Revista Morashá - ed. 103

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ANO XXVI - edição 103 ABRIL 2019

ANO xxvI edição 103 abr 2019

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ANO XXVI - Abril 2019 - Nº 103

Iluminura, Hagadá de Sarajevo. Barcelona, c. 1350 (Ha, primeira palavra da oração Ha Lachmaniá)


Carta ao leitor O Êxodo do Egito é o tema principal de Pessach, mas esse evento, ainda que decisivo na história do Povo Judeu e da humanidade, não se limita a essa festa. Durante o processo que levou à saída de nosso povo do Egito, milhões de pessoas testemunharam milagres e revelações Divinas: as Dez Pragas que levaram à libertação dos Filhos de Israel e as visões proféticas que eles tiveram durante a abertura e travessia do Mar de Juncos. A libertação do Egito envolveu um enorme número de seres humanos – judeus e egípcios. Os eventos públicos, testemunhados por milhões de pessoas, constituem a História. Quando um indivíduo relata um acontecimento particular extraordinário, especialmente quando afirma ter presenciado um milagre ou recebido alguma revelação Divina, torna-se uma questão de fé acreditar ou não em tal relato. Mas, quando os milagres envolvem e são testemunhados por milhões de pessoas, é muito difícil negar sua veracidade. Quando um evento altamente significativo ocorre na história de uma nação, seja ele feliz, triste, glorioso ou trágico, cabe aos seus membros relatá-lo às futuras gerações. Isso vale para qualquer evento de grande importância histórica. Por exemplo, é nossa obrigação transmitir o Holocausto a nossos filhos, e eles, por sua vez, devem narrá-lo a seus filhos, para que nunca seja esquecido. O mesmo se aplica ao Êxodo do Egito e à subsequente Revelação Divina no Monte Sinai: temos a obrigação de relatar esses acontecimentos para que o Povo Judeu nunca se esqueça de que o Judaísmo não se baseia, apenas, em fé, conjecturas teológicas ou alegações de algum indivíduo, mas sim, em eventos históricos vivenciados por milhões de pessoas. Mas por que a necessidade de mencionar o Êxodo do Egito todos os dias de nossa vida? Não seria suficiente mencioná-lo em Pessach ou em determinadas ocasiões, ao longo do ano? De fato, não falamos sobre os outros grandes eventos da história judaica todos os dias. Por que, então, há um mandamento da Torá que nos obriga a lembrar do Êxodo do Egito todos os dias?

São vários os motivos. Por exemplo, sabemos que a Torá tem muitas camadas de significados. Quando nos fala do Êxodo do Egito, não se refere apenas a eventos que ocorreram há mais de três mil anos com nossos ancestrais. A Torá também está falando diretamente a cada um de nós, hoje. Nossos Sábios ensinam que a palavra hebraica Mitzraim, Egito, é derivada da palavra Metzarim, que significa “limites”, “apertos” ou “restrições”. Mitzraim refere-se não só a um país do continente africano, mas a um estado de espírito. A Torá nos ordena lembrar e mencionar o Êxodo todos os dias – mandamento que é cumprido ao se recitar o versículo, “Eu sou o Eterno, vosso D’us, que vos tirei da Terra do Egito para ser vosso D’us” – para nos ensinar que quando depositamos nossa confiança em D’us, quando escolhemos a fé sobre a desesperança, o otimismo sobre o pessimismo, a tranquilidade sobre a ansiedade, a alegria sobre a angústia e a coragem sobre o medo, libertamo-nos de nosso Egito pessoal, interior. Portanto, não é de surpreender que devamos mencionar o Êxodo todos os dias, pois a maioria dos seres humanos luta, diariamente, contra pensamentos e sentimentos negativos. De fato, para algumas pessoas, seria aconselhável lembrar o Êxodo do Egito a cada hora do dia. A vida é repleta de bênçãos, oportunidades e momentos de alegria, mas todos enfrentamos desafios e dificuldades. O mandamento de lembrar o Êxodo do Egito nos ensina que, com a ajuda de D’us, podemos libertar-nos de sentimentos negativos, que nos causam dor e ansiedade, para podermos viver uma vida mais livre e feliz, com otimismo e tranquilidade e repleta de luz e energia positiva.

Pessach Casher ve-Sameach!


ÍNDICE

16

22

31

42

61

65

03 carta ao leitor

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06 nossas festas

por zevi ghivelder

ISRAEL O céu era o limite – nasce a Força Aérea de Israel

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16

35

O Seder - 15 passos em direção à liberdade interna

nossas festas Shavuot: 10 Reflexões sobre o Estudo da Torá

DESTAQUE Judeus britânicos e os desafios do Brexit por JAIME SPITZCOVSKy ANTISSEMITISMO Um alerta ao mundo civilizado por Rabino Lorde Jonathan Sacks 4


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06

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comunidades Em busca de justiça para os judeus dos países árabes

42

brasil Kol Israel A voz sionista na Amazônia por SERGIO DANIEL SIMON

PERSONALIDADE

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Stan Lee, o criador de Super-heróis

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ISRAEL Museu do Palmach, visita obrigatória

54

shoá Simcha Rotem, codinome Kazik

75

cartas

HISTÓRIA Um Estado Judeu na Austrália: 1907-1941 por REUVEN FAINGOLD 5

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nossas festas

O Seder - 15 passos em direção à liberdade interna Uma das denominações de Pessach é Zman Cherutenu – Época de nossa Liberdade – porque a festa comemora a libertação do Povo Judeu da escravidão egípcia. Nossos Sábios ensinam que em Pessach, e em especial durante o Seder, cada um de nós, judeus, tem a oportunidade de conseguir libertar-se de seu acorrentamento interno, que impede o crescimento espiritual, psicológico e emocional. O Seder é uma reencenação pessoal e espiritual do Êxodo do Egito.

C

ontudo, a maioria de nós não aprecia o poder do Seder. Aparentemente, não há nada de libertador na cerimônia. Até mesmo algumas famílias mais religiosas o celebram de forma superficial, sem entender realmente o significado de seus rituais. Veem o Seder como uma cerimônia religiosa demorada, desinteressante e cansativa, sem apreciar o fato de que os 15 passos que a compõem são lições que, se postas em prática, levam à liberdade interior e libertação espiritual.

Kidush, “santificação”, é “designação” ou “separação”. Algo que é Cadosh, “sagrado”, é separado: é designado para um propósito especial. A lição de Cadesh, 1º passo do Seder, é que o ponto de partida para se atingir liberdade interior é o ser humano se autodesignar um veículo de santidade. Para ser verdadeiramente livre, é preciso destinar momentos de cada dia de sua vida para se comunicar com D’us. É preciso destinar um espaço em sua alma para a introspecção e o crescimento pessoal, de modo a ficar em contato com D’us e com a Torá.

Nosso propósito neste trabalho é indicar como os 15 passos do Seder são um guia para se alcançar a liberdade interior. Se o ser humano deseja alcançar a verdadeira libertação – emocional, psicológica e espiritual –, ele precisa viver de acordo com os ensinamentos e princípios aportados em cada passo do Seder.

Algumas pessoas são tão ocupadas e envolvidas em seus próprios assuntos e afazeres que nunca destinam tempo algum às questões da alma. Podem até ser pessoas bem-sucedidas e influentes, mas não são donas de seu próprio tempo e, portanto, não são realmente livres. Aqueles que estão sempre correndo, nunca estão em lugar algum. Para ser verdadeiramente livres, temos de parar de correr o tempo todo e aprender a viver o momento.

1. Cadesh - Kidush O 1º passo do Seder é Cadesh – fazer o Kidush sobre um copo de vinho. De acordo com a Torá, o real significado da palavra 6


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Família judia celebrando Pessach. Moritz Daniel Oppenheim, Amsterdã, 1882

A Lei Judaica nos ordena iniciar nosso dia com oração, colocação dos Tefilin e estudo da Torá. Isso se aplica a todos os judeus, seja o maior Sábio da geração ou alguém que precise trabalhar dia e noite para sustentar sua família. Destinar tempo para a santidade, especialmente na primeira hora de nosso dia, é obrigação de cada um de nós, judeus, independentemente de seu nível de ocupação. Quando a pessoa santifica o início de seu dia a D’us, à sua alma e a propósitos mais elevados, como a oração e o estudo da Torá, ela alcança uma medida de liberdade espiritual que impacta o restante de seu dia. Por outro lado, alguém que não dedica tempo à sua alma, por ser muito ocupado com seus afazeres diários, não é verdadeiramente uma pessoa livre, independentemente de quão rica ou proeminente seja.

2. Urcháts – ablução das mãos sem bênção O 2º passo do Seder é Urcháts – a ablução ritual das mãos. Urcháts nos ensina que o ser humano não é verdadeiramente livre enquanto não tiver “mãos limpas”: para atingir a libertação interna, é necessário levar uma vida digna e honesta. Quem mente, engana ou ludibria os demais, ainda que tenha o hábito de contar “mentiras sociais”, não é verdadeiramente livre, pois vive em um mundo de distorção, onde uma mentira encobre outra, e o mentiroso vive enredado em suas próprias histórias. As pessoas com “mãos sujas” podem ter sucesso e se orgulhar de serem mestres da mentira e da manipulação; mas abriram 7

mão de sua liberdade interior. Quer o saibam quer não, vivem em um mundo de distorção e corrupção criado por eles mesmos. Isso pesa em sua consciência e acorrenta sua alma. Há somente dois tipos de pessoas que são verdadeiramente felizes e podem viver em paz. São aquelas

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que têm a consciência limpa e aquelas que não têm consciência alguma. É muito difícil para um judeu, cuja alma é intimamente ligada à Torá, ter como viver de forma totalmente inconsciente. Portanto, sua única opção – se quiser ser realmente livre – é viver com a consciência limpa. É importante observar a anomalia neste 2º passo do Seder: não fazemos a bênção de Al Netilat Yadayim após a ablução ritual das mãos. Uma das razões para tal é que a necessidade de se ter “mãos limpas” não é um conceito unicamente judaico nem religioso. É uma norma universal que se aplica a todos os seres humanos. Quem quer ser livre tem que ter “mãos limpas”, independentemente de suas crenças ou práticas religiosas.

3. Carpás – mergulhar a verdura Após a ablução ritual das mãos sem fazer uma berachá, tomamos o Carpás – um pedaço pequeno de uma verdura (como o aipo ou a batata) – molhando-a em água salgada, e recitamos a bênção de Borê Perí Ha’Adamá (“Que cria o fruto da terra”), para então comê-la. Carpás simboliza o corpo humano. Em hebraico, o

homem é chamado Adam porque como o Carpás (a verdura, o “fruto da terra”), a dimensão física de sua existência se originou da terra (Adamá): “Com o suor de teu rosto comerás pão, até voltares para a terra – pois dela foste tomado – pois tu és pó ...” (Gênesis 3:19). Antes de comer o Carpás, o molhamos na água salgada, dizendo a berachá, como vimos acima. É necessário molhar o Carpás n’água salgada porque a água é um dos símbolos da Torá, ao passo que o sal representa o pacto eterno entre D’us e o Povo Judeu. Portanto, ao mergulhar o Carpás na água salgada, a dimensão física do judeu, isto é, seu corpo, é submergida nas águas da Torá. Trata-se de um passo necessário para se alcançar a liberdade interior, pois a maioria dos seres humanos, entre eles muitos judeus religiosos, não sabem como se relacionar com seu corpo de forma saudável. O equilíbrio entre a vida física e a espiritual é um grande problema para eles. Algumas pessoas estão aprisionadas por seu corpo: passam a vida correndo atrás de prazeres físicos e negligenciam os assuntos espirituais. Outras, porém, seguem o caminho oposto. Acreditam que só se pode viver uma vida superior e significativa se o corpo 8

for negligenciado. Acreditam que os prazeres físicos e o conforto são obstáculos à santidade e, assim sendo, o corpo e seus desejos devem ser ignorados. Julgam que a privação física eleva e santifica a alma humana. O que não percebem é que se tornaram escravos de seu próprio corpo. São obcecados por ele, ainda que em um relacionamento antagônico, e vivem em constante luta com suas necessidades e desejos físicos. A Torá não endossa nenhuma dessas duas visões extremas. Por um lado, despreza o hedonismo. Por outro, ensina que o corpo é o veículo para a alma e, portanto, deve ser respeitado e cuidado. O Judaísmo considera um grave pecado negligenciar, ferir ou abusar do corpo de qualquer forma que seja. Segundo a Torá, o corpo precisa ser santificado: deve ser submerso nas águas da Torá, o que significa que deve ser um veículo para a santificação. O Carpás é submergido na água salgada para nos ensinar que o ser humano verdadeiramente livre não é escravo de seu corpo – nem de uma busca obsessiva por prazeres físicos nem pela ideia contraproducente de negá-los totalmente. O homem é verdadeiramente livre quando seu corpo e sua alma funcionam em


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harmonia: quando o corpo não é desprezado, mas sim, elevado por meio da sua imersão nas águas da sabedoria e santidade da Torá.

que deseja ser verdadeiramente livre está sempre se aperfeiçoando e progredindo.

5. Maguid – leitura da Hagadá

4. Yachatz – a partição da Matzá do meio O 4º passo do Seder é Yachatz: a quebra da Matzá do meio. Este passo do Seder nos ensina que às vezes, um coração humilde – um coração partido – é um pré-requisito para se atingir crescimento e liberdade interior. A crença de que se é perfeito e completo é um dos maiores obstáculos ao progresso pessoal em qualquer aspecto da vida, particularmente em questões espirituais. Aquele que se julga incapaz de cometer erros não fará esforço algum para melhorar. Consequentemente, permanecerá preso à realidade ilusória que criou para si próprio – um mundo imaginário no qual se sente perfeito, completo e superior. Pessoas que se iludem não são livres, pois vivem trancadas em seu próprio mundo imaginário, irreal. A incapacidade de admitir erros, dor, medo, imperfeições e falhas é um dos maiores impedimentos ao crescimento e libertação espiritual. Para conquistar a verdadeira

liberdade, é preciso “quebrar nossa própria Matzá”: é preciso admitir internamente nossas falhas, vulnerabilidades, erros e imperfeições. Yachatz nos ensina que a vida não tem a ver com perfeição, mas com responsabilidade e crescimento. Aquele que percebe que não é completo nem perfeito fará esforços para melhorar e não se sentirá acorrentado por limitações externas ou internas. Por outro lado, aquele que crê que não precisa melhorar, o sabichão que se julga sempre certo, que não erra e que não necessita desculpar-se com ninguém, seja D’us seja seu semelhante – essa pessoa permanecerá estacionada em sua vida. Isso é exatamente o oposto de liberdade, pois o ser humano

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Maguid – a leitura e discussão da Hagadá, que narra a história de Pessach – constitui o âmago do Seder. Seu propósito primordial é relatar essa história, ensinando-a a nós, nossos filhos e a todos os que conosco compartilham dessa celebração singular. Este 5º passo do Seder nos ensina que um elemento necessário para a nossa libertação interior é expandir nossos horizontes por meio do estudo. A ignorância é a antítese da liberdade. Falta de educação e de estudo reprimem o progresso. Tratase de uma verdade indiscutível: os países que valorizam a educação são bem mais avançados e livres do que os que não o fazem. Não é surpresa que o Judaísmo dê um valor supremo ao estudo. Maguid transmite a ideia de que quando estudamos, desafiamos a nós mesmos e ampliamos nossos horizontes. Infelizmente, há muitas pessoas que param de

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estudar quando completam sua educação formal. O Judaísmo nos ensina que o estudo é uma busca ininterrupta e vitalícia: um de seus mandamentos fundamentais é estudar a Torá diariamente. As pessoas livres estão sempre desenvolvendo seu intelecto. Estão sempre estudando e expandindo seu conhecimento. Quem não estuda continuamente não é verdadeiramente livre, pois fica preso em uma esfera intelectual e espiritual limitada, enquanto o restante do mundo se torna cada vez mais instruído e bem informado.

6. Rochtsá – ablução das mãos com bênção O 6º passo do Seder, Rochtsá, novamente trata da ablução ritual das mãos. Diferente da primeira vez (2º passo), desta segunda vez, a ablução é seguida da recitação da berachá de Al Netilat Yadayim. Há diferenças significativas entre essas duas abluções. A primeira é uma lição básica de integridade. Não vem acompanhada de uma bênção, pois sinceridade, honestidade

e decência são atributos que se esperam de todos os seres humanos. A segunda ablução é acompanhada de uma bênção. Uma das razões para tal é que após o estudo da Torá (Maguid – passo anterior no Seder), já não basta ter “mãos limpas”, ou seja, viver uma vida de honestidade e integridade. Uma vez que um judeu tenha estudado a Torá, não lhe é suficiente ser uma pessoa honesta; espera-se muito mais de sua pessoa. Agora que já adquiriu conhecimentos da Torá, essa pessoa também deve obter limpeza espiritual: seu

comportamento e integridade têm de ser impecáveis. Ser verdadeiramente livre significa adquirir pureza espiritual. Muitas pessoas são honestas, decentes, boas e generosas, mas levam uma vida profana e hedonista. Isso não é aceitável para quem estuda a Torá. Quem acumula conhecimentos sobre a Torá se torna um representante do Judaísmo. E para quem personifica a Torá, não basta ser decente, honesto e educado. É preciso ser um ser humano iluminado e 10

exemplar. Aquele que é identificado com a Torá precisa lavar suas mãos uma segunda vez e recitar a berachá. Ou seja, suas “mãos” não apenas têm de estar duplamente “limpas”, mas também santificadas. Há, ainda, outra razão para ser imperativo lavar as mãos, metaforicamente, uma segunda vez após ter estudado Torá: porque quando a pessoa acumula muito saber, particularmente sabedoria espiritual, essa pessoa corre o risco de se tornar arrogante e complacente – que, como vimos acima (em Yachatz), é a antítese da liberdade.

7. Motsí – primeira benção sobre a Matzá Após a ablução ritual das mãos, comemos Matzá. Mas antes recitamos duas bênçãos. A primeira delas é a berachá de Motsí (“Que extrai o pão da terra”). Em hebraico, Motsí significa “extrair”. A bênção de Motsí nos ensina uma lição que aparece com frequência na Cabalá: que tudo na Criação tem um propósito


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Divino e que um dos principais propósitos em nossa vida é extrair centelhas sagradas do mundano. Ou seja, santificar o mundo físico usando-o para propósitos sagrados. Por exemplo, quando recitamos o Kidush sobre um cálice de vinho casher, no Shabat ou Yom Tov, estamos santificando o vinho. Ao utilizarmos essa bebida alcoólica para uma finalidade sagrada, extraímos as centelhas sagradas nela contida. Pessoas realmente livres sabem como extrair centelhas sagradas deste nosso mundo material. Ou seja, sabem como santificar a fisicalidade. Como vimos no passo 3 do Seder (Carpás), a pessoa livre santifica seu corpo mergulhando-o nas águas sagradas da Torá. Este 7º passo, Motsí, trata de santificar mais do que o corpo da pessoa: trata de santificar o mundo físico que a rodeia. Motsí constitui um pré-requisito para se alcançar a verdadeira liberdade, pois nos força a repensar nosso relacionamento com o material: trabalho e dinheiro, alimentos e bebidas, sono, assuntos íntimos e nossos bens. Há quem seja escravo dessas coisas, obcecado com o mundo material. Essas pessoas danificam sua alma e abrem mão de sua liberdade interior para tentar satisfazer todos os seus desejos físicos. No entanto, há também aqueles que, incapazes de lidar com os desafios apresentados pelo físico e o material, partem para o outro extremo. Por acreditarem que a fisicalidade é um empecilho para o crescimento espiritual, tentam abster-se de qualquer forma de materialismo – geralmente sem muito sucesso. Acreditam, erroneamente, que o ascetismo é o caminho para a elevação espiritual.

Motsí nos ensina que as duas abordagens acima são erradas. Assim como temos que encontrar o ponto de equilíbrio entre corpo e alma (passo 3 – Carpás), temos, também, que harmonizar a fisicalidade com a espiritualidade. Para ser realmente livre, a pessoa tem de realizar Motsí – extraindo as centelhas sagradas contidas na matéria física. A liberdade genuína é alcançada por aqueles que conseguem fazer a paz entre os elementos físicos e espirituais de sua vida.

8. Matzá – segunda benção sobre a Matzá Após fazer a berachá de Motsí, fazemos a da Matzá – Al Achilat Matzá – e então comemos esse alimento que é o símbolo de Pessach. A Matzá é o pão não fermentado – insípido e achatado, praticamente sem gosto. Nossos Sábios ensinam que a Matzá simboliza a humildade. Enquanto a benção de Motsí nos ensina a buscar oportunidades na vida – por exemplo, usando o mundo físico para propósitos espirituais em vez de se abster dele –, a benção da Matzá, símbolo da humildade, ensina a evitar a ostentação ao fazê-lo.

9. Maror – bênção sobre as ervas amargas O Maror, alface ou ervas amargas, é outro famoso elemento do Seder. Essa erva amarga nos faz lembrar a aflição de nossos antepassados no Egito, onde foram escravizados, torturados e assassinados. O Maror simboliza os sofrimentos, a dor e os traumas sofridos pelos Filhos de Israel. Sendo assim, como é um dos 15 passos do Seder a caminho da liberdade e emancipação? Porque a pessoa só pode ser realmente livre se aprender a lidar de forma adequada com a aflição e o sofrimento. É interessante que, durante o Seder, temos que comer muita Matzá, mas não muito Maror. Isso é uma lição de como lidar com o sofrimento, ensinando-nos que não podemos ignorar o sofrimento, mas tampouco devemos entregarnos a ele, indefinidamente. Há, basicamente, duas abordagens ao sofrimento e ao trauma. Algumas pessoas os reprimem totalmente, como se nunca tivessem ocorrido. Se tivessem opção, não serviriam Maror no Seder nem falariam sobre as aflições de nossos antepassados no Egito. A segunda forma de lidar

A bênção de Motsí nos incentiva a extrair o que há de bom no mundo físico, ao passo que a da Matzá nos ensina a manter a perspectiva correta: não exibir ou ficar imerso em exagero nos prazeres e ocupações físicos, ainda que se possa extrair centelhas sagradas de seu interior. 11

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com o sofrimento é continuamente pensar e falar sobre tragédias e tristezas. Há pessoas que revivem continuamente traumas passados. Se dependesse delas, passariam o Seder inteiro comendo Maror e discorrendo sobre o sofrimento de nosso povo sob o jugo do Faraó. Passariam toda a noite falando das agruras pelas quais passaram todos os judeus, e toda a humanidade – sem deixar de incluir seus próprios problemas. Maror – 9º passo para a liberdade interior – nos ensina que estão erradas as duas abordagens acima ao sofrimento. Ainda que a pessoa consiga reprimir experiências dolorosas, estas não desaparecem por si só; continuam arraigadas na mente e na alma da pessoa. E, um dia, de alguma forma, virão à tona. Ninguém consegue ser realmente livre se tem reprimido, dentro de si, dor e trauma. Isso porque, tendo conhecimento disso ou não, esses sentimentos influenciarão seu comportamento. Quem reprime tristeza e sofrimento tem, geralmente, explosões inexplicáveis de raiva ou depressão e pode tornarse uma pessoa fria, indiferente e

antissocial – ou pior, desenvolver horríveis fobias. Por outro lado, a pessoa que não consegue parar de falar sobre seus sofrimentos e traumas acaba sendo consumida por eles. Dá um grande alívio falar sobre algo doloroso e, assim, sentir-se mais leve; mas é algo bem diferente reviver o assunto repetidamente. A pessoa que só fala de suas dores não pode ser verdadeiramente livre porque está aprisionada em seu passado e em sua dor – que ela revive continuamente, sem conseguir vencê-los. Maror nos ensina a abordagem judaica ao sofrimento. Devemos comer o Maror – elemento indispensável do Seder – por ser errado negar as experiências dolorosas ou ignorar as dificuldades, traumas e sofrimentos. Mas, após comer uma certa quantidade de Maror neste momento do Seder e no momento do Corech (próximo passo), esgotamos a nossa quota de amargura. Isso significa que após reconhecer o sofrimento e o verbalizar, temos que seguir em frente – optar pela vida, apesar das experiências dolorosas. Não podemos 12

tapear ou tentar reprimir a dor e o trauma. Mas tampouco podemos deixar-nos absorver ou paralisar por eles. Podemos e devemos chorar e lamentar as tragédias passadas, mas com o limite adequado. Essa lição foi particularmente relevante para a geração de judeus que viveu o Holocausto. Não há palavras que exprimam o seu sofrimento. Eles tinham todo o direito de falar disso o dia todo e todos os dias, até o fim de sua vida. Mas quase todos decidiram seguir em frente, reconstruir sua vida, sua família e o Povo Judeu, apesar de toda a dor e de todo o sofrimento. Seres humanos livres se permitem sofrer e lamentar, mas não permitem que o sofrimento e as experiências dolorosas os escravizem para todo o sempre.

10. Corech – sanduíche de Matzá e Maror O 10o passo do Seder é Corech – o sanduíche. Atualmente, na ausência do Templo Sagrado de Jerusalém, o Corech é apenas um sanduíche de Matzá contendo Maror com Charosset. Na época do Templo Sagrado de Jerusalém, o Corech era bem mais saboroso, pois também continha pedaços do Corban Pessach, o sacrifício Pascal: carne assada. O Corech original tinha, portanto, três ingredientes: o sacrifício Pascal, a Matzá e o Maror – alimentos altamente simbólicos. O Corban Pessach era uma iguaria real – quem não gosta de churrasco? A Matzá é um alimento insosso – não se pode dizer que seja gostoso e poucos o preferem a um pedaço de pão – mas não deixa de ser tragável. Já o Maror, é amargo e desagradável, e a maioria das pessoas não gosta de comê-lo. Corech nos ensina que há, basicamente, três tipos de experiências na vida: as alegres, as


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insossas e as amargas. Há coisas que gostamos de fazer e que nos dão prazer e alegria (Corban Pessach). Há outras que não gostamos de fazer – são insossas e maçantes, mas não nos causa sofrimento fazê-las (Matzá). E há outras que não gostamos mesmo de fazer e gostaríamos de não ter de fazê-las (Maror). De modo semelhante, há períodos em nossa vida que são felizes, bem-sucedidos e cheios de notícias boas e alegres. Há outros que são insossos, quando nada de empolgante ou alegre ocorre, mas tampouco nada doloroso. E, por fim, há épocas em nossa vida que são difíceis, desafiadoras e dolorosas. Corech nos ensina que ser livre significa ter a capacidade de lidar com todos os três tipos de situações. Ninguém pode fazer apenas o que gosta. Nenhuma pessoa madura pode esperar que todos os dias de sua vida sejam felizes e agradáveis. Quem é realmente livre entende que muitos eventos de nossa vida são desinteressantes, mas necessários. Entende, também, que mesmo o ser humano mais afortunado cedo ou tarde terá de enfrentar dificuldades e desafios. As pessoas livres encontram significado nos eventos aparentemente insossos e triviais da vida e entendem que os períodos difíceis geralmente são oportunidades de crescimento pessoal. Conseguem internalizar a ideia de que é quando enfrentamos momentos desafiadores que estamos em nosso auge, revelando nosso verdadeiro potencial e grandeza interior. Seres livres lidam com todo tipo de vivências porque não são presa do medo ou da insegurança. Já aquele que não é internamente livre, faz o impossível para esquivarse da responsabilidade e da disciplina, evitando tudo que julga

desagradável ou insosso, sem emoção. Essa gente não enfrenta a vida como ela é; está sempre tentando escapar de situações difíceis ou buscando atalhos ou saídas intempestivas. O homem realmente livre tem a coragem, força e resiliência para lidar com qualquer tipo de situação. Quem não preferia que a vida fosse uma sequência de eventos felizes? Poucos gostam de insipidez ou amargura. Mas Corech nos ensina que a vida inclui uma série de experiências diferentes. E aqueles que desejam alcançar liberdade e crescimento espiritual estão dispostos a confrontar situações insípidas e até dolorosas sempre que necessário.

11. Shulchan Orech – o jantar festivo O 11o passo do Seder é o Shulchan Orech – a refeição festiva. É importante notar que a refeição de Pessach não é apenas um banquete de Yom Tov. Constitui também um dos passos do Seder e, portanto, nos dá lições de liberdade. Uma destas é que um dos sinais de verdadeira liberdade é a capacidade e disposição 13

de prover para os outros. Os realmente livres são generosos. Sabem dar e gostam de o fazer. Podem dar e compartilhar porque conhecem o seu próprio valor e não sentem que ao compartilhar perdem o que é seu. Tampouco sentemse diminuídos ou empobrecidos. Prover para os outros só os engrandece. Quem não consegue compartilhar é limitado por uma mentalidade de escassez, acreditando que a vida é um jogo em que para alguém ganhar, é preciso alguém perder, em que o lucro de um é o prejuízo do outro. Homens livres, no entanto, creem na abundância. O sucesso e a felicidade do outro não os ameaça. Pelo contrário, ajudam e dão poder aos outros, sabendo por experiência própria que a generosidade volta, cedo ou tarde. Convidar pessoas para o Seder é uma grande mitzvá, provendo a essas pessoas de forma material e espiritual. Uma boa medida de liberdade pessoal é a capacidade e disposição de preocupar-se e ser generoso com todos, nas questões materiais e nas espirituais. ABRIL 2019


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12. Tzafun – o ato de comer o Aficoman Após o jantar, e antes de recitar o Bircat HaMazon (Benção após as Refeições), comemos o Aficoman – o pedaço de Matzá quebrado (em Yachatz – 4º passo) e escondido. O Aficoman é denominado Tzafun, “oculto”, por ser o pedaço da Matzá que foi escondido após realizar Yachatz – a quebra da Matzá do meio. Uma das lições do Aficoman é que para ser verdadeiramente livre, a pessoa precisa lidar com o que traz escondido dentro de si. Há várias coisas em nossa vida – sentimentos, pensamentos e lembranças, em particular as dolorosas – que reprimimos. Reprimir sentimentos é um recurso de sobrevivência, que nos permite continuar a viver apesar dos traumas sofridos. Mas, como vimos ao falar do Maror, o que é reprimido pode acabar vindo à tona – geralmente na hora errada, no lugar errado e da forma errada. A pessoa verdadeiramente livre, que busca crescimento espiritual constante e significativo, precisa lidar com o que lhe dói e vive em seu subconsciente – e que o trava de alguma forma, seja emocional, psicológica ou espiritualmente. É importante observar que Tzafun – lidar com o que está oculto – é um dos passos finais do programa

de libertação, de 15 passos, do Seder. Uma das razões para Tzafun só aparecer quase no final é que apenas quando o ser humano já fez progressos espirituais e emocionais significativos, ele tem condições de lidar de forma saudável com os fantasmas ocultos que podem habitar as profundezas de sua alma. Tzafun constitui um dos passos mais difíceis na busca por liberdade interior. Geralmente, é doloroso lidar com sentimentos reprimidos e revisitar eventos bloqueados por nosso consciente. No entanto, tratase de um passo indispensável para a libertação pessoal. Mas, tudo o que dissemos sobre o Maror se aplica a Tzafun: temos condições e devemos enfrentar nossas questões e emoções dolorosas, mas não podemos deixarnos aprisionar pelas mesmas. Do contrário, tudo o que deve constituir um passo para a autolibertação passa a ser um degrau na queda para o abismo da autopiedade e autoescravidão.

13. Barech – Bênção após as Refeições (Bircat HaMazon) Após comer o Aficoman, recitamos Bircat HaMazon. Há um mandamento bíblico que nos ordena recitar essa bênção sempre que se come pão. Como comemos Matzá 14

durante o Seder, devemos recitar o Bircat HaMazon. Essa bênção constitui um dos 15 passos do Seder. A razão para isso é que o Bircat Hamazon nos ensina que se a pessoa deseja ser livre, ela precisa aprender a agradecer e ser agradecida. Há aqueles que têm dificuldade de sentir-se gratos. Eles se abstêm de agradecer um favor ou uma gentileza porque creem que, ao fazêlo, ficam endividados perante o outro. Pessoas realmente livres não têm dificuldade em agradecer e receber agradecimentos. Entendem que, na vida, todos nós damos e todos nós recebemos. Aqueles que não são agradecidos não são livres, pois acreditam – ou fingem acreditar – que são autossuficientes. A ideia de que não devemos nada a ninguém é de uma arrogância sem par, já que até as pessoas mais realizadas têm muito a dever aos outros: a D’us, a seus pais e mestres, e a todo aquele que ao longo da vida os ajudou. Ser ingrato e ter relacionamentos saudáveis são coisas opostas – seja com D’us, seja com outros seres humanos. Ninguém é verdadeiramente livre se julga não dever favores a ninguém. Quem não é agradecido não é livre, pois vive em um mundo de ilusória autossuficiência.


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14. Halel – Salmos de Louvor Após recitar o Bircat Hamazon, recitamos o Halel, que significa louvor, enaltecimento. Enquanto o passo anterior do Seder, Bircat Hamazon, constitui uma lição de agradecimento, o Halel ensina a importância de se enaltecer os demais. Esse cântico nos ensina que não basta agradecer; é necessário também louvar e elolgiar. Algumas pessoas conseguem agradecer aos demais, mas têm grande dificuldade de enaltecê-los. O Judaísmo abomina a bajulação, especialmente quando é falsa e manipuladora. No entanto, é louvável saber apreciar os demais e louvá-los sempre que o mereçam. O louvor sincero é estimulante e traz à tona o que há de melhor nas pessoas. Pessoas livres não se sentem ameaçadas por louvar o outro. Não julgam que o sucesso do outro os ameaça ou empana o brilho de seu próprio valor e realizações. Mas aqueles que não são espiritual e emocionalmente livres veem os demais como concorrentes. No mundo escuro em que vivem, a única maneira de se sobressair é pisando nas outras pessoas. Sendo assim, nunca elogiam – só sabem desmerecer os outros. São pessoas

que estão presas e escravizadas por suas incertezas e inseguranças e, assim sendo, recusam-se a ver e reconhecer o mérito dos demais. Um sinal de verdadeira liberdade é poder apreciar, admirar, estimular e elogiar os nossos semelhantes.

15. Nirtsá - Aceitação O 15o e último passo do Seder não exige qualquer ação. Mas isso não diminui sua importância. Este passo é Nirtsá – a afirmação de que o Seder, uma vez realizado fielmente de acordo à Lei Judaica e sua tradição, foi bem recebido por D’us. Nirtsá responde a uma pergunta existencial que deve ser feita e satisfatoriamente respondida quando a pessoa deseja alcançar a verdadeira liberdade interior: qual a finalidade de se esforçar tanto para alcançar a liberdade interior e o crescimento espiritual? Para que, sinceramente, cumprir esses 15 passos? Por que seguir uma vida de dedicação a D’us e à alma (passo 1), de verdade e decência (passo 2), de santificação do corpo (passo 3), de humildade (passo 4), de conhecimento e estudo da Torá (passo 5), de aperfeiçoamento espiritual (passo 6), de equilíbrio entre o físico e o espiritual (passo 7), de modéstia (passo 8), de sofrimento saudável (passo 9), de 15

coragem e resiliência (passo 10), de generosidade e hospitalidade (passo 11), de psicanálise espiritual (passo 12), de agradecimento (passo 13) e de enaltecimento (passo 14)? A resposta é o 15o passo – Nirtsá. Ou seja, a crença de que isso é o que D’us espera de cada um de nós. Nirtsá nos ensina que nossos esforços para alcançar a libertação interior e o crescimento espiritual têm grande importância perante D’us. E transmite a ideia de que quando o ser humano se empenha em viver a vida que D’us espera que ele viva, esse homem cumpre o propósito para o qual foi criado e enviado a este mundo. E, portanto, o Mestre do Universo se satisfaz com seu serviço.

BIBLIOGRAFIA

Rabbi Yosef Yitzhak Jacobson – Your Psychological Seder #1: 15 Steps toward Personal Emancipation: http://www.theyeshiva.net/jewish/4175 Rabbi Yosef Yitzhak Jacobson – Your Psychological Seder #2: 15 Steps toward Personal Emancipation: http://www.theyeshiva.net/jewish/4188 Iluminuras extraídas da “Hagadá de Pessach”, publicada em 2007 pelo Instituto morashá de cultura e instituto Vicky e Joseph Safra. Reproduzidas da obra “Seder Hagadah Shel Pessach”, de autoria de Yakov Sofer Ben Yehudá Leib, Hamburgo, 1741.

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Shavuot: 10 Reflexões sobre o Estudo da Torá A festa de Shavuot, celebrada na Diáspora no 6o e 7o dias do mês judaico de Sivan, é o aniversário da Revelação Divina no Monte Sinai, que ocorreu 50 dias após o Êxodo do Egito. Pela primeira e única vez na História, D’us Se revelou publicamente – a todo o Povo Judeu, 600.000 homens e seus familiares – e proclamou os Asseret HaDibrot (Dez Pronunciamentos), comumente chamados de Dez Mandamentos.

e

m homenagem a essa festividade e aos Dez Mandamentos, preparamos 10 reflexões sobre a Torá e seu estudo. Nosso propósito ao compartilhá-las é transmitir ao menos um ínfimo do que a Torá realmente é e, assim, estimular um número máximo de judeus a mergulharem em seu estudo.

Para o Povo Judeu, no entanto, o estudo da Torá é um mandamento não conectado diretamente com a crença ou a ação. Os textos religiosos mais estudados, como o Talmud, têm pouco uso prático. Por exemplo, vários dos tratados do Talmud são basicamente dedicados ao estudo dos sacrifícios e oferendas executados no Templo Sagrado de Jerusalém. Atualmente, na ausência do Templo Sagrado, tais leis não são relevantes na vida diária de nosso povo.

1. Por que devemos estudar a Torá. O estudo da Torá é um mandamento central do Judaísmo. O mandamento de estudar e ensinar Torá é mencionado no Shemá Israel – a proclamação fundamental da fé judaica –, que devemos recitar todas as noites e todas as manhãs. Como diz o Talmud – e isto é parte das preces matinais diárias – o estudo da Torá equivale em importância a todos os demais mandamentos, em conjunto.

Por que, então, dedicamos tempo precioso estudando o que aconteceu em tempos remotos e que já não se aplica, hoje? Por que estudamos certas leis e situações que o próprio Talmud afirma nunca terem ocorrido e que nunca hão de ocorrer? Dedicamos tempo e empenho a isso porque o que estamos fazendo é buscar conhecimento por amor ao conhecimento – e não como algo a ser usado. A ideia de estudar pelo amor ao estudo pode parecer peculiar a muitas pessoas. Mas quando se estuda um tema qualquer da Torá, até mesmo o que nos pareça mais irrelevante, está-se na verdade entrando em comunhão com D’us. Sendo assim, não faz muita diferença o assunto que se está estudando, desde que se estude Torá – pelas razões e com o estado de espírito certos.

Aparentemente, o estudo da Torá é uma atividade religiosa incomum. A maioria das religiões têm expectativas sobre a crença e sobre agir corretamente, mas os seguidores não são obrigados, necessariamente, a estudar seus textos religiosos. Algumas religiões até preferem que seus fiéis não se aprofundem em seus ensinamentos e textos religiosos. 16


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A ideia de estudar por amor ao estudo sempre foi reverenciada pelo Povo Judeu. Talvez isso explique a longa lista de judeus que já conquistaram o Prêmio Nobel, particularmente nos campos científicos. Quando perguntaram a Isidor Isaac Rabi, vencedor do Nobel de Física em 1944, a que ele atribuía suas conquistas e a láurea recebida, ele respondeu que as atribuía a seus pais. Contou que quando voltava da escola, eles nunca lhe perguntaram o que havia aprendido. Queriam saber: “Você fez uma boa pergunta, hoje?”. Essa abordagem judaica ao estudo – a preocupação com a pergunta e não com a resposta, e estudar pelo amor ao estudo – parece ser tão antiga quanto nosso próprio povo. Hectaeus, geógrafo grego durante o reinado de Alexandre, o Grande,

escreveu sobre países remotos que começavam a ser conhecidos, à época. Observou que ouvira falar de um povo interessante que vivia ao sul da Síria, em que todos eram filósofos. Isto é, faziam perguntas filosóficas e estavam interessados no saber por simples amor ao saber. Esse foi um dos maiores elogios feitos ao Povo Judeu. Há uma bela tradição de ficar acordado a noite toda, em Shavuot, estudando Torá. Muitas sinagogas promovem aulas ou palestras, mas muitos optam por estudar sozinhos ou com um grupo de amigos. Não importa o texto ou tópico da Torá escolhido. O importante é aprender algo que seja genuinamente Torá e estudálo pelos motivos adequados. Pois quando um judeu se senta para estudar Torá, mesmo sozinho, ele entra em comunhão com D’us. 17

2. A Torá é como um conto dentro de um conto dentro de outro conto. A palavra Torá tem muitos significados. Uma ampla definição da Torá é a totalidade dos ensinamentos judaicos sagrados. Contudo, a definição precisa e literal da Torá é aquilo que D’us transmitiu a Moshé durante a jornada de 40 anos do Povo Judeu pelo deserto: os Chamishah Chumshei Torá, o Chumash: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Há uma diferença significativa entre o Chumash e os demais livros da Torá. Todos são sagrados, obviamente. Mas os Cinco Livros são de pura autoria Divina: D’us ditou cada uma de suas letras a Moshé, que apenas as transcreveu – a Torá original que D’us lhe transmitiu, um “fogo negro gravado sobre fogo branco”. ABRIL 2019


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Ao estudar os Cinco Livros da Torá, é da maior importância ter em mente que as letras hebraicas que os compõem, e não apenas seu conteúdo, revelam a Vontade Divina. Essa é uma das características específicas do Chumash, que os diferenciam de todos os demais textos sagrados, como a Mishná e a Guemará (Talmud). Encontra-se a santidade dos Cinco Livros nas próprias letras de seu texto. Cada letra e símbolo no Chumash pairam como um mistério Divino que aguarda para ser revelado. A combinação das letras nas palavras e frases são a maneira como D’us nos comunica seu significado. Pode-se fazer todo tipo de combinações, em vários níveis, e obter 600.000 revelações diferentes. Como ensinou Nachmânides, todas as letras dos Cinco Livros da Torá constituem Nomes de D’us. Em outras palavras, o Chumash é um código secreto sagrado: uma lista de Nomes Divinos, que praticamente não têm significado para nós. É como um código secreto dentro de um número infinito de interpretações possíveis; um conto dentro de um conto dentro de um outro conto – e cada um deles igualmente válido e sagrado. Já foram escritos milhares de comentários e interpretações sobre a primeira porção da Torá, Gênesis, na tentativa de explicar, revelar e decifrar segredos contidos nela. No entanto, o segredo continua inviolável, pois o segredo da Torá é real – e nenhum ser humano pode, de fato, entender completamente os segredos de D’us Infinito.

3. A Torá está em constante expansão. Diariamente, nas preces matinais, dizemos uma bênção sobre o estudo da Torá, que é a mesma berachá que recitamos quando somos chamados à Torá – e que termina com as seguintes palavras: “Bendito és Tu, Eterno, que nos dás a Torá”. É importante notar que a bênção é dita no presente: “…que nos dás a Torá”, e não ... “que nos deste a Torá”. Isso nos ensina que a transmissão Divina da Torá não se encerrou com o falecimento de Moshé, ou seja, não

é um fato do passado. D’us continua diariamente a nos dar a Sua Torá, que, por sua vez, continua a se constituir e se expandir. A Revelação Divina ocorrida no Monte Sinai, que celebramos em Shavuot, constitui uma revelação contínua que se repete sempre que um judeu estuda a Torá. Como ensina o Pirkei Avot, um tratado da Mishná, D’us nunca parou de proclamar os Dez Mandamentos. Poucos, ou quiçá nenhum de nós, consegue ouvir a contínua Voz de 18

D’us. O melhor que podemos fazer é estabelecer o relacionamento adequado com a Torá, que se inicia com a percepção de ser o canal por meio do qual D’us se comunica com os seres humanos. Sempre que estudamos a Torá, de certa forma nos tornamos profetas, pois nos abrimos à Voz Divina. Sempre que estudamos a Torá, D’us está falando conosco.

4. O nível de aprofundamento individual no estudo da Torá não é essencial. Muitas pessoas julgam que o propósito da Torá é o avanço intelectual. Pois não é. O que realmente importa não é o nível em que se estuda – seja o domínio do Talmud inteiro ou um estudo superficial da porção semanal da Torá. O que, sim, conta é o grau de pureza do relacionamento da pessoa com o texto. Ou seja, o importante é a capacidade da pessoa de anular seu ego perante a Torá e, assim, tornarse um receptáculo para a mesma. Quem estuda o Talmud inteiro por considerá-lo intelectualmente estimulante – e não como meio de comungar com o Divino -, não fez de seu estudo um ato sagrado, mas sim, uma forma de autogratificação, ainda que refinada. No estudo da Torá, as intenções da pessoa – a que chamamos em hebraico de Kavaná – são o mais importante. O grau de pureza no relacionamento com um texto qualquer da Torá depende da consciência de que se está tratando de algo Divino, que tem a capacidade de forjar uma conexão entre o homem e D’us. Mais vale recitar um único Salmo com essa pureza d’alma do que estudar o Talmud inteiro sem a conscientização de que se está comunicando com D’us.


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5. Quem estuda a Torá, cria anjos. Quando a pessoa estuda Torá, está criando anjos e se torna uma criatura conectada a uma ordem superior de existência. O pronunciamento das palavras sagradas da Torá muda a realidade. Aliás, o Judaísmo sempre enfatizou o poder extraordinário das palavras. Essa é uma das razões pelas quais a Torá usa a metáfora da fala para descrever a Criação Divina do universo – para nos ensinar que podemos criar ou destruir mundos com nossas palavras. Algumas das maiores mitzvot da Torá são realizadas por meio das palavras, como a oração e o estudo da Torá. Alguns dos maiores pecados também são realizados com palavras, como o maior deles, Lashon Hará, a maledicência. Como o estudo da Torá cria anjos, é importante não apenas pensar na Torá, mas também enunciar suas palavras ao estudá-la. Devemos falar sobre assuntos de Torá sempre que possível e ensiná-la ao maior número de pessoas. Como ensina o Zohar, obra fundamental da Cabalá: o silêncio é bom em todas as situações, exceto quando se trata da Torá.

6. Quando estudamos Torá, D’us estuda ao nosso lado.

ensinamento imediatamente a seguir, que parece afirmar exatamente o contrário: este diz que uma hora de teshuvá e boas ações neste nosso mundo valem mais do que uma vida inteira no Mundo Vindouro. Nossos Sábios explicam o significado dessa aparente contradição. O Mundo Vindouro é um lugar de prazeres e tranquilidade incomparáveis a qualquer coisa existente em nosso mundo. Nem se trata de uma questão de intensidade; simplesmente não há comparação. Contudo, neste mundo, temos algo que nenhum outro mundo, nem o Vindouro, contém. Podemos entrar em comunhão direta com D’us por

No Pirkei Avot, um dos tratados da Mishná, há uma afirmação de que uma hora de felicidade no Mundo Vindouro é melhor do que toda a vida e os prazeres deste nosso mundo. Tal crença pode ser profundamente satisfatória para o ardor místico de muitos. No entanto, o Pirkei Avot traz um outro

meio de Sua Torá. O Talmud nos ensina que quando estudamos Torá, D’us estuda ao nosso lado. Quando um judeu recita as palavras da Torá, D’us as repete, duplicandoas. Mesmo que seja uma criança a estudar a Torá, ela tem D’us ao seu lado, repetindo cada uma de suas palavras.

7. A Torá desce até nós, para que nós, mortais, possamos compreendê-la. Uma pessoa pode usar a Torá como “ponte” para chegar a D’us. Mas a Torá é muito mais do que isso. Ela é a Sabedoria Divina, o veículo perfeito de comunicação entre o homem e D’us. No entanto, há um problema no fato de a Torá ser Sabedoria Divina. Em sua origem, ela é inacessível aos seres humanos. Assim como D’us Infinito não pode ser entendido pela mente humana finita, a Torá, em sua origem, está além da compreensão dos mortais. Portanto, é preciso

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que desça, nível a nível, para ser absorvida pela mente de cada um de nós, até pelas crianças. Ao estudar Torá, devemos lembrar que até os textos mais avançados e complexos – seja uma passagem mística do Zohar ou uma discussão muito técnica do Talmud – representam uma descida. Se a Torá chegasse à Terra da forma como se encontra nos Céus, seria totalmente incompreensível a nós, simples mortais. Como ilustração, consideremos o computador. Em seus níveis mais altos, sua teoria e detalhamentos são tão complexos que apenas as mentes mais especializadas conseguem entendê-lo. Em níveis mais baixos, quase todos podem aprender a usálo. Até as crianças que ainda não sabem ler sabem usar algumas de suas funções. Essa analogia ajuda a explicar o fenômeno da Torá descer nível por nível de modo a permitir que todos

nós possamos entrar em contato com ela. Em seus níveis mais elevados, nenhum ser humano seria capaz de entendê-la. Mas a Torá veio até nós, na Terra, de uma forma que nos permite estudá-la. D’us escreveu o Chumash em linguagem simples, trazendo histórias e leis que mesmo uma criança pequena possa compreender.

8. Estudar Torá pelo mérito do estudo da Torá. Há pessoas que estudam Torá para absorver sua sabedoria ou para usá-la para algum propósito prático ou idealista. Outros estudam-na para tirar boa nota na escola ou por razões profissionais – querem ser professores ou rabinos. Outros, ainda, a estudam para conquistar o respeito de seus colegas ou para melhorar suas perspectivas de casamento, já que um grande conhecimento de Torá é extremamente admirado em

círculos religiosos. E, naturalmente, há muitas outras razões para o grande número de pessoas que estudam a Torá. Quem estuda Torá pensando em benefício próprio não está estudando Torá Lishmá – estudar Torá pelo amor a D’us e à própria Torá. A Torá não serve como comunhão entre o homem e D’us se é estudada por motivos egoístas. Quem se envolve adequadamente com a Torá permite que o estudo dissemine o esplendor e júbilo Divinos de modo a servir de canal em direção à Luz Divina. Isso se consegue estudando a Torá por seu próprio mérito, ou seja, sem qualquer outro propósito.

9. O tremendo poder do estudo da Torá. Se estivéssemos conscientes do tremendo poder da Torá, seria praticamente impossível concentrar nossa atenção em seu estudo. Ficaríamos, de fato, totalmente subjugados pela experiência. Ironicamente, nossa simplicidade de espírito e pouca sensibilidade espiritual – não atentando para o que ocorre ao estudar Torá – é o que nos protege. É o que nos permite estudar textos da Torá sem ser consumidos pelos mesmos. Há um conto que ilustra esse conceito. Um rei ordenou a confecção de uma coroa especial, fornecendo joias extremamente valiosas para tal. O mestre-joalheiro fez a estrutura, mas quando tentou cravar as valiosas pedras, sentiu suas mãos tremerem de ansiedade, temendo que algo pudesse dar errado. Chamou, então, uma pessoa simples que não fazia ideia do valor daquelas gemas. E esse ajudante

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SEFARIM DA SINAGOGA BEIT YAACOV, SÃO PAULO

conseguiu cravar as pedras e terminar o trabalho sem problema algum – sem ansiedade alguma, pois não fazia ideia de que tinha em mãos gemas da Coroa pertencentes ao rei. Da mesma maneira, alguém que não conhece o tremendo poder e santidade da Torá consegue estudála sem se sentir dominado ou obcecado por ela.

Quando estudamos qualquer livro, qualquer assunto que não seja Torá, estamos buscando conhecimento, inspiração, entretenimento ou mesmo sabedoria. Mas quando estudamos a Torá, estamos em comunhão direta com o Todo Poderoso. Tudo o que adquirimos com esse estudo – se nos tornamos mais sábios, mais cultos ou mais justos – tudo isso é secundário.

10. Estudamos Torá para nos aproximarmos ao máximo do Todo Poderoso. É um grave erro considerar a Torá uma simples fonte de conhecimento. Estudá-la como se estudaria um livro de literatura ou história, ou estudar o Talmud para aguçar a mente, constitui um ato de blasfêmia. Quem não honra a santidade e Divindade da Torá a está desrespeitando – e há poucos pecados mais graves do que desonrar a Torá.

O que tem importância máxima é que quando um judeu estuda a Torá, ele e D’us estão conversando. Diz o Zohar que os judeus estão conectados com a Torá e a Torá está conectada a D’us. Sendo assim, a Torá é a conexão do Povo Judeu com D’us. Quando mergulhamos na Torá, não é apenas para pesquisarmos o passado ancestral de nosso povo ou para estudar como cumprir os Mandamentos Divinos. Ademais, não se deve estudar Torá apenas para cumprir o mandamento de estudá-la. Envolver-se com a Torá é um fim em si; o estudo da Torá é a maior proximidade ao Todo Poderoso que o ser humano pode conquistar.

BIBLIOGRAFIA

Pebbles of Wisdom from Rabbi Adin Steinsaltz – Collected and with Notes by Arthur Kurzweil – Jossey-Bass Rabbi Adin Even Israel Steinsaltz – Curious Jews – The Times of Israel https://blogs.timesofisrael.com/curiousjews/ 21

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ISRAEL

O CÉU ERA O LIMITE – Nasce a Força Aérea de Israel POR ZEVI GHIVELDER

A Força Aérea de Israel nasceu no calor das mais inusitadas circunstâncias. Foi criada no mesmo dia da independência do país, em 14 de maio de 1948. Suas ações em combate, que contaram com voluntários vindos de diversos países, ignoraram planejamentos de guerra, treinamentos, manuais de manutenção de aeronaves, hierarquias, simulações de voos ou quaisquer regras rígidas.

N

ada era intransponível no início de sua trajetória para defender a nação que ascendia. Tudo aconteceu e se desenvolveu durante o próprio desenrolar das batalhas aéreas, bem como nas missões para atingir alvos terrestres. A pequena frota de bombardeiros e aviões de caça que compunha essa força era heterogênea e muitas vezes improvisada. Sua melhor opção, no começo das hostilidades, eram os caças alemães do tipo Messerschmitt, remanescentes da Segunda Guerra, abandonados na Checoslováquia e ali adquiridos, antes e depois da independência de Israel.

acorreram à antiga Palestina logo após a decretação da Partilha e no transcurso do primeiro semestre de 1948.

Boa parte deles se encontrava em estado precário, mas nem por isso deixaram de ser levados porque sempre haveria alguma forma de recuperá-los, como de fato houve.

Eles eram chamados de machalniks, uma vinculação ao acrônimo machal, que, em hebraico, significa voluntários do exterior. Alguns deles se notabilizaram. Paul Kaminitzky, natural de Nova York, serviu na Marinha americana durante a Segunda Guerra. Mal voltou para casa e logo foi para a Europa onde passou a comandar navios clandestinos que levavam sobreviventes do Holocausto para a Palestina. Foi preso junto com o navio Hatikvah, tido como ilegal pelos mandatários ingleses, e levado para a ilha de Chipre. Por causa da nacionalidade americana, removeram-no para o campo de prisioneiros de Atlit, perto de Haifa. Conseguiu fugir e retomou o transporte de imigrantes deslocados. Na Guerra da Independência atuou para estruturar a nascente Força Naval de Israel.

Os pilotos, navegadores de bordo e mecânicos que se voluntariaram para lutar por Israel eram praticamente todos veteranos da 2ª Guerra Mundial. Eles foram parte dos 3.600 voluntários, entre civis e militares, empenhados em todas as áreas da atividade humana que, com passaportes de 57 países, inclusive do Brasil,

Também era nascida em Nova York a jovem Tzipora Porath. Em 1947, foi para Jerusalém onde pretendia estudar durante um ano na Universidade Hebraica. Em maio do ano seguinte, quando os exércitos árabes invadiram Israel e Jerusalém foi sitiada e isolada, Tzipora permaneceu na cidade, engajou-se na Haganá 22


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Após início rudimentar, a Força Aérea de Israel possui aeronaves modernas e sofisticadas, inclusive para abastecimento em voo

e foi incessante referência como paramédica. Ao fim da guerra, mudou-se em definitivo para Tel Aviv. Reuniu num volume as cartas que tinha escrito e guardado para a família durante o cerco de Jerusalém, e seu livro foi um bestseller nos Estados Unidos. Outro americano voluntário, chamado Gideon Lichtman, foi o primeiro piloto a abater um avião inimigo. O primeiro comandante da Marinha de Israel foi outro rapaz de Nova York, Paul Shulman. Um jovem de Toronto, Canadá, de nome Ben Dunkman, traçou a trilha que permitiu abrir a Burma Road, uma estrada íngreme que, depois de meses de privações de seus habitantes, abriu o caminho para Jerusalém.

África do Sul. Eles se uniram aos poucos pilotos sabras (judeus nascidos na antiga Palestina) que deviam suas rudimentares experiências no céu ao seu apoio às organizações clandestinas Haganá e Irgun. A Haganá, tutelada pela Agência Judaica (órgão central do movimento sionista), já tinha

criado desde o mês de novembro do ano anterior o Sherut Avir (Serviço Aéreo), que contava com poucos aviões monomotores do tipo tecoteco. Em seus quadros havia um ex-piloto da RAF, Jack Freedman, que, antes da independência, juntou peças avulsas e porções de sucata, conseguindo montar um avião de caça semelhante ao Spitfire. A partir de fevereiro de 1948, começaram a aterrissar no aeroporto de Sde Dov, perto de Tel Aviv, aviões mais potentes e mais modernos trazidos secretamente da África do Sul. À frente dessa operação estava um jovem piloto chamado Boris Senior. Com incrível coragem, ele tinha atravessado sozinho, no rumo norte, todo o continente africano a bordo de uma aeronave Bonanza, sem instrumentos de rádio ou carta de navegação aérea, perfazendo uma proeza inimaginável.

Oriundos de 16 países, a maioria dos pilotos voluntários era dos Estados Unidos, Reino Unido e 23

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ISRAEL

Boris Senior nasceu em Johanesbur,go, África do Sul, filho de imigrantes da Lituânia que eram ardentes sionistas. Ao eclodir a 2ª Guerra Mundial, alistou-se na RAF, a Força Aérea da Inglaterra. Cumpriu dezenas de missões até seu avião ser abatido nas cercanias de Veneza. Conseguiu ejetar o assento e escapou por milagre de ser preso pelos alemães. Depois da guerra foi estudar economia em Londres onde fez amizade com Ezer Weizmann, também ex-piloto da RAF, sobrinho do proeminente líder sionista e futuro primeiro presidente de Israel, função que ele mesmo também viria a ocupar de 1993 a 2000.

Kibutz Kfar Etzion em chamas, já dominado pelo exército do rei Hussein. Boris Senior lutou como piloto de caça durante a Guerra da Independência, no decorrer da qual, além de outras missões, abateu em voo dois aviões egípcios. Depois do conflito ficou em Israel, incumbido de implantar a estrutura da Força Aérea, da qual se aposentou como coronel em 1952 e, em seguida, dedicou-se à fabricação de filmes fotográficos.

EZER WEIZMANN

Em 1947, depois da Declaração da Partilha, em novembro, Boris seguiu para a antiga Palestina e passou a atuar como piloto do Sherut Avir. Em fevereiro de 1948, regressou à África do Sul com a finalidade de recrutar pilotos judeus para se juntarem a ele na formação do que seria a Força Aérea do Estado Judeu em gestação. Por conta de Boris Senior e seus companheiros, a incipiente unidade militar passou a contar com aeronaves do tipo Piper Club, Auster e Bonanza. Foi pilotando seu fiel Bonanza que ele cumpriu a primeira missão oficial da Força Aérea de Israel. No mesmo momento em que Ben-Gurion lia a Declaração de Independência do novo país, Boris voava para uma tarefa de reconhecimento junto à fronteira com a Transjordânia (hoje Jordânia). Ali, um fotógrafo a bordo registrou uma enorme quantidade de tanques, caminhões e veículos bélicos e outros blindados que, à frente de milhares de soldados, se movimentava na direção de Israel. Do alto, viu o

Spitfire em exposição no Museu da Força Aérea, Hatzerim

Morreu em Kfar Shmariahu, perto de Tel Aviv, em maio de 2004, aos 80 anos de idade. É certo que Senior tenha feito amizade durante o conflito com o americano Gideon Lichtman, foco de uma emblemática narrativa do voluntariado. Lichtman nasceu em 1923 em Newark, Nova Jersey, onde fez os estudos secundários. Em 1941, depois de ouvir pelo rádio o discurso de Roosevelt em repúdio ao ataque japonês a Pearl Harbor, tomou uma decisão imediata: alistar-se na Força Aérea americana. Em pouco tempo afirmou sua

Gideon Lichtman

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vocação para pilotar aviões de caça, tendo combatido no Pacífico até o fim da guerra. Depois de desmobilizado, matriculou-se na Universidade de Nova York para estudar história e pedagogia, graças à bolsa concedida aos combatentes desmobilizados. Mais uma vez, um evento transmitido pelo rádio mudou seu rumo. Tratava-se das frequentes notícias sobre o drama do navio Exodus, atracado no porto de Haifa, abarrotado por sobreviventes do Holocausto que se aglomeravam a bordo, submetidos à perversidade dos mandatários britânicos. Indignado, fez contato com o pessoal da Agência Judaica nos Estados Unidos. Foi logo acolhido como voluntário e mandado para Roma onde já se encontrava um grupo de pilotos americanos, também voluntários, à espera de ordens de deslocamento. A primeira incumbência que recebeu foi seguir para Praga onde, no aeroporto de Ceske, deveria buscar um dos aviões adquiridos pela Agência Judaica, um Messerschmitt de origem alemã. Se ocorresse qualquer problema, deveria comunicar-se com um tal de Dr. Felix e levar-lhe café solúvel. Desembarcou em Praga e, como não tinha visto de entrada, foi logo detido pelas autoridades da imigração. Entrou em contato com o Dr. Felix, que não tardou a aparecer no aeroporto e foi logo perguntando: “Onde está o meu café?” No dia seguinte, acompanhado pelo advogado contratado pela liderança em Jerusalém, foi ao aeroporto militar checo e de lá voou para Tel Aviv. De Sde Dov regressou a Roma, à espera de novas ordens.

de seu avião, abatido na semana anterior.

milton rubenfeld

Lichtman chegou finalmente a Tel Aviv em junho de 1948. Deveria se apresentar no Park Hotel. Em um salão ao lado da recepção, deparou-se com um numeroso grupo de jovens, homens e mulheres, vestindo uniformes militares que davam a impressão de estar sendo informalmente comandados por um rapaz alto e comunicativo. Era Ezer Weizmann, que o apresentou a dois outros pilotos que também viriam a se destacar na nascente Força Aérea de Israel: Lou Lenart e Milton Rubenfeld. O segundo estava ferido depois de ter saltado de paraquedas

Numa manhã de junho, Gideon foi acordado na base de Ekron pelo experiente ex-piloto da RAF, Modi Alon, já em traje de combate. A ordem era que seguissem imediatamente para a base militar porque dois Spitfires egípcios tinham sido avistados voando na direção de Tel Aviv. Na pista de decolagem já havia dois aviões de caça à sua espera. Alon disse para Lichtman: “Não haverá comunicação de rádio entre nós. Conforme o que acontecer, farei sinais com as mãos para lhe dar cobertura ou então você me cobre”. Gideon Lichtman aboletou-se no assento do Messerschmitt, com o qual tinha pouca intimidade pois só o havia pilotado uma vez, da Checoslováquia para Israel. O que aconteceu em seguida é bem semelhante àquelas cenas de batalhas aéreas que nos habituamos a ver no cinema. Assim que ganhou altura e tomou o rumo norte, Lichtman avistou dois Spitfires egípcios. Após inúmeras circunvoluções, ele se

lou lenart, gideon LICHTMAN E MODI ALON

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posicionou atrás de um caça inimigo, mas não conseguiu alcançar uma distância que lhe permitisse atirar. O fato é que os Spitfires eram mais velozes e mais maleáveis do que o seu Messerschmitt e o de Modi Alon. Por fim, quando obteve uma posição favorável, disparou. Não pode constatar se tinha atingido o alvo porque o egípcio tinha desaparecido atrás de uma nuvem. Naquele momento verificou que estava ficando sem combustível. O Spitfire reapareceu, mas não foi ao seu encalce e nem revelou a intenção de retomar o combate. Assim como Lichtman tinha que voltar para sua base, o mesmo devia estar ocorrendo com o egípcio. A rigor, teve uma certeza: pelo menos naquele dia a cidade de Tel Aviv não seria bombardeada do alto. Em agosto, Israel e Egito concordaram em fazer uma trégua nas hostilidades, mas isso não significou um descanso para Lichtman. Ele passou a fazer longos voos de reconhecimento sozinho. Em outubro, recebeu uma boa notícia: a Agência Judaica havia adquirido nos Estados Unidos dois aviões do tipo Mustang P-51. Era neste caça que ele se sentia à vontade porque o tinha pilotado durante três anos da guerra no Pacífico, incluindo voos sobre Tóquio. Os aparelhos chegaram ao porto de Haifa desmontados e o próprio Lichtman supervisionou a remontagem. Deu adeus ao Messerschmitt, que dizia ser um mastodonte claustrofóbico. A Bordo do Mustang sentia que o céu era o limite. Um dia, voou na direção do Líbano e ali viu, no aeroporto militar, dezenas de aviões alinhados uns aos outros. Teve que conter uma enorme vontade de bombardeálos. Porém foi obrigado a cumprir as regras do armistício. Se tivesse disparado, colocaria o novo Estado

ficou obcecado pelo Sea Fury que, conforme ficou sabendo, era pilotado por Abu Zaid, o mais celebrado comandante egípcio. Tornou a vê-lo em cruzamentos nos céus, com cuidado para não lhe dar a cauda. Acabou desistindo de abater o Sea Fury e comentou com Modi Alon: “Algum dia, alguém ainda vai derrubá-lo”. Uma semana depois de declarada a independência, Israel comprou na Checoslováquia quatro Piloto George Lichter

SOLDADOS ISRAELENSES

Judeu numa delicada transgressão internacional. Do Líbano, seguiu para Damasco, na Síria, sem ser importunado. No regresso, resolveu fazer a volta sobre o Sinai onde avistou um avião abaixo do seu. Ficou surpreso e impressionado: era um Sea Fury, o melhor bombardeiro de fabricação britânica, incorporado à força aérea do Egito. Por mais que quisesse, a trégua o impedia de empreender qualquer ataque. Nos dias e semanas seguintes, Lichtman 26

bombardeiros Avia S-1999 que foram desmontados e acondicionados em caixotes. Tudo foi colocado num avião de carga que partiu para Tel Aviv. Ao aproximar-se do aeroporto de Sde Dov, o aparelho foi envolto por denso nevoeiro. Tentou outro aeroporto militar, Ekron, onde se deparou com a mesma condição. Acabou perdendo o rumo e caiu. Na queda foram perdidas as partes dos aviões comprados


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e morreu o piloto Moishe Rosenbaum, cuja experiência se limitava ao Sherut Avir. Duas perdas significativas, sendo a material depois compensada pela aquisição de outros bombardeiros de igual quilate. Na frente terrestre, o recém-formado Exército de Israel enfrentava difíceis embates com as forças egípcias, dotadas de militares bem treinados e bons equipamentos. Para que fosse bem-sucedido, era necessário que o Exército recebesse apoio da Força Aérea. No dia 29 de maio, Ezer Weizmann, Modi Alon, Eddie Cohen e Lou Lenart levantaram voo para impedir o avanço de uma coluna de tanques egípcios que já tinham alcançado o porto de Ashdod, 30 quilômetros ao sul de Tel Aviv. Os quatro aviões bombardearam os tanques uma vez, fizeram outra volta para despejar nova carga de explosivos e ainda uma terceira volta para mais uma descarga. Todas as três tinham alcançado ótimos resultados. Nessas manobras, o aparelho de Eddie Cohen foi atingido por uma bateria antiaérea e se espatifou no solo, matando Cohen. O avião de Lou Lenart foi danificado por tiros na fuselagem, mas, com muita perícia, ele pilotou até aterrissar em Tel Nof, atrás de Weizmann e de Modi que, também atingido, bateu com uma asa na pista e seu avião se desmantelou com perda total. Ele escapou por milagre. Mas, Tel Aviv estava salva de uma incursão de tanques inimigos que poderia ser catastrófica para a população civil e para o curso do conflito, ao custo da perda de dois aviões e da morte de um excelente piloto. O americano Lou Lenart, cujo nome verdadeiro era Layos

Fighters over Israel, livro de Lon Nordeen, 1990

Lenovitz, nasceu numa pequena cidade húngara em 1921. Junto com a família, emigrou para os Estados Unidos com nove anos de idade. Seus pais se estabeleceram na cidade de Wilkes Barr, na Pensilvânia, onde mantinham um negócio de comestíveis e onde Lenart cresceu, às vezes vendendo de porta em porta os finos biscoitos que sua mãe fazia. Em 1942, alistou-se na força aérea da Marinha e teve seu batismo

Pilotos americanos voluntários, 1948

David Ben-Gurion com Modi Alon

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de fogo no Pacífico, na batalha de Okinawa, participando, em seguida, de incursões sobre o Japão. Em 1948, ao tomar conhecimento da morte de 14 de seus familiares no Holocausto, apresentou-se como voluntário à Agência Judaica em Nova York. Sua primeira missão, sob o comando do legendário Al Schwimmer, foi pilotar rumo a Israel um dos aviões comprados por este último na Califórnia, contrariando e desafiando as leis americanas que proibiam a venda de sobras de guerra para finalidades bélicas. Em Israel, foi logo incorporado ao que viria a ABRIL 2019


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ser a Força Aérea do país. Após o conflito, passou a ser apontado como “o homem que salvou Tel Aviv”, um aposto do qual se orgulhou durante toda a vida. Dias depois da salvação de Tel Aviv, Ezer Weizmann e o voluntário americano Milton Rubenfeld voaram na direção de Tul Karm, uma cidade egípcia perto da qual havia um aeroporto militar. Sua intenção era destruir as aeronaves que porventura estivessem no solo. No entanto, foram interceptados por um caça egípcio que atingiu Rubenfeld severamente. Este conseguiu pilotar rumo à costa, nas imediações do moshav (colônia agrícola) Kfar Yona e saltou de paraquedas. As pessoas do moshav, pensando que se tratava de um inimigo, começaram a disparar tiros em sua direção. Já em terra, Rubenfeld, que não sabia uma só palavra em hebraico, levantou os braços e, para provar que era judeu, correu enquanto gritava em iídiche: “Shabes, shabes, guefilte fish!”. À medida em que as hostilidades contra os árabes se intensificavam,

No total, entre pilotos e pessoal de terra, a Força Aérea de Israel somou 607 voluntários, dos quais 92 não eram judeus. Todos cumpriram suas tarefas com convicção, valendo ênfase para os excepcionais mecânicos, muitos deles veteranos da RAF.

Mitchell “Mike” Flint

a Força Aérea de Israel foi ganhando um corpo bem mais robusto, sobretudo com a frequente incorporação de pilotos voluntários. Esse influxo se estendeu até janeiro de 1949 quando foi acordado um cessar-fogo. Porém, o armistício foi assinado em fevereiro de 1949, seguindo-se semelhante formalidade com o Líbano, Síria e Transjordânia. O Iraque jamais assinou o armistício e tecnicamente permanece em guerra contra Israel até hoje.

lichtman, à esq., com ben gurion

Em julho de 1948, Ben-Gurion convidou dois ex-oficiais judeus da Força Aérea da África do Sul, Cecil Margo e Trevor Sussman, para fazer uma avaliação do desempenho e necessidades prioritárias da Força Aérea de Israel. O coronel Margo possuía grande reputação como piloto e como líder. Na 2ª Guerra Mundial tinha comandado formações de bombardeiros no decorrer de 150 missões. Ele teve carta branca para o trabalho, ao cabo do qual apresentou um extenso relatório. A nova Força Aérea precisava ser estruturada praticamente a partir do zero no que dizia respeito ao pessoal e aos equipamentos. Era imprescindível padronizar os treinamentos, logística e manutenção, adquirir radares, instrumentos de comunicação e criar um serviço de Inteligência. Nem tudo pôde ser feito de imediato por causa da escassez de recursos, mas o relatório colaborou para que a Força Aérea de Israel se tornasse bem mais ativa e consistente, sobretudo quando seus pilotos e respectivos aviões foram divididos em esquadrões. No Esquadrão 101 a maioria era constituída de voluntários americanos. Um de seus pilotos, chamado Wayne Peake, fez um bom trabalho quando derrubou um veloz avião egípcio de reconhecimento, que muitas vezes tinha fotografado as bases

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militares israelenses. O Esquadrão 103 ocupou-se, notadamente, de levar armas e suprimentos para os habitantes próximos do deserto do Neguev. O 106 foi o encarregado de mandar o maior número de pilotos para trazer aviões comprados na Checoslováquia. O Esquadrão Galil recebeu este nome justamente por sua ação na defesa da Galileia, ao norte de Israel. O Esquadrão 69, formado somente por bombardeiros, chegou a atingir o Cairo e a cidade de Rafah. Nesse contexto, teve atuação proeminente o voluntário americano Mitchell “Mike” Flint. Nascido em Kansas City, no Missouri, em 1923, era filho de Harry Flint, condecorado piloto da 1ª Guerra Mundial. Desde adolescente aprendeu com o pai a pilotar e, aos 18 anos de idade, por via natural, ingressou na Aeronáutica americana. Assim como outros voluntários, serviu no Pacífico a bordo do porta-aviões USS Wasp. A exemplo de outros de seus companheiros, foi a revelação do Holocausto o que o impulsionou a lutar por um Estado Judeu. Disse à mãe, para não preocupá-la, que ia assistir aos Jogos Olímpicos de Londres e viajou. Em Israel, Flint voou sem trégua e foi um dos principais combatentes que, incursão após incursão, garantiram ao país a posse do estratégico deserto do Neguev.

Mitchell “Mike” Flint pilotos americanos voluntários em israel, 1948

Senior e Alon tiveram que fazer pousos de emergência na ilha de Rhodes por problemas com os combustíveis. Foram presos pelos ingleses, donos do lugar, e libertados somente duas semanas depois. Seus aparelhos, porém, ali permaneceram confiscados. Em outubro, Modi Alon, comandante do 101, regressava de uma missão de bombardeio quando seu avião sofreu uma pane. Ele ainda tentou aterrissar em Tel Nof, mas foi mal

sucedido. Deu-se a queda e Alon morreu. Ia completar 27 anos de idade naquele mês. Foi substituído no comando do Esquadrão 101, também conhecido como Esquadrão Vermelho, por Syd Cohen. Depois da guerra, Syd regressou à África do Sul, onde se formou em medicina. Radicou-se em Israel, em 1960, tendo servido como médico nas guerras dos Seis Dias e do Yom Kipur. Foi o médico-

esquadrão de caças 101

Em setembro de 1948, seis pilotos, entre os quais se encontravam Boris Senior e Modi Alon, foram à Checoslováquia incumbidos de trazer, com escala na Iugoslávia, seis Spitfires que seriam entregues ao Esquadrão 101. Um deles foi danificado ao aterrissar na Iugoslávia. Os outros cinco prosseguiram rumo a Israel, mas 29

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CINEMATECA DE JERUSALÉM, JUNHO DE 2014, DA ESQUERDA PARA A DIREITA: PILOTO DANY GROSSMAN, PRESIdente DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL MACHAL E SMOKY SIMON, VOLUNTÁRIO EM 1948; PRODUTORA NANCY SPIELBERG E SEU PAI, ARNOLD SPIELBERG; LOU LENART, VOLUNTÁRIO EM 1948, E SUA FILHA, MICHAL

chefe da empresa israelense de aviação comercial El Al. Faleceu em 2011, com 90 anos. Mitchel “Mike” Flint voltou à Califórnia e foi convocado para servir na guerra da Coréia. Ao regressar, ingressou na faculdade de direito e abriu um escritório de advocacia que obteve grande prestígio. Em 2013, quando completou 90 anos de idade, foi alvo de uma bela homenagem em Jerusalém, onde recebeu o grau de major da Força Aérea de Israel. Morreu em maio de 2017.

e depois na Flórida. Morreu em Sarasota, em 2014, com 84 anos. Wayne Peake regressou aos Estados Unidos, onde trabalhou como piloto da Flying Tiger Airlines. Morreu de câncer, com 55 anos, e, de acordo com um pedido que deixou por escrito, seu corpo foi levado para Israel e enterrado com honras militares.

Ao término da Guerra da Independência, Lou Lenart permaneceu em Israel e dedicouse à arriscada missão de resgatar judeus do Iraque. Depois foi para Hollywood, onde trabalhou como produtor de filmes, sendo Águia de Aço o mais conhecido. Voltou para Israel, onde se radicou. Faleceu em 2015, com 94 anos. Milton Rubenfeld, o do guefilte fish, tornou-se um homem de negócios, primeiro no estado de Nova York

Gideon Lichtman voltou para os Estados Unidos, onde alcançou o grau de major da Força Aérea e participou da guerra da Coréia, em 1952. Regressou a Israel em 1960, onde trabalhou como piloto de testes. Estava prestes a voltar para os Estados Unidos, quando Ezer Weizmann chamou-o e disse: “Nós soubemos que os egípcios estão contratando assassinos para eliminar os pilotos americanos que foram voluntários em Israel. É melhor você trocar de nome. Passe a se chamar Rimon (romã, em hebraico). É uma fruta que simboliza a sorte”. Assim, o professor Rimon instalou-se em Miami, onde por décadas lecionou História Contemporânea em escolas secundárias. Ninguém sabia do seu passado. Morreu no dia 11 de março de 2018, com 95 anos. Na oração, o rabino se referiu a seu nome hebraico: Gideon Ben Boaz Halevi. Com o caixão coberto pela bandeira americana, Lichtman foi sepultado no cemitério nacional de Arlington, com honras militares. Se o leitor vier a percorrer a estrada que liga Jerusalém a Tel Aviv, observe que há uma entrada à direita na altura de Beit Shemesh. Entre e seguindo um pouco adiante, encontrará um memorial em homenagem ao Machal, onde estão inscritos os nomes de 119 homens e 4 mulheres. Fique ali por alguns minutos e reverencie esses voluntários que deram sua vida por Israel.

BIBLIOGRAFIA

Gandt, Robert, Angels in the sky, W.W.Norton&Company, 2017. Aloni, Shlomo, Arab-Israeli air wars, Oxford Osprey, 2001. Nordeen, Lon, Fighters over Israel, Orion, 1990. machal, monumento ao voluntários do exterior

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ZEVI GHIVELDER É ESCRITOR E JORNALISTA


DESTAQUE

Judeus britânicos e os desafios do Brexit POR JAIME SPITZCOVSKY

Descrito como O “divórcio mais complexo da história”, o Brexit, saída do Reino Unido da União Europeia, provoca preocupações na comunidade judaica britânica, que, com cerca de 280 mil integrantes, corresponde à segunda maior da Europa, atrás somente da França.

o

Brexit desponta como um dos principais momentos da onda antiglobalização, impulsionada após a crise financeira internacional de 2008/9. Um dos ingredientes a contaminar essa tendência política é o nacionalismo, que, em doses excessivas, estimula antissemitismo e preconceitos contra minorias.

direita no espectro político britânico. O medo de avanço da intolerância leva também integrantes da comunidade judaica do Reino Unido a buscar passaportes de outros países europeus, em função de laços familiares, na busca de garantias de poder continuar a viver sob o guardachuva da União Europeia. Desde junho de 2016, a embaixada alemã em Londres recebeu mais de 3,3 mil pedidos de cidadania de descendentes de judeus perseguidos pelo nazismo. Antes da votação pela saída do Reino Unido, a missão diplomática de Berlim recebia, em média, 50 solicitações por ano.

Também a possibilidade de a crise atual, provocada pelas dificuldades em implementar o resultado do referendo realizado em junho de 2016, desembocar em novas eleições, tira o sono de judeus britânicos. Uma vitória da oposição significaria a chegada ao poder de Jeremy Corbyn, líder do trabalhismo desde 2015 e representante das alas mais esquerdistas do partido, apoiadas em visões antissemitas e alianças com grupos fundamentalistas, como Hezbolá e Hamas.

Os últimos meses, de intricadas negociações e movimentos políticos inéditos, com idas e vindas no diálogo entre Londres e Bruxelas e derrotas históricas da primeira-ministra Theresa May, do Partido Conservador (centro-direita), evidenciam as dificuldades enfrentadas para viabilizar o resultado do referendo de 2016, quando os britânicos, num inesperado placar de 51% a 48%, optaram por abandonar o bloco europeu.

Cerca de 40% dos judeus britânicos considerariam “seriamente emigrar” no caso de uma vitória de Corbyn, apontou pesquisa realizada em setembro passado e divulgada em reportagem do israelense The Jerusalem Post. Se o radicalismo à esquerda preocupa, também provoca temores o avanço do nacionalismo verificado em grupos favoráveis ao Brexit e posicionados mais à

A surpreendente voz das urnas transformou o Reino Unido no primeiro país a formalizar um pedido da saída 31

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DESTAQUE

em março. Mais uma derrota acachapante, embora por diferença menor: 149 votos. Uma das várias tendências, com a aproximação do dia D (29 de março), é Londres e Bruxelas entrarem em entendimento por um adiamento do Brexit, provavelmente para maio e junho, a fim de renegociar os termos acertados em 2018 por Theresa May e representantes da União Europeia.

da União Europeia, resultado de um processo de integração continental iniciado em 1951 e habituado a lidar com uma fila de pretendentes à participação no bloco. Londres, confirmando algumas de suas tendências eurocéticas, optou por um novo rumo, após referendo convocado pelo então primeiroministro e europeísta David Cameron, que viabilizou a votação para aplacar a pressão de grupos antiglobalização, certo de que sua posição, de permanência no bloco, prevaleceria. O caminho a desbravar se descortina bastante tortuoso, devido à amplitude dos vínculos criados entre o Reino Unido e a União Europeia ao longo de décadas de parceria. Desde a adesão britânica ao projeto de integração europeu, em 1973, milhares de leis e regulações do bloco ajudam a modelar a vida dos britânicos, nos planos político, econômico e social. A dificuldade em desfazer o emaranhado se evidenciou nos últimos meses. E, apesar de haver data e hora marcadas para o Brexit, 29 de março às 23h (horário local), o Reino Unido testemunhou o calendário acusar a chegada de meados do mês da separação sem conseguir obter um acordo para organizar o momento histórico. À medida que a indefinição avançava, crescia também a incerteza entre personagens políticos, o mundo econômico, a população britânica, entre outros setores.

A primeira-ministra britânica Theresa May e o presidente da comissão da UE, Jean-Claude Juncker

432 votos contra e 202 a favor, a primeira-ministra amargou a maior derrota (diferença de 230 deputados) registrada na história recente da tradicional democracia britânica. Determinada a administrar a separação, May voltou à carga e submeteu novamente o acordo

As negociações para os termos da separação renderam um compêndio com mais de 500 páginas. Apenas três pilares, no entanto, resumem os principais aspectos abordados. No plano financeiro, fechou-se o pagamento do Reino Unido à União Europeia de 39 bilhões de libras esterlinas, a título de multas por quebra de contratos, indenizações de financiamentos do bloco europeu em solo britânico e outros aspectos. O segundo eixo importante tratou da situação de cidadãos britânicos vivendo em países da União Europeia e de europeus morando no Reino Unido. Segundo o acordo, o status quo se mantém para aqueles que se mudaram até 29 de março de 2018 (ou uma nova data do Brexit). Ou seja, quem já vivia antes do Brexit fora de seu país (entre Reino Unido e União Europeia) continuará desfrutando das condições proporcionadas nos tempos da parceria, ou seja, acesso a serviços de saúde, educação, entre outras facilidades. Quem se mudar de país após o Brexit, do ou para o Reino Unido, terá sua situação migratória definida por acordos bilaterais a serem firmados entre Londres e cada uma das outras 27 nações do bloco continental. O valor do reembolso e o status dos cidadãos não geraram tanta polêmica e resistência quanto o terceiro pilar, principal responsável

Os primeiros meses de 2018 ofereceram vários momentos de um drama político. A 15 de janeiro, o Parlamento britânico rejeitou o acordo costurado, após meses de negociação, entre May e a liderança europeia. Com um placar de 32


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pelas sucessivas derrotas de May no Parlamento. Trata-se da questão da fronteira entre a Irlanda do Norte, integrante do Reino Unido e de maioria protestante, com a Irlanda, república independente, com população majoritariamente católica e integrante da União Europeia. Essa fronteira, com o Brexit, será a única divisa por terra entre o Reino Unido e a União Europeia, já que a Irlanda integra o bloco. Portanto, depois da separação, seria natural a implantação, na área limítrofe, de postos policiais, de imigração e de aduana. Implementar uma “hard border” significaria mudança cardinal em relação à situação atual. Praticamente não há controles na fronteira entre Irlanda e Irlanda do Norte, num desenho típico de fronteiras na Europa ocidental. No entanto, a ideia de colocar postos de controle (a “hard border”) é

O caminho a desbravar se descortina bastante tortuoso, devido à amplitude dos vínculos criados entre o Reino Unido e a União Europeia. rejeitada pela Irlanda, pelo governo regional da Irlanda do Norte, por Theresa May e pela União Europeia. O principal combustível a movimentar a resistência a levantar barreiras físicas na fronteira são os temores de um retorno aos “anos sangrentos”, nome dado ao período entre as décadas de 1960 e de 1990, quando aquela região correspondia ao palco de um dos conflitos mais sangrentos da segunda metade do século 20. Naqueles anos, grupos terroristas da minoria católica da Irlanda do Norte lutavam pela reunificação da ilha, ou seja, pelo fim do domínio britânico na região e queriam reunificação 33

O líder trabalhista Jeremy Corbyn

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DESTAQUE

do partido, representadas por ninguém menos do que o seu atual líder, Jeremy Corbyn.

A Primeira Ministra britânica Theresa May discursando sobre o seu “Plano B” para o Brexit

do território sob o comando de Dublin, capital da Irlanda. Milhares de pessoas morreram nos atentados dos IRA (Exército Republicano Irlandês). Para impedir que os terroristas recebessem dinheiro e armas de aliados que viviam na Irlanda, o governo britânico impôs controles extremamente rígidos na fronteira da Irlanda do Norte. Em 1998, um acordo histórico colocou fim às ondas de violência entre protestantes e católicos na Irlanda do Norte, o que permitiu retirar os controles das áreas limítrofes com a Irlanda. Portanto, reintroduzir controles na fronteira poderia reavivar memórias do passado, minar o clima de reconciliação e trazer de volta a violência. Theresa May e a UE decidiram então que, apesar do Brexit, o Reino Unido permaneceria num espaço econômico comum com o bloco europeu, para que produtos possam continuar circulando livremente pela divisa irlandesa, sem a necessidade de reintroduzir uma “hard border”, com checkpoints e aduana.

O entendimento prevê ainda que a manutenção do Reino Unido na união aduaneira com a União Europeia seja transitório, até 31 de dezembro de 2020, enquanto se busca uma solução definitiva para permitir a Londres romper os antigos laços econômicos com as nações do bloco continental. É exatamente essa arquitetura sobre a fronteira irlandesa que provocou, neste começo de ano, o naufrágio do acordo entre May e a UE. Os defensores do Brexit, favoráveis a romper os antigos laços com o bloco, temem que a manutenção da união aduaneira se transforme de provisória em definitiva, o que manteria o Reino Unido com significativo vínculo econômico com a União Europeia. No tortuoso caminho da separação, o governista Partido Conservador e o Trabalhista, o maior da oposição, registraram turbulências históricas. O trabalhismo testemunhou, em dezembro, a saída de um grupo de deputados, defensores de um novo referendo sobre o Brexit e que protestam contra o antissemitismo crescente nas alas mais esquerdistas 34

No entanto, parecem exíguas as chances de uma votação para desfazer o resultado do referendo de 2016. Lideranças políticas governistas e oposicionistas, ainda que anteriormente contrárias ao divórcio, argumentam que o resultado das urnas precisa ser respeitado e que uma nova votação colocaria em xeque a credibilidade e a estabilidade do tradicional processo democrático britânico. “Brexit é Brexit”, sentenciou May, que, há três anos, fazia campanha para seu país permanecer na União Europeia. O caleidoscópio de posições sobre o Brexit se reflete nos partidos Conservador e Trabalhista, eles próprios divididos entre defensores e opositores da separação, entre radicais e moderados. Corbyn, líder da oposição, sustenta uma posição de “soft Brexit”, ou seja, saída da União Europeia, mas com manutenção de antigos vínculos econômicos. A votação de 23 de junho de 2016 representou uma voz de protesto contra a globalização e seus desequilíbrios, e também contra a União Europeia, cuja existência se baseia em princípios globalizantes, como integração entre países e intensificação de fluxos de pessoas, bens, serviços, informações e capitais. No entanto, o que para muitos eleitores foi um voto de protesto transformou-se num dos maiores desafios para o futuro e a estabilidade do Reino Unido, no século 21. Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim


ANTISSEMITISMO

Um alerta ao mundo civilizado Na Câmara dos Lordes, em Londres, em 13 de setembro de 2018, o Rabino Lorde Jonathan Sacks proferiu o seguinte discurso alertando seus pares, o povo britânico e o mundo sobre os perigo do crescente antissemitismo na Europa e, muito especialmente no seio do Partido Trabalhista britânico:

“Meus Senhores,

Os judeus, seja como religião ou raça ou como o Estado de Israel, são transformados em bode expiatório devido a problemas pelos quais todos os lados são responsáveis.

Sou grato ao Lorde Popat por iniciar este debate e lhes explicarei por que. O maior perigo que qualquer civilização pode enfrentar é quando a mesma sofre de amnésia coletiva. Tendemos a nos esquecer como os pequenos começos podem levar a fins realmente trágicos.

E é assim que começa o caminho para a tragédia. O antissemitismo, ou qualquer outro tipo de ódio, torna-se perigoso quando três coisas acontecem. Primeiro, quando sai das fronteiras da política para um importante partido e sua liderança. Segundo, quando o partido vê que sua popularidade junto ao público não foi prejudicada por isso. E terceiro, quando os que se levantam e protestam são difamados e insultados por assim agirem.

Mil anos de História Judaica na Europa contribuíram com certas palavras ao vocabulário humano: conversão forçada, Inquisição, expulsão, gueto, pogrom, Holocausto. Isso aconteceu porque o ódio não foi contido. Ninguém disse “BASTA!” .

Todos os três fatores existem na Grã-Bretanha, atualmente. Jamais imaginei que veria isso em toda a minha vida.

Meus Senhores, dói-me falar sobre Antissemitismo, o ódio mais antigo do mundo. Mas não posso calar-me! Um dos fatos que mais resiste, na História, é que a maioria dos antissemitas não se julgam antissemitas. “Não odiamos os judeus”, diziam na Idade Média, “apenas sua religião”. “Não odiamos os judeus”, diziam no século 19, “apenas sua raça”. “Não odiamos os judeus”, dizem hoje, “apenas seu Estado-nação”.

É por isso que não posso ficar calado. Pois não somos apenas nós, judeus, que estamos em perigo. Toda a Humanidade também o está.” Rabino Lorde Jonathan Sacks Foi Rabino Chefe das Congregações Hebraicas Unidas da Commonwealth e presidente do Beth Din de 1991 a 2013. Desde 2009, membro da House of Lords. Atua, hoje, como Professor de Pensamento Judaico na New York University e na Yeshiva University e Professor de Direito, Ética e Bíblia no King’s College de Londres.

O antissemitismo é o ódio mais difícil de ser vencido, porque, como um vírus, ele sofre mutações; mas uma coisa continua idêntica. 35

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comunidades

Em busca de justiça para os judeus dos países árabes A questão das compensações para os judeus que tiveram que deixar os países árabes é um dos pontos importantes a serem resolvidos na agenda do conflito árabe-israelense. Comunidades judaicas que existiam no mundo muçulmano, há mais de dois milênios, desapareceram depois que cerca de 900 mil judeus foram forçados a abandonar os países onde viviam, deixando para trás séculos de história e bilhões de dólares em patrimônio.

d

urante décadas o mundo, inclusive o judaico, parecia pouco interessado na saga dos judeus dos países muçulmanos. Somente nos últimos anos surge o interesse, entre pesquisadores e historiadores, sobre o drama vivido pelos judeus orientais. Até então, entre outros fatores, o estudo sobre a magnitude da Shoá havia sobrepujado qualquer outra tragédia. Porém, apesar do recente interesse, são raros, até hoje, os livros ou estudos que tratam do fim da vida judaica em terras muçulmanas, as humilhações, perseguições, pogroms, prisões e torturas sofridas principalmente a partir de 1947, quando a ONU votou a Partilha da Terra de Israel pela Assembleia Geral das Nações Unidas, ou sobre as dificuldades que esses judeus tiveram que enfrentar até refazer sua vida, dispersos pelos quatro cantos do mundo.

violência contra a população judaica. O dia marca o início do fim da vida judaica no Oriente Médio muçulmano. No início de janeiro último, a saga dos judeus orientais e o patrimônio deixado para trás e confiscado pelos governos dos países envolvidos, voltou à agenda oficial de Israel e da mídia. Isso ocorreu após o comunicado, em início de janeiro deste ano de 2019, da ministra Gila Gamliel, da Pasta de Igualdade Social, em Israel, responsável pelo assunto. “Chegou o momento de corrigir a injustiça histórica dos pogroms nos países árabes e devolver o que é seu por direito a centenas de milhares de judeus que perderam suas propriedades”, afirmou a ministra. Após décadas de reivindicações foi concluído um estudo elaborado pelo governo de Israel que servirá de base para o pedido de indenização pelos bens e patrimônios judaicos encampados pelos governos dos vários países da região. Para obter uma avaliação exata do patrimônio pessoal e comunitário deixado para trás, o governo contratou uma empresa de consultoria com ampla experiência na área de contabilidade forense patrimonial. Segundo fontes oficiais, Israel pedirá cerca de US$ 250 bilhões a título de compensação aos governos da Tunísia, Líbia, Marrocos, Iraque, Síria, Egito, Iêmen e Irã.

Em Israel, a primeira cerimônia para lembrar o drama dos judeus orientais foi realizada no dia 30 de novembro de 2014, em Jerusalém, quase 70 anos após o ocorrido. A data escolhida tinha um significado especial, pois foi em 30 de novembro de 1947, um dia após a aprovação da Partilha da Palestina pela ONU, que ocorreram, em vários países árabes, os primeiros de muitos atos de 36


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Beit Lisbona, Damasco, Síria

Segundo a organização Justiça para Judeus dos Países Árabes (em inglês, Justice for Jews from Arab Countries – JJAC), entidade que congrega grupos de diferentes comunidades judaicas, cerca de 856 mil judeus, de dez nações muçulmanas fugiram ou foram expulsos. Estudos do Congresso Judaico Mundial revelam o número de refugiados judeus que deixaram cada país. Na década de 1940, deixaram Áden, então capital do Iêmen, 8 mil; da Argélia, 140 mil; do Egito, 75 mil; do Iraque, 135 mil; do Líbano, 5 mil; da Líbia, 38 mil; do Marrocos, 265 mil; da Síria, 30 mil; da Tunísia, 105 mil; do Iêmen, 55 mil. O êxodo da população judaica manteve-se alto nos anos seguinte e, em 1958, outros 475 mil judeus haviam deixado as terras árabes, continuando o êxodo nos anos seguintes. Até 1968, mais 76 mil e, nos dez anos seguintes, outros 32 mil; até 2001,

7.800; até, 2005, 5.110; e até 2012, 4.315. Estudos indicam que a maioria desses refugiados foi para Israel, cerca de 800 mil, e 56 mil para os Estados Unidos, Itália, França, Brasil e outros países. Para Ashley Perry, consultor político independente e assessor do governo

de Israel – ele foi assessor do ministro das Relações Exteriores Avigdor Liberman entre 2009 e 2015 – esses números podem ter sido maiores. Na época, Perry fez parte da equipe que elaborou a legislação para implantação do dia 30 de novembro, acima mencionado, como data para a homenagem anual aos judeus refugiados dos países árabes. Simultaneamente, o Ministro Liberman liderou uma campanha para que a ONU também incluísse em seu calendário oficial um dia de recordação aos judeus refugiados dos países árabes, comemoração que acontece anualmente em data próxima à da realizada em Israel. Em 2014, o Canadá reconheceu formalmente o status de refugiados para os judeus que emigraram ou foram expulsos dos países árabes, após a independência de Israel.

Ashley Perry

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COMUNIDADES

O assunto das “compensações” não é um consenso no seio da sociedade israelense. Há aqueles que dizem ser esta uma iniciativa para conter as reivindicações dos refugiados palestinos em relação a Israel. Sobre este ponto Perry afirma: “Isto não se trata de uma negociação política ou diplomática. Trata-se de finalmente fazer justiça para os quase um milhão de judeus expulsos de seus lares milenares ao longo do século 20. Este tema tem sido estudado há décadas e agora

Sinagoga de Jobar antes de ser alvo de bombardeio, Síria

Trem de Alepo com judeus rumo à então Palestina, Síria,1944. Acervo do Instituto Morashá de Cultura

há dados e fatos substanciais que fundamentam suas reivindicações”. Sobre o assunto já se manifestou também, em várias ocasiões, o primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu: “Ninguém pode falar sobre o Oriente Médio sem levar em consideração os direitos dos judeus que foram forçados a deixar seus países de origem e suas comunidades, em meio à violência. Todos os crimes cometidos contra essas comunidades judaicas devem ser reconhecidos”.

Não foi por acaso que a notícia se tornou pública antes da divulgação do tão esperado plano de paz norte-americano para a região. A reivindicação de uma compensação para os judeus expulsos dos países muçulmanos, como condição para um acordo de paz regional, baseia-se na legislação israelense de 2010 segundo a qual qualquer tratado de paz com países árabes ou com o Irã está vinculado a um desfecho justo para esta questão. Estudos realizados nos últimos 18 meses revelam que, do total 38

dos US$ 250 bilhões pedidos, entre outros, Israel irá pedir como compensação US$ 35 bilhões à Tunísia e 15 bilhões a Líbia. As compensações obtidas não serão destinadas a famílias individualmente, mas distribuídas pelo governo através de um fundo especial. Todo o processo está sendo coordenado pela ministra para Igualdade Social, Gila Gamliel, juntamente com o Conselho Nacional de Segurança de Israel. Por outro lado, a Autoridade Palestina exige cerca de US$ 100 bilhões a título de compensação pelo patrimônio deixado pelos árabes que viviam no que constitui hoje o Estado de Israel. Os palestinos exigem também o “direito de retorno” a Israel para milhares de refugiados e para seus milhões de descendentes, o que tem sido negado pelos sucessivos governos israelenses. Israel argumenta que, uma vez concluído um acordo de paz, os refugiados palestinos se tornarão cidadãos do Estado palestino segundo termos de um eventual acordo de paz, assim como os refugiados judeus se tornaram cidadãos israelenses, automaticamente. Vale ressaltar que, embora centenas de milhares de judeus tenham chegado a Israel totalmente destituídos, eles jamais reivindicaram o status formal de refugiados junto à comunidade internacional. Durante os primeiros anos do recém-criado Estado, o então primeiro-ministro David Ben-Gurion costumava dizer que não gostaria de ver os judeus que voltavam ao seu lar histórico classificados como “refugiados”. Ele acreditava que,


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enquanto lutava pelo seu direito de ser um estado legítimo e soberano, Israel deveria também ser capaz de cuidar de seu próprio povo. Israel anunciou sua política externa em relação ao êxodo dos judeus dos países árabes uma semana após a dramática decisão iraquiana de expropriar os bens dos judeus que deixavam o país. Em março de 1950, a Lei de Desnaturalização iraquiana permitia aos judeus emigrarem em um ano sob a condição de abrir mão de sua cidadania. O então primeiro-ministro Tawfic alSuweidi esperava que apenas cerca de 7 mil deixassem o país, mas, surpreendentemente, aproximadamente 100 mil optaram por sair. Em março de 1951, o Iraque aprovou a lei que congelou os bens de todos os judeus desnaturalizados. Uma semana depois, o então ministro das Relações Exteriores de Israel, Moshe Sharett, fez um discurso na Knesset, informando que o governo iraquiano começara a “contabilizar” os seus refugiados

Membros da comunidade judaica de Beirute, Líbano, 1950. Acervo do Instituto Morashá de Cultura

Hechal da Sinagoga Maguen Avraham, Beirute, Líbano,1982. Acervo do Instituto Morashá de Cultura

vis-à-vis o governo de Israel, forçando o país a vincular esta contabilização com uma já existente – o número de refugiados árabes da Guerra de Independência. Ele afirmou na ocasião: “Nós devemos considerar o valor das propriedades judaicas que foram congeladas no Iraque, quando calcularmos a compensação que deveremos pagar aos árabes que abandonaram suas propriedades em Israel”. Este princípio tem sido um elemento chave na política

Sinagoga Maguen Avraham. Acervo do Instituto Morashá de Cultura

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COMUNIDADES

Tempos difíceis

Professor com suas alunas, Alliance Israélite, Beirute, Líbano,1940. Acervo do Instituto Morashá de Cultura

israelense, desde então. Em julho de 1948 Sharett informou aos diplomatas que o tema do confisco dos bens judaicos deveria ser incluído em qualquer acordo de paz referente à questão dos refugiados árabes, em qualquer época. Beit Mourad Farhi, hoje Beit Dahdah, Damasco, Síria

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A vida das comunidades judaicas nos países árabes, muitas datando mais de dois mil anos, não foi fácil, apesar de muitos acreditarem que era um “mar de rosas”. Viviam bem se comparado à vida dos judeus em países cristãos. A verdade é que sempre passavam por crises maiores ou menores, de acordo com os interesses e caprichos dos governantes. A situação dos judeus nesses países agravou-se com o aumento da presença judaica em Eretz Israel e a luta, cada vez maior, dos judeus pela criação de um lar nacional judaico na terra de seus antepassados, a partir do final do século 19 e início do 20. Antes mesmo da Partilha da Palestina pelas Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947, que determinou a criação de um estado judeu e um árabe na região, o Comitê Político


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da Liga Árabe elaborou leis para “administrar o status dos judeus“ que viviam em seus territórios. Determinou que suas contas bancárias fossem congeladas e usadas para financiar a resistência ao que definiu como “ambições sionistas na Palestina”. Judeus suspeitos de ativismo sionista seriam detidos como prisioneiros políticos e teriam seus bens confiscados. Essas e outras leis sancionadas pelos vários governos, bem como a repressão e a onda de violência, levaram à partida em massa de membros das milenares comunidades judaicas em um processo que pode ser definido tanto de expulsão quanto de êxodo, que se manteve a partir da década de 1940 até o final dos anos 1970. Logo após a declaração de independência de Israel, em 1948, o recém-criado estado recebeu milhares de judeus – sobreviventes do Holocausto da Europa e, praticamente, as comunidades inteiras da Líbia, do Iêmen e do Iraque. O novo país enfrentava, além da guerra com os países vizinhos que haviam jurado sua destruição, o desafio de oferecer moradia e trabalho aos novos imigrantes. Campos de refugiados com centenas e centenas de barracas (ma’abarot) serviram de moradia temporária. Empregos foram criados e ministrados cursos de hebraico, enquanto o sistema educacional adequava-se à demanda crescente dos recém-chegados. O fluxo migratório oriundo dos países independentes do Norte da África, Marrocos e Tunísia estendeu-se ao longo dos anos 1950 e 1960. Segundo a lei internacional “refugiado é um indivíduo que sente

Carteira de trabalho de um imigrante vindo dos países árabes, Israel. Acervo do Instituto Morashá de Cultura

o medo justificado de ser perseguido por razões de raça e religião”. O Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas confirmou em inúmeras ocasiões que a organização considera os judeus fugidos das perseguições em países árabes como refugiados e estão sob a sua proteção. Em todos os acordos internacionais multilaterais e bilaterais (Resolução

242 da ONU, Conferência de Madri, Acordos de Paz Israel-Egito, Mapa do Caminho para a Paz) há uma referência geral aos “refugiados” e incluem o reconhecimento de todos os refugiados do Oriente Médio da mesma forma – sejam judeus ou árabes. Para Israel e para a Diáspora, o reconhecimento dos direitos dos judeus dos países árabes é um chamado à justiça e à divulgação da verdade histórica, na busca da paz para o Oriente Médio, uma paz na qual todos os refugiados tenham os mesmos direitos e o mesmo tratamento sob a lei internacional. Infelizmente, a violação dos direitos humanos das massas judaicas nos países árabes, a destruição de antigas comunidades, a expropriação de seus bens e propriedades, além do deslocamento e expulsão de seus lares, ao longo de milênios, nunca foram abordados da forma adequada pelas Nações Unidas e pela comunidade internacional.

família iemenita, no deserto, a caminho de um acampamento interino criado pelo joint. aden, iêmen

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Stan Lee, o criador de Super-heróis Escritor e editor, filho de judeus romenos, Stan Lee morreu aos 95 anos em novembro de 2018, após uma vida profissional muito rica, que fez a alegria de crianças e adultos com os inesquecíveis super-heróis mais famosos do mundo – HomemAranha, Thor, X-Men, Incrível Hulk, Demolidor, Homem de Ferro, Homem-Formiga, Pantera Negra e Quarteto Fantástico.

Q

ualquer fã de histórias em quadrinhos sabe quem foi Stan Lee. Tudo começou quando, ao lado de Jack Kirby e Steve Ditko, ele criou o Universo Marvel, o que fez com que seu nome acabasse sendo sinônimo da Marvel Comics – ao ponto de ter aparecido em vários filmes da franquia interpretando a si mesmo. Sua influência na cultura norte-americana é inegável, tendo procurado mudar os estereótipos de super-heróis vigentes até então, dando “permissão” às revistas norteamericanas em quadrinhos de terem um caráter “mais judaico”.

nas palavras de Stan, “uma senhora judia simpática e um tanto antiquada”. A Grande Depressão de 1929 atingiu em cheio os Lieber, assim como a maior parte da sociedade norte-americana, e Stan vivenciou a luta diária dos pais tentando suprir as necessidades da família. Ele sempre afirmou que seus pais lhe transmitiram princípios judaicos cuja essência, em seu entender, resumia-se em agir de forma justa e correta em relação aos outros. “Se os seres humanos vivessem de acordo com esta premissa, teríamos o Paraíso na Terra. Um indivíduo tem o direito de não gostar de alguém, mas não pela cor de sua pele ou por sua religião, e sim por não gostar de suas características pessoais. A situação se complica quando o indivíduo passa a não gostar de determinados grupos”. Essa visão iria permear muitas de suas obras.

Sua vida e carreira Stan Lee, ou Stanley Martin Lieber, nasceu em 28 de dezembro de 1922, em Nova York. Era o primeiro filho dos judeus emigrados da Roménia, Celia e Jack Lieber. Seu irmão Larry nasceu em 1931. Ele tambem foi ilustrador e escritor de quadrinhos, que ficou conhecido como o co-criador dos super-heróis Homem de Ferro, Thor e Homem-Formiga.

Em toda a sua infância Stan Lee foi um ávido leitor, acalentando o desejo de, um dia, ser escritor. Em 1939, quando tinha 17 anos e terminara o Ensino Médio, ele consegue seu primeiro emprego, na Timely Comics, uma editora de revistas em quadrinhos que, posteriormente, tornar-se-ia a Marvel Comics. Na época, foi contratado por ser parente de um dos donos da Timely.

O pai, Jack, trabalhava em uma confecção fazendo moldes e amava livros de aventura. Sua mãe, Celia, era, 42


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Começou como assistente de escritório, servindo café e lanches. Mas logo começou a ter outras funções. Se, numa história em quadrinhos, faltasse algum diálogo e todos os escritores estivessem ocupados, era Stan quem fazia as legendas em branco com uma de suas ideias geniais. E, a cada dia, ele enfronhava-se mais, galgando espaços na Timely Comics. Uma peculiaridade sobre sua arte: ele gostava de enfatizar que nunca escrevia visando especificamente o público leitor infantil. O máximo que poderia acontecer, a seu ver, seria se as crianças, por não entenderem uma palavra, fossem motivadas a buscar no dicionário, aprendendo, assim, uma palavra nova.

ultrapatriota. Um personagem que inspirasse a América. Joe Simon e Jack Kirby criaram o Capitão América. Um super-soldado, muito patriota, cujo uniforme tinha as cores da bandeira americana. O primeiro número da revista do Capitão América, lançada em março de 1941, vendeu mais de um

A 2ª Guerra já devastava a Europa, mas os Estados Unidos ainda não haviam entrado na guerra quando a Timely decidiu criar um super-herói

milhão de exemplares. Mostrava o personagem invadindo o quartelgeneral nazista e dando um soco no rosto de Hitler. A estreia de Stanley Martin Lieber como escritor aconteceu com o lançamento do terceiro número da revista, naquele mesmo ano de 1941. Ele escreveu uma história de duas páginas intitulada The Traitor’s Revenge (Vingança do Traidor) e assinou com o pseudônimo Stan Lee, nome que, mais tarde, ele assumiria, legalmente. Nessa edição aparecia, mais uma vez, na capa, a imagem do super-herói socando o rosto do ditador nazista. Isso enfureceu setores pró-Hitler, fazendo com que a Timely passasse a receber ameaças de morte. Em 1942, com a saída do editorinterino da empresa, Stan assumiu a função. No mesmo ano, alistou-se

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no Exército e serviu no Corpo de Sinaleiros, estacionado nos EUA. Lá ele redigia manuais e roteiros de filmes de treinamento, com um grupo de redatores em que constavam nomes como Frank Capra, anos mais tarde vencedor do Oscar, e Theodor Seuss Geisel que se assinava Dr. Seuss. Também desenhava cartazes. Com o final da guerra, em 1945, Stan retornou à Timely, onde ocupou durante décadas o cargo de editor. Em 1947 casou-se com Joan Bocock e viveram juntos durante 69 anos, até o falecimento dela em 2017. O casal adotou duas crianças – Joan Celia e Jan, que morreu na infância. Com o término da 2ª Guerra Mundial, as revistas em quadrinhos viram-se diante de seu ponto de inflexão. O público achava que os americanos não necessitavam mais de super-heróis... Com isso, a indústria dos quadrinhos foi, aos poucos, voltando ao seu ponto

de partida, isto é, antes da criação dos super-heróis. Durante as décadas de 1940 e 1950, Lee criou várias séries de quadrinhos, entre as quais, Nelly, the Nurse (Nelly, a Enfermeira) e Eddie of Hollywood (Eddie de Hollywood), assinando seu trabalho nos comic books como Stan, The Man (Stan, o Homem). Ele explicava sua atitude dizendo: “Eu sentia que, algum dia, escreveria a grande história americana e não queria usar meu verdadeiro nome naqueles

de pé, stan lee, editor da marvel comics trabalhando com o desenhista John Romita em uma revista do homem-aranha. n. york, 1976

‘quadrinhos bobos’ ”. Sua grande aspiração era tornar-se um renomado escritor de romances e peças teatrais, roteirista e produtor de filmes. Demorou algum tempo até que ele próprio percebesse e apreciasse o valor de seu trabalho. Em uma entrevista ao Chicago Tribune, em abril de 2014, disse: “Eu costumava pensar que o que fazia não era muito importante. Outros estavam construindo pontes e envolvendo-se em pesquisas médicas, e eu escrevia histórias sobre pessoas fictícias que faziam coisas extraordinárias, loucas, usando fantasias. Mas, acredito que acabei percebendo que o entretenimento tinha seu valor”.

Enfrentando a concorrência Em 1960, a editora DC Comics, principal concorrente da Marvel – como passara a se chamar a Timely Comics – lançou a Justice League of America, Liga da Justiça Americana. A DC Comics juntara o grupo de super-heróis da editora em uma “equipe”. Os sete personagens iniciais eram Aquaman, Batman, Flash, Lanterna Verde, Caçador de Marte, Super-Homem e Mulher Maravilha. Seu sucesso foi estrondoso. A Marvel, então, incumbe Lee de criar uma série capaz de competir com a Liga da Justiça. 44


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Assim, em 1961, Stan Lee e Jacky Kirby criaram o Quarteto Fantástico (The Fantastic Four), que ultrapassou totalmente qualquer expectativa do que esperar de uma série de histórias em quadrinhos sobre super-heróis. O Quarteto é formado por quatro astronautas que ganham superpoderes, após um incidente cósmico, que brigavam entre si e tinham problemas românticos e emocionais. O sucesso de público do Quarteto Fantástico levou a Marvel a criar vários outros super-heróis. A parceria Lee-Kirby deu origem a personagens como o Incrível Hulk, o Homem de Ferro (Ironman), Thor, o Surfista Dourado e X-Men. Com o ilustrador e escritor Steve Ditko, Lee criou o HomemAranha e o Dr. Estranho; com o cartunista Bill Everett criou o Demolidor (Daredevil). Esses personagens transformaram a Marvel de uma pequena empresa à Nº 1 do mundo, inicialmente como editora de revistas em quadrinhos e, posteriormente, em gigante do universo multimídia. Quando em 1962 foi lançado o Homem-Aranha, o personagem se tornou um ícone da moderna cultura popular. Spiderman era um adolescente que conseguia “grudar-se” nas paredes e tetos como uma aranha. Um herói que não era apenas forte, mas também inteligente. O Homem-Aranha luta consigo mesmo para conseguir suportar o fardo de ser um herói.

O brainstorming ou tempestade de ideias é uma atividade desenvolvida para explorar a potencialidade criativa de um indivíduo ou de um grupo - criatividade em equipe - colocando-a a serviço de objetivos pré-determinados.

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quarteto fantástico

“Com um grande poder vem uma grande responsabilidade” é o famoso lema do personagem. Lee e Kirby desenvolveram uma parceria que se tornou conhecida como o Método Marvel. Este processo consistia em fazerem um “brainstorming1” sobre um tema com um ilustrador e, em seguida, escrever a sinopse daquelas ideias. Depois era a vez do artista fazer os desenhos, que então eram completados por Lee com balões e legendas. Com a fama alcançada por Stan Lee, aquele trabalho em conjunto geralmente terminava com uma disputa pelo crédito de autoria. Alguns de seus colaboradores o acusavam de não registrar 45

Jack Kirby

adequadamente sua contribuição. Ao longo dos anos, houve muitas versões sobre o que Lee realmente criara. Ele e Ditko, por exemplo, ABRIL 2019


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envolveram-se em disputas judiciais que terminaram tendo os dois recebido o crédito nos filmes e programas de televisão do HomemAranha. Após sua morte, em 1994, o espólio de Jack Kirby processou Lee por não dar ao falecido os créditos devidos. A disputa foi resolvida apenas em 2014 e, desde então, os nomes de ambos passaram a aparecer nos créditos das várias versões dos roteiros que escreveram juntos. Entretanto, ninguém nega que Stan Lee tenha revolucionado o universo das histórias em quadrinhos, pois, até então, os heróis eram perfeitos. Ele é considerado o responsável pela chamada Silver Age of Comic Books, a era prateada dos quadrinhos. Uma característica singular de seus heróis é a combinação de superpoderes com um senso de humanidade. Ele queria criar super-heróis com personalidade, problemas e questionamentos, e não apenas poder. Seus heróis são mais complexos, possuem falhas, emoções,

inseguranças, lutas e são falíveis. A maioria tem empregos diários, alguns enfrentam bullying, outros têm acne ou não conseguem arranjar namorada ou se sustentar. Não são perfeitos, como são o Super-Homem, Batman e Capitão América. Falíveis e complexos, os super-heróis de Lee se parecem mais com pessoas comuns. O Professor Charles Xavier (Professor X), por exemplo, da série X-Men, é um personagem paraplégico, porém com um grande poder de telepatia. O Demolidor é um advogado cego, o Homem-Aranha é um adolescente tímido, órfão, que tem que lidar com alergias e problemas em seus relacionamentos com garotas. “Uma das coisas que procuramos demonstrar é que ninguém é totalmente bom ou totalmente mau”, Lee escreveu em uma coluna da revista da Marvel de março de 1999. “Até mesmo um super vilão de 46

segunda linha pode ter um traço que o redime, da mesma forma que qualquer herói grandalhão pode ter seus medos”. Lee escreveu, fez a direção de arte e editou a maioria das séries da Marvel e suas tirinhas em jornais. Escreveu, também, uma coluna mensal sobre quadrinhos, Stan’s Soapbox, que ele assinava com sua clássica “marca registrada”, Excelsior! .

Stan Lee e a Marvel A Marvel continuou a prosperar e, em 1972, Lee se torna editor do grupo. Posteriormente se tornaria seu Presidente Emérito. Atuava ativamente na promoção da empresa. Mudou-se para Los Angeles e, em 1980, abriu um estúdio de animação e empenhou-se em levar os personagens da editora às telas de cinema e à televisão.


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Em 1998, durante o boom da tecnologia, Lee e Peter Paul abriram uma empresa de internet – a Stan Lee Media. Embarcaram em uma nova empreitada visando “unir” tiras de quadrinhos com internet. Em 2000, a empresa fechou as portas, após acumular fracassos. A empresa perdeu capital e foi alvo de uma investigação para analisar as compras e vendas de ações feitas por Peter Paul e Stephen Gordon, diretor da empresa. Peter Paul acabou preso por fraude. A empresa faliu e Lee afastou-se desses negócios que acabaram manchando seu nome. Em 2001, abriu uma empresa de produção de mídia – a POW! Entertainment – abreviatura de Purveyors of Wonder! (Provedores de Deslumbramento). Produziam reality shows e programas variados para televisão e filmes, além de jogos para celulares. No ano seguinte, publicou sua autobiografia: Excelsior! A Divertida Vida de Stan Lee, além de ter escrito outros livros sobre quadrinhos ao longo de décadas.

Em 2012, foi coautor de Romeo and Juliet: The War (Romeu e Julieta: a Guerra), incluída na lista de best-sellers do The New York Times, ano em que foi lançado no Youtube o canal Stan Lee’s World of Heroes. Em 2016, foi a vez da novela gráfica digital G-d Woke at Comic-Con (D’us acordou na feira Comic-Com – uma convenção

Em novembro de 2002 processou a Marvel por não ter recebido nada pelos lucros com o primeiro filme do Homem-Aranha. O valor da ação: US$ 10 milhões. Em 2005, ele ganha a causa. Em 2008 recebeu a Medalha Nacional das Artes, concedida pelo então presidente americano, George W. Bush. Dois anos depois, o History Channel lançou a série Superhumans, criada por ele, mostrando histórias de pessoas com habilidades diferenciadas. Suas novelas gráficas também agradaram o grande público. Blockbusters - livros ou filmes que são um sucesso de vendas.

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lee fazendo pose com seus personagens em evento da hasbro,2017

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multigênero de entretenimento realizada anualmente em San Diego, Califórnia).

Televisão e cinema Muito antes de que os personagens que criou para a Marvel chegassem às telas de cinema, eles fizeram sucesso na televisão. De 1967 a 1970 a emissora de TV americana ABC levou ao ar uma série do HomemAranha, e a CBS uma com o Incrível Hulk, de 1977 a 1982. Já no século 21, a Marvel lançou uma série de filmes com personagens criados por ele ou em coautoria com outros escritores, como X-Men (2000) e Homem-Aranha (2002), além de franquias dos chamados blockbusters2, que renderam bilhões de dólares em todo o mundo. O Demolidor (2003), Hulk (2003) e Homem de Ferro (2008) também chegaram ao cinema a partir do ano 2000. Em 2009, a Walt Disney Co. comprou a Marvel Entertainment por US$4 bilhões. Esta aquisição somou mais de 5 mil personagens ao portfólio da Disney, que também pagou US$ 2,5 milhões por 10% das ações da empresa de Lee - POW! Entertainment Inc. Após a aquisição ABRIL 2019


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pela Disney, vários filmes foram lançados, entre os quais, Thor (2011), Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), Os Vingadores (The Avengers) (2012) e Homem Formiga (2015). Lee apareceu em quase todos os filmes lançados pela Marvel, tradição que se manteve após a venda para a Disney. A nova proprietária entendeu que os fãs adoravam ver suas breves aparições. Em 2018, o filme da Marvel, Os Vingadores: Guerra Infinita, foi o sexto da Marvel Cinematic Universe a faturar mais de US$ 1 bilhão. Lee viveu tempo suficiente para ver o mundo que ele criou se transformar em uma multibilionária indústria multimídia que lançou inúmeros blockbusters baseados em seus personagens. Porém, apesar do imenso sucesso, Stan Lee não ficou bilionário, pois, apesar de ter criado vários personagens de sucesso e ter coparticipado na criação de tantos outros, não tinha direitos autorais sobre nenhum deles e jamais recebeu royalties por eles.

com sua esposa, joan lee

Influência judaica Os judeus tiveram uma participação importante no nascimento da indústria de revistas em quadrinhos. Devido ao antissemitismo vigente, à época, os escritores, ilustradores e desenhistas judeus tinham dificuldade de encontrar emprego em setores prestigiados, como a publicidade ou os veículos de mídia. Por falta de opção, voltaramse às editoras de revistas em quadrinhos. Artistas e escritores judeus acabaram por dominar esta indústria e Stan Lee foi um pioneiro entre eles.

A maioria dos super-heróis mais amados nas revistas em quadrinhos foram criados por judeus. Esses escritores e artistas sabiam o que suas famílias estavam vivendo na Europa, nos anos de 1930 e 1940. Eles criaram super-heróis que aspiravam por justiça e lutavam contra o mal. Inúmeras capas das revistas do Capitão América, como vimos acima, traziam imagens em que ele desferia socos em Hitler. Nos trabalhos de Lee, seus personagens funcionavam como metáforas para as vítimas do antissemitismo e do racismo, assim como os perseguidos mutantes da série X-Men. A partir de 1972, quando se tornou editor da Marvel Comics, passou a usar sua coluna Stan’s Soapbox para alertar sobre a importância da inclusão e para criticar o racismo e o antissemitismo. Alguns de seus personagens possuem um explícito background judaico, entre os quais, A Coisa - Ben Grimm, do Quarteto Fantástico; o psiquiatra Dr. Samson, que tentou curar o Hulk, fala sobre o tempo que passou em uma ieshivá. “Quando se pensa sobre isso”, disse certa vez Lee, “o Incrível Hulk é um Golem”. Talvez Hulk, como os judeus, finalmente tenha encontrado segurança no Estado Judeu. Uma revista de 1981 o mostra viajando para Israel a bordo de um navio cargueiro chamado A Estrela de David. A série X-Men, por exemplo, mescla elementos típicos de histórias de heróis com outros, como o preconceito de pessoas comuns contra tudo o que é percebido como “diferente”.

o ator Robert Downey Jr., com atores de os vingadores: guerra infinita, na première, hollywood

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Nas aventuras dos X-Men os protagonistas são mutantes,


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seres humanos que, a partir de mutações genéticas, adquirem habilidades extraordinárias. Stan Lee queria mostrar os perigos que o mundo corre quando se aceitam preconceitos como a discriminação de “superior” e “inferior” dentro da própria raça humana. Kitty Pryde, personagem da série X –Men, usava uma corrente com uma Estrela de David (Maguen David). Através do personagem Magneto, o anti-herói da série, mutante sobrevivente do Holocausto, são feitas alusões diretas à Shoá. Magneto é um sobrevivente militante do Holocausto cujas experiências em um campo de concentração despertaram em seu coração forte fúria ao ponto de acabar em torná-lo o arqui-inimigo dos X-Men. Em um momento, durante um episódio da série de 1992, X-Men: The Animated Series, Magneto chega a usar o lema sobre o Holocausto: “Nunca mais”. Nos quadrinhos, o anti-herói busca rotineiramente estabelecer uma nação mutante, que seria um paralelo ao Estado de Israel, nos dias atuais. Em uma edição de 2005, a história de Wolverine, outro mutante da série, acontece no campo de concentração de Sobibor. Lee foi um dos primeiros a criar super-heróis afro-americanos, como o Pantera Negra. Em uma entrevista concedida dois anos antes de sua morte, explicou que trabalhou conscientemente para subverter os estereótipos vigentes de heróis. Ao criar o Pantera Negra, em 1966 (meses antes de ser formado o partido político com o mesmo nome), queria criar um herói negro. “Muitos bons homens aqui na América não são brancos. É preciso reconhecer que devemos incluí-los

Stan Lee na première de os vingadores, 2012

em tudo que se faça”. Pantera Negra quebrou uma série de estereótipos. O herói era forte e inteligente, assim como cientista chefe de Wakanda – uma nação africana caracterizada como um dos países tecnologicamente mais avançados do mundo. As primeiras exibições do filme Pantera Negra estão entre as maiores bilheterias de cinemas de 2018. Stan Lee sempre gostou de falar sobre seus personagens. Sobre o Homem-Aranha, disse certa vez: “Um dos fatos mais importantes sobre ele é que seu corpo está totalmente coberto por seu uniforme... Assim, um garoto negro, latino ou asiático, pode ser o Homem-Aranha, sem importar a cor de sua pele”. O fato de hoje ser muito comum ler e assistir histórias sobre heróis negros ou judeus deve-se, em 49

grande parte, a ele. Apesar de nunca ter parado de trabalhar, nos últimos anos um fato o entristecia: a deterioração de sua visão, que dificultava o que mais gostava: a leitura de histórias em quadrinhos. Stan Lee deixou este mundo aos 95 anos em 12 de novembro de 2018, em Nova York, sendo homenageado por celebridades do mundo inteiro.

BIBLIOGRAFIA

Lee, Stan; David, Peter; Doran, Colleen; Amazing Fantastic Incredible: A Marvelous Memoir eBook Kindle Stan Lee, Marvel Comics Mastermind, Dies at 95, artigo de Joshua Rivera, revista Vanity Fair, 12 novembro 2018 Stan Lee, creator of iconic Marvel comics superheroes, is dead at 95, artigo publicado no JTA, 12 novembro 2018 A universe of flawed heroes: Stan Lee was ahead of his time, artigo de Ted Anthony, Times of Israel, 13 novembro 2018 ABRIL 2019


ISRAEL

Museu do Palmach, visita obrigatória QUEM SE INTERESSA PELA HISTÓRIA DA CRIAÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL NÃO PODE DEIXAR DE VISITAR ESTE MUSEU, LOCALIZADO EM RAMAT AVIV, SUBÚRBIO DE TEL AVIV, QUE CELEBRA A CONTRIBUIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO PARA O SURGIMENTO DO ESTADO JUDEU.

é

integrar ao movimento), Haim Bar-Lev, Uzi Narkiss e Ezer Weizman – personalidades que, posteriormente, ocupariam os mais altos cargos no Estado-Maior e na política nacional.

“Palmach” é um acrônimo para Plugot Hamahatz, que significa força de ataque. Criado em 1941, foi a força de combate da organização de defesa underground, Haganá, anterior à criação do Estado. Era formado por jovens determinados e destemidos, prontos a dar a vida pela realização de um sonho acalentado pelos judeus durante 2000 anos, o estabelecimento de uma nação judaica em Eretz Israel, terra de nossos antepassados. A lista de seus membros inclui Yitzhak Sadeh, seu primeiro comandante, Yigal Allon, Moshe Dayan, Yitzhak Rabin (ele foi um dos primeiros a se

A Palmach Generation Association considera sua obrigação homenagear seus valentes combatentes que perderam a vida pela criação do Estado e transmitir seu legado às gerações futuras.

comum dizer-se que em Israel há mais museus per capita do que em qualquer outro país do mundo. São mais de 200 espalhados de Norte a Sul. Inaugurado em 2000, o Museu do Palmach impressiona os visitantes tanto por sua arquitetura quanto pela forma inovadora de contar a história do grupo de combate da Haganá, responsável por algumas das mais importantes operações nos anos de luta pelo estabelecimento do Estado de Israel

No início da década de 1990, os arquitetos Zvi Hecker e Rafi Segal foram convidados pela Palmach Generation Association a criar e executar o projeto do Museu. Um dos importantes objetivos das atividades dessa Associação sempre foi celebrar e perpetuar a memória e as histórias de vida dos 1.187 combatentes do Palmach, mortos em ação durante a campanha pela criação do Estado de Israel e a imediatamente subsequente Guerra da Independência.

O projeto levou 10 anos para ser concluído. Ao término da construção, o Museu passou para a jurisdição do Ministério da Defesa, sendo atualmente administrado pelo Departamento de Museus desta Pasta. 50


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Museu do Palmach, projetado pelos arquitetos Zvi Hecker e Rafi Segal

desejava trabalhar para se manter e representava um novo israelense, um indivíduo preocupado em ser um modelo para os mais jovens”... Suas unidades lançavam ataques preventivos em território sírio e libanês, frequentemente enviando seus integrantes que eram fluentes em árabe a esses territórios, vestidos como árabes, para sabotar e explorar seus alvos.

A força de ataque O Palmach foi criado em maio de 1941, com o objetivo de defender a Terra de Israel de qualquer ataque vindo das Forças do Eixo. Temia-se uma invasão da então Palestina pela Alemanha nazista. O grupo era composto por membros das forças regulares de combate da Haganá, o exército não-oficial da Yishuv durante o Mandato Britânico da Palestina. Consistia inicialmente de nove unidades – uma em Jerusalém e oito na Galileia (três no Norte, duas no Centro e uma no Sul). Em pouco tempo passaria para 12 unidades. Defendia os mesmos valores do movimento kibutziano: responsabilidade mútua, ajuda ao próximo, sacrifício e contribuição em prol do bem maior. As bases do Palmach situavamse em kibutzim, sendo os seus integrantes responsáveis por tarefas

SELO COMEMORATIVO EM HOMENAGEM à organização CLANDESTINa

agrícolas bem como exercícios de treinamento militar. Essa estrutura social era considerada como o âmago do sabra, o nativo de Israel. Sobre o movimento, disse certa vez Itzhak Rabin: “O modo de vida do Palmach refletiu o espírito de uma geração de voluntários sabras. Uma geração que 51

Em novembro de 1947, o Palmach já tinha 5 mil membros e foi de importância fundamental na luta para o estabelecimento do futuro Estado de Israel, desempenhando um papel primordial na Guerra da Independência. Em 15 de maio de 1948, logo após a saída dos britânicos e um dia depois da criação do Estado de Israel, os exércitos regulares do Egito, Jordânia, Síria, Líbano e Iraque, conjuntamente, atacaram o país. Israel se viu forçado ABRIL 2019


ISRAEL

a lutar, defendendo a soberania que acabara de reconquistar em sua pátria ancestral. A superioridade dos exércitos árabes era inegável, tanto em armamentos quanto em forças de combate. Um dos primeiros atos do recém-criado Estado foi a unificação de todas as forças de combate judaicas, dando origem às Forças de Defesa de Israel (FDI), Tzvá Haganá le-Israel. Unidades de comando do Palmach integraram a Haganá, a organização paramilitar judaico-sionista durante o Mandato Britânico da Palestina, entre 1920 e 1948, e acabaram por se tornar o núcleo das Forças Armadas de Israel.

Yitzhak Rabin, jovem comandante do Palmach, em missão de reconhecimento no Neguev, com Ben-Gurion e yIgal Allon. Maio de 1949

A Guerra da Independência foi o ápice da atividade do Palmach. Das 12 brigadas da Haganá, três eram brigadas do Palmach, consideradas a “ponta de lança” durante a Guerra e da criação das FDI.

O MUSEU Desde sua inauguração, o Museu tem sido elogiado por renomados arquitetos pela integração de seu design à paisagem e à topografia da área, além de destacar a forma criativa e inovadora de relatar esse capítulo da história de Israel. A maior parte de sua construção é subterrânea, o que faz da visita ao local uma experiência singular. Os muros externos circundam um pátio central e do ponto mais alto da área externa o mar se abre diante dos olhos dos visitantes. No interior, além das salas de exposição propriamente ditas, possui um auditório para 400 pessoas, um centro de juventude, uma lanchonete e escritórios administrativos.

yItzhak Rabin, 1948-1949

história dos 1.187 membros mortos em operações desde a sua criação. Não há painéis ou documentos expostos em totens protegidos. Apenas imagens tridimensionais, filmes e muitos efeitos especiais. Diferentemente de outros museus que através de seu acervo contam a história de forma cronológica, o Museu do Palmach narra a trajetória do movimento através das histórias de seus membros e de suas unidades, desde a sua criação até o final da Guerra da Independência.

FOTOS ANTIGAS MOSTRAM MEMBROS DO PALMACH EM ATIVIDADE

O Museu do Palmach faz os visitantes conhecerem a vida e 52


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A Palmach House, como é mais conhecida, possui vários setores – o Museu propriamente dito, a Galeria de Fotografias, o Arquivo e a Biblioteca, que estão localizados no 2º andar. O Memorial em homenagem aos membros mortos em combate está ao lado da biblioteca e ali se inicia o tour guiado que tem a duração de 90 minutos. A Sala Memorial possui 1.187 gavetas, cada uma dedicada a um dos combatentes mortos entre 1941 e 1949. Em cada gaveta, a vida de um deles, detalhes, fotografias, cartas e outros materiais. No andar acima, a sede da Palmach Generation Association. No lado externo, um teatro ao ar livre e, no pátio, uma escultura do símbolo do Palmach criada por Gideon Gretz, um de seus integrantes. Ao longo dos anos muitos filmes foram produzidos contando a história dessa unidade de combate. Mais de 20 foram produzidos pela Ohalei Palmach Association e podem ser vistos ou comprados no Museu. A Galeria de Fotografias conta com mais de 30 mil fotos dos diferentes períodos – fotos que contam a história de seus batalhões, líderes, unidades especiais, combates, operações de imigração ilegal, entre outros. O arquivo contém uma ampla coleção de depoimentos e testemunhos dos integrantes, além de coleções particulares doadas por familiares de combatentes. A principal exposição está localizada na parte subterrânea do edifício e ocupa várias salas. Ao lado do memorial está uma sala que reconstrói a Rua Herzl, em Tel Aviv, em 1941. Era a sala onde se reuniam as lideranças judaicas para analisar o impacto do avanço das tropas alemãs em direção ao Egito e

PAINÉIS CONTAM A HISTÓRIA DOS MEMBROS DO PALMACH TOMBADOS EM AÇÃO

EM CADA AMBIENTE DO MUSEU, UM ASPECTO DAS ATIVIDADES DOS MEMBROS

RECONSTITUIÇÃO DE REUNIÃO DE LÍDERES DO PALMACH NA RUA HERZL, TEL AVIV

os ataques árabes às comunidades judaicas na região. Nessa sala eram traçadas estratégias e políticas para as operações.

nas Nações Unidas, e enquanto lutavam pela independência de Israel. O uso de efeitos especiais no ambiente, com jogo de luzes, imagens e sons cria um clima especial para esta experiência, transformando-a em uma vivência inesquecível.

Passando para a próxima sala, há a projeção contínua de um filme em toda a parede, levando o visitante ao universo fictício de sete recrutas de uma unidade do Palmach, durante um encontro com seus comandantes antes de iniciar seu treinamento. A história desses personagens leva os visitantes pelas demais salas, acompanhando a evolução no treinamento, as missões que executaram, sua expressão enquanto acompanhavam a votação da Partilha da Palestina, 53

Certa vez, um grupo de alunos alemães do arquiteto Zvi Hecker insistiu em visitar o Museu. Ele lhes explicou que não entenderiam nada, por causa do hebraico nos audiovisuais, mas eles não desistiram. Ao término da visita, os jovens revelaram suas impressões: “Não entendemos uma palavra, mas sentimos tudo”. ABRIL 2019


HISTÓRIA

UM ESTADO JUDEU NA AUSTRÁLIA: 1907-1941 por REUVEN FAINGOLD

Em 16 de fevereiro de 1907, The Sydney Morning Herald noticiava: “Há territórios férteis desabitados ao Norte da Austrália, pontos mais vulneráveis e suscetíveis a ataques, ainda clamando por serem povoados. Os judeus poderão constituir-se num posto avançado de alerta”. Pela primeira vez cogitava-se a criação de lar judaico em terras australianas. O poeta Zechariah Choneh Bergner ou “Melech Ravitch”1, e, principalmente, Isaac Nachman Steinberg, retomariam essa ideia entre 1933-1939.

Lenin. Em protesto ao Tratado Brest-Litovsk (março de 1918), em que a Rússia renunciava à Finlândia, Polônia, Estônia, Livônia, Curlândia, Lituânia, Ucrânia e Bessarábia, Steinberg iniciou uma campanha anti-bolchevismo. Em 1923, ameaçado de morte, fugiu com sua família rumo à Alemanha.

QUEM ERA ISAAC NACHMAN STEINBERG? Isaac Nachman Steinberg (1888-1957) nasceu na Letônia (Látvia), em uma família de comerciantes judeus. Criado em ambiente religioso, foi um político e revolucionário do “Movimento Territorialista Judaico” na Rússia e na Diáspora. Em 1906, Steinberg ingressou na Universidade de Moscou, onde estudou Direito. Militante no Partido Socialista, foi exilado pelo governo soviético, viajando à Alemanha para completar seus estudos na Universidade de Heidelberg. Em 1910 voltou à Rússia, já trabalhando como advogado.

Após a tomada do poder pelos nazistas, em 1933, Steinberg, a esposa e três filhos se estabelecem em Londres. Lá funda a “Freeland League for Jewish Territorial Colonization” (Liga da Colonização Territorial Judaica), instituição não-sionista que buscava um refúgio seguro para os judeus europeus. A delicada situação dos judeus poloneses após a 1ª Guerra inspira-o. Grupos de pioneiros (chalutzim) surgiam em Varsóvia e Vilna. Lá aparecem colônias agrícolas2 similares às existentes na então Palestina.

Entre 1917-1918 atuou como “Comissário do Povo” (Narkom) na área de Justiça, no governo de Vladimir

Nessa época, os judeus sonhavam com um lar próprio e a Austrália era uma das diferentes possibilidades. Seu projeto era estabelecer um lar judaico nesse país, com dupla finalidade: dar continuidade ao movimento territorialista baseado na Freeland League e conseguir um lugar para milhares de judeus afetados pela situação imposta pelo nazismo.

Zechariah Choneh Bergner (1893-1976), mais conhecido por seu pseudõnimo, Melech Ravitch, foi um dos maiores poetas e escritores iídiches pós-Holocausto.

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Fazendas para treinar grupos de pioneiros (chalutzim) para se adaptarem mais facilmente às condições de Eretz Israel. É o que atualmente em hebraico chamamos de “hachshará”, uma preparação para Aliá, existente em quase todas as cidades onde existia o movimento sionista.

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quedas d’áGUA EM KIMBERLEY, NORTE DA AUSTRÁLIA

Para avaliar a ação da Liga é preciso entender o clima de terror e incerteza vivenciado pelos judeus, em 1939, face à nova ordem política imposta no Leste europeu, especialmente na Polônia.

COMO EMIGRAR Durante todo o século 19, os judeus contam com duas formas de emigrar: podem abandonar seus países como indivíduos, portando passaportes e vistos, desde que aceitos no país de destino. Devem superar obstáculos, lidar com a competitividade e adaptar-se à nova realidade e, por outro lado, participar ativamente de uma colonização coletiva de caráter ideológico. Esta vinha rendendo resultados satisfatórios na então Palestina sob governo otomano. No entanto, o céu daquela região trazia nuvens escuras. E a Liga da

Colonização enfrentaria a seguinte questão nos dias que antecedem a 2ª Guerra Mundial: encontrar um canto no mundo onde os judeus pudessem acalentar esperanças e consolidar um futuro, em território com um sistema econômico em que a competitividade fosse inferior ao número de oportunidades. Seu principal objetivo passa a ser buscar uma forma de dispensar os obsoletos e inadequados métodos de imigração, em que a saída dos judeus fosse feita de forma individual e dependesse exclusivamente da emissão de passaportes, salvocondutos e vistos. Era necessário achar um “Estado Judaico” definitivo, quebrando os paradigmas existentes.

A “FREELAND LEAGUE” Após exaustiva pesquisa, a Liga constatou a existência de terras ao 55

O ATIVISTA POLÍTICO ISAAC NACHMAN STEINBERG

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HISTÓRIA

noroeste da Austrália, na região de Kimberley. Certos fatores pesavam a favor dessa opção. Primeiramente, a área era suficiente para absorver imigrantes em grande escala. Em segundo lugar, a localidade era pouco povoada, o que evitaria atritos com os habitantes locais. Terceiro, oferecia possibilidades concretas de desenvolvimento econômico aliadas a um alto nível de vida. E, finalmente, o governo australiano, democrático e progressista, apoiaria a ideia.

MAPA DE KIMBERLEY O território destinado ao Lar Judaico seria parte dos 349.648km² que compõem a região de Kimberley. A Liga compraria uma área total de aproximadamente 28.328 km², algo próximo ao tamanho da Bélgica. Esta área permitiria a pastagem de 40 mil cabeças de gado; eram poucos os homens brancos e havia uma centena de nativos, aborígenes. Sendo o clima tropical, agradável e sem chuvas torrenciais, com muita água, tratavase, portanto, de uma região apta para a colonização.

COMISSÃO FAZ VISTORIA Estimulados pelas primeiras informações sobre Kimberley, um conselho de judeus britânicos da Liga da Colonização Territorial Judaica decidiu enviar uma Comissão de Inquérito para vistoriar o lugar, avaliar as possibilidades econômicas da região e as atitudes do governo e da população face ao projeto. A Kristallnacht, em 10 de

novembro de 1938, levou Steinberg a viajar a Perth para estudar de perto o assunto. Primeiro o impactou a enorme simpatia com que a classe trabalhadora local recebeu a ideia da eventual chegada de judeus. O Primeiro Ministro da Austrália Ocidental, John Collings Willcock (1879-1956), afirmou que “não haveria nenhum inconveniente ou oposição a um programa colonizador judaico em seu país, sempre que estes colonos não representassem uma carga à nação”. O governo australiano entendeu que deveriam ser realizadas novas pesquisas

comprovando que a área de Kimberley era propícia à agricultura e colonização, podendo sustentar os judeus ali eventualmente assentados. Em poucas semanas, a Comissão demonstrou com clareza a viabilidade do projeto Kimberley, concluindo que “a própria terra poderá cuidar de seus moradores”. As peculiaridades do território, aliadas ao clima benigno, 56

certamente incentivariam a ida de judeus, acostumados a morar em países europeus. Qual seria, então, a chave para o sucesso? Seriam necessários trabalho, capital, planejamento científico e ajuda de empresas corporativas.

CLIMA E PAISAGEM A expressão “clima tropical” despertou desconfiança entre os membros da Comissão. Como poderia o homem branco viver num clima tropical? A rigor, o termo “tropical” não possui o mesmo significado em todos os países. Assim, ao perguntarem se o clima de Kimberley era compatível com a colonização branca, a resposta definitivamente seria sim. E não era um julgamento fragmentado, mas uma afirmação de respeitados especialistas, como . o Prof. J. A. Prescott, Chefe do Instituto de Pesquisas Agrícolas da Austrália, que, após inspecionar a área, declarou: “Não tenho a menor dúvida de que os europeus se adaptarão às condições climáticas, pois Kimberley está perfeitamente localizada em solos produtivos”. Isaac Steinberg teve igual impressão positiva. Encantou-se com a paisagem, as extensões de campos e o abundante gado pastando livremente, um aglomerado de pássaros e de graciosos cangurus saltitando entre as pessoas. Os riachos barulhentos com peixes e crocodilos atestavam também grande variedade de espécies e riqueza de vida.


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UMA PROPOSTA DE CONSTITUIÇÃO Combinando experiência e perseverança, a Liga redigiu um plano de assentamento para os judeus. Com isso pretendia dar sustentação à colonização, consolidando um empreendimento que fortalecesse a economia com uma agricultura tropical e uma indústria pastoril. O principal cultivo em Kimberley seria o milho, seguido pelo trigo, dois grãos a serem utilizados pelo gado, gerando atividades lucrativas para as fazendas locais. Baseando-se nas matérias primas destas atividades, poder-se-ia criar uma indústria diversificada com possibilidade de lucro nos mercados vizinhos. A proximidade de áreas comerciais do Oceano Índico, Java e a Ásia, também eram fatores interessantes. O plano agroindustrial de Kimberley desenvolveria empenho, ajuda mútua e cooperativismo, além da empatia entre colonos. O governo da Austrália Ocidental discutiu detalhadamente o plano colonizador endereçado pela Liga, apresentando suas primeiras reflexões: a colonização não poderia ser uma entidade política separada. Pelo contrário, seus colonos seriam cidadãos australianos, integrados política e economicamente às estruturas políticas e econômicas da Commonwealth.

seria responsável pela seleção de colonos e a promoção do sucesso das colônias, evitando o abandono das mesmas. A economia da colônia precisaria ser planejada, com a devida antecedência, por vários anos, para que contingentes de colonos pudessem engajar-se nos programas de trabalho. O planejamento deveria atender um duplo objetivo: evitar desperdício de mão-de-obra e matéria prima e evitar uma concorrência desleal e prejudicial à população da Austrália.

CAMPANHA DE PROPAGANDA Segundo o plano da Liga, o governo local sugeriria uma aproximação com o governo central, em Camberra, visando obter permissão para o projeto. A Austrália é um país democrático, com uma imprensa que fiscaliza o governo. Sendo assim, seria arriscado, e até perigoso, que um plano colonizador fosse aprovado sem o consentimento prévio da opinião pública. Na prática, isto envolveria uma longa e sistemática campanha de propaganda direcionada à população.

A Austrália entendia que não bastaria convencer representantes da Commonwealth da necessidade de um plano humanitário para um povo oprimido e perseguido, mas seria relevante também ver a importância desse construtivo projeto econômico para toda a sua população do país. Seria muito importante pensar em ajuda humanitária, mas também em interesses locais. Em Perth, Melbourne e Sydney, como também na Tasmânia, trabalhadores, comerciantes, operários e intelectuais deveriam estar convencidos de que os propósitos dessa onda migratória seriam de grande valia não só para os judeus, mas para o país inteiro.

PROJETO COLONIZADOR Para entender o projeto Kimberley é preciso rever algumas linhas centrais do mesmo, à luz da exitosa fusão existente no território entre capitalismo e as massas de classes trabalhadoras australianas. Desde o início do século 20 o governo vem restringindo a imigração, limitando-a a um número determinado de brancos e de negros. O aumento progressivo das taxas serviria para

FUNDADORES DO “YIVO INSTITUTE”. VILNA, 1929. AO CENTRO, ISAAC N. STEINBERG

Além dos poderes investidos pelo governo, cada colono deveria ter controle sobre suas atividades econômicas e culturais, entendendose que a colônia seria livre para poder desenvolver formas religiosas de acordo com sua tradição. As etapas da colonização deveriam ser acompanhadas pela Liga, que 57

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HISTÓRIA

combater a concorrência face à indústria estrangeira. Estas medidas, limitação migratória e aumento de tarifas, visavam proteger tanto o empregador como o trabalhador, promovendo um alto nível de vida no país. Durante a 2ª Guerra a Austrália vivia uma situação peculiar, única, sempre privilegiada por seu distanciamento geográfico da Europa, palco de guerras. Por ser um país de características agrícolas, gozava também de uma posição estável no comércio internacional, exportando trigo, carne e algodão. Ante a derrota do Japão, a Austrália pretendia converter-se na maior potência do Pacífico, exercendo controle sobre a região. Estas ideias já aparecem em discurso proferido pelo advogado H.V. Evatt (1894-1965), então Ministro de Relações Exteriores, que enfatizou o fato de a Austrália estar tomando iniciativas não apenas na região do Pacífico, mas também na Europa. Fosse qual fosse essa realidade, um fato era indiscutível: o problema de Austrália continuava sendo seu baixo número de habitantes e sua pequena população distribuída em

legenda em iídiche, “o Projeto australiano”

amplo território. O país precisaria de milhões de pessoas para ser sustentado através de um mercado interno suficientemente forte. Quem poderia garantir milhões para este projeto? Por acaso alguém poderia garantir pioneiros em larga escala vindos da Inglaterra? A Austrália poderia garantir imigrantes, mas nunca se comparar à potência britânica. Refugiados europeus em geral e judeus em particular, poderiam ser uma alternativa à escassez de mão-de-obra. Sem dúvida, a questão da imigração deveria ser avaliada, em 1939, com um olhar diferenciado daquele de cinco anos

KIMBERLEY

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antes. Segundo observou o Prof. Copeland, consultor financeiro do Commonmealth: “A Austrália deve dar um tempo cortando certas tradições, abrir mão das velhas crenças que remetem aos primórdios da nação e deixar de lado aqueles ideais que nem todo o mundo compartilha. O clima de segurança reinante foi recentemente abalado por acontecimentos (2ª Guerra Mundial) e, portanto, o país deverá reavaliar suas responsabilidades externas”. O povo australiano mostrava-se sensível a essas necessidades. Prova disto é a vontade de aceitar o plano Kimberley. É louvável a postura do Partido dos Trabalhadores através da Conselho Australiano de Sindicatos de Trabalhadores (Australian Council of Trade Unions), que, em abril de 1943, através de seus sindicatos, declarou “ter mantido conversas com o Dr. Steinberg, apoiando o plano de colonização de Kimberley, assegurando a transferência dos refugiados judeus da Europa”. Digna foi também a postura do Conselho de Sydney que desejou “sucesso diante das tentativas de estabelecer em Kimberley um refúgio para as vítimas do fascismo, que os afastara de seus lares”. John Curtin, Primeiro Ministro de 1885 a 1945, afirmou: “A decisão do governo de dar uma área territorial aos judeus responde à necessidade de solucionar um problema de refugiados”. Declarações de simpatia ao projeto Kimberley foram redigidas por intelectuais e professores, intendentes e prefeitos, entre outros. Em 1943, surgem em Melbourne e Sydney os Comitês de Amigos do Plano Kimberley (Committees of Friends of the Kimberley Plan), entidades apoiadoras do projeto colonizador sionista.


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ANTISSEMITISMO NO PAÍS A Austrália sempre se manteve livre do vírus do antissemitismo, porém isto não permite afirmar que seus habitantes constituem um grupo humano repleto de virtudes. Naturalmente, em um lugar ou outro do território encontraremos expressões antissemitas. Porém, não existe no país nenhum movimento antissemita organizado. O motivo para tanto é simples: durante seus 150 anos de existência, a Austrália não sofreu guerras, revoluções ou contrarrevoluções, ficando longe de dificuldades e turbulências. Pelo contrário, manteve sua capacidade de expansão econômica e sua força competitiva. O movimento de colonização judaica foi muito bem-vindo, pois, com seus auspícios, poderia unir-se a outros elementos da população local na base de interesses recíprocos. Seria um erro histórico se a Austrália falhasse na consecução desse objetivo. Em 1941, após ser submetido a uma intensa campanha de propaganda, o projeto Kimberley foi levado à aprovação do Governo Federal da Austrália. Mas, já em Camberra, considerações de caráter militar protelaram sua aprovação. Problemas de reconstrução e questões administrativas do pós-guerra fizeram dito plano sucumbir. Durante as eleições de agosto de 1943, o Primeiro Ministro John Curtin chegou a discursar para uma população da Região Norte, afirmando que “a Austrália não discutirá esta questão [ Jewish Kimberley] sem levar em consideração a opinião da população. Precisamos duplicar ou triplicar nossos sete milhões, mas isto não será possível tratando-se de um grupo pequeno”. Segundo Curtin,

REFUGIADOS JUDEUS CONTEMPLADOS PELA “LIGA DA COLONIZAÇÃO TERRITORIAL JUDAICA”

deveria ficar bastante claro que o “Projeto Kimberley” envolvia esforços e não se desenvolveria de forma automática. O peso da opinião pública, ora a favor dos judeus, ora contra, iria determinar o futuro do plano de colonização judaica.

OBJEÇÕES AO PROJETO Obviamente, o plano de colonização judaica em Kimberley contou também com objeções. Primeiramente, o programa Kimberley pretendia assentar entre 50 mil e 100 mil judeus na Austrália, um número que influenciaria consideravelmente a vida judaica. Obviamente, não

se podia afirmar, a priori, que o resultado da colonização judaica traria crescimento. Porém, quem imaginaria, há 50 anos, que a então Palestina se desenvolveria tanto? E quem poderia prever que, nesse mesmo espaço de tempo, a comunidade judaica criada por refugiados sem recursos, que se tornaria a mais próspera do mundo, surgiria nos EUA? É oportuno lembrar que depois da 1ª Guerra houve um intenso desenvolvimento na área do Pacífico, mas esta planejada leva migratória de judeus era bem diferente daquela do passado. A Austrália era o único país de população branca localizado numa região onde não havia luta pelos recursos naturais. Em segundo lugar, o plano Kimberley era uma alternativa para aqueles que objetavam as reivindicações de um Estado judeu na então Palestina. Este argumento, no entanto, é pouco convincente. A questão das reivindicações judaicas à Eretz Israel tornou-se central na política internacional. Além disso, o plano Kimberley não era uma solução única, pois não excluía a criação de um Estado em outra parte do mundo. Procurava antes de tudo responder à necessidade de não mais esperar pela indefinida situação da

KIMBERLEY

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HISTÓRIA

Palestina britânica. E, mesmo que um Estado fosse estabelecido na Terra Santa, milhares de judeus precisariam de um refúgio. Finalmente, há argumentos indicando um alto grau de idealismo no plano Kimberley. Questionavase, com frequência, se a região australiana, quando comparada com a da Palestina, poderia concorrer com os sentimentos românticos sustentados no autossacrifício.

CONCLUSÕES FINAIS Após Herzl publicar Der Judenstaadt (O Estado Judeu), em 1896, programas colonizadores foram discutidos nos círculos sionistas e não sionistas: Uganda, El-Arish, Argentina, Palestina e Madagascar. Também o Brasil teve o seu “Plano Rebouças”3, no Estado do Paraná. A colonização de Kimberley trazia a possibilidade de estabelecer uma vida comunitária baseada em princípios de liberdade política 3

Plano idealizado pelo político André Rebouças, pretendia estabelecer judeus na agricultura.

e cooperação social, além de consolidar o espírito judaico. Mesmo assim, desconhecemos o grau de aceitação do “Plano Kimberley” nos círculos judaicos. O Dr. Steinberg deixou a Austrália em junho de 1943. Em 15 de julho de 1944 foi informado pelo então Primeiro Ministro John Curtin que o governo “não se afastaria da política estabelecida, há muito tempo, em relação à liquidação aborígene na Austrália”, e, portanto, “não poderia atender a proposta de um acordo exclusivo (para judeus), contemplado pela Freeland League”. Terminada a 2ª Guerra, os esforços para obter um Lar Nacional Judaico continuaram. Em 1946, a Freeland League manteve negociações com o Suriname para reassentar 30 mil refugiados europeus em Saramacca (3.636 km²). Uma delegação liderada por Steinberg, acompanhada por Henri B. van Leeuwen e N. Fruchtbaum, visitou Suriname em abril de 1947. Mas, em agosto de 1948, o Parlamento do Suriname decidiu “suspender as discussões até o esclarecimento completo da situação internacional”.

ROTA DE CRUZEIROS EM KIMBERLEY

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O Kimberley Jewish Homeland, agitou o mundo judaico durante a 2ª Guerra. A proposta não prevaleceu. O movimento sionista, em todas suas vertentes, entendeu que chegara a hora de viabilizar na Terra de Israel o sonho milenar acalentado durante séculos.

BIBLIOGRAFIA

Steinberg, Isaac Nachman (1888 - 1957) by Beverley Hooper, Australian Dictionary of Biography, Volume 16, Melbourne University Press, 2002, págs. 298-299. (Published by the Australian National University). Kimberley Plan. The Argus (Melbourne) (29, 035). Victoria, Australia. 13 September 1939, pág. 9. Why Kimberley Plan Is Out. Sunday Times (Perth) (2443). Western Australia. 10 December 1944, pág. 3. Wasted Years. The Sydney Morning Herald (34, 577). New South Wales, Australia. 16 October 1948, pág. 6. Immigration Scheme That Failed. The Advertiser (Adelaide). 91,(28178). South Australia. 29 January 1949, pág. 8. Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.


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KOL ISRAEL A voz sionista na Amazônia por Sergio Daniel Simon

“Amazing!”, exclamou o professor Charles Berlin, diretor geral da seÇão de Judaica da Harvard University Library. Ele acabara de receber uma cópia do Kol Israel, o jornal sionista publicado em Belém do Pará há exatos 100 anos, uma das primeiras publicações do gênero no País.

a

verdade é que a história do Kol Israel é realmente surpreendente. Editado pelo meu avô, Eliezer Levy, mais conhecido como Major Eliezer Levy, o jornal Kol Israel se tornou um símbolo das primeiras publicações e iniciativas sionistas no Brasil. O que o torna peculiar, no entanto, é ter sido publicado em plena região amazônica, e distribuído em barcos pelos rios da bacia do Amazonas para todas as pequenas comunidades judaicas marroquinas que habitavam Cametá, Santarém, Alenquer, Itacoatiara, Macapá, Igarapé-Miri, etc. Assim, os judeus que moravam no interior da selva eram mantidos informados sobre a Declaração Balfour, a construção do Hospital Hadassah, os esforços internacionais de Chaim Weizmann e a construção dos kibutzim e moshavim que caracterizavam a colonização judaica inicial em terras da então Palestina.

do meu avô Eliezer Levy não estava devidamente documentada – faltavam os exemplares do seu jornal sionista. Mas o que fazia essa comunidade marroquina e sionista na Amazônia? A imigração marroquina para a região amazônica, em busca de ouro, borracha, castanha e outros produtos do comércio local, iniciou-se por volta de 1808, ano da chegada da família real portuguesa ao Brasil. Em 1822, ano da Independência do Brasil de Portugal, era constituída a primeira comunidade formal em Belém, a sinagoga Shaar Hashamaim (Portal dos Céus), que continua em atividade até os dias de hoje, em Belém. Os jovens marroquinos embrenhavam-se pela mata, estabelecendo-se em pequenas cidades à beira dos rios. Muitos se mantinham observantes dos preceitos religiosos judaicos, inclusive da Cashrut. Outros acabaram por se assimilar e casar com caboclas locais, sendo que seus descendentes hoje em dia só podem ser identificados como descendentes de judeus por seus sobrenomes tipicamente judeus marroquinos: Sicsú, Serruya, Benzaquen e outros. De qualquer modo, a vida judaica no interior da Amazônia era marcada por

Minha família materna, oriunda de Belém do Pará, mantinha viva a história do jornal Kol Israel, se bem que não tivéssemos nenhum exemplar do mesmo. Para mim, era como se fosse uma lenda, uma história verdadeira, mas longínqua e apagada. Mesmo tendo sido alvo de tese de mestrado na USP, a história 61

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Ilustração em Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, de Alexandre Rodrigues Ferreira, Arquivo Nacional

hábitos judaicos: muitos armazéns de beira de rio fechavam na sextafeira à tarde e reabriam somente no domingo, nada funcionava nos feriados do calendário judaico, e o hábito da circuncisão era mantido nesses rincões distantes. Pequenas sinagogas pontuavam cidades como Cametá, Parintins e outras, e cemitérios judaicos até hoje podem ser encontrados em pequenas e médias cidades do interior do Pará e do Amazonas. Meu avô, Eliezer Levy, teria nascido oficialmente em Gurupá, em 29 de novembro de 1877. Minha tia Hanna, a segunda de 13 filhos que viria a ter, confidenciou-me que, na verdade, meu avô nascera em Casablanca, mas trocara seus documentos para poder entrar na política brasileira. De qualquer maneira, o casal Moysés e Halia Levy, meus bisavós, moraram e

marroquina, e vieram a se casar em 21 de março de 1900 (ele com 23 anos, ela com 14!), na cidade de Cametá, tendo depois o casal se estabelecido finalmente em Belém do Pará. Tiveram 13 filhos, dos quais 12 chegaram à idade adulta.

Major Eliezer Levy, paramentado como Grão Mestre, grau 33, da Maçonaria

mantinham comércio na cidade de Gurupá. Eliezer Levy foi levado após o Bar Mitzvá para Belém, a fim de completar seus estudos. Lá conheceu minha avó, Esther Benoliel, também de ascendência 62

Desde cedo, Eliezer Levy se dedicaria com afinco à comunidade judaica, tornandose um importante líder local. Apesar de não ser diplomado em Direito, era possível, na época, praticar Direito em escritórios de advocacia. Eliezer Levy entrou inicialmente na Guarda Nacional, tendo chegado ao posto de Coronel. Apesar disso, ficou conhecido como Major Eliezer Levy. Trabalhou no escritório de advocacia de Francisco Jucá Filho, Procurador da República, e de Álvaro Adolfo da Silveira, futuro Senador da República e assessor de


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Oswaldo Aranha, na ONU. Tendo desenvolvido grande amizade com Álvaro Adolfo da Silveira, meu avô o introduziu ao ideário sionista precocemente, o que facilitou, segundo conta a comunidade judaica de Belém, o apoio do então chanceler Oswaldo Aranha à partilha da Palestina em dois estados, um judeu e um árabe, em 29 de novembro de 1947, e que levaria à declaração da Independência de Israel, em maio de 1948. Em visita à comunidade de Belém para homenagens, em 1952, Oswaldo Aranha disse, agradecendo: “Não é a mim que vocês têm que agradecer, é ao Álvaro Adolfo, que me fez atrasar a votação por dois dias para que conseguíssemos o quórum favorável à Partilha, e que resultou na criação do Estado de Israel”. Segundo meus familiares, era tudo obra do Major Eliezer Levy... O Major Eliezer Levy terminou por ligar-se, politicamente, ao governador Magalhães Barata e acabou sendo nomeado por três vezes, entre janeiro de 1937 e julho de 1944, prefeito de Macapá. Até hoje seu nome é conhecido e homenageado na capital do Amapá, tendo dado seu nome a importante rua e ao porto (trapiche) de Macapá. Mas seu ideal judaico foi sempre ligado ao ideário sionista. Desde 1905 seus escritos revelavam admiração pelas ideias de Theodor Herzl e pela movimentação política dos primeiros líderes sionistas. Fundou o Comitê Ahabat Sion em novembro de 1918, coincidindo com o final da 1ª Guerra Mundial. Em seguida, iniciou a publicação do jornal Kol Israel. Mas as edições impressas do jornal, que aparentemente duraram até dezembro de 1923, desapareceram.

Fac-símile do Kol Israel, Archion Hamerkazi shel Haam Hayehudi, Jerusalém

Decidi ir atrás do que houvesse restado dessas publicações. Em uma visita às sinagogas de Belém, nas quais há muitos documentos antigos guardados (a comunidade

Esther Levy, nascida Benoliel

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Shaar Hashamaim, fundada em 1822, continua ativa), nada pude encontrar. Em conversas com líderes comunitários em Belém ninguém conseguiu me ajudar muito. Nunca haviam visto um exemplar do Kol Israel. Meus tios, filhos do Major Eliezer Levy, juravam ter visto os exemplares na infância, mas nenhum havia guardado um número sequer do jornal. Decidi investigar então o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, certo de que um documento dessa importância histórica haveria de ter sido preservado pelo País. Nada foi conseguido na busca eletrônica dos Arquivos Nacionais. Finalmente, em uma de minhas viagens a Israel, decidi tentar por uma última vez: entrei na ferramenta de busca do Archion Hamerkazi Shel Haam HaYehudi Yerushalaim ABRIL 2019


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(Arquivo Central do Povo Judeu Jerusalém). Para surpresa minha, na pesquisa inicial do termo “Kol Israel ”, já apareceu: “conjunto de jornais sionistas editados em Belém do Pará, de 1918 a 1923 – coleção completa”. Mal pude acreditar que eles realmente tivessem a edição completa. Um e-mail para a diretora geral do Arquivo confirmou que possuíam as edições do jornal e que estariam à minha disposição para estudo e cópias eletrônicas. Desta maneira, em dezembro de 2017, 99 anos após sua publicação, estava eu manuseando o Kol Israel original editado por meu avô. A coleção completa estava lá, amarelada, desbotada, com o papel extremamente fragilizado pela passagem do tempo, provavelmente por muitos anos no calor e na umidade da Amazônia. Mas era perfeitamente legível e consegui que o Arquivo me fizesse uma cópia fac-símile de todos os números do jornal. A doação do Kol Israel ao Arquivo do Povo Judeu fora feita por um sr. Serruya, em data não identificada. De volta ao Brasil, consegui imprimir três cópias do jornal: uma para o Centro de Memória e Documentação do Museu Judaico de São Paulo, em fase de construção, outra para a coleção de Judaica da Biblioteca da Universidade de Harvard, e a terceira para a família. Mas o que há nestas edições do Kol Israel ? No primeiro número, A Voz de Israel – “órgão independente de propaganda sionista” e “órgão do Comitê Ahabat Sion”, publicado no dia 8 de dezembro de 1918 (5 de Tebet de 5679, segundo o jornal), proclamava, em sua primeira coluna: “Um sonho de vinte séculos vae ser enfim realidade. Dispersos

Sinagoga Shaar Hashamaim, Belém

há dois millênios pelo mundo, a raça hebraica sofredora, resignada, laboriosa e tenaz, ella continuou a chorar a sua desdita, cantando ao mesmo tempo com as harpas...”. No mesmo número podia-se ler sobre a fundação “em setembro último”, na Nova Universidade Hebraica em Jerusalém, um “acto que marca uma victoriosa etapa nos domínios intellectuaes, abrangendo todas as modalidades scientíficas e artísticas...”. Em seus vários números, o Voz de Israel acompanhava, por exemplo, o “Extraordinário Protesto do Judaísmo Norte-Americano contra os “Progroms” (sic) da Polonia”, ou uma carta de Max Nordau à comunidade judaica de Londres, ou o “Soccorro à Palestina: De New York com destino a Jaffa zarpou o grande transatlântico “Leviatã” - a seu bordo seguiu com aquelle destino uma missão judaica, composta de 250 pessoas, encarregadas de distribuir importantes socorros aos israelitas residentes na Palestina”. Misturavamse ainda notícias da política brasileira, propaganda comercial da comunidade judaica de Belém, notas sociais e curiosidades do mundo judaico. 64

Um retrato dos anseios e aflições de uma comunidade distante, mas intensamente ligada à luta pelo ideal sionista. O Kol Israel acabou de completar 100 anos de sua primeira edição. Apesar de o Major Eliezer Levy ter falecido em 1946, pouco antes da criação do Estado de Israel, sua obra perdura até hoje, símbolo da unidade do povo judeu, em seus rincões mais distantes, pela causa do Estado de Israel.

sergio daniel simon é Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica e Presidente do Museu Judaico de São Paulo.


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SIMCHA ROTEM, CODINOME KAZIK Último combatente vivo do Levante do Gueto de Varsóvia, Simcha Rotem morreu em dezembro de 2018, aos 94 anos. Alma de guerreiro, lutou incansavelmente em inúmeras batalhas contra os inimigos de seu povo. Uma de suas missões mais importantes foi conseguir retirar do gueto, em chamas, os combatentes judeus ainda vivos. Sua atuação foi tão simbólica do espírito de heroísmo dos jovens judeus, que Claude Lanzmann o escolheu para a cena final de seu épico filme, “Shoah”.

O

s comandantes da Organização Judaica de Combate que liderou o Levante do Gueto de Varsóvia, conhecida por seu acrônimo em polonês, ZOB (Zydowska Organizacja Bojowa), sabiam que estava perdida a luta dentro do gueto, que ardia em chamas. Kazik foi então incumbido de ir para o lado ariano organizar a fuga dos companheiros, que assim teriam a possibilidade de continuar a luta. No filme “Shoah”,

Kazik relata o momento em que, após dias planejando a fuga, volta para o gueto. “Não vi nenhuma alma viva.... E pensei, sozinho, em meio àquela total desolação, ‘Sou o último judeu’”. O filme termina com essas palavras de desespero. Mas, na vida real, a história da ZOB e de Kazik não termina aí. O jovem guerreiro não sucumbe ao desespero; levanta-se para continuar a luta. Repentinamente ele encontra mais de 80 companheiros e consegue levá-los para um local seguro. Entre eles, estavam dois de seus comandantes, Zivia Lubetkin1 e Marek Edelman2.

Uma das líderes e única mulher na Alto Comando do grupo de resistência ZOB, Zivia Lubetkin sobreviveu ao Holocausto e emigrou para a então Palestina sob Mandato Britânico, em 1946. Ajudou a organizar a Brichá, cuja missão era levar ilegalmente os sobreviventes judeus à Palestina do Mandato. Casou-se com Yitzhak Zuckerman, sub-comandante da ZOB. Juntamente com outros combatentes e partisans, fundou o Kibutz Lohamei HaGueta’ot e o museu Casa dos Combatentes. 2 Co-fundador da ZOB, Marek Edelman se tornou o líder do Levante do Gueto de Varsóvia, após a morte de Mordechai Anielewicz. Após a guerra, ele permaneceu na Polônia, tornandose cardiologista. Faleceu aos 90 anos, em outubro de 2009, celebrado como herói pelos judeus e poloneses nacionalistas. Este ano, a cidade de Varsóvia instituiu o ano de 2019 como “o ano de Marek Edelman”. 3 Não havendo menção em contrário, todas as demais referências mencionadas neste artigo são desse livro de memórias de Simcha Rotem. 1

Em seu livro “Memórias de um Combatente do Gueto de Varsóvia”3, publicado em 1994, Kazik reconta sua história.

Um judeu de Varsóvia Simcha nasceu em 10 de fevereiro de 1924, em Czerniaków, um bairro de Varsóvia. Era o mais velho dos quatro filhos de Miriam e Zvi Ratheiser. Seus pais sobreviveram à guerra, mas de seus três irmãos - Israel, Dina e Raya – apenas Raya sobreviveu. 65

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Simcha Rotem discursando na cerimônia comemorativa do 70º aniversário da Revolta do Gueto de Varsóvia no Monumento aos Heróis do Gueto, em Varsóvia, 19 de abril de 2013

A mãe era uma mulher bonita e afável. Os poloneses cristãos diziam que “ela não parecia judia”, “elogio torto” que ela detestava. O pai era um chassid que trabalhava duro para sustentar a família, e era o chazan da sinagoga. A família vivia em um apartamento em um bairro de classe trabalhadora, onde havia poucos judeus, e Simcha cresceu brincando principalmente com crianças cristãs. Fisicamente ele se parecia com a mãe, ademais tinha modos e fala “de polonês de Varsóvia”. Essas características permitiram-lhe esconder sua identidade judaica durante a Guerra, fato determinante para a ZOB em sua luta contra os nazistas. Ele era o courrier ideal, transitando para dentro e fora do gueto, por toda a Polônia, sem despertar suspeitas. “Durante a Guerra, enquanto eu estava fora do gueto, não usava faixa no braço com

a estrela de David e nem o triângulo amarelo nas minhas roupas. Tomava o trem em direção à estação mais próxima do meu destino e ia aonde era preciso”.

Durante a cerimônia do aniversário da Revolta do Gueto Simcha Rotem é condecorado pelo presidente Bronislaw Komorowski, 19 de abril de 2013

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Em 1934, a família muda-se para um apartamento mais espaçoso. Na época, os pais tinham uma loja que vendia materiais de construção. A maioria dos clientes eram cristãos e mantinham um bom relacionamento com seus pais, em particular com Miriam, sua mãe. Simcha estudou num cheder, indo em seguida para uma escola pública administrada pela comunidade judaica. Bom aluno, adorava matemática. Foi nessa época que sentiu na pele, pela primeira vez, o antissemitismo polonês. A caminho da escola era assediado por cristãos, mas sempre revidava os ataques. Em 1938, um ano antes de seu Bar Mitzvá, filiou-se ao movimento da juventude sionista, Ha-No’ar Ha-Zioni.


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O início da 2ª Guerra Em 1º de setembro de 1939 iniciase a 2ª Guerra. Os exércitos do Terceiro Reich invadem a Polônia e sitiam Varsóvia, debaixo de pesado bombardeio. A família de Simcha decide mudarse para o bairro judeu. Desde os primeiros dias há escassez de alimentos e era ele, na época com 15 anos, quem ia ao antigo bairro buscar pão com um amigo de seu pai, um volksdeutsch4. À medida que o bairro judeu vai sendo mais castigado pelos bombardeios alemães, seus pais e avós voltam para o antigo apartamento. No entanto, não havia local seguro. Um dia após Yom Kipur, uma bomba atinge o prédio onde moravam e mata seu irmão, Israel, e seus avós maternos. Ferido, Simcha fica preso nos escombros. Quando conseguiu libertar-se, correu para o abrigo na casa ao lado, onde encontrou seus pais e as duas irmãs. No dia 29 de setembro, os alemães tomam Varsóvia e a perseguição aos judeus é iniciada. Eles são cruelmente maltratados e levados ao trabalho forçado, enquanto são promulgados decretos para humilhar, isolar e minar sua sobrevivência. O tratamento que lhes reservavam os alemães era infinitamente pior do que o reservado aos poloneses cristãos. E, quando se tratava da população judaica, estabelecia-se uma “colaboração” entre poloneses e nazistas, principalmente na prática de “entregar”, de bom grado, os judeus aos alemães. Volksdeutsch – Nome dado pelos nazistas aos alemães que viviam fora do Reich.

4

Com o contínuo racionamento, pelos alemães, dos alimentos destinados aos judeus, Simcha passa a ir às aldeias onde conseguia adquirir alimentos, ainda que a um preço salgado. No fatídico dia 15 de novembro de 1940, os nazistas trancafiaram os 375 mil judeus de Varsóvia dentro do gueto - uma área pequena e decadente. Nos meses seguintes, despejam outros 150 mil das regiões vizinhas no gueto já superpovoado. A área era cercada por um muro alto e as portas de saída vigiadas por homens armados. Nenhum judeu podia entrar nem sair.

simcha rotem ainda rapaz

tropas alemãs marcham ATRAVÉS DE Varsóvia, Polônia, em 1939

Os Ratheiser encontram um quarto pequeno onde vivem até conseguir um lugar maior. As terríveis condições de vida pioram. Nas palavras de Simcha, “Precisávamos, a todo custo, de comida, e assim fui tentando minha sorte com o contrabando..., mas foi minha mãe quem mais ajudou. Ela visitava seus antigos conhecidos no lado ariano e voltava com alimentos”. 67

Os riscos que o rapaz assumia eram cada vez maiores, e seus pais, temendo que fosse morto durante uma de suas “empreitadas”, convencem-no a deixar o gueto e ir para Klwów, uma pequena aldeia onde viviam alguns parentes. Ao chegar, encontra trabalho com um camponês que sabia que ele era judeu. Todos os dias o jovem ia à casa do patrão, onde podia comer à vontade. ABRIL 2019


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Mas, a culpa lhe corroía a alma: “Os habitantes do gueto, inclusive minha família, sofrem de fome e doenças enquanto eu aqui estou, entre a grama verde e o céu azul”... Por seis meses ele sequer teve notícias do que se passava no Gueto de Varsóvia. Nem imaginava que durante as sete semanas da Grande Deportação, a grande “Aktion”, iniciada na noite de 22 de julho de 1942, véspera de 9 de Av, dia de luto para o Povo Judeu, os nazistas haviam deportado 235.741 mil judeus do gueto para Treblinka, onde a maioria deles foram assassinados nas câmaras de gás e outros

sangue frio, à luz do dia, um judeu que fora visto fora do gueto. ”. Ele decide voltar para Varsóvia, mas antes de deixar o vilarejo compra um documento que “comprovava” que ele era polonês cristão.

A volta para Varsóvia Ao chegar ao gueto descobre que sua família estava numa fazenda em Czemiakow, considerada local de trabalho pelos alemães. O nome de Simcha não constava na lista dos trabalhadores, a maioria jovens do movimento sionista Dror, mas ao chegar à fazenda ele consegue

Crianças judias presas pelos nazistas por contrabandear comida para o Gueto

12 mil enviados para outros campos. Tampouco sabia que qualquer judeu, onde quer que estivesse, era alvo da fúria homicida alemã. Na aldeia onde estava viviam apenas 20 famílias judias. Mas, mesmo assim, os alemães instituíram um gueto no local. Simcha viu, pela primeira vez, “um alemão matar a

ficar com o pai. É lá que lhe contam sobre a Grande Deportação. Um membro do movimento juvenil Akiva, do partido Sionistas Gerais, incumbe-o de voltar ao gueto para entregar um pacote a Lutek Rotblatt, líder do movimento. Ao lá chegar, ele fica abalado. “Era um lugar fantasmagórico… ruas inteiras sem vivalma...” Ele retorna 68

ZIVIA LUBETKIN e Yitzhak Zuckerman “Antek”

à fazenda, mas, em dezembro, os nazistas obrigam os judeus a voltar para o Gueto de Varsóvia, onde estima-se que restavam apenas 70 mil judeus. Simcha passa a trabalhar num dos armazéns onde os alemães “reuniam” as propriedades pilhadas aos judeus. Nessa altura, ele já era membro ativo na ZOB, na unidade da rua Mila. Um de seus comandantes era Zivia Lubetkin. Os jovens da ZOB estavam decididos a enfrentar os nazistas, mas para uma ação militar eram necessárias armas e ajuda. Movimentam-se em busca de fundos para a compra de armamento, sendo alguns enviados ao lado ariano para pedir ajuda. A resposta da resistência polonesa foi “Aguardem”. Mas o tempo se esgotava para os judeus.... Após inúmeros apelos, a resistência polonesa lhes fornece dez pistolas velhas e uma pequena quantidade de munição.

A Rebelião de janeiro de 1943 A ZOB sabia que os nazistas não tardariam a liquidar o gueto. Discursando na Polônia, em 2013, na cerimônia que marcou o 70º


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aniversário do Levante, Simcha lembrou que, “no início de 1943, a maioria dos judeus do Gueto de Varsóvia já haviam sido assassinados e os que restavam sabiam que seu fim seria o mesmo. O que os jovens da ZOB queriam era o direito de escolher o tipo de morte que lhes tocaria”. Em janeiro de 1943 os nazistas reiniciaram as deportações, mas os integrantes da ZOB estavam dispostos a enfrentá-los, mesmo com seu mísero arsenal de algumas pistolas. O grupo de Simcha nem isso tinha; suas armas eram facas e barras de ferro. Mas os judeus foram ao ataque e, em todo o gueto, podiam ser ouvidos tiroteios. Alguns alemães morreram e suas armas foram tomadas. Três dias depois, chocados pela inesperada reação judaica, os nazistas interromperam as deportações. A ZOB festejou: “Não podíamos sonhar com mais do que isso”. Sabiam, no entanto, que os alemães voltariam... Simcha convence sua família a deixar o gueto. Vai até Siekierki, perto de Varsóvia, onde vivia um polonês que dissera à sua mãe que os esconderia. Com esse polonês, cavou um pequeno esconderijo no palheiro e depois foi buscar sua família, voltando logo em seguida para o gueto. Numa de suas visitas percebeu que a irmã Raya, de dez anos, não sobreviveria naquelas condições. Levou-a consigo e

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judeus na fila aguardando comida, maio de 1941

conseguiu que duas irmãs polonesas cristãs, Anna Wachalska e Marysia Sawicka, escondessem a menina em sua casa. Quando Stefan Siewierski5, sobrinho das irmãs, foi detido pela Gestapo, Raya foi enviada para outro local.

Preparando a Revolta de Abril Dentro do Gueto o tempo dos jovens combatentes era voltado à preparação para a luta com os nazistas. Uma das primeiras operações de que Simcha participou

Por suas ações em prol dos judeus, Ana Wachalska, Marysia Sawicka e Stefan Siewierski foram agraciados por Yad Vashem como “Justos entre as Nações”.

O Gueto de Varsóvia era dividido em três áreas distintas: Gueto Central, Área dos Fabricantes de Vassouras (Brush makers) e a área Tobbens-Schultz.

foi a libertação de judeus detidos pela Polícia Judaica e que seriam entregues à Gestapo. Entre eles havia membros da ZOB. Simcha foi enviado para sondar o local onde estavam os presos. Conseguiram libertá-los. Essa ação deu um grande impulso à credibilidade da organização. Até então, a revolta armada recebia apoio apenas de um grupo restrito entre os judeus que ainda viviam no gueto. Nesse período, Simcha fazia parte do grupo de combate liderado por Hanoch Gutman, localizado na Área dos Fabricantes de Vassouras (Brush makers)6. Os jovens de cada grupo viviam e treinavam juntos e sabiam que juntos lutariam e provavelmente morreriam. Mesmo em meio à desesperança brotaram relacionamentos amorosos. Simcha se apaixonou por Dvora Baran, uma jovem encantadora. Quando a revolta eclodiu, eles estavam juntos. A moça tombou em combate, aos 23 anos, enquanto Simcha estava em missão no lado ariano.

O início da Revolta

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Pesado fogo de metralhadoras alemãs posicionadas fora do muro do Gueto

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Os nazistas iniciam a liquidação final do gueto em 18 de abril de 1943, véspera de Pessach. Queriam ABRIL 2019


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“presentear” Hitler com uma Varsóvia “Judenfrei” (livre de judeus), em seu aniversário, dia 30 de abril. Durante a madrugada, dois mil nazistas e colaboradores, pesadamente armados, cercam o gueto com tanques e, às quatro da manhã, entram no Gueto Central.

Às cinco da tarde, os alemães bateram em retirada. “Quando nos reunimos, à noite, constatamos que nossas baixas tinham sido irrisórias – apenas duas. Sabíamos que naquele dia centenas de alemães tinham tombado, mortos ou feridos”.

“Quando vi o tamanho da força alemã, senti que não éramos nada”, recorda Rotem em um testemunho ao Memorial do Holocausto de Yad Vashem. “O que poderíamos fazer com nosso patético armamento, quase inexistente, diante do tremendo poder de fogo alemão... e sua enorme força de Infantaria... Senti-me totalmente impotente. Mas essa impotência foi seguida por um extraordinário sentimento de exaltação espiritual… Aquele era o momento pelo qual estávamos esperando... de enfrentar a todopoderosa Alemanha...”.

Os judeus festejam, eufóricos. Haviam provado a si mesmos e ao

Em todo o gueto os judeus ouviam os sons de metralhadoras e explosões de granadas vindos do Gueto Central, mas na área Brush makers, onde estavam Simcha e seu grupo, a calmaria prevaleceu naquele primeiro dia.

Judeu se atira pela janela de casa em chamas

resto do mundo que enfrentariam os alemães com armas em punho. “Mas não tínhamos ilusões sobre nossas chances. Mataríamos todos os que pudéssemos, mas sabíamos o que nos esperava”... No dia seguinte, Simcha vê uma unidade das SS se aproximando. Alguns minutos depois, explode a grande carga de explosivos que seu grupo colocara sob a entrada. Os nazistas fogem sob o fogo dos jovens judeus, abandonando seus feridos. Uma centena de nazistas são mortos. Retornam mais tarde, temerosos, correndo rente aos muros. Os rebeldes atacam, novamente, com coquetéis Molotov e tiros de pistola; e os alemães novamente batem em retirada. Durante três dias as tentativas alemãs de entrar no gueto falharam, e as baixas em vidas judias eram poucas. Mas, no terceiro dia, os nazistas mudam de estratégia, não mais enfrentando os judeus de frente. Tomam posições fora do muro do gueto, castigando os judeus com metralhadoras, canhões, aviões e lança-chamas. Os jovens combatentes se veem lutando contra um inimigo fora de seu alcance. Os nazistas começam, sistematicamente, a incendiar o gueto. Centenas de judeus são queimados vivos. A ZOB não planejara um esquema de retirada nem preparara seus próprios bunkers. Os jovens pretendiam lutar corpo-a-corpo com o inimigo até o fim; mas, com os prédios ruindo, os rebeldes tiveram que abandonar suas posições. Hanoch Gutman encarregou Simcha de encontrar um bunker para se abrigarem. Escolhido por sua “aparência de ariano”, saiu vestindo um uniforme das SS. Arriscava ser morto pelos próprios judeus,

Alemães incendeiam moradias judias com lança-chamas

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mas assim podia movimentar-se livremente. Encontrou um bunker. Os judeus lá escondidos receberam os combatentes, e queriam se juntar a eles. Mas não havia armas suficientes. Após se reunirem com os outros dois grupos na área, cerca de 100 combatentes estavam abrigados no bunker. Mas, apesar do perigo, decidem sair e se juntar à luta dos que estavam no Gueto Central. A vida dentro dos bunkers era desesperadora: o calor era insuportável, não havia ar, água ou comida. No décimo dia, o gueto já estava destruído. Não sobrara nada além de ruínas ardentes e corpos carbonizados. A maioria dos guerreiros judeus ainda estavam vivos, mas sem possibilidade de revidar já que o inimigo se mantinha fora de seu alcance. Os comandantes da ZOB sabiam que chegara a hora de deixar o gueto para ter alguma chance de continuar a luta. Em 29 de abril, o comando geral da ZOB – Mordechai Anielewicz, Zivia Lubetkin, Michael Rosenfeld e Hirsh Berlinski-Met – decidiu enviar Simcha e Zygmunt Fryderych ao lado ariano para se reunirem com Yitzhak Zuckerman7, conhecido por seu codinome, “Antek”. Este, que já estava lá há duas semanas tentando obter ajuda da Resistência Polonesa, costumava dizer que Simcha era “seu assistente e assessor de campo”. 7

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Yitzhak Zuckerman, “Antek”, era o sub-comandante da ZOB. Servia de intermediário entre o comando da Organização e os comandantes da AK – Armia Krajowae, e AL- Armia Ludowa, organizações polonesas de resistência.

Shmaltsovnik é uma gíria polonesa pejorativa usada na 2ª Guerra Mundial para as pessoas que chantageavam judeus escondidos ou poloneses que protegiam judeus durante a ocupação.

judeus dentro de um bunker, no gueto, antes do início do levante

O resgate dos remanescentes Em suas missões de reconhecimento, Simcha descobrira um túnel que levava ao outro lado do muro do Gueto. Ele e Zygmunt o utilizaram para chegar ao lado ariano. Um polonês viu Simcha sair e este disse-lhe ser um comerciante polonês que ficara preso dentro do gueto. Após felicitá-lo por ter conseguido sair, o homem o instruiu como evitar a patrulha alemã postada por perto para impedir a fuga de judeus. Simcha e Zygmunt foram rapidamente ao apartamento de Anna Wachalska, sendo em seguida levados por Stefan Siewierski para o de Feigl Peltel, a courrier do partido Bund. O local se tornara a base de operações. Ao chegar, Antek ouviu, abalado, as notícias do Gueto, mas não havia tempo para desespero. Cada minuto era crucial; tinham que encontrar uma forma de retirar seus camaradas. Sabiam que não encontrariam ajuda, só poderiam contar consigo mesmo e com os dedicados poloneses que os ajudavam: Stefan Siewierski, 71

Ana Wachalska e Marysia Sawicka, Kostek, Tadek Shayngut e Wladyslaw Gajek (codinome, Krzaczek) do PPR (o Partido dos Trabalhadores Poloneses) Os obstáculos à sua frente eram enormes: teriam que voltar ao Gueto, encontrar os companheiros e levá-los para fora do muro; conseguir um meio de transporte e levá-los a um esconderijo relativamente seguro. Sabiam que a única forma de entrar e sair do Gueto era através dos esgotos, e eles precisavam encontrar pessoas que trabalhassem nos esgotos de Varsóvia para guiá-los. Já se haviam passado cinco dias desde que Kazik deixara o Gueto, e ainda não haviam conseguido colocar o plano em prática. Não haviam achado quem aceitasse guiá-los e nem meios de transporte. O grande receio era chegarem tarde demais. Conseguiram a ajuda do chamado “Rei dos Chantagistas”, o rei dos Shmaltsovniks8, em troca de uma grande quantia. Não lhe revelaram que pretendiam resgatar judeus, ABRIL 2019


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disseram-lhe que “um grupo de cristãos poloneses entrara no Gueto antes da revolta e a AK9 (Armia Krajowa) queria resgatá-los”.

A rota pelos esgotos Sete dias se passaram até conseguirem pôr o plano em prática. No dia 8 de maio, às 22h, um grupo liderado por Simcha, acompanhado por dois trabalhadores, desceu no bueiro do esgoto em frente do apartamento do “Rei” dos Shmaltsovniks. Com cerca de dois metros de altura, o esgoto central em Varsóvia era um labirinto com um fluxo poderoso de detritos. O trajeto era longo, difícil e os guias ameaçavam abandonálos. Chegaram ao gueto às duas da manhã. Simcha subiu a escada de ferro na parede do esgoto enquanto os demais permaneceram embaixo, com os guias. O que ele viu o deixou desesperado... corpos e mais corpos... e ruínas.... Freneticamente, começou a percorrer os locais onde sabia que havia grupos de luta. Corria de um lado para outro, sinalizava com sua lanterna, chamava, gritava as senhas. No filme de Lanzmann, ele relembra que, de repente, ... “Uma calma súbita se apoderou de mim. Sentia-me tão bem no silêncio do gueto em ruínas, próximo aos corpos inertes que me eram tão queridos, que senti vontade de ficar ali, esperando pela aurora, pelos alemães... Mataria alguns deles e depois seria morto… 9

Armia Krajowa, organização clandestina na Polônia ocupada pelos nazistas. Atuava em conjunto com o governo polonês no exílio e tinha como intenção libertar a Polônia de seus invasores nazistas e russos na 2ª Guerra Mundial.

Judeu se rendem a soldados da SS durante o Levante do Gueto de Varsóvia, 1943

Via-me tombando em batalha como o último judeu do Gueto de Varsóvia”. Mas sua alma combatente, que lutava pela salvação de seu povo, não o deixou desistir. Levantou, voltou ao bueiro e gritou: “Vamos embora! Não há mais ninguém”. Foi quando ouviu um barulho. Ia disparar sua arma, mas decidiu gritar a senha da ZOB. Dez camaradas apareceram. Em poucos

A vida dentro dos bunkers era desesperadora: o calor era insuportável, não havia ar, água ou comida. No décimo dia, o gueto já estava destruído.

Durante a liquidação do Gueto nazistas deportam para Treblinka os judeus encontrados vivos

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minutos, Simcha soube que chegara com um dia de atraso.... Os jovens lhe relataram os últimos oito dias.

No restante da guerra Simcha continua suas atividades clandestinas junto à ZOB e a Resistência polonesa, ajudando, especialmente, de todas as formas, as centenas de judeus que ainda permaneciam em Varsóvia, escondidos.

A morte de Mordechai Anielewicz, o lendário comandante do Levante, que será sempre lembrado por seu legado de coragem e idealismo, e dos 100 combatentes que estavam com ele na rua Mila 18. E de milhares de outros judeus. Decidido a salvar quem ainda podia ser salvo, mandou dois do grupo de volta ao gueto com a ordem de reunir o restante dos sobreviventes e trazê-los para o esgoto. De volta ao lado ariano, ao anoitecer, Simcha e seu grupo contataram os companheiros que estavam nos esgotos, para alertálos de que, na manhã seguinte, à saída do bueiro, haveria um transporte esperando para levá-los para a floresta. Às cinco horas da manhã seguinte eles estavam de prontidão cercando o bueiro; seus companheiros de luta começaram a sair. Pareciam fantasmas.

Kazik, última testemunha do filme de Lanzmann, “ShoAH”

para Antek os nomes dos cerca de 80 combatentes que haviam sido resgatados, entre eles, Zivia Lubetki, com quem Antek viria a se casar em 1947, já em Israel. Simcha manteve contato com sua família até o início da revolta e, depois disso, só conseguiu ter notícias deles em maio. Soube, então, que sua irmã Dina, de 12 anos, voltara ao gueto à sua procura, pouco antes do início da Revolta, e fora morta.

Simcha Rotem também foi ativo na organização Brichá, que ajudava os judeus europeus remanescentes a atravessar fronteiras e emigrar ilegalmente para a Palestina do Mandato, apesar das restrições impostas pelas políticas da Grã Bretanha, como o White Paper, de 1939.

Após a Guerra

Ao ver um policial polonês se aproximando, Simcha foi até ele para dizer-lhe para não se intrometer, pois se tratava de uma operação clandestina da Resistência polonesa. Quando perceberam que ninguém mais saía, a tampa do bueiro foi fechada e o caminhão seguiu em direção à floresta Lomianki, onde já havia um grupo de combatentes do gueto. Driblando milagrosamente as patrulhas alemãs, chegaram à floresta. Mas, era um esconderijo temporário, pois sendo pequena, não havia muito onde se esconder. De volta a Varsóvia, Simcha passou

Continuou lutando ao lado dos partisans poloneses contra os nazistas, participando, em agosto de 1944, da fracassada Revolta de Varsóvia. Após o término da guerra, junto com Abba Kovner, passa a integrar uma nova organização com mais de 50 participantes: os “Vingadores”, Nakam. Nas palavras de Kovner, “Não imaginávamos que sobreviveríamos e, enquanto não acertarmos as contas com os alemães, não teremos o direito de seguir em frente”.

Em 1947, ele e os sobreviventes de sua família emigraram para a então Palestina. Simcha juntouse à Haganá e lutou na Guerra da Independência. “Em teoria, um período de minha vida terminara e um novo se iniciava, em nossa Pátria ancestral. Mas, aquela época de minha vida é parte inseparável do meu ser até hoje, um eixo em torno do qual gira o meu pequeno mundo”. Simcha Rotem e Lodzia Hamersztajn, 1945

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Simcha casou-se e teve dois filhos. Ao mais velho, ele deu o nome de ABRIL 2019


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monumento aos heróis do gueto. nathan jakow rappaport. varsóvia

Eyal, um acrônimo para “Irgun Yehudi Lochem”, ZOB, em hebraico. Posteriormente, dirigiu uma cadeia de supermercados, até se aposentar, em 1986. Rotem foi ativo porta-voz e membro do comitê de Yad Vashem responsável por selecionar os “Justos entre as Nações”, os não-judeus que ajudaram a salvar nossos irmãos durante o Holocausto. Em 2013, participou de uma cerimônia em Varsóvia, pelos 70 anos do Levante do Gueto, onde recebeu, das mãos do chefe de Estado polonês, Bronislaw Komorowski, a comenda da Grã-Cruz da Polônia Restituta, uma das mais altas condecorações do governo polonês. No entanto, em abril de 2018, Simcha Rotem, eterno vigilante das atrocidades contra o Povo Judeu, manifestou sua censura ao atual presidente polonês, Andrzej Duda: “Fiquei muito frustrado,

poloneses”. E continuou: “Somente quando a sociedade polonesa enfrentar realmente a amarga verdade histórica, revelando seu escopo e intensidade, poderá haver uma chance de que tais horrores não se repitam”.

Simcha Rotem, durante visita ao yad vashem, janeiro de 2014

desapontado e mesmo surpreso com seu sistemático desrespeito à diferença fundamental entre o sofrimento da nação polonesa depois de ter sido tomada pela Alemanha nazista, que eu não desmereço, e o metódico genocídio de meus irmãos e irmãs, cidadãos judeus poloneses, pela máquina exterminadora da Alemanha nazista, ignorando o fato de que essa máquina de extermínio contou com vários cúmplices 74

O nome Simcha Rotem está gravado na história do heroísmo do Povo Judeu e, como declarou o primeiroministro de Israel, Binyamin Netanyahu, por ocasião de seu falecimento, em 22 de dezembro de 2018, em Jerusalém, “Sua história será guardada para sempre nos anais de nosso povo”. Rotem deixou dois filhos e cinco netos.

BIBLIOGRAFIA

Rotem, Simcha (Kazik), Memoirs of a Warsaw Ghetto Fighter, Yale University Press, 2002


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Acompanho há vários anos a revista Morashá. Quero agradecer e parabenizar os editores. Acho muito importante a presença de matérias que contam sobre o judaísmo no Brasil, como por exemplo, o judaísmo na corte de D. Pedro II publicada na edição de dezembro. Nelson Graubart São Paulo - SP

Quando chego em casa e tem a nova revista à minha disposição, vibro. Com muita felicidade recebo alguns pedaços do que imagino ser minha história, a vida que meu pai viveu e não me contou. A vida que minha mãe deixou para trás, com alguns meses de idade, com meus avós fugindo dos pogroms na Rússia. O nome dos 14 ou 11 irmãos do meu pai, mais esposas, maridos, sobrinhos, não achei no Museu Yad Vashem. Há poucos dias acho que entendi porque ele não colocou seus nomes nas listas dos mortos e desaparecidos: eles passam a ser, de fato, os mortos. Enquanto seus nomes permanecem escondidos, parece que eles poderão surgir e levantar de alguma vala comum. Ou, quem sabe, suas cinzas se juntarão e dali surgirá aquele menino que ficava na mesa de cabeceira de meu pai e que eu nunca soube quem era, apesar de sempre perguntar. Ele não queria falar. E quando, na matéria com Claude Lanzmann, ele conta das situações a que expunha seus entrevistados para que falassem, eu entendi. Entendi que uma geração inteira não conhece a história de seus pais. Nunca mais teremos a chance de saber, de chorar juntos, de enterrar nossos mortos. Mas a Morashá, com suas matérias tão humanas, me dá um pouco de paz. E misturo minhas lágrimas com as desta geração de filhos da Shoá, que são muitos

milhões, que são filhos daqueles heróis que conseguiram formar família e continuar vivendo, apesar de tudo. E nem temos o direito de reivindicar para nós o sofrimento de termos sido seus filhos, filhos de pais silenciosos e com passados trágicos, filhos sofredores de pais calados. Eles se sentiam culpados, e nós também. Obrigada, Morashá. Anne Báril Porto Alegre - RS

Recebi a incomparável Morashá e li a Carta ao Leitor sobre o Shofar. É muito interessante como conseguiram, em poucas palavras, resumir o que se escreve em páginas para exprimir o quanto o Shofar representa em nossa Tradição. Meer Gurfinkel Rio de Janeiro – RJ

Leitor assíduo há muitos anos, gostaria de parabenizá-los pela qualidade de matéria trazida quer em termos de publicação, quer em termos de jornalismo. Marcos Kramarski São Paulo – SP

Reconhecemos a importância da doação da revista Morashá para a atualização e o enriquecimento do acervo da Biblioteca Pública do Espírito Santo, pelo que agradecemos a cortesia. Ana Maria da Silva Gerente do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas do Espírito Santo Vitória – SP

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Somos uma família judaica há muitos anos em Alegrete, RS. Somos os únicos judeus nesta cidade, de quase 90.000 habitantes. Tive contato com sua maravilhosa revista através de uma sobrinha que mora em São Paulo. Muito obrigado e parabéns pela ótima publicação! Mauricio e Dacia Cheinquer Alegrete - RS

Não imaginava que houvesse um lugar na web tão rico e tão agradável de se passear e desfrutar de uma boa leitura. Ricardo Carlos Lemos Serrão Amazonas

A revista Morashá acho que é a melhor publicação judaica. Leio avidamente e sigo todas as festas judaicas pelos anexos, além claro de frequentar as sinagogas. YOUSSEF FISS Sumaré-SP.

A reportagem “Os Judeus de Livorno na Tunísia” revelou interessante aspecto sobre a riquíssima história daqueles que, nos séculos 16 e 17, fugidos das expulsões ibéricas, desenvolveram o porto de Livorno, liderando o comércio europeu com o norte africano. Minha bisavó materna, Emília Fernandes, que viveu em Salônica, nasceu em Livorno, o que me aguçou mais ainda o interesse pelo artigo. Renato Guéron Vila velha - ES

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