena firma do setor financeiro, onde acabou sendo um dos principais
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responsáveis pelo sucesso da empresa. A firma foi posteriormente comprada pela Goldman Sachs. Por isso, Blankfein costuma dizer que entrou no Grupo Goldman Sachs “pela porta dos fundos”. Desde o início, ele concebeu uma transação lucrativa de $100 milhões – na época, a maior desse tipo que a Goldman Sachs já tinha negociado. Aí a carreira de Blankfein deslanchou rapidamente. Ele parecia ter um sexto sentido sobre quando levar os investidores a carregar mais risco em suas carteiras ou quando tirar o pé do acelerador, de uma só vez. Em 1988, Blankfein foi um dos 36 homens (nem uma única mulher) que foram nomeados sóciossolidários. Daí até o topo foi só um pulo. Em 1994, Blankfein foi escolhido para dirigir a J. Aron e, três anos mais tarde, para co-presidente do business de investimentos em renda fixa da Goldman. Quando, em 1999, a Goldman Sachs abriu o capital da empresa, muitos dos executivos, potenciais rivais de Blankfein, deixaram a firma, ficando o campo livre para sua ascensão profissional. O Conselho de Administração, especialmente Hank Paulson, então CEO do Grupo, estava cada vez mais impressionado com sua atuação. Paulson descreveu sua tenacidade, ambição e maneira de gerenciar os negócios, afirmando: “Lloyd mostrou estar pronto para assumir grandes responsabilidades”. Paulson e Blankfein passaram a trabalhar juntos – o primeiro viajando e buscando clientes, o segundo assumindo cada vez mais o controle operacional da empresa. Ano após ano, a companhia ganhava bilhões
em rendimentos. “Lloyd fazia tudo funcionar”, segundo Paulson. Em junho de 2006, quando Paulson deixou o cargo na Goldman Sachs para se tornar secretário do Tesouro durante a Administração Bush, Blankfein tornou-se o CEO. Embora não fosse o “herdeiro natural”, Paulson disse que não havia ninguém melhor do que Blankfein para o cargo. Era o 11º a assumir tal posição nos 140 anos de vida da empresa. A companhia já era, então, uma incrível máquina de fazer dinheiro. Em 2007, Blankfein recebeu o astronômico salário de US$ 68,5 milhões, estabelecendo um recorde para um CEO na Wall Street. Durante a crise financeira, em 2009, ganhou US$ 9,8 milhões, despertando ressentimentos em Washington e em outros segmentos da sociedade americana, que responsabilizavam Wall Street pela crise financeira. Quase no auge da crise, em setembro de 2008, Warren Buffet investiu US$ 5 bilhões na Goldman Sachs. Na época, Blankfein afirmou que o negócio não apenas traria para a firma o caixa necessário, mas também
Lloyd Blankfein e Jamie Dimon
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a credibilidade de Buffet. Todas as suas inteligentes ações para proteger a Goldman Sachs só serviram para enfurecer o Governo. A empresa conseguiu sair da crise intacta e, ainda por cima, registrando lucros. Jornalistas, advogados e membros do governo, no entanto, criticaram duramente a política da empresa. A Goldman Sachs tornou-se um símbolo de tudo que havia de errado nos bancos, em Wall Street, nas corporações e até mesmo no capitalismo. O grupo foi acusado de ganhar bilhões de dólares enquanto pessoas comuns estavam perdendo suas casas durante a crise. Em resumo, a GS foi castigada pelo presidente Obama, acusada pela SEC e processada por inúmeros clientes. A empresa fez um acordo com a SEC no valor de $ 550 milhões. No entanto, apesar das críticas, Blankfein entrou na história da Goldman Sachs e será lembrado por ter conseguido liderar com sucesso a empresa através de alguns dos meses mais difíceis de sua longa história.
O segredo do sucesso Pessoas próximas a Blankfein o descrevem como um indivíduo dono de uma combinação incomum de humildade e autoconhecimento, duas características que não são, geralmente, associadas aos executivos de sucesso de Wall Street. Ele é conhecido por ser espirituoso e autodepreciativo, atitudes que, de modo geral, desarmam os que poderiam considerá-lo intimidador. Além disso, encobrem o fato de que, por trás do sorriso, há uma mente extremamente ágil e rápida. Não há dúvida de que ele possui um talento especial para ganhar dinheiro, qualidade que não passou SETEMBRO 2015
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despercebida entre os escalões mais altos da empresa. Hank Paulson revelou as razões que o levaram a escolhê-lo como seu sucessor: “O que acabei vendo nele – algo que me fez admirá-lo – era o fato de que ele se “alimentava”, vivia em função da empresa e dos mercados. Ele era por natureza rápido e muito inteligente. Mas isso pode ser superestimado, porque há uma infinidade de executivos muito brilhantes que não são bons, ou que se metem em problemas, ou não têm discernimento. O que logo me atraiu nele foi uma insegurança positiva. Sem nenhum sentido de direito adquirido. Nenhuma arrogância. Lloyd sempre foi consciente de seus pontos fracos e queria melhorar. ( ...) Os bons líderes precisam de autoconhecimento para reconhecer suas fraquezas e a capacidade de crescer. E eu ficava vendo o Lloyd ficar cada vez melhor...”. Para Blankfein o segredo de seu sucesso na Goldman Sachs foi, simplesmente, sua habilidade de adaptação a novas situações, novas circunstâncias e novas pessoas. “Sempre tive muita confiança em minha capacidade de avaliar uma situação e as pessoas e tentar entendê-las e o que queriam dizer e em que contexto”, diz. Embora atualmente sua fortuna seja avaliada em torno de 1 bilhão de dólares, Blankfein nega que seja movido pelo desejo de riqueza ou status. E fica muito impaciente com o clichê do “garoto esforçado do conjunto habitacional de Brooklyn”. Apesar de seu sucesso, ele é descrito como um homem relativamente simples, conhecido por sua disponibilidade. É visto descer do seu escritório no 41o andar para
Unidos. O objetivo do programa é criar oportunidades econômicas que permitam maior acesso à educação, capital e serviços de apoio às empresas. Lloyd Blankfein, Warren Buffett e Michael Porter, professor da Harvard Business School, são os presidentes do Conselho Consultivo do programa. blankfein e sua esposa, laura
se misturar à turma do pregão ou deixando recados pelo voice-mail para funcionários que se tenham destacado. Jud Sommer, ex-diretor dos assuntos governamentais da GS, atribui o sucesso profissional do Blankfein não apenas à sua “pura capacidade mental”, mas a seu altíssimo QI. “Ele é um homem interessante, apaixonado por História e ótimo colega de trabalho, pronto para uma piada sempre que o ambiente fica carregado”, afirmou Sommer em entrevista. Seus amigos também o descrevem como sendo “engraçado e envolvente. O tipo de pessoa com quem a gente quer jantar. E ainda é casado com a sua primeira mulher”.
Retorno à comunidade A Goldman Sachs, seja por filantropia, seja para melhorar sua imagem, é uma das maiores corporações filantrópicas do país, tendo doado desde 2008 mais de US$ 1,6 bilhão. Como CEO, Blankfein ajudou a lançar o projeto “10.000 Pequenos Negócios”, uma iniciativa filantrópica lançada em novembro de 2009 que disponibilizou US$ 500 milhões para auxiliar vários pequenos negócios nos Estados 58
Blankfein faz parte, também, dos conselhos de várias instituições importantes em Nova York, como a Sociedade Histórica e a Fundação Robin Hood. Atua em vários projetos e programas de arrecadação de fundos, doando altas somas. Sua esposa Laura, formada em Direito, é extremamente ativa em obras sociais. A Fundação Lloyd e Laura Blankfein está envolvida em vários projetos e doou uma média anual de US$ 1,3 milhão na última década. Entre as principais instituições que recebem sua ajuda está a UJA Federation, a instituição judaica cujo objetivo é ajudar os necessitados, fortalecendo a comunidade judaica mundial. Além de doar altas somas, Blankfein participa ativamente na arrecadação de fundos para várias entidades da comunidade judaica americana. Certa vez, durante um evento, disse: “Muitos de vocês não conhecem uma família judaica que está lutando para se sustentar. Vocês não os veem, mas ele estão por aí. Há milhares de famílias nesta situação a três milhas daqui”. BIBLIOGRAFIA
http://fortune.com/2011/04/21/ where-blankfein-came-from/ http://forward.com/articles/188678/ goldman-sachs-ceo-credits-rabbi-andjewish-organiz/#ixzz3HTCVlhuS http://nymag.com/news/business/ lloyd-blankfein-2011-8/index1.html
ISRAEL
WIZO, 95 anos AJUDANDO O PRÓXIMO A Women International Zionist Organization, a WIZO tão nossa conhecida, completou 95 anos em julho de 2015. Desde o seu surgimento tem desenvolvido projetos para melhorar a vida da população em Eretz Israel e, hoje, atua em parceria com o Ministério de Bem-Estar e Desenvolvimento Social, na realização de projetos voltados a atender crianças, jovens e mulheres em situação de risco e condições precárias.
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nstituição criada por mulheres, na qual estas representam a sua essência e alma, a WIZO Mundial é uma organização apolítica que está presente em 50 países, com mais de 250 mil voluntárias engajadas em atividades ligadas ao bem-estar, integração e desenvolvimento de crianças, adolescentes, jovens e mulheres no Estado Judeu. Em 2008, a Organização foi agraciada com o Prêmio Israel em reconhecimento pelo trabalho na promoção do bem-estar social. Trata-se da mais alta honraria outorgada pelo governo israelense a pessoas e entidades que se sobressaem em seu campo de ação ou que contribuem para a cultura do país. E está entre as poucas congêneres que têm representação na Organização das Nações Unidas,
no Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e na Comissão Social e Econômica das Nações Unidas (Ecosoc). A WIZO nasceu da preocupação de um grupo de mulheres inglesas em relação à situação enfrentada pela parcela feminina na Terra de Israel, decididas a atuar em prol da melhoria das precárias condições da população que ali vivia. Fundada no dia 11 de julho de 1920, foi inspirada pelos sentimentos de solidariedade e amor ao próximo e, acima de tudo, pelo movimento sionista que proliferava na Europa no seio das comunidades judaicas. Desde então, ano após ano, a entidade foi crescendo, ganhando força e ocupando um espaço maior na área de Responsabilidade Social de Israel. Desde o início, as chaverot (companheiras, nome como as 59
integrantes se autodenominam) da WIZO perceberam que a educação deveria ser a chave para o desenvolvimento e a transformação na sociedade israelense e no mundo. Nesse processo, a mulher, por sua posição na constelação familiar, seria o elemento multiplicador de novos conhecimentos, hábitos e atitudes. Ativa em vários países através de núcleos locais, que trabalham em sintonia com as diretrizes traçadas pela coordenação mundial sediada em Israel, a WIZO é responsável por mais de 800 projetos implantados em Israel. Seu objetivo hoje, como no passado, é o avanço do status da mulher, bem-estar de todos os segmentos que compõem o universo israelense e o incentivo à educação judaica em Israel e na Diáspora, sempre inspirada pelos ideais sionistas que defendem a igualdade de oportunidades para todos. SETEMBRO 2015
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Os primeiros passos A ideia de reestabelecer o Lar Nacional Judaico após dois mil anos de exílio parecia grandiosa no início do século 20. Ainda assim, o movimento sionista crescia, em várias capitais europeias, envolvendo cada vez mais adeptos da ideia de que o povo judeu só poderia realizarse totalmente como povo caso se reorganizasse como Estado livre e independente em Eretz Israel, sua terra ancestral. Ao término da 1ª Guerra Mundial e com a derrota da Alemanha, a coordenação do movimento que, até então estava nesse país, passou para a GrãBretanha, sob a liderança de Chaim Weizmann, que viria a se tornar o primeiro presidente do moderno Estado de Israel. 1
A concretização de tal objetivo ainda permanecia distante, como um sonho de realização quase impossível. Os judeus da
Diáspora, através de suas lideranças, acompanhavam atentamente e com grande preocupação a situação do Yishuv, como era então chamada a comunidade judaica na Terra de Israel. Esforços constantes eram feitos para melhorar a vida da população, seja através do envio de recursos financeiros ou através de programas de voluntários que lá passavam períodos esparsos. Mas as dificuldades eram muitas, tanto pela ameaça dos vizinhos hostis, quanto pelas epidemias, falta de alimentos e, também, de preparo dos habitantes para enfrentar tantas adversidades. O ideal, no entanto, não esmorecia. Uma visita feita à região em 1918 pelas esposas de proeminentes líderes sionistas que viviam na GrãBretanha, entre as quais Rebecca Sieff, esposa de Israel Sieff, secretário político do movimento sionista; Vera Weizmann, esposa do presidente do movimento Chaim Weizmann; e Edith Eder, foi
Vera e Chaim Weizmann, Herbert Samuel, David Lloyd George, Ethel Snowden e Philip Snowden
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fundamental para a criação da WIZO. Como delegadas de uma Comissão Sionista que fora a Eretz Israel para conhecer de perto o contexto local, defrontaram-se com uma realidade chocante, pois, com o fim da 1ª Guerra Mundial, a situação do Yishuv, que já era difícil, só fez piorar. A das mulheres, em especial, era catastrófica. Esse grupo de mulheres, cujos maridos estavam profundamente envolvidos no movimento sionista, acreditava que deveriam, elas também, ter uma participação mais efetiva e igualitária na luta pelo retorno a Sion. Parte delas já estava envolvida em conquistas sociais, na Inglaterra, como o direito ao voto, entre muitas outras. Assim, após a visita à Terra de Israel, elas já não tinham dúvida sobre qual o caminho a seguir: unir-se para trabalhar em prol dos carentes, ajudando, assim, na implantação das bases que permitiriam a formação de um Estado Judeu, sólido e igualitário. Sob a liderança determinada de Rebecca Sieff, Vera Weizmann e Romana Goodman, fundaram, em 1918 mesmo, o Comitê Feminino da Federação Sionista Britânica. Alguns meses depois, em 12 de janeiro de 1919, realizaram a sessão de fundação da Federação das Mulheres Sionistas, semente da futura WIZO Britânica, atual Wizo do Reino Unido. A Federação das Mulheres Sionistas foi o primeiro passo em direção à WIZO Mundial, criada em julho de 1920. Rebecca Sieff e as demais ativistas acreditavam que as mulheres deveriam trabalhar em uma organização própria, através da qual pudessem desenvolver todo o seu potencial, fortalecendo-se
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1. Treinamento para participação das mulheres na agricultura. Anos de 1920 e 1930. 2. Programas especiais para a absorção de novos imigrantes. Década de 1960
umas às outras, em parceria com os homens, mas não dependendo de suas decisões ou prioridades. Na reunião de fundação da nova entidade feminina, Rebecca Sieff apresentou uma plataforma com os projetos a serem desenvolvidos. Um plano ousado, que demandaria coragem, determinação e muitos recursos, naquela época ainda demasiadamente escassos. Nada, no entanto, poderia deter essa iniciativa, que tinha como objetivo criar uma sociedade sionista, humanista, baseada em oportunidades iguais, focada na educação e no bem-estar das mulheres, crianças e jovens, em cooperação com as comunidades da Diáspora. Nesse processo, as mulheres seriam uma ferramenta fundamental através da educação e do treinamento, que lhes permitiriam desenvolver habilidades para atuar da melhor forma possível no Estado a ser formado. Rebecca Sieff e suas
companheiras acreditavam que destacar a importância da mulher e o valor da sua contribuição, em resposta às necessidades locais, era fundamental para a formação da sociedade israelense. O primeiro passo para isso seria conscientizar o Yishuv sobre a importância da participação da mulher, incluindo-a nos movimentos e nas decisões, pois, muitas vezes, elas se viam como elementos de menor importância. Desde o início, a WIZO se pautou pela flexibilidade e capacidade de se adaptar às necessidades do momento, características que se vêm mantendo desde então e que têm garantido o seu fortalecimento e continuidade. Foram consideradas áreas prioritárias a educação e formação de crianças, jovens e mulheres em diferentes segmentos; economia doméstica; legislação; saúde e serviços sociais – todas estas áreas completamente negligenciadas na então Palestina. 61
Vera Weizman em visita a uma creche da wizo, em rehovot. 1946
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Em 1921, foi realizado o primeiro congresso da instituição, em Carlsbad, no qual se definiu um plano de ação com as seguintes metas, considerando as necessidades do Yishuv em Eretz Israel: o estabelecimento de um lar para meninas imigrantes; escola agrícola para meninas; fornecimento de equipamentos para uma escola de meninas em Haifa; creche para recém-nascidos cujas mães trabalhavam e um centro para idosos.
Iniciativas de base É importante destacar que a WIZO começou sua atuação em parceria com outras instituições que já atuavam em Eretz Israel, entre as quais a Organização Médica Hadassah, presente principalmente em Jerusalém e arredores. Outras instituições criadas em Eretz Israel também diretamente ligadas à questão da mulher tornaram-se parceiras da WIZO em função dos objetivos comuns, entre as quais: a Associação de Mulheres, criada em 1917; a Liga das Mulheres para Igualdade de Direitos em Eretz Israel, em 1919; e a Organização das Mulheres Hebraicas, em 1920. No dia 3 de junho de 1921, foi aberta a primeira clínica da WIZO, na Cidade Velha de Jerusalém, para atender gestantes e mães de recém-nascidos, quando se constatou que um dos principais problemas era a falta de leite materno, consequência direta da desnutrição das parturientes e mães. Era preciso que consumissem leite de vaca, mas a maioria não tinha condições de comprá-lo. Deu-se início, então, a um programa de distribuição de leite nas clínicas pediátricas.
Gradativamente, cada vez mais mulheres e crianças procuravam as duas clínicas.
REBECCA SIEFF, na SUA JUVENTUDE
A iniciativa rapidamente mostrou-se positiva, pois, para receber o leite, as mulheres frequentavam o local mais assiduamente do que anteriormente. Este programa de distribuição de leite tornou-se conhecido como Tipat Chalav (Gota de Leite) e, em função da demanda, mais uma clínica foi aberta na entrada do Hospital Hadassah.
Os recursos para tais projetos eram escassos e dependiam da boa vontade de quem tinha maiores posses, pois as atividades das clínicas incluíam não apenas a distribuição do leite e o atendimento aos pacientes, mas também a limpeza dos estábulos produtores, a pasteurização, o controle de qualidade e o preparo das mamadeiras seguindo as diretrizes dos médicos. Além de receber o leite, as mães eram orientadas sobre como garantir sua saúde e a de seus filhos. Foram criados comitês para distribuição de roupas, centros para crianças abandonadas, círculos de costura, entre outros. É importante destacar que um dos diferenciais do trabalho desenvolvido pela WIZO, em Eretz Israel, desde o início, caracterizou-se pela preocupação em, mais do que apenas suprir as necessidades da população carente,
Cursos na área de saúde no Instituto Pedagógico de Biologia, em Tel Aviv. Década de 1930.
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dar-lhe as condições para que pudesse se estruturar e desenvolver para então seguir seu caminho. Seguindo este conceito, o trabalho de assistência social não faz caridade e, sim, dá ao indivíduo o que lhe é de direito como membro da comunidade. Não é filantropia, mas auxílio construtivo. O objetivo não é aumentar cada vez mais o número de assistidos, ao contrário, é reduzir este universo através do desenvolvimento de ferramentas que permitam ao indivíduo ocupar seu lugar na sociedade de forma independente. Assim começou a WIZO a trabalhar e assim continua até hoje. Durante as duas primeiras décadas, a WIZO investiu, também, na capacitação de mulheres na agricultura, não só com a implantação de escolas para meninas, inicialmente, e posteriormente para rapazes, mas com um programa de monitores itinerantes que visitavam os diferentes povoados e assentamentos para treinar a mão-
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Rachel (Cohen) Kagan e sua cunhada Dra. Helena S. Kagan, na abertura da creche. wizo-jerusalém, 1955
de-obra. Este projeto contribuía para a concretização da visão da instituição de encorajar a mulher a ser independente e produtiva, em qualquer área. Como disse, certa vez, Rebecca Sieff: “O sonho de nossos sonhos é ver um fazendeiro judeu, com a mulher ao seu lado, ambos treinados para trabalhar na agricultura da Terra de Israel”. Para que o sonho se transformasse em realidade, foi aberta uma escola chamada Maon (Lar) que, mais tarde, tornou-se
a Escola para Economia do Lar, dirigida por Maise Shohat. Ali eram ministradas aulas para cultivo de vegetais e flores, criação de abelhas e gerenciamento do lar. Ao longo das décadas de 1920 e 1930, a WIZO uniu-se a outras instituições para a formação de mulheres na área agrícola como, por exemplo, o apoio dado a uma fazenda em Mula, criada em 1926 com 17 alunas. Um dentre muitos outros projetos que receberam o apoio da instituição foi a implantação de hortas domésticas nas casas e pequenos edifícios erguidos em Tel Aviv, nas décadas de 1920 e 1930. A partir de 1930, a WIZO começou a atuar diretamente na área da educação formal, investindo na formação de professores a partir da pré-escola, com ênfase em agricultura.
Apoio aos refugiados Com a eclosão da 2ª Guerra Mundial e no seu decorrer, as representações WIZO foram destruídas uma a uma, na Europa:
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1. Apoio e incentivo às pequenas indústrias caseiras. Anos 1940-1950 2. Aulas em laboratórios na aldeia Wizo Nahalal, 1953
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1. comemoração de purim em uma das creches em israel 2. INTEGRação com OS NOVOS IMIGRANTES 3. COMEMORAÇÃO DE YOM HAATZMAUT EM UMA DAS CRECHES EM ISRAEL 4. MANTENDO AS TRADIÇÕES JUDAICAS 5. TOVA BEN-DOV e RIVKA LAZOVSKY
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102 na Polônia, 23 na Bulgária, 69 na Transilvânia. A WIZO Mundial, que tinha 110 mil membros antes do conflito, contava apenas com 55 mil membros após a 2ª Guerra Mundial. Apesar do baque sofrido, a instituição não desistiu de seus objetivos e, após a tragédia da Shoá, a Organização resgatou sobreviventes, tirando-os da Europa e lhes fornecendo recursos para que fossem adiante em Eretz Israel.
A instituição tem tido uma participação importante em todos os momentos da história de Israel, utilizando a experiência adquirida ao longo de décadas para aprimorar seu desempenho. Foi fundamental na absorção dos judeus etíopes e soviéticos nas décadas de 1980 e 1990. Mais recentemente, tem atuado, entre outros projetos, para melhorar as condições das populações do sul do país, sob constantes ataques de mísseis.
A aprovação da Lei do Retorno pelo Parlamento israelense, em 1950, garantiu a todos os judeus o direito de retornar à terra de seus antepassados. Entre 1948 e 1952, 648 mil judeus fizeram aliá, a maioria vinda do Leste Europeu – sobreviventes do Holocausto, e, também, do Norte da África, Iêmen e do Oriente Médio, dobrando a população do jovem país. No recémcriado Estado Judeu, a WIZO começou a atuar na absorção de imigrantes, jovens em situação de risco e busca de igualdade de direitos para as mulheres.
Atualmente, a WIZO mantém 173 creches em 76 cidades israelenses, acolhendo mais de 52 mil crianças de seis meses a dez anos em suas instituições, oferece creches para os cinco maiores hospitais do país e em bases da Força Aérea, além de possuir a única creche blindada na região de Sderot, sul de Israel, área sob o frequente alvo de mísseis. Mantém, ainda, 54 Centros de Juventude que atendem mais de 22 mil jovens. Organiza o maior programa anual de Bar e Bat Mitzvá, em Israel, para adolescentes imigrantes 64
e vindos de famílias com dificuldades. Atua, também, junto a pessoas portadoras de deficiência através de diversos programas assistenciais. Possui 29 centros de aconselhamento jurídico e psicológico voltado para as questões da mulher, um disque-denúncia funcionando 24 horas por dia para atendimento a mulheres vítimas de violência e maus-tratos, além de administrar abrigos femininos e centros de prevenção e apoio às vítimas da violência doméstica. Mantendo sua tradição de investir permanentemente na capacitação da mulher, oferece cursos específicos de treinamento e programas de liderança a essa população. Um dado importante revela o perfil da instituição quanto à educação: em termos numéricos, a WIZO é a organização que mais contrata profissionais nessa área em todo o Estado de Israel. À frente da WIZO Mundial, como presidente, brilham em seu trabalho, atualmente, Tova Ben-Dov e Rivka Lazovsky, como presidente executiva.
COMUNIDADES
Judeus de Sefarad A saga dos judeus na Espanha acabou tragicamente em 1492, quando os Reis Católicos determinaram que nenhum deles poderia mais viver em seus domínios. Mais de 200 mil tiveram que decidir entre se converter ou deixar o país. Uma extraordinária civilização foi abruptamente desarraigada, mas não desapareceu, pois os judeus expulsos levaram seus conhecimentos, sua sabedoria e tradições para outras terras.
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oje, após 553 anos, a Espanha decidiu ser hora de corrigir aquilo que, nas palavras do Ministro da Justiça espanhola, Alberto Ruiz-Gallardón, tinha sido “o maior erro da história espanhola”.
A história dos judeus em Sefarad, como é chamada a Espanha em hebraico, foi longa e rica, marcada por épocas áureas e outras de terror, à medida que romanos, visigodos, muçulmanos e cristãos se sucediam no poder. Foi durante o domínio muçulmano omíada que floresceu, em Sefarad, uma comunidade judaica famosa, tanto por sua sabedoria e conhecimentos quanto por sua importância econômica e política. Em terras ibéricas surgiram vários dentre os maiores sábios e poetas de toda a história judaica. Sob os califas omíadas, enquanto os judeus que viviam sob o domínio cristão eram sistematicamente perseguidos, a comunidade judaica de Sefarad floresceu, tornando-se o mais importante centro cultural e religioso do mundo judaico e produzindo milhares de obras, seja no campo da filosofia e teologia judaica seja em todos os ramos da ciência e da literatura. Graças a seu 65
conhecimento da língua e cultura árabe, assim como das línguas latinas e o hebraico, os judeus espanhóis se tornaram emissários das atividades científicas e culturais da Espanha islâmica no restante da Europa. A erudição e sede pelo conhecimento dos judeus sefaraditas iam muito além de sua excelência nos campos da Torá, do Talmud e da língua hebraica. Incluíam, harmoniosamente, todos os outros ramos do conhecimento humano. Para os sefaraditas, o judeu “ideal” combinava uma fé absoluta nas Leis e preceitos judaicos, vivo interesse por sua teologia e filosofia e elevado apreço pela cultura geral e ciências naturais. Sábios e eruditos judeus eram, também, grandes médicos, poetas, filósofos, matemáticos, cartógrafos e astrônomos, além de servir os califas e príncipes como ministros, vizires e generais. Suas contribuições à civilização mundial foram tão significativas que nos influenciam até o presente dia. Morashá não poderia relatar em uma única edição, ainda que resumidamente, a história dos judeus de Sefarad, suas contribuições ou suas mais importantes figuras. Optamos, portanto, por dividir essa história em períodos que serão publicados nas próximas edições. setembro 2015
COMUNIDADES
a Ponte Romana, Córdoba, Espanha,
Primeiros assentamentos Os primórdios da vida judaica em Sefarad são envoltos em lendas. De acordo com as tradições dos judeus ibéricos, suas raízes na Península Ibérica remontam à época do rei Salomão. Por volta de 970 antes da Era Comum (AEC), após o rei selar uma aliança com Hiram, rei de Tiro, mercadores judeus, a bordo de embarcações fenícias, tornaram-se ativos comerciantes nas terras que circundavam o Mar Mediterrâneo, estabelecendo entrepostos em suas margens e chegando até a Península Ibérica. E, ainda segundo uma tradição, Adoniram, emissário e general do rei Salomão, foi enterrado em Murvierdo. De acordo com o Tanach1, já no século 10 AEC 1
O Tanach é composto de 24 livros. Esta palavra simboliza o conteúdo desses livros e contém a inicial de cada grupo de livros: Torá, Nevi’im (Profetas) e Ctuvim (Escrituras Sagradas).
eram rotineiras expedições para a Península. Ainda no Tanach , no versículo 20 do Livro de Ovadia, o profeta menciona Sefarad quando se refere aos “judeus exilados de Jerusalém”. Segundo uma tradição que perdura até hoje, algumas das famílias aristocráticas do Reino de Judá, ao serem deportadas pelos babilônios no século 6 AEC, assentaram-se no litoral da Espanha.
Portão do Palácio de La Isla, Cáceres. No palácio, localizado na Juderia Nueva, havia uma sinagoga
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Apesar das especulações sobre o ano em que os judeus se estabeleceram na Península Ibérica, sabe-se, com certeza, que lá havia inúmeros deles quando a região fazia parte dos domínios de Roma. Os romanos haviam invadido a Península, por volta de 220 AEC, e, no início do 1º século EC, estava sob seu domínio toda a Hispânia, nome com o qual os romanos designavam a Península Ibérica. Após a derrota judaica durante as Guerras judaicoromanas (70 e 135 EC), os Imperadores Vespasiano e Adriano para lá despacharam milhares de prisioneiros judeus. Uma estimativa, considerada “exagerada” pelos historiadores, chegou a avaliar em 80 mil o número de judeus prisioneiros enviados à Hispânia nesse período. Outros milhares fugiram de Eretz Israel, buscando refúgio em Sefarad, e, nas décadas seguintes, houve uma substancial imigração judaica tanto vinda do norte da África quanto do sul europeu.
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Moedas judaicas encontradas em Tarragona são prova da existência dos primeiros assentamentos judaicos. Fontes judaicas, como o Midrash Leviticus Rabá 29:2, mencionam uma “volta da Diáspora” da Espanha no ano 165 EC. Porém, a mais antiga prova concreta da presença judaica na Península é uma lápide datada por volta do 2º século, com inscrições em hebraico, latim e grego, encontrada em Tortosa. O texto hebraico diz “Paz para Israel... Esta é a tumba de Meliosa, filha de Yehuda e (?) Miriam (..)”. Outra lápide datada do século 3, foi encontrada em Adra, à leste de Granada, pertencente ao túmulo de uma criança de nome Annia Saomónula. A inscrição em latim a identifica como sendo uma Judaea (menina judia). Seguramente, no final do século 3, era grande o número de judeus em várias partes da Hispânia, especialmente nas regiões de Granada, Córdoba e Sevilha, ao Sul, Toledo e Barcelona, ao Norte. Achados arqueológicos revelam que os judeus viviam em comunidades prósperas e organizadas. No período romano, sua vida era relativamente tranquila, pois o judaísmo era uma religio licita – religião lícita, permitida. Cada comunidade podia, entre outros, estabelecer sinagogas, cemitérios, cobrar impostos, bem como manter tribunais para julgar disputas entre os membros da comunidade. Mas, a situação foi-se modificando à medida que o Cristianismo, que no final do século 3, já era uma força poderosa no Império Romano, passou a ser adotado pela população hispanoromana. No início do século 4, a Igreja na Hispânia estava suficientemente fortalecida para convocar, em 303,
O domínio visigodo
selo pessoal de nahmânides, séc. 13. inscrição: “mosé ben najman gerondi”
o Concílio de Elvira, o primeiro entre todos os que viriam a seguir. Entre os cânones adotados estava a proibição de cristãos se casarem com judeus, viverem com eles ou comerem juntos. As determinações de Elvira revelam tanto o reconhecimento por parte da Igreja do tamanho e importância da comunidade judaica, quanto o fato de que os judeus já eram vistos pela Igreja como “nocivos“. Os bispos viam com preocupação o fato de estarem bem integrados na sociedade e de manterem relações amigáveis com os cristãos.
A administração romana manteve-se na Hispânia até o início do século 5, quando a região foi invadida por bárbaros. Em 419 os visigodos conquistaram grande parte da Península. Mantendo o nome Hispânia, o poder dominante estabeleceu, em Toledo, o centro político do seu novo reino. O período visigodo, que duraria três séculos, foi marcado por agitação política, para não dizer uma verdadeira anarquia. Os séculos em que os judeus viveram sob domínio visigodo estão entre os mais obscuros da história judaica. Sabemos que em Sefarad vivia uma comunidade integrada e afluente. Até Recaredo se tornar rei, em 586, a vida dos judeus não sofreu mudanças drásticas. Até então os visigodos praticavam o arianismo, uma forma de cristianismo considerado herético pela Igreja Católica, por negar a interior do palácio de la isla, cáceres
No entanto, apesar do fortalecimento da Igreja na Hispânia e no resto do mundo romano, já que o cristianismo se tornara, em 313, a religião oficial do Império através do Édito de Constantino, os cânones não possuíam força legal e os judeus e cristãos continuaram a coexistir em harmonia na Ibéria Romana. Mas, a Europa estava prestes a passar por grandes mudanças. No final do século 4, o Império Romano foi definitivamente dividido em dois: o do Ocidente, cuja capital era Roma, e o do Oriente, o Império Bizantino. O Império Romano do Ocidente não sobreviveria às invasões dos bárbaros nos séculos seguintes. 67
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Trindade, e não viam os judeus como um elemento “perigoso” para a sociedade. O fato de os governantes visigodos não terem conseguido estender sua autoridade muito além de Toledo seria determinante na decisão de Recaredo de adotar o Cristianismo normativo da Trindade (Catolicismo). Ao se converter, ele passou a controlar a Igreja Católica com representantes espalhados por todo o reino, já que era prerrogativa dos reis nomear bispos e convocar os Concílios em Toledo. Em teoria, ao controlar a Igreja, os reis visigodos controlariam toda a Hispânia. Em 589, Recaredo convocou o 3º Concílio de Toledo, dando início ao domínio católico na Península. Um objetivo do Concílio era eliminar a influência judaica na população cristã. Entre outros, os judeus não podiam ocupar cargos públicos, tampouco se casar com cristãos. Ele também proibiu os judeus de possuírem escravos cristãos, e, num segundo momento, de contratar cristãos para serviços pagos. Os dois séculos que se seguiram figuram entre os períodos mais difíceis na história judaica e foram um prenúncio ameaçador das futuras políticas espanholas contra os judeus. E concílio após concílio realizado em Toledo, promulgavam decretos antijudaicos, com crescente ferocidade. Em 616, o 3º Concílio determinou que todos os judeus que se recusassem a se converter fossem punidos com 100 chibatadas. Se teimassem em não aceitar o batismo, teriam seus bens confiscados e seriam expulsos do Reino. Os resultados foram devastadores. Crianças judias eram tiradas de seus
típico pátio interno de córdoba, no bairro judaico
pais, que eram impedidos de deixar o país. Muitos conseguiram fugir, mas grande parte da população judaica – mais de 90 mil, viram-se forçados à conversão. Centenas morreram em atos de Kidush Hashem. Porém, a maioria desses conversos, chamados em hebraico de anussim (coagidos), mantinham sua identidade judaica em segredo. Nascia em solo espanhol o criptojudaísmo, uma prática que seria adotada, no futuro, por milhares de judeus que foram forçados a se converter. Dez cânones do 4º Concílio, convocado, em 633, diziam respeito a judeus e criptojudeus. Apesar dos bispos reconhecerem a imoralidade e ilegalidade das conversões forçadas, determinaram que os judeus batizados não poderiam retomar sua fé “por causa da natureza imutável do 68
batismo”. Portanto, cabia à Igreja forçar os criptojudeus a se tornarem cristãos de fato. Para a Igreja, os judeus secretos já representavam uma ameaça ainda maior do que os que nunca haviam sido batizados. Medidas cada vez mais severas foram adotadas em relação a qualquer “judeu batizado” que fosse descoberto tendo “uma recaída”. Entre outros, lhe seriam tirados seus filhos, que seriam
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Não é de se estranhar que os judeus recebessem os invasores muçulmanos como libertadores. Uma nova era de muitas realizações tem início para os judeus de Sefarad ao passar da esfera de domínio cristão para o domínio islâmico.
entregues a um monastério para serem criados como “verdadeiros cristãos”. Em 638, o 6o Concílio determinou que a punição para os conversos que não seguissem os cânones da fé cristã seria a fogueira ou o apedrejamento. E o 9o, realizado no ano de 654, trouxe a obrigatoriedade por parte de todo cristão de vigiar os conversos como forma de garantir que realmente haviam abandonado os costumes judaicos. As bases da futura Inquisição espanhola estavam sendo traçadas. No entanto, apesar de todos os esforços, os reis visigodos não conseguiram converter os judeus em massa nem tampouco extirpar o criptojudaísmo. Além da Coroa não ter muito controle sobre as terras além de Toledo, muitos dos nobres visigóticos prestavam pouca atenção às leis da Igreja e necessitavam dos serviços dos judeus para dirigir suas propriedades e feudos. Consequentemente, os judeus que viviam distantes de Toledo desfrutavam de um grau maior de liberdade do que os que habitavam aquela cidade ou as outras de grande porte, onde a autoridade da Coroa ou a presença da Igreja eram muito fortes.
A invasão islâmica
Interior de uma sinagoga. “Sister Hagadá”. Séc. 14. Barcelona
As medidas adotadas pelo rei Egica (687–702) foram especialmente cruéis. Entre outros, declarou escravos todos os judeus, batizados ou não, dando-os “de presente” aos cristãos. Crianças judias com mais de sete anos (certas fontes afirmam que menores, também) foram tiradas de seus pais para serem criadas como cristãs, para, no final, serem escravizadas.
A expansão muçulmana, iniciada após a morte de Maomé, atingiu a Península Ibérica no início do século 8. Na época, a monarquia visigótica estava enfraquecida pelas lutas internas. De acordo com muitos historiadores, entre as facções em luta estaria o filho do falecido rei, não conformado pelo seu afastamento do poder. Esta facção apelou ao governador omíada, da Ifríquia2, Musa ibn Nusair, que intercedesse na guerra civil. Este último enviou o General Tarik ibn Ziyad à península. O objetivo mouro3, porém, não era apenas interceder na luta interna, mas tomar a península.
Os últimos reis visigodos adotaram medidas cada vez mais perniciosas. Tentaram, novamente, forçar os judeus a aceitar o batismo, ameaçando-os com a expulsão.
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Território da região norte do Norte de África, parte do Império Islâmico.
3 Mouros ou sarracenos foram povos oriundos do Norte de África, praticantes do Islã, invasores da região da Península Ibérica, Sicília, Malta e parte de França, durante a Idade Média.
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Em 30 de abril de 711, chefiando um exército de 12 mil homens, em sua maioria composto por berberes norte-africanos, Tarik desembarcou no rochedo que, posteriormente, foi chamado de Jabal Tarik (“monte de Tarik”), que hoje é conhecido como Gibraltar.
população judaica, Sevilha tornouse conhecida como “Villa de Judíos” (Cidade dos Judeus). Estes se estabeleceram também, nas zonas agrícolas, pois não era raro receberem dos invasores propriedades agrícolas pertencentes a cristãos em fuga diante do avanço mouro.
Divididos, os visigodos foram facilmente vencidos, em julho, na Batalha de Guadalete (em Jerez de la Frontera), no primeiro embate entre visigodos e muçulmanos. Sabe-se que havia inúmeros judeus vindos do norte da África lutando em Jerez, sob o comando de Kaula al-Yahudi, general judeu nomeado por Tarik.
Não há dúvida de que os judeus cooperaram com os invasores muçulmanos, pois sua chegada colocara um fim às violentas perseguições sofridas sob os visigodos. É preciso ressaltar, porém, que eles não “convidaram” os mouros a invadir a região, nem “entregaramlhes” a Espanha. Tais acusações perniciosas foram disseminadas pelos cristãos durante a Idade Média para “explicar” a queda da Península Ibérica em mãos dos invasores muçulmanos, como resultado da “traição e perfídia judaica”.
Os invasores avançavam rapidamente. Em 712, as forças de Musa ibn Nusair se juntaram às de Tarik. Prosseguindo em direção ao Norte, os invasores capturaram Toledo e Córdoba, em outubro do mesmo ano; Saragoza, em 714; e Barcelona, em 720. No decorrer de dez anos, os mouros assumiram o controle de uma parte substancial da Península, que chamaram de AlAndaluz ou Andaluzia, e que passou a fazer parte do imenso Império Islâmico, controlado pela dinastia Omíada. Não conseguiram, porém, dominar parte do noroeste da atual Espanha e parte do norte do que é hoje Portugal, que permaneceram em mãos dos reis cristãos. De acordo com cronistas muçulmanos, grande parte da população cristã fugira antes da chegada dos mouros, ficando apenas os judeus. Enquanto os invasores prosseguiam em suas conquistas, as cidades eram deixadas a cargo de judeus que atuavam como uma milícia. As cidades de Córdoba, Málaga, Granada, Toledo e Sevilha foram confiadas aos cuidados dessas milícias. Devido à sua grande
Apesar de os muçulmanos serem uma minoria em Al-Andaluz, e grande parte da população ser composta de cristãos e judeus, as
leis islâmicas ditavam a vida de todos. O Islã permitia que judeus e cristãos lá vivessem na condição de dhimmis, assim como em qualquer outra parte do mundo islâmico. Isto implicava aceitar a supremacia do Islã e se submeter ao Estado muçulmano que, em troca, garantia-lhes a vida, a propriedade e o direito de praticar sua religião. Em contrapartida, tinham que cumprir uma série de obrigações, conhecidas como o Código de Omar, cujo rigor variava ao bel-prazer e de acordo com os interesses dos governantes. Em teoria, os dhimmis viviam em constante risco, já que a al-Adhimma apenas suspendia temporariamente o “direito” do conquistador de matar o conquistado e de lhe confiscar a propriedade. Mesmo sendo considerados cidadãos de segunda classe, para os judeus de Andaluz a vida era bem melhor do que havia sido sob os visigodos. Entre a chegada dos mouros, em 711, e a invasão dos almorávidas, em 1086, não houve uma política antijudaica – ainda que o relacionamento entre as autoridades muçulmanas e os judeus não fosse perfeito.
O Califado Omíada em al-Andaluz Em 750, uma nova dinastia islâmica, os abássidas, tomou o poder aos omíadas, passando a governar o vasto Império Islâmico. Ao fazê-lo, os abássidas procuraram eliminaram todos os príncipes omíadas. Apenas Abd-al-Rahman conseguiu escapar, refugiando-se, inicialmente, no norte da África, e, em momento posterior, em Al-Andaluz.
“bessamin” em bronze usado na havdalá, séc. 13, Al-Andaluz
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Após rapidamente derrotar seus opositores ele assume o poder. Funda, em 756, o Emirado Omíada de AlAndaluz, tendo Córdoba por capital. O emirado floresceu comercial e
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culturalmente durante o século 8, apesar das insurreições instigadas pelos abássidas e as incursões militares dos francos e de forças cristãs do Reino das Astúrias. Para os habitantes da Al-Andaluz, o século 10 foi um período de grandes avanços culturais e econômicos. Enquanto o resto do continente europeu afundara na ignorância e no obscurantismo, no longo período de trevas imposto pela Igreja, em Al-Andaluz floresceu uma civilização altamente sofisticada e requintada, baseada em uma cultura cosmopolita e secular. Esse período de florescimento cultural imprimiu uma marca profunda na civilização ocidental e nos judeus espanhóis, que iriam criar as bases de uma cultura inigualável. Em 929, Abd al-Rahman III elevou o emirado ao status de califado e cortou os vínculos políticos com Bagdá. O califa, cuja mãe era europeia, foi um governante extraordinário. De acordo com a tradição, sua grandeza havia sido profetizada por um sábio judeu, que se tornara um de seus conselheiros. Sob seu reinado, Al-Andaluz atingiu seu apogeu, tornando-se a primeira economia urbana e comercial a florescer na Europa, depois da queda do Império Romano. Com uma população de mais de 500 mil habitantes e perto de 60 mil palácios, a Córdoba do século 10 rivalizava em opulência cultural e econômica com Damasco e Bagdá. Abd al-Rahman III construiu hospitais, instituições de pesquisa e centros de estudos, criando uma tradição intelectual e um sistema educacional que fizeram da Espanha islâmica um centro de referência pelos quatro séculos seguintes.
folha do keter de damasco, 1260. manuscrito sobre pergaminho. burgos. toledo
Apaixonado pela filosofia, poesia, teologia e ciências seculares, Abd al-Rahman III estimulou e patrocinou o conhecimento sob todas as formas e em todas as áreas. Sem medir esforços, recrutou sábios, poetas, filósofos, historiadores e músicos muçulmanos e não muçulmanos. Ele tornou o califado um proeminente centro de educação islâmica, ultrapassando Bagdá. Criou bibliotecas ímpares, importando livros de Bagdá e de outros locais. No século 10, Córdoba possuía cerca de 70 bibliotecas, sendo que na do califa, que abrigava 500 mil manuscritos, trabalhavam pesquisadores, tradutores e encadernadores. Para os judeus, o reinado de Abd al-Rahman III foi o início da Idade de Ouro da cultura judaica, uma época de grandes realizações. Abd al-Rahman III e seus 71
sucessores não exerceram nenhuma discriminação opressiva contra os judeus. Pelo contrário, estes eram considerados um segmento útil e leal da população, sendo tratados com dignidade e respeito. Sua cultura e riqueza fizeram com que os califas os indicassem para cargos importantes. Inúmeros judeus tornaram-se conselheiros, astrólogos, secretários de estado de califas e príncipes. Livres para exercer qualquer atividade cultural ou econômica, os judeus ingressaram em vários setores da economia, incluindo o comércio, as finanças e as profissões liberais. Atuavam principalmente no comércio de seda e seus inúmeros empreendimentos contribuíram para a prosperidade do reino. Tornaram-se médicos famosos, poetas ilustres, filósofos, astrônomos, cartógrafos de renome. setembro 2015
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Generoso patrono, Ibn Shaprut trazia a Córdoba sábios talmúdicos, filósofos, poetas e médicos judeus. Incentivou o estudo da Torá, do Talmud, do hebraico. Fundou uma ieshivá para formação de rabinos, que ficou a cargo do Gaon Moses benHanok (Enoch), permitindo assim aos judeus espanhóis não terem que depender dos Gaonim da Babilônia em questões referentes à lei judaica.
interior da sinagoga de córdoba
Podendo assumir cargos públicos, destacaram-se na administração pública e desenvolveram habilidades políticas e diplomáticas. Em pouco tempo, Sefarad atraiu milhares de judeus de outras partes do Oriente Médio e da África do Norte. A comunidade judaica de AlAndaluz tornou-se a mais populosa e próspera fora da Babilônia. Havia comunidades em não menos de 44 cidades, muitas com suas próprias ieshivot. As de Córdoba, Granada, Sevilha, Lucena e Toledo eram as mais importantes. A partir do momento que o califado se tornara independente de Bagdá, os laços que prendiam os judeus sefaraditas às autoridades gaônicas começaram a se afrouxar e os judeus espanhóis se tornaram independentes do protecionismo religioso e intelectual da comunidade judaica da Babilônia. Os judeus de Sefarad incentivavam o estudo e o saber em todas as áreas,
e sábios e eruditos judeus gozavam de privilégios e honras parecidos aos dispensados aos estudiosos muçulmanos. No século 10, Sefarad – e não mais a Babilônia – passou a ser o maior centro cultural judaico do mundo, sinônimo de sabedoria e conhecimento, o local onde surgiram alguns dos maiores sábios de toda a história judaica. Um dos homens que mais contribuíram para o florescimento da cultura judaica foi Hasdai Ibn Shaprut (915-970), líder da comunidade judaica de Córdoba e Nasi de todo os judeus ibéricos. Médico extraordinário, tornou-se um dos homens de confiança de Abd-al-Rahman III. Dotado de grande capacidade de organização e de estadista e fluente em hebraico, árabe e idiomas de origem latina, Ibn Shaprut conduzia as negociações entre o califado e os impérios bizantino e germânico e, também, com inúmeros governantes espanhóis cristãos. 72
É preciso ressaltar, contudo, que nem tudo era “dourado”, nesse período. Não há dúvida que judeus espanhóis viviam melhor do que qualquer outra comunidade judaica da Europa cristã, mas a vida judaica na Espanha muçulmana não era imune às ameaças decorrentes dos perigos inerentes à sua condição de dhimmis e à dinâmica da política islâmica. Tampouco foi a Idade de Ouro um período de total tolerância e compreensão entre as comunidades das três religiões que lá viviam. No tocante à população judaica, mais do que tolerância, havia na Espanha moura o reconhecimento, por parte das autoridades, da “utilidade” dos judeus e a tendência dos governantes de ignorar as exigências mais rigorosas da lei islâmica quanto ao tratamento que lhes tocava.
Os Taifas O califado de Córdoba continuou, de modo geral, a exercer uma hegemonia em Al-Andaluz até o final do século 10, sendo que praticamente desabou em 1008, sendo formalmente abolido em 1031. A ausência de um poder central permitiu o estabelecimento, em AlAndaluz, de uma série de pequenos estados islâmicos, chamados Taifas. Esses principados variavam em extensão, recursos e poder competiam militarmente entre si. Entre 1010 e
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1080 formaram-se aproximadamente 30 que acabaram sendo consolidados em 9 maiores. Os mais ricos e poderosos, Toledo, Sevilha, Badajós e Granada, mantiveram em seus domínios a tradição dos omíadas de patrocinar as artes e as ciências. Para a população judaica de Al-Andaluz, com a queda dos califas omíadas, tornaram-se mais evidentes os perigos inerentes à sua condição de dhimmis. Ao longo da primeira metade do século 11, embora houvesse alguns episódios de hostilidade, eles não foram totalmente discriminados. A participação judaica nas atividades profissionais, administrativas e governamentais, iniciada durante o califado, manteve-se ao longo do período taifa. Os governantes, relativamente tolerantes, haviam sabiamente acolhido os financistas, conselheiros em questões econômicas e políticas, escritores e poetas, cientistas e médicos judeus. Um número significativo de judeus ocupou cargos importantes nas diversas cortes, até mesmo o de vizir. Os traços característicos entre os judeus mais proeminentes era a harmonia entre a tradição religiosa e a cultura secular – o estudo do Talmud, junto com a poesia e a filosofia, e uma mesma proficiência em árabe e em hebraico.
Almeria, Huesca, Toledo, Córdoba, Saragoza e Lucena. O grande talmudista, Rabi Isaac Alfasi, que trocou Fez por Sefarad, tornou-se Rosh Ieshivá (diretor) da Ieshivá de Lucena, em 1089. O mais famoso dentre seus inúmeros alunos foi o Rabi Yehuda Halevi, autor da obra Kuzari. Médico e filósofo, é considerado um dos maiores poetas hebraicos. Rabi Isaac Alfasi foi, também, professor do Rabi Joseph ibn Migash (o Ri Migash). Saragoza foi o lar do filólogo, gramático e poeta Shlomo ibn Gabirol e de Rabi Bahiya ibn Pakuda. A ausência de um poder central representava um grande perigo para os judeus de Sefarad, pois permitia a extremistas religiosos cometerem atos de violência contra os judeus. Em Granada, o fato de judeus ocuparem posições importantes nas cortes provocou o descontentamento do resto da população. Em 30 de dezembro de 1066, essa mesma cidade foi palco do primeiro massacre de judeus em Al-Andaluz desde a sua fundação, em 711. Uma
Um exemplo típico da realização do ideal sefardita judaico foi o poeta e estudioso da Halachá, o Rabi Samuel ha-Naguid. Líder da comunidade judaica, atuou como vizir e comandante do exército do Reino de Granada de 1030 até sua morte, em 1056. No século 11 havia em Sefarad comunidades importantes, entre outras, em Sevilha, Denia, Tudela,
capitel com inscrição bilíngue. toledo, séc. 13
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multidão furiosa muçulmana – após assassinar o vizir Joseph Ibn Naghrela, filho de Rabi Samuel haNaguid – matou 4.000 judeus.
O domínio almorávida As lutas entre os diferentes reinos taifas tornou evidente a inabilidade dos inúmeros governantes da Espanha islâmica em manter uma unidade política. Os reinos cristãos vão-se aproveitar da divisão muçulmana e da debilidade de cada taifa individual em tentar subjugá-los. Num primeiro momento, a submissão foi unicamente econômica, forçando os governantes das taifas a pagarem tributos anuais de não agressão aos monarcas cristãos. Mas, percebendo que os muculmanos não resistiriam a seus avanços militares, iniciaram uma campanha de reconquista de terras aos mouros. Em 1085, Afonso VI, de Leão e Castela, aproveitando o pedido de ajuda do rei taifa de Toledo contra um usurpador, sitiou esta cidade e aceitou a sua rendição em maio. Com a ocupação de Toledo, Afonso VI pôde iniciar campanhas militares contra os taifas de Córdoba, Sevilha, Badajoz e Granada. Ao perceber que os reis cristãos se haviam tornado uma ameaça real para os domínios islâmicos, seus governantes pedem a ajuda aos almorávidas, uma dinastia berbere fundamentalista do norte da África. O líder dos almorávidas, o emir Yusuf ibn Tashfin, atravessou, com seu exército, o estreito de Gibraltar e venceu Alfonso VI na batalha de Zalaca (1086). Os mouros ainda cercaram Toledo, mas não lhes foi possível retomar a cidade. O avanço cristão perdeu o ímpeto e só seria retomado na metade do século 12. setembro 2015
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O fanatismo religioso e a incondicional intolerância dos almôadas, que queriam pôr fim à corrupção e à lassidão dos governantes islâmicos em aplicar as leis do Corão, trouxeram grande destruição e sofrimento para as comunidades judaicas do sul da Espanha.
interior da sinagoga do tránsito. toledo
Após derrotar os cristãos, os almorávidas tomam o poder, conquistando os diferentes reinos taifas. Cultural e religiosamente menos tolerante que seus predecessores, os almorávidas queriam estabelecer uma nação onde pudessem aplicar os princípios islâmicos. De temperamento violento, introduziram na Espanha muçulmana uma intolerância até então desconhecida. Sob o regime dos almorávidas, a situação dos judeus se tornou muito precária, durante certo tempo. Entre outros, Yusuf ibn Tashfin tentou forçar a comunidade judaica de Lucena, uma das mais respeitadas de Sefarad, a se converter ao islamismo. Somente o pagamento de uma grande soma em dinheiro fez com que ele desistisse. Mas, apesar do status vulnerável, os judeus tinham permissão para permanecer onde viviam e eram tolerados. Além de serem fonte de vultosos impostos que alimentavam os cofres públicos, eles tinham muito a oferecer aos novos conquistadores, em particular na área administrativa
e diplomática, e, com o tempo, conseguiram reconquistar um tratamento favorável. Com a subida ao trono do filho e sucessor de Yusuf, Ali, os judeus voltaram a ocupar postos importantes na Corte, tendo alguns se tornado importantes conselheiros. Córdoba, Sevilha, Lucena e Granada tornaram-se importantes centros de estudos judaicos. Assim, a primeira metade do século 12 assistiu o apogeu da Idade de Ouro do judaísmo sefaradita. A maioria de seus grandes expoentes justamente viveram entre os séculos 11 e 12.
A chegada dos almôadas Os almorávidas não foram capazes de se manter no poder quando sua expansão militar chegou ao fim. Com seu enfraquecimento, os reinos cristãos reiniciaram a Reconquista. Isto fez com que uma nova dinastia berbere do norte da África, os almôadas, fosse chamada, em 1146, para intervir na luta. Ferozes guerreiros, eles rapidamente passaram a controlar grande parte de Al-Andaluz. 74
Sob os almôadas, os judeus foram perseguidos e segregados. Entre outros, foram impedidos de negociar livremente, tiveram seus bens confiscados, sendo obrigados a usar roupas que os diferenciassem. Eles viram sinagogas sendo destruídas e ieshivot fechadas e, sob a ponta da espada, foram obrigados a se converter – desta vez ao islamismo. Muitos judeus, entre os quais Maimônides, fugiram para a África à procura de governos muçulmanos mais tolerantes. Outros foram para o norte da Espanha, então sob domínio cristão, onde foram recebidos de braços abertos. Muitos dos que permaneceram sob domínio muçulmano tornaram-se criptojudeus. As comunidades judaicas do sul da Espanha não conseguiram sobreviver à intolerância e à perseguição de seus novos governantes. Chegava ao fim a saga dos judeus de Sefarad, que tanto tinham contribuído àquelas terras e ao mundo, sob domínio muçulmano.
BIBLIOGRAFIA
Cohen, Malcolm, A Short History of the Jews in Spain, eBook Kindle Gerber, Jane S., The Jews of Spain, eBook Kindle Lowney, Christopher, A Vanished World: Medieval Spain’s Golden Age of Enlightenment, eBook Kindle
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CARTAS
Todas as matérias da edição 88 são excelentes, bem pesquisadas e ilustradas. Queria destacar duas matérias: “Tisha B’Av e o Holocausto, e sobre a tragédia que aconteceu em Pompeia poucos anos após a destruição do Templo”. A primeira me marcou profundamente por me dar maior compreensão espiritual em relação à Tisha B’Av; a segunda, além de interessante do ponto de vista acadêmico, fez-me pensar na retribuição Divina. Muita coincidência. David Levi Por e-mail
Gostaria de parabenizar a equipe editorial da Morashá pelo excelente trabalho que se renova e aperfeiçoa a cada número. Em especial, gostaria de elogiar o artigo “Tisha B’Av e o Holocausto”, publicado na edição 88, por apresentar um insight inovador e surpreendente e servir de inspiração para que possamos nos conectar com um tema tão central do judaísmo. É fundamental apresentar às novas gerações argumentos modernos e sólidos para que possamos manter nossos jovens conectados e estimular o orgulho em pertencer ao Povo Judeu. Como ressalta o artigo, somos “uma alma coletiva” e para mantermos nossa chama acessa, necessitamos de inspiração. Bethina Dana Por e-mail
Gostaria de parabenizar a equipe e os editores do site e revista Morashá, que são de grande valia e aprendizado para a comunidade. Sempre que possível leio as matérias em sua página na internet. Shemuel Bernardino Por e-mail
A revista Morashá sempre nos surpreende com suas matérias. A Universidade de Jerusalém celebrando 90 anos- é um orgulho! Matilde e Saúl Rosoky Israel
Recebi a edição 88 da Morashá. Um mero elogio é insuficiente. Todas as matérias, sem exceção alguma, conseguem o prodígio de compatibilizar abrangência com profundidade. Perdoem o lugar comum, mas há tudo para todos os gostos, desde a forte simbologia do Tisha B’Av até aspectos jamais abordados (tanto quanto eu saiba) sobre a catástrofe de Pompéia, passando pela homenagem ao Rabino Toaff e pelo “Golem” do Arnaldo Niskier. Entretanto, para mim, a cereja do bolo foi a matéria sobre o humor judaico. Em tempos sombrios como o atual, o humor talvez represente o mais forte obstáculo ao prevalecimento da insanidade geral. David Milech Rio de Janeiro - RJ
O artigo “Cinco mil anos de história estão sendo ameacados”, é um alerta a todos aqueles que ainda não entenderam que a preservação da memória de qualquer crença ou religião é primordial para a sobrevivência da civilização humana. A destruição deve cessar imediatamente. Morashá mais uma vez cumpre o seu papel divulgando estas atrocidades. Claudio Sampaio Belo Horizonte - MG
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Recebi a última edição da Morashá com o artigo sobre comediantes judeus e gostaria de mencionar um famoso, que foi autor dos personagens Mandrake, o mágico, e o Fantasma, (The Phantom em inglês). Estas histórias em quadrinhos foram de autoria de Lee Falk, cujo nome era Leonard Epstein. Eu o conheci pessoalmente, nos anos 1950, quando estudei em uma universidade nos Estados Unidos e era membro de uma fraternidade judaica. Ele foi convidado ao Brasil por Enrique Lipszyc, fundador da Escola Pan-americana de Arte, e naquela ocasião estivemos juntos. Achei interessante mencionar mais estes personagens, que na época eram conhecidos no mundo, inclusive no Brasil e, também, em filmes. Gregório Zolko Por e-mail
Errata
No artigo “Cócegas no Cérebro”, de Márcio Pitliuk, publicado na edição 88, na pág. 34, a tradução correta do título do filme “Quanto mais quente melhor” é “Some like it hot”. O diálogo mencionado no mesmo artigo envolve o ator Jack Lemmon e não Tony Curtis. setembro 2015
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