Revista Morashá - ed102

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ANO XXV - edição 102 DEZEMBRO 2018

ANO xxvI edição 102 DeZ 2018

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ANO XXVI - Dezembro 2018 - Nº 102

CHANUQUIÁ, VIENA. FINAL DO SÉC. 19

Coordenação Editorial: Vicky Safra Assistentes de Coordenação: Clairy Dayan Fortuna Djmal Assessora Internacional: Muriel Sutt Seligson Supervisão Religiosa: Rabino Y. David Weitman Rabino Efraim Laniado Rabino Avraham Cohen Jornalista Responsável: Desirée Nacson Suslick MTb 13603 Colaboradores especiais: Jaime Spitzcovsky Nimrod Etsion Koren Reuven Faingold Tev Djmal Zevi Ghivelder Revisão e tradução de texto: Lilia Wachsmann Consultor: Marcello Augusto Pinto Coordenação de Marketing: Ernesto Chayo Thais Sznajdleder Simeliovich Produção Gráfica: Joel Rechtman JR Graphiks - Tel: 3873 0300 Projeto Gráfico: LEN - Tel: 3815 7393 Serviços Gráficos: C&D Editora e Gráfica - Tel: 3862 8417 Tiragem: 28.750 exemplares

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Carta ao leitor Chanucá é uma festa de oito dias que celebra milagres ocorridos há mais de dois milênios. Sua história é conhecida: após derrotar o exército sírio, os Macabeus reconquistaram o Templo Sagrado de Jerusalém e reinauguraram os serviços religiosos.

com os judeus, não medindo esforços para convertêlos ou exterminá-los? Por que razão os líderes dessas nações se incomodavam tanto com um povo cuja população é estatisticamente insignificante comparada ao restante da humanidade?

Um dos rituais diários mais importantes do Templo era o acendimento da Menorá, que simbolizava a luz da Torá e do Povo de Israel. A Menorá era acesa com jarros de azeite de oliva ritualmente puro, que traziam o selo do Cohen Gadol. Quando os Macabeus retomaram o Templo Sagrado, descobriram que os gregos haviam intencionalmente contaminado o azeite purificado de acordo com o ritual. No entanto, por algum milagre inexplicável, um jarro permanecera imaculado. Continha azeite suficiente para acender a Menorá por apenas um dia. Não obstante, os Macabeus acenderam-na com esse único jarro. Um milagre ocorreu: o azeite, que deveria ter durado apenas um dia, queimou durante oito.

Uma das respostas é que a chama do Judaísmo constitui uma ameaça a déspotas e ditadores. Na história de Chanucá, o Rei Antiochus, que exigia ser reverenciado como uma divindade, não tolerava uma nação cujo propósito de existência é a afirmação de que o mundo tem apenas um D’us – o Rei Eterno e Verdadeiro. A profanação proposital do azeite do Templo simboliza a tentativa dos gregos de extinguir uma fonte muito poderosa de luz, que ameaçava sua ideologia secular, e que, em muitos aspectos, constituía a antítese do Judaísmo.

O milagre do azeite é famoso – inspira e encanta as pessoas. Contudo, levanta muitas questões importantes. Uma delas é: por que os gregos propositalmente contaminaram o azeite do Templo Sagrado? Eles não o usaram em benefício próprio; simplesmente o profanaram. Uma das respostas a essa pergunta é que, ao profanar o azeite utilizado para acender a Menorá, os gregos transmitiam ao Povo de Israel a mensagem de que o principal alvo de sua guerra contra eles era o Judaísmo. A guerra entre gregos e judeus não constituía apenas mais um conflito entre nações – não concernia território, política, economia ou poder. Constituía uma guerra espiritual. Havia algo sobre o Judaísmo que muito incomodava aos gregos e, por esse motivo, profanaram o Templo Sagrado e macularam o azeite da Menorá. Os gregos não foram os primeiros nem os últimos a declarar guerra contra o Judaísmo. Cabe a pergunta: por que esse poderoso império se incomodava tanto com as práticas religiosas de uma nação numericamente inexpressiva, que vivia sob sua ocupação? Por que, ao longo da história, tantos regimes poderosos se incomodaram tanto com o Judaísmo e

Celebramos a festa de Chanucá mesmo que os milagres tenham ocorrido há mais de dois milênios, porque em toda geração as trevas se levantam para tentar extinguir a Luz de Israel. O milagre do óleo – o fato de um único jarro de azeite ritualmente puro ter sobrevivido à profanação dos gregos e ter queimado por oito dias – ensina que a Luz do Judaísmo, personificada pelo Povo Judeu, jamais será extinta. Todos aqueles que tentaram extingui-la, fracassaram. O Zohar, obra fundamental da Cabalá, ensina que assim como o homem é mortal, todas as suas obras também o são: é por esse motivo que mesmo o Templo de Jerusalém, construído por seres humanos, pôde ser destruído. Contudo, continua o Zohar, tudo que é Divino é, por definição, imortal. O Judaísmo é Divino e, portanto, eterno. Na Festa das Luzes, milhões de judeus ao redor do mundo acenderão as velas de Chanucá, que simbolizam a eternidade do Fogo Divino e o triunfo da luz sobre as trevas. As chamas das velas de Chanucá constituem um vislumbre do dia em que a luz prevalecerá definitivamente sobre a escuridão e o mundo inteiro será iluminado pela Luz Divina.


ÍNDICE

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03 carta ao leitor

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história Espiões na Terra Santa

por zevi ghivelder

06 nossas festas

30 israel

Chanucá e a guerra que salvou o Judaísmo

Guerra cibernética: uma ameaça à segurança

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comunidades Os judeus de Livorno na Tunísia

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nossas festas Purim e o Holocausto

por NIMROD ETSION KOREN

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06

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57

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música Tributo a Charles Aznavour

arqueologia A antiga Shiló, morada do Tabernáculo

destaque Laços entre Israel e Rússia desafiados por Síria e Irã por JAIME SPITZCOVSKy

personalidade Claude Lanzmann

70

shoá “Shoah”, de Claude Lanzmann: o Holocausto em definitivo

50

brasil Judaísmo na corte de D. Pedro II por REUVEN FAINGOLD

75 5

cartas

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Chanucá e a Guerra que salvou o Judaísmo Chanucá, Festa das Luzes, com a duração de oito dias, inicia-se na noite do dia 25 do mês de Kislev, no calendário judaico. A festa celebra eventos ocorridos há mais de 2.200 anos. Celebra o heroísmo do Povo de Israel – quando os Macabeus, um grupo de rebeldes judeus que fundaram a dinastia dos Hasmoneus, venceu os greco-sírios, que ocupavam a Terra de Israel e buscavam impor aos judeus o helenismo, cultura grega prevalente à época.

A

pós derrotar as forças greco-sírias, os de Chanucá, acendemos uma vela adicional – ou Macabeus recapturaram o Templo Sagrado outra porção de óleo. Sendo assim, na segunda noite, de Jerusalém, purificaram-no, reconstruíram acendemos duas velas ou dois recipientes de óleo; na o Altar e retomaram os serviços religiosos. terceira noite, três velas ou três recipientes de óleo, e Uma parte fundamental dos serviços diários assim por diante. Por fim, na oitava e última noite da no Templo era o acender da Menorá com azeite de oliva festa, acendemos todos os oito braços da Chanuquiá. ritualmente puro. Quando reconquistaram o Templo, os Deve-se acendê-la próximo a uma janela para que Macabeus se depararam com um único jarro de azeite suas luzes possam ser vistas pelas pessoas do lado de que não estivesse impuro. Acenderam a Menorá com fora. Assim, estaremos tornando públicos os milagres e o conteúdo desse único recipiente. Devido à pouca mensagens da festa. quantidade, sua luz deveria ter durado um único dia, mas, Chanucá constitui uma das festas mais populares do milagrosamente, ardeu por oito dias. Esse era o tempo calendário judaico, entre judeus e até muitos não necessário para a produção de mais azeite ritualmente judeus. É fácil entender a razão. Os seres humanos são puro. Os judeus viram nesse fenômeno sobrenatural naturalmente atraídos para a luz e tudo o que simboliza. um suprimento de um dia durar oito dias - um sinal Ademais, Chanucá é uma data cujos mandamentos são Divino de que Sua Providência havia intervindo em facilmente cumpridos. Diferentemente dos Yamim Tovim favor dos Macabeus na luta contra o poderoso exército – dias sagrados ordenados pela Torá-, nessa festa não há greco-sírio. Para comemorar tais eventos, nossos Sábios restrições sobre o que podemos fazer nos oito dias de instituíram a festa de Chanucá, que dura oito dias. celebração. As crianças gostam muito de Chanucá devido O principal mandamento da festa é o acendimento da à tradição em algumas comunidades dos pais darem Chanuquiá, o candelabro de oito braços. Na primeira presentes aos filhos na ocasião. Há, também, um costume noite, acendemos uma vela – ou uma porção de azeite de celebrar o milagre do azeite comendo alimentos fritos, de oliva (além da vela do Shamash, que é acesa em todas como sufganiot (sonhos), latkes (panquequinhas fritas de as oito noites). A cada uma das noites subsequentes batata) e outras delícias. 6


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Chanucá tem todos os ingredientes de uma data comemorativa judaica muito alegre: um mandamento, que é o acendimento de velas, fácil e agradável de se cumprir; uma emocionante história de heroísmo e milagres; Chanuquiot que enfeitam o lar e locais públicos; comidas deliciosas e músicas que embalam gerações de judeus; brincadeiras com os dreidels – piões especiais da festa – e, em algumas comunidades, presentes aos filhos. Além disso, os temas de Chanucá são atemporais, universais e inspiradores: a vitória da luz sobre a escuridão, do bem contra o mal, do fraco contra o forte e, acima de tudo, a lição de que a Divina Providência é uma força atuante no mundo, que garante que os justos sempre triunfem sobre os perversos.

de muitas pessoas, mundo afora. Acendem-se Chanuquiot na Casa Branca, no Kremlin e em vários locais públicos, no Brasil; e personalidades públicas, como presidentes, primeiros ministros e governadores participam da cerimônia do acendimento de suas velas. As luzes da festa encantam a todos, bem como a história de

como um suprimento de azeite puro para um dia ardeu durante oito. Contudo, contrariamente ao que se pensa, esse milagre não é o foco principal de Chanucá. Essa festa não se reduz a milagres e luzes e canções e sufganiot. Chanucá trata, acima de tudo, de auto sacrifício – trata dos judeus que lutaram em uma guerra longa e difícil contra um exército aparentemente invencível. Trata de judeus que arriscaram e sacrificaram tudo, inclusive sua vida, para assegurar a eternidade do Judaísmo. Chanucá fala de judeus que colocam D’us, a Torá e a sobrevivência do Povo Judeu acima de tudo. Essa festividade traz mensagens universais que são relevantes a todos os seres humanos, mas traz, também, lições dirigidas particularmente ao Povo Judeu – algumas das quais são especialmente relevantes para nossa geração.

Certamente Chanucá é uma linda festividade que toca o coração 7

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A Luta dos Macabeus e seu significado Durante os oito dias de Chanucá, recitamos a passagem Al-Hanissim na oração da Amidá e de Bircat HaMazón (oração de graças após as refeições). Apesar de muito curta, a passagem de Al-Hanissim resume a história da guerra travada entre os Macabeus e os greco-sírios, e seu desfecho. Menciona as perseguições religiosas, as batalhas, a vitória dos judeus, a purificação do Templo e a sua posterior consagração. A julgar por essa passagem, a revolta dos Macabeus e sua surpreendente vitória são os pontos principais da

do milagre ocorrido no Templo; desconhecem o fato de que o ponto principal é, justamente, a difícil vitória militar judaica. Para apreciar o significado de Chanucá – por que os Sábios a instituíram e por que continuamos a celebrá-la, apesar de nosso Templo Sagrado estar em ruínas há quase 2000 anos –, é necessário entender o significado e alcance da guerra travada pelos heroicos Macabeus. Por que entraram em guerra e qual a natureza da vitória alcançada? Para se ter uma ideia correta dessa guerra, basta olharmos a situação

acendendo uma chanuquiá. detalhe de manuscrito italiano de 1374. british library, londres

festividade. Essa passagem nem sequer menciona o milagre do azeite; é o Talmud que nos conta esse milagre e quantos dias durou. Al-Hanissim evidencia que a vitória militar é a razão para nossos Sábios terem instituído a festa de Chanucá. Obviamente o milagre do azeite deu à vitória dos Macabeus uma dimensão religiosa, pois sinalizou a nossos antepassados que deviam seu triunfo à Divina Providência. No entanto, teria constituído um fenômeno sobrenatural quase irrelevante não fosse pela vitória dos Macabeus. Muitos, judeus ou não, apenas associam a festa de Chanucá à encantadora história

atual de nossa geração. Hoje, talvez mais do que em qualquer geração que nos antecedeu, podemos entender a atmosfera prevalente nos anos em que os greco-sírios ocuparam a Terra de Israel. Talvez agora, mais do que nunca antes, possamos entender o significado da guerra e as questões que eram o foco do empenho dos Macabeus. É imperativo observar que, apesar dessa guerra ter resultado na independência política judaica, o irromper da revolta contra as forças de ocupação na Terra de Israel não foi motivado por razões nacionalistas ou políticas. 8

Ao contrário de quase todas as guerras ao longo da história humana, a luta dos Macabeus não visava, basicamente, a expulsar uma força de ocupação estrangeira da terra de um povo. A bem da verdade, durante centenas de anos, os judeus viveram em sua Terra sob domínio estrangeiro. O Povo Judeu, à época, não acreditava que a independência política justificasse guerrear contra um império poderoso, uma superpotência militar. Para complementar, é interessante fazer um contraste entre essa atitude e um exemplo de guerra contemporânea – a Guerra do Vietnã. Os vietnamitas optaram por lutar contra uma força de ocupação estrangeira. O Exército do Vietnã do Norte lutou contra os americanos por razões políticas – para obter independência e unificar o país sob domínio comunista – e conseguiu expulsar as poderosas Forças Armadas dos Estados Unidos de sua terra. Os comunistas nortevietnamitas venceram e os poderosos americanos perderam. No entanto, se, por um lado, a guerra teve um ônus de 58.000 soldados americanos, também tirou a vida de três milhões de vietnamitas. Algumas guerras são vencidas, mas, na realidade, são derrotas. Será que vale o sacrifício de milhões de vidas em troca de independência política? Talvez os judeus tolerassem o domínio estrangeiro na Terra de Israel porque uma nação sábia e perspicaz (Deuteronômio, 4:6) percebe que, às vezes, podemos ganhar uma guerra e ainda assim destruir um povo e um país em meio a esse processo. Ao contrário de outros povos que são levados por orgulho nacional cego e impulsivo, os judeus nunca se interessaram em “vitórias de Pirro”, obtidas a alto preço. Apesar da alta crítica e dos fake news que, dia após dia, pipocam


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na mídia contra o Estado de Israel, a verdade é que os judeus levam a guerra muito a sério. Não fosse por motivos nacionalistas ou políticos, o que teria levado os Macabeus a se levantar contra as forças de ocupação greco-sírias? Eles tinham consciência de que se permanecessem passivos, o Judaísmo e, consequentemente, o Povo Judeu, deixariam de existir. Não ficariam passivos enquanto o helenismo tentava engolir sua religião e seu povo. Em busca da consolidação de seu império, os gregos não se contentaram com a conquista de outros povos – forçaram-nos, também, a adotar o helenismo e, dessa forma, assimilar-nos. E, para tanto, os gregos transformaram o helenismo – o idioma, estilo de vida e religião – em cultura universal. Destruíram templos de outras religiões e combateram outras crenças, mas longe de o fazer por razões idealistas. Seu objetivo era, pura e exclusivamente, mesclar a cultura e religião gregas com outras formas locais que encontravam entre seus conquistados. A cultura helenística misturava-se, com muito sucesso, à cultura local de vários povos que viviam em proximidade ao Povo Judeu, entre os quais os sidônios e os filisteus. Esses povos não viram problema em renunciar à sua cultura e suas convicções e adotar o helenismo. As pessoas esclarecidas entre essas nações não acreditavam em seus deuses – feitos pelo homem e claramente falsos – e viam seus cultos como puro folclore popular, despidos de verdade ou significado. A seus olhos, adotar qualquer deus ou crença não era problema; pelo contrário, estavam abertos a eles. Havia diferenças entre as crenças religiosas das várias nações, mas

Chanuquiá em metal de fábrica fundada em 1880, ainda em funcionamento, na cidade de Geislingen an Steige, Alemanha

como a todas faltava verdade, não havia contradição significativa entre as mesmas. Se a religião da pessoa é falsa e sem valor, por que lutar para preservá-la? Aos olhos dos povos conquistados, a adoção do helenismo – a mescla das culturas, valores e crenças – era possível e até desejada, de modo a promover melhores relações internacionais. Os princípios que norteavam a cultura helênica eram a aceitação mútua e a adoção de outras crenças e culturas. Todos os povos concordaram, à exceção de um: os judeus. Os gregos exigiam que o Povo de Israel aceitasse seus deuses e suas crenças religiosas. É importante enfatizar que as perseguições religiosas dos gregos não tinham motivação ideológica: não constituíam uma forma de Inquisição que queria converter os 9

judeus à força, mas uma tentativa de levá-los à apostasia, isto é, a abandonar nossa fé. Isto porque a visão de mundo dos gregos não considerava princípios e ideologias como sagrados, imutáveis. Eles não suportavam a “intolerância judaica”. Acreditavam que a recusa dos judeus em comer carne de porco e se curvar perante as divindades gregas fossem mera teimosia de um povo obstinado, que se recusava a se deixar absorver pelo helenismo. Por isso, os gregos forçaram os judeus, por meio da violência, a abandonar aquela “bobagem” e a se comportar de “modo adequado” – como tinham feito todas as demais nações. Contudo, os judeus conscienciosos não podiam abraçar algo que fosse um anátema ao Judaísmo. A Torá não é uma religião feita pelo homem, e o Eterno, D’us de Israel, não é fruto da imaginação DEZEMBRO 2018


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humana, como o são outras divindades. A Torá é a Verdade, a Palavra de D’us, Sua Vontade e Sabedoria, e não um mero conjunto de leis, produto da legislação humana, ou obra de ficção e fantasia – como a mitologia grega. Ser judeu significa, acima de tudo, rejeitar a existência de quaisquer outros deuses. O Midrash Rabá explica por que Mordechai, um dos heróis da história de Purim, é chamado de Mordechai HaYehudi (o judeu), ainda que não pertencesse à tribo de Yehudá. Por que razão ele é chamado de “judeu” e não de “israelita”? O Midrash responde: porque ele repudiou a adoração a outros deuses. Ao que tudo indica, a base desse ensinamento é a possibilidade de troca entre duas letras hebraicas similares em sua aparência, o Hei e o Chet: a definição de Yehudi, judeu (escrito com a letra hei), é Yechidi, único

chanuquiá em Jerusalém

(escrito com um chet). O judaísmo é basicamente caracterizado por sua singularidade, pois, por definição, exclui qualquer outra fé ou divindade. O relacionamento entre o Povo de Israel e o D’us de Israel é puramente monogâmico. O Judaísmo tem tolerância zero para qualquer coisa que se assemelhe à idolatria. Exemplificando: um objeto

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usado em um rito idólatra deve ser destruído e ao judeu é totalmente proibido ter qualquer tipo de benefício do mesmo. Qualquer forma de idolatria e tudo o que possa mudar qualquer pontinho da Torá é rejeitado e abominado por nós. Não é possível ser judeu e estar aberto a outros deuses, ritos ou leis religiosas. Portanto, foi impossível encontrar um meio-termo entre a essência do Judaísmo – que não cede sua exclusividade e lealdade a D’us e Seus Mandamentos – e a do helenismo, que não tem valores sagrados nem princípios imutáveis.

O verdadeiro motivo de celebração em Chanucá O helenismo seduziu muitos judeus que se deixaram levar por sua mensagem de tolerância, abertura e permissividade. É importante saber, no entanto, que os primeiros judeus helênicos não eram rebeldes que transgrediam as leis da Torá por despeito. Eram, sim, judeus que queriam um Judaísmo mais flexível. Os judeus helênicos, na verdade, queriam abrir mão de suas crenças e práticas religiosas de modo a se misturar melhor entre a maioria. Para eles – e para as pessoas que, hoje, pensam e se comportam dessa maneira – é possível ser judeu, mas apenas se o Judaísmo que praticam e em que creem for compatível com a visão de mundo e os valores da sociedade a que pertencem. Para eles, qualquer lei ou costume judaico que esteja em descompasso com as ideias reinantes ou que pareça, de alguma maneira, inflexível, deve ser deixado de lado. Eles podem até seguir algumas das leis judaicas, em virtude de hábitos adquiridos em casa ou no colégio, mas não os consideram sagrados, invioláveis. Para quem entende o Judaísmo como apenas um amálgama de ritos e costumes


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despidos de verdade e significado espiritual, fica fácil substituí-lo por outras crenças e valores que estejam “em voga”. O processo de aculturação e assimilação se inicia quando se vê o Judaísmo como um conjunto de tradições sem grande importância e com valor apenas sentimental e nostálgico. Quando se segue o Judaísmo apenas como uma simples tradição ou convenção social guardada para não desagradar familiares ou amigos, o comprometimento é muito limitado e frágil. Quem assim o faz não se sacrificaria nem lutaria e, muito menos, estaria disposto a dar sua vida pelo Judaísmo. Os helênicos judeus não decidiram repentina e espontaneamente abandonar o Judaísmo e abraçar o helenismo. Primeiro abandonaram a verdade, a singularidade e a exclusividade judaicas. Chanucá celebra eventos ocorridos há mais de 2.200 anos, mas seu tema é tão relevante hoje como o foi na época dos Macabeus. A maior ameaça aos judeus, hoje, especialmente a nós que vivemos na Diáspora, deixou de ser perseguição e violência, como durante os 2.000 anos em que nosso povo não tinha seu país e seu exército. O que hoje dizima o Povo Judeu é uma cultura universal, muito semelhante ao helenismo, que supostamente prega a tolerância e a liberdade, mas que não tolera a singularidade de um povo. A cultural universal de nossos dias aparentemente permite tudo, exceto crenças e princípios sagrados. Atualmente, acreditar que haja o certo e o errado, e que algumas coisas sejam aceitáveis e outras não, especialmente se tal sistema de valores é fundamentado em Leis Divinas, é arriscar-se a ser visto como intolerante, fanático, pouco flexível e vários outros adjetivos negativos.

chanuquiá em madeira; prata lavrada, perfurada e estampada; liga de cobre. florença 1781-1800

Para a maioria das pessoas, hoje, não é muito importante a forma como se leva a vida. Quando a pessoa não crê em nada, e seus pares tampouco creem em algo, elas não têm problemas entre si e vivem em paz. Contudo, esse tipo de paz tem um alto preço, pois a tolerância ampla e irrestrita não indica respeito pelos princípios do próximo, mas

dreidel em prata

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uma desvalorização generalizada dos valores. Aqueles que toleram qualquer coisa geralmente acabam tolerando o mal. Aqueles que são permissivos acabam permitindo o que é nocivo e desprezível. Se hoje, um grupo de judeus se revoltassem como o fizeram os Macabeus, provavelmente seriam condenados por inúmeros líderes comunitários e pela mídia. Seriam tachados de fanáticos ou pior. Nem todos sabem, mas ao irromper, a revolta dos Macabeus contra os greco-sírios foi apoiada por uma minoria de judeus na Terra de Israel. Os rebeldes representavam cerca de ínfimos 10% da população judaica. Apesar de poucos e de não contarem com o apoio da maioria do Povo Judeu, os Macabeus estavam dispostos a enfrentar uma superpotência militar para salvar o Judaísmo. E para isso combateram longa e duramente durante muitos anos. DEZEMBRO 2018


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Portanto, é isto o que celebramos em Chanucá: o auto sacrifício de poucos contra muitos – e não apenas pelos muitos daquela geração, mas por todas as subsequentes gerações de judeus. Winston Churchill disse, em outro contexto: “Nunca, na história da humanidade, tantos ficaram devendo tanto a tão poucos”. Isto é verdadeiro e aplicável aos Macabeus. Não fosse por eles, é provável que nenhum judeu estivesse vivo, hoje. Não tivessem eles lutado e vencido, todos os judeus da época teriam acabado abraçando o helenismo, assimilando-se. Um ponto merece nossa reflexão: se o milagre do azeite – que muitos acreditam ser a razão da festa de Chanucá – não tivesse ocorrido, quais teriam sido as consequências práticas? A resposta é que os judeus teriam acendido a Menorá do Templo com óleo de azeite ritualmente impuro – algo que, nas circunstâncias, a Lei Judaica teria permitido. Obviamente, o milagre do óleo foi um importante sinal da Divina Providência, mas não foi relevante, realmente, pois não mudou o curso da História Judaica. Mas, por outro lado, se os Macabeus não tivessem vencido os greco-sírios, a consequência teria sido o fim do nosso povo. O que celebramos em Chanucá é a sobrevivência do Judaísmo. Se os Macabeus não tivessem enfrentado a luta, ou se tivessem perdido a guerra, o destino do Povo Judeu teria sido semelhante ao dos demais povos da região – filisteus,

amonitas e moabitas – que se assimilaram, deixando de existir. Chanucá celebra nossa vitória militar, que conteve a disseminação do helenismo que consumia o Povo Judeu, da mesma maneira como a assimilação, hoje, dizima um enorme número de comunidades judaicas da Diáspora. Anualmente, nesta festividade, devemos recordar não apenas o milagre do azeite e de tudo que as Luzes de Chanucá representam, mas, ainda mais importante, nosso empenho constante para manter nossa identidade e singularidade, especialmente em nossos dias, quando enfrentamos problemas semelhantes de aculturação e assimilação em massa. Chanucá marca o encontro entre o Judaísmo,

que se ancora na lealdade a D’us e à Sua Torá, e um mundo secular que, aparentemente, tolera tudo, mas que não tolera aqueles que ousam ser diferentes e que acreditam em valores e crenças sagradas e imutáveis. No mundo de hoje, quase tudo é negociável: em qualquer assunto que seja, pode-se chegar a um meio-termo, porque os valores são relativos e negociáveis, comprados e vendidos e permutados, já que quase ninguém os leva a sério. Hoje, quase todos os valores se equivalem, pois ninguém está disposto a se sacrificar por eles. Mas, em um nítido contraste, a celebração de Chanucá se baseia na noção de que há certas coisas na vida e no mundo, como o Judaísmo, que não podem ser negociadas. O Primeiro Ministro Menachem Begin, um dos maiores líderes judeus de todos os tempos, verdadeiro Macabeu da geração que fundou o Estado de Israel, escreveu: “Há coisas mais horríveis do que a morte e mais preciosas do que vida”. Os Macabeus acreditavam nisso e por isso lutaram. Inúmeros judeus, através dos séculos, sempre acreditaram nisso e por isso escolheram o martírio, não abrindo mão de seu D’us, sua fé e sua identidade espiritual. O público maior entende Chanucá como uma data muito festiva, caracterizada por muitas delícias culinárias e o cumprimento de um mandamento – o acender das velas – que, aos olhos da maioria, parece muito

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bonito e interessante. Mas, não esqueçamos que se trata de uma festa religiosa, que celebra a coragem e o zelo de um pequeno grupo de judeus que optaram por lutar até a morte em favor do Judaísmo. Chanucá não se concentra em torno do milagre do azeite, mas tampouco apenas celebra uma milagrosa vitória militar. Nós, judeus, tivemos muitas vitórias militares milagrosas, tanto no antigo Israel como em nosso moderno Estado, destacando-se a Guerra da Independência e a Guerra dos Seis Dias. O que Chanucá celebra é a sobrevivência do Judaísmo. Perdemos a soberania judaica pelo menos duas vezes, e vivemos na Diáspora durante dois milênios – mas, ainda assim, continuamos vivos enquanto povo. Se, no entanto, a singularidade de nosso povo se tivesse perdido – ainda que uma única vez –, deixaria

de importar o fato de termos independência política, bandeira e hino nacional. Não basta viver na Terra de Israel, ter um país soberano e falar hebraico. Sem o Judaísmo, não temos nada. Os Macabeus o sabiam, assim como muitos judeus sempre souberam que a aculturação e assimilação podem danificar o Povo Judeu mais do que qualquer inimigo estrangeiro. Quando abrimos mão de nosso Judaísmo – quando se arrefece nossa lealdade a D’us e consideramos os mandamentos da Torá anacrônicos e simples folclore e costume –, estamos colocando-nos na posição de nos transformar em modernos helênicos. O resultado é, quase sempre, a assimilação e a perda de identidade espiritual. Em Chanucá, naquela época e hoje, lembramo-nos do 13

empenho de nosso povo – não por nossa independência, mas por nossa própria individualidade e identidade espiritual. A vitória dos Macabeus, há mais de 2 mil anos, significou muito mais do que a liberdade política da tirania grecosíria. Legou-nos como herança nossa sobrevivência enquanto nação escolhida por D’us para ser portadora de Sua Palavra, Suas Leis e Seus Mandamentos. A Festa das Luzes nos ensina que não somos apenas mais uma nação a sobreviver, mas a personificação de uma entidade espiritual chamada Judaísmo, que irradia a Luz Divina e pulsa, vibrante, com vida espiritual. BIBLIOGRAFIA

Rabi Steinsaltz, Adin (Even Israel), Change and Renewal. Koren Publishers DEZEMBRO 2018


nossas festas

acendendo a Chanuquiá Todas as noites, antes de acender as velas pronunciam-se as seguintes bênçãos:

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, asher kideshánu bemitsvotav, vetsivánu lehadlic ner Chanucá.

A cada noite, após recitar as bênçãos, acendem-se as velas da Chanuquiá com o shamash, que é colocado na Chanuquiá de modo a ficar mais alto do que as demais chamas. Após acender as velas, recita-se em seguida Hanerot halálu:

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos santificaste com Teus mandamentos, e nos ordenaste acender a vela de Chanucá.

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, sheassá nissim laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que fizeste milagres para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época. Apenas na primeira noite, depois de recitar as duas bênçãos, recita-se o shehecheyánu:

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, shehecheyánu vekiyemánu vehiguiyánu lazeman hazê.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos deste vida, nos mantiveste e nos fizeste chegar até a presente época.

Costuma-se colocar a Chanuquiá sobre uma mesa no lado esquerdo da porta de entrada, em frente à mezuzá, ou na janela que dá para a via pública. Os seguintes horários são referentes apenas a São Paulo. 1ª noite 25 de Kislev Domingo, 2 de dezembro, a partir de 20:00 horas 2ª noite 26 de Kislev Segunda-feira, 3 de dezembro, a partir de 20:00 horas 3ª noite 27 de Kislev Terça-feira, 4 de dezembro, a partir de 20:02 horas

Hanerot halálu ánu madlikim, al hanissim veal hapurkan, veal haguevurot veal hateshuot, veal haniflaot, sheassita laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê, al yedê cohanêcha hakedoshim. Vechol shemonat yemê Chanucá, hanerot halálu côdesh hem, veen lánu reshut lehishtamesh bahem êla lir’otam bilvad, kedê lehodot lishmêcha, al nissêcha, veal nifleotêcha, veal yeshuotêcha.

Acendemos estas luzes em virtude dos milagres, redenções, bravuras, salvações, feitos maravilhosos e auxílios que realizaste para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época, por intermédio de Teus sagrados sacerdotes. Durante todos os oito dias de Chanucá, estas luzes são sagradas, não nos sendo permitido fazer qualquer uso delas, apenas mirálas, a fim de que possamos agradecer e louvar Teu grande nome, por Teus milagres, Teus feitos maravilhosos e Tuas salvações. 14

4ª noite 28 de Kislev Quarta-feira, 5 de dezembro, 20:02 horas 5ª noite 29 de Kislev Quinta-feira, 6 de dezembro, 20:02 horas 6ª noite 30 de Kislev Sexta-feira, 7 de dezembro, 19:20 horas, antes de

acender as velas de Shabat

7ª noite 1 de Tevet Sábado 8 de dezembro, a partir das 20:23 horas após a Havdalá 8ª noite 2 de Tevet Domingo, 9 de dezembro, a partir de 20:05 horas


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Purim e o Holocausto A festa de Purim, celebrada no dia 14 do mês judaico de Adar, é a data mais feliz no calendário judaico. A Meguilat Esther, o Livro de Esther, conta a história de Purim.

R

esumindo os principais pontos que têm relevância em nossa discussão: um homem de nome Haman ascende ao poder como primeiro ministro do Rei Achashverosh da Pérsia.

ambos – e entre a história de Purim e a “Solução Final ao Problema Judeu” da Alemanha nazista – são espantosas. Obviamente, há uma grande e dolorosa diferença: Haman não conseguiu implementar seu plano satânico, ao passo que, ainda que Hitler tenha, no fim, falhado, isso não se deu antes de assassinar sete milhões de judeus.

Ele pede permissão ao monarca para aniquilar todo o Povo Judeu – que vivia sob domínio persa -, e o Rei aquiesce. A Rainha Esther, judia, esposa do rei, juntamente com seu tio Mordechai, frustra o plano de genocídio de Haman, conseguindo, ainda, que o Rei Achashverosh se vire contra ele. Haman planejara enforcar Mordechai e exterminar todo o nosso povo, mas, no final, são ele e seus dez filhos quem cai em desgraça e são enforcados.

Uma ressalva importante: décadas atrás, acreditava-se que o número de judeus assassinados no Holocausto girava em torno de seis milhões – número aceito em 1946 durante os Julgamentos de Nuremberg. Nos últimos anos, novas evidências levaram historiadores e pesquisadores a concluir que o número de judeus mortos no Holocausto chega a quase sete milhões.

A história de Purim – a ascensão de um inimigo dos judeus que tentava aniquilá-los – tem sido um tema recorrente na história de nosso povo. Como lemos na Hagadá de Pessach, “Em todas as gerações eles se levantam para aniquilar-nos. E D’us, Abençoado é Seu Nome, salva-nos de suas mãos”. É verdade que ao longo da história, o Povo Judeu enfrentou muitos Hamans. Contudo, nenhum deles personificou-o melhor do que Adolf Hitler. Podemos até conjeturar que ele foi a reencarnação de Haman, pois as semelhanças entre

Nosso propósito, neste artigo, não é tentar explicar o Holocausto – está além de qualquer um de nós tentar explicar o inexplicável ou justificar o injustificável. Tampouco entraremos em discussões filosóficas ou teológicas sobre o Holocausto, pois, quando as pessoas o fazem, acabam insultando a memória dos sete milhões. Nosso propósito aqui é explorar as assombrosas semelhanças entre o plano genocida de Haman e a campanha nazista para exterminar o Povo Judeu. 15

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Os filhos de Amalek Muitos acreditam, erroneamente, que Haman e Hitler odiavam os judeus por serem alucinados ou porque acreditavam nas mentiras antissemitas que ambos fabricavam. A verdade é que Haman odiava o Povo Judeu porque ele pertencia ao povo de Amalek. No Livro Deuteronômio, a Torá diz o seguinte sobre Amalek: “Lembra-te do que te fez Amalek em teu caminho de saída do Egito. Quando te encontrou no

perseguido os judeus por diferentes razões – políticas, econômicas, religiosas ou territoriais –, o ódio de Amalek pelos Filhos de Israel é puro, despido de qualquer motivo ou justificativa. Amalek odeia os judeus simples e exclusivamente por serem judeus. Amalek e seus filhos não fazem distinção quando se trata de judeus: adultos e crianças, homens e mulheres, religiosos e seculares, capitalistas e socialistas, liberais e conservadores, sionistas ou não. Para Amalek, nós todos somos um só – um fenômeno indesejável que ele está determinado a extirpar da

Festa de Purim, cartão postal que reproduz um ólEo de Moritz Daniel Oppenheim. Alemanha, c. 1910

caminho e extirpou todos os que retardavam atrás de ti e tu estavas cansado e exausto e (Amalek) não temeu a D’us. Portanto, quando o Eterno, teu D’us, te der descanso de todos os teus inimigos em volta de ti, na terra que o Eterno, teu D’us, te está dando por herança para possuíla, apagarás a memória de Amalek de debaixo dos céus, não te esqueças.” (Deuteronômio 25:17-19). A Torá identifica o povo de Amalek como arqui-inimigo do Povo Judeu. Ainda que outros povos tivessem

face da Terra. Assim como o mal naturalmente odeia o bem, também Amalek – personificação da maldade e da escuridão – odeia os Filhos de Israel, “uma luz entre as nações” (Isaías 49:6). A Meguilat Esther revela que Haman era um agaguita. Agag, como nos ensina o Livro de Samuel, era o rei de Amalek. Haman e seus filhos – dez filhos e uma filha – eram amalequitas. Uma vez identificada a linhagem de Haman e de seus filhos, podemos facilmente identificar a 16

origem de seu ódio obsessivo pelo Povo Judeu. Um ódio puro e sem fundamento aos judeus, cravado no DNA espiritual de Amalek e seus descendentes. Na história de Purim, Haman alega que deseja exterminar os judeus porque um de seus líderes, Mordechai, recusava-se a se curvar perante ele. Mas qualquer pessoa sensata percebe que se tratava de um pretexto ridículo. Se o poderoso primeiro ministro da Pérsia se sentia insultado por Mordechai, ele poderia tê-lo prendido – e, se fosse especialmente cruel, até podia executá-lo. Mas como justificar a morte de todo um povo, incluindo as crianças, porque ele se sentia insultado por um de seus líderes? Haman não revela ao Rei Achashverosh o verdadeiro motivo por que deseja aniquilar todos os judeus. Em vez disso, espalha mentiras e falsas alegações que os antissemitas têm disseminado desde tempos imemoriais. Conta ao rei que os judeus têm suas próprias leis e, portanto, não podem ser servos leais a ele. Afirma, também, que eles não são confiáveis e representam uma ameaça a seu reino. Diz, também, que os judeus diferem de todos os outros povos: não se misturam, vivem segregados com os seus e, assim, não havia lugar para eles no reino de Achashverosh. Sabemos que Haman é um amalequita porque o Tanach revela sua linhagem, mas mesmo se a Meguilat Esther não tivesse exposto essa ancestralidade, seria fácil identificá-lo como filho de Amalek. Vimos, pois, que se trata de um arqui-inimigo dos Filhos de Israel. Amalek é obcecado com os judeus. Vemos na história de Purim que o ódio de Haman por Mordechai e o Povo Judeu o consome. Todo o restante tem importância secundária


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Meguilat Esther, Itália, final séc. 18. Sépia sobre pergaminho

para ele. Ele tinha tudo para ser um homem feliz: viera do nada e se tornara primeiro ministro de um vasto império. Conseguira, também, amealhar uma grande fortuna: a Meguilá conta que ele ofereceu grande soma em dinheiro ao rei em troca da permissão de aniquilar nosso povo. Além disso, ele tinha uma família grande – mulher, dez filhos e uma filha. Tinha tudo o que representa o sonho de muitos: poder extraordinário, influência, honra e sucesso, riqueza, mulher e muitos filhos. Ainda assim, Haman não desfrutava a vida enquanto houvesse judeus. Ele diz à mulher que nada lhe importava enquanto Mordechai estivesse vivo. Seu ódio pelos judeus estava arraigado no centro de sua vida. Assim como Haman, Adolf Hitler também era obcecado pelos judeus. Como Haman, ele tentou justificar seu antissemitismo com mentiras e

teorias absurdas nas quais nem ele acreditava. Como Haman, o ódio que Hitler tinham pelos judeus o consumia. Se não tivesse empregado tantos recursos para aniquilar milhões de judeus, teria tido maior chance de vencer a guerra. É possível que se Hitler tivesse podido escolher entre vencer a guerra ou matar todos os judeus, ele tivesse escolhido a segunda opção. Ele expressou seu ódio pelos judeus mesmo nos momentos finais de sua vida. Vejam como termina seu testamento: “Mas, antes de mais nada, conclamo a liderança da nação e aqueles que a seguem a observar as leis raciais mais atentamente, a lutar sem piedade contra os envenenadores de todos os povos do mundo, os judeus internacionais”. Foram essas as suas palavras finais. Poder-se-ia pensar que seu testamento concluísse com as palavras “Viva a Alemanha!”, ou “Viva o nazismo”, ou, ao menos, com uma maldição contra os exércitos 17

que venceram e invadiram o país que ele conduzira e amara. Mas, em vez de amaldiçoar o socialismo, a União Soviética, os ingleses ou os americanos, ele dirige seu ódio contra os judeus, chamando-os de “envenenadores de todos os povos do mundo”, ainda que eles jamais o tivessem prejudicado. Ele odiava o Povo Judeu muito mais do que as nações que o haviam vencido, bem como a seu país, sua ideologia e tudo pelo que vivera, forçando-o a acabar com a própria vida. Como Haman, Hitler respirava antissemitismo. E por que odiava tanto o Povo Judeu? Porque ele era filho de Amalek. Na verdade, ele era, provavelmente, seu filho mais bemsucedido, pois, diferentemente de Haman, conseguiu implementar seu plano genocida contra o Povo Judeu. Felizmente não conseguiu exterminar-nos todos, como planejava, mas chegou perto disso. DEZEMBRO 2018


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Haman e Hitler São vários os paralelos espantosos entre a vida de Haman e a de Hitler. Ambos vieram do nada e atingiram grande poder, tornando-se os líderes de facto de países poderosos. Hitler era um artista medíocre, sem um lar e um soldado raso de 2a linha na 1a Guerra Mundial. Nem era rico nem vinha de família nobre e nunca demonstrou grandes habilidades intelectuais. Como ele, também Haman serviu o exército, sem qualquer distinção. Antes disso trabalhara como barbeiro. Faltava aos dois a maioria das qualidades que lançam os homens a posições de poder, mas ambos eram mestres na manipulação e na mentira, e demagogos impiedosos e eloquentes. Outra semelhança entre a história de vida de ambos foi o seu ódio pelos judeus, compartilhado por aqueles que lhes haviam dado o poder. Ao ler a Meguilat Esther, podemos perguntar: Como é possível que Haman tivesse convencido, tão facilmente, o Rei Achashverosh a lhe dar permissão de aniquilar os judeus? De fato, como alguém pode permitir o genocídio, em seu império, com tamanha leviandade? A resposta é que o rei da Pérsia podia ter sido crédulo e facilmente manipulável, mas no fundo também queria se livrar dos judeus. Achashverosh só mudou seu pensamento sobre o Povo Judeu quando se lembrou que Mordechai lhe havia salvo a vida e descobriu que sua amada Esther era judia. Mas, até que isso acontecesse, ele achou ótimo o plano de Haman de criar um mundo judenrein, livre de judeus. O Talmud (Bavli, Meguilá, 14a) revela que Haman viu no Rei Achashverosh um parceiro receptivo. Assim como os dois juntaram forças para exterminar os judeus,

também o fizeram Hitler e o povo alemão. Nem todos os alemães eram nazistas e alguns se opuseram e até tentaram assassinar Hitler. Contudo, é fato histórico inquestionável que a Alemanha escolheu Hitler como seu líder, endossou suas ideias e, gradualmente, seus feitos. Podese dizer que os alemães lhe deram a mesma mensagem que o Rei Achashverosh transmitiu a Haman: “Faça com o povo (judeu) o que você achar melhor” (Meguilat Esther, 3:11). É verdade que em julho de 1932, nas eleições, Paul von Hindenburg derrotou Hitler e permaneceu na presidência do país. Contudo, nessas mesmas eleições democráticas, os nazistas obtiveram mais assentos do que qualquer outro partido no Reichstag, o parlamento. Além disso, assim como havia feito Achashverosh, dando poder quase ilimitado a Haman, o presidente Paul von Hindenburg nomeou Hitler chefe do governo, em 30 de janeiro de 1933. É claro que Hitler usou de intimidação, violência e engodo, como o incêndio no Reichstag, para assumir o governo.

Mas, se o seu Partido Nazista não tivesse sido o maior partido no Parlamento, ele jamais estaria em posição de o fazer. O povo da Alemanha e seu presidente foram diretamente responsáveis pela subida ao poder de Adolf Hitler e pelo Nazismo. Apesar do ódio de Hitler aos judeus e do que ele prometera fazer a eles, e apesar das atrocidades cometidas pelos nazistas, o povo da Alemanha estava bastante satisfeito com seu líder, enquanto as coisas estivessem indo bem no país. Assim como Haman não teria tido poderes para ameaçar os judeus sem a aquiescência e apoio de Achashverosh, também Hitler não poderia ter executado o Holocausto se o povo da Alemanha e seu presidente não lhe tivessem dado carta branca. É importante observar que os judeus não são os únicos a ver paralelos entre a história de Purim e o Holocausto. Os nazistas também os viram. A história de Purim perturbava, tremendamente, Adolf Hitler. É possível que ele se tenha achado a personificação ou reencarnação de Haman. Em vez de tentar desacreditar a história de Purim, lançando dúvidas sobre sua veracidade, que é a maneira mais eficaz de tornar irrelevantes os fatos históricos, Hitler baniu e proibiu seu cumprimento. Na verdade, não foi apenas ele, mas seus “filhos” também ficaram profundamente perturbados com a história de Purim. Em uma discurso proferido em 10 de novembro de 1938, dia seguinte à Kristallnacht, Julius Streicher – editor do jornal antissemita Der Stürmer, elemento central na máquina de propaganda nazista – fez a seguinte afirmação nefasta e mentirosa: assim como “os judeus haviam assassinado 75.000 persas

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(na história de Purim) em uma noite”, a mesma sorte ter-se-ia abatido sobre o povo alemão se os judeus tivessem conseguido iniciar uma guerra contra a Alemanha. Os “judeus teriam instituído um novo Purim na Alemanha”, alardeou. Ataques nazistas contra os judeus eram frequentemente coordenados com as festas judaicas, especialmente Purim. Em Purim de 1942, dez judeus foram enforcados em Zduńska Wola, cidade na Polônia, para “vingar” o enforcamento dos dez filhos de Haman. Em incidente semelhante, em 1943, os nazistas fuzilaram dez judeus do gueto de Piotrków. Mas a conexão mais evidente feita pelo próprio Hitler entre ele e Haman foi um discurso que pronunciou em 30 de janeiro de 1944, quando declarou que se os nazistas fossem derrotados, os judeus celebrariam um “segundo Purim”.

Os dez Filhos de Haman e os Julgamentos de Nuremberg Semelhanças realmente assombrosas entre a história de Purim e o Holocausto vieram à tona durante os Julgamentos de Nuremberg. A Meguilat Esther conta que os dez filhos de Haman foram enforcados. O Talmud revela que Haman também tinha uma filha, que cometeu suicídio e, assim, não precisou ser enforcada. Dos 23 criminosos de guerra nazistas julgados em Nuremberg, 11 foram condenados à morte na forca. Duas horas antes da sentença ser executada, Herman Göring cometeu suicídio. O enforcamento dos dez nazistas foi realizado em 16 de outubro de 1946, que era o dia 21 do mês judaico de Tishrei – Hoshaná Rabá –, sétimo e último dia da festa

Proeminentes líderes da Alemanha Nazista sentados no banco dos réus durante o Julgamento de Nuremberg, entre novembro de 1945 e 1 de outubro de 1946

de Sucot. Nossos Sábios ensinam que Hoshaná Rabá é o dia em que D’us julga as nações do mundo; é, também, quando Ele inicia os julgamentos selados por Ele em Yom Kipur. Além do paralelo histórico entre os 11 filhos de Haman e os 11 nazistas sentenciados à morte – em ambos os casos, dez foram enforcados e um cometeu suicídio –, alguns estudiosos encontraram alusões aos Julgamentos de Nuremberg na própria Meguilat Esther. Lemos a seguinte passagem no Livro de Esther: “O rei disse a Esther… ‘os judeus mataram e destruíram 500 homens e os dez filhos de Haman… Qual é, pois, a tua petição e esta se dará a ti!’ … Então Esther disse: ‘Se parecer bem ao rei, conceda-se aos judeus que se acham em Shushán, que também façam amanhã segundo o edito de hoje, e pendurem na forca os dez filhos de Haman’. Então o rei ordenou que assim fosse feito e publicou-se o edito em Shushán e penduraram os dez filhos de Haman” (Esther 9:12-14). 19

Quem lê essa passagem com atenção percebe que há nela algo muito enigmático. O rei informa a Esther que os dez filhos de Haman foram mortos e pergunta a ela se tem algum pedido adicional. Ela pede ao rei “...que também façam amanhã ..., e pendurem na forca os dez filhos de Haman”. Mas, se os dez filhos de Haman já estavam mortos, qual o propósito de enforcá-los “amanhã”? Explicam nossos Sábios: há um amanhã que é agora, e um amanhã que é depois. Em outras palavras, segundo nos ensinam eles, Esther pedia que o enforcamento dos dez filhos de Haman não fosse um episódio isolado na História, mas que também voltasse a ocorrer no futuro – “amanhã”. “O rei ordenou que assim fosse feito”, segundo nossos Sábios, refere-se não apenas a Achashverosh, mas ao verdadeiro Rei, Mestre do Universo. O curioso sobre os Julgamentos de Nuremberg não é apenas o fato de dez nazistas terem sido executados – exato número de filhos de Haman também enforcados –, mas o método de execução também ter sido o DEZEMBRO 2018


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mesmo. Como o julgamento foi conduzido por um tribunal militar, o método de execução deveria ter sido fuzilamento ou cadeira elétrica, como era costume nos Estados Unidos. No entanto, o tribunal insistiu, especificamente, em forca, exatamente como no apelo da Rainha Esther: “... amanhã ..., e pendurem na forca os dez filhos de Haman”. Há quem possa ver com ceticismo esses paralelos entre a história de Purim e a “Solução Final ao Problema Judeu”, da Alemanha nazista. Mas um dos líderes nazistas, Julius Streicher, acima mencionado, não era uma dessas pessoas. Streicher foi enforcado ao amanhecer do dia 16 de outubro de 1946. Seu enforcamento foi o mais melodramático de todos. Joseph Kingsbury-Smith, único representante da mídia americana presente às execuções, fez uma matéria que foi publicada em todos os grandes jornais. A seguir, trechos da mesma: “Julius Streicher fez sua entrada melodramática às 2:12h da madrugada…. Dois guardas, cada um segurando um de seus braços, conduziram-no ao cadafalso No 1, à esquerda da entrada. Ele caminhou, com firmeza, os seis pés de distância até o primeiro degrau de madeira, mas seu rosto se contorcia. Quando os guardas o detiveram antes dos degraus para as formalidades de identificação, ele bradou um grito pungente: ‘Heil, Hitler!’. O grito me causou um calafrio, coluna abaixo… Empurraram-no até os dois últimos degraus até o ponto mortal sob a corda do carrasco... Streicher foi balançado, subitamente, de modo a olhar para as testemunhas e as encarou. E, de repente, grita: ‘Purim Fest 1946! (Festa de Purim de 1946)’”.

Os estudiosos encontraram outra alusão aos Julgamentos de Nuremberg na Meguilat Esther. Ensinam nossos Sábios que, quando uma letra na Torá ou em qualquer dos demais livros do Tanach aparecem de tamanho maior ou menor, isso alude a algo muito significativo. Há uma tradição que conta que Mordechai, um profeta, escreveu a Meguilat Esther. No texto, encontramos três letras escritas com caracteres menores; elas são encontradas em meio ao nome dos dez filhos de Haman. Essas letras são um Taf pequeno em Parshandatha, um Shin pequeno em Parmashta e um Zayin pequeno em Vaizata. Durante milhares de anos, os judeus ficavam imaginando a razão para essas três letras terem sido escritas em tamanho menor. Agora, já o sabemos: as três letras misteriosamente escritas com letrinha pequena dentro dos nomes dos dez filhos de Haman, que foram enforcados, formam o ano do enforcamento dos dez nazistas. O ano de Taf Shin Zayin foi o ano judaico que representa outubro de 1946.

Texto da Meguilat Esther

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Um segundo Purim Como mencionado acima, em 30 de janeiro de 1944, Adolf Hitler declarou que se os nazistas perdessem a guerra, os judeus celebrariam um segundo Purim. Os nazistas foram, efetivamente, derrotados; o Povo Judeu sobreviveu e seguiu em frente até reerguer o Judaísmo e fundar o Estado de Israel. Mas a derrota de Hitler não se configurou em um segundo Purim – pelo menos não um Purim festivo. Esse moderno Haman fracassou e morreu em desgraça, mas não sem antes assassinar quase sete milhões de judeus. Não sabemos por que razão a salvação que celebramos em Purim não ocorreu quando Hitler subiu ao poder. No entanto, sabemos o seguinte: Haman e Hitler perseguiram os judeus porque nosso povo vivia na Diáspora. Hitler e seus carrascos foram capazes de liquidar milhões de judeus porque não tínhamos nossa terra – e nenhum país abriu seus braços para recebernos e salvar-nos do extermínio. Hitler e seus carrascos torturaram e exterminaram dois terços do judaísmo europeu porque éramos vulneráveis e não tínhamos um exército judeu para nos proteger. A festa de Purim celebra a maneira como a Divina Providência orquestrou uma série de eventos – milagres ocultos, a que chamamos de “coincidências” – para salvar o Povo Judeu das garras de Haman. E por que não houve tais milagres quando Hitler e seus “filhos” arquitetaram e executaram a Solução Final? Não o sabemos. Talvez o milagre tenha sido a derrota da Alemanha nazista. Qualquer estudioso da 2a Guerra Mundial sabe que as potências do


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Eixo poderiam facilmente ter saído vitoriosas não fossem os pequenos erros e cálculos malfeitos de Hitler. O escritor inglês, Graham Greene, escreveu: “Você não consegue conceber, nem eu, a espantosa estranheza da misericórdia Divina”. Não podemos, de fato. Somos gratos à Divina Providência pelo fato de Hitler e a Alemanha nazista terem sido derrotados, e que seus dez “filhos” tenham sido enforcados e que o Povo Judeu tenha sobrevivido e que, apenas três anos após o fim da guerra, tenha podido realizar o sonho de 2.000 anos de criar o Estado Judeu na Terra de Israel. Mas não conseguimos entender o extermínio de sete milhões de pessoas. Talvez no Mundo Vindouro possamos entender a espantosa estranheza da misericórdia Divina; mas neste nosso mundo, várias coisas, como o Holocausto, escapam à nossa compreensão. Nosso povo não pode permitir que a dor pelo Holocausto ofusque o júbilo de Purim. Contudo, talvez a morte de sete milhões de judeus deva nos fazer celebrar essa festividade com menos inocência do que as gerações anteriores ao Holocausto o fizeram. Através dos séculos, muitos judeus zombavam da figura de Haman, cujos planos malignos se voltaram contra ele próprio. Contudo, após voltar ao mundo na figura de Adolf Hitler, Haman deixou de ser uma figura da qual podemos zombar ou desconsiderar. Menachem Begin, Primeiro Ministro de Israel, que perdeu a maior parte de sua família em mãos dos nazistas, e que era um homem religioso mas também um guerreiro judeu orgulhoso e feroz, respondeu, em certa ocasião, à pergunta da lição que devemos tirar do Holocausto. Ele respondeu que o Holocausto deveria ensinar-nos que

quando alguém promete matar todos os judeus, devemos levar essa pessoa muito a sério. Um sábio conselho para todos nós, judeus, na Diáspora e em Israel. Amalek e seus descendentes podem migrar e passar por muitas metamorfoses – podem até ocultarse nas sombras, durante longo tempo. Mas continuarão a existir até o dia em que o Mashiach chegar a nosso mundo. Mesmo nos dias de hoje, há homens como Haman e Hitler, e países como a Alemanha nazista, que prometem e tramam aniquilar o Estado Judeu e o Povo Judeu. O Holocausto ensinou a nosso povo inúmeras lições muito dolorosas. Uma delas é que em um mundo que tolera e, por vezes, até consente na existência de homens como Haman e Hitler, os judeus têm que poder defender-se sem contar com ninguém. Podemos repetir “Nunca mais” tantas vezes quanto quisermos, mas não se trata de palavras mágicas que, de alguma maneira, impeçam um outro Holocausto. Somente a Divina Providência e um Estado de Israel forte, com sua feroz, implacável 21

e afiada máquina de guerra, podem fazê-lo. Em nossa geração, os amalequitas são aqueles que se opõem à existência e legitimidade do Estado Judeu; eles querem destruir Israel por saberem que os judeus, sem um país e sem seu próprio exército, constituem presa fácil para os Hamans e Hitlers do mundo. Purim é o dia mais feliz do ano judaico e deve ser comemorado como tal. Celebra a eternidade do Povo Judeu. Apesar do Holocausto – a perda de sete milhões de judeus, entre os quais um milhão e meio de crianças -, devemos celebrar essa festividade com grande alegria. Mas, devemos fazê-lo não apenas com um sorriso no rosto, mas também com uma férrea determinação em nosso coração de defender o Povo Judeu até que chegue o dia em que a memória de Amalek seja apagada de debaixo dos céus.

BIBLIOGRAFIA

Avraham, Rachel: Strange Parallels between the Purim Story and the Nuremberg Trials United with Israel. DEZEMBRO 2018


história

ESPIÕES NA TERRA SANTA Como um heroico grupo de pioneiros judeus contribuiu para a derrota do Império Otomano na antiga Palestina. POR ZEVI GHIVELDER

N

a segunda metade do século 19, um dos mais ilustres viajantes a percorrer a antiga Palestina foi o icônico escritor americano Mark Twain. Dessa viagem resultou seu livro Innocents Abroad (sem tradução para o português), no qual descreve a Terra Santa de 1870 como uma terra de paisagem desoladora a par da feiura de seus habitantes. Relata, ainda, a existência de aldeias miseráveis com gente miserável, que qualifica como “humanidade esquálida”.

Leon Pinsker, livro sobre o qual Theodor Herzl escreveu: “Se eu tivesse lido Pinsker, talvez não tivesse escrito O Estado Judeu”. Obviamente, os judeus que pretendiam emigrar da Rússia, da Romênia e da Galícia para a Palestina Otomana não tinham meios para sustentar tal empreendimento. Foi quando veio o socorro do Fundo Rothschild, tendo à frente o barão Edmond Rothschild, da célebre família de banqueiros judeus europeus, que, além de proporcionar o deslocamento para homens, mulheres e crianças, também adquiriu propriedades para exploração agrícola na Palestina Otomana, chegando a somar um total de 350 mil metros quadrados de terras. Assim foi dada origem a uma série de novos assentamentos ocupados pelos pioneiros. Esses imigrantes, dotados de uma energia fora do comum, não mantinham convicções de caráter coletivo tal como aconteceria anos mais tarde com a implantação dos kibutzim (colônias agrícolas coletivas). Eles não eram socialistas e optaram por incrementar atividades particulares nos moshavim (comunidades rurais), em sistema de cooperativas. Em dezembro de 1882, um grupo de cem judeus da Bessarábia, integrantes do movimento Hibat Zion, instalou-se em uma das terras

Foi com essa triste paisagem que os judeus da Primeira Aliá, que se estendeu de 1883 a 1903, se depararam quando chegaram à Palestina sob domínio turco. Esta chamada Primeira Aliá correspondeu a uma corrente imigratória que levou de 25 mil a 35 mil judeus da Europa Oriental e do Iêmen para Eretz Israel (Terra de Israel). A maioria dos recém-chegados era oriunda da Rússia, onde, no final do século 19 e princípio do século 20, os pogroms (massacres contra judeus) se multiplicavam. Por causa desses ataques sangrentos e impiedosos os judeus começaram a fortalecer sua identidade nacional, o que deu origem ao movimento Hibat Zion (Amor a Sion), cuja base teórica e aclamada era a obra precursora do sionismo, Autoemancipação, de 22


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exterior do Museu NILI - BEIT ARONSOHN, EM ZICHRON YAAKOV

compradas pelo Fundo Rothschild, a 35 quilômetros ao sul de Haifa, nas escarpas do Monte Carmel. Muitos dos agricultores foram acometidos pela malária e decidiram abandonar o projeto de se radicar na Palestina. Os que ficaram, deram à localidade o nome Zichron Yaakov, em homenagem ao pai do barão, de nome Yaakov. As primeiras atividades agrícolas não deram certo e, três anos mais tarde, Edmond Rothschild decidiu ali instalar a primeira vinícola da Palestina, uma iniciativa bem-sucedida. Efraim Aronsohn, possuidor de razoáveis recursos próprios, desembarcou em Jaffa com a mulher, Malka, e dois filhos pequenos, Aaron, seis anos, e Zvi, com quatro. A família se estabeleceu em Zichron Yaakov, onde nasceram mais dois filhos, Shmuel e Alexander, e duas filhas, Sarah e Rivka. Dos seis

filhos, dois revelaram extraordinária inteligência e firmeza de caráter, Aaron e Sarah. A eclosão da 1ª Guerra Mundial, em 1914, não chegou a interferir na rotina de Zichron Yaakov.

Sarah aronsohn

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Os ocupantes otomanos eram complacentes com os pioneiros e só passaram a se preocupar com os judeus quando o Sionismo começou a ser um movimento inspirador e propulsor da Segunda Aliá, de 1904 a 1914, resultando na fundação do primeiro kibutz, Degânia, às margens do Mar da Galileia, em 1909. Esses pioneiros eram idealistas, nacionalistas e socialistas, portanto vistos de forma suspeita pelas autoridades otomanas. Muitos desses imigrantes passaram a ser monitorados, culminando com a expulsão da Palestina de dois líderes sionistas, David Ben Gurion e Itzhak Ben Zvi. Ambos se exilaram temporariamente nos Estados Unidos. Os judeus só se mobilizaram quando lhes chegaram os primeiros relatos sobre a Campanha de Galípoli, que durou de 1915 até o ano seguinte. Essa campanha foi um dos mais trágicos momentos da DEZEMBRO 2018


história

Primeira Guerra Mundial. Tropas inglesas, francesas, australianas e neozelandesas desembarcaram na península de Galípoli com o propósito de invadir a Turquia, aliada da Alemanha no conflito, e capturar o estratégico Estreito dos Dardanelos. Foram assombrosos os milhares de mortos e feridos nas fileiras das forças invasoras. Estas contavam com cerca de 80 mil homens que não conseguiram ultrapassar as ferozes defesas turcas. Fora a resistência na península, o Estreito dos Dardanelos permaneceu fechado, impedindo que os países ocidentais, além de combalidos por terríveis baixas militares, pudessem levar auxílio à Rússia com a qual estavam alinhados na guerra. O insucesso de Galípoli fez com que o império britânico passasse a dedicar maior atenção à ocupação otomana na Palestina e a cogitar a invasão daquela região. A par do fracasso militar na península turca, em 1916 teve início uma revolta árabe contra os turcos e também de caráter nacionalista, que passou a agir por conta própria, sem a interferência de qualquer potência

lhe uma tropa de 10 mil homens, que combateu os turcos com ações de sabotagens e guerrilhas. Mais tarde, Lawrence viria a manter importante contato com Aaron, filho mais velho da família Aronsohn.

estrangeira. Nesse contexto avultou a figura de um militar inglês chamado Thomas Edward Lawrence, o mítico Lawrence da Arábia. Fascinado pelo mundo árabe, ele ganhou a confiança de Faissal, um dos líderes da rebelião árabe, que ficou impressionado com os conhecimentos daquele jovem oficial sobre as condições logísticas e o potencial militar turco, conhecimentos adquiridos enquanto ele servira durante dois anos no serviço secreto inglês, sediado no Cairo, sob o comando do general Allenby. Faissal acabou confiando-

Aaron Aronsohn, filho de Efraim, nasceu na Romênia em 1876. Patrocinado por Edmond Rothschild, estudou agronomia e botânica na França. Embora muito jovem, mas já distinguido como notável especialista nessas matérias, voltou para Zichron Yaakov e de lá partiu para o norte da Palestina com a finalidade de pesquisar a flora local. Na área de Rosh Piná, dedicou seus estudos a uma planta que recebeu o nome em latim de triticum, o principal componente do trigo para alimentação. O jornal The New York Times, do dia 26 de outubro de 1905, noticiou: “Trigo histórico encontrado na Palestina”. Na verdade, as pesquisas e estudos daquele rapaz judeu são até hoje uma fonte mundial de referência nessa matéria. Depoimentos de contemporâneos de Aaron apontamno como uma verdadeira força da natureza: um homem alto, ombros largos, musculoso, enfim, uma figura humana imponente. Por causa da notícia no jornal americano, Aaron recebeu uma correspondência assinada por David Fairchild, cientista-chefe do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos com um convite para uma visita a Washington. Respondeu que, por causa de uma crise agrícola em Zichron Yaakov, não poderia viajar naquele ano, acrescentando que, quando possível, gostaria de fazer pesquisas na Califórnia, cuja geologia, conforme estudara com meticulosidade, apresentava significativas semelhanças com certas regiões da Palestina.

Degânia, o primeiro kibutz fundado em Eretz Israel. Umm-J’uni, o principal galpão, 1911

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Tendo Zichron Yaakov voltado a entrar nos eixos, Aaron pôde partir para os Estados Unidos. Recebido de forma entusiástica por Fairchild, percorreu o país durante quatro meses fazendo palestras em associações científicas e universidades. Ao mesmo tempo, aproximou-se de pessoas físicas e entidades filantrópicas judaicas, obtendo fundos para a instalação de um centro de pesquisas de história natural na cidade costeira de Atlit, ao sul de Haifa, que abrigaria a primeira biblioteca especializada nessa matéria na Terra Santa. Anos mais tarde, Fairchild escreveria sobre Aronsohn: “Eu logo percebi que estava perante um homem extraordinário. Embora ele jamais tivesse estado na Califórnia, conhecia aquele estado tão bem como conhece a Palestina. Nenhum estrangeiro nunca esteve no meu escritório com um acúmulo de informações e conclusões tão profundas sobre solos, climas, diferentes plantas e suas adaptabilidades a diferentes meio-ambientes”. A Universidade de Columbia, em Nova York, convidou-o para lecionar em caráter permanente, mas Aaron recusou. Tinha pressa em voltar para casa. Primeiro, para cuidar do centro a ser criado em Atlit; segundo, porque sentia que os judeus do ishuv (judeus residentes na Palestina) sofriam uma iminente e grave ameaça. Depois de tomar conhecimento do massacre perpetrado pelo governo da Turquia contra um milhão e meio de armênios, gerando por consequência hordas de refugiados expulsos de suas terras, era óbvio concluir que a mesma desgraça poderia abater-se sobre os judeus na Palestina. Portanto, era preciso tomar alguma providência o quanto antes, era imperioso participar da guerra contra os otomanos, aliando-

armamentos. Para ter acesso a tais informações era preciso ganhar a confiança dos dirigentes civis e militares otomanos, uma tarefa quase impossível. Seu primeiro passo foi estabelecer as bases de uma rede de espionagem judaica sob a seguinte égide, extraída do livro de Samuel: Netzach Israel Lo Ieshaker, (A Glória de Israel Jamais Morrerá), daí resultando o acrônimo NILI, formado pelas primeiras letras das palavras no idioma hebraico. O ponto de convergência da rede de espionagem em gestação seria em Atlit. Em março de 1915, uma praga

Aaron Aronsohn

AVSHALOM FEINBERG

YOSEF LISHANSKY

se à Grã-Bretanha para o que desse e viesse. Aaron se preocupava com as atitudes hostis de Djemal Pasha, comandante do Quarto Exército Otomano, contra o ishuv, a ponto de o chefe militar turco já ter ordenado em 1914, no início da grande guerra, a expulsão da Palestina de cerca de mil judeus. Aaron Aronsohn nada sabia a respeito do potencial militar do regime turco e menos ainda de suas condições logísticas, tais como transportes, combustíveis e quantidade e qualidade de 25

NA’AMAN BELKIND

de gafanhotos invadiu a Palestina causando imensas devastações e prejudicando seriamente a produção de alimentos. Informado de que o judeu Aronsohn havia estabelecido um centro de pesquisas de história natural, Djemal Pasha, verdadeiro ditador da Palestina e da Síria otomanas, mandou chamá-lo num tom ameaçador. Se não obtivesse ajuda para combater a praga, haveria consequências desagradáveis. A intimidação chegou ao ponto de Pasha dizer: “O que você diria se eu mandasse enforcá-lo? ”. Aaron respondeu: “Como eu peso muito, DEZEMBRO 2018


história

qualquer interesse, nada daquilo tinha o menor valor.

Rivka, Sarah e Ephraim Aronsohn. No meio, Alexander e Shmuel Aronsohn, com Chaim Abraham, marido de Sarah, à direita. Atrás, Aaron Aronsohn.

a árvore quebraria e faria um tamanho barulho, que seria ouvido até nos Estados Unidos”. Djemal entendeu o recado. Não valia a pena se indispor com os Estados Unidos, que até então se mantinha neutro na guerra, e estava sendo cortejado tanto pela Turquia, como pelos aliados europeus. Para erradicar os gafanhotos, Aaron teve à sua disposição um veículo militar, com escolta e motorista, no qual esquadrinhou a Palestina e também a Síria. Acumulou montanhas de informações sobre topografia, clima, recursos e obstáculos naturais, inclusive tendo acesso não detectado a planilhas de armamentos e estratégias militares turcas. Enfim, possuía grande parte do que os ingleses precisariam saber na hipótese de optarem por uma intervenção militar na Palestina. Aaron conseguiu erradicar a praga dos gafanhotos e assim caiu nas graças das autoridades otomanas. Seu passo seguinte consistiu em estabelecer um contato produtivo com os serviços britânicos de inteligência. Chamou seus irmãos Alexander e Rivka, providenciou passaportes falsos e comprou

passagens num navio que zarparia de Beirute para a Europa com escala em Alexandria. Os irmãos ali desembarcaram e tomaram o rumo do Cairo onde Alexander esbarrou nas maiores dificuldades para fazer contato com alguém do serviço secreto inglês. Depois de muitas idas e vindas, foi finalmente recebido por um oficial. Do alto de sua arrogância, este deitou uma vista de olhos nos documentos trazidos por Alexander e disse que nada daquilo tinha

Sarah Aronsohn em seu cavalo, Tayar, c. 1917

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Aronsohn não desistiu, providenciou outro passaporte falso e comprou outra passagem com escala em Alexandria. Desta vez a incumbência de mensageiro foi dada ao jovem Avshalom Feinberg, rapaz culto e inteligente, noivo de Rivka e melhor amigo de Aaron. Ele teve sorte na aproximação com um oficial que ficou impressionado com o volume de informações que lhe estava sendo exibido. De imediato emitiu uma ordem para os navios de guerra britânicos, em ação no mar Mediterrâneo, entrarem em contato com a rede judaica através de luzes com código Morse e, eventualmente, para contatos pessoais, se dirigissem até a costa da Palestina em barcos a remo. Em 1916, somando-se às crescentes preocupações de Aronsohn, os turcos continuaram perseguindo e expulsando os armênios. Somente um tolo não perceberia que logo os judeus enfrentariam o mesmo destino. Resolveu tratar da proteção do ishuv diretamente com os ingleses, em Londres, um passo da maior ousadia. Mas, como justificar perante os turcos uma súbita viagem à Europa? Disse-lhes que havia descoberto um tipo de sésamo que continha uma quantidade incomum de gergelim e, portanto, algo com apreciável potencial econômico para o governo de Istambul. Entretanto, para estar seguro de que estava no caminho científico correto, precisava consultar famosos especialistas nessa matéria em Berlim. Partiu para a capital da Turquia e de lá para Berlim. Sob pretexto de realizar um trabalho científico, obteve um visto para a Dinamarca, neutra no conflito. Em Copenhague, Aaron dirigiu-se à embaixada inglesa onde revelou a


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um alto diplomata tudo sobre a já ativa NILI. Se quisesse, o funcionário britânico poderia entrar em contato com a embaixada no Cairo, onde teria a confirmação da pouca atenção que seus primeiros emissários ali haviam recebido, bem como das instruções de cooperação transmitidas para a Real Marinha de Sua Majestade. Aaron e o diplomata traçaram um plano para evitar que sua família e a rede NILI sofressem retaliações, caso os turcos viessem a saber de sua presença em Londres. Por conta de suas antigas amizades, Aaron obteve do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos uma carta-convite para participar de um congresso internacional em Washington. O navio no qual embarcou, que navegaria para o outro lado do Atlântico, fez uma escala na Escócia e Aronsohn foi pretensamente preso pelas autoridades locais sob a acusação de ser um espião a mando da Turquia. Era um disfarce perfeito para enganar os turcos se, de alguma maneira, fossem informados que ele estava em solo britânico. Em Londres, foi primeiro interrogado por um oficial especializado em assuntos da Turquia e, depois de atestada sua veracidade, passou a ter longas conversas com Sir Marks Sykes, parlamentar e chefe da inteligência britânica. (Anos depois, finda a guerra com a vitória dos aliados, Sykes assinaria junto com o francês Picot o acordo que dividiu os territórios até então pertencentes ao império otomano). Ao longo de sucessivos encontros, Sykes passou a admirar aquele judeu orgulhoso de sua ancestralidade, que se voluntariava para colaborar com o esforço de guerra inglês e não lhe pedira sequer uma libra esterlina como contrapartida. Em outras conversas, Aaron falou-lhe longamente sobre o projeto sionista.

Jerusalém se rende aOS britânicos

Sykes escreveu um relatório de 38 páginas para o primeiro-ministro Asquith, destacando o inestimável valor da rede NILI para as presentes e futuras pretensões do governo de Sua Majestade com relação à Palestina. Sykes também se impressionou com as dissertações sobre o sionismo feitas por Aaron e, por conta disso, acabou exercendo influência no gabinete para a emissão da Declaração Balfour.

Sarah Aronsohn nasceu em Zichron Yakov no dia 5 de janeiro de 1890. Seu pai, Efraim, era a personalidade proeminente da comunidade e ganhara boa quantia comerciando grãos. As maiores honrarias, entretanto, eram devotadas a Aaron, catorze anos mais velho do que ela e que, portanto, assumira a condição de seu mentor intelectual. Era o mais velho dos seis irmãos e todos personificavam a segunda geração dos pioneiros da Primeira Aliá. Comportavam-se como se já estivessem numa pátria judaica soberana, falando o idioma hebraico em seu cotidiano e cultivando imensa devoção às terras que, somente devido à sua presença, pareciam despertar por conta própria após um pesadelo de muitos séculos. Ao mesmo tempo, os jovens de Zichron Yaakov se organizavam em grupos, a partir de treinamentos paramilitares com a finalidade de defender suas propriedades. Sarah pertencia ao grupo fundado por seu irmão Alexander, os gideonim, homenagem ao personagem bíblico Gideon.

Allenby se aproxima do Portão de Jaffa

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história

Comissão sionista chega à Palestina. Chaim Weizmann (segundo, da dir. à esq.); Aharon Aronsohn (no trem, o segundo, da dir. à esq.)

Sarah cresceu como uma jovem determinada, impetuosa, independente e exímia cavaleira. Era sempre vista ao lado de Avshalom Feinberg, de um moshav nas cercanias de Hedera. Biógrafos de Sarah sustentam que ela manteve um caso de amor com Avshalom, embora ele viesse a noivar com sua irmã mais nova. Sarah não teve uma educação formal, mas sob orientação de Aaron empenhou-se no estudo de idiomas. Adolescente, falava hebraico, iídiche, turco, francês, inglês e rudimentos de árabe. Em 1914, por causa do noivado de Avshalom com Rivka, arrefeceu a amizade com o rapaz que, mesmo assim, continuou a frequentar a casa dos Aronsohn e a marcar presença no centro em Atlit. Sarah, por sua vez, deu novo curso à sua vida. Em 1914, começou a manter um relacionamento com um rico comerciante judeu de origem búlgara, chamado Chaim Abraham, bem mais velho do que ela. Ao mesmo tempo, Avshalom queria se casar com Rivka, mas seguindo uma tradição judaica ortodoxa, a irmã menor não poderia se casar antes da mais velha. Mas, com quem Sarah se casaria? No horizonte avultava a

figura do gordo Chaim Abraham, adornada pela enorme simpatia dos pais, Efraim e Malka. A rigor, Sarah até gostava dele, mas estava longe de estar apaixonada. Por pressão dos pais, concordou com o casamento, ainda sem data marcada. Coube, então, a Efraim receber Chaim para discutir qual o dote que daria para o noivo em potencial. Ofereceu-lhe uma porção de terra que possuía, perto dos vinhedos do barão. Chaim logo percebeu que era um bom negócio, com perspectiva de lucros futuros. Concordou e seguiu para Constantinopla, empenhado nos preparativos para receber sua jovem noiva. Quando Sarah soube do dote que seu pai havia oferecido, ficou furiosa. Não concordava que aquele rico comerciante fizesse questão de mais uma porção de terra. Escreveu-lhe uma carta: “Não consigo compreender como você, sionista, quer se apossar de uma terra encharcada com o suor dos pioneiros”. Apesar dessa desavença, Sarah Aronsohn e Chaim Abraham se casaram em março de 1915 e foram viver em Constantinopla. Sarah não gostou da casa, que lhe parecia 28

sombria, e muito menos dos móveis antigos e bolorentos. O contato íntimo entre os dois era quase inexistente. Semanas depois de vida em comum, Chaim embarcou para uma viagem de negócios à Europa, deixando na casa uma irmã e um cunhado, a pretexto de fazerem companhia para Sarah, mas, na verdade, encarregados de controlar seus passos. O clima dentro da casa era tenso e ficou ainda pior quando Sarah soube do extermínio dos armênios. Julgou que sua família corria igual perigo e sentia que precisava voltar para Zichron Yaakov. Fez as malas e foi embora sem olhar para trás. Pouco depois de seu regresso, Aaron confiou-lhe responsabilidades nas atividades clandestinas da NILI. Ele mesmo viajara para o Cairo, onde devia manter contato permanente com as forças militares britânicas e também com seus serviços de Inteligência. A organização de espionagem judaica não promovia atos de violência. Sua principal tarefa, coordenada por Sarah, Avshalom e mais um amigo fiel, Joseph Lishansky, consistia na coleta de informações. Tudo era importante e seria útil em caso de uma intervenção inglesa: localizações de todos os moshavim e kibutzim da Palestina; mapas e nomes de ruas das principais cidades sob protetorado otomano; quantidades e marcas de veículos civis e militares; nomes dos principais comandantes turcos estacionados na Palestina e seus patamares hierárquicos; nomes e funções dos funcionários civis da administração turca; importações e exportações a partir do porto de Jaffa; instalações militares e depósitos de munições. No Cairo, Aaron participava dos planejamentos para a futura


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invasão da Palestina quando passou a ser alvo da inveja de Lawrence que julgava seus próprios planos muito melhores. Aaron registrou num diário a última conversa que manteve com Lawrence da Arábia: “Conversei com o capitão Lawrence. Nossa conversa foi isenta de amenidades. Ele tem tido tanto sucesso com sua pouca idade que está muito empolgado consigo mesmo. Pretendeu dar-me lições sobre o meu próprio povo. No fim das contas, tive a impressão de ver diante de mim um tradicional antissemita russo falando inglês. Ele tem a idade na qual a pessoa não tem a menor dúvida de tudo que pensa e diz. Jovem e feliz rapaz! ” Em março de 1917, o alto comando militar britânico instituiu oficialmente que a organização judaica NILI era a sua principal fonte de inteligência em qualquer assunto relacionado à Palestina. Contudo, no mês de setembro, os contatos com a NILI foram abruptamente interrompidos. Até hoje há controvérsias referentes às circunstâncias pelas quais foi desmantelada a rede de espionagem. Os espiões da NILI usavam pombos-correios como forma usual de comunicação. Segundo um historiador, um desses pombos pousou na varanda da residência de um oficial turco, localizada nas proximidades das ruínas romanas de Cesareia. Outro pesquisador afirma que os turcos prenderam um membro da NILI que pretendia ultrapassar a fronteira do Sinai com o Egito. Desconfiaram dele e este homem desconhecido revelou-lhes tudo sobre as atividades de espionagem feitas pelos judeus. O fato é que a comunidade Zichron Yaakov foi cercada por um grande contingente turco que tinha como alvo principal a casa da família Aronsohn.

Exterior do Museu Nili - Beit Aronsohn, em Zichron Yaakov

Sarah foi presa e levada para um quartel otomano. Outros dois importantes dirigentes da NILI, Naman Belkind e Joseph Lishansy, também foram presos. Ambos foram levados para Damasco e enforcados em praça pública. Sarah foi barbaramente torturada durante quatro dias, mas nada revelou sobre a organização clandestina. Quando lhe disseram que seu pai seria preso, Sarah tomou a única decisão que julgava cabível para evitar que o pai fosse torturado. Durante todo o tempo da prisão, mantinha escondida uma arma. Suicidou-se com um tiro na boca. Tinha 27 anos de idade.

admiração. Em 1919, convocou-o para ir a Londres, onde deveria dedicar-se aos desdobramentos políticos da Declaração Balfour. Depois chamou-o para participar da delegação sionista à conferência da Liga das Nações, em Paris. O avião em que Aaron viajava caiu e afundou no Canal da Mancha. Seu corpo nunca foi encontrado.

No Cairo, apesar de devastado pela morte da irmã, Aaron Aronsohn forneceu ao general Allenby todas as coordenadas referentes à topografia do deserto do Neguev, que seria percorrido pelas tropas inglesas na invasão da Palestina, rumo a Beersheva e depois a Gaza, abrindo caminho para o domínio da região central do país. Jerusalém rendeu-se em dezembro, dando fim a mais de 400 anos de domínio otomano na Terra Santa. No decorrer dos últimos anos Aaron mantinha amizade com Chaim Weizmann, que lhe dedicava especial

Continua sendo reverenciada a memória de Sarah e Aaron Aronsohn, heróis do povo de Israel.

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Existe hoje em Zichron Yaakov um pequeno museu dedicado à NILI, contendo centenas de fotografias, diagramas que explicam a estrutura da organização, originais de cartas e manuscritos de Aaron.

BIBLIOGRAFIA

Rhodes, James. “Spies in Palestine”, editora Counterpoint, USA, 2016. Feith, Douglas J., artigo em “Mosaic”. Setembro, 2017. Melman, Millie, “Women’s Orrients”, editora Palgrave Macmillan, UK. 1992.

ZEVI GHIVELDER É ESCRITOR E JORNALISTA

DEZEMBRO 2018


ISRAEL

Guerra cibernética: uma ameaça à segurança O combate ao ciberterrorismo está no topo da lista de prioridades do governo israelense. Hoje, além dos ataques às suas fronteiras por seus vizinhos inimigos ao Norte e ao Sul, Israel enfrenta atualmente uma ameaça invisível: ataques de hackers aos seus sistemas de computação, que podem colocar em risco a infraestrutura civil e militar do país.

o

s mísseis lançados pelo Hezbollah em direção ao norte de Israel, a presença iraniana na Síria e as ações do Hamas na fronteira sul de Israel são manchetes constantes na mídia israelense. Mas, hoje, a proteção das fronteiras contra possíveis ataques inimigos ou ações que, graças ao desenvolvimento da indústria armamentista mundial, atingem o território israelense, não são as únicas preocupações dos altos comandos militares. Outra ameaça surgida há mais de 15 anos tem ocupado a chamada Inteligência de Israel e tem sido até considerada por especialistas do país e do exterior tão ou mais preocupante do que os ataques com mísseis: a guerra cibernética. Em seu livro “O Novo Oriente Médio”, lançado em 1995, o líder israelense Shimon Peres já alertava que, com o avanço da tecnologia, a defesa das fronteiras já não seria suficiente para garantir a segurança dos países.

ataques podem não apenas obter informações sigilosas e estratégicas para o cenário geopolítico internacional, como chegar a desestabilizar ou paralisar a infraestrutura nacional, criando o caos. Hoje, a ameaça cibernética à segurança nacional deixou de ser apenas uma hipótese e se tornou uma das prioridades do governo israelense diante do aumento na incidência de tentativas cada vez mais sofisticadas. Em abril de 2017, Israel foi vítima de um ataque cibernético de grande escala à rede civil, incluindo empresas e infraestrutura. Na época, funcionários da Autoridade Nacional de Defesa Cibernética de Israel disseram que a infraestrutura vital do país não fora afetada e que o ataque fora neutralizado – porém, mais de 120 organizações israelenses, públicas e privadas, foram de fato atacadas. O ataque veio sob a forma de e-mails contaminados, enviados através de um servidor de uma instituição acadêmica confiável com arquivos infectados do programa Microsoft Word. Os sistemas de antivírus não conseguiram detectar o ataque.

As primeiras tentativas de invasão cibernética registradas nos anos 1990, facilmente controladas pelos primeiros softwares de segurança lançados por empresas israelenses, deram lugar à ataques cibernéticos estrategicamente organizados por indivíduos e grupos ligados ou não a governos. Se bem-sucedidos, esses

De acordo com uma reportagem publicada pelo The Jerusalem Post, à época, o vírus conhecido como CVE-2017-0199 detectou um ponto vulnerável no 30


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sistema operacional Microsoft, especialmente no Microsoft Word. Segundo especialistas, o ataque, um dos piores sofridos pelo país até então, visava assumir o controle dos computadores corporativos. Para Israel, por trás do ataque estaria o seu grande inimigo – o Irã. Estrategistas do setor dedicam seu tempo a encontrar soluções para impedir o êxito desses ataques. Os cenários e as consequências são assustadores, por exemplo, a quebra do sistema de navegação de um jato de passageiros, provocando seu choque em uma área residencial lotada. Com as atuais capacidades de hackear, um cenário semelhante ao de 9 de setembro de 2001 não exigiria terroristas que sequestrassem aviões. Bastaria simplesmente que eles assumissem o controle de seus sistemas aéreos, causando os mesmos danos sem se arriscarem.

Em uma época em que praticamente tudo é controlado por redes de computação, o trabalho dos hackers poderia chegar até a criar ataques cibernéticos que levem a descarrilamento de trens; superaquecimento nos reatores nucleares, podendo causar um desastre nuclear; alteração nos semáforos provocando acidentes nos cruzamentos; manipulação criminosa em fármacos e dosagens nos hospitais, que poderia levar à morte dos pacientes; alteração ou exclusão de registros de decisões governamentais, entre outros de igual gravidade e estrago. Os inimigos de Israel não precisam de motivos para atacar o país. Qualquer situação pode se transformar em pretexto para uma ação. No primeiro semestre de 2018, mais de uma dúzia dos principais websites israelenses foram vítimas 31

de um cyber-ataque, supostamente em represália a um confronto entre manifestantes em Gaza e as Forças de Defesa de Israel. A rede de hospitais, autoridades locais, a Ópera de Israel, a União dos Professores e a Organização das Viúvas e Órfãos das FDI, entre outras, foram atingidas. Por trás da ação, um hacker conhecido como Dark-Coder ou TheFalcon. Nas telas dos websites atingidos apareciam imagens dos embates na fronteira de Gaza acompanhadas por música árabe e a mensagem “Jerusalém é a capital da Palestina”. Pouco depois, no seu Twitter, o responsável pela operação escreveu uma mensagem afirmando que a ação era parte de um esforço coordenado de grupos anti-Israel, denominados OpIsrael, que fazem parte de uma rede maior de hackers chamada Anonymous, cujo objetivo é DEZEMBRO 2018


ISRAEL

sabotar as redes israelenses. Iniciada em 2013, a OpIsrael realiza uma grande ação por ano contra os sites do país, divulgando mensagens contra Israel. A data escolhida para o ataque corresponde a Yom HaShoá, Dia de Lembrança do Holocausto. Em resposta, hackers pró-Israel também organizam ações visando websites governamentais árabes.

Prioridade nacional O combate ao ciberterrorismo está no topo da lista de prioridades do governo israelense. Prova disso foi a iniciativa da Divisão de Contraespionagem do Shin Bet de convidar um experiente ex-agente da Inteligência para, juntamente com uma equipe de especialistas, fazer um estudo profundo da área de segurança de todo o sistema computacional para avaliar sua vulnerabilidade e eficácia. Segundo os responsáveis pela Divisão do Shin Bet, alguém de fora teria mais condições de identificar possíveis falhas e problemas que poderiam passar desapercebidos pelas equipes da Casa. Para o ex-agente, identificado apenas como Ophir, não há dúvidas de que Israel está sob constante ameaça que não se limita mais às tradicionais formas de espionagem, com agentes duplos ou que se vendem por um bom dinheiro. Com estes, diz Ophir, Israel está preparado para lidar. Outras ameaças, menos óbvias, exigem maior sofisticação e informações para serem neutralizadas. Segundo ele, o Irã representa hoje um dos principais protagonistas da guerra cibernética contra Israel, pois conseguiu construir uma impressionante rede própria de instituições e engenheiros especializados em roubar tecnologia, hackear bancos de dados e plantar vírus em sistemas inimigos.

O diagnóstico apresentado ao término do trabalho foi assustador e Ophir exigiu que tudo fosse novamente revisto. O resultado foi o mesmo: inúmeros computadores infectados com sofisticados malwares (softwares maliciosos), incluindo vários em instituições civis como escolas, hospitais, o Ministério do Interior, entre outros. Os especialistas ficaram surpresos ao descobrir malwares instalados tão profundamente dentro do sistema central dos computadores, e não apenas nos desktops pessoais utilizados pelo governo, como se esperava.

a chamada Darknet. “Quem quer que esteja por trás desta operação, deseja saber tudo sobre nós, para praticamente nos destruir”, afirmou o relatório final.

Para Ophir e sua equipe, uma operação de tal porte, que consegue penetrar em diferentes sistemas da infraestrutura nacional, não é trabalho de uma pessoa só. Uma ação como essa exige altos investimentos em termos financeiros e em recursos humanos, com centenas de pessoas envolvidas. Não é resultado de um hobby ou de pequenos grupos em trabalho conjunto. Para eles, um ataque como este exige tecnologias extremamente sofisticadas e um profundo conhecimento das entranhas do mundo das redes, entre as quais,

Mas o Irã preocupa Israel, ainda mais após a prisão do ex-ministro Gonen Segev, acusado de espionagem para esse país. O Departamento de Contraespionagem do Shin Bet já vinha trabalhando no caso há algum tempo e, ao que tudo indica, Segev é apenas a ponta do iceberg no empenho iraniano em estabelecer uma infraestrutura secreta de Inteligência em Israel. Segev foi ministro no início da década de 1990, sendo anos depois preso por tentar contrabandear 32 mil comprimidos de ecstasy para Israel. Condenado a cinco anos de prisão, cumpriu três anos e meio. Solto, mudou-se para a Nigéria. Segundo uma fonte da Inteligência israelense, “os iranianos estão atirando para todos os lados, tanto tentando recrutar informantes de alto nível e com bons contatos, como Segev, quanto alvos menores, que pouco têm a contribuir”.

Outra conclusão importante: os malwares utilizados não são do Irã, do Hezbollah ou do Hamas. “Seja quem for o responsável pelo que definimos como ‘a doença que se espalha por todo lugar – para todos os órgãos do cyber-espaço israelense’ – é algo completamente diferente, um jogador muito mais preparado e perigoso do que qualquer outro conhecido”.

Rússia e China, ameaças maiores

Diretor do Shin Bet, Nadav Argaman

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Não é apenas o Irã que preocupa Israel. Rússia e China são também considerados ameaças tão grandes ou até maiores do que o Irã. Com


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estratégias diferenciadas, cada um dos dois países vem procurando penetrar nos segredos israelenses. As ferramentas (spyware) usadas pelos russos em seus ataques internacionais foram desenvolvidos por dois grupos de hackers do país denominados Fancy Bear e Cozy Bear, os quais acredita-se estejam associados a duas organizações russas de Inteligência – Russian Military Intelligence (GRU) e Russian Federal Security Service (FSB). “Os russos lançam ataques em grande escala no mundo todo, com o intuito de infiltrar-se no maior número de locais possíveis. Apostam no lema de que quanto mais tentativas, maior o sucesso. Poucas vezes focaram-se em um alvo específico com uma ação especialmente preparada”, disse Holger Stardk, vice-editor do jornal alemão Die Zeit, um dos mais importantes jornalistas da Alemanha. O desenvolvimento tecnológico tem tido um forte impacto na forma como atualmente os países espionam uns aos outros. Além da figura do espião clássico, como Segev, se comprovada sua culpa, ganham maior relevância inovações que permitem a obtenção de informações estratégicas sem riscos pessoais. Quem faz esta afirmação é Nimrod Kozlovsky, palestrante e coordenador do Departamento de Cyber Estudos da Escola de Administração da Universidade de Tel Aviv. Cita, como exemplo, um aparelho de escuta desenvolvido por companhias chinesas que pode ser plantado em equipamentos de comunicação e, por ser parte do equipamento propriamente dito, é de difícil identificação. Com este aparelho é possível monitorar os telefones de altos funcionários e as mesas telefônicas ou painéis de distribuição, propriamente ditos. Esse tipo de espionagem preocupa

Contraespionagem do Shin Bet: como principal potência cibernética, Israel frustrou ataques em todo o mundo, no ano passado

Israel, principalmente porque grande parte da tecnologia usada pelo setor de defesa do país é desenvolvida por companhias privadas que mantêm contratos com empresas internacionais. Ou seja, muitas vezes para se obter informações basta se aproximar de determinada companhia através de seus próprios funcionários sem que estes percebam o que está acontecendo. Para tentar minimizar estes danos, o Shin Bet, nos últimos anos, chegou até a barrar a participação de empresas chineses em licitações para implantação de projetos de infraestrutura para sistemas de comunicação do país. Algumas empresas israelenses também proibiram seus funcionários de usar telefones chineses depois que se tornou público o fato que os servidores do gabinete do primeiroministro indiano, fornecidos por uma empresa chinesas, estavam infectados por sofisticados vírus. A agência governamental chinesa por trás desse plano não estava interessada apenas em temas ligados à segurança, mas também em segredos diplomáticos, econômicos e políticos. Mostrar interesse em desenvolver relações comerciais com empresas locais é uma das táticas mais usadas pelos chineses em relação a Israel, nos últimos anos. Embora centenas de negócios, de fato, tenham sido 33

realizados recentemente entre Israel e China, muitas vezes o interesse demonstrado não passa de uma estratégia de aproximação para se familiarizar com as empresas e suas tecnologias, sem a concretização de qualquer negócio. Segundo Avner Barnea, um ex-agente da contraespionagem do Shin Bet e um dos maiores especialistas do setor, muitas vezes tudo não passa de encenação, sendo seu real interesse a obtenção do maior número de informações. Para enfrentar essas ameaças a Divisão de Contraespionagem do Shin Bet começou a contratar profissionais de áreas até então consideradas desnecessárias, entre os quais, economistas, engenheiros de computação, especialistas em alta tecnologia e outros capazes de lidar com os novos desafios.

BIBLIOGRAFIA

Artigo de Eytan Halon, “Major Israeli websites targeted in large anti-Israel cyberattack”, 4 de abril de 2018, The Jerusalem Post Artigo de Ronen Bergman. “Israel is under massive Chinese, Russian cyber espionage attack”, 31 de julho de 2018. https://www.ynetnews.com Artigo de Sandeep Singh Grewal, “Report: Iran hacks Israel in cyber attack”, 2 de agosto de 2018,The Jerusalém Post Artigo de Toi Staff, “Highlighting cyber vulnerabilities, rogue ex-soldier revealed to have hacked IDF”, 3 de maio de 2018, The Times of Israel DEZEMBRO 2018


comunidades

Os judeus de Livorno na Tunísia POR NIMROD ETSION KOREN

A comunidade judaica livornesa em Túnis, também conhecida como Grana, manteve laços estreitos com seu país de origem e teve uma larga influência na esfera política da Itália, durante os séculos 19 e 20, apesar de residir do outro lado do Mediterrâneo. Diferentemente de outras comunidades de origem judaica sefardita na bacia do Mediterrâneo, integradas nas comunidades judaicas locais, Grana manteve fielmente sua independência, defendendo sua “italianitá”.

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esde o século 16, a população judaica em Túnis dividia-se entre a originária do local, Touansa, e os judeus livorneses que criaram uma comunidade minoritária chamada Grana (Livorno traduz-se como El-Gorna, em árabe). Essa comunidade judaica, que incluía judeus originários de Livorno1 e de outros locais da Itália, desenvolveu-se separadamente do grupo majoritário local, a antiga comunidade arabizada de judeus tunisianos.

corrida colonial (1871-1914), e seu envolvimento na atividade secreta do movimento antifascista, às vésperas da 2a Guerra Mundial.

GRANA DURANTE A UNIFICAÇÃO ITALIANA A imigração da Itália para a Tunísia, nos séculos 17 e 18, teve motivação principalmente econômica, mas, já em 1815, um novo motivo foi adicionado: o político, principalmente relacionado à supressão do movimento que levou à unificação da Itália. Tiveram papel central nesse movimento, conhecido como Risorgimento, muitos judeus italianos, especialmente de Livorno. Em razão de suas atividades revolucionárias e perseguições sofridas, alguns deles optaram por se exilar. Nos primeiros anos do movimento de libertação, a Carbonária, sociedade secreta liberal inspirada na Revolução Francesa, liderou rebeliões no Sul e Norte da Itália. A proximidade das revoltas na Toscana, no início da década de 1830, trouxe sua primeira onda de refugiados políticos a Túnis, na era précolonial. Entre os proeminentes revolucionários judeus chegados nessa onda, estava o republicano Gaitano Fedriani (1811-1881) que, secretamente, aporta em La Goulette, em 1834, junto com seu

Uma das explicações para essa divisão única, sem paralelo no restante do judaísmo do Norte da África, foi a constante relação da comunidade Grana com seu local de origem, a Itália. Exemplos dessas conexões podem ser observados na cultura, educação e vida religiosa. No contexto político, podemos ressaltar os encontros clandestinos de Giuseppe Garibaldi (1807-1882) com seus seguidores judeus “livorneses”, em 1834; a participação dos “livorneses” em revoltas contra o protetorado francês durante a Livorno é uma cidade na região da Toscana, Itália. Porém, no texto, o termo “livorneses” refere-se aos judeus de Grana - de origem italiana, mas que viviam na Tunísia.

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muros da fortaleza de Ribat de Sousse, tunísia

amigo Joseph Fani, procurado pelas autoridades da Ligúria (Itália). Fani foi, na verdade, o pseudônimo usado por Garibaldi, um dos principais líderes do Risorgimento, durante sua primeira estada em Túnis. Antes de se refugiar nessa cidade, os dois camaradas se haviam filiado ao novo movimento clandestino fundado por Giuseppe Mazzini, ‘Giovine Italia’ (Itália Jovem), com a promessa de se dedicar à libertação de sua pátria da ocupação austríaca. Em 1834, ambos se haviam implicado em uma revolta encabeçada por Mazzini, no Piemonte, região no norte da Itália. Descoberta a conspiração, Garibaldi é sentenciado à morte in absentia e se refugia, com Gaetano Fedriani, em Túnis. A política governamental local simpatizante foi uma das razões para Túnis ser escolhida como um porto seguro para os combatentes

pela liberdade italianos – juntamente com a identificação da comunidade judaica “livornesa” com a causa e sua localização estratégica. Uma das figuras centrais, que muito

general gabriel valensi, de origem livornesa, um dos raros judeus tunisianos a alçar à função de oficial, no início do séc. 20

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contribuiu para organização da causa italiana, foi Giuseppe Raffo, conselheiro próximo ao Bey de Túnis, o governante da Tunísia. Raffo, filho de um escravo italiano capturado por piratas da Berbéria, acabou sendo promovido pela corte do Bey. Simpatizante do nacionalismo italiano, patrocinava os seguidores de Mazzini, permitindo que Fedriani e outros patriotas “livorneses” prosseguissem em suas atividades subversivas. Uma expressão da carte blanche dada a esses círculos de revolucionários italianos é comprovada por uma furiosa carta anônima dirigida ao cônsul austríaco às vésperas da 1ª Guerra de Independência italiana (1848), sobre as atividades clandestinas de outro patriota, David Franco. Na carta, dizia-se que Franco dirigia um clube político onde “um bando DEZEMBRO 2018


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de toscanos que, em qualquer outro lugar, teriam sido mortos sumariamente, reuniam-se para amaldiçoar o Grão-Duque e as autoridades que trouxeram ordem e paz para a Itália”.

Atividade livornesa e o estabelecimento do Reino da Itália O período principal do processo de libertação italiana (1850-1861), ao final do qual estabeleceu-se o Reino da Itália, está associado aos empreendimentos de Camillo Benso, Conde de Cavour e PrimeiroMinistro do Piemonte-Sardenha, especialmente à sua aliança secreta com o imperador francês. Esta aliança levou à retirada dos austríacos da maior parte da Itália do Norte e Central, durante a 2ª Guerra da Independência (1859), abrindo caminho para a União Italiana. Em Livorno, a comunidade judaica A Carbonária foi uma sociedade secreta e revolucionária que atuou na Itália e em outros países.

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Giuseppe Garibaldi

Giuseppe Raffo (1795-1862), óleo

celebrou entusiasticamente as vitórias nacionais. Quando a Toscana se juntou à emergente União, em 1859, o jornal da comunidade, L’Educatore Israelita, declarou: “Judeus de todas as classes sociais se uniram a outros cidadãos para apoiar a bandeira tricolor e proclamar a independência da Itália”.

irmãos italianos. Sob a liderança do ramo tunisino da ‘Giovine Italia’, a capital tornou-se um centro de distribuição da propaganda de Mazzini, funcionando como um ponto de trânsito para a correspondência clandestina (o que atraiu a atenção de várias organizações de espionagem europeias). E, devido à atividade de Benedeto Calò, carbonário2 “livornês” e seu contato direto com Mazzini em Londres, também como um centro de armas escondidas.

A retórica do auto sacrifício pela Pátria (a Itália) foi amplamente adotada, em Túnis, pelos membros da Grana, os ditos “livorneses”, que compartilhavam sentimentos patrióticos semelhantes aos de seus

O Palácio Gnecco, na Almedina de Túnis

As atividades dos judeus “livorneses” na Tunísia se intensificaram e partiram para o estágio seguinte da campanha pela independência italiana – ou seja, a conquista do Reino da Sicília. Na realidade, devido à dedicação dos exilados e à singular localização geográfica, Mazzini pensou em planejar a chegada à Sicília vindo diretamente da Tunísia. Em suas palavras, “Estamos pensando em armamento a ser transferido para a Tunísia e, se necessário, atacar a Sicília”. Um dos destaques do envolvimento “livornês” ocorreu durante a “Expedição dos Mil” (a conquista do sul da Itália por Garibaldi), com o carregamento de armas recolhidas por Grana, diretamente para a

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Sicília, durante o desembarque das forças de Garibaldi. A derrota e o desmantelamento do Reino das Duas Sicílias levaram ao estabelecimento do Reino da Itália (1861), o que animou Grana a estimular a naturalização da maioria das famílias de elite da comunidade. Ostensivamente, após ter passado seus melhores anos no exílio, os “livorneses” optariam por voltar à Itália. Mas, a maioria decidiu ficar na Tunísia, permanecendo, no entanto, fiel a seu torrão natal.

OS “LIVORNESES” E A COMPETIÇÃO COLONIAL, 1871-1914 Embora o Risorgimento supostamente resolvesse a questão do nacionalismo italiano, a unificação era apenas o começo de um debate interno sobre o novo estado-nação. Com a transferência da capital para Roma (1871), as expectativas eram altas, o que dificultou que se contentassem com as fronteiras existentes. A crença no direito da Itália ao seu próprio império e o desejo de fazer reviver o conceito romano de Mare Nostrum3,

Mare Nostrum (“nosso mar”, em latim) era o nome dado pelos antigos romanos ao mar Mediterrâneo. Após a unificação da Itália, em 1861, o termo foi revivido por nacionalistas italianos, que acreditavam que o país era o sucessor do Império Romano, devendo controlar os territórios que pertenceram a Roma em todo o Mediterrâneo. O termo foi utilizado novamente por Benito Mussolini na propaganda fascista, de maneira similar ao Lebensraum de Adolf Hitler.

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O atraso resultou principalmente da unificação tardia do Estado (1871), mas se deveu, também, à influência do nacionalismo moderado das posições defendidas por Mazzini e Garibaldi.

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Era governada por Beys vassalos do sultão de Istambul até 1881, quando o país foi conquistado pela França.

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antiga sinagoga de livorno, Itália

surgiu em muitos círculos. Mas sua adesão tardia à corrida colonial, forçou a Itália a adaptar suas ambições a seu poder real4. Portanto, a relativa proximidade da Tunísia sendo parte do glorioso passado da Itália - e a existência de uma grande comunidade italiana, que incluía a rica elite de Grana –, aumentou a atratividade daquele país como um trunfo para a sua autodeterminação como potência europeia. Assim, apesar das “naturais” ambições italianas e, aparentemente, por causa delas, a França entrou em ação e, no início de 1881, sem aviso prévio, invadiu o país, estabelecendo um protetorado. Os italianos ficaram chocados com a ‘Bomba Tunisiana’ e as relações com os vizinhos franceses foram agravadas. No entanto, a base da competição por influência entre os dois poderes durante a Regência de Túnis teve suas raízes implantadas durante o período pré-colonial5, tendo Grana desempenhado um papel vital nessa disputa. Já em 1770, o cônsul francês em Túnis escrevera: “O principal fator que impede o desenvolvimento do comércio francês é a competição com os comerciantes judeus [que, em sua maioria, eram “livorneses”]. 37

É um obstáculo que nunca seremos capazes de superar”. Em contraste, vários italianos argumentaram que, desde a conquista francesa da Argélia, em 1830, a Tunísia havia sido submetida à influência política francesa. Um tipo similar de visão também foi compartilhado por Garibaldi, que atribuiu a recusa em permitir sua entrada em Túnis, em 1849, precisamente a essa influência. Nos anos que se seguiram, o afundamento em dívidas do governo do Bey foi o fator que aumentou a influência da Itália e da França nos assuntos internos de seu país, por meio dos seus súditos judeus, seus principais credores. Mas enquanto os devedores parisienses usaram a alavancagem do governo de Napoleão III para ameaçar o Bey, alguns dos “livorneses” se aproveitaram dessa posição para estabelecer seus status na Corte. A consolidação e a expansão de suas empresas toscanas aumentaram a presença e influência italiana na Regência, mas também a suspeita e o desejo franceses de impedir a Itália de concretizar novas ambições imperialistas. Uma suspeita infundada, na verdade, pois o governo liberal italiano, liderado DEZEMBRO 2018


comunidades

por Cairoli, aderia, aos poucos, a uma política anti-imperialista de “mãos limpas”. Cairoli, que lutou pela libertação da Áustria durante 20 anos, declarou, em 1879, que todos os países da Europa ou da África tinham direito à autodeterminação. Dois anos depois, quando o exército francês invadiu a Tunísia, ele foi ridicularizado como ingênuo e perdeu seu cargo.

O protetorado francês - e seu uso como ferramenta para enfraquecer Grana Parecia que o estabelecimento do protetorado satisfaria a França em termos de frustrar as futuras ambições da Itália na Tunísia. Na prática, o regime serviu como uma ferramenta eficaz para controlar a influência italiana. Para lidar com o “Perigo Italiano”, formulou-se uma política e o primeiro grupo a ser afetado pela mesma foi Grana. Apesar de abranger toda a colônia, seu principal objetivo foi direcionado

porto de La Goulette

às camadas superiores. Assim, enquanto a administração abria as portas à emigração de milhares de trabalhadores manuais da Sicília, essa nova política agia, através de uma série de decretos, para enfraquecer a burguesia italiana incluindo seus industriais, mercadores, advogados e engenheiros, a maioria dos quais eram judeus “livorneses”. Durante os primeiros anos da ocupação, o confronto não se deteriorou em violência. Uma das razões para isso foi que, na

comunidade judaica, Grana, que se opunha à administração francesa, era uma voz solitária. A comunidade judaica tunisiana local (Touansa) estava convencida de que se beneficiaria das mudanças feitas pela França. Mas a recusa da França em conceder a cidadania francesa aos judeus tunisianos e a deterioração de grande parte dos aspectos de sua vida, levou-os a perceber o domínio francês sob uma luz mais crítica. Em 1887, foi estabelecida uma frente que unificou a liderança de ambas as comunidades judaicas em um protesto conjunto. Em 20 de março, protestando contra uma tentativa de mudança das regras funerárias judaicas, milhares de manifestantes invadiram o cemitério judeu em Túnis, entrando em confronto com uma força militar e gritando slogans antifranceses e pró-italianos. Em sua busca pelos iniciadores dos tumultos, o ministro francês das Relações Exteriores apontou um dedo acusador para Grana. Definindo os distúrbios como uma conspiração hostil à França, advertiu: “Em tempos de crise, aqueles que se levantam contra nós encontram apoio entre muitos no setor judaico”. Embora a validade da interpretação francesa

Entrada para o Souk (mercado) El Grana, Túnis

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seja controversa, a visão das autoridades de que membros de Grana estavam por trás da revolta teve implicações dramáticas para todos os judeus da Tunísia. Como resultado, o processo de modernização da comunidade foi adiado por décadas.

Solução da Crise, 1896 Como mencionado, as relações entre a Itália e a França entraram em colapso após a invasão da Tunísia. Por 15 anos, a Itália foi a única potência europeia que se recusou a reconhecer o protetorado francês, mas, devido à colossal derrota sofrida por seu exército, na Etiópia, e à ascensão ao poder de Antonio Starabba, iniciou-se um período de melhores relações com a França. Um tratado assinado em Paris pôs fim à guerra tarifária e, em troca do reconhecimento italiano do protetorado, seus súditos tunisianos passaram a desfrutar de um status único. No entanto, os privilégios concedidos pela França aos súditos italianos não foram gratuitos e o preço pago pelo governo liberal italiano por ajudar os mercadores “livorneses” seria cobrado, ao máximo, pelo regime fascista.

véspera de um brit-milá na tunísia, na virada do século. O mohel, angelo nataf, é o mais conceituado de túnis

portas para muitos judeus. Entre os proeminentes estavam Enrico Rocca, o fundador do movimento, em Roma, e Angelo Olivetti, um de seus principais pensadores. Portanto, não deveria surpreender que a resistência inicial ao fascismo nos círculos judaicos, na Itália e na Tunísia, não se tenha originado de uma política antissemita, mas sim, de um fundo ideológico – especialmente da esquerda. Em Túnis, durante a década de 1920, vários judeus italianos atuavam nos partidos comunistas, bem como em

outras estruturas ideológicas como a maçonaria, células anarquistas ou republicanas. No entanto, nesse período, a maior parte da comunidade vinculou seu destino ao novo regime porque esperavam, como a maioria dos italianos, que servisse à nação italiana. Portanto, muitos se juntaram a suas organizações e, para comprová-lo, portavam o símbolo do partido. Eles também apoiaram reivindicações territoriais como aquela expressa por Mussolini, em 1923: “Os 120.000 na Tunísia, (...) que trabalham hoje para a Regência francesa, mas que, amanhã, provavelmente trabalharão sob a Regência italiana”. Em 1935, quando o Duce invadiu a Etiópia, os judeus “livorneses” estavam entre os que contribuíram para o esforço de guerra com suas alianças de casamento, e alguns até se ofereceram para servir no exército fascista. Os judeus foram elogiados, entre outros, por Piero Perrini, ministro do governo de Mussolini: “É um prazer enfatizar que esses voluntários judeus são filhos de judeus de Livorno, que deixaram a Itália antes de sua fundação. Este é realmente um bom exemplo de sua devoção”. Uma semana antes, o jornal Boker trazia a história

ITÁLIA FASCISTA: UM DESAFIO PARA O PATRIOTISMO ITALIANO É comum identificar-se o fascismo com o racismo e o antissemitismo devido à sua proximidade política e ideológica ao nazismo, mas, antes do estabelecimento do eixo RomaBerlim, em 1938, não existia discriminação legal na Itália. De fato, com sua ascensão ao poder, no início dos anos 1920, o movimento fascista saiu contra qualquer ideologia racista e abriu suas 39

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do tenente Atias, de Grana: “(...) comandante de um batalhão inteiro. Ele ocupa a posição mais importante depois do comandante da Legião”. Portanto, os “livorneses” ficaram muito desapontados quando ficou claro que, pela liberdade de ação dada pela França a Mussolini na Etiópia, este último havia pago com o sacrifício dos direitos dos “livorneses”, como parte do acordo Mussolini-Laval, de 1935. Isso levantou dúvidas no coração dos judeus italianos em relação ao regime e, ao mesmo tempo, motivou os antifascistas. Os ativistas do movimento underground “livornês” começaram a atuar em uma variedade de arenas: assistência a refugiados, apoio a círculos antifascistas em Paris e, até, participação nos tumultos em Túnis. As organizações fascistas chamavam essas atividades de “traição da terra natal” e os agentes da polícia política secreta (OVRA) começaram a agir contra eles.

Uma comunidade dividida - final da década de 1930 A tensão entre os lados aumentava dia após dia, atingindo um dos seus picos em setembro de 1937, quando os marinheiros de um navio fascista ancorado em Túnis descobriram que, no porão da sede do Partido Comunista, estavam sendo preparados panfletos para distribuição a bordo. Mais tarde, naquela noite: ... “50 marinheiros O termo irredentismo indica a aspiração de um povo a completar a própria unidade territorial nacional, anexando terras sujeitas ao domínio estrangeiro com base em teorias de uma identidade étnica ou de uma precedente posse histórica, verdadeira ou suposta.

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como relata o jornal Boker. Mas mesmo essa política antissemita não produziu uma reação uniforme entre os judeus “livorneses” e os que se diziam “patriotas” continuaram a demonstrar extrema lealdade ao regime. Alguns procuraram ajuda das autoridades do protetorado, mas outros preferiram intensificar sua resistência.

Loris Gallico e Maurizio Valenzi em Túnis, véspera da 2ª Guerra Mundial

invadiram seus escritórios, atiraram selvagemente em três membros e mataram o secretário Micelli”, como foi publicado no Palestine Post. Referindo-se ao incidente, Nadia Gallico, uma das líderes “livornesas” do movimento comunista clandestino, disse que o assassinato dividira a comunidade. De fato, as diferenças de posição podem ser vistas a partir da versão do evento publicada na imprensa consular italiana, que contava com alguns burgueses de Livorno entre seus editores: “Os marinheiros foram atacados por pessoas com ideias revolucionárias, que disseminavam panfletos de propaganda, levando o secretário a se matar”. No entanto, um evento com implicações mais significativas ocorreu pouco depois, na Itália. As leis raciais que, em julho de 1938, foram recebidas com aplausos no Parlamento Romano, aturdiram os judeus da Itália (entre outras restrições, proibindo-lhes de casar com cristãos, servir no governo e possuir terras). Embora Grana tivesse sofrido apenas em parte com as regras, “a noção de que a Itália tinha aceito a teoria da raça nazista causou pânico entre eles”, 40

A intensificação das demandas irredentistas6 fascistas também alimentou a luta. Semelhante à Alemanha nazista, essas reivindicações territoriais italianas foram acompanhadas pela radicalização da política racial. Assim, na mesma semana em que as leis raciais foram adotadas, massas de estudantes fascistas marcharam para a embaixada francesa, bradando: “Nós queremos a Tunísia”. Para reforçar as reivindicações, a marinha italiana realizou manobras no litoral de Bizerta. Naquela época, uma nova linha temática começou a caracterizar a propaganda fascista; em seu foco, uma tentativa de incitar a maioria muçulmana contra a minoria judaica, usando a retórica de seus oponentes comunistas, como relatado no jornal Davar: “Os judeus roubam dos árabes os frutos de seu trabalho e vivem às suas custas”. Também encorajou “as massas de Túnis a fazer um acerto final com os judeus, agentes britânicos e ‘sanguessugas’ ”. Em resposta, o jornal antifascista publicou um manifesto contra as tendências expansionistas da Itália, declarando: “O fascismo anseia pela Tunísia apenas para impor sua dominação terrorista”. Ao mesmo tempo, para aumentar o clamor contra as leis raciais, Maurizio Valenzi, outro proeminente ativista “livornês”, foi a uma missão em Paris, onde ajudou a publicar o


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jornal dos exilados, La Voce degli Italiani. Esse jornal expressou uma das vozes mais claras contra o fascismo e o antissemitismo: “Ao defender os judeus, que foram confiscados, humilhados, espancados até à morte, defenderemos a herança da civilização italiana contra a barbárie fascista”. Contra esse pano de fundo de enérgica atividade, pode-se entender a afirmação de Paul Sebag, um dos importantes historiadores do judaísmo tunisiano, de que a atividade “livornesa” na capital, “às vésperas da 2ª Guerra Mundial, transformou Túnis em um dos bastiões de antifascismo fora da Itália”.

Interior DA GRANDE SINAGOGA DE TÚNIS (agosto de 2008)

Os motivos do envolvimento político de Grana Dado o extenso envolvimento dessa pequena comunidade de exilados no destino político de seu país de origem, surge a questão sobre seus motivos e a razão para ser uma arena tão vibrante para a atividade política. A resposta parece envolver vários fatores. A proximidade geográfica entre Itália e Tunísia (apenas 145 km no Estreito da Sicília), os tratados bilaterais que garantiam privilégios aos imigrantes toscanos/italianos, o patrocínio dado pelos Beys de Túnis à atividade revolucionária e, especialmente, o poder econômico, cultural e social da comunidade judaica italiana na Tunísia. No entanto, acima de tudo, esse fenômeno do ativismo político diaspórico pode estar relacionado à incomum divisão entre as duas comunidades judaicas, Grana e Touansa, sem as quais os “livorneses” teriam sido destinados à assimilação entre seus irmãos tunisianos. Parece

a tendência cultural, a tendência secular e o separatismo étnico tiveram um impacto significativo na agenda política italiana dos “livorneses”.

BIBLIOGRAFIA

a grande sinagoga de túnis

que sua insistência intransigente em uma existência judaica separada os ajudou a esquecer que eles não mais viviam em sua terra natal. A compreensão de sua língua, nomes, comércio, culinária e seus teatros permitia que ficassem, como afirmou o correspondente de Doar Hayom: “...mentalmente mais próximos dos judeus da Itália do que dos judeus da Tunísia”. Em outras palavras, 41

Clancy-Smith, Julia, Mediterraneans: North Africa and Europe in an age of migration, c. 1800-1900, University of California Pres, 2012, Berkeley Ganiage, Jean. Les origines du protectorat franc¸aisen Tunisie (1861-1881), Paris: Presses Universitaires de France, 1959. Sa’adon, Haim. [Hebrew] Jews and Muslims in Tunisia: Between French Colonialism and Tunisian Nationality, 2003, Tel Aviv. Sebag, Paul. Histoire des Juifs de Tunisie: des origines à nosjours, Edition L’Harmattan, 1991.

O artigo é baseado em um trabalho apresentado em um seminário enfocando o judaísmo norte-africano e um estudo publicado no Journal of Education, Society and Behavioural science.

Nimrod Etsion Koren é aluno de pós graduação no Departamento de História, Filosofia e Estudos Judaicos na Universidade Aberta de Israel.

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música

Tributo a Charles Aznavour Morreu, aos 94 anos, em 1º de outubro deste ano de 2018, o cantor e compositor francês Charles Aznavour, um dos mais populares artistas de todos os tempos. Era, também, um dos mais declarados amigos dos judeus e de Israel, na França.

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hamado de o “Frank Sinatra da França”, Aznavour era uma figura grandiosa na música francesa. Encantou gerações com sua voz magnífica e sensível e as letras poéticas de suas músicas. Quando estava em seu auge, soltando sua nostálgica voz de tenor, arrebatava corações e inspirava sentimentos acalentadores até mesmo entre os frios parisienses.

Mas Aznavour não era apenas um artista, engajou-se também em diversas causas filantrópicas e políticas. Permaneceu, a vida toda, fiel à sua herança armênia, tendo sido uma das vozes mais conhecidas nessa diáspora, entre os defensores de sua causa. Foi incansável militante em prol do reconhecimento, como genocídio, do assassinato de 1,5 milhão de armênios pelos turcos otomanos durante a 1ª Guerra Mundial. Em 2009, a Armênia o nomeou seu embaixador na Suíça, onde o cantor residiu nos últimos anos. Foi, também, embaixador da UNESCO e delegado permanente da Armênia, em 1995.

Aznavour esteve muitas vezes em turnê no Brasil, sendo sempre calorosamente recebido pelo público. Sua última visita ao País foi em 2017, a convite do KKL, Keren Kayemet Le-Israel. O valor arrecadado foi destinado à revitalização das florestas em Israel.

A vida e trajetória artística de Aznavour foram narradas em três livros autobiográficos. Mas, nesses livros, pouco ou quase nada se mencionou sobre o fato de sua família ter escondido e salvo judeus e armênios durante a ocupação nazista, na França.

Desde os nove anos de idade, ele começou a se envolver no meio artístico, primeiro como ator, depois como cantor e, por fim, compositor. Sua grande estreia seria logo após a 2ª Guerra Mundial, quando abriu o show da grande Edith Piaf, então uma estrela em ascensão. Em 1946, ela o contratou como empresário e compositor para acompanhá-la em uma turnê pelos Estados Unidos. A partir de então, sua carreira estava lançada: vendeu mais de 100 milhões de discos em cerca de 80 países e escreveu mais de 1.000 canções.

Até então, Aznavour nunca se prolongara sobre o assunto por “não achar que o que sua família tinha feito fosse tão especial”. Mas o professor Yair Auron, historiador e pesquisador israelense especializado no Holocausto, autor do livro Matzilim Tzadikim Ve’Lohamim” (Salvadores e Combatentes Justos, em tradução livre), conseguiu 42


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convencê-lo da importância de contar sua história. O Prof. Auron o entrevistou longamente, bem como à sua irmã, Aida AznavourGarvarentz, dizendo-lhe que também entrevistaria parentes das pessoas salvas por seus pais, em sua pesquisa sobre a Shoá. Os atos de bravura dos pais de Aznavour constam do livro acima mencionado, lançado em 2016. Originalmente escrito em hebraico, será traduzido para francês e armênio. “Tenho muito orgulho da história da minha família e de seu ato, nobre e humanitário, de salvar pessoas”, afirmou Aznavour por ocasião do lançamento do livro. “Nada me faz mais feliz do que pensar que meus queridos pais salvaram a vida de tantos.”

Shahnour Varinag Aznavourian, em uma família de refugiados cristãos armênios. Quando adotou o nome artístico de Aznavour, apenas cortou o sufixo ‘ian’ de seu sobrenome. Seu pai, Mischa Aznavourian, nasceu na Geórgia, país da antiga URSS, em 1895, perdendo toda a

Sua vida Charles nasceu em Paris, em 22 de maio de 1924, com o nome de

Retrato dos pais de Aznavour, na década de 1920. Mischa e knar aznavourian

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sua família no genocídio armênio perpetrado pelos turcos otomanos, em 1915. Mischa foi o único sobrevivente. Sua mãe, Knar Baghdasaryan, nasceu em Esmirna, em 1904. Apenas ela e sua avó sobreviveram ao genocídio. Os pais de Aznavour fugiram dos turcos em um navio italiano que os levou até Tessalônica, na Grécia, onde, em 1923, nasceu sua irmã, Aida. Em seguida foram para a França. Charles nasceu logo após a chegada da família à Paris. Seus pais estavam na cidade a espera do visto para os Estados Unidos – que nunca lhes foi concedido. Os Aznavourian decidem, então, recomeçar a vida na Cidade das Luzes, estabelecendo-se no bairro Les Marais, predominantemente judaico, mas que abrigava imigrantes de várias origens. Mischa era DEZEMBRO 2018


música

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1. NO CASAMENTO COM ULLA THORSSE 2. Aznavour com a mulher Ulla, e a filha Katia, 1969 3. CHARLES AZNAVOUR (d) COM O ATOR FRANCÊS MICHEL SERRAULT (C) E O DIRETOR CLAUDE CHABROL NO SET DE FILMAGEM DE “LES FANTOME DU CHAPELIER”, 1982

cantor de ópera e Knar, atriz. Para complementar os ganhos do pai como cantor, o casal manteve, por algum tempo, um restaurante armênio. Ao descrever sua relação com os judeus do Marais, Aznavour afirmou: “Crescemos juntos – jovens judeus e armênios, no distrito de Les Marais.... A convivência era tanta que meu pai até falava iídiche melhor do que muitos deles. Eu mesmo sabia algumas palavras”. Disse, ainda, em entrevista ao jornal The New York Times: “Todos os meus amigos de infância eram judeus. Por isso acabei por adquirir os mesmos gestos, o jeito de falar e de contar piadas. Durante a ocupação alemã, fui preso várias vezes por me confundirem com os judeus. Uma vez, fui levado à central de comando nazista e mostrei meu certificado de batismo. Mas os alemães não acreditavam em mim e até abaixaram minhas calças... Eu costumava brincar e dizer aos amigos que eu era o único ‘goi ashkenazi’ da França”.

A principal pergunta do Prof. Yair Auron, durante as longas horas em que entrevistou Charles e a irmã, sobre a vida da família durante a ocupação alemã, foi o que teria levado seus pais a esconder judeus em casa, apesar de saber o risco que corriam. Tivessem sido descobertos pelos nazistas, teriam sido fuzilados. Infelizmente, foram poucos os franceses ou cidadãos de outros países que ajudaram os judeus. Aida respondeu: “Vivíamos muito próximo. Logo compreendemos que os judeus seriam vítimas da brutalidade alemã. Sentíamos tristeza e pena deles. Tendo escapado da perseguição na Armênia, conhecíamos muito bem o genocídio...”.

A 2ª Guerra na França Durante a 2a Guerra, Charles, com 16, e a irmã Aida com 17, viviam com seus pais no pequeno apartamento de três quartos localizado no número 22 da Rue de Navarin, no 9e arrondissement de Paris.

EDITH PIAF E CHARLES AZNAVOUR, 1951.

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Charles acrescentou : “Temos tanto em comum, nós armênios e, vocês, judeus, seja nos infortúnios, na felicidade, no trabalho, na música e nas artes, e na facilidade de aprender diferentes idiomas e de nos tornarmos importantes nos países que nos receberam... Crescemos juntos no bairro do Marais. Tínhamos, praticamente, uma vida em comum. Portanto, esconder judeus em nossa casa durante a 2ª Guerra, para nós era muito natural: eles eram nossos vizinhos e amigos. Estávamos prontos para protegê-los, como eles a nós. Tínhamos que tentar ajudá-los, assim como era natural que tentássemos ajudar os armênios que desertavam do exército alemão”. Ele lembra ainda que o box de seu pai no mercado municipal ficava próximo aos de alguns judeus. “E os vendedores armênios, entre eles o meu pai, cuidaram dos negócios desses judeus após terem sido presos na trágica deportação em massa dos judeus de Paris, em julho de 1942.” O lar dos Aznavourian, o pequeno apartamento da Rue de Navarin, tornou-se um esconderijo seguro não apenas para judeus como para desertores armênios, para comunistas e para membros da Resistência. A primeira pessoa que se escondeu com os Aznavourian foi um judeu romeno que fugira da Alemanha


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após ser condenado à morte por subversão. Chegara à Paris disfarçando-se de soldado alemão. Aida lembra que seus pais disseram a esse homem que “ele estava em casa, que se sentisse como um velho amigo que tinha que ficar um tempo conosco. Durante alguns dias, até dormiu na cama com o Charles”. Certo dia, uma conhecida da família pediu-lhes que escondessem seu marido, Simon, judeu, que havia sido detido junto com outros judeus parisienses e enviado ao campo de Drancy, mas conseguira escapar. Esse campo era para onde os judeus franceses eram enviados antes de serem despachados pelos nazistas para o “Leste”, e para as câmaras de gás. Os Aznavourian aceitaram escondê-lo e, em seguida, um terceiro judeu passou a viver em seu pequeno apartamento. A família também deu guarida a soldados armênios alistados à força no exército alemão e que preferiram desertar do que servir ao regime nazista. Charles e sua irmã eram encarregados de queimar os uniformes nazistas deles e se livrar das cinzas, bem longe de casa. Seus pais tinham vários amigos armênios na cidade, entre os quais um casal, Mélinée e Missak Manouchian. Missak era um dos chefes da Resistência Francesa, mais especificamente do grupo conhecido como “L’Affiche Rouge” (O Cartaz Vermelho), o primeiro a executar ações da resistência armada contra os nazistas. Quando a Gestapo capturou Missak, os Aznavourian esconderam Mélinée durante vários meses, já que seus outros amigos se haviam recusado a abrigá-la. Numa ocasião, eram 11 pessoas escondidas no pequeno apartamento

1.

2.

1. O CANTOR COM A FAMÍLIA. 2. COM O FILHO NICOLAS, 2017

AGRACIADO COM UMA ESTRELA EM HOLLYWOOD, 2017

no Marais. A família os ajudava a obter documentos de identidade falsos com a Resistência. Ainda que seus pais não pertencessem oficialmente à Resistência, eles colaboravam muito com a atividade underground. Sua mãe, por exemplo, ajudava o grupo que transportava armamento escondido em um carrinho de bebê.

Presidente Reuven Rivlin, de israel, entrega a Aznavour a medalha “Raoul Wallenberg”, outubro 2017

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A relação com Israel Charles Aznavour sempre foi próximo de Israel. Apresentou-se no país pela primeira vez em 1948, logo após a criação do Estado Judeu. Desde então, lá esteve várias vezes, encantando o público israelense com sua voz inigualável e suas canções românticas, em vários idiomas. Em 2011, recebeu o Prêmio Scopus, outorgado pela Associação dos Amigos da Universidade Hebraica de Jerusalém por sua contribuição cultural. Em 2013, antes de um show em Israel, encontrou-se com o então presidente Shimon Peres, a quem chamava de “meu bom amigo”. Um dos temas do encontro foi a paz. Ele fez outros shows no país, no ano seguinte e em 2017. Naquele mesmo ano, a Fundação Internacional Raoul Wallenberg concedeu à sua irmã e a ele a Medalha Raoul Wallenberg em reconhecimento pelos atos de DEZEMBRO 2018


música

Muitas de suas canções de sucesso, entre as quais, “La Bohéme,” “Hier encore” e “She” tornaram-se hits internacionais nas vozes consagradas de Ray Charles, Sammy Davis Jr., Liza Minnelli e Elvis Costello, entre outros. Cantando em sete línguas, estrelou mais de 60 filmes, sendo conhecido principalmente por suas lindas canções de amor.

COM A FILHA KATYA, EM 2006

sua família na salvação de judeus, durante a 2ª Guerra Mundial. Apesar da sede da instituição ser em Nova York, o artista e sua irmã preferiram receber o prêmio em Jerusalém, que lhe foi entregue pelo presidente Reuven Rivlin. Este falou de seu amor pelas músicas de Aznavour, mencionando que a favorita era “La Bohéme”. Há pouco tempo, Charles anunciou que faria uma turnê global em 2018, em comemoração ao seu 95o aniversário, e se apresentaria em Tel Aviv em junho de 2019 – o que infelizmente não se realizou. Entre esses planos também estava incluído o Brasil, no início de 2019. Havia um ponto de atrito entre o artista e Israel: o fato do governo israelense não reconhecer, por pressão e ameaças turcas, o massacre dos armênios como sendo um genocídio. “Conhecemos a mesma dor e o mesmo sofrimento. Sem a aniquilação dos armênios entre 1915 e 1918, a dos judeus, durante o Holocausto, não teria sido possível, pois os alemães aprenderam com os que os antecederam... Às vésperas da invasão da Polônia, em conversa com seus comandantes que estavam preocupados com o uso de violência

excessiva na operação, Hitler teria feito a seguinte declaração: “Alguém, por acaso, ainda fala sobre a aniquilação dos armênios?”. Em seu livro, Matzilim Tzadikim Ve’Lohamim, o Prof. Yair Auron relata que os oficiais alemães envolvidos no comando das forças armadas durante a 1ª Guerra Mundial, e que assinaram as ordens em relação aos armênios, posteriormente serviram no alto escalão da liderança nazista e participaram na organização do processo para aniquilação dos judeus.

Uma vida de sucessos A vida de Charles Aznavour foi longa e produtiva. Tinha uma família grande, tendo se casado três vezes, e deixou seis filhos e muitos netos. Artisticamente sua vida foi um sucesso, como dissemos acima: vendeu mais de 100 milhões de discos, escreveu mais de 1.000 canções, tendo lançado cerca de 100 álbuns solo, além de outros números em dueto com nomes consagrados como Plácido Domingo, Elton John, Liza Minnelli, Frank Sinatra e Sting. 46

Mesmo em sua vida artística, a conexão de Aznavour com nosso povo sempre foi forte e em inúmeras ocasiões ele era identificado como judeu. Apareceu em vários filmes franceses vivendo personagens de origem judaica. Atuou no vencedor do Oscar, “The Tin Drum”, na pele de um gentil vendedor de brinquedos judeu. Sua versão da tradicional canção “Yidishe Mame” é um de seus imortais sucessos. Lançada em 2011, sua canção “J’ai Connu”, conta a realidade dos campos de concentração nazistas sob a ótica de um prisioneiro judeu. Diz a canção: “Conheci as correntes Conheci as chagas Conheci o ódio, a sede e a fome Conheci o medo, de um dia para o outro”...

BIBLIOGRAFIA

Artigo de Alan Riding Aznavour, “The Last Chanteur”, publicado em 18 de outubro de 1998, The New York Times Artigo de Dr. Yvette Alt Miller, “Charles Aznavour and His Family Saved Jews during the Holocaust”, publicado em 5 de novembro de 2017, www.aish.com Artigo de Amy Spir, French Singer Charles Aznavour Dies at the Age of 94, publicado em 1 de outubro de 2018 , The Jerusalém Post Artigo de Andy Levy-Ajzenkoft, Charles Aznavour Always Felt Connected to the Jewish Community, publicado em 1 de outubro de 2018 ,The Canadian Jewish News Artigo de Fiachra Gibbons, “Legendary French singer Charles Aznavour dies aged 94”, publicado em 1 de outubro de 2018,The Times em Israel


DESTAQUE

Laços entre Israel e Rússia desafiados por Síria e Irã POR JAIME SPITZCOVSKY

As relações entre Israel e Rússia enfrentam, desde setembro, seu maior desafio nos tempos da aproximação capitaneada, há alguns anos, por Binyamin Netanyahu e Vladimir Putin. Apesar de críticas de Jerusalém e Washington, Moscou entregou a Damasco um sofisticado sistema de mísseis antiaéreos, após a derrubada de um avião russo por disparos feitos a partir de base síria. O novo armamento, chamado de S-300, deverá dificultar ações israelenses contra inimigos entrincheirados em solo sírio.

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Islâmico e de grupos ligados à Al Qaeda. Diante da iminência da queda do aliado, Putin decidiu intervir na Síria, interessado ainda em impedir a consolidação de bases do terror numa região relativamente próxima ao sul da Rússia. O Kremlin também vislumbrou na ação militar a valiosa oportunidade de demonstrar força e prestígio perdidos desde o fim da Guerra Fria, há cerca de 30 anos.

o dia 17 de setembro, uma aeronave russa, modelo Iliushin-20, com 15 militares numa missão de reconhecimento, foi abatida perto do porto sírio de Latakia por míssil disparado pelo sistema de defesa do regime de Bashar Al Assad. Todos os passageiros morreram. Disparos das forças sírias buscavam atingir quatro caças de Israel, que bombardearam um armazém com armas destinadas ao grupo libanês Hezbolá e a outras milícias financiadas pelo Irã. Nos últimos anos, foram registrados centenas de bombardeios israelenses contra alvos iranianos em território controlado pelo ditador Bashar Al Assad. O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu já deixou claro a estratégia de impedir que o regime de Teerã enraíze presença militar na Síria.

A partir de setembro de 2015, aviões russos passaram a controlar boa parte do espaço aéreo sírio. O Irã enviou assessores militares e milicianos, por meio de grupos xiitas como o libanês Hezbolá. A combinação russo-iraniana mudou o curso da guerra na Síria, com a derrota dos rebeldes e a sobrevivência do regime de Bashar Al Assad. Para Putin, a vitória na Síria não significou apenas a permanência no poder de um tradicional cliente de armas, relacionamento alimentado desde os tempos de Hafez Al Assad, que morreu em 2000 e pai do atual ditador. O Kremlin, com a força de sua intervenção iniciada em 2015, transformou-se no principal personagem a decidir os contornos da realidade política e militar de Damasco.

Rússia e Irã intervieram na guerra da Síria em 2015, com o objetivo de impedir a queda de seu aliado, Bashar Al Assad. Até aquele momento, o regime sírio colecionava sucessivas derrotas nos conflitos iniciados em 2011, enfrentando diversos grupos rebeldes sunitas, alguns deles apoiados pelos EUA e Arábia Saudita. A ditadura de Al Assad, controlada pela minoria alauíta (aliada dos xiitas), enfrenta também terroristas do Estado 47

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DESTAQUE

Putin, portanto, equilibra-se entre os compromissos assumidos com Netanyahu e a aliança com o regime de Teerã, com quem mantém laços políticos, econômicos e militares. O presidente russo cultiva laços com Israel de olho em trocas tecnológicas e também apostando que pode usar canais israelenses para ajudar a dialogar com os EUA, num momento de deterioração das relações entre Washington e Moscou.

O governo israelense deixou claro a Moscou não tolerar a transferência de armas iranianas para o Hezbolá

Desde o final da União Soviética, Moscou não contava com tanta influência em uma crise internacional. Vladimir Putin certamente utiliza a realidade síria como fator de fortalecimento político nos cenários doméstico e internacional.

Passou, na Síria, a bombardear, de forma cirúrgica, comboios com carregamentos bélicos e instalações destinadas a fortalecer a presença de Teerã e de seus aliados em território sírio. Para os bombardeios, Israel precisa contar com compreensão de Moscou, responsável pelo controle de boa parte do espaço aéreo sírio. Netanyahu investiu na aproximação diplomática com Putin e obteve, do Kremlin, sinal verde para a estratégia. E, a fim de evitar choques entre aviões israelenses e russos, foi instalada uma “hotline” entre militares dos dois países, para que Israel avise, com antecedência, sobre seus ataques.

Israel exemplifica a revitalização da diplomacia de Moscou, em especial no Oriente Médio. Binyamin Netanyahu, interessado em impedir o enraizamento do Irã na Síria, passou a investir no diálogo com Vladimir Putin, a fim de ter sinal verde para implementar sua estratégia de defesa.

Equilibrar-se entre as demandas de Israel e Irã permite a Putin despontar como pivô a decidir rumos da disputa entre arquiinimigos e a desenhar contornos atuais do Oriente Médio, numa flagrante demonstração de poder. Importante lembrar que os governos Obama e Trump, por diferentes abordagens ideológicas, optaram por participação limitada no cenário sírio. Nas frequentes conversas com Putin, Netanyahu reitera a demanda de retirada total do Irã e seus aliados do território sírio. Moscou não acata a exigência na totalidade, mas comprometeu-se a limitar a presença iraniana a cerca de 80 quilômetros da fronteira da Síria com Israel. No complexo tabuleiro geopolítico e militar da Síria, Israel aposta na diplomacia com a Rússia e nos bombardeios contra alvos iranianos para impedir o fortalecimento de Teerã em mais um país fronteiriço, lembrando que o Hezbolá, principal força militar e política do Líbano, é movido a controle remoto pelo Irã. No episódio de 17 de setembro, quando o avião russo de reconhecimento foi abatido por fogo sírio, o Ministério da Defesa da Rússia de imediato responsabilizou

O governo israelense deixou claro a Moscou não tolerar a transferência de armas iranianas para o Hezbolá. 48


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O primeiro-ministro Bibi Netanyahu com o presidente da Rússia, Vladimir Putin

Israel, argumentando que um dos caças israelenses “se havia escondido” atrás da aeronave enviada por Moscou. Argumentou ainda que seus militares não haviam sido notificados do bombardeio com suficiente antecedência.

de defesa antiaéreo S-300, que moderniza e eleva condições militares da ditadura síria.

O governo Netanyahu rejeitou a acusação e apresentou evidências de que seus caças, no momento do disparo da defesa antiaérea síria, já estavam em espaço aéreo israelense. Sobre a operação em Latakia, afirmou ainda ter avisado os russos com 12 minutos de antecedência.

Havia mais de cinco anos que o regime de Bashar Al Assad reivindicava a entrega do S-300. Damasco aproveitou o episódio de 17 de setembro para intensificar a pressão pela obtenção do sistema responsável por aumentar o alcance de sua defesa antiaérea. Putin, ao final, calculou que a entrega seria uma forma de aplacar pressão e de manter a política de buscar equilíbrio entre Israel e Irã.

Putin, para diminuir a temperatura na crise diplomática, descreveu o episódio como “um encadeamento de circunstâncias acidentais e trágicas”. No entanto, quando se imaginava o capítulo como encerrado, o Kremlin anunciou a entrega, a Damasco, do sistema

Na segunda quinzena de setembro, Netanyahu e Putin conversaram ao telefone pelo menos três vezes. De Washington também veio pressão. O secretário de Estado Mike Pompeo descreveu a entrega do S-300 como “uma séria escalada”. 49

Em Jerusalém, Netanyahu recebeu, no começo de outubro, a visita de Maxim Akimov, vice premiê russo. As incursões aéreas na Síria vão continuar, pois correspondem a “legítima autodefesa, já que o Irã e seus aliados afirmam sua intenção de nos destruir”, declarou o primeiroministro israelense. E, acrescentou Netanyahu, as diferenças atuais com Moscou “serão resolvidas”. Especialistas apontam a capacidade israelense de superar o sistema antiaéreo S-300. As operações, no entanto, deverão ficar mais complexas. E Israel, certamente, manterá a opção de se esforçar para evitar que o Irã se fortaleça no território da vizinha Síria.

Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim

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JUDAÍSMO NA CORTE DE D. PEDRO II por REUVEN FAINGOLD

Em 2 de setembro de 2018, um incêndio devastou o Museu Nacional do Rio de Janeiro, chocando a sociedade brasileira e o mundo, e revelando o descaso total das autoridades com o patrimônio cultural do país. Esta instituição guardou durante anos uma Torá, também conhecida como os “Pergaminhos Ivriim”.

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elizemente, como tais manuscritos necessitavam nova restauração, a Torá foi trasladada, do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, para a Seção de Obras Raras da Biblioteca da Universidade, situada no Horto Florestal, próximo ao museu. Esta ação acabou por salvar o precioso manuscrito do fogo que devastou o museu. A Torá já havia sido restaurada em novembro de 1998, pois os pergaminhos encontravam-se marcados por fungos e orifícios decorrentes de ataque de micro-organismos. Restaurada, essa Torá permaneceu no 1º pavimento do Museu Nacional, no Museu do Imperador, um espaço pouco citado na historiografia. E, ao que tudo indica, pertenceu ao Imperador D. Pedro II.

documento era parte do acervo, mas até então não havia sido estudado. Lá consegui, também, resgatar fontes históricas que me ajudaram a reconstituir a fascinante viagem de peregrinação de 24 dias empreendida, em 1876, pelo monarca brasileiro e sua comitiva imperial. Sua Majestade percorreu lugares recônditos, conheceu várias personalidades e exercitou sua verdadeira vocação de orientalista amador. As cidades da Terra de Israel se agitaram com o visitante ilustre. Em seu Diário encontramos os três principais elementos da chamada literatura de peregrinação: a reconstrução da cena “in loco”, fundamental para estabelecer a passagem do profano ao sagrado; a leitura e meditação de algum trecho bíblico, indispensável para identificar e valorizar o fato histórico; e o poder espiritual da oração que gera devoção, envolvendo os sentimentos dos peregrinos.

Que relação e que interesse o monarca teria tido com o universo judaico? Seguem-se alguns episódios pouco conhecidos de sua relação com esse universo.

D. Pedro d’Alcântara, tido como “rei sábio”, foi criado para as letras e as artes. Amado e elogiado, criticado e censurado, foi um homem culto e uma figura ímpar que merece um lugar de destaque na galeria dos grandes vultos da Humanidade.

A VIAGEM DE D. PEDRO À TERRA SANTA Em 1998, tive o privilégio de ter acesso à “Caderneta de viagens” de D. Pedro II à Terra Santa, guardada no Museu Imperial de Petrópolis. Há anos, o 50


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Monumento de D. Pedro II. Museu Imperial, palácio de verão do monarca. Petrópolis, Rio de Janeiro

PERGAMINHO DA TORÁ Em 23 de agosto de 1995, a revista Veja publicou uma nota intitulada “Pergaminho de 24 metros”. A matéria falava da existência dos três pergaminhos mais antigos da Torá: o primeiro, no Museu de Israel, em Jerusalém; outro, nos Estados Unidos, e um terceiro, no Brasil. Este último era um rolo de 24 metros de comprimento, dividido em 9 peças de 60 centímetros de altura

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Há pesquisadores que acreditam que os Pergaminhos Ivriim tenham sido confeccionados no Iêmen, por volta do século 13.

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Texto massorético ou masorético é o texto hebraico utilizado no Tanach para o judaísmo e também como fonte de tradução para o Antigo Testamento da Bíblia cristã. Os massoretas eram os escribas judeus.

cada, manuscrito sobre pele de novilho avermelhado. O texto teria sido copiado por um escriba que habitava o Egito entre os séculos 1 e 41. Escritos com pigmento vegetal, os pergaminhos estavam, como dissemos, no Museu Nacional do Rio de Janeiro. D. Pedro II aos 40 anos, c. 1865

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A nota da Veja levantou uma pergunta: poderia o manuscrito guardado no Museu Nacional ser o mesmo mencionado pelo Imperador em seu “Diário de Viagem”, e que lhe teria sido apresentado em 1876, na sinagoga dos samaritanos, em sua viagem? Antes de examinar a questão é necessário abrir um parêntese para ressaltar que os samaritanos não fazem parte do Povo Judeu, sendo uma seita muito antiga anterior ao exílio judaico para a Babilônia. Professam o Samaritanismo, religião intimamente relacionada com o Judaísmo, sendo seu culto baseado no Pentateuco Samaritano. Há cerca de 6 mil diferenças entre o texto samaritano e o massorético2. Em grande parte, são variações na grafia de palavras ou construções gramaticais, mas há também importantes mudanças semânticas, DEZEMBRO 2018


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Lamentavelmente não há registro algum sobre sua procedência, apenas suposições ... É bem provável que tenha sido o próprio Imperador, mesmo não se tratando dos pergaminhos que lhe foram apresentados na sinagoga samaritana. D. Pedro tinha um fascínio por manuscritos antigos. Em agosto de 1876, por exemplo, três meses antes de chegar à Terra de Israel, havia analisado manuscritos hebraicos antigos em encontro com orientalistas em São Petersburgo, Rússia.

Folha dos Pergaminhos ivriim ou Pergaminhos da Torá. Museu Nacional do Rio de Janeiro

tais como o mandamento exclusivo dos samaritanos de construir um altar no Monte Guerizim. Voltando ao Museu Nacional, em rápida visita ao seu Departamento de Arqueologia, constatei que o manuscrito samaritano, citado no “Diário de Viagem”, não é o que se encontra tombado, desde 1998, no Museu. Esta tese é sustentada por cinco argumentos, que descrevemos abaixo. Em primeiro lugar, nesse diário D. Pedro menciona um manuscrito em pele de gazela, enquanto que o do Rio de Janeiro é todo em couro de novilho. Em segundo, as letras do Pentateuco dificultavam a leitura, estando algumas apagadas, como relata o Imperador, enquanto são bem legíveis os caracteres dos rolos do Sefer guardado, até há pouco, no Museu Nacional. Ademais, ainda segundo o Diário, os pergaminhos samaritanos supostamente datavam da época de Avishua, filho de Pinchas, Cohen Gadol (Sumo Sacerdote) no tempo de Yehoshua bin Nun, sucessor de Moshé. Já o Pentateuco do Rio de Janeiro seria obra de um sofêr que viveu no Egito entre os séculos 1 e 4, como vimos acima.

Finalmente, a prova mais evidente de que os Pergaminhos guardados no Museu Nacional não eram os mesmos aos quais D. Pedro tivera acesso na sinagoga samaritana reside no formato dos caracteres hebraicos. As letras dos escribas samaritanos eram diferentes das letras hebraicas utilizadas pelos judeus. O argumento mais contundente é o fato de que a promessa dos samaritanos de levar uma cópia do Pentateuco Samaritano ao Imperador nunca foi cumprida. Cabe, então, outra pergunta: quem teria trazido ao Brasil os Pergaminhos Ivriim?

D. Pedro II montado num camelo. Viagem pelo Egito, 1871

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GENEALOGIA E JUDAÍSMO Em 2 de dezembro de 1825 nascia, no Rio de Janeiro, Dom Pedro d´Alcântara. Desde cedo teve vida calma, comparecendo ao Paço Imperial somente nas solenidades. A Quinta da Boa Vista passou a ser sua residência, e era lá que estudava línguas exóticas, como mandarim, tupi-guarani e sânscrito, mergulhando fundo nas culturas clássicas e orientais. Mesclava-se em sua pessoa o bibliógrafo, o astrônomo e o helenista. Sua enorme curiosidade pelas descobertas científicas aproximou-o dos grandes espíritos da época. D. Pedro II era um Bourbon e também um Bragança. Pertencia à estirpe dos reis de Portugal. Uma lenda narra a origem judaica dos Bragança. Certa vez, durante o governo do Marquês de Pombal, apresentou-se um cortesão perante o rei, propondo-lhe que os descendentes dos cristãos novos portassem um chapéu amarelo para diferenciá-los de outros grupos. O rei, entusiasmado com a ideia, foi dissuadido por outro nobre, que se apresentou diante dele com três chapéus amarelos e disse: “Tomo o primeiro para mim e entrego os outros, um ao Inquisidor-mor e o terceiro à


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Vossa Majestade, em homenagem à formosa judia de quem precede a Casa de Bragança”. Quem seria essa formosa judia? Era Inês Fernandes Esteves, filha do judeu espanhol, o sapateiro Mem ou Pero Esteves, conhecido como “Barbadão de Veiros”. Inês teve dois filhos com um bastardo real, que depois seria rei de Portugal com o nome de D. João I. Um dos filhos, D. Afonso (1377-1461), foi sagrado 1º Duque de Bragança, e dele descenderiam os futuros reis de Portugal e do Brasil.

OS ESTUDOS DE HEBRAICO D. Pedro II era disciplinado nos estudos. Seus “Diários” registram horários rígidos, mestres qualificados e uma obstinada dedicação à aprendizagem. Apreciava e era versado nos idiomas sânscrito, grego, hebraico, árabe, mandarim e tupi-guarani. O poeta luso Ramalho Ortigão (1836-1915), em “As Farpas”, rasga elogios cheios de ironia à importância atribuída à língua dos hebreus: “Apeteceu-lhe o hebraico. Vossa Majestade provou o severo idioma bíblico dos Patriarcas, e sentiu-se refrigerado e satisfeito”.

Comtadin”3, escritas em 1890, D. Pedro registra o motivo pelo qual se dedicara a aprender hebraico: “Quanto ao histórico de meus estudos hebraicos empreendidos com o fito de melhor conhecer a história e literatura dos judeus, principalmente a poesia e os Prophetas (sic), assim como as origens do Christianismo (sic), tais estudos remontam aos anos que antecederam à Guerra do Paraguai, em 1865. Encetei-os durante as minhas permanências em Petrópolis com o Sr. Akerbloom, judeu sueco. Mais tarde, retomei-os com o Sr. Koch, ministro protestante alemão. Após a morte súbita deste, prossegui-os com o doutor Karl Henning e, desde 1886, com meu sábio colaborador e professor de línguas orientais, Christian F. Seybold, com quem continuei o estudo sério do árabe”. O texto acima destaca o valor atribuído pelo monarca à literatura judaica ao mencionar até os nomes de seus quatro mestres de hebraico. O primeiro, Leonhard Akerbloom (1830-1896), judeu oriundo dos países nórdicos, escolhido para ser o cônsul da Suécia e da Noruega no Brasil entre 1867 e 1871. Ao começar as aulas com ele, D. Pedro tinha 42 anos.

Ferdinand Koch foi o segundo professor do Imperador; dominava grego, latim, hebraico e lecionava sânscrito. Depois de anos no Rio, Koch tornou-se amigo de Pedro II, morrendo em Petrópolis. No dia do enterro, seu aluno o perpetuou com uma inscrição em seu jazigo, tratando-o de “amigo” em latim, grego e hebraico. Karl Henning foi seu terceiro professor. Ancorou no Rio de Janeiro em 1874, carregando livros e manuscritos. Dois dias após sua chegada recebe a primeira carta de Pedro II que, entre outras, dizia: “..., há pouco mais de um mês não converso e, desta forma, poderá conhecer o quanto sei de hebraico pelas traduções do Gênesis. Traga sua Bíblia hebraica e algo em sânscrito para leitura. Desculpe a minha pressa em querer demonstrar o desejo de estudar. Seu devoto aluno, D. Pedro II”. O linguista alemão Christian Fredrich Seybold (1859-1921), quarto erudito que lecionou hebraico ao Imperador, chegando ao Brasil em 1887, atuou como correspondente da Real Academia de la Historia de Madri, do Instituto Histórico e

Desde jovem D. Pedro II acalentava o desejo de conhecer a língua bíblica. Naquela época, o hebraico não passava de idioma de liturgia e culto. Não fora renovado pelo escritor Eliezer Ben Yehuda, o que só ocorreria na Era Moderna. Na introdução às “Poesias hebraicoprovençais do Rito Israelita Comtat, “condado” em francês. Comtadin, comtadine é o adjetivo para os objetos ou pessoas originárias do Condado de Venaissin, região em torno de Avignon, na França. Os judeus que lá encontraram refúgio eram chamados de “os judeus Contadins”.

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Família imperial completa. Rio de Janeiro, 1887. Acervo Instituto Moreira Salles

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Compositor Louis Moreau Gottschalk

Geográfico Brasileiro e da Sociedade Arqueológica da França. O acervo do Museu Imperial de Petrópolis conserva 19 folhas do “Glossarium Hebraicum Liber Genesis I-II & Psalmorum”, cadernos de hebraico do monarca. Neles, os comentários de D. Pedro II não aparecem em português, mas em inglês ou grego. As notas nas margens das páginas, com caligrafia miúda, foram feitas em latim.

FORNECEDORES E SERVIDORES Segundo o recenseamento de 1872, apenas 2.309 eram judeus em uma população total de 10 milhões de habitantes. Os fornecedores judeus credenciados pela corte mantinham estreitos contatos com o exterior.

atriz Sarah Bernhardt

MÚSICO ALEXANDRE LEVY

O professor Berliner, judeu alemão especialista em caligrafia, era o responsável pelos livros entregues ao monarca. Estas obras chegavam em grandes quantidades. O judeu italiano A. Curiel, redator do “Corriere Israelitico”, enviou em 1877 um fascículo de sua revista. O rabino Isidor Halisch enviou-lhe, desde os Estados Unidos, um livro em hebraico. Friedrich Israel enviou a obra “Conselho de Estado na Prússia” e os textos de Paul Herzberg (1878), Julius Gaspary (1883) e Joseph Hollmann (1889), todos lidos pelo monarca. Em carta, D. Pedro II agradece a Salomon Hurwitz pela

oferta de um manuscrito proveniente de Jerusalém. Desde Paris, um livreiro dos Rothschilds era também cadastrado como fornecedor de Sua Majestade. O dentista judeu, Dr. Samuel Eduard da Costa Mesquita (1837-1894), atendia D. Pedro II. Era casado com Mary Roberta Amzalak, filha mais moça de Isaac e Grazia Amzalak, uma das três graças eternizadas em “Hebreia”, belo poema de Castro Alves. O dentista morava em São Paulo e viajava até Campinas onde oficiava as rezas nas festas judaicas.

A “Wallerstein Masset & Company” era provedora oficial da Casa Imperial. Seu dono, o judeu Bernard Wallerstein, conhecido como “o rei da moda”, encomendava em Paris cristais, porcelanas e outros objetos de decoração.

A firma “Gabriel & Segrè” recebeu o título de “Alfaiate de Sua Majestade”, com permissão para colocar o brasão das armas imperiais no frontispício do estabelecimento. Entre os vários membros dessa família judeu-italiana encontramos escritores, professores e militares. A participação de famílias judias na agricultura e na colonização do Brasil foi significativa, principalmente imigrantes chegados dos Estados Unidos. Dentre essas famílias aparecem os Nathan. Em 1870, Charles

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Nathan expunha a D. Pedro II a precária situação da “Fazenda Funil”, futura cidade de Americana. Em consequência das enchentes e da seca, Nathan viu-se obrigado a sustentar 500 imigrantes sulistas para que não morressem de fome. Após algum tempo, viu-se forçado a solicitar a ajuda do governo brasileiro, pois faltavam-lhe os meios suficientes para tão nobre fim.

LAZER E CULTURA O casal Kahn, judeus originários da Alsácia, era responsável pelos animados saraus do palácio. Contratada pela corte, a Sra. Sarah Kahn encarregava-se de organizar atividades culturais, palestras, conversas e encontros abordando temas de viagens, língua hebraica e Bíblia. No teatro, as performances da atriz Sarah Bernhardt (1844-1923) eram incomparáveis. Filha de judia holandesa, a “Diva Sarah” começou a encenar no Teatro Odéon, e mais tarde representou dramas clássicos e românticos na Comédie Française. Sua primeira tournée pelo Brasil, em 1866, gerou grande agitação nos círculos sociais e acadêmicos. O preço dos ingressos para suas apresentações era bem elevado, mas as pessoas acotovelavam-se nas bilheterias para comprá-los. D. Pedro II convidou-a para visitar seu camarote, presenteando-a com uma pulseira de ouro. O maestro Louis Moreau Gottschalk (1829-1869) chegou ao Rio de Janeiro para reger grandes concertos, alguns inclusive na presença do Imperador. Sua primeira apresentação, a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional” realizou-se em novembro de 1869.

A segunda, programada para alguns dias depois, não chegou a se concretizar, pois o compositor judeu americano morreu, poucos dias depois. Alexandre Levy (1864-1892) era filho de Henrique Luiz Levy, o fundador da “Casa Levy”, importante ponto de encontro dos artistas da época. Alexandre era um compositor romântico, sendo responsável por incorporar à música temas típicos do país, convertendose num verdadeiro precursor do movimento musical brasileiro de caráter nacionalista. Entre suas composições principais, “Variações sobre um tema brasileiro (Vem cá,

Paula Buchheim, Ida e Helen Goldschmidt, Robert Kinsman Benjamin, entre outros.

BANQUEIROS E EMPREENDEDORES Um dos primeiros financiers do Segundo Império foi Dennis Samuel (1782-1860), judeu britânico, negociador respeitado na corte. “Rothschild & Sons” era um banco espalhado pelos quatro cantos da Europa. Investidores britânicos atuavam no Brasil e tinham um portfólio que incluía os maiores financiamentos da época. Num

O Imperador D. Pedro II, Imperatriz e comitiva a bordo do vapor “Congo”, de volta da Europa. Acervo da Biblioteca Nacional, ano 1888

Bitu)”, “Comala”, “Suíte brasileira para Orquestra”, “Fantasias sobre motivos do Guarani”, “Hino ao Quatorze de Julho”, “Schumannianas” para Piano, “Sinfonia em mi” e seu famoso “Tango Brasileiro”. Músicos judeus também se destacaram no Império: o casal Joseph e Ada Heine (rabequista e pianista), Cecilia Silberberg (pianista), as irmãs Mathilde e Virgínia Sinai (pianista e violinista), de Belém do Pará, Harold H. Hime, 55

mundo difícil para os negócios, o caso do cliente brasileiro era simples, pois o governo nunca discordava de seu banqueiro, até porque o próprio barão Lionel Rothschild se encarregava de aplicar o dinheiro do embaixador Carvalho Moreira, diplomata brasileiro que se tornou agente da grande casa bancária. Os empréstimos para a construção da Estrada de Ferro D. Pedro II foram feitos pelos Rothschilds. Em 1859, na lista de acionistas da “São DEZEMBRO 2018


brasil

José Buschenthal era um banqueiro que efetuava transações com o Tesouro, recebendo o monopólio da venda do sal, de onde obteve imensos proventos. Nascido em um lar judeu, acabou por se converter ao luteranismo. Em 1830, Buschenthal negociou empréstimos e participou no fornecimento de armas e uniformes para o exército brasileiro. José Bonifácio não simpatizava em nada com ele, tendo desabafado, certa ocasião, com Sua Majestade: “Não vai entregar nas mãos de um traste [judeu] os meus interesses pecuniários”.

Paulo Railway” aparecem vários judeus londrinos. A firma “Samuel & Phillips & Company” atuava no Brasil desde 1824. O judeu Samuel Phillips era cunhado dos Rothschilds. A empresa doava altas quantias para empreendimentos sociais e filantropia, para encanamento das águas do rio Maracanã, para os indigentes das Vilas de Diamantina e do Príncipe, em Minas Gerais, e para obras da Praça do Comércio, no Rio de Janeiro. Samuel Phillips, pelas suas excelentes relações comerciais e lealdade ao monarca, procurava obter taxas de juros mais baixas para o Brasil. Piyut, pl. piyutim, palavra que provém do grego, significando “canto”. Poema litúrgico judaico, geralmente cantado ou recitado nos serviços religiosos. Os piyutim foram escritos desde a época bíblica, sendo a maioria em hebraico ou aramaico. Seguem um esquema poético, como um acróstico na ordem do alfabeto hebraico, ou soletrando o nome de seu autor.

4

O exílio de D. Pedro II foi um fato lamentável. Durante anos foi explicado como algo que não passava de uma “festa de despedida”. Longe disso, a saída da família imperial do país deixaria nos políticos da época um clima de culpa e vergonha. Desde Paris, cidade que acolheu Sua Majestade, batia forte a saudade pelo Brasil. No fim de seus dias, D. Pedro II conheceu o rabino de Avignon, Benjamin Mossé, que lhe ofereceu uma tradução dos Salmos. O rabino sugeriu ao monarca que traduzisse poemas litúrgicos da Provence. Este convite deu origem às “Poésies hebraïcoprovençales du Rituel Israélite Comtadin” (1890), de autoria do Imperador. Para o centenário da incorporação do Comtat Venaissin à França, Pedro II traduziu as canções que Benjamin Mossé lhe fornecera. Eram os “Piyutim”4 do ritual Comtadin, eternizados em duas antigas publicações: o “Seder HaKontress” e o “Seder Ha-Tamid”. O rabino Mossé escreveu ainda uma biografia em francês sobre o monarca brasileiro. Em carta a Pedro II (09/08/1890), diz: “Uma das mais belas retribuições de minha vida, será apresentar, como historiador francês, o 56

maior dos modernos imperadores: D. Pedro II. Desejo que Vossa Majestade seja o primeiro a ler este livrinho que escrevi, quase todo, visando muito ao efeito que deve produzir, não só no estrangeiro, mas principalmente no Brasil”.

PALAVRAS FINAIS O Imperador D. Pedro II demonstrava fascínio pelo Judaísmo, o hebraico e os judeus. Seu amor incondicional pela cultura judaica está balizado em sua enorme paixão pela Bíblia e, consequentemente, em seu desejo por conhecer profundamente a História do Povo Judeu. Sua viagem de peregrinação à Terra Santa, em 1876, com uma comitiva de 200 pessoas, foi um verdadeiro sonho acalentado durante vários anos, um acontecimento mágico que se concretizou ao completar, o monarca, pouco mais de meio século de vida.

BIBLIOGRAFIA

Faingold, R., D. Pedro II na Terra Santa. Editora e Livraria Sêfer. São Paulo 1999 Faingold, R., Luzes do Império: Pedro II e o mundo Judaico. Exposição iconográfica apresentada pelo SESC e a Casa de Cultura de Israel em São Paulo, Petrópolis e Rio de Janeiro em 2000 Faingold, R., D. Pedro II, manuscritos hebraicos e orientalistas de São Petersburgo. Arquivo Maaravi vol. 2, No. 2, ano 2008. (Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Torah: Arquivos multidisciplinares da escritura) Faingold, R., Pioneirismo musical judaico no Brasil Império. Morashá, abril 2012 Faingold, R., Os mestres de hebraico de D. Pedro II. Anais do V Encontro do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, São Paulo 2013 (Evento de 2009) Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.


arqueologia

A antiga Shiló, Morada do Tabernáculo Mencionada inúmeras vezes na Torá e nos Salmos, encrustada nas Montanhas da Judeia, a antiga cidade de Shiló, hoje chamada de Tel Shiló, abrigou por 369 anos o Mishkan, o Tabernáculo, tornando-se o epicentro da vida religiosa da antiga Israel durante a era dos Juízes, que precedeu a formação do Reino de Israel. Em fevereiro de 2012, Israel declarou Tel Shiló patrimônio arqueológico.

a

17km ao sul de Sh’chem ou Shechem, Tel Shiló1 está situada 714m acima do nível do mar e a 40m acima da área ao seu redor. A localização da antiga Shiló é claramente identificada no Livro dos Juízes: “Eis que há anualmente uma festa do Eterno em Shiló, que está ao norte de Bet-El, a leste o caminho que sobe de BetEl a Shechem, e ao sul de Levoná” ( Juízes, 21:9). Em Deuteronômio (Devarim), 12:9, Shiló é apontada como “menuchá” (local de descanso), um precursor da “nechalá” (herança) que se alcançaria com a construção do Beit Hamikdash em Jerusalém. O nome Shiló vem da palavra shalá, em hebraico “refúgio da tranquilidade”.

A Shiló judaica Os Bnei Israel, Filhos de Israel, não foram os primeiros habitantes de Shiló. De acordo com historiadores e arqueólogos, o local foi habitado a partir do século 18 A.E.C. e, antes da chegada do Povo de Israel, o local ficou sob domínio canaanita e egípcio. Shiló passou a fazer parte da História Judaica após os Filhos de Israel, liderados por Yehoshua bin Nun, terem conquistado Canaã, a Terra que lhes fora prometida por D’us. Profeta e guerreiro, legislador e juiz, Yehoshua era o principal discípulo de Moshé, e D’us o escolhera para suceder nosso maior profeta na liderança da geração de judeus nascida após a saída do Egito, no Deserto do Sinai. Nos sete anos seguintes, o povo lutou arduamente pela conquista da Terra Prometida2. No final desse período, o Eterno revelou a Yehoshua que chegara a hora dos “Filhos de Israel receberem sua herança, na terra de Canaã”.

Nas últimas décadas, milhares de visitantes têm ido a Tel Shiló para admirar os tesouros arqueológicos descobertos no local e nas redondezas, hoje parte do sítio arqueológico “Ancient Shiloh” (Shiló Antiga), localizado na entrada da moderna comunidade de Shiló. 1

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Tornou-se necessário escolher um lugar fixo para o Mishkan, o Tabernáculo. Este Santuário portátil havia sido construído após o recebimento da Torá no Monte Sinai, seguindo as instruções do Eterno. Treze capítulos do Livro Êxodo detalham sua construção.

Tel Shiló, a antiga Shiló como é chamada hoje. Tel significa monte ou sítio arqueológico.

Os historiadores acreditam que a entrada dos Filhos de Israel e conquista da Terra ocorreu durante a chamada 1ª Idade de Ferro, em meados do século 13 A.E.C. 57

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arqueologia

Tel Shiló

No Mishkan estavam os bens mais preciosos de Israel: o Aron Hakodesh - a Arca Sagrada ou Arca da Aliança, que abrigava as Tábuas da Lei, que continha os Dez Mandamentos (guardando, inclusive, os fragmentos das primeiras Tábuas estilhaçadas), e o Sefer Torá original, que, ditado por D’us, fora transcrito por Moshé. A Torá chama o Mishkan de Ohel Mo’ed, “Tenda da Reunião”, pois era o local físico escolhido pelo Eterno para se comungar com o homem, a Morada de D’us na Terra; o lugar no qual o homem finito podia testemunhar e vivenciar a Presença do Infinito. Nos 40 anos em que vagaram pelo deserto, os Filhos de Israel levavam consigo o Mishkan, de um lugar a outro. Para Israel, o Mishkan era um sinal de que sempre haveria uma via de comunicação com D’us, independentemente de

quão distantes estivessem do local da Revelação, no Monte Sinai, já que lá não havia santidade intrínseca. O que conferia santidade ao local era a Presença Divina e a Sua Torá, Sua

RÉPLICA DO ARON HAKODESH, IMAGEM DO LIVRO “LE TABERNACLE”, DE MOCHÉ LEVINE

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Palavra, que a partir da Revelação estariam para sempre com Israel. Após a entrada dos Filhos de Israel em Canaã, o Mishkan ficou provisoriamente guardado em Guilgal. Mas, após Yehoshua ter dividido a Terra entre as Tribos de Israel, o Tabernáculo é levado ao topo do Monte Shiló, no território da Tribo de Efraim. O Livro de Yehoshua relata que “toda a congregação dos Filhos de Israel reuniu-se em Shiló, ali armando a Tenda da Reunião - Ohel Mo’ed. E a Terra estava conquistada diante deles”, ( Josué, 18:1 e 2). Ao ser realocada em Shiló, a estrutura do Mishkan deixou de ser portátil. Suas paredes não eram de madeira de acácia, como no deserto, mas de pedra, permanecendo como era apenas o teto, ou seja, em cortinas trançadas.


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Segundo Rashi, na Torá, Shiló é mencionada como um “lugar escolhido” por D’us. Pela primeira vez, a Presença Divina que permeava o Tabernáculo foi associada a uma localização específica. O lugar tornou-se o ponto de reunião do Povo de Israel, um centro político, religioso e de peregrinação. Três vezes por ano os judeus se dirigiam ao Santuário para orar e fazer suas oferendas. Lá ouviam as palavras de Eli, o Cohen Gadol, na época Juiz e líder da nação, cujo túmulo ali se encontra. Foi enquanto o Tabernáculo estava em Shiló e Eli era o Cohen Gadol que Hanna implorou a D’us que a abençoasse com um filho. Em resposta àquela prece, D’us a fez mãe de Shmuel, um profeta cuja estatura é comparada à de Moshé e Aaron.

contra Israel, destruindo tudo em seu caminho, até o coração da Samaria, e arrasaram Shiló. O fim violento da cidade também é descrito no Salmo 78: “Ele (o Eterno) abandonou o Tabernáculo em Shiló, a Tenda que era Sua moradia entre os homens”. Escavações arqueológicas encontraram uma camada estratigráfica3 cuja datação coincide com o período em que houve a batalha de Eben-Ezer, indicando que no local ocorrera uma grande

estruturas datadas desse período foram encontradas durante as escavações. Mas quando a Assíria invadiu o Reino de Israel, em 722 A.E.C., Shiló foi novamente destruída, assim como outras cidades na Samaria. A partir de então a área foi pouco habitada até o período romano, na época do Segundo Templo. Para os romanos, Shiló tinha interesse estratégico. Localizada na espinha

Segundo o Talmud, Shiló continuou como capital religiosa por 369 anos, até a derrota dos Filhos de Israel pelos filisteus, em Eben-Ezer, e a Arca Sagrada ser capturada por eles. Após essa batalha (1050 A.E.C.), Shiló é incendiada e arrasada. A narrativa da batalha final e as trágicas consequências da luta de Israel contra os filisteus estão no Livro de Samuel. Em EbenEzer, tombam 30 mil soldados de Israel, entre os quais Hofni e Pinchas, os dois filhos de Eli, o Cohen Gadol. Este Livro também revela que a Arca da Aliança, levada de Shiló ao acampamento dos soldados de Israel para darlhes ânimo e coragem, acabou sendo capturada pelos filisteus, que a levaram consigo para Ashdod (Samuel, 4-5). O Livro de Jeremias menciona, ainda, que, após derrotar Israel, os filisteus continuaram a luta 3

Corte longitudinal do sítio arqueológico.

Jarros encontrados no Parque arqueológico Shiló

destruição. Entre as descobertas recentes, há fragmentos de jarros de barro em meio a uma camada de cinzas avermelhadas, o que poderia confirmar a destruição da cidade por um grande incêndio. A datação do jarro aponta para o ano 1050 A.E.C., data que coincide com os eventos descritos no Livro de Samuel. Anos após a destruição da cidade pelos filisteus, por volta do século 8 A.E.C. ou um pouco antes, Shiló volta a ser povoada. Inúmeras 59

Entre as descobertas recentes, há fragmentos de jarros de barro em meio a uma camada de cinzas avermelhadas, o que poderia confirmar a destruição da cidade por um grande incêndio. DEZEMBRO 2018


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dorsal da alta região montanhosa da Samaria, uma estrada principal passava, na Antiguidade, a 2km a oeste da cidade. A estrada era utilizada pelos romanos como rota entre Jerusalém e Sh’chem. Mas, de acordo com o Talmud (Talmud Bavli, Yoma), traços da antiga glória ficaram impregnados em Shiló. Assim relata Rabi Yehoshua ben-Korcha, um sábio do Talmud: “Um judeu idoso me disse,

‘Eu fui a Shiló e senti o cheiro do incenso entre seus muros’”. Nem após a destruição do Segundo Templo e o início da Diáspora, a localização de Shiló foi esquecida pelos judeus. A tradição de ir até a cidade para rezar manteve-se através dos séculos. No século 4 da Era Comum (E.C.), o historiador romano Eusebius relatou sua localização: a cerca de 30km de Nablus. Sabe-se também que

desenvolvimento. Quatro igrejas foram construídas no sul de Tel Shiló, a primeira no século 4 E.C. e a última entre os séculos 6 e 7. As igrejas são uma clara indicação de que a cidade se tornou centro de peregrinação cristã. Apesar de não haver evidências que comprovem que a cidade era rota de peregrinos depois da época dos Cruzados, fontes muçulmanas contam que os cristãos continuaram a passar por lá durante o domínio islâmico. No livro Kaftor Vaferach, Rabi Ishtori Haparchi, que deixou a França e emigrou para a Terra de Israel em 1313, instalando-se em Beit Shean, assim descreveu sua visita a Shiló: “Nestes montes há um domo, o Domo da Shechiná (Presença Divina); e próximo a ele há um lugar conhecido em árabe como a “mesa dos Filhos de Israel”.

Ao sopé do Monte Shiló, escavação da igreja bizantina em torno da mesquita, Jamia el Yeteim (em árabe, significa Mesquita dos Órfãos)

viajantes judeus e muçulmanos teriam por ali passado durante a Idade Média. Um peregrino muçulmano, que visitou a região em 1173, falou sobre uma sinagoga, e Rabi Jacob, que por ali passou no século 13, disse ter visitado os túmulos de Eli, o Cohen Gadol, e seus dois filhos.

Período Bizantino, Otomano e Árabe Durante o período bizantino a cidade chegou ao auge de seu 60

Nos séculos seguintes, foram construídos povoados árabes ao redor das montanhas, no Vale de Shiló, chamado de Sahel Isstuniya, em árabe. A leste, próximo ao deserto, arqueólogos encontraram vários povoados antigos abandonados. O nome Isstuniya deriva-se do maior deles – Hurvat Isstuniya, ainda habitado no início do século 20. Localizado no alto do monte que controla o vale, cercado por bosques de pinheiros, abriga o túmulo do xeque Mohammed e restos de uma estrutura bizantina decorada. A leste de Isstuniya está o antigo povoado de Hurvat Kalzun, onde também foram encontradas ruínas datadas da Idade do Ferro e da época do Segundo Templo. Ao sul do vale está o grande povoado de Turmus Aya. No alto de uma montanha, a oeste, está o vilarejo de Sinjil, cujo nome está relacionado a um dos líderes da


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extensão – em alguns lugares chega a medir 5,5m. Muitos jarros foram também encontrados, assim como antigas prensas para produção de vinho e azeite de oliva e grandes vasos com restos de uvas. As descobertas mais importantes feitas por essa equipe são as ruínas das grandes igrejas da Era Bizantina, erguidas na região mais ao sul: restos de três delas, a mais antiga datada do século 4 da E.C. e as outras duas do século 5.

Imagens do Parque Arqueológico de Shiló

primeira cruzada, Raymond de Saint Gilles.

Escavações e Parque arqueológico

Conder e Kitchener, arqueólogos que estudaram a área em 1882, afirmaram ter encontrado vestígios do sítio arqueológico de Tel Shiló nas ruínas próximas a Seilun (Khirbet Seilun, a Antiga Shiló). No ano seguinte, Edward Robinson, pai da chamada Arqueologia e Geografia Bíblica, chegou à mesma conclusão.

As primeiras escavações em Tel Shiló foram realizadas em 1922 pelo dinamarquês Aage Schmidt. De 1926 a 1932, mais três equipes da Dinamarca trabalharam no local, sob a coordenação de Hans Kjaer. Após sua morte, as escavações foram suspensas até 1963, quando outro dinamarquês, Svend Holm Nielsen, retornou ao local. Atualmente, no Monte Shiló, há um amplo sítio arqueológico que permite vislumbrar a passagem dos séculos na região. Escavações arqueológicas confirmaram que os Filhos de Israel não foram os primeiros habitantes da região e que o local já era habitado entre os séculos 18 e 19 A.E.C. Entre 1981 e 1985, o professor Israel Finkelstein chefiou uma equipe da Universidade Bar Ilan. Arqueólogos identificaram portões da antiga cidade no lado sudeste de Tel Shiló. Em 1985, suas escavações revelaram ruínas de casas de pedras e um muro canaanita, impressionante por sua

Período contemporâneo Os judeus retomaram da Jordânia a soberania de Shiló na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Os primeiros povoados judaicos foram criados em 1979 exatamente no mesmo local em que as Doze Tribos de Israel ergueram seu centro político. Em 2012, a cidade já contava com uma população de aproximadamente 2.500 pessoas e, em 2017, quase 4 mil, segundo dados do Escritório Central de Estatísticas de Israel.

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Encontraram, também, um arco de pedra e pisos em forma de mosaicos com padrão geométrico na primeira igreja, denominada pelos arqueólogos de Igreja dos Peregrinos. Para proteger os achados, ergueram uma construção de tijolos simulando uma igreja bizantina. Esta é a primeira parada dos visitantes que chegam ao sítio. A Sinagoga do Domo da Presença Divina está ao sul de Tel Shiló, sobre uma elevação da qual se tem uma visão geral do vale, da estrada para Jerusalém e da cadeia de montanhas de Ba’al Hatzor. A sinagoga foi construída com os mesmos padrões daquelas do Período Talmúdico, na Galileia. Todas tinham três entradas

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arqueologia

escavações no leito da rocha que, acredita-se, teria sido o local onde ficava o Tabernáculo. Entre 2006 e 2007, foi a vez do Escritório de Arqueologia da Administração Civil da Judeia e Samaria fazer escavações na área. Quando, em 2010, reiniciaramse as escavações no Monte Shiló, os arqueólogos encontraram um cômodo contendo pilhas de pratos quebrados da época em que o Tabernáculo estava em Shiló. Em escavações recentes realizadas na subida do Monte, encontraram uma grande plataforma que julgavam ter sido o lugar do Tabernáculo.

Um dos utensílios do Tabernáculo, a Mesa dos Pães da Preposição. IMAGEM DO LIVRO “LE TABERNACLE”, DE MOCHÉ LEVINE

no muro ao Norte; e, no muro, ao Sul, um nicho para a Arca Sagrada, voltado para Jerusalém. No centro da construção podem ser vistos restos de colunas que sustentavam o teto. Os muros externos chegam a atingir quase dois metros de altura, dando à construção o aspecto similar à Tenda da Reunião. Ao longo da entrada há imagens decorativas características de edifícios judaicos, como ramos de oliveiras e urnas. A construção é conhecida também como “A sinagoga onde Hannah orou”. Entre os vários achados arqueológicos também estão ruínas de uma mesquita, Jamia el Arbain (em árabe, Mesquita dos 40). A parte principal é um quadrado. Ao norte, a porta tem um suporte na parte superior no qual estão esculpidas duas guirlandas de flores ladeadas por dois jarros com duas

alças, e no centro uma ânfora. No interior da construção há três colunas. Em seu capitel, folhas de acanto. Ao longo do caminho, ainda ao sopé do Monte Shiló, está outra mesquita, Jamia el Yeteim (em árabe, Mesquita dos Órfãos). Data do início da Idade Média e foi construída com pedras de antigas igrejas bizantinas.

Localização do Tabernáculo Em 1873, o explorador Wilson havia sugerido que a planície norte de Tel Shiló devia ser o local onde estivera o Tabernáculo e que a área deveria ter uns 235m de comprimento. Mas, em 1981 e 1982, Zeev Yeivin e Rabi Yoel Bin-Nun fizeram 62

Ofer Gat, da equipe que agora participa das escavações no local, acredita ser possível que o Mishkan tenha realmente estado localizado lá. Há uma grande semelhança topográfica entre essa suposta localização do Tabernáculo e a do Templo no Monte Moriá, em Jerusalém. No lado norte do Monte Shiló, próximo ao local do Tabernáculo, há uma caverna a partir da qual subdivide-se uma série de cavernas, cisternas e labirintos. Na caverna principal, no muro ocidental, veemse resquícios de nichos para velas e lamparinas. A oeste da caverna, próximo à entrada, há uma mikvê com seis degraus, exatamente como está descrito no Tratado Mikvaot. Este local era usado pelos Cohanim e Levitas para se purificarem antes dos serviços no Mishkan. Do ponto de vista nacional e religioso, não há dúvida de que a identificação do local do Tabernáculo é de fundamental importância para reafirmar o grande vínculo histórico e religioso entre o Povo Judeu e Tel Shiló.


personalidade

Claude Lanzmann Claude Lanzmann, cineasta francês, intelectual e jornalista, mais conhecido internacionalmente por seu documentário “Shoah” sobre o Holocausto, faleceu em 5 de julho de 2018, aos 92 anos. Judeu secular e sionista apaixonado, Lanzmann sempre esteve na linha de frente em defesa de Israel.

c

omo Claude Lanzmann se autodefinia? Em sua autobiografia, La Force des Choses (Força das Coisas, em português), Simone de Beauvoir relata que Lanzmann dizia: “Sou judeu (...) Quando, aos 13 anos de idade, descobri o antissemitismo, senti sacudir meu mundo, não ficando pedra sobre pedra (...)”.

com a família no início do século 20. Em 1934, Paulette abandonou marido e filhos, pondo um fim abrupto a seu casamento. Claude e seus dois irmãos passaram a viver com o pai em uma fazenda, em Brioude, até ir para o ginásio, em Clermont-Ferrand. Claude vivenciou o antissemitismo, pela primeira vez, na década de 1930, no colégio. O evento vai marcá-lo profundamente. Em uma entrevista em 2013 à revista The New Yorker, relembrou: “Escondido atrás de uma coluna no playground do colégio, fiquei olhando, petrificado. Não tentei intervir, aterrorizado de poder ser descoberto. Assisti aos meus colegas de classe praticamente lincharem um garoto judeu magricela, ruivo, chamado Lévy, que tinha todas as feições das caricaturas antissemitas do pré-guerra. Eram 20 contra um – e bateram nele até sangrar”.

Tendo lutado na La Résistance, a Resistência Francesa, ainda adolescente, durante a ocupação da França pela Alemanha, ele afirmava que sua experiência durante a 2ª Guerra Mundial lhe tinha revelado que a imagem dos judeus, como povo resignado, humilhado, perseguido, não refletia o que eles eram. O judeu, dizia, “(...) é um povo combatente”. “Os seis milhões de homens, mulheres e crianças exterminados pelos nazistas pertenciam a um grande povo, não predestinado ao martírio, mas vítima de barbárie gratuita(...)”.

Em 1939, quando estoura a 2ª Guerra Mundial, Claude tinha 14 anos. Os nazistas ocuparam a França, e seu pai, preocupado com a segurança dos filhos, cavou um buraco, não maior do que um túmulo, no jardim da casa onde viviam, em Clermont-Ferrand, onde cabiam seus três filhos. Instruiu-os a se esconderem, rápida e silenciosamente, no buraco, que lhes serviria de

Sua vida Nascido numa família de judeus, em Paris, em 27 de novembro de 1925, Claude Lanzmann era o mais velho de três irmãos. Armand, o pai, era já nascido na França; sua mãe, Paulette, fugira dos pogroms russos 63

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personalidade

esconderijo da Gestapo. Claude se recorda que, em 1941, eram 4 horas da madrugada quando soou a campainha. Poderia ter sido a SS. No mês anterior, todos os judeus da cidade tinham sido reunidos e despachados para “algum lugar”. Os três jovens tinham treinado inúmeras vezes para saber como agir caso as SS aparecessem em sua residência. Desceriam rapidamente as escadas, voando porta afora e de lá para o esconderijo. As dobradiças das portas tinham

Em entrevista ao Der Spiegel, em 2011, contou: “Estive envolvido em várias emboscadas, como artilheiro e carregador de metralhadoras (...). Certo dia, no verão de 1944, emboscamos um comboio alemão a caminho do front, na Normandia. Atirei e certamente matei alemães”. Seus pais e seus irmãos também sobreviveram à guerra.

Claude Lanzmann, 1945 em MontMouchet (Puy-de-Dôme)

claude lanzmann e simone de beauvoir, c. 1952

sido bem azeitadas para não fazer barulho. Escondidos no buraco, os três irmãos viram, de repente, uma figura escura acima deles. Mas não era a Gestapo, e sim seu pai testando-os uma vez mais. E os reprimiu dizendo, “Vocês fizeram barulho”. Claude se lembrava do fato nitidamente, apesar das várias décadas transcorridas. Durante a ocupação, seu irmão menor, seu pai e ele lutaram na Resistência Francesa contra os nazistas. Aluno interno no Liceu Blaise-Pascal, em ClermontFerrand, Claude filiou-se à

Jeunesses Communistes ( Juventude Comunista). O partido forneceu armas e panfletos da Resistência a ele e seus camaradas. À noite, eles praticavam tiro nos depósitos do colégio. Claude ingressou nas fileiras da Resistência, em Auvergne, participando ativamente da luta contra a ocupação alemã. Contrabandeava armas e munição para o movimento. Seu pai era um dos líderes locais do Movimento Unificado da Resistência (MUR). No entanto, apenas em fevereiro de 1944, ele e o pai descobririam o que o outro estivera fazendo. 64

Mas a guerra nunca terminou, de verdade, para Lanzmann, como Beauvoir escreve em suas memórias, “(...) seu rancor contra os não-judeus nunca desapareceu, de verdade”. Com o término da guerra, Lanzmann se mudou para Paris, onde cursou Filosofia, na Sorbonne. No final da década de 1940, lecionou Filosofia e Literatura, na então Alemanha Ocidental. Ao lhe perguntarem por que decidira lecionar na Alemanha, alegava que queria ver alemães à paisana. Numa certa ocasião, seus alunos pediram que desse um seminário sobre o antissemitismo. O adido militar francês em Berlim lhe ordenou que desistisse, em sinal de respeito às “sensibilidades políticas”. Lanzmann irritara os funcionários da Chancelaria francesa por ter publicado um artigo sobre a declarada simpatia pelos nazistas por parte da administração da universidade. Mas, Lanzmann não desistiu e deu o seminário. Ele acabou abraçando o jornalismo. Escreveu uma série de artigos para o jornal Le Monde enquanto viajava ilegalmente pela então recém-criada Alemanha Oriental. Muito provavelmente foi o primeiro jornalista ocidental a fazê-lo.


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Lanzmann e Sartre Seus artigos atraíram a atenção do filósofo existencialista, JeanPaul Sartre (1905-1980), a quem admirava muito. Em 1946, lera a obra “Antissemita e Judeu”, de Sartre, logo ao ser publicada, escrevendo: “Ele entendeu-nos como ninguém mais”. Na obra, o autor atacava o antissemitismo, mal que havia tomado a França, tentando entendê-lo. Entre outras, Sartre afirmava que alguns de seus compatriotas consideravam que ser antissemita era simplesmente “ter uma opinião”, como tantas outras. Para ele, qualquer ideia que negasse aos outros a sua própria humanidade não merecia ter o status de ser uma “opinião”. Afirmava, também, que o antissemitismo não era uma forma de pensar, mas uma paixão racista estruturada por uma forma

específica de lógica: os judeus me deixam desconfortável, não confio neles, desprezo-os, portanto, isso com certeza significa que há algo de errado neles. Em 1952, Sartre convidou Lanzmann para uma de suas soirées parisienses, e lá este último conhece Simone de Beauvoir, escritora e filósofa existencialista. Sartre de pronto convida-o para colaborar em sua revista de esquerda, Les Temps Modernes, fundada em 1945, da qual Simone também fazia parte. Durante vários anos, Lanzmann manteve estreito relacionamento com Simone, 18 anos mais velha do que ele, e que se tornaria uma grande amizade. A experiência de guerra de Claude também muito a atraía, pois ela, como Sartre, pouco tinha feito para resistir aos nazistas. Foi dela que Claude recebeu grande 65

parte do apoio financeiro para o documentário “Shoah”. Les Temps Modernes costumava defender causas da esquerda francesa, tais como a independência da Argélia. Claude juntou-se a Sartre assinando um manifesto que conclamava os soldados franceses a se recusarem a lutar na Argélia, e foi, mais tarde, indiciado por apoiar a Revolução Argelina. Passou os 15 anos seguintes como colaborador e, posteriormente, editor da revista. Escreveu longos artigos sobre Israel, a Coréia do Norte e o Tibete. Em 1986, quando da morte de Simone, Lanzmann passa a ser editor-chefe, posto em que continuou pelo resto de sua vida.

Lanzmann e Israel Em 1952, quatro anos após a fundação de Israel, Lanzmann DEZEMBRO 2018


personalidade

faz sua primeira viagem ao país; queria fazer uma série de reportagens sobre o jovem Estado. Apaixonou-se de imediato. No navio que o levou até lá conheceu alguns heróis da Guerra de Independência, como o general e comandante das Forças de Defesa de Israel (IDF), Ygal Allon.

justamente no dia 5 de junho de 1967 – primeiro dia da Guerra dos Seis Dias. Como veremos mais adiante, a “resposta” de Lanzmann à edição especial do Les Temps Modernes sobre o conflito palestinoisraelense seria seu primeiro documentário, “Pourquoi Israel”. Apesar da esquerda se distanciar cada vez mais de Israel, Lanzmann mantinha sua posição de feroz defensor do país. Provavelmente, a única grande diferença entre Lanzmann e Sartre foi a questão do Oriente Médio. Durante visita a Israel, o filósofo recusou

Ao relembrar essa viagem, Claude costumava mencionar outro passageiro, Julius Ebenstein, musicólogo vienense que saiu da Áustria antes do Anschluss1, em 1938, e que se tornou um grande amigo. “Mesmo sem ser um homem de posses, convidou-me para ficar em sua casa se um dia passasse por Tel Aviv. E foi o que fiz. Acabei lá ficando por três meses. Eram tempos muito difíceis (...) os alimentos eram racionados e chegava-se a passar fome(...)”. Enquanto permaneceu no país, o cineasta procurou absorver todos os aspectos da jovem nação e de sua população, que lutava para sobreviver. Lá, teve a oportunidade de confrontar sua relação com o judaísmo. E concluiu: “A existência de Israel jamais representou um risco ou incômodo para mim, como francês (...). Jamais me censurei pelos meus sentimentos como judeu”. Ao retornar a Paris, escreveu mais de 100 páginas de reportagens. Após a visita a Israel, pareceulhe que o livro de Sartre, o “Antissemita e judeu” – em particular a sua tese de que “é o antissemita quem cria o judeu”, – necessitava de uma revisão. 1

Anexação da Áustria à Alemanha, em 1938.

o ministro de educação, Francois Bayrou, e Lanzmann visitam Auschwitz, dezembro de 1993

Um de seus grandes projetos foi uma edição especial de mil páginas de Les Temps Modernes sobre o conflito árabe-israelense, editado e publicado por ele juntamente com Sartre. A edição, porém, concedeu mais de metade das páginas ao lado dos árabes. Aliás, começava com ataques a Israel. Lanzmann passou dois anos editando esse número, que foi publicado 66

encontrar-se com qualquer pessoa em uniforme militar, levando ao que Lanzmann chamou de “uma visão drasticamente reduzida do país”. Sartre via Israel como nação imperialista. Em 1967, quando de Gaulle anunciou um embargo de armas a Israel, no início de junho, Lanzmann pressionou Sartre a assinar uma petição pró-Israel; este


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último imediatamente lamentou o fato e o relacionamento entre ambos nunca voltou ao que era. Numa manifestação em Paris, em 2 de junho daquele ano, Claude declarou que a destruição de Israel – “uma segunda aniquilação”, em suas palavras, – seria pior do que o Holocausto. “Israel é a minha liberdade. Sem Israel, sinto-me nu e vulnerável”. Ele não era uma voz solitária entre os intelectuais judeus franceses, que faziam coro a suas preocupações e compartilhavam sua opinião de que Israel enfrentava sua iminente destruição. Estes

conhecido, onde ele chega ao ponto de justificar o massacre dos atletas israelenses em Munique, nas Olimpíadas de 1972, pela Frente Popular pela Libertação da Palestina, com o argumento de que prevalecia um estado de guerra entre o “establishment” israelense e os palestinos. Em sua polêmica em defesa dos assassinos, comparava as forças revolucionárias que lutaram contra os franceses na Argélia com a luta palestina contra Israel. Não se podia apoiar os primeiros, dizia, sem apoiar os segundos.

restaurante, em Jerusalém, conhece Angelika Schrobsdorff, escritora e atriz judia que, em 1939, fugira de Berlim, com a mãe e a irmã, para Israel. Apaixonados, os dois se casam em 1974. Era o segundo casamento de Lanzmann; o primeiro tinha sido com Judith Magre. O casamento chegou ao fim em 1990. Cinco anos mais tarde, Lanzmann se casa com a médica Dominique Petithory, especialista em Nutrição e Epidemiologia, com quem teve dois filhos, Angélique e Felix.

Ser judeu no mundo contemporâneo Considerado um inovador da linguagem do cinema, suas três principais obras “Por que Israel”, de 1973; “Shoah”, de 1985, e “Tzahal”, de 1994, sobre as Forças de Defesa de Israel, lidam essencialmente com a mesma temática: o ser judeu no mundo contemporâneo. São diferentes facetas de um mesmo tema e revelam os fortes vínculos de Lanzmann com o judaísmo. Sua trilogia também mudou a estrutura tradicional dos documentários em termos de filmagem, estilo e sistemática.

Claude Lanzmann, no Begin Heritage Center, Jerusalém

intelectuais rejubilaram-se com a rápida vitória de Israel e se sentiram traídos pela coletiva de imprensa feita por de Gaulle, em 27 de novembro de 1967, na qual, usando uma linguagem não ouvida em público desde a 2ª Guerra, ele descreveu os judeus como “um povo elitista, seguro de si e dominador”. A atitude de Sartre em relação a Israel fica clara em artigo pouco

Como jornalista, Lanzmann cobriu vários conflitos em Israel e no Oriente Médio. Após a Guerra dos Seis Dias, ele volta a Israel para fazer uma reportagem para a TV francesa sobre os combates no Canal do Suez. Teve, então, a oportunidade de passar muito tempo com as tropas na fronteira com o Egito durante a Guerra de Atrito. Foi nessa época que conheceu Ariel Sharon. Na mesma viagem, num 67

Com três horas de duração, “Pourquoi Israel” foi lançado em 1973. Lanzmann trabalhou cerca de três anos no documentário, que apresenta entrevistas com israelenses de todos os tipos e origens – intelectuais e operários, asquenazitas e sefarditas, religiosos e seculares, judeus do kibutz e judeus chassídicos. No documentário, ele procura retratar os conflitos sociopolíticos, a questão das imigrações e problemas de adaptação dos recém-chegados. Passa-se no início da década de 1970, época da primeira onda de imigração dos judeus russos. DEZEMBRO 2018


personalidade

Além de atender seus anseios pessoais, “Por que Israel” é, também, uma resposta à esquerda francesa e aos que lutaram com ele contra o colonialismo francês, na Argélia. Queria deixar patente a diferença entre a luta justificada do Estado Judeu pela sobrevivência e o colonialismo europeu, na África e na Ásia. O trabalho foi selecionado pelo Festival de Nova York e exibido no Lincoln Center, em outubro de 1973, no primeiro dia da Guerra de Yom Kipur. No circuito de Paris, o filme estreou com uma crítica triunfal. Sobre Israel, Lanzmann costumava afirmar: “Até hoje, não há soluções fáceis. Conheci o antissemitismo do pré-guerra, aterrorizante para uma criança. Tentem imaginar o desaparecimento de Israel(...). Ser judeu é uma condição com a qual se nasce, mas é também uma conquista. E o Estado de Israel foi fundamental para a conseguirmos”. “Pourquoi Israel” se inicia e termina no Yad Va’shem, memorial ao Holocausto, em Jerusalém. Ao assisti-lo, alguns de seus amigos israelenses sugeriram que ele fizesse também um documentário sobre os campos de morte. Foi o que ele fez. “Shoah” seria seu segundo documentário. Com a duração de mais de 9 horas, “Shoah” é um testemunho do Holocausto através de uma angustiante seleção de entrevistas. As gravações e filmagens do documentário começaram em 1974. Foi inicialmente encomendado por Aluf Hareven, um de seus amigos no Ministério de Relações Exteriores de Israel, que queria um filme de duas horas sobre o Holocausto, contado “a partir da perspectiva judaica” e sugeriu que

ele fizesse um filme não “sobre a Shoá, mas que fosse a própria Shoá”. Lanzmann passou 11 anos lendo sobre o assunto; entrou em contato com historiadores especializados no Holocausto, entrevistou e filmou mais de 350 horas. Dedicou mais de cinco anos apenas à edição do material bruto. As entrevistas que ele não incluiu no filme, totalizando 220 horas, foram adquiridas pelo Museu Memorial do Holocausto, de Washington, em 1996. Em sua autobiografia, “The Patagonian Hare” (A Lebre da Patagônia, em tradução livre), de 2009, ele escreveu: “Durante 12 anos tentei fixar meu olhar, implacavelmente, no sol negro da Shoá”. Falando ao The Arts Fuse, em 2012, declarou: “Se eu tivesse estado em um dos campos, jamais poderia ter feito esse filme. “Shoah” não trata de sobrevivência. Nem de sobreviventes. Trata da morte”. O documentário não contém

imagens de arquivos, tampouco trilha musical. Apenas depoimentos e entrevistas – arrepiantes e inesquecíveis. Uma testemunha atrás da outra revive sua parte naquele horror. Intercaladas nas entrevistas há paisagens, locais onde os nazistas haviam erguido os campos de morte – e tomadas de trens percorrendo os mesmos trilhos que, outrora, levaram às câmaras de gás. Quando “Shoah” estreou em 1985, Claude Lanzmann tinha 59 anos. Considerado uma obra prima, recebeu muitos prêmios, inclusive um Oscar na categoria Melhor Documentário. Em seus demais filmes, ele usou o mesmo método de exaustivas entrevistas. “Tzahal” (1994) foi feito em conjunto com as FDI, de quem obteve acesso pleno e irrestrito. O filme é constituído por uma série de entrevistas com soldados e civis sobre o exército israelense.

Outros Lanzmann utilizou várias entrevistas que faziam parte do material bruto de “Shoah” na produção de outros documentários. “A Visitor from the Living” (Um Visitante do Mundo dos Vivos), de 1999, trata de um funcionário da Cruz Vermelha que fez um relatório favorável sobre o Gueto de Theresienstadt. Em 2001, é a vez de “Sobibor: October 14, 1943, 4 p.m.” – uma entrevista com Yehuda Lerner, participante do bem-sucedido levante no campo de extermínio de Sobibor.

com o diretor Daniel Leconte, no 61º festival internacional do cinema de cannes, maio 2008

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Em 2010, ele lançaria “The Karski Report” (Relatório Karski). Em 1978, após um silêncio de mais de 30 anos, Jan Karski concordou em ser filmado em sua casa durante dois dias. Mas no filme


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“Shoah”, Lanzmann usaria apenas 39 minutos do perturbador testemunho. Membro da resistência polonesa, Karski foi contatado em 1942 por líderes do Gueto de Varsóvia para ver, com seus próprios olhos, os horrores do Holocausto e, a seguir, levar as informações aos líderes aliados, pedindo ajuda. Lançado em 2013, “The Last of the Unjust” (O Último dos Injustos) é uma entrevista com Benjamin Murmelstein (1905-89), líder judeu no campo de Theresienstadt, “parada intermediária” para os judeus que acabariam sendo enviados aos campos de extermínio. Theresienstadt pretendia ser um “gueto modelo” aos olhos do mundo e, como líder do Conselho Judaico, cabia a Murmelstein garantir a fachada de “saúde e felicidade” dos judeus presos no gueto. Em 2017, com “Napalm” (2017), Lanzmann redireciona suas lentes para a Coreia do Norte, visitando esse recluso país e recontando suas impressões de uma visita anterior, durante o final da década de 1950, após a Guerra da Coreia.

com o “urso de ouro”, honraria recebida na 63ª berlinale, festival do cinema de berlim

vejo o que fiz na minha vida”, afirmava, “acredito que tenha vindo ao mundo para representar a verdade; nunca brinquei com ela”.

Uma história de vida única e multifacetada

Lanzmann foi um homem que viveu intensamente, apaixonadamente. Defendia abertamente seu povo, em todas as ocasiões. Era um homem de ação, combatente corajoso de la Résistance, esquiava destemidamente, escalava montanhas como poucos, era um piloto nato, um intelectual e autor de um jornalismo visionário. E triunfou como escritor e cineasta graças ao seu talento de, em suas palavras, “entrar na razão e na loucura, nas mentiras e nos silêncios daqueles a quem eu quis retratar (...). Considero-me um vidente”. Até os filmes que ele apenas esboçou e não realizou são obras de arte.

No início de sua autobiografia, “The Patagonian Hare”, ele declara que se tratava de uma “história única e multifacetada”. “Quando

Como cineasta, acumulou vários prêmios, entre os quais o do Círculo da Crítica de Nova York (1985); da Crítica de Cinema de

Depois disso, Lanzmann dirigiu o seriado para a televisão lançado em 2018, “The Four Sisters”, (As Quatro Irmãs). O seriado, em quatro episódios, volta a examinar as experiências dos sobreviventes do Holocausto. O seriado apresenta entrevistas com quatro sobreviventes que haviam sido cortadas do filme “Shoah”.

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Los Angeles, 1985; e o Prêmio Peabody de Jornalismo, 1987, pelo documentário “Shoah”. Em 2004, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Escola Graduada Europeia, na Suíça. Lanzmann sofreu algumas tragédias em sua vida. Em 1966, sua irmã, Évelyne, cometeu suicídio e, em 2017, seu filho Félix, de 23 anos, morreu de câncer. Lanzmann morreria um ano depois, sem nunca parar trabalhar... até a sua morte.

BIBLIOGRAFIA

Lanzmann, Claude,The Patagonian Hare: A Memoir. eBook Kindle Entrevista de Ed Vulliamy “Claude Lanzmann: the man who stood witness for the world”. Publicado no The Guardian, março de 2012 https://www.theguardian.com Artigo de David H. Van Biema “Filmmaker Claude Lanzmann Devotes 11 Years of His Life to a Biography of Death”, publicado em 10 fevereiro de 1986, , People Magazine , https://people.com/archive/ Artigo de Richard Brody “Witness, Claude Lanzmann and the making of “Shoah”. Publicado no The New Yorker, 19 de março de 2012 https://www.newyorker.com/ DEZEMBRO 2018


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“Shoah”, de Claude Lanzmann: o Holocausto em definitivo Com “Shoah”, Claude Lanzmann conquistou um lugar na História. O documentário é o registro do Holocausto pela voz das testemunhas. Durante mais de 9 horas os espectadores assistem ao que ele chamou de “um coro de vozes e rostos que emergem; vítimas, observadores e assassinos”, tornando-nos “testemunhas da morte e dos atos de resistência à morte”.

L

ongo e angustiante, o filme se inicia em Chelmno, onde, em dezembro de 1941, os nazistas utilizaram pela primeira vez gás asfixiante para executar, de forma mais “rápida e eficiente”, a “Solução Final para o Problema Judaico”. Para produzir sua obra prima, Lanzmann nos leva, entre outros, a Treblinka, Belzac, Sobibor, Auschwitz e cidadezinhas adjacentes. E termina em Israel, com o testemunho dos combatentes do Levante do Gueto de Varsóvia. Iniciando a filmagem em 1974, dedica os 11 anos seguintes à produção do documentário. “Senti-me como um cego, nos 12 anos de filmagem e edição do “Shoah”; um cavalo com antolhos. Não conseguia olhar à direita nem à esquerda, apenas à frente, diretamente para dentro do círculo negro da Shoá”. Pesquisou

Henryk Gawkowski, então condutor de locomotiva na estação de Treblinka, que transportava judeus para o campo.

filmes, falou com sobreviventes e historiadores, como Yehuda Bauer e Raul Hilberg, este último o “pai da história” do Holocausto e que aparece no documentário dando mais detalhes sobre a Solução Final. 70

Até 1978 ele protelou a visita aos campos nazistas. “Quando vi que a aldeia de Treblinka ainda existia e que ainda havia pessoas que tinham testemunhado o horror e que ainda havia uma estação ferroviária


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funcionando normalmente... aí explodiu dentro de mim a bombahumana em que eu me tornara”. Muitos dos aldeões poloneses que encontrou continuavam perturbadoramente indiferentes, alguns até risonhos, quanto à tragédia que se abateu durante a 2ª Guerra sobre seus vizinhos judeus, e tantos outros que os trens levaram à morte em Treblinka. Lazmann acreditava que o Holocausto não podia ser interpretado, compreendido; foi um trauma que só podia ser transmitido e internalizado através do testemunho dos que sobreviveram. Durante três anos se dedicou a localizar, em 14 países, o maior número de sobreviventes, testemunhas oculares, observadores poloneses acidentais, oficiais nazistas, e judeus combatentes que haviam sobrevivido ao Levante do Gueto de Varsóvia. Entrevistou e filmou mais de 350 horas de material bruto. As entrevistas são intercaladas com paisagens dos locais onde, na década de 1940, haviam sido construídos os campos de morte, e com tomadas dos trens percorrendo os mesmos trilhos que, outrora, levaram milhões de judeus às câmaras de gás.

Shoá. E conseguiu. Quem assistiu ao documentário dificilmente esquecerá os rostos, as vozes, os trens.... Quebrou as regras cinematográficas até então aceitas. Adotou uma nova abordagem conceitual em sua concepção estética e duração do documentário. Apesar de tratar de eventos ocorridos durante a 2ª Guerra, o documentário é exclusivamente filmado nos anos 1970 e 1980. Não há nenhuma imagem de arquivo, nenhuma filmagem de época, não há imagens dos guetos ou dos corpos encontrados pelos Aliados ao libertar os campos no final da Guerra. Tampouco há narração em off explicando o contexto e os eventos. Não há trilha sonora; ouvese apenas a voz de Lanzmann, dos entrevistados e dos tradutores. E o barulho dos trens. Até o título, Shoá - palavra em hebraico para “catástrofe” – termo totalmente desconhecido até então fora de Israel, provocou questionamentos. Ao lhe perguntarem o porquê da escolha, Lanzmann respondia, enfático:

Ele não foi o primeiro cineasta a levar às telas o Holocausto, mas, na década de 1970, o assunto ainda era uma espécie de tabu. A maioria dos sobreviventes estavam mudos. Queriam tocar a vida, não reviver o horror e, acima de tudo, sentiamse culpados de ter sobrevivido. Escritores como Elie Wiesel, Primo Levi e Jean Améry haviam publicado relatos sobre o que vivenciaram nos campos de morte, mas com uma linguagem emotiva. Lanzmann foi além, ele quis levar a público a brutalidade desumana da

“Holocausto é um termo impróprio, inadequado, utilizado para as oferendas queimadas a D’us, no Tabernáculo e no Templo Sagrado. O que se abateu sobre os judeus da Europa foi uma catástrofe de dimensões inimagináveis”.

O filme daria voz aos mortos Lanzmann se perguntava como estruturaria o filme? Qual seria o foco principal... até perceber que, em tudo que leu e viu, “faltava o mais importante: as câmaras de gás, a morte nessas câmaras das quais ninguém jamais voltara para contar o horror. O dia em que percebi que era isso o que faltava, soube que o tema do documentário seria a morte (...). Isto era uma contradição radical, pois, de certa forma, atestava a impossibilidade do projeto no qual eu estava me aventurando: os mortos não poderiam falar pelos mortos. Meu filme assumiria o desafio supremo: tomar o lugar das imagens inexistentes dos mortos nas câmaras de gás”. Em entrevista ao The Guardian, disse: “Os alemães não queriam deixar vivo nenhum dos sobreviventes, para que não pudessem dar seu testemunho (...). Nas entrevistas, os que sobreviveram não queriam falar sobre como haviam conseguido escapar à morte. Falavam em nome dos mortos”. Seu filme deu voz aos mortos. Para gravar seus testemunhos, Lanzmann leva a maioria dos judeus sobreviventes de volta aos lugares onde ocorreram os eventos. Suas perguntas eram duras, queria detalhes sobre o ocorrido e pressionava para contarem sua história, mesmo sabendo que fazêlo era extremamente doloroso. Durante os relatos, o foco da câmera é mantido em seus rostos, captando

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emoções, dor, hesitação, olhares perdidos... As descrições em primeira mão, extremamente pessoais, não tinham parâmetro em nenhum relato anterior sobre o Holocausto. São um extenso conjunto de testemunhos para as futuras gerações. As vozes dos entrevistados transformam o extermínio em massa do judaísmo europeu num horror concreto, vivenciado por pessoas reais. O número de mortos, quase 7 milhões de judeus, e a rapidez com que foi executada a Solução Final nos levam a esquecer que cada um deles era um indivíduo com uma vida, uma família, amigos. O documentário faz com que os judeus assassinados, os sobreviventes, os espectadores e os algozes saiam do anonimato, colocando-os no centro do cataclismo que mudou nossa visão da própria humanidade. Os conceitos habituais utilizados nos estudos do Holocausto - nazismo, totalitarismo, genocídio, barbárie tornam-se termos vazios perante a revelação brutal do sofrimento na voz de quem o vivenciou. O resultado é uma narrativa visual dos acontecimentos que levaram à quase destruição do judaísmo europeu, tanto em termos geográficos quanto no dos vários níveis de pessoas envolvidas na Solução Final, desde nazistas de alta patente até os observadores passivos, nos vilarejos poloneses.

Vocês sabiam o destino que aguardava os judeus? Lanzmann foi o primeiro a abordar o papel dos habitantes da Europa Oriental e seu nível de conhecimento acerca do assassinato em massa dos judeus. Ao entrevistar observadores

aquele “serviço” e o cheiro dos corpos incinerados que se alastrava por quilômetros. É fácil perceber por que o governo polonês classificou o documentário de “propaganda anti-polonesa”, argumentando que se tratava de uma clara acusação de “cumplicidade com o genocídio nazista”.

Vizinho polonês dos judeus sendo entrevistado por Lanzmann, à direita; tradutora, à esquerda

e algozes nazistas, ele perguntava: “Vocês sabiam que destino aguardava os judeus? ”. A resposta, invariavelmente, era “sim”. O espectador dificilmente esquecerá o descaso com que os poloneses relatam o desaparecimento dos judeus, as risadas mostrando o “gesto de degola” que costumavam fazer quando passavam os trens com os judeus amontoados. Tampouco as risadas de um grupo de polonesas sobre o desaparecimento das “judias bonitas” que os homens costumavam admirar, em sua cidade. Ou a frieza dos vizinhos ao relatar terem visto os judeus serem levados a chicotadas, mortos a tiros, ou enfiados nas camionetes que os iriam asfixiar. Ou as descrições dos habitantes de vilarejos ao lado dos campos da morte, que trabalhavam ao lado do arame farpado. Eles ouviram tudo, viram milhares entrar e não sair de lá, sentiram o cheiro insuportável de morte e carne queimada. Lanzmann chega a entrevistar Henryk Gawkowski, que durante a Shoá foi condutor de locomotiva na estação de Treblinka. Ele revela que deve ter transportado cerca de 18.000 judeus para o campo. Todas as vezes, enchia-se de vodka para aguentar 72

Como poderá o espectador esquecer a frieza dos assassinos, dos oficiais nazistas ao relatar episódios em que participaram ou que testemunharam, sempre negando conhecer o que ocorria. Em sua busca por entrevistas com oficias nazistas, Lanzmann trabalhou com endereços disponibilizados pelos julgamentos dos crimes de guerra, em Nuremberg. A princípio, abordou-os diretamente, dizendo quem era e no que estava trabalhando. A recusa foi geral. Passou, então, a usar nome e passaporte falsos e uma câmera escondida. Seu principal disfarce era de um “revisionista histórico”. Prometia anonimato, mas estava todo “grampeado” – um microfone sob a gravata, um mini transmissor em um coldre de ombro e uma câmera fotográfica “espiando” escondida na bolsa de sua assistente. Fora da casa dos nazistas, captando palavras e imagens, um caminhão com o equipamento receptor. Certa vez, enquanto Lanzmann estava no norte da Alemanha, na casa de um elemento das SS responsável por ordenar a morte dos judeus em várias cidades ucranianas, os vizinhos perceberam o caminhão receptor. Antes que ele pudesse escapar, cinco alemães marcharam sala adentro. Atacado e hospitalizado, acabou com duas costelas quebradas. Um dos nazistas entrevistados, Franz Suchomel, admitiu ter


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obrigado prisioneiros judeus nus, a caminho do extermínio, a fazer fila do lado de fora, em temperaturas invernais de -20º C. E ainda revelou que o campo de Belzec era “um estudo” sobre a execução da Solução Final; Treblinka, uma linha de montagem da morte ainda precária; mas Auschwitz, uma verdadeira fábrica. Outros nazistas descrevem em detalhes operações empreendidas contra judeus. Franz Schalling, por exemplo, descreve a operação em Chełmno. Walter Stier, ex-burocrata nazista, descreveu a operação das estradas de ferro, insistindo que estava muito ocupado dirigindo o tráfego ferroviário para perceber que seus trens carregavam judeus para a morte...

As testemunhas O documentário começa com as imagens do Rio Ner, próximo a Chelmno, e a história de Simon Srebnik. Ele e outra testemunha, Mordechai (Michael) Podchlebnik, foram os únicos dois a sobreviver. Com apenas 13 anos as SS colocaram Srebnik a trabalhar na “manutenção do campo”. Com tornozelos acorrentados, ele se arrastava diariamente pelo vilarejo carregando sacos contendo cinzas e restos dos judeus mortos, que devia despejar no rio. Srebnik que possuía uma voz de soprano, era ainda forçado a cantar para entreter as SS. Todos em Chelmno o conheciam, e, quando ele voltou com Lanzmann, para a entrevista, os poloneses o “congratularam por ainda estar vivo”. Outra entrevista de importância histórica foi a de Rudolf Vrba, um dos poucos que conseguiu fugir de Auschwitz e revelou ao mundo o horror dos campos. Mas, entre

os testemunhos mais contundentes, estão o de Abraham Bomba, judeu, e de Jan Karski, polonês católico, membro da resistência. Bomba, prisioneiro em Treblinka, era barbeiro por profissão. Lanzmann o levou de Nova York, onde ele vivia após a Guerra, a uma barbearia em Tel Aviv, e lhe pediu que cortasse o cabelo de um homem, durante a entrevista. Bomba praticamente não levanta a cabeça e narra com uma voz monótona como ele e outros barbeiros judeus eram forçados a cortar o cabelo das mulheres minutos antes que elas fossem asfixiadas nas câmaras de gás. Mas, quando ele chega na parte em que relata que teve que cortar o cabelo das mulheres de seu próprio vilarejo, sem poder oferecer uma palavra sequer de conforto, ele não se contém, desmonta. Mas Lanzmann insiste: “Você tem que contar! ”. Ele então revela, soluçando, como um amigo foi forçado a cortar o cabelo da própria esposa e da irmã.

A longa entrevista com Jan Karski é intensa e perturbadora, era a primeira vez que concordava em falar sobre o Holocausto. Durante a guerra, seu papel na resistência polonesa era atravessar as linhas inimigas levando informações para os aliados. Ele conta como os líderes da Resistência Judaica de Varsóvia o infiltraram no Gueto para ele ver com seus próprios olhos o que estava acontecendo, e levar as informações aos líderes aliados, pedindo ajuda. O rosto de Karski se contorce e os olhos se enchem de lágrimas ao relembrar o que ele queria jamais ter testemunhado: os mortos jogados nas ruas, os uivos de dor, o odor terrível, as crianças famintas, judeus tão magros que pareciam esqueletos ambulantes.

Sobrevivência Para Lanzmann, sobrevivência era um ato de resistência, e ele entrevista tanto judeus que haviam sido Sonderkommandos, como combatentes da Resistência Judaica no Gueto de Varsóvia. Os Sonderkommandos eram prisioneiros judeus, forçados, sob pena de morte, a “preparar” outros judeus para a morte – ajudar os nazistas a encaminhá-los às câmaras de gás e, em seguida, “livrar-se” dos corpos. Poucos sobreviveram, apenas 50, pois mantinham-nos vivos por pouco tempo, já que eram perigosas testemunhas da enormidade dos crimes nazistas. Lanzmann rejeitava enfaticamente a acusação de colaboração feita contra esses infelizes e, com as entrevistas, revela o pesadelo que viveram.

Jan Karski, polonês, herói da Resistência.

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Em seu testemunho, Motke Zaidel relata que se calcula que 90.000 judeus do gueto de Vilna tenham DEZEMBRO 2018


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Família polonesa, que vivia ao lado de famílias judias, sendo entrevistada

sido levados e assassinados a tiros na floresta de Ponary, seus corpos amontoados em valas comuns. Zaidel foi um dos 84 judeus obrigados a cavar com as mãos para retirar os corpos dos judeus das valas e queimá-los. Teve que incinerar os restos de seus amigos, vizinhos, familiares. Durante as conversas com Zaidel, o Prof. Yehuda Bauer, renomado estudioso do Holocausto, introduziu o conceito de que os judeus da Europa foram para a sua morte “como carneiros para o matadouro”. Hanna, filha de Zaidel, conta que seu pai, ao ouvi-lo dizer isso, “levantou-se, deu um soco na mesa e disse, ‘queria que você estivesse lá’. E saiu da sala”. O último a falar, em “Shoah”, é Simcha Rotem, um dos derradeiros heróis sobreviventes do Levante do Gueto de Varsóvia. Ele descreve como, após a liquidação, voltou ao gueto através dos esgotos, na esperança de encontrar algum de seus companheiros, algum sobrevivente. “Não vi nenhuma alma viva. Lembro-me que, em certo momento, senti uma certa paz, uma certa serenidade. E pensei, sozinho, em meio àquela total desolação, ‘sou o último judeu. Vou esperar que amanheça, e que os alemães cheguem’”. São as últimas palavras do filme.

“Shoah”, em Israel Lançado em Paris em abril de 1985, apenas em junho de 1986 ocorreria sua première nacional, em Jerusalém. O filme tinha sido muito elogiado em toda parte, mas o julgamento do público israelense tinha especial importância para Lanzmann. O documentário era a apresentação de seu relato sobre o evento mais terrível da História Judaica no único país judeu no mundo – um país cujas principais autoridades o tinham escolhido para a tarefa, confiandolhe esse exercício de lembrança. Sentados na recém-inaugurada Cinematheque de Jerusalém, defronte das muralhas da Cidade Velha, estavam o então primeiro-ministro Shimon Peres, com o presidente do país, o Rabino-chefe e até o chefe do Estado Maior. Entre o público presente, estavam vários dos entrevistados, muitos com filhos pequenos a seu lado. Para o público o filme foi devastador. Durante mais de nove horas ficaram quietos, arrebatados. Alguns não aguentaram –desmaiaram ou tiveram parada cardíaca. Aqueles que tinham estado lá e visto a morte de perto, entenderam que finalmente conseguiriam falar sobre o assunto. Aqueles que não tinham 74

vivido o terrível pesadelo e que por um longo tempo não conseguiam absorver, aceitar ou pior, eram cruéis em seu julgamento sobre o que acontecera aos judeus da Europa, esses agora entendiam. Tinham finalmente compreendido que a Shoá era parte também da alma de Israel. Nenhum judeu, sobrevivente ou não, israelense ou não, podia escapar disso. Muitas pessoas, e muitos de seus filhos, tinham sido moldados – ou quebrados para sempre – pela monstruosidade do Holocausto. Ao final da exibição, não houve aplausos. Ao contrário, reinava um silêncio absoluto, até que um a um, levantaram-se e foram até Lanzmann. Ao deixar a Cinemateca, Motke Zaidel disse: “Graças a D’us. Agora vão saber tudo. Agora vão entender”. Ele carregara o terrível peso por tanto tempo, ele que fora obrigado a queimar sua família – seu sangue – em Ponary. Como viver com aquilo? Mas o filme de Claude Lanzmann lhe tinha dado “algum respeito, alguma compreensão”... N.R.: O documentário foi digitalizado em 2012, estando desde então no YouTube, graças ao apoio da Fundação para a Memória da Shoá e o Centro Nacional do Cinema (França) e a participação da IFC Films e Criterion Collection (EUA).


REVISTA MORASHÁ i 93

É um privilégio enorme termos na comunidade uma revista de conteúdo do nível intelectual e estético, de forma gratuita, como a Morashá. Destaco a história das comunidades de países árabes e onde hoje já não existem quase judeus. Sou da Hanagá Artzit (Liderança Nacional) do Movimento Juvenil Judaico Sionista Habonim Dror, movimento sem fins lucrativos presente em dez comunidades no Brasil. João Luis Koifman Por e-mail

Agradecemos esta importante contribuição para a preservação e guarda da Coleção “Memória Nacional’, composta pela produção intelectual do País. Alessandra Moraes Chefe da Divisão de Depósito Legal Fundação Biblioteca Nacional

Ler e poder contribuir anualmente para a excelente revista Morashá é motivo de orgulho. Vou doar minha coleção a judeus portugueses interessados. A edição comemorativa contemplou-me com um excelente artigo sobre os Judeus da Argélia durante o período islâmico, entre tantos outros interessantes. Parabéns, parabéns, parabéns!! Eliene Zlatkin Rio de Janeiro - RJ

Recebemos Morashá há muitos anos: belíssima revista, conteúdo excelente, fascinante, enriquecedor. Celina Scheinowitz Salvador - BA

Quero agradecer-lhes pelo exemplar da revista Morashá. Vocês não podem mensurar a felicidade em poder lê-la. Enviem a edição de 25 anos também para o Centro Cultural São Paulo. Tenho indicado a publicação para amigos, parentes e conhecidos para que visitem o site www.morasha.com.br. Juka Santos Por e-mail

Morashá é a melhor revista judaica. Principalmente para nós, sefaraditas. Muitas matérias estudo com minhas netas, alunas do Colégio Beith Jacob Aclimação. Shaná Tová e continuem com o seu maravilhoso trabalho.

Agradecemos o envio da maravilhosa revista Morashá, que minha família tão rapidamente recebeu na cidade de Raanana, Israel. A família Vinic está muito empolgada em poder continuar a ler suas futuras edições, com seus artigos especiais e bem formulados.

Carlos I. Abal São Paulo - SP

Maria Elisa Goldberg de Aronovich Raananá - Israel

Morashá é de importância fundamental para o aprendizado e cultura de meus cinco netos.

Agradecemos o envio da revista Morashá à nossa biblioteca.

Carlos Segre São Paulo - SP

Morashá, cada vez mais caprichada e ansiosamente esperada. Um ano bom e doce para todos. João Matos da Silva Botucatu - SP

É um privilégio receber a Morashá há tantos anos. Edições impecáveis do ponto de vista das informações fidedignas e da qualidade do material impresso. Norma Bellini Porto Alegre - RS

Há 12 anos retornamos para Buenos Aires, após 31 anos em Campinas. Sempre é uma grande alegria quando o correio traz para nosso deleite a maravilhosa revista Morashá. Osvaldo Luis Bejerman Eva Ventura Marchili Buenos Aires - Argentina

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Esmeraldo Siqueira Biblioteca Pública Municipal Natal - RN

Tive a oportunidade de obter várias edições da revista Morashá através de um brasileiro que vive em Boston (EUA), entre as quais, a de setembro de 2017. Gostaria muito de fazer uma assinatura desta publicação. Eu vivi em São Paulo, no Pacaembu, de 1968 a 1970 com minha família e meus dois filhos estudaram em escolas judaicas. Temos mantido algum contato com o Rabino Shabsi Alpern. Ainda lemos e falamos português. H. Arnold Sherman Calgary, Alberta - Canadá

Recebi a revista Morashá, sensacional artigo de Zevi Ghivelder, “Segredos Guardados da Guerra de Iom Kipur”, 45 anos depois, temos o privilégio de ler novas informações sobre um dos acontecimentos mais importantes da história da luta pela sobrevivência do Estado de Israel.

Ricardo Goldenberg Lima - Peru

dezembro 2018


ANO XXV - edição 102 DEZEMBRO 2018

ANO xxvI edição 102 DeZ 2018

CAPA - 102 - SETEMBRO.indd 1

02/11/2018 18:10:04


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