Revista Morashá - ed 106

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ANO xxvII edição 106 DEZ 2019

ANO XXVI - edição 106 DEZEMBRO 2019

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ANO XXVII - Dezembro 2019 - Nº 106

Escudo da Torá

Augsburgo, Alemanha, final séc.18

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Carta ao leitor A festa de Chanucá celebra milagres: a vitória militar dos Macabeus e o subsequente fenômeno sobrenatural do azeite de oliva, ocorrido durante a reinauguração do Segundo Templo Sagrado de Jerusalém. Nossos sábios instituíram essa festa para comemorar ambos os milagres. Contudo, após a queda do Segundo Templo de Jerusalém, alguns rabinos argumentavam que não mais havia motivo para celebrar essa festa. Na cidade de Lod, na Terra de Israel, Chanucá chegou a ser abolida. No entanto, o Povo Judeu decidiu que, apesar da queda do Templo, continuaria a celebrar a data. Uma das razões é que a Festa das Luzes celebra também a eternidade de uma Nação Sagrada, ensinando-nos que as estruturas físicas podem ser destruídas, mas não as espirituais. O milagre do azeite – o fenômeno sobrenatural de uma luz que deveria ter-se apagado após um dia, mas que permaneceu brilhando durante oito – ensina que a luz de Israel nunca será apagada, e que D’us fará tantos milagres quantos forem necessários para assegurar a eternidade do Povo Judeu. Nossa própria existência, como povo, é um milagre. Apesar de dois milênios de exílio, perseguição e até mesmo genocídio o Povo de Israel, ao contrário de tantos outros povos da antiguidade, continua a existir. Ainda hoje,

ataques diários de todos os tipos são realizados contra o Estado de Israel e os judeus da Diáspora. E vemos, como lembrou o Rabino Jonathan Sacks, que o mundo não tem memória, e despontam manifestações contra nosso povo baseadas num ódio cego e supremacista. Há mais de dois mil anos, o Povo de Israel vem celebrando Chanucá, ano após ano, em todos os países onde há judeus, porque a Luz Divina personificada pelo Povo Judeu e pela Torá não foi e nunca poderá ser extinguida. A Menorá, que era acesa no Tabernáculo, no deserto, e no Templo Sagrado de Jerusalém, está também presente dentro de cada um de nós. O Rei Salomão, o mais sábio dos homens, escreveu: “A vela de D’us é a alma do homem” Esse ensinamento constitui o principal tema de Chanucá. Nas oito noites da linda Festa das Luzes, acendemos a Chanuquiá, cuja luz nos lembra que nossa missão no mundo é acender a Menorá celestial que existe dentro de nossa alma e usar seu fogo espiritual para iluminar o mundo que nos rodeia.

Chanucá Sameach!


ÍNDICE

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03 carta ao leitor 06 nossas festas Os milagres no Judaísmo

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nossas festas Acendendo a Chanuquiá

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ISRAEL Um dia de 72 horas POR ZEVI GHIVELDER

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MEDICINA Genética e ancestralidade Judaica por Dafne Dain Gandelman Horovitz

30 COMUNIDADES Judeus da Alemanha: triunfos e tragédias

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BRASIL O maestro em busca da última música 4


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SHOÁ Eva Geiringer Schloss: “irmã postiça” de Anne Frank POR reuven faingold

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HISTÓRIA O papel dos judeus de Argel na ocupação francesa POR NIMROD ETSION KOREN

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israel Descobrindo o Israel Bíblico

antissemitismo Como deter a escalada do antissemitismo?

56

SHOÁ Franceska Mann, símbolo de resistência e bravura

POR Deborah E. Lipstadt

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cartas

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NOSSAS FESTAS

Os Milagres no Judaísmo Chanucá e Purim – as duas festas rabínicas – celebram milagres que o Povo Judeu vem comemorando, geração após geração, há mais de dois mil anos. As festas bíblicas, particularmente Pessach – que marca a gênese do Povo Judeu como nação plena – também celebram, de uma forma ou de outra, milagres realizados por D’us com nossos ancestrais. Não há dúvida de que os milagres predominam no Judaísmo e constituem um assunto que a maioria das pessoas julga fascinante. Mas, o que é um milagre? Como o define o Judaísmo? E qual o seu propósito?

ininterruptamente por oito dias – número este muito significativo no Judaísmo, e que simboliza o sobrenatural.

Os milagres de Chanucá O principal mandamento de Chanucá é o acendimento da Chanuquiá – o candelabro de oito braços. Durante as oito noites da festa, acendemos a Chanuquiá com azeite de oliva ou velas: um recipiente com óleo ou uma vela na primeira noite; dois na segunda noite; três na terceira, e assim por diante. Uma das bênçãos que recitamos antes de cumprir essa mitzvá é a prece de Al HaNissim: “Bendito És Tu, Eterno nosso D’us, que operaste milagres (Nissim) para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época”.

O fenômeno do suprimento de azeite de oliva que queimou sem parar por oito dias é, com certeza, espantoso – sobrenatural. Tivesse o recipiente de azeite queimado apenas algumas horas a mais, poder-se-ia encontrar alguma explicação científica plausível para isso. Mas aquele recipiente, que levava o selo do Cohen Gadol (Sumo Sacerdote), e que, portanto, não havia sido profanado, continha a quantidade exata de azeite para arder por um dia. Como explicar que tenha ardido durante oito dias? Foi um fenômeno sobrenatural; as leis da Natureza cessaram de agir sobre o recipiente de azeite. E, por conta do milagre, a Menorá do Templo permaneceu acesa com azeite ritualmente puro durante oito dias – interessante notar que foi o tempo necessário para que os judeus produzissem mais azeite ritualmente puro. A Halachá, a Lei Judaica, teria permitido que eles acendessem a Menorá com óleo que não fosse ritualmente puro, mas o milagre evitou essa situação, não ideal.

Como o acender da Chanuquiá é o principal mandamento da festividade, muitas pessoas acreditam que o propósito dessa festa bonita e inspiradora é celebrar o famoso milagre do azeite. A história é bem conhecida: após vencer o poderoso exército greco-sírio na Terra de Israel e recapturar o Templo Sagrado de Jerusalém, os judeus encontraram no Templo apenas um recipiente de azeite de oliva ritualmente puro, que não havia sido profanado pelo exército de ocupação. Os judeus acenderam o recipiente, que continha azeite apenas para acender a Menorá do Templo por um único dia. Mas, milagrosamente, o azeite ardeu

A história encantadora de como o suprimento de azeite de um dia ardeu durante oito dias é, sem dúvida, 6


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assombrosa. Milagrosa. Mas será que merecia dar origem a uma festa religiosa, que vem sendo celebrada pelo Povo Judeu, ano após ano, há mais de dois milênios? Instituir mitzvot, mandamentos Divinos, como o acendimento da Chanuquiá e a recitação da oração completa do Hallel durante os oito dias da festa, precedidos por bênçãos que contêm o Nome de D’us, não são práticas simplistas. Recitar uma bênção desnecessária constitui uma transgressão extremamente grave: é tomar o Nome de D’us em vão. Nossos Sábios não teriam instituído a festa de Chanucá – suas mitzvot e bênçãos – a não ser que soubessem ser essa a Vontade Divina. Isso dá margem à pergunta: se Chanucá é apenas a celebração de como o suprimento de azeite para um dia queimou durante oito dias, por que razão,

então, teria o Todo Poderoso nos ordenado instituir o ocorrido como uma data sagrada do Judaísmo? Em toda a História Judaica, houve inúmeros milagres – muitos dos quais bem mais impressionantes do que o milagre do azeite, mas não foi instituída nenhuma festividade para celebrá-los. O Tanach (os cinco

DREIDELS DE MADEIRA, SÉCULO 19. ALEMANHA OU POLÔNIA. MUSEU JUDAICO, NOVA YORK

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livros da Torá, os livros dos Profetas e os Escritos Sagrados) e o Talmud são repletos de relatos milagrosos. Por exemplo, o Talmud nos conta acerca de um milagre que também envolveu azeite de oliva e que se pode dizer que foi um fenômeno sobrenatural mais impressionante do que o celebrado em Chanucá. Certa vez, na véspera do Shabat, Rabi Chanina ben Dosa, famoso no Talmud pelos milagres que realizava, perguntou à sua filha por que estava tristonha. Ela respondeu ao pai que não podia acender as velas de Shabat por não ter azeite de oliva, apenas vinagre. Rabi Chanina lhe responde que acenda as luzes de Shabat com vinagre, ainda que não fosse inflamável. “Aquele que ordena ao óleo que queime, dirá ao vinagre para queimar”, disse à filha. O Talmud registra que a moça fez o que o pai lhe ordenava e, milagrosamente, as luzes se dezembro 2019


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acenderam, assim permanecendo durante todo o Shabat. É mais fácil encontrar uma explicação científica de como o suprimento de um dia de azeite durou oito dias do que explicar como o vinagre, não inflamável, pegou fogo e assim permaneceu durante mais de 24 horas. E, ainda assim, esse milagre do vinagre não mereceu se tornar uma data sagrada. Na verdade, diferentemente do milagre do óleo, que a festa de Chanucá tornou famoso, poucas pessoas conhecem a história do milagre de Rabi Chanina ben Dosa sobre o vinagre, para que sua família pudesse cumprir o mandamento Divino do acendimento das velas de Shabat. Deveria ser evidente, então, que a festa de Chanucá não é apenas a celebração do milagre do azeite, que apesar de ter sido sobrenatural, está longe de ser singular ou mesmo especialmente impressionante se comparado com a multiplicidade de milagres e maravilhas ocorridas ao longo da história de nosso povo.

militar dos Macabeus? É claro que não. Se a história de Chanucá não tivesse terminado bem, o milagre do azeite, por mais impressionante que tenha sido, teria passado batido, especialmente porque teria sido associado a um evento terminado em tragédia, não em triunfo. Nossos Sábios instituíram a festa de Chanucá para celebrar um milagre bem maior em importância do que o que ocorrera com o azeite do Templo: uma vitória militar cujas chances de sucesso eram extremamente exíguas e, ainda assim, extremamente necessária para a sobrevivência do Judaísmo e de nosso povo. Se os Macabeus tivessem perdido a guerra, é bem provável que todo o Povo Judeu se tivesse assimilado, fazendo com que o Judaísmo deixasse de existir. O verdadeiro milagre de Chanucá foi o fato de um grupo de poucos guerreiros judeus conseguirem derrotar a superpotência militar da época, com isso assegurando a nossa continuidade como povo. Mas esse

Se não foi para celebrar o milagre do azeite, por que razão, então, foi instituída a festa de Chanucá? Respondemos: para celebrar a vitória militar dos Macabeus. Imaginemos um final diferente para a história de Chanucá: os judeus recapturam o Templo Sagrado e testemunham o milagre do azeite. Mas, logo depois, os greco-sírios lançam um contra-ataque e saem vencedores. Mesmo se o Povo Judeu tivesse sobrevivido à derrota, será que teriam instituído a festa de Chanucá para comemorar o milagre do azeite – sem a vitória

milagre, diferentemente do ocorrido com o azeite, não constituiu uma ocorrência sobrenatural. As pragas dos Céus não caíram sobre o exército greco-sírio, e os Macabeus não foram investidos de poderes sobre-humanos. Pelo contrário. Esses combatentes judeus tiveram que lutar arduamente para vencer a guerra. E mesmo sendo muitíssimo improvável, a vitória dos nossos guerreiros não foi um fato impossível de acontecer. Portanto, não podemos considerá-la sobrenatural. Como já discutimos em vários artigos passados sobre Chanucá, muitas vezes, ao longo da história, as lutas de guerrilha sobrepujaram poderosos exércitos. Os Estados Unidos venceram a Alemanha Nazista e o Japão, na 2ª Guerra Mundial. No entanto, poucas décadas depois, foram vencidos pelos guerrilheiros vietnamitas. E o poderoso exército soviético, que ameaçava o mundo inteiro com suas ambições cruéis e imperialistas, e seu vasto arsenal nuclear, foi expulso do Afeganistão por ferozes rebeldes muçulmanos. A vitória dos Macabeus, por mais improvável e impressionante que tenha sido, não foi um evento único na História, nem foi um produto de fenômenos sobrenaturais. A festa de Chanucá nos faz recordar dois eventos: a vitória militar dos Macabeus e o milagre do azeite ocorrido quando os judeus reconquistaram o Templo Sagrado de Jerusalém e o reconsagraram. Os dois eventos são expressos em nossas orações e nos mandamentos que cumprimos durante os oito dias da Festa das Luzes. Por um lado, a passagem de Al HaNissim – que não deve ser confundida com a bênção de Al HaNissim que

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recitamos ao acender a Chanuquiá – que é adicionada à oração da Amidá e de Birkat HaMazon (a bênção após as refeições) durante Chanucá, menciona o levante dos Macabeus e sua vitória. Por outro lado, o principal mandamento da festa é o acendimento da Chanuquiá, que nos recorda o milagre do azeite, no Templo. Há significados diferentes entre esses dois eventos. A vitória militar foi necessária para o Povo Judeu – os Macabeus derrotaram forças poderosas, espiritual e fisicamente, que buscavam extirpar o Judaísmo –, mas não foi um acontecimento sobrenatural. Por outro lado, o milagre do azeite transcendeu as leis da Natureza, mas, praticamente, não teve grande importância. Sua relevância foi o fato de ter evitado a situação indesejável – mas permitida – na qual nossos antepassados teriam que usar azeite ritualmente impuro para acender a Menorá durante uma semana. A comparação entre esses dois eventos nos leva a reconsiderar a definição do que é um milagre. O que é preferível: um evento positivo e de grande significado, no qual não é violada nenhuma lei da Natureza, ou um evento sobrenatural que serve a um propósito limitado? Se os judeus tivessem que escolher entre uma vitória militar ou o milagre do azeite, qual teriam escolhido? A resposta é óbvia. Por essa razão, o trecho de Al HaNissim que é adicionado à Amidá e ao Birkat HaMazon durante os oito dias de Chanucá não menciona o milagre do azeite, apenas a vitória militar. O milagre que mereceu ser institucionalizado como uma festa judaica não foi o do fenômeno sobrenatural do azeite, por mais emocionante e encantador que seja,

AARON AcENDE A MENORÁ. LONDRES, BIBLIOTECA BRITÂNICA

mas a vitória, difícil e heroica, de um grupo de guerreiros judeus. Isso não significa que o milagre do azeite não foi extremante significativo. Como ensina o Talmud, D’us não viola as leis da Natureza – criadas e mantidas por Ele – sem uma forte razão para o fazer. Se o Todo Poderoso fez o suprimento de azeite queimar durante oito dias, certamente houve uma boa razão para isso. O significado e importância do milagre do azeite – sempre lembrando que o principal mandamento de Chanucá é o acendimento da Chanuquiá – é o fato de ter servido como um sinal dos Céus para o nosso povo. Foi por meio desse milagre – um evento sobrenatural que envolveu uma 9

substância que simboliza tanto a Torá quanto Am Israel, o Povo Judeu – que os judeus entenderam que deviam sua vitória militar, que havia salvo o Judaísmo de ser obliterado, à Divina Providência, e não apenas à sua coragem e força. O mandamento do acendimento da Chanuquiá durante as oito noites da festa ensina geração após geração de judeus que é D’us quem garante a eternidade de Sua Torá e do Povo de Israel. Essa lição é especialmente relevante para esta época e para as Forças de Defesa de Israel, pois nos ensina que não basta ao Povo Judeu ter o melhor exército do mundo. Precisamos, também, da ajuda Divina para defender, vitoriosamente, nosso povo daqueles que nos querem destruir. dezembro 2019


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A definição simples, popular, de um milagre é que é um fenômeno que viola as leis da Natureza. Pode ter um propósito prático – como na história do Rabi Chanina ben Dosa, em que aconteceu um milagre para que um importante mandamento da Torá – o acender das velas de Shabat – pudesse ser cumprido. Contudo, um milagre pode ter pouco propósito prático, mas servir como sinal – como na história de Chanucá, com o milagre do azeite. Mas, por mais impressionante e emocionante que seja um milagre, ele pode ter bem menos significado e importância do que fenômenos ou eventos que não quebram as leis da Natureza, como a vitória militar dos Macabeus. Na verdade, se virmos a história de Purim, podemos corroborar a ideia de que um evento natural pode ser bem mais milagroso do que um sobrenatural.

Os milagres de Purim Um dos mandamentos da festa de Purim é a leitura da Meguilat Esther, um dos 24 livros do Tanach. A Meguilat Esther, que conta a história de Purim, é uma narrativa na qual todos os eventos são naturais e consistentes. Ainda que a presença de D’us permeie a narrativa – há jejum, oração, lamentação e fé na salvação –, a Meguilá é singular por ser o único livro do Tanach em que D’us não é mencionado, explicitamente. Nenhum de Seus Nomes aparece no texto – nem na narração da história nem no diálogo entre seus personagens. Tampouco encontramos, na Meguilá, menção a qualquer evento sobrenatural. O contraste com os demais livros do Tanach, repletos de narrativas milagrosas, é impressionante. E apesar da ausência dos Nomes Divinos e de fenômenos sobrenaturais no texto, recitamos a bênção de Al HaNissim,

O ACENDIMENTO DAS LUZES DE CHANUCÁ. Moritz Daniel Oppenheim. ÓLEO SOBRE TELA. MUSEU ISRAEL, JERUSALÉM

reconhecendo os milagres de D’us, antes de ler a Meguilat Esther em Purim. A razão para recitarmos essa bênção antes de acender a Chanuquiá é evidente: o cumprimento dessa mitzvá relembra o milagre do azeite, símbolo da eternidade da Torá e do Povo Judeu. Além disso, a vitória militar dos Macabeus não constituiu um evento sobrenatural – já que as leis da Natureza não foram

violadas –, mas há nela um aspecto assombroso: os judeus, que não tinham praticamente chance alguma de vencer a guerra, venceram. Já na história de Purim, não há fenômenos sobrenaturais nem ocorrências assombrosas. A Meguilat Esther conta um relato aparentemente secular, que nem sequer combina com os demais livros do Tanach. É uma história de antissemitismo, influência política, sedução, engodo e violência. Contém muitos elementos de um bom romance, mas lhe faltam assuntos espirituais e um tom religioso. Uma leitura superficial da Meguilá não revela nada de milagroso sobre a história de Purim. A única coisa surpreendente é a série de coincidências – eventos bem sincronizados – que acabaram tendo como resultado a salvação dos judeus do plano genocida de Haman. Ainda assim, não há dúvida de que ocorreram milagres (Nissim) em Purim, pois recitamos a bênção de Al HaNissim antes da leitura da Meguilá e ainda incluímos o trecho de Al HaNissim durante a reza da Amidá e de Birkat HaMazon, nesse dia festivo.

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Para explicar os milagres de Purim, uma festa que nós, judeus, celebramos há quase 2.500 anos, é preciso mostrar a diferença entre dois tipos de milagres: ness e péle. Essa diferença também se aplica aos eventos celebrados em Chanucá. Péle é algo extraordinário, fora do comum, como uma lei da Natureza que, indiscutivelmente, foi violada. O suprimento de óleo para um dia, que queima sem interrupção durante oito dias, constitui um péle – um fenômeno genuinamente sobrenatural – não um truque de mágica nem uma ilusão – para o qual não há explicação racional nem científica. Ness, por sua vez, é uma dádiva, uma graça Divina não necessariamente sobrenatural. A vitória dos Macabeus foi um ness – um desenlace significativo, altamente improvável, mas não sobrenatural. Esses dois conceitos podem se sobrepor – alguns eventos são altamente significativos e também sobrenaturais –, mas com certeza não são idênticos. Um exemplo de péle é o episódio na Torá em que o cajado de Aharon – um objeto inanimado – se transforma em uma serpente viva. No entanto, até mesmo o péle mais assombroso pode ter pouquíssimo valor. O que aconteceu com o cajado de Aharon constitui uma impossibilidade científica, mas não forçou o Faraó a acatar a ordem Divina de libertar os judeus do Egito, especialmente porque os magos da Corte do rei egípcio conseguiram replicar aquele feito sobrenatural. Mas o ness, por sua vez, é basicamente definido por seu significado e resultado e se, porventura, é também um péle, isso não tem tanta importância assim. Nos parágrafos acima analisamos a história de Chanucá, e ficou claro

que a vitória dos Macabeus – um ness – foi incomparavelmente mais significativa do que o suprimento de um dia de azeite que durou oito dias. Esse, um péle. Para um D’us Infinito, Onipotente e Onipresente, que está acima de todas as definições e limitações, que cria e sustenta, continuamente, toda a existência e cuja Providência determina tudo o que ocorre no mundo, não faz a menor diferença se um evento é natural ou sobrenatural – ou seja, um ness ou um péle. Os

Natureza – e sim o resultado de Suas ações. O que importa, realmente, é saber se um evento ou fenômeno é significativo e positivo – e não sobrenatural. Um exemplo disso é a bênção de Gomel, recitada para agradecer a D’us por nos ter poupado e salvo do perigo. Essa bênção é recitada quando a salvação é natural ou não. O importante é ser salvo do perigo, recuperarse de uma doença grave. Como isso acontece – se pode ou não ser explicado cientificamente – é menos importante do que o ocorrido.

REPRESENTAÇÃO ALEGÓRICA DOS PERSONAGENS DE PURIM: HAMAN, O AMALDIÇOADO, EM ATITUDE SERVIL PUXANDO O CAVALO; MORDECHAI, O JUSTO, ABENÇOADO, E A RAINHA ESTHER E SEU REI

fenômenos sobrenaturais nos causam surpresa porque somos seres finitos que vivem em um mundo natural, com leis de causa e efeito quase sempre previsíveis. Sendo assim, quando ocorre algo que perturba nosso entendimento de como o mundo funciona – quando as leis da Natureza são violadas –, ficamos perplexos. Mas o que nos devia importar não é como D’us age, respeitando ou não as leis da 11

A definição de um ness não depende da raridade da ocorrência e de sua improbabilidade, mas de seu resultado positivo. Quando uma ocorrência tem significado positivo, ela entra na categoria de um ness, ainda que não tenha nada de sobrenatural. Recitamos a oração da Amidá três vezes ao dia, dizendo: “... Nós Te agradeceremos... por Teus milagres dezembro 2019


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(Nissim, plural de ness) que estão conosco diariamente e por Tuas maravilhas e benevolências a todo momento”. Quais seriam esses milagres diários pelos quais agradecemos? Sabemos que o maná não continua caindo dos Céus, literalmente, como ocorreu com nossos antepassados no deserto. São extremamente raros os fenômenos sobrenaturais e a maioria dos dias de nossa vida são, na verdade, bem mundanos. Claramente, a referência na Amidá fala de milagres no sentido de eventos significativos. Esses, sim, acontecem a todo momento, e é por eles que devemos agradecer a D’us. Por exemplo, pensamos na abertura do Mar de Juncos na história do êxodo do Egito como o mais espetacular dos milagres, pois os mares não se abrem quando um ser humano ergue seu cajado. Mas, a maioria de nós não considera milagroso o nascer e o pôr do sol, pois consideramos esses dois fenômenos, que ocorrem graças à rotação da Terra, absolutamente naturais, com os quais já nos acostumamos. Para nós o sol é parte da ordem natural do universo e, sendo assim, ao deitar, não nos preocupamos com a possibilidade do sol não nascer na manhã seguinte. Mas sem a luz do sol, a vida na Terra seria insustentável. Poucas pessoas consideram a existência e função do sol como algo milagroso, pois parece ser um fenômeno inexoravelmente natural. Mas a verdade é que a existência do sol tem muito mais significado do que os milagres sobrenaturais que nós, seres humanos, consideramos tão empolgantes e inspiradores. Em nossas orações diárias louvamos e abençoamos D’us por ter criado os astros – sol, lua e estrelas. Isso nos faz lembrar que mesmo os elementos básicos que constituem o mundo natural – tudo aquilo que

julgamos natural e óbvio – são fatos milagrosos por serem fundamentais para a existência humana. E, sendo assim, devemos agradecer Àquele que os cria e sustenta. Voltando à história de Purim. A Meguilat Esther é repleta de milagres (nissim), não tendo maravilhas sobrenaturais (pl’aim, plural de péle). Todos os lances da história de Purim parecem ter uma causa e efeito naturais, e cada evento é ligado ao seguinte de maneira lógica. Cada desenrolar está em seu lugar natural. Cada reviravolta leva a uma determinada direção e não ocorre nada de sobrenatural. Mesmo assim, cada um de seus aspectos é milagroso no sentido de que tudo o que ocorre se conecta, de alguma forma, garantindo um final feliz para o Povo Judeu. À medida que a história se desenvolve, formase uma confluência de fatores, uma “tempestade perfeita”, para derrubar Haman, salvando os judeus do decreto de aniquilação. Ainda que o Nome de D’us não apareça, nenhuma vez, na Meguilá, há uma referência implícita ao Todo Poderoso. Esther faz com que Mordechai e todos os judeus orem e jejuem, juntamente com ela. Na história de Purim, os judeus entendem que se querem que algo aconteça, é necessário orar, pedindo a ajuda Divina. Mas quando jejuam e oram em busca da ajuda Divina, eles não pretendem que, de repente, caiam raios dos Céus e atinjam o malvado Haman. Sendo assim, após jejuar e orar, Esther se enfeita com o que tinha de mais bonito e tenta atrair o rei 12

persa, com seus artifícios. Mas, também, ora e implora pela ajuda Divina. E suas súplicas não são por uma salvação sobrenatural. Em nenhum trecho da Meguilat Esther encontramos qualquer tentativa de mudar a lei natural. Mordechai e Esther jejuam e oram justamente por “Teus milagres que nos acompanham todos os dias” – pedindo um desfecho positivo para os judeus,

não necessariamente milagres e maravilhas ou que D’us alterasse as leis da Natureza. E o Infinito lhes atende: o plano malvado de Haman se vira contra ele próprio. Ele e seus dez filhos são enforcados na mesma forca que ele mandara erguer para Mordechai. E os judeus são salvos. Mas a queda de Haman não é fruto de encanto ou outro fenômeno sobrenatural que fosse.


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O milagre de Purim reside no fato de seu desfecho ser favorável justamente no momento em que a história poderia, facilmente, ter tomado outro rumo. O rei poderia ter optado por ficar ao lado de Haman. Poderia ter encontrado uma outra rainha igualmente bela para tomar o lugar de Esther. E poderia ter autorizado seu astuto primeiro-ministro a levar adiante sua “Solução Final para o Problema Judeu”. Na história de Purim, não

houve violação das leis da Natureza, mas o Povo de Israel vivenciou uma grande salvação da aniquilação certa. Ocorreu um ness, um milagre de significado extraordinário, ainda que a história não contenha nem um único péle.

Milagres naturais e sobrenaturais Há quem se refira ao ness de Purim como um “milagre oculto”. Mas, na

verdade, foi um milagre revelado, aberto, pois a definição de um ness se baseia no fato de ser uma grande salvação, que foi o que ocorreu na história de Purim. Uma das várias razões para o Nome de D’us não aparecer na Meguilá de Esther é para nos ensinar um princípio fundamental do Judaísmo: não importa quão oculto possa estar o Todo Poderoso, Ele está sempre presente, em todas as situações. D’us não necessita realizar feitos sobrenaturais para chamar atenção a Ele ou para dirigir o mundo e a vida de todas as Suas criaturas. D’us está sempre envolvido em absolutamente tudo o que ocorre no Universo, seja ou não de acordo com as leis da Natureza. Como ensina o Talmud, o Altíssimo prefere conduzir o mundo seguindo o caminho da Natureza – Derech HaTevá. De outro modo, a vida na Terra seria confusa e caótica. No entanto, em raras instâncias, D’us viola uma das leis da Natureza, seja porque a situação o exige ou como forma de enviar um sinal aos seres humanos. D’us, às vezes, opera milagres sobrenaturais, um péle, de forma a nos despertar da sonolência espiritual provocada pelas leis da Natureza. Nós, seres humanos, adquirimos mais consciência espiritual quando percebemos que tudo o que transpira no mundo, mesmo o nascer e o pôr do sol, é um ness – produto da Divina Providência e da bondade e graça Divinas. É totalmente errado interpretar a previsibilidade e consistência das leis da Natureza como prova de que o mundo é movido por piloto automático. Muito pelo contrário, a precisão e dependência do mundo natural revelam que D’us está initerruptamente envolvido e atua em simplesmente todos os detalhes de tudo o que existe. 13

A experiência das gerações passadas demonstrou que raramente os milagres sobrenaturais aumentam a conscientização acerca de D’us. Através da História, após o acontecimento de um evento sobrenatural, tudo volta logo à maneira como era antes, sem haver grandes mudanças. Apenas os Nissim, os milagres naturais, e não os Pla’im, os fenômenos sobrenaturais, podem-nos levar, realmente, a um resultado positivo e uma mudança verdadeira em nosso relacionamento com D’us. Exemplificando: em meros 40 dias após terem estado no Monte Sinai e vivenciado uma explícita Revelação Divina, em meio a assombrosos fenômenos sobrenaturais, nossos antepassados adoraram um bezerro de ouro. Mas, por outro lado, após a história de Purim e os eventos lá ocorridos, nosso povo reafirmou seu compromisso com a Torá, particularmente com a Torá Oral, e todos os seus mandamentos. Salvo raras exceções, um fenômeno extraordinário é lembrado por longo tempo como um fato curioso, um evento emocionante, apenas isso. As pessoas que viram o fogo descer dos Céus, na época do profeta Eliahu, certamente continuaram falando do evento durante longos anos, mas o acontecimento teve uma influência de curta duração, pois não conseguiu erradicar a idolatria. Na época do Primeiro Templo, era comum a ocorrência de fenômenos sobrenaturais. A salvação do Povo de Israel no tempo do Rei Hizquiahu (Ezequias) ocorreu quando todos os soldados do rei assírio Senaqueribe viraram uma pilha de cadáveres, da noite para o dia. Sem dúvida, isso foi uma salvação totalmente sobrenatural, mas o Povo Judeu não se uniu mais a D’us e à Sua Torá por conta disso. Já na época do Segundo dezembro 2019


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anima e concede toda a existência – ainda que Oculto, assim como o Seu Nome está oculto em toda a Meguilat Esther, apesar de Ele estar, obviamente, onipresente na história de Purim. Nesse sentido, é precisamente o mundo natural e a maneira natural do reinado Divino o que revela as alturas da criatividade Divina e Seu íntimo envolvimento com tudo o que existe.

Templo, houve um número bem menor de maravilhas sobrenaturais, mas houve uma infinidade de milagres “naturais”. E como tais milagres ocorreram após muitas preces e pedidos, eles são observados e lembrados. Nós, seres humanos, tão logo nos habituamos com algo, por mais espetacular que seja, esse algo perde sua natureza deslumbrante aos nossos olhos. No Deserto do Sinai, o Povo de Israel logo se acostumou com o maná e deixaram de se maravilhar com o fato de que caísse, diariamente, dos céus. Até mesmo já estavam se queixando do alimento. Quando Eva deu à luz a Caim, ela exultou: “Dei vida a um ser humano juntamente com D’us”. Cada nascimento desde então também é um milagre, mas a maioria das pessoas consideram que a gravidez e o nascimento de uma criança são fenômenos meramente naturais. Ainda que um péle, um milagre assombroso, um evento prodigioso, ocorra por direta intervenção do poder Divino, sem intervenção humana, o segundo tipo de milagre, o ness, não é menos importante. E, na maioria das circunstâncias,

é ainda mais. Recitamos muitas bênçãos sobre situações que nos parecem rotineiras, comuns – nossa capacidade de andar e ver, por exemplo. Dizemos uma bênção antes e após comer e beber. A maioria das pessoas as recitam de forma corriqueira, pois em nossa rotina diária, seu significado parece se perder. Como regra, descobrimos a grande importância das coisas e situações rotineiras só quando elas nos faltam. Somente quando dói uma perna, dificultando nosso caminhar, percebemos a importância da bênção, “Aquele que faz com que os passos do homem sejam firmes”, que, na maioria das vezes, recitamos sem dar atenção ao seu belo significado. Para poder comungar com D’us continuamente e apreciar todas as Suas dádivas, é imperativo ter a capacidade de ver o que há de milagroso dentro do que é comum e assim apreciar a incessante beneficência Divina. Os milagres com que D’us nos brinda por meio da Natureza, a cada momento e a cada dia, e que ocorrem de forma natural, são os que devem ter o maior impacto sobre nós. O Altíssimo Se revela em toda a Sua glória precisamente por meio da realidade por meio da qual Ele cria, 14

Para se deixar influenciar pelos milagres naturais, é preciso identificá-los. É preciso ter olhos e coração abertos e estar atento. Quando contabilizamos os eventos de nossa vida, quando avaliamos algo, grande ou pequeno, e apreciamos aquilo a que nem sempre demos o devido valor, somos capazes de perceber: “Os Teus milagres que nos acompanham no dia-a-dia”. Essa percepção nos eleva acima e além de nossa situação espiritual anterior. É o caminho que leva à conscientização plena do ser humano. A retificação de nossa capacidade de observação ocorre, de maneira especial, em Purim. Devemos viver em uma realidade que siga o curso da Natureza e a ordem do Universo, mas, ao mesmo tempo, precisamos saber olhar a realidade de forma diferente, para, desta forma, desvendar o Divino que Se oculta na realidade. E essa tomada de consciência, de que “Os Teus milagres nos acompanham no diaa-dia” – é o que faz de Purim o dia mais feliz do ano.

BIBLIOGRAFIA

“ Your Miracles Which Are with Us Daily” - Change and Renewal - The Essence of the Jewish Holidays, Festivals & Days of Remembrance - Rabbi Adin Even Israel Steinsaltz. Maggid Books


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acendendo a Chanuquiá Todas as noites, antes de acender as velas pronunciam-se as seguintes bênçãos:

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, asher kideshánu bemitsvotav, vetsivánu lehadlic ner Chanucá.

A cada noite, após recitar as bênçãos, acendem-se as velas da Chanuquiá com o shamash, que é colocado na Chanuquiá de modo a ficar mais alto do que as demais chamas. Após acender as velas, recita-se em seguida Hanerot halálu:

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos santificaste com Teus mandamentos, e nos ordenaste acender a vela de Chanucá.

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, sheassá nissim laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que fizeste milagres para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época. Apenas na primeira noite, depois de recitar as duas bênçãos, recita-se o shehecheyánu:

Baruch Atá A-do-nai, E-lo-hê-nu Mêlech haolam, shehecheyánu vekiyemánu vehiguiyánu lazeman hazê.

Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos deste vida, nos mantiveste e nos fizeste chegar até a presente época.

Costuma-se colocar a Chanuquiá sobre uma mesa no lado esquerdo da porta de entrada, em frente à mezuzá, ou na janela que dá para a via pública. Os seguintes horários são referentes apenas a São Paulo. 1ª noite 25 de Kislev Domingo, 22 de dezembro, a partir de 19:07 horas 2ª noite 26 de Kislev Segunda-feira, 23 de dezembro, a partir de 19:08 horas 3ª noite 27 de Kislev Terça-feira, 24 de dezembro, a partir de 19:08 horas

Hanerot halálu ánu madlikim, al hanissim veal hapurkan, veal haguevurot veal hateshuot, veal haniflaot, sheassita laavotênu, bayamim hahêm, bazeman hazê, al yedê cohanêcha hakedoshim. Vechol shemonat yemê Chanucá, hanerot halálu côdesh hem, veen lánu reshut lehishtamesh bahem êla lir’otam bilvad, kedê lehodot lishmêcha, al nissêcha, veal nifleotêcha, veal yeshuotêcha.

Acendemos estas luzes em virtude dos milagres, redenções, bravuras, salvações, feitos maravilhosos e auxílios que realizaste para nossos antepassados, naqueles dias, nesta época, por intermédio de Teus sagrados sacerdotes. Durante todos os oito dias de Chanucá, estas luzes são sagradas, não nos sendo permitido fazer qualquer uso delas, apenas mirálas, a fim de que possamos agradecer e louvar Teu grande nome, por Teus milagres, Teus feitos maravilhosos e Tuas salvações. 15

4ª noite 28 de Kislev Quarta-feira, 25 de dezembro, 19:09 horas 5ª noite 29 de Kislev Quinta-feira, 26 de dezembro, 19:09 horas 6ª noite 30 de Kislev Sexta-feira, 27 de dezembro, 18:35 horas, antes de

acender as velas de Shabat

7ª noite 1 de Tevet Sábado 28 de dezembro, a partir das 19:36 horas após a Havdalá 8ª noite 2 de Tevet Domingo, 29 de dezembro, a partir de 19:10 horas

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ISRAEL

UM DIA DE 72 HORAS Por ZEVI GHIVELDER

FORAM TRÊS DIAS TÃO TENSOS E INTENSOS, TÃO INCERTOS E TÃO DRAMÁTICOS – 12,13 E 14 DE MAIO DE 1948 – QUE PARECERAM TER SIDO UM DIA SÓ. FORAM AS ÚLTIMAS 72 HORAS – QUARTA, QUINTA E SEXTA-FEIRA - DO DOMÍNIO BRITÂNICO NA ANTIGA PALESTINA QUE SE ESTENDERA POR 26 ANOS. UM PERÍODO NO QUAL OS INGLESES SEMPRE ESTIVERAM EMPENHADOS EM OBSTRUIR, ATRAVÉS DE FORÇA, A CRIAÇÃO DE UM ESTADO JUDEU.

A

queles emblemáticos três dias começaram a ser fermentados já no início de 1948. Embora a partilha tivesse sido deliberada pelas Nações Unidas em novembro do ano anterior, o secretário de estado americano, George Marshall, insistia em se opor à divisão da Palestina. Argumentava que as posições de judeus, árabes e ingleses eram irreconciliáveis, o que certamente provocaria um conflito armado. Foi em meio a esse clima inamistoso que avultou na Casa Branca a figura de um jovem assessor da presidência chamado Clark Clifford. Sua primeira iniciativa foi redigir um memorando de crítica à posição do Departamento de Estado. Argumentou que tentar anular a partilha era simplesmente impensável. E mais: os Estados Unidos deveriam intervir junto aos países árabes para que aceitassem a resolução da ONU. Se houvesse recusa, seriam rotulados como agressores. Quanto à Inglaterra, que fechava os olhos para os ataques contra o ishuv (população judaica na então Palestina), esta deveria ser coagida pelas Nações Unidas a aceitar sem reservas os termos da partilha. Além disso, os Estados Unidos deveriam suspender o existente embargo de armas para o Oriente Médio porque somente dessa maneira haveria um equilíbrio

de forças. Os países árabes hostis já estavam bem armados, porém o incipiente exército de Israel precisava equipar-se para a confrontação militar que decerto aconteceria. No final do memorando, escreveu que não se tratava de um simples apoio à causa judaica, mas do propósito de avaliar o que seria mais efetivo para os interesses estratégicos dos Estados Unidos. Embora reservado, o teor do documento vazou para a imprensa, despertando grande otimismo na frente sionista. Mas, ao mesmo tempo, alimentou a ira do primeiro-ministro inglês, Clement Atlee, que redobrou o bloqueio aos abarrotados navios que conduziam milhares de sobreviventes do Holocausto com a esperança de fazê-los chegar à Terra de Israel. Enquanto isso, a situação na então Palestina ia de mal a pior. Era preciso que os Estados Unidos fizessem uso de sua força política e, se preciso, militar, para que a partilha fosse de fato implementada. A Agência Judaica chegou à conclusão de que era imprescindível um novo encontro entre Truman e Chaim Weizmann, cientista de renome internacional e proeminente líder sionista, que era admirado e respeitado pelo presidente Truman. 16


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David Ben Gurion faz a leitura da Declaração da Independência do Estado de Israel, 14 de maio de 1948, no Museu de Tel Aviv

Weizmann foi recebido no dia 19 de março e, em princípio, obteve a concordância de Truman no sentido de que fosse suspenso o embargo de armas e que a partilha seria intocável. No mês seguinte, Clifford chamou a atenção de Truman para as manobras contra a partilha que seguiam sendo feitas por Marshall. O presidente respondeu: “Eu sei o que Marshall pensa e Marshall sabe o que eu penso. Ele não vai conseguir mudar minha política”. No dia 12 de abril, o judeu Eddie Jacobson, que fora sócio de Truman numa loja de gravatas na cidade de Independence, Missouri, foi à Casa Branca. Queria ouvir do próprio presidente como tinha sido o encontro com Weizmann e “jogou um verde”. Perguntou se, por hipótese, os Estados Unidos reconheceriam o Estado de Israel,

cuja independência estava para ser proclamada em pouco mais de um mês. Truman disse: “Fique sabendo que sou inteiramente favorável a essa hipótese”. Àquela altura, a liderança da Agência Judaica se dividia entre Washington e Jerusalém.

DAVID BEN GURION ASSINA O PERGAMINHO DA DECLARAÇÃO DE INDEPENDÊNCIA

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Na capital americana, Moshe Sharett (ainda se assinava Shertok) conseguiu marcar uma audiência com George Marshall, no Departamento de Estado. Marshall, sempre intransigente com relação à partilha, recebeu-o com frieza e o mais conciso pragmatismo. Argumentou que seria uma insanidade o futuro Estado Judeu declarar a independência de forma tão abrupta. Enfatizou que antes ainda que o país fosse criado, seria invadido por exércitos bem treinados e armados do Egito e da Transjordânia, incluindo a Legião Árabe, considerada uma tropa de elite no Oriente Médio. Insistiu que os líderes do movimento sionista não tinham o direito de colocar em risco a vida de seus compatriotas na Palestina, território que estaria fatalmente sob disputa. dezembro 2019


ISRAEL

Sharett saiu impressionado da reunião. Telegrafou sob código para Ben Gurion, aconselhando que a proclamação da independência devesse ser reconsiderada, mas sem especificar uma data.

enviara a Ben Gurion? Nove anos depois, em suas memórias, Sharett escreveu que se vira na obrigação de transmitir, por mais frustrante que fosse, o conteúdo de sua reunião com Marshall.

Sharett regressou a Tel Aviv no dia 11 de maio, três dias antes do término do mandato britânico. Embora não fosse de seu hábito, Ben Gurion foi esperá-lo no aeroporto. Antes que os repórteres cercassem Sharett, agarrou-o pelo braço e levou-o para um pequeno aposento na área da alfândega. Com agressiva persuasão, fez com que Sharett prometesse que não diria uma só palavra, nem em público e nem em particular, sobre a possibilidade de a independência ser reconsiderada ou adiada. Sharett concordou, mas fez questão de que a questão fosse discutida no dia seguinte, na reunião do Conselho Nacional Judaico, embrião do subsequente governo provisório.

No dia 12 de maio, antevéspera da independência, o ishuv estava em convulsão de norte a sul do território designado para ser o futuro estado. Milícias palestinas atacavam os kibutzim e moshavim (colônias agrícolas coletivas), além de bloquear o acesso às principais cidades. Estações de rádio do Egito e da Transjordânia exortavam os palestinos a abandonarem suas casas e pertences com a certeza de que voltariam uma semana depois para assassinar e saquear os judeus. A partir da Galileia, onde havia grande população árabe, a queda de Haifa parecia inevitável. Em Tel Aviv, os membros do Conselho Nacional se encontraram no dia 12 para uma reunião que se prolongaria por treze horas. Ao longo dos últimos 71 anos, há um acúmulo de narrativas, muitas vezes controversas, sobre o que de fato aconteceu durante aqueles 780 minutos de discussões.

O historiador Martin Kramer julga que este episódio no aeroporto é tão insólito que chega a ter contornos bíblicos e a ponto de colocar em

O presidente Harry Truman cumprimentando o primeiroministro Clement Attlee na mesa dA conferência em Potsdam; Ernest Bevin sentado à mesa

dúvida a sua veracidade. A rigor, o encontro entre Sharett e Marshall apresentou dúvidas sobre a sua essência durante um bom par de anos. Contudo, documentos e depoimentos mostram que, dias antes da reunião, Sharett já havia escrito a Marshall sobre a firme resolução da liderança sionista de declarar a independência. Por que, então, o pessimista telegrama que

Presidente Harry Truman e o Secretário de Defesa George C. Marshall

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O relato mais consistente e confiável é da autoria de Zeev Sharef, uma pessoa de imenso valor, cujo nome o tempo injustamente apagou. Contando com a ajuda de duas estenógrafas, Sharef teve a iniciativa de registrar todos os momentos das reuniões de cúpula dos dias 11 e 12 de maio. Funcionário graduado da Agência Judaica, dotado de exemplar senso de organização, foi um homem da total confiança de Ben Gurion, que o nomeou secretário do gabinete governamental logo depois da independência, posto que conservou


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durante nove anos. Em 1960, foi nomeado ministro do comércio e indústria. As transcrições de Sharef resultaram num livro chamado Three Days (Três Dias), publicado primeiro em Israel e, em 1962, nos Estados Unidos. O livro, além de ser um insubstituível registro histórico, contém um pormenorizado diário de Sharef sobre os últimos três dias do mandato. Suas anotações são objetivas e despretensiosas, sem tomar partido quanto às diferentes correntes políticas do movimento sionista, mas sempre exaltando a absoluta liderança exercida naqueles dias por David Ben Gurion. No decorrer da primeira reunião, os argumentos dos 13 participantes foram sendo expostos de forma um tanto tumultuada à medida que diferentes assuntos eram abordados. O próprio Ben Gurion, que sabia aonde e como pretendia lá chegar, acabou sendo envolvido pelos sucessivos desentendimentos e, com frequência, por algumas posições radicais. Um dos pontos altos dessa reunião foi o relatório apresentado por Golda Meir a respeito da conferência que havia mantido com o rei Abdulah, da Transjordânia, no dia anterior. Golda já conhecia o monarca, com quem tinha se encontrado antes da votação da partilha na localidade de Naharaim, na margem do rio Jordão. Nessa ocasião, Abdulah disse a Golda que não era contrário à partilha porque temia que um estado palestino viesse a ser dominado por El Husseini, o Mufti de Jerusalém, seu inimigo de décadas, portanto até seria capaz de avalizar o ideal sionista. Agora, seis meses depois daquela surpreendente conversa, Golda tinha viajado para a Transjordânia, disfarçada com trajes árabes femininos, acompanhada por

O MINISTRO DO EXTERIOR MOSHE SHARETT DISCURSA NA ASSEMBLEIA GERAL DA ONU NO DIA EM QUE ISRAEL FOI ACEITO NAS NAÇÕES UNIDAS

Ezra Danin, oficial de inteligência da Haganá (braço militar clandestino da Agência Judaica). Relatou ao Conselho Nacional, já rebatizado como Conselho do Povo, que o rei Abdulah levantara dois pontos essenciais. Primeiro: não tinha condições de impedir a invasão do futuro Estado Judeu pelos países árabes. Segundo: sentia muito desfazer o acertado no rio Jordão porque lhe era impossível agir de forma independente, tanto que tinha sido coagido a permitir que o exército do Iraque atravessasse seu território, rumo à conquista de

Jerusalém. Em seguida, argumentou que os sionistas deveriam abdicar da pressa em instituir uma nação. Sugeriu que deveriam esperar mais alguns anos, porque isso não faria a menor diferença. O mais importante, sob seu ponto de vista, era os sionistas terem como prioridade o combate aos embargos referentes à acolhida de novos imigrantes. Sugeriu mais: que toda a Palestina se rendesse ao seu próprio domínio real, com a garantia da participação de representantes do ishuv no parlamento de sua monarquia constitucional. Ou seja, qualquer tipo de relacionamento com Abdulah, conforme Golda havia declinado, devia ser encerrado em caráter definitivo. A propósito do encontro com o rei, Golda escreveu em sua autobiografia: “E então Abdulah entrou. Estava muito pálido e parecia sob grande tensão. Ezra serviu de intérprete e falamos durante aproximadamente uma hora. Iniciei a conversação abordando logo o assunto. Apesar de tudo, está quebrando a promessa que me fez? – perguntei-lhe. Não respondeu diretamente à minha indagação. Em vez disso, falou:

Zeev Sharef

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ISRAEL

“Quando fiz aquela promessa, pensei que estava controlando meu próprio destino e que poderia fazer o que achava certo. De então para cá, porém, aprendi que a coisa era outra”. Prosseguiu que antes estivera só, mas agora “sou um dentre cinco”, os outros quatro, presumimos, sendo Egito, Síria, Líbano e Iraque. “Não obstante, achava que a guerra podia ser evitada”. Sharett tomou a palavra para relatar sobre sua reunião com George Marshall. Foi fiel ao descrever a intransigência do secretário de estado e sua ferrenha oposição à existência de um estado judeu, a par da ameaça de que o ishuv seria literalmente aniquilado pelos exércitos árabes. Os membros do Conselho ouviram-no em absoluto silêncio. A angústia era generalizada e evidente. Sharett prosseguiu, dizendo que havia conversando com muita gente influente em Washington, inclusive altos funcionários da Casa Branca e do Departamento de Estado. Todos lhe disseram que a democracia americana tinha suas peculiaridades e que, apesar do grande peso que possuía, quaisquer palavras do secretário não poderiam ser tomadas como definitivas quando se tratava de uma importante resolução do governo. Acrescentou que permanecia otimista quanto à posição americana e que o mais importante, naquele momento, era que a população judaica não cedesse ao medo e se preparasse para enfrentar o que viesse. A palavra seguinte coube a Ygal Susenik (depois Yadin), que viria a ser o segundo chefe do estado-maior das forças armadas de Israel, nomeado em 1949. Nascido em Jerusalém, Yadin começou a subir os degraus da Haganá com 16 anos, até chegar

golda meir

à condição de segundo homem do exército clandestino. Obstinado em suas convicções, se desentendeu com o comandante geral, Itzhak Sadeh, e foi se dedicar aos estudos na Uni-

homens. Forçou a rendição dos assentamentos judeus na região de Kfar Etzion, matando os habitantes de quatro kibutzim e assassinando a sangue-frio dezenas de prisioneiros. Em seguida, a Legião Árabe bloqueou a estrada que ligava Tel Aviv a Jerusalém, depois de derrotar a Haganá na localidade de Gush Etzion. Assim, Jerusalém ficou isolada, sem poder receber combustíveis ou suprimentos de qualquer natureza. Yadin enfatizou que a perspectiva de o ishuv ser invadido por três ou quatro exércitos árabes (na verdade foram seis) era uma realidade iminente, mas ponderou que seria viável considerar as forças judaicas em situação de igualdade com relação às tropas inimigas. Disse, ainda, que conforme informações do pessoal da

Combatentes árabes próximos aos restos de um blindado da Haganá, perto de Jerusalém

versidade Hebraica. Um mês antes do fim do mandato, Ben Gurion mandou chamá-lo e o incumbiu da coordenação das operações militares, enorme responsabilidade para um rapaz de apenas 31 anos de idade. Seu relato ao Conselho começou de forma terrível. A Legião Árabe começara a invasão do território demarcado pela partilha com colunas de tanques e mil e quinhentos 20

inteligência, os árabes julgavam que obteriam uma fácil vitória desde o início das hostilidades, mas se tudo não corresse conforme pretendiam, fariam uso de todos os seus recursos e teriam óbvia vantagem no conflito. Ben Gurion perguntou sua opinião sobre a possibilidade de o Conselho, sob o ponto de vista militar, pedir uma trégua de forma unilateral, apesar de tal iniciativa sinalizar uma


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condição de fraqueza. Yadin respondeu que uma trégua seria aconselhável, mas que, a rigor, representaria apenas um ganho de tempo e que esse ganho, embora útil para fortalecer as tropas, seria absorvido rapidamente pelo próprio tempo até que chegasse a hora do confronto. Ben Gurion bateu o martelo, dizendo que a situação devia ser encarada tal como se apresentava, que a resistência e a vitória final seriam difíceis, mas não impossíveis. Apesar do encorajamento de Ben Gurion, o Conselho estava praticamente em estado de choque pela análise de Yadin e por causa da frágil situação em Jerusalém, que já datava de alguns meses. No dia 22 de fevereiro, às seis e dez de uma chuvosa manhã, o centro da cidade nova de Jerusalém foi abalado por tremenda explosão. Três caminhões carregados de dinamite, estacionados diante de um edifício de apartamentos da rua Ben Yehuda, explodiram pouco depois de abandonados por seus motoristas. Vários prédios residenciais foram destruídos, provocando 52 mortos e 123 feridos. Semanas depois, ainda antes do bloqueio, chegava a Jerusalém um grande comboio de 294 caminhões. Este, porém, teve sua retaguarda atacada pelos árabes em Wad El Wuab, sofrendo severas baixas: seis mortos, 24 feridos e 36 caminhões destruídos ou danificados. Naquele mesmo dia 11 de maio, em uma assembleia do senado egípcio, o primeiro-ministro An-Nukrashi obteve aprovação unânime para a invasão da Palestina. Na ocasião, o líder egípcio citou a opinião de peritos britânicos no sentido de que os sionistas estariam definitivamente derrotados dentro de, no máximo, duas semanas. Essa declaração tão assertiva fez com que os demais

Na resistência: integrantes da Haganá resgatam homem ferido em bombardeio egípcio

países árabes logo aderissem ao plano de invasão. Em Tel Aviv, o Conselho do Povo, então com dez componentes (três tiveram que se ausentar para inadiáveis missões), voltou a se reunir após breve refeição. Ben Gurion retomou a palavra no mesmo tom com que a havia interrompido. Pediu que descartassem sua precipitada ideia referente à trégua. Disse que ainda ocorreriam muitas batalhas e que derrotas como a de Gush

Dr. M. Husseini com um líder da Haganá e soldados árabes, após a rendição de Jerusalém

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Etzion eram previsíveis. Aduziu que o país a ser criado, além das armas e equipamentos militares que já possuía, contava com um fator inexistente nos inimigos: a determinação e a combatividade de todo o ishuv. Completou: “A vitória só depende de nós e nós a conquistaremos”. Porém, como a questão da trégua fora levantada, era necessário que os demais conselheiros opinassem a respeito. Foi Sharef quem pediu que aqueles favoráveis à trégua levantassem a mão. Contagem: seis a quatro, contra a trégua. A votação indicara que dentro de dois dias a independência seria declarada. Essa votação ficou consagrada como a história oficial e ratificada por três autores diferentes que escreveram biografias de Ben Gurion. Entretanto, Zeev Tzachor, secretário particular de Ben Gurion e mais tarde consagrado historiador, escreveu que, na volta do almoço, os dez membros do conselho, à exceção de Ben Gurion, estavam muito propensos a aderir à tese da trégua. Quatro dos contrários conseguiram, a muito custo, convencer outros dois a rejeitarem a trégua, embora os quatro favoráveis insistissem que, afinal de contas, uma trégua dezembro 2019


ISRAEL

atenderia à formulação de Marshall para Sharett. Seguiram-se debates sobre outros assuntos, mas os mais importantes ficaram para o dia seguinte: a fixação da data para a proclamação e os respectivos termos. Em suas memórias, Ben Gurion escreveu: “Foram os votos mais importantes da nossa história. Foram os votos que decidiram que a nossa independência seria logo anunciada”. O historiador Daniel Gordis interpretou a votação sobre a trégua com a grandiosidade das Escrituras. Escreveu que Ben Gurion se comportara como um verdadeiro Moisés, transmitindo confiança ao seu povo e convocando-o para superar todos os desafios, rumo à liberdade. O dia 13 de maio começou com duas más notícias e uma boa para o ishuv, em geral, e para os membros do Conselho em particular. A rigor, a partir daquele instante, o Conselho já podia ser considerado o governo provisório. O primeiroministro da Síria, Jamil Mardam Bey, tinha anunciado nas primeiras horas da manhã que seu país se alinhara às demais nações árabes para fortalecer a invasão do Estado Judeu. Horas depois, o Líbano fez igual anúncio. Isto fez com que os estrategistas da Haganá tivessem que mudar seus planos de alto a baixo. Até então calculavam que seus maiores enfrentamentos seriam contra o Egito, no sul, e contra a Legião Árabe, a oeste. Um ataque da Síria e do Líbano implicava em reformular todas as ações ao norte em curtíssimo espaço de tempo. Entretanto, a boa notícia dava conta de que a cidade portuária de Jaffa, colada a Tel Aviv, de total maioria palestina, se havia rendido à Haganá. Nessa mesma reunião, Moshe Sharett comunicou ao Conselho

O Rei Abdulla, na celebração do PRIMEIRO aniversário da independência do Reino da Jordânia, em Amã

que a França e a Inglaterra haviam proposto um armistício. Aceitá-lo significaria abrir mão da criação de um estado soberano. Não aceitar seus termos poderia criar uma difícil situação internacional. Ben Gurion foi firme: “É pelas armas que resolveremos este problema”. A proposta de armistício foi colocada em votação no Conselho, que já estava completo: seis contra, quatro a favor e três abstenções. Na reunião do dia 13, constavam da agenda duas importantes questões: o teor da declaração da independência e a data em que deveria ser proclamada. Na verdade, no dia 12 de abril, durante uma

reunião da Agência Judaica, já fora decidida a data de 15 de maio. Naquela ocasião, a palavra final coube a Zalman Rubashov (depois Shazar, terceiro presidente de Israel), com sua voz de trovão: “Declaro perante os altos representantes do executivo da Agência Judaica e da Organização Sionista Mundial que a independência política do povo judeu será decretada na pátria dos nossos ancestrais, no próximo mês, o mais tardar no dia 16”. Agora, Ben Gurion propunha que fosse antecipada por um dia, justificando que o anúncio da independência judaica, no mesmo dia em que os mandatários se retiravam, tinha grande valor histórico e simbólico. A aprovação da nova data foi unânime. Assim como foi unânime, após algumas sugestões serem descartadas, o nome que seria designado à nação judaica: Estado de Israel. Quando o conteúdo da declaração de independência ia começar a ser discutido, alguém indagou como o documento definiria as fronteiras do novo país. Ben Gurion respondeu que tal definição seria precipitada porque, em função

esperando os delegados saírem do prédio do museu após a assinatura da Declaração de Independência Em Tel Aviv

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das próximas ações militares, o traçado da partilha seria fatalmente modificado e poderia tanto resultar na perda como no ganho de porções de territórios. A reação contrária chegou a ser furiosa. Alguns membros do Conselho disseram que sem o enunciado das fronteiras o país a ser criado não teria legitimidade perante o mundo. Ben Gurion sugeriu uma alternativa: o texto diria que as fronteiras se situariam no contexto do traçado de partilha aprovado pelas Nações Unidas. Dessa maneira, explicou, não poderia prevalecer uma desaprovação internacional. Não bastou. Membros do Conselho continuaram insistindo na definição das fronteiras. Ben Gurion acrescentou à discussão um argumento irrespondível: “Leiam a declaração de independência dos Estados Unidos. Vejam se há uma só menção à questão das fronteiras”. Mesmo assim, como se tratava de um assunto de importância capital, decidiu colocá-lo em votação. A maioria do Conselho ficou a seu favor. Quanto ao texto da declaração, foi decidido que este seria redigido por uma comissão coordenada por Moshe Sharett, a ser submetida ao Conselho no dia seguinte. Na manhã do dia 14, o Presidente Truman e seus principais assessores BIBLIOGRAFIA

Radosh, Allis e Ronald, A Safe Haven, Harry S. Truman and the Founding of Israel, Harper, EUA, 2009. Kramer, Martin, site Mosaic, abril 2018, EUA Sharef, Zeev, Three Days, Doubleday&Company, EUA, 1962. Lissovsy, Alexandre, Dois Mil Anos Depois, Editira Lux, 1967, Brasil Meir, Golda, Minha Vida, Bloch Editores, 1976, Brasil

O difícil nós fazemos agora, o impossível leva um pouco mais de tempo. DAVID B. GURION

Truman respondeu fleumático: “Ele está aqui porque eu o convoquei”. Harry Truman viria a reconhecer o Estado de Israel poucas horas depois da proclamação da independência.

discutiam na Casa Branca os passos que deveriam ser tomados caso os judeus insistissem em declarar sua independência no dia 15, conforme já anunciado. Clark Clifford continuava empenhado em convencer o presidente Truman a reconhecer o futuro estado judaico, embora não estivessem definidos nem o seu nome nem suas fronteiras. Clifford acentuou que o apoio à causa sionista seria de valor para o Partido Democrata americano no tocante à influência judaica com vistas às eleições presidenciais que aconteceriam em novembro. O secretário Marshall explodiu: “Senhor Presidente, eu pensei que esta reunião fosse para resolver um intrincado problema de política internacional e nem sei o que o Clifford está fazendo aqui!” 23

Este dia assim ficou assinalado nas memórias de Golda Meir: “Fui direto ao centro da mesa onde Ben Gurion e Sharett estavam sentados com o pergaminho entre eles. Quanto ao momento em que coloquei a minha assinatura, só lembro de estar chorando, incapaz até de enxugar as lágrimas do meu rosto, e que enquanto Sharett segurava o pergaminho para que eu o assinasse, se aproximou de mim um homem do partido religioso e tentou me acalmar: “Por que está chorando tanto, Golda? – perguntou. Respondi: porque me parte o coração pensar em todos aqueles que deviam estar aqui hoje e não estão. “Mas, ainda assim, não consegui parar de chorar”.

Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.

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MEDICINA

Genética e Ancestralidade Judaica POR Dafne Dain Gandelman Horovitz

Como a Genética vem prevenindo doenças graves e de alta frequência em judeus e a importância da conscientização da comunidade.

N

ossos genes são a unidade fundamental da hereditariedade, formados por DNA, e determinam inúmeras funções no organismo. Nossas características físicas, traços de personalidade, facilidade para aprender línguas estrangeiras ou tocar um instrumento têm relação com a genética. Pressão alta e diabetes também são influenciadas pelos genes, mas não exclusivamente. Isso em genética é denominado de herança multifatorial.

inúmeras características, e também algumas informações que podem determinar doenças. Alguns desses genes são denominados recessivos, ou seja, como herdamos material genético tanto de nosso pai quanto de nossa mãe, o problema só irá se manifestar se ambos os pais nos transmitirem aquele gene recessivo. Em praticamente todo grupo étnico, racial ou demográfico, algumas doenças genéticas ocorrem com maior frequência quando comparamos com a população geral. Como exemplos podem ser citadas algumas anemias, como a talassemia, em povos do Mediterrâneo e indianos, e a anemia falciforme em africanos. As “doenças genéticas judaicas” são um grupo de doenças encontrado com maior frequência na população de judeus ashkenazi, cujos ancestrais vieram da Europa central e oriental. Isso é devido a ocorrência do que se chama de “efeito fundador”. Toda a população ashkenazi hoje teve origem de um grupo de cerca de 350 pessoas, há cerca de 600-800 anos, e várias das informações genéticas

Infelizmente, na nossa herança podemos também carregar, mesmo sem saber, informações relacionadas a algumas doenças. Doenças essas diferentes das citadas acima, onde os genes até podem exercer influência, mas que o nosso modo de vida pode modificá-las, para melhor ou pior. Tais doenças são graves, geralmente cada uma delas ligada a um único gene, as quais denominamos herança monogênica. Todas as pessoas carregam em seu material genético informações que determinam 24


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são compartilhadas pelo grupo, tendo sido transmitidas através das gerações. No que diz respeito aos judeus sefaradi e mizrahi, tratam-se de grupos geneticamente mais heterogêneos, com ancestralidade variada (origem em Espanha, Portugal, Marrocos, Tunisia, Argélia, Itália, Líbia, Bálcãs, Irã, Iraque, Índia, Iêmen). Há também doenças genéticas de maior prevalência, embora essas variem de acordo com a origem específica e se assemelhem a subpopulações regionais.

Afinal, o que são essas doenças? E o que podemos fazer a respeito? A primeira doença grave reconhecida como de alta

incidência nessa população foi a Doença de Tay-Sachs, que é um erro metabólico determinado geneticamente, onde a falta de uma enzima nas células causa degeneração e destruição progressiva do sistema nervoso central. As crianças afetadas nascem aparentemente normais, indo apresentar um atraso importante no desenvolvimento, notado a partir dos 4-8 meses de vida. Não chegam a sentar, andar ou falar, e apresentam cegueira e convulsões. Não há nenhum tratamento disponível, e a doença evolui inevitavelmente para o óbito antes dos 5 anos de vida. Um em cada 25-30 judeus ashkenazi carrega uma informação (gene mutado) para esta doença, e até o início de medidas preventivas (que serão apresentadas a seguir), 95% dos casos dessa doença ocorriam em judeus. 25

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MEDICINA

O caminho para a prevenção Na década de 1960 descobriu-se qual era o defeito bioquímico que causava a doença (a enzima que faltava). Outra descoberta muito importante no início da década de 1970 foi que, através do mesmo exame que se confirmava o diagnóstico (uma dosagem da enzima no sangue), era possível detectar também as pessoas

sadias que seriam portadoras da doença (ou seja, que carregavam uma copia do gene mutado e que teriam risco de ter filhos com a doença caso o parceiro também fosse portador). Isso permitiu que tal informação passasse a ser usada na programação da família, uma vez que, em casais onde ambos são portadores do gene mutado, o risco de um bebê afetado é de 25% ou 1 em 4. Partindo de tais informações, foi iniciado nos Estados Unidos, ainda na década de 1970, um programa educativo de populações consideradas de

alto risco para a doença, onde eram fornecidas informações sobre a doença e sobre os exames para detectar os portadores, e fornecida orientação genética preventiva, incluindo informações sobre diagnóstico na gravidez. Tal programa foi muito bem aceito na comunidade judaica, envolvendo líderes comunitários e religiosos de diversas correntes, e passou progressivamente a ser adotado em diversos países, como Israel, Canadá, Inglaterra, França,

Austrália e outros. Estima-se que mais de 2 milhões de indivíduos sob risco para a doença já foram testados, tendo sido identificados cerca de 65.000 portadores, 1.500 casais sob risco e evitados pelo menos 1.000 casos da doença. Na maioria desses programas de prevenção, as pessoas fazem os exames antes de casar, antes de programar o início da procriação ou mesmo em fase bastante inicial da gravidez – nesses casos, a escolha do parceiro não está vinculada ao eventual risco de ambos serem portadores. Quando 26

isso acontece, o casal tem a opção da reprodução assistida, com diagnóstico nos embriões ainda antes dos mesmos serem transferidos para o útero materno. Tal opção já deriva de técnicas modernas, pois inicialmente o programa tinha como principal opção (ainda disponível atualmente) o diagnóstico prénatal, onde durante fase inicial da gestação pode ser feito um exame invasivo (biópsia de vilo corial ou amniocentese), sendo colhido material do feto; diante de um diagnóstico desfavorável, a maioria dos casais acabava optando pela interrupção da gravidez, apesar das questões éticas envolvidas nesse tipo de decisão. A tecnologia pode também ser usada a favor das individualidades de cada população: em comunidades ultra-ortodoxas, criou-se um programa de “compatibilidade” baseados nos testes genéticos. Adultos jovens são testados e não recebem o resultado dos exames, apenas um número. Quanto os casamentos começam a ser programados, uma base central de dados é consultada, e apenas serão considerados “compatíveis” casais nos quais ambos não sejam portadores de um mesmo gene recessivo. As famílias continuam sem saber os resultados dos testes, sabem apenas se aquele casal teria risco ou não. Deste modo, é feita uma “prevenção primária” – casais em risco geralmente não são formados. Com o progresso galopante da Genética nas últimas décadas, principalmente da genética molecular e análise direta de DNA, foi possível adicionar


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aos programas de prevenção o rastreamento para mais doenças, também de alta incidência em judeus, sem aumentar muito os custos. Atualmente, há programas que investigam o risco para várias doenças genéticas, inclusive incorporando outras não tão específicas em judeus, mas de alta frequência na população geral, como um tipo frequente de surdez ou mesmo de retardo mental. Para o sucesso dos programas de prevenção em casais, são essenciais quatro prérequisitos básicos:

A tecnologia pode também ser usada a favor das individualidades de cada população

às famílias atingidas por tais doenças; 3) Informação da classe médica, principalmente obstetras, que ainda podem fornecer aos casais orientação visando prevenção em fase pré-gestacional, idealmente, ou em fase muito inicial de uma gravidez; 4) Excelência dos laboratórios onde são realizadas as análises, além de suporte por médico geneticista para o aconselhamento genético, orientação quanto a alternativas reprodutivas e compreensão correta dos resultados por cada indivíduo envolvido.

1) Consciência da comunidade envolvida no que diz respeito à gravidade das doenças e importância de prevenção de novos casos;

Esses exames já fazem parte, há muitos anos, da rotina médica e da cultura de vários países, sendo inclusive inseridos em sistemas públicos de saúde, no caso do Canadá, França, Inglaterra e Israel, dentre outros. Até este ano, não houve movimento consistente para a adoção desta rotina aqui no Brasil, apesar de algumas iniciativas isoladas. Quando é diagnosticado

2) Envolvimento dos rabinos da comunidade (sem importar a linha específica da religião adotada por cada um, dos mais ortodoxos aos mais liberais), no sentido de educar ainda antes do casamento sobre a importância dos exames, além de dar suporte 27

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um caso, alguns membros da comunidade ficam mobilizados e querem ser submetidos aos exames, mas o tempo acaba por apagar a memória e a preocupação, até que outra família tenha a desagradável surpresa de um diagnóstico. Nos países onde a rotina de prevenção dessas doenças existe, as primeiras iniciativas sempre vieram do

grupo de risco específico, ou seja, da comunidade judaica. Nos EUA, onde o sistema de saúde é primordialmente privado, há inclusive programas patrocinados pela comunidade para orientação de membros que não podem arcar com os custos dos exames ou aconselhamento genético. Finalmente em 2019 assistimos um conjunto de iniciativas do grupo Cure Tay-Sachs Brasil, formado por familiares de uma criança que teve a doença diagnosticada, mas que decidiu fazer a diferença e tentar implementar a consciência da prevenção na comunidade. Foi criado um site com material informativo (www.curetaysachsbrasil.org) e promovidas palestras no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, palestras para médicos, distribuído material informativo nas sinagogas, marcada presença em eventos comunitários, dentre outras ações. 28

Talvez estejamos vivendo agora um momento favorável, uma mudança de paradigma. A tecnologia do DNA agora permite a realização de múltiplos exames em um só teste, com custo reduzido, sem necessidade de envio de material para o exterior. E apesar de ainda não haver no Brasil cobertura desses exames pelo SUS (Sistema Único de Saúde), já há normas específicas para os exames em genética via planos de saúde, com possibilidade de cobertura. Faltam então a consciência e envolvimento comunitários. Que 2019 seja a marca da mudança e da implementação de programa tão importante na nossa comunidade no Brasil. Dafne Dain Gandelman Horovitz é médica geneticista do Instituto Fernandes Figueira / Fundação Oswaldo Cruz e do CERES-Genética – Centro de Referência e Estudos em Genética Médica, Rio de Janeiro; doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro


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Segue abaixo uma lista com o resumo dos sintomas de algumas das doenças investigadas nos programas de rastreamento:

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Tay-Sachs é uma

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Doença de Canavan

condição onde as crianças se desenvolvem normalmente até cerca de quatro a seis meses, quando o sistema nervoso central começa a degenerar, devido a falta de uma enzima chamada hexosaminidase (Hex A). A criança perde todas as habilidades motoras, tornando-se cega, surda e não responsiva, vindo a falecer antes dos 5 anos.

é muito semelhante à doença de Tay-Sachs, com o desenvolvimento normal até dois a quatro meses, seguidos por perda progressiva dos marcos do desenvolvimento previamente alcançados. O obito tambem ocorre até os 5 anos.

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Doença de NiemannPick Tipo A é uma

doença em que uma quantidade prejudicial de uma substância gordurosa se acumula em diferentes partes do organismo, levando a deficiencia do crescimento e quadro neurodegenerativo, levando a morte em torno dos 3 anos. 1 em 90 judeus Ashkenazi são portadores do gene para esta doença.

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Doença de Gaucher

tipo 1 é uma condição variável, tanto na idade de início e na progressão dos sintomas. O baço é doloroso e aumentado, levando a anemia e baixa contagem de globulos brancos. A doença ossea é uma das principais causas de desconforto e limitação fisica. Há tratamento disponivel, com infusão na veia de substancia

similar a enzima deficiente no organismo a cada duas semanas, terapia esta de altissimo custo e necessaria por toda a vida.

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Disautonomia Familiar

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Síndrome de Bloom é

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Anemia de Fanconi tipo C é uma doença associada à

é uma doença que leva a disfunção do sistema nervoso autonomo e sensitivo. Isso afeta a regulação da temperatura corporal, pressão arterial, resposta ao stress, deglutição e digestão.

caracterizada por baixa estatura, lesões da pele causadas por luz solar, aumento da susceptibilidade às infecções e uma maior incidencia de leucemia e outros cânceres.

baixa estatura, falência da medula óssea e uma predisposição para leucemia e outros canceres infantis. Alguns podem ter dificuldades de aprendizagem ou retardo mental.

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Mucolipidose IV é causada pelo acúmulo de certas substâncias nocivas no corpo. Individuals com a doença apresentam varios graus de retardo mental ou motor, muitas vezes manifestando-se logo no primeiro ano de vida. Outros sintomas podem ser oculares, como opacidade da córnea, pseudoestrabismo e degeneração da retina.

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Fibrose Cística ou Mucoviscidose é um

distúrbio do multi-sistemico que faz o corpo produzir um muco espesso, que se acumula principalmente nos pulmões e no trato digestivo, resultando em infecções pulmonares crônicas e baixo crescimento. PARA MAIS INFORMAÇÕES:

www.curetay-sachsbrasil.org www.filhos-saudaveis.com

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judeus da Alemanha: triunfos e tragédias Traçar a história dos judeus alemães desde a Idade Moderna até o início do século 20 é traçar seu anseio por pertencer a uma cultura que os fascinava e serem aceitos por um povo que, como tantos outros, os desprezava. A dualidade de ser alemão e ser judeu foi uma questão que atormentou os judeus alemães. Em nenhum outro país da Europa essa ansiedade por pertencer e essa dualidade de sentimentos foi sentida tão profundamente como lá.

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o início da Idade Moderna1, ainda não havia uma “Alemanha”. As terras de língua alemã eram um grupo de mais de cem estados e mini-estados independentes, subservientes, em teoria, ao Sacro Império Germânico.

É na transição entre a Idade Média e a Idade Moderna, durante o Renascimento, que surge na Europa o humanismo, movimento intelectual que coloca o homem como o centro da importância, no mundo. A autoridade da Igreja Católica passa a ser questionada por pensadores, que acusam a Instituição de ser corrupta e criticam inúmeras de suas políticas e práticas. São poucos, porém, os que se pronunciam em relação às políticas adotadas em relação aos judeus. Entre eles, Johannes Reuchlin. Alemão, estudioso do grego e do hebraico, ele é mais conhecido por sua defesa do Talmud.

Nos domínios germânicos a vida dos judeus era difícil; o ódio da população contra eles não diminuíra. Eram acusados de causar todos os males, usar sangue cristão em seus rituais, profanar a hóstia e assim por diante. No final da Idade Média haviam sido expulsos da maior parte das cidades e, nos lugares onde lhes era permitido se estabelecer, eram obrigados a pagar impostos exorbitantes, viver em bairros separados e usar o “distintivo judaico”. Era-lhes vedada a posse de terras e propriedades. A maior parte vivia na pobreza e, sendolhes proibidas quase todas as ocupações, ganhavam a vida como vendedores ambulantes ou prestamistas. Este é o pano de fundo judaico no início do século 16, quando a Alemanha era palco de profundas mudanças religiosas. 1

Entre as práticas da Igreja, a mais criticada era a venda de “indulgências”, documentos cuja compra garantia ao cristão o perdão Divino. Um católico que comprasse uma “indulgência” não precisaria mais se penitenciar por seus pecados para ser absolvido. A oposição a essa prática era forte nos principados germânicos, mas, apesar de estar ciente dessa oposição, querendo arrecadar fundos para a construção da Basílica de São Pedro, a Santa Sé manda para lá um frade dominicano com a missão de vender “indulgências”.

Para a historiografia, a Idade Moderna é um período da História do Ocidente que se inicia no final do século 15 e termina em 1789, com a Revolução Francesa.

Para o monge católico Martim Lutero (1483-1546), essa foi a gota d’água. Em outubro de 1517, Lutero afixou 30


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VISTA AÉREA DE FRANKFURT AM MAIN, HOJE

na porta do castelo de Wittenberg suas 95 Teses, nas quais defendia a extinção das “indulgências” e condenava o luxo e o poder de que desfrutavam o papa e o alto clero, em Roma. Lutero obteve o apoio de praticamente todos os setores da sociedade alemã, e suas ideias deram origem a um movimento de ruptura dentro da Igreja Católica, a Reforma Protestante, e à criação do Luteranismo.

Os judeus e Lutero A posição de Lutero em relação aos judeus irá exercer uma influência profunda e duradoura sobre o povo germânico e, consequentemente, sobre a História Judaica. Num primeiro momento, ele defendeu nosso povo com ardor porque acreditava que os judeus abraçariam “sua forma purificada de Cristianismo”. Quando os judeus

alemães não se convertem, ele muda radicalmente, passando a incentivar o antissemitismo com extraordinária virulência. Afirmava que, como era impossível converter os judeus, deviam ser destruídas suas práticas religiosas, pois eram uma “fabricação do demônio” para impedir a salvação dos cristãos. Uma amostra de seus “ensinamentos” é o tratado de 1543 - “Sobre os Judeus e Suas Mentiras” (do alemão, Von den Juden und ihren Lügen) - no qual defende a perseguição aos judeus. Nele argumenta que não deviam ser tratados com clemência e que a única forma de lidar com eles era incendiar suas sinagogas, seus livros de oração e suas escolas; arrasar suas casas e suas propriedades, confiscando todos seus bens e dinheiro. Deviam ser obrigados ao trabalho forçado ou definitivamente expulsos. Incentiva, 31

também, o assassinato de judeus, dizendo: “Temos culpa de não os matar”. Suas palavras tiveram um profundo e longo alcance sobre o povo alemão, certamente até a 2ª Guerra Mundial. Prova disso são os elogios com que Hitler, católico, o cobre em seu Mein Kampf, e no fato dos nazistas utilizaram-se de seus “ensinamentos” sobre o tratamento que devia ser dado aos judeus durante seus comícios em Nuremberg, nas reuniões do alto comando nazista e nas próprias medidas adotadas em relação à população judaica. Na época em que Lutero viveu, seus ensinamentos incentivaram ainda mais o ódio contra a população judaica. Alguns dos príncipes germânicos que se haviam tornado luteranos ferrenhos, passaram a pôr em prática seus ensinamentos. DEZEMBRO 2019


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John Frederick, o Magnânimo, Eleitor da Saxônia, foi o primeiro a bani-los de seus domínios, sendo seguido por outros, até que os judeus encontraram um inesperado aliado em Carlos V, o Imperador do Sacro Império Germânico. Enquanto portava a coroa da Espanha, Carlos V perseguia os judeus, mas seu ódio em relação a Lutero era ainda mais forte. Sua proteção impediu que fossem expulsos de Habsburgo (1530), Speyer (1544) e Regensburgo (1546).

Os enfrentamentos entre católicos e protestantes foram marcados pela intolerância, sendo os principados germânicos palco de violentas lutas entre os partidários das duas religiões. Os embates chegaram ao fim em 1555, quando príncipes católicos e protestantes assinaram um tratado. Conhecido como a Paz de Augsburgo, o tratado estipulava que cada príncipe podia escolher a religião a ser adotada em seus domínios, determinando ainda que seria adotada a política de

PILHAGEM NO GUETO DE FRANKFURT durante o Pogrom Fettmilch EM 22 DE AGOSTO DE 1614

Foi Joseph ( Joselman) Gershon de Rosheim (c. 1478–1554), grande defensor de todos os judeus do Império, quem conseguiu a proteção do Imperador. Logo após a ascensão de Carlos V ao trono, em 1520, Joseph de Rosheim havia obtido uma carta de proteção para toda a comunidade judaica alemã. Dez anos depois conseguiu renová-la, dando certo alívio à situação dos judeus. Alarmado com o fortalecimento do Protestantismo, Carlos V, católico fervoroso, promove o Concílio de Trento, que daria início à chamada Contrarreforma da Igreja Católica.

cujus regio, ejus religio, a religião do príncipe devia ser a dos súditos. A maioria dos governantes do Sul da Alemanha escolheram o Catolicismo, enquanto os do Norte se tornaram luteranos. Os judeus se viram encurralados em meio aos embates. Durante a luta doutrinária da Contrarreforma, a Igreja estava determinada a afastar os “descrentes e hereges” do convívio dos católicos. Os judeus, em situação mais vulnerável do que os protestantes, tornaram-se um alvo fácil. Para o Papa Paulo IV, a 32

“quarentena” era a única forma de evitar o convívio entre católicos e judeus e, em 1555, ele cria o primeiro gueto “oficial”. Outros soberanos seguiram o exemplo, bem como os príncipes alemães. Assim sendo, emergia o gueto, legalizado pelos poderes religiosos e seculares. Na Alemanha, destinava-se a ser abolido somente mais de dois séculos mais tarde.

O pogrom Fettmilch Os sentimentos anti-judaicos de católicos e protestantes resultam em novas ondas de violência. O ataque mais famoso perpetrado nesse período contra a população judaica ocorreu em Frankfurt, em 1612. O gueto de Frankfurt, no Judengasse (o bairro judaico), onde, em 1610, viviam apinhados 2.270 judeus, era o centro da vida judaica no Sacro Império Germânico. Em 22 de agosto do ano de 1612, é invadido por uma multidão liderada por Vincent Fettmilch. Calvinista que se autodenominava “o novo Haman” dos judeus, Fettmilch havia decidido atacar o gueto após lhe terem sido negadas as petições para a expulsão dos judeus da cidade. Os judeus os enfrentaram de armas em punho, resistindo bravamente por mais de cinco horas, mas vendo que não poderiam evitar a entrada do populacho no gueto, conseguiram escapar. Após entrar no Judengasse, os invasores saquearam as propriedades, ateando fogo no que não podia ser levado. As autoridades esperaram 13 horas após o início do pogrom para pôr um fim à selvageria. Muito estrago já havia sido feito, dois judeus e um cristão foram mortos, sendo imensos os prejuízos materiais.


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Mas, pela primeira vez, os invasores não ficaram impunes. O imperador ordenou sua prisão. Quatro deles foram presos logo em seguida e decapitados. Fettmilch, graças à sua popularidade entre os baderneiros, conseguiu escapar até que finalmente foi preso e, em 10 de marco de 1616, “o novo Haman” dos judeus foi enforcado e esquartejado. Uma cerimônia imperial marcou a volta dos judeus à cidade. Para lembrar os eventos, a comunidade judaica de Frankfurt determinou festejar o dia 20 de Adar como “Purim Wintz”, com canções especiais e um relato poético da história no dialeto judeu-alemão, ao que deram o nome de “Meguilá de Mintz”.

A Guerra dos Trinta Anos Após a assinatura da Paz de Augsburgo, os principados germânicos usufruíram de tranquilidade até a eclosão, em 1618, da Guerra dos Trinta Anos. Esta teve início na Boêmia quando o Imperador tentou impor o catolicismo à população. Os protestantes se rebelaram, fazendo irromper a guerra. As lutas entre católicos e protestantes se transformaram numa guerra europeia, à medida que os príncipes germânicos foram pedindo ajuda a outros monarcas. Os protestantes recorreram à Dinamarca, Suíça e Holanda, também protestantes, enquanto os católicos buscaram o apoio da Espanha. O conflito passou a ter uma maior conotação política quando a França, católica, entrou na guerra ao lado dos protestantes. O intuito francês era diminuir a força dos Habsburgos, imperadores do Sacro Império Germânico.

CASAMENTO JUDAICO. ÓLEO, AUTOR DESCONHECIDO. BOÊMIA-MORÁVIA c. 1750. MUSEU ISRAEL, JERUSALÉM

A Guerra terminou em outubro de 1648 quando as partes envolvidas assinaram a Paz de Vestefália. O acordo colocou um fim nos conflitos religiosos, reconhecendo oficialmente o Calvinismo. A Guerra travada, principalmente, em solo alemão, destruiu cidades e vilarejos, e estima-se que tenha custado a vida de um terço a um quarto da população. Economicamente arruinado e religiosamente dividido, o Sacro Império perdeu grande parte de seu poder, despedaçando-se em 240 estados semiautônomos. Deles, os mais poderosos eram a Áustria, seguidos pela Saxônia, Bavária e Brandenburgo. Este último, governado pela dinastia Hohenzollern, localizava-se no norte da Alemanha e consistia da região central e sua capital, Berlim. Com a união dos territórios dos Hohenzollern e o Ducado da Prússia, surge o estado chamado de Brandenburgo-Prússia, que, após 1701, passa a ser a Prússia. Frederico II, o Grande (r. 1740-86), vai transformá-la em uma das maiores potências da Europa. 33

Para os judeus alemães a Guerra abriu novas perspectivas. Durante o conflito, os contatos que possuíam com o Leste da Europa possibilitaram que atuassem como empreiteiros de aprovisionamento para exércitos inteiros. Mas, acima de tudo, foram capazes de levantar vultosas somas para financiar a Guerra. No final da Guerra dos Trinta Anos, a principal preocupação era reconstruir as cidades e aldeias destruídas. O comércio e as transações financeiras deixam de ser vistos como atividades “desonrosas”, passando a ser considerados necessários. Cidades imperiais e principados que haviam expulsado os judeus apressam-se em readmiti-los.

Os “Judeus da Corte” Nesse período aparece a figura dos “Judeus da Corte” (em alemão, Hofjude ou Hoffaktor) que iriam desempenhar importante papel nas cortes germânicas até o início do século 19. Endividados e desejosos de fortalecer o seu poder, os governantes percebem a utilidade dos Judeus da Corte e DEZEMBRO 2019


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Muitos eram pioneiros em negócios e finanças, e, como eram proibidos de possuir propriedades, haviam acumulado uma riqueza líquida. Os governantes passam a vê-los como uma fonte adicional de riqueza e o “problema judaico”cdeixa a esfera religiosa passando para a econômica e política. Os judeus passam a ser convidados a se estabelecer em locais até então proibidos e lhes são concedidos vários privilégios.

FAMÍLIAS COM SUAS FINAS ROUPAS DE SHABAT REUNIDAS À ENTRADA DA SINAGOGA. ALEMANHA, INÍCIO DO SÉCULO 19

passam a utilizar seus serviços como financistas e administradores. Os Judeus da Corte constituíram uma classe distinta do resto da população judaica, pois desfrutavam de privilégios especiais: acesso direto ao soberano, direito de viver em qualquer lugar, vestir-se como queriam, adquirir imóveis, portar armas, entre outros. Em alguns casos recebiam títulos de nobreza. Até o final do século 18 poucos deles haviam rompido com suas raízes judaicas. Muito pelo contrário, era comum exercerem as funções de shtadlanim, isto é, interlocutores da comunidade judaica junto às autoridades. Eles construíram sinagogas, fundaram ieshivot e foram instrumentais em reerguer comunidades como as de Dresden, Leipzig, Kassel, Brunswick e Halle. Em muitos casos, sua intervenção conseguiu evitar expulsões e medidas anti-judaicas. Porém, por mais poderoso que fosse, o Judeu da Corte nunca estava seguro. Seu bem-estar dependia do capricho do governante que o empregava e, na maioria das vezes, era odiado tanto pelos nobres como pelo povo. Muitos deles tiveram

um fim trágico. O mais conhecido foi o caso do poderoso Joseph Suss Oppenheimer, conselheiro financeiro do duque Alexandre de Wurttemberg. Assim que o duque morreu, Oppenheimer foi preso e sentenciado à morte. Ele se recusou a ser batizado para se salvar e morreu declarando o Shemá.

Mercantilismo, absolutismo e iluminismo

Obviamente, essa nova “tolerância” não incluía todos os judeus, apenas os mais “úteis” e abastados. Frederick William, “o Grande Eleitor” de Brandenburgo, por exemplo, permitiu que 50 famílias judias se instalassem em Berlim, visando tornar a cidade o centro comercial da região. Em Hamburgo, em 1612, um grupo de judeus portugueses também foi convidado a se estabelecer na cidade, tendo lá fundado o Banco de Hamburgo, promovendo, assim, o comércio com Espanha e Portugal. A “tolerância” dos monarcas absolutistas era limitada. Mesmo os

Com a centralização das monarquias nacionais surge, na Europa, o absolutismo, um sistema político no qual todo o poder está concentrado no monarca. Em termos econômicos, o absolutismo veio atrelado à teoria mercantilista. De acordo com essa teoria, a riqueza e o poder de um estado dependiam do nível de suas reservas em ouro e prata. Nesse contexto, os judeus passam a ser vistos sob outra ótica, que levava em conta sua “utilidade” em relação ao Estado. Séculos de restrições os haviam tornado um povo comercialmente experiente, com conexões internacionais. 34

ILUSTRAÇÃO DA EXECUÇÃO DE JOSEPH S. OPPENHEIMER: ÚLTIMA REFEIÇÃO GRAVURA EM COBRE, ELIAS BAECK, 1738


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chamados Déspotas Esclarecidos2, influenciados pelas ideias do racionalismo iluminista, quando já permitiam o estabelecimento dos judeus em suas cidades, essa permissão vinha atrelada a um sistema de supervisão que regulava cada detalhe da vida judaica. Havia leis para determinar quem podia se estabelecer na cidade, a duração da estada, os impostos a serem pagos, a conduta dos negócios, bem como as questões de herança. Havia uma série de restrições arbitrárias até mesmo sobre sua vida familiar, como o número de casamentos permitidos anualmente e de filhos que herdariam o direito de ficar na cidade. O Rei da Prússia Frederico II, o Grande, é um típico exemplo da dicotomia de atitude que os Déspotas Esclarecidos mantinham em relação aos judeus. Em termos pessoais, Frederico II, assim como seus antecessores, desprezava os judeus, a quem, em 1752, descreveu como “perigosos, avarentos, supersticiosos e atrasados”. Mas, conseguia “passar por cima” de seus preconceitos para beneficiar seu reino, utilizandose do apoio de judeus ricos para o financiamento de sua política mercantilista e expansionista. Contudo, a determinação oficial era considerar os judeus (e todos os servos) como criaturas sub-humanas.

sujeitos a regras degradantes. Em 1750, Frederico II os dividiu em seis classes. Apenas, os “privilegiados”, um pequeno grupo de industriais, obtiveram plenos direitos de residência e ocupação, bem como a garantia de que todos os seus filhos poderiam se estabelecer na cidade. Os judeus pertencentes à 2ª classe podiam radicar-se apenas no local predeterminado e esse direito era herdado apenas por um de seus filhos. Nenhum filho ou a viúva de um membro da 3ª classe – composta por profissionais liberais – podia permanecer na cidade. Os judeus das outras três classes não tinham direito algum. E, para o grande número de judeus pobres, a ordem era expulsálos da Prússia.

Iluminismo Alemão e Moses Mendelssohn O pensamento Iluminista que havia se difundido na Europa, no século 18, acreditava na primazia da razão, da liberdade – considerada um direito natural e fundamental do

indivíduo – e da igualdade perante a lei. Os pensadores iluministas acreditavam que o comportamento de cada indivíduo era consequência do meio em que vivia, e que o homem era mais importante do que suas diferenças históricas ou religiosas. A chamada “questão judaica”, que passou a ser discutida pelos iluministas na segunda metade do século 18, era tratada com cautela dentro e fora da Alemanha. A maioria dos iluministas acreditava que era possível “regenerar os judeus, resgatando-os de sua ignorância, superstição e obscurantismo”, mas mantinham uma posição ambígua em relação à concessão de direitos iguais. Mesmo os mais ardentes filo-semitas do iluminismo alemão (Aufklärung) preferiam tratar a “questão judaica” de forma “seletiva”, aproximando-se de uns poucos judeus ricos e cultos, considerados “a exceção”. Mas, para a época, mesmo o relutante reconhecimento de que havia judeus que mereciam ter direitos iguais era

LAVATER E LESSING EM VISITA A MOSES MENDELSSOHN. ÓLEO. MORITZ DANIEL OPPENHEIM, 1856

Em termos relativos, a Prússia era mais tolerante do que a maioria dos estados germânicos. Em Berlim, por exemplo, não houve guetos. Os judeus recebiam direito de residência de acordo com sua utilidade econômica, mas estavam Déspotas esclarecidos ou reis déspotas são soberanos europeus que tentaram colocar em prática as ideias dos filósofos iluministas. Esses governantes ficaram conhecidos como praticantes do absolutismo ilustrado.

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COMUNIDADES

um importante raio de esperança. A maioria dos judeus alemães viviam segregados nos guetos, como em Frankfurt. Em apenas algumas cidades, como Berlim e Hamburgo, era-lhes permitido morar onde quisessem. Sua presença, na melhor das hipóteses, era “tolerada” pelos não-judeus e era raro o relacionamento social. Entre outras razões, porque a maioria dos judeus não falava ou lia o alemão, apenas usavam o hebraico e o Judendeutsch, dialeto alemão misturado com hebraico. Poucos tinham acesso à cultura secular e apenas alguns judeus da elite enviavam seus filhos às universidades na Holanda ou Itália, pois era proibida a entrada de judeus nas universidades alemãs. Coube a um judeu alemão, Moses Mendelssohn, abrir para seus correligionários as portas da cultura secular. Ele era um homem modesto e tinha uma curvatura na espinha, o que o fazia viver recolhido. Pode-se dizer que sua vida tem os elementos de um romance. Nasceu em uma família de judeus ortodoxos, sem recursos, no gueto de Dessau, em

1729. Começou seus estudos no cheder do Rabino David H. Frankel. Quando o rabino foi chamado pela comunidade de Berlim para se tornar Rabino Chefe, Mendelssohn decidiu segui-lo, indo a pé até a capital prussiana. Em Berlim, descortina-se diante dele um mundo totalmente novo. Na cidade viviam judeus abastados, que falavam alemão e possuíam livros seculares e estes viram seu potencial e decidiram ajudá-lo a expandir seus horizontes. Tendo uma impressionante capacidade de leitura, Mendelssohn aprendeu alemão e latim e adquiriu uma ampla gama de conhecimentos seculares. Em um jogo de xadrez, ele conheceu Gotthold Lessing, famoso dramaturgo, e os dois se tornaram amigos. Um dos grandes expoentes do Iluminismo alemão, Lessing foi o primeiro cristão a representar, em sua peça de 1749, Die Juden (Os judeus), o judeu como um indivíduo culto, refinado e sensível. O dramaturgo introduziu Mendelssohn na sociedade literária e o incentivou a escrever, promovendo a publicação de sua primeira obra, Diálogos

Filosóficos. De pronto a lucidez de seu pensamento e a elegância de seu estilo surpreendem e conquistam o público alemão. Mendelssohn se tornou uma figura importante nos salões intelectuais de Berlim. Ele era visto como uma “exceção” no meio de um povo “retrógrado” e, com frequência, seus admiradores cristãos lhe perguntavam como ele, tão “esclarecido”, conseguia continuar sendo judeu praticante e membro de um grupo religioso “obscurantista”. E ele sempre respondia que o judaísmo era uma teologia racional e que os judeus eram portadores de uma nobre tradição. Aos que sugeriam que ele se convertesse, respondia: “Declaro-me judeu. E judeu continuarei para sempre”. Mas ele também acreditava na necessidade da aculturação dos judeus alemães. Entendia ser necessário mudar a imagem que os não judeus faziam deles, abrindo-se para o mundo secular, sem deixarem de ser judeus. Para Mendelssohn, a forma de fazê-lo era dar a todos os judeus acesso à língua e cultura alemãs, algo a que ele se dedicou nos últimos 17 anos de sua vida. Qual o lugar que Mendelssohn ocupa na História Judaica? Não foi o precursor do movimento reformista, no Judaísmo, como muitos acreditam. Tampouco lutou pelos direitos civis judaicos. Seu papel foi ter sido quem despertou os interesses seculares entre os judeus da Europa Central.

Século 19 e a emancipação judaica Em 1789 a Europa é sacudida pela Revolução Francesa e seus ideais de liberdade. Estima-se que, na época,

O CHEDER, 1878. ÓLEO SOBRE TELA, MORITZ DANIEL OPPENHEIM. MUSEU JUDAICO DE NOVA YORK

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viviam 60 mil judeus nos estados germânicos. O número crescera consideravelmente com a expansão do território da Prússia após três guerras sucessivas. Mas as liberdades limitadas que certos judeus desfrutavam no núcleo da Prússia Brandemburgo, Pomerânia e Prússia Oriental - não foram estendidas aos judeus anexados da Silésia, Prússia Ocidental e Posen. Apesar de haver comunidades judaicas numerosas em cidades como Hamburgo e Frankfurt, à medida que a Prússia amplia seu poder, sua capital, Berlim, torna-se o centro do judaísmo alemão. As notícias da emancipação dos judeus franceses percorrem a Europa como um raio de esperança. Encorajados, os judeus da Alemanha tentam pleitear sua igualdade civil. A partir de 1792, líderes de várias comunidades judaicas procuram os governantes dos reinos germânicos pedindo a concessão, aos judeus, de igualdade de direitos. Mas seus esforços são inúteis. Sempre que os judeus faziam petições por mais direitos, eram feitas contrapetições pelos cidadãos alemães para “mantê-los em seu lugar”. O prospecto da emancipação judaica assustava a maioria dos alemães, que continuavam a ver os judeus como “estrangeiros obscurantistas, que não compartilhavam das tradições germânicas e cristãs”. De acordo com Johann Fichte, o filósofo alemão que foi um dos criadores do movimento conhecido como idealismo alemão, “A única maneira de conceder direitos civis aos judeus é decapitálos, à noite, e colocar-lhes uma cabeça nova na manhã seguinte, sem nem uma única ideia judaica sequer”. Enquanto os judeus alemães tentavam obter sua igualdade civil,

Napoleão Bonaparte, na França, após ter consolidado seu poder, preparava-se para conquistar seus vizinhos europeus. Não havia combinação de exércitos que pudesse se interpor no caminho do Imperador. Suas tropas iam sistematicamente deixando em pedaços a coalização de exércitos prussianos, austríacos e russos. Napoleão esperava ter o apoio das populações judaicas, mas apesar de ter sofrido com a intolerância cristã, a maioria os judeus dos estados

puseram abaixo os muros dos guetos, e eram seus oficiais que faziam os judeus saírem pelos buracos nos muros. Ademais, em todos os territórios ocupados pelos franceses, foi constitucionalmente instaurada a igualdade judaica perante a lei, bem como a igualdade legislativa para todos os habitantes. Já na Prússia, a situação dos judeus era a mais complicada. Os prussianos podiam ter sido derrotados, mas o país não fora ocupado por soldados franceses e uma nova

MINIAN PARA AS ORAÇÕES DE UM ANIVERSÁRIO DE FALECIMENTO. MORITZ DANIEL OPPENHEIM

germânicos recusaram-se a agir contra seus governantes durante as Guerras Napoleônicas. A lealdade, no caso dos judeus da Prússia, e particularmente de Berlim, era ditada por seu patriotismo, já que se consideravam prussianos. Os que viviam nos guetos, agiam assim por medo de represália. Como disse um comandante francês, “Pássaros enjaulados assoviam as músicas que lhes são ensinadas”... Mas, em cada cidade ocupada as tropas francesas, literalmente 37

série de regulamentos tinham sido impostos à comunidade judaica, dando poderes à polícia para punir qualquer comportamento judaico “suspeito”. O Rei Frederick William III admitiu uma “certa aspereza” na nova legislação, mas a considerava justificada, pois os judeus “constituíam um estado dentro de um estado”. Não importava o fato de sempre terem demonstrado lealdade e patriotismo. William III mostrava-se resistente às tentativas que visavam a emancipação judaica, insistindo que os judeus deviam DEZEMBRO 2019


COMUNIDADES

1.

1. SUSANNE HAHN, NASCIDA LAZARUS, DE HAMBURGO, COM 7 DE SEUS 11 FILHOS. FOTO DE HERMAN BIOW, PIONEIRO NA ARTE DA FOTOGRAFIA, 1843 2. FAMÍLIA DE ANSELM HEINRICH DULKEN, DE DEUTZ. c. 1860

provar que eram “dignos de receber a cidadania”. Finalmente, em 11 de março de 1812, os judeus da Prússia são emancipados. Mas ainda era uma concessão parcial, já que não podiam ocupar posições governamentais. Ainda recaía sobre eles a suspeita de deslealdade, não importando o fato de terem participado da campanha militar contra os franceses, e de muitos terem morrido. De certa forma, em Berlim, os muros da segregação social haviam sido derrubados antes da emancipação judaica. Um número cada vez maior de integrantes da elite judaica passa a viver em dois mundos – o judaico e o alemão. Seus filhos já dominavam o idioma alemão e acreditavam que seu grau de Kultur os tornaria 100% alemães. Essa nova tolerância em relação às elites judaicas permitiu, no final da década de 1780, o desabrochar, em Berlim, do gosto pelos salões literários. Muitos desses salões pertenciam a judeus e deram espaço a uma grande interação entre prussianos cristãos e judeus.

encarar a desaprovação das famílias e da comunidade, muitos mantinham em segredo essa decisão. Mas os números eram os mais altos da Europa. De acordo com o historiador Heinrich Graetz, a metade da comunidade judaica de Berlim se havia convertido, inclusive quatro dos seis filhos de Mendelssohn. O fenômeno era praticamente restrito à classe alta e média alta, o restante da população judaica mantinha-se fiel à sua fé. A maioria deles eram motivados por considerações pragmáticas: melhorar seu status social, conseguir avanços

acadêmicos ou profissionais, um posto no governo ou se casar. Entre os ricos, havia quem resistisse. Em 1816, ao chegar a Berlim, Carl von Rothschild escreveu a seus irmãos: “Poderia me casar com a moça mais bonita e mais rica de Berlim. Mas, nem por todos os tesouros do mundo eu o faria. Aqui em Berlim, se uma moça não é convertida, com certeza um de seus irmãos ou cunhados o é....”. Fritz Mauthner, renomado filólogo convertido, alegava que, ainda que fosse possível que um judeu pudesse se converter por pura convicção, ele

A FAMÍLIA WARBURG, DE BANQUEIROS DE HAMBURGO. VÁRIOS DE SEUS INTEGRANTES FORAM CIENTISTAS E FILANTROPOS, 1884

Não temos dados confiáveis acerca da primeira leva de conversões de judeus ao Cristianismo. Não querendo 38


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próprio nunca tinha encontrado nenhum. O poeta Heinrich Heine chamava o batismo de “bilhete de entrada à cultura europeia”. Um bilhete que prometia igualdade – se não imediatamente, em algum momento futuro. Demorou algum tempo até os judeus perceberem de que o batismo não solucionaria os problemas gerados por séculos de segregação, preconceitos e restrições legais.

O retorno dos conservadores Após terem conseguido derrotar Napoleão, representantes das potências vitoriosas se reúnem em Viena, entre outubro de 1814 e junho de 1815, para redesenhar o mapa da Europa. Durante as sessões do Congresso, presidido pelo ministro austríaco Príncipe de Metternich, apresentam-se várias delegações judaicas, visando confirmação dos direitos adquiridos durante a era napoleônica. Judeus de toda a Europa estavam determinados a salvar o que fosse possível de sua emancipação. Mas os políticos alemães reagem com uma feroz oposição. Metternich, instigado pelo Barão Salomon Rothschild, interferiu em favor dos judeus, mas no último minuto, as esperanças judaicas desmoronaram. O Congresso encerrou suas atividades em 1815 e entre as resoluções estava a criação da Confederação Germânica, sob hegemonia austríaca. A Confederação era composta de 39 estados, sendo os mais poderosos o Império Austríaco e o Reino da Prússia. Um grito depreciativo de mobilização contra os judeus, comum na Alemanha. Há quem diga que representasse as iniciais de Hierosolyma est perdita (“Jerusalém está perdida”). Provavelmente era um chamado usado para reunir o rebanho.

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SINAGOGA DE KARLSRUHE VISTA DO PÁTIO E FACHADA INTERIOR, 1798-1806. FRIEDERICH WEINBRENNER. AQUARELA DE A.STÄHELIN, 1816. BÂLE, mUSEU DE aRTES, kUPFERTISCHKABINETT

A situação civil dos judeus variava de estado a estado. Alguns revogaram os editais da emancipação judaica, ao passo que outros, apesar de os manterem oficialmente, os ignoravam na prática. A maioria, no entanto, voltou a proibir os judeus de ocuparem cargos públicos e acadêmicos, bem como de serem oficiais do exército. Em alguns casos, como em Frankfurt, houve tentativas de os fazerem retroceder ao seu status medieval.

se rapidamente, atingindo outros estados da Confederação Alemã. Muitos judeus foram mortos e muitas propriedades judaicas foram destruídas. Os massacres eram uma clara demonstração para a burguesia judaica de que, apesar de todo o seu empenho em adotar um estilo de vida alemão, os judeus não eram aceitos pela população cristã. Para alguns, a conversão voltou a parecer o único bilhete de entrada para a civilização europeia.

De 1815 até 1848, os judeus alemães assistem o surgimento de um movimento conservador, nacionalista, romântico e cristão. A pregação igualitária da Revolução Francesa foi suplantada pela idealização da superioridade da nação alemã e do destino germânico. O resultado foi a intensificação do antissemitismo, endossado por um romantismo teórico e um racionalismo intelectual. Com isto, tornam-se cada vez mais comuns as agressões contra os judeus. Em 1819, eles são alvo dos pogroms hoje conhecidos como “Hep, Hep3”. Em 2 de agosto desse ano são atacados os judeus de Würzburg, no Reino da Baviera. A violência antissemita espalhou-

A chamada Revolução de 1848, um levante liberal que irrompeu primeiramente na França, repercutiu no restante da Europa abalando as monarquias europeias. Os ventos das revoluções liberais atingem também a Confederação Germânica. Os liberais exigiam uma Constituição. Os intelectuais judeus estavam na vanguarda dos movimentos, acreditando que os mesmos resolveriam sua dupla condição de judeus e cidadãos. O rei Frederico Guilherme IV acabou convocando uma assembleia nacional e, em 1849, é redigida uma Constituição para a Alemanha.

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Os conservadores queriam uma Alemanha unida, sob o domínio DEZEMBRO 2019


COMUNIDADES

tiveram papel preponderante nos negócios bancários, no comércio e na indústria. E, uma vez eliminadas as barreiras, logo se destacaram nas profissões liberais, no jornalismo, nas artes, na vida acadêmica e nas ciências. Haviam-se tornado uma comunidade forte, poderosa, e culta, o centro do judaísmo europeu. E começam a erguer majestosas sinagogas, símbolos imponentes de seu sucesso e bem-estar.

CROQUIS DA PAREDE ORIENTAL DA NEUE SYNAGOGE, BERLIM, COM O ARON HAKODESH AO FUNDO

da Prússia, mas não liberal. Triunfando primeiro na Áustria e depois na Prússia, a restauração conservadora acabou por dominar toda a Alemanha.

Vida judaica no séc. 19 Na Alemanha, as décadas de 1850 e 1860 foram de expansão econômica e industrial e os judeus alemães

No final do século 19, a aculturação e assimilação de grande parte da comunidade judaica atingiu proporções sem igual. A história da assimilação alemã é, há muito, um assunto sensível. Fritz Stern, historiador americano, nascido na Alemanha e falecido em 2016, dedicou-se ao estudo da História da Alemanha como nenhum outro. Ele defendia que “a história dos judeus assimilados da Alemanha é mais do que a história de uma tragédia. Durante muito tempo foi, também, a história de um sucesso extraordinário. É preciso entender os triunfos para que se possa entender a tragédia”. Desde o Iluminismo e, mais ainda, após a emancipação, os judeus alemães haviam mudado sua aparência, seu modo de se vestir, adotando língua, filosofia e costumes alemães, na tentativa suprema de deixarem de ser vistos como “forasteiros” e serem, finalmente, considerados parte integrante do povo alemão. Eles queriam ser vistos como alemães de fé mosaica. Buscando tornar o judaísmo “mais aceitável” aos olhos cristãos, a aculturada burguesia judaica procurou, também, “ocidentalizar” os serviços religiosos, adequando-os a conceitos estéticos ocidentais e protestantes. Assim, abandonaram os rituais ou tradições milenares por

PORTRAIT DA FAMÍLIA MANHEIMER. BERLIM, c. 1850

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considerá-los por demais antiquados ou orientais. Nascia, na Alemanha o movimento Reformista judaico e, em seguida, o Judaísmo Conservador. Dentro desse contexto surge a chamada Moderna Ortodoxia, encabeçada pelo Rabino Samson Raphael Hirsch. Nascido em Hamburgo, ele era um intelectual, com total domínio da língua e cultura alemã. Porta-voz brilhante da ortodoxia judaica do século 19, sua apresentação da fé judaica, intitulada Dezenove Cartas sobre o Judaísmo, conseguiu estancar a migração de jovens judeus para o Movimento Reformista. “O homem ideal de Israel”, ensinava o Rabino Hirsch, “é um judeu esclarecido que observa os preceitos judaicos”. Na virada do século 20, contrariando as expectativas, muitos alemães se ressentem da “invasão” judaica, despertando intensa animosidade. Se, entre as classes mais baixas, o ódio aos judeus ainda tinha cunho religioso, com ranço medieval, à medida que se subisse na escala social, percebia-se o surgimento de um novo antissemitismo ainda mais perigoso, de cunho secular, racial e cultural. O próprio termo ‘antissemitismo’, com suas conotações biológicas e raciais, foi usado pela primeira vez em 1879, por um alemão, Wilmer Marr, fundador da famosa Liga Antissemita. Marr, que embasava o termo “antissemitismo” em uma identidade racial, afirmava

A NEUE SYNAGOGE, BERLIM, COM SEU DOMO RESTAURADO. VISTO DA ORANIENBURGERSTRASSE, VOLTOU A SER UM MARCO MUITO VISÍVEL DE BERLIM

que o caráter “inato” dos judeus era absolutamente oposto ao caráter “nobre e puro” dos arianos. Infelizmente, afirmava, os judeus não podiam deixar de ser o que eram; isto é, homens “inferiores moral e fisicamente”. Os antissemitas opunham-se violentamente à conversão dos

judeus ao Cristianismo. O problema judaico não era mais da alçada da religião cristã, não adiantando mais buscar refúgio no batismo, uma vez que a “natureza inata” de um judeu não podia ser mudada. O que os arianos não podiam permitir era que a “mácula” do “sangue judaico” contaminasse a “pureza do sangue” germânico. No despertar do século 20 muitos judeus alemães estavam diante de um impasse. Tinham deixado voluntariamente suas raízes e seu passado para trás e viam que o presente parecia estar fechado a eles. Mas, ainda assim, acreditavam que a razão iria prevalecer e que haveria um futuro para eles em terras germânicas. Este erro custaria a vida de milhões de nossos irmãos.

NEUE SYNAGOGE, PROJETADA EM 1859 POR EDUARD KNOBLAUCH E INAGURADA EM 1866.

BIBLIOGRAFIA

Elon, Amos, Pity of It All: A Portrait of Jews in Germany, 1743-1933. Kindle Edition www.educabras.com Sachar, Howard M, The Course of Modern Jewish History. Kindle Edition Gidal, Nachum Tim, Jews in Germany: From Roman Times to the Weimar Republic. Kindle Edition 41

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BRASIL

o maestro em busca da última música Para marcar os 75 anos da libertação dos campos de concentração, o KKL Brasil trouxe a São Paulo, em novembro último, o maestro e pianista italiano Francesco Lotoro. Criador de um projeto de resgate de músicas criadas nos campos nazistas, Lotoro regeu, no Auditório Simón Bolívar, do Memorial da América Latina, o concerto “O Maestro - Em Busca da Última Música”, executado pela Orquestra Jazz Sinfônica.

L

otoro esteve no Brasil no segundo semestre de 2018 para a exibição do documentário “O Maestro, em Busca da Última Música”, dirigido por Alexandre Valenti. O documentário, exibido em São Paulo, no Cinesesc, durante a Mostra Internacional de Cinema, narra a trajetória do maestro. Ao término da sessão, Lotoro presenteou o público com a apresentação de algumas músicas compostas nos campos, um repertório ainda desconhecido do grande público.

mostrando como mesmo os horrores do Holocausto não conseguiram abafar a inspiração e a criação artística. Até hoje o maestro catalogou cerca de 1,6 mil compositores e transcreveu mais de 8 mil peças musicais. Muitas das partituras encontradas foram escritas usando o material que caía nas mãos de seus criadores, nos campos de concentração: papel higiênico, sacos de carvão, o que quer que fosse...

Há 30 anos Lotoro dedica-se à missão de resgatar obras compostas durante a 2ª Guerra pelas vítimas do Terceiro Reich. As obras foram compostas em sua maioria por judeus, mas há também músicas de autoria de ciganos, presos políticos e outros perseguidos pelo nazismo. Ao resgatar peças compostas durante o tempo em que seus autores estavam presos, Lotoro busca preencher o vazio deixado na história musical da Europa,

Francesco Lotoro nasceu em Barletta, cidade no sul da Itália. Seu pai era alfaiate e a mãe, costureira. Desde pequeno ele demonstrava ser uma grande promessa musical. Matriculado no conservatório de música da cidade, parecia destinado a uma grande carreira de pianista. O destino, no entanto, lhe apontava outra direção, muito diferente, quando seguindo o conselho de um colega de classe, ele se transferiu para a Academia de Música Franz Liszt, em Budapeste. Os professores eram bem mais exigentes do que no sul da Itália, e é quando ele descobre o trabalho musical de Gideon Klein1 e Viktor Ullmann, dois compositores judeus que estiveram presos em Terezin, sendo depois enviados para Auschwitz, onde foram mortos.

Sua vida

Gideon Klein foi um pianista checo, compositor e organizador da vida cultural no campo de concentração de Theresienstadt, para onde foi deportado em 1941. Juntamente com Pavel Haas, Hans Krása, e Viktor Ullmann, ele se tornou um dos maiores compositores do campo. Ullmann foi morto em Auschwitz, em 1944, e Klein, no campo de Fürstengrube, um dos subcampos de Auschwitz, em janeiro de 1945.

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REVISTA MORASHÁ i 106 Foto: Eliana Assumpçao

O maestro italiano Francesco Lotoro

A obra e destino dos dois músicos o marcaram profundamente. Foi o primeiro passo de uma longa jornada que o levaria a vários países em busca de mais músicas compostas clandestinamente nos campos. Ao voltar a Barletta, Lotoro praticamente enfurnou-se nos 12 volumes da magistral Deuum, a enciclopédia italiana de música. Enquanto lia os verbetes biográficos, dois nomes voltavam sempre: Auschwitz e Theresienstadt. À medida que se aprofundava seu interesse por esses lugares mórbidos, também ele entendia cada vez mais sua própria família.

judaísmo. Foi quando seu avô lhe contou que as origens de sua família de fato eram judias. Seus ancestrais eram espanhóis marranos, “judeus ocultos”, que haviam chegado à Itália no século 16. Como viviam em uma cidade pequena, sem comunidade judia, durante anos ele se manteve “judeu apenas em

seu coração”. Lotoro e sua mulher se converteram plenamente ao judaísmo em 2004. Da colisão dessas experiências ele acabou tendo uma epifania que o fez dedicar sua vida a uma operação ampla e muito solitária de resgate – rastrear, transcrever e executar todas as músicas escritas nos campos de concentração e de morte.

Ação do acaso Como costuma dizer, nos tempos pré-internet ele tinha que ser seu próprio desbravador, visitando bibliotecas, museus e copiando documentos, muitas vezes à mão. Nessa jornada, quanto mais músicos descobria, quanto mais canções e poesias encontrava, mais forte se tornava sua paixão pelo projeto. “Tornou-se uma missão, algo que tomou conta de minha vida.

Como as várias gerações de Lotoros que o precederam, Francesco foi criado como católico. Mas, desde os 15 anos, sentia ter alma judia e, por conta própria, começou a estudar 43

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BRASIL

COM O MAESTRO João Carlos Martins EM EVENTO no Memoríal da América Latina

Tudo que importava era fazer mais viagens, procurar mais sobreviventes e encontrar mais trabalhos… Não me dediquei a esse estudo apenas porque estava me tornando judeu, mas porque, como músico, eu estava interessado na música. Mas como judeu, sinto como se estivesse cumprindo uma obrigação sagrada, uma mitzvá. A música pode vir a ser o último testamento de algumas pessoas. Em alguns casos, como na época do Holocausto, foi o que se perpetuou para as futuras gerações. Assumi a missão de fazer com que essas obras voltem à vida e que sejam ensinadas, tocadas, cantadas e assobiadas por todos, de forma a perpetuar a vida onde havia morte”. Quando lhe perguntam como faz a seleção do que deve ser preservado, responde, sem hesitar, que qualquer um que tenha passado por um campo de concentração, tenha sobrevivido ou não, e tenha criado algo, merece estar presente no seu acervo, mantendo-se vivo através de sua obra. “Esta música pertence à humanidade, não é minha. Eu sou apenas a pessoa que a encontrou e organizou. Precisa voltar a fazer parte do mundo da música e isso

significa que precisa ser tocada como se toca qualquer outro tipo de música, seja Chopin, jazz ou música country. Se não for tocada, é como se não tivesse sido libertada, como se ainda estivesse presa nos campos”. Lotoro concentrou suas pesquisas no período que vai de 1933, quando o nazismo dava início às perseguições aos judeus, até 1944, quando a Alemanha começou a perder a guerra.

Posteriormente ampliou esse universo, incluindo não apenas os judeus, mas todos os que estiveram nos campos nazistas, como os cristãos, ciganos, homossexuais e prisioneiros políticos. Alterou também o período inicial e final – indo de 1933, quando foi aberto o campo de Dachau, o primeiro de seu gênero, até 1953, com a morte de Stalin. Sobre esta mudança disse: “Eu percebi que o fim da 2ª guerra não representou o fim da experiência dos campos e de sua música”. Para ele, esta abordagem mais ampla não diminui o significado da experiência dos judeus, sendo, pelo contrário, extremamente judaica. “Nós não somos como outros povos da história que celebram seus próprios triunfos. Como judeus nós temos outras missões. A Torá diz: ‘Sejam uma luz entre as nações. Nós temos a responsabilidade de ser um modelo para os outros. Os italianos não gravaram as músicas que criaram nos campos. Coube a um judeu gravá-las, bem como

ANALISaNDO partitura guardada no Museu de Terezín, na República ChecA

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Público lota Memorial da América Latina para ouvir canções dos campos sob regência do maestro Lotoro

a de todos os outros. Para nós, preservar a memória não é opcional. É uma obrigação, um preceito. A memória é universal, não apenas judaica”.

Trata-se de um legado para a humanidade e que merece todo o nosso apoio e respeito”, disse Eduardo El Kobbi, produtor do espetáculo e presidente do KKL Brasil.

Ele mantém o acervo em sua casa, na pequena cidade de Barletta. Reúne óperas, operetas, música sinfônica, lírica, jazz, até canções populares, cantigas e paródias e será transformado pelo governo italiano na “Cittadella Della Musica Concentracionalle”, um Centro Cultural com teatro, cinema e biblioteca e tratará apenas de músicas dos campos. Ao longo de suas pesquisas Lotoro fez mais de 300 horas de entrevistas, conversou com sobreviventes, entre os quais, Wally Karveno, então com101 anos, que lhe explicou exatamente como deveria tocar sua música. O acervo inclui, ainda, uma canção composta por Bela Lustman, polonesa de 85 anos residente no Rio de Janeiro. Aos 14 anos, presa no campo de trabalhos de Pachnik, na antiga Tchecoslováquia, compôs com duas amigas uma canção sobre as terríveis condições de vida em mãos dos nazistas. Aleksander Laks, outro polonês naturalizado

brasileiro, falecido há alguns anos no Rio, também compôs canções que fazem parte do projeto. “Este projeto simboliza a resistência dos judeus ao Holocausto. Essas músicas serão as futuras testemunhas dos horrores desse escuro período da História. É importante fazermos uma ponte entre passado, presente e futuro, libertando essas músicas, e recuperando a relevância de cada músico que esteve preso nos campos, dignificando essas obras de resistência em meio ao caos. 45

Parte da renda da venda dos ingressos foi revertida para o “Projeto 100 viagens”, coordenado pelo maestro italiano e que visa a continuidade à pesquisa de novas partituras junto aos poucos sobreviventes do Holocausto ainda vivos. Como parte das comemorações, foi realizada a exposição “Rostos do Holocausto”, do fotógrafo Eduardo El Kobbi, com imagens dos sobreviventes que residem no Brasil. Trinta anos se passaram desde que Lotoro deu início a uma intensa busca por músicas compostas nos campos, mergulhando na vida e no pensamento das vítimas que, em meio à escuridão que os cercava, encontraram formas de escrever letras e compor melodias. “Cada um deles tinha sua história, suas letras… Eles não podiam usar sua língua materna nos campos – era proibido – e isso também modificou o que eles escreveram”. dezembro 2019


SHOÁ

EVA GEIRINGER SCHLOSS: “IRMÃ POSTIÇA” DE ANNE FRANK por REUVEN FAINGOLD

EVA GEIRINGER SCHLOSS CONHECEU DE PERTO O INFERNO. AINDA ADOLESCENTE, FOI CAPTURADA E TRANSPORTADA PARA AUSCHWITZBIRKENAU, TEVE MELHOR SORTE QUE ANNE FRANK E CONSEGUIU SOBREVIVER À 2ª GUERRA. ESCREVEU DOIS LIVROS E UMA PEÇA DE TEATRO RELATANDO SUAS EXPERIÊNCIAS. HOJE MORA EM LONDRES E SE DEDICA A PERPETUAR A MEMÓRIA DO HOLOCAUSTO.

Durante todo o encontro, o marido de Eva, Zvi Schloss, escutava atônito o relato de sua esposa. Ao finalizar a conversa, os quatro judeus choravam copiosamente. Todos convenceram Eva a colocar suas experiências em um livro. A obra, publicada em Londres em 1988, foi intitulada “Eva´s Story” (A História de Eva) e já conta com traduções para oito idiomas. Com o passar do tempo, o livro ganhou uma nova versão adaptada para crianças, sob o título “The Promisse” (A Promessa), com um relato menos traumático e menos cruel das vivências experimentadas nos campos de concentração e extermínio.

INFÂNCIA NA ÁUSTRIA Nascida em Viena em 11 de maio de 1929, Eva tinha apenas 16 anos de idade quando, em 1945, deixou para trás o portal do campo de Auschwitz-Birkenau, a entrada que se transformaria no maior símbolo do Holocausto. Como tantos outros judeus, era um esqueleto com o olhar perdido de um fantasma, circulando sem rumo entre soldados soviéticos. Havia passado lá nove meses. A intensa biografia de Eva poderia ter permanecido anônima, como a de tantos outros sobreviventes, não fosse um fato : encerrada a 2ª Guerra Mundial, o pai de Anne Frank, Otto, havia-se casado com Fritzi Geiringer, mãe da Eva. A partir daquele momento, ela passava a ser irmã postiça de Anne.

“A História de Eva” narra o destino trágico de uma das tantas famílias judias sob ocupação nazista. Eva teve uma infância feliz em Viena, junto a seus pais Erich e Fritzi e seu irmão, Heinz. Os Geiringer viajavam com freqüência à montanha, ouviam as músicas de Schubert e sempre guardavam o Shabat, à luz das velas. Mas, de repente, nuvens negras anunciam um futuro incerto para os judeus austríacos. Diariamente, a rádio local trazia notícias relacionadas ao clima hostil que imperava na Alemanha, após a ascensão de Hitler ao poder, em janeiro de 1933. Como sempre aconteceu em nossa história, os judeus foram os primeiros alvos do Führer.

Morava já em Londres quando, numa tarde de 1986, um casal de amigos (que também havia migrado para a capital inglesa) pediu-lhe que relatasse a vida dos judeus que haviam ficado no velho continente, entre 1939-1945. À medida que a conversa fluía, os presentes iam ficando cada vez mais horrorizados com o sofrimento imposto pelos nazistas aos judeus, na Europa conquistada. 46


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Anne Frank (2 da esquerda), Eva Schloss (4 da esquerda) e amigos na festa de 10 anos da Anne (12 de junho de 1939)

Entre 1933 e 1935 leis discriminatórias de todo tipo foram aprovadas, com a maior facilidade, pelo Parlamento alemão. As “Leis de Nürenberg”, de 15 de setembro de 1935, destinadas a “proteger a pureza do sangue ariano”, oficializavam uma luta declarada do Terceiro Reich contra os judeus. Entre outros, a partir dessa data os judeus não mais poderiam casar-se com arianos, não mais poderiam portar as cores do país nem fazer uso diário dos símbolos do Reich alemão. Os transgressores seriam punidos com multas, prisão ou inclusive deportação para campos de trabalho forçado.

que os austríacos se rendessem a Adolf Hitler. A população de Viena recebeu o Wehrmacht com os braços levantados, em sinal de saudação a Hitler. A situação foi piorando gradualmente para os judeus; poderiam trabalhar apenas em empresas e companhias judias,

Eva Schloss com a mãe, Fritzi, e o irmão mais velho Heinz

Pouco antes de Eva completar nove anos, em 13 de março 1938, os nazistas anexaram a Áustria. Tropas alemãs entraram no pais sem encontrar resistência. O sucesso da Anschlüss (anexação) fez com

tendo muitos deles perdido seus empregos. A humilhação nas ruas era diária. A situação nas diferentes escolas austríacas não era diferente. Importado diretamente da Alemanha, toda a “ideologia” do antissemitismo nazista tomou conta das redes educacionais. No colégio, um colega de turma aponta o dedo para Eva e a acusa de “não pertencer à sociedade”. A pequena Eva, perplexa, chega em casa e pergunta: “O que significa não ser parte da sociedade? ”. Obviamente não houve uma resposta clara por parte dos pais, mas ela logo entenderia o que aquilo significava. Emigrar ficou cada vez mais difícil uma vez que também era extremamente difícil e complicado obter vistos de entrada a outros

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tinha a maturidade e aparência de alguém com vários anos a mais. Tratava-se de Anne Frank (19291945), autora do famoso “Diário”.

países; e os judeus que conseguissem deixar a Áustria eram obrigados a perder grande parte do patrimônio.

ENTRE BRUXELAS E AMSTERDÃ Enquanto ainda era viável, Fritzi Geiringer e seus dois filhos mudaram-se para Bruxelas, na Bélgica. De lá, Erich viajou a Amsterdã para montar uma fábrica de sapatos e preparar, para breve, a mudança de toda a sua família. Foram anos difíceis, caracterizados pela dor da separação familiar e da incerteza, tendo que aprender novos idiomas e se adaptar rapidamente ao novo ambiente. Eva conta que os pais fizeram o impossível para manter forte o espírito de seus filhos e protegêlos dos males que porventura os ameaçassem. Já reunida em Amsterdã, a família Geiringer se estabeleceu em Mewerdeplein, um enorme conglomerado de apartamentos de classe média. Lá, Eva foi bastante feliz e cultivou novas amizades. Entre suas amigas, havia uma menina de nome Anne que, mesmo sendo mais jovem,

Em seu recente livro de memórias, Eva Schloss registra parte do perfil da Anne: “Eu era ainda uma criança. Já a atitude de Anne era a de uma adolescente: lia revistas e se interessava por meninos e roupa. Ela era o verdadeiro centro das atenções onde quer que estivesse”. A mãe de outra amiga de Eva e Anne relembrou a postura de outra maneira: “D’us tudo sabe, mas Anne sabia tudo, mais e melhor”.

EVA COM 4 ANOS

Da época em que viveu em Amsterdã, Eva guarda um carinho especial por Otto Frank. Para ela, “Anne herdou todo o carisma e o carinho que caracterizavam seu pai. Ao saber que me resultava difícil falar holandês, Otto se dirigia a mim em alemão”.

ANNE FRANK (DIR.) COM SUAS MELHORES AMIGAS

Durante a 2a Guerra Mundial, os judeus de Amsterdã alimentavam esperanças de que os holandeses os protegeriam dos alemães. E, mesmo sabendo que eles resistiram mais que em outros países invadidos, essas esperanças se estilhaçaram, de uma vez só, ao som dos bombardeios dos aviões da Luftwaffe. Hoje pairam dúvidas sérias sobre a atitude supostamente benevolente dos holandeses em relação aos judeus que viviam em seu país. Em palestra que tive a oportunidade de assistir em São Paulo, a Sra. Nanette Koenig (também colega de turma de Anne Frank), chegou a afirmar que os holandeses jamais ajudaram os judeus. Na verdade, tudo não passa de um mito. Inclusive, em 1940, o prefeito de Amsterdã chegou a entregar aos

Eva Schloss, à esquerda, Heinz e sua amiga Kitty

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invasores alemães plantas das moradias de judeus, facilitando a localização de seus esconderijos com maior facilidade. Os cidadãos holandeses não ajudaram; o que fizeram foi “entregar os judeus” aos nazistas. Na primeira metade de 1940, com a invasão da Holanda, os Geiringer não conseguiram mais ocultar a realidade a seus dois filhos, Eva e Heinz, do que era ser judeu numa Europa dominada pelos nazistas. Os judeus eram atacados nas ruas da capital. Vários desapareciam de sua residência na calada da noite. Também circulavam entre os membros da comunidade judaica de Amsterdã os primeiros boatos acerca das atrocidades nos campos de concentração nazistas. Ao chegar uma ordem oficial para que Heinz fosse deportado a um campo de trabalho, a família Geiringer se divide: o pai, Erich, e seu filho, Heinz, foram acolhidos por uma família nos campos que cercavam a cidade, enquanto Fritzi e Eva ficaram sob a proteção de uma conhecida, na cidade de Amsterdã.

PRISIONEIRAS NO CAMPO DE AUSCHWITZ POR VOLTA DE 1944

Naquele preciso momento da separação, Erich proferiu uma frase marcante sobre o destino dos judeus, frase que ficaria guardada para sempre na memória de Eva: “Meus filhos, asseguro-lhes que tudo aquilo que vocês fizeram em vida deixará suas pegadas neste mundo e nada se perderá. Os atos de bondade continuarão na vida daqueles com quem vocês interagiram. Tudo está conectado como uma cadeia que jamais poderá ser quebrada”.

ENTRADA PRINCIPAL DO CAMPO DE AUSCHWITZ

A CHEGADA AO INFERNO Os alemães vieram buscar Eva Geiringer e sua mãe Fritzi em 11 de maio de 1944, justamente no dia do aniversário de 15 anos de Eva. Na prisão se reencontraram com Erich e Heinz que também haviam sido detidos pela Gestapo. Juntos, os quatro viveram uma espera angustiosa de vários dias. Já não havia como continuar a proteger seus entes queridos. Erich dedicou esses dias a ministrar à sua família algumas aulas de sobrevivência básica: tratar de se manterem limpos, serem fortes enquanto fosse possível e se ajudarem mutuamente nas horas mais difíceis. Anos mais tarde, ao comentar essas verdadeiras liçoes do pai, Eva dizia: “Que pouca idéia tinha papai do impossível em que tudo isso resultaria”. A saga da família Geiringer é hoje conhecida. Foram três dias de viagem, sem água nem alimento, nos famigerados comboios para transporte de gado. Ao chegar ao campo de Auschwitz, aguardavaos a ordem perversa: “Quem não

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O pior dia da vida de Eva Geiringer Schloss ainda estava por chegar. Sua amada mãe, já esquelética, foi selecionada para as câmaras de gás. Eva se despediu dela com lágrimas nos olhos sem poder fazer absolutamente nada. Três meses depois, Eva soube que “Mutti” continuava viva. Uma pessoa com bons contatos na alta cúpula nazista havia interferido a seu favor. Doentes e agonizantes, Eva e Fritzi se encontraram quando as tropas soviéticas libertaram AuschwitzBirkenau, em 1945. Na ocasião, soldados russos demonstraram atos de humanidade depois de muitos anos.

Eva e Zvi Schloss em Amsterdã, no dia do casamento, em 1952

tiver forças para chegar daqui até lá, poderá fazer o percurso em caminhões”. Quem aceitou essa hipócrita oferta e se despediu de seus familiares pensando reencontrálos depois, jamais o conseguiria. Foram todos levados diretamente às câmaras de gás. “Mutti” - forma carinhosa como Eva chamava a sua mãe -, a obrigou a vestir seu casaco e seu chapéu, ao descer do caminhão. Eva não queria, pois tudo ficava enorme nela e fazia muito calor. Hoje, Eva Geiringer Schloss acredita que essas roupas lhe salvaram a vida: ela não foi selecionada para morrer com as outras meninas judias, uma vez que os alemães lhe davam mais idade do que realmente tinha. O relato emocionado da adolescente Eva lembra outros relatos de sobreviventes, tais como Victor Frankl e Elie Wiesel. A mãe Fritzi havia conseguido para a filha certas “regalias” que faziam uma enorme diferença para uma adolescente: os alemães não haviam cortado seus cabelos louros como às outras prisioneiras, a tatuagem no braço com o número de prisioneira era bem menor

REENCONTRO COM OTTO FRANK Após a guerra, mãe e filha retornaram a Amsterdã, cidade onde encontraram Otto Frank (1889-1980), pai de Anne. Otto havia perdido toda sua família nos campos e vivia na solidão. Uma forte amizade nasceu entre Fritzi e Otto, amizade que logo se transformou em algo mais profundo. Otto e Fritzi Frank em Londres, 1957

e o trato menos selvagem. No entanto, nada impediu a fome e a humilhação, muito menos que tivesse que desfilar nua na frente dos oficiais nazistas responsáveis pelo campo. Nada impediu o congelamento durante a contagem de prisioneiras, nas primeiras horas da madrugada. Aqueles privilégios não eram vacinas contra tifo, nem amenizavam tarefas indesejadas como limpar latrinas sujas ou tantos outros castigos aplicados, sem piedade, aos prisioneiros do campo. 50

Fritzi acompanhou Otto Frank na publicação e divulgação do “Diário” de sua filha. O “Diário de Anne Frank” tornou-se uma verdadeira raison d´être para Otto, um pai cuja vida passou a girar em torno da difusão desta obra clássica da 2a Guerra Mundial e do Holocausto. Para Eva Schloss, “Otto foi um homem especial e um avô carinhoso para suas três filhas”. Mas, confessa que a primeira vez que teve a oportunidade de ler o “Diário de Anne Frank” chegou a pensar: “Por que tanto barulho com Anne, se eu vivi exatamente o mesmo


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sofrimento?”. De qualquer forma, ela também colaborou no texto de uma peça de teatro que entrecruza suas histórias com a de tantas outras crianças judias durante a 2ª Guerra. Sua vivência hoje é transmitida às novas gerações nas escolas de todos os países do mundo. A 2ª Guerra Mundial terminou e Eva Geiringer Schloss conviveu com o fato de que muitos dos carrascos nazistas ficaram impunes, andando livremente pelas ruas. Mesmo assim, nunca pensou em fazer justiça com as próprias mãos. “A vingança não está dentro de mim. Durante tantos anos de humilhação me converti num ser tímido e temeroso. Minha recuperação não foi fácil e demorou bastante”. Eva é uma vencedora. Casou, teve filhos formando uma linda família, algo que sempre sonhou na solidão de Birkenau. Com os olhos marejados, ela confessa: “Meu pai tinha razão: Fazemos parte de uma cadeia que continua, e isso é o que dá sentido à minha vida”.

EVA SCHLOSS AOS 89 ANOS

Europa e no mundo. Ela respondeu: “Há pessoas que acreditam que o Holocausto é uma invenção ou que não é tudo o que dizem. É por isso que relatos como o meu são importantes e, cada vez mais, já que em breve não restarão mais vítimas para contar o que vivenciaram”.

Há quase uma década, Eva Geiringer Schloss visitou Buenos Aires. Foi a convidada de honra nas comemorações do primeiro aniversário de uma importante instituição, inaugurada em 2009, o BIBLIOGRAFIA

Eva Schloss, Eva´s Story. London 1986. Tradução ao português: A História de Eva. Editora Record. São Paulo 2010. Eva Schloss & Bárbara Powers, The Promise. Penguin United Kingdom, 2006. Tradução ao português: A Promessa: A comovente história de uma família no Holocausto. Eva Schloss, Tantas veces me mataron. Revista Viva - La Revista de Clarín. Domingo 30 de maio de 2010, págs. 46-52. Uma viagem ao mundo de Anne Frank. Morashá 54, Ano XIV, setembro 2006, págs. 50-56.

FRITZI E EVA SCHLOSS EM 1989

“Centro Anne Frank”. Sua tarefa de perpetuar a memória do Holocausto apenas começava. Certa vez, Eva Schloss foi entrevistada por um jornalista que lhe perguntou sua opinião sobre a proliferação de grupos neonazistas na 51

O mais importante entre os valiosos ensinamentos que Eva Schloss nos legou é que cabe a todos continuar a manter viva a memória da Shoá, do sofrimento de nosso povo, para que a História não venha a se repetir. Somente assim, poderemos todos começar a sonhar com um mundo melhor. Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.

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Descobrindo o Israel Bíblico Ainda que seja um estado moderno, com tecnologia de ponta presente em seu dia-a-dia, é quase impossível andar por Israel sem sentir uma forte conexão com seu passado bíblico. As opções são muitas em uma região onde, em cada passeio, há uma lição de história, uma conexão religiosa, uma viagem ao passado, uma emoção diferente.

Desde jovem, Hareuveni costumava fazer longos passeios pelos vales, montanhas, campos e desertos observandoos e fazendo conexões entre as plantas, as lendas, o folclore e as tradições da Terra de Israel. Em 1965, ele começou a implantação de Neot Kedumim, na região de Shfela, uma reserva ecológica que procura recriar o meio ambiente da época bíblica. Era um projeto muito maior do que o idealizado por seus pais e que contou com o apoio de personalidades israelenses como Teddy Kollek, Ariel Sharon e Yitzchak Navon, entre outros. Em 1994, recebeu o Prêmio Israel, o maior concedido pelo Estado Judeu, por sua contribuição ao país.

Reserva Natural e Parque Bíblico Neot Kedumim Nas proximidades de Modi’in, entre Jerusalém e Tel Aviv – a dez minutos do Aeroporto Internacional Ben-Gurion – deparamo-nos com a Reserva Natural e Parque Bíblico Neot Kedumim. Com 253 hectares de área, é exemplo da flora e paisagens do passado. Ali, apreciando as plantas e as montanhas, os visitantes podem imaginar como viviam nossos ancestrais, os ancestrais do Povo Judeu, há mais de 3 mil anos. A Reserva foi fundada pelo botânico israelense Nogah Hareuveni, falecido em outubro de 2007. Seu amor pela natureza veio de sua família – seus pais, Ephraim e Hannah, dedicaram-se ao estudo da flora de Israel nas fontes judaicas. Tinham a convicção de que a Terra de Israel é uma parte inseparável da história judaica, nossa história. O casal fundou o Museu Bíblico-Talmúdico de Botânica, na Universidade Hebraica de Jerusalém, em 1926, o primeiro do gênero no mundo. No entanto, não haviam concretizado seu maior sonho: criar um grande jardim – “O Jardim dos Profetas e Sábios”. Seu filho o faria, anos depois.

Ele costumava dizer: “Com a Torá em uma mão e a pá na outra, plantamos campos e os identificamos de acordo com antigas nomeações – Floresta do Leite, Vinhedos de Isaías e Campos das Sete Espécies, por exemplo. Através de centenas de plantas faz-se a conexão com antigas plantas, flores e árvores, com base nas metáforas e parábolas da Torá e dos profetas”. Para que Neot Kedumim se tornasse uma realidade, toneladas de terra foram trazidas e lançadas sobre as áreas atingidas pela erosão. Foram construídos reservatórios para armazenar a água da chuva e as 52


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NEOT KEDUMIM, RESERVA ECOLÓGICA QUE PROCURA RECRIAR O MEIO AMBIENTE DA ÉPOCA BÍBLICA

encostas foram replantadas, como em tempos antigos. Usando cedros trazidos das montanhas próximas ao Líbano e palmeiras e tamareiras dos desertos do sul de Israel, novas áreas residenciais foram erguidas. Após muitas pesquisas, iniciou-se o cultivo de plantas mencionadas na Torá e no Talmud. Foram, também, reconstruídas e restauradas prensas para azeitonas e uvas, cisternas e mikvaot, locais para os banhos rituais. Já na entrada da reserva os visitantes são recebidos por funcionários usando trajes dos judeus da época bíblica. Além das caminhadas entre as árvores, os turistas podem participar de workshops, cursos de botânica, zootecnia, geografia, história e arqueologia entre outras atividades. Em Neot Kedumin pode-se vivenciar a tão conhecida “Tenda de Abrahão”. É uma recriação da tão

conhecida hospitalidade do patriarca Abrahão. inspirada pela citação na Torá: “E ele ergueu seus olhos e olhou, e contemplou três homens parados atrás dele: e quando ele os viu, correu ao seu encontro e, da porta da tenda, curvou-se perante eles” (Gênese 18:2).

Parque Eretz Bereshit (Terra da Gênese) Quem quiser usufruir uma experiência semelhante a Neot Kedumim em uma região mais desértica pode optar pelo Parque Eretz Bereshit (Terra da Gênese), situado em meio às montanhas do Deserto da Judeia, próximo ao Mar Morto. Ao chegar ao local, lá também os visitantes são recebidos por funcionários vestidos com trajes da época bíblica e levados de camelo até a tenda central, também denominada “Tenda de Abrahão”, 53

onde são recepcionados com uma refeição baseada em receitas típicas, como frango com mel, verduras frescas e chá. Entre as atividades disponíveis, estão workshop para produção de pita, ou alimentação e ordenha de ovelhas, além de um teatro onde, entre outras, pode-se ouvir a história do primeiro patriarca do Povo Judeu, Abrahão.

Museu Torre de David Em Jerusalém, entrando-se na Cidade Velha pelo Portão de Yaffo, encontra-se o Museu de História, Cidadela (ou Fortaleza) da Torre de David. Não há necessidade de um guia profissional para fazer este passeio, basta seguir passo-a-passo o roteiro, valendo-se de fones de ouvido que contam a história do lugar. dezembro 2019


ISRAEL

Ao longo do tour, é possível terse uma imagem total de como a cidade era há cerca de dois mil anos, sob o reinado de Herodes e antes da destruição do Segundo Grande Templo, em 70 E.C. O Museu, inaugurado em abril de 1989, utiliza os mais modernos recursos tecnológicos interativos, com jogos e aplicativos para tornar a experiência mais enriquecedora para os visitantes, sejam eles crianças ou adultos. O visitante fica conhecendo a história da cidade, bem como os principais fatos desde a descoberta dos primeiros achados arqueológicos de Jerusalém, durante o segundo milênio A.E.C., chegando até o momento em que se tornou capital do moderno Estado de Israel. As exposições permanentes ilustram a trajetória da cidade através dos tempos, valendo-se de maquetes, mapas, filmes e explicações em hebraico, árabe e inglês. Através dessa narrativa, os visitantes entendem a razão para a importância da cidade para as três grandes religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. O passeio vale não apenas pelo conteúdo do Museu, mas também pela oportunidade de caminhar pela Cidadela, por si só um fascinante sítio arqueológico. As escavações ali realizadas são um testemunho do passado. Ao longo da caminhada pelos corredores externos é possível

ter-se uma vista do Cardo Romano, principal local de comércio durante o domínio de Roma, além de outros pontos importantes do Bairro Judaico, além de uma vista de 360º da Cidade Velha, bem como das áreas modernas da capital de Israel.

Kfar Kedem Em meio às montanhas da Galileia, depois de Tzipori, em meio à comunidade ortodoxa de Hoshaya, encontra-se Kfar Kedem. Seu interessante centro turístico foi criado em 1992, por Menachem Goldberg. Após servir o exército, formar-se guia e viajar pelo mundo, retornou ao seu país para recomeçar a vida. Estava em busca de um lugar especial para formar família e criar seus filhos, optando então por esse novo assentamento, na Baixa Galileia. Entre Tiberíades e Haifa, parecia ser o lugar ideal para realizar seus sonhos

pessoais e profissionais: criar um local onde se pudesse reviver a vida dos ancestrais do Povo Judeu, em Eretz Israel. Vislumbrava um centro onde se pudesse aprender sobre o dia-a-dia dos antigos sábios, sua relação com a terra e com seu povo e sua atuação como líderes responsáveis pela integração da Torá ao cotidiano da população. Entre as personalidades que viveram em Tzipori o mais famoso foi o Rabi Yehudá Hanassi, ou Yehudá, o Príncipe. Sábio do século 2, ele foi o principal redator da Mishná. Rabi Yehudá vivia em Beit She’arim e foi presidente do Sanhedrin (o Sinédrio, a assembleia dos juízes judeus). Mas, quando sua saúde começou a debilitá-lo, o Imperador romano Antonino, presenteou-o com um terreno em Tzipori. Levando consigo outros Sábios, Rabi Yehudá estabeleceu-se nessa cidade. Hoje, Kfar Kedem, com quase dois hectares de vegetação e árvores nativas de Israel, oferece uma experiência singular aos visitantes. Estes têm a oportunidade de semear e trabalhar nos campos de trigo, preparar a terra, assar o pão pita nos tradicionais fornos usados na Antiguidade, além de ordenhar ovelhas, preparar leite e queijo de cabras. Durante o inverno podem participar da colheita de azeitona,

Turistas em trajes típicos do passado passeiam por Kfar Kedem

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tirar os caroços e produzir azeite em antigas prensas. Já no verão, é a vez da colheita das uvas e da produção de suco de uvas. Para terminar o dia, um passeio de burrinho pelas alamedas do centro turístico e uma refeição na Tenda Nômade, onde podem, também, conhecer o modo de vida do passado e a importância da hospitalidade.

Pão artesanal O Saidel Artisan Baking Institute (SABI) localiza-se no povoado de Karnei Shomron, na região da Samaria, e é dirigido por Les e Sheryl Saidel, ambos com ampla formação e experiência na arte de produzir pães e doces artesanais. O Instituto oferece vários workshops, entre os quais, “O Método Artesanal de Fazer Pães”, “Flat Breads do mundo inteiro” (pita, pão sírio, chapatti e naan, indianos, focaccia, italiana, e tortillas mexicanas, por exemplo), “A Arte da Chalá” e “Os pães do Beit HaMikdash”. Nesta última oficina, os visitantes têm uma experiência única. Ler sobre os chamados “Pães do Beit HaMikdash” (o Templo Sagrado de Jerusalém) na Torá ou no Talmud é algo que não se compara com a experiência de ver como eram produzidos esses pães, e participar de sua confecção. Os participantes aprendem sobre os diferentes tipos que eram utilizados como oferenda: Korban Todá

(Oferenda de Agradecimento), Shtei Halechem (Dois Filões), oferenda levada em Sucot e, os mais famosos de todos, Lechem Hapanim (Pão da Proposição), os doze pães, um para cada uma das Doze Tribos de Israel, que eram colocados na Mesa de Ouro do Tabernáculo, e depois da construção do Templo Sagrado de Jerusalém, no Templo. Os pães ficavam sobre a Mesa por uma semana e, em seguida, eram substituídos por novos, para o Shabat. Este workshop começa com um tour virtual no Beit Hamikdash, o Templo Sagrado, e é seguido por uma explicação sobre os ingredientes especiais e as técnicas usadas para o preparo dos pães. Depois, os visitantes colocam de fato a mão na massa, sovando-a, moldando-a e assando-a, fazendo uso das mesmas técnicas antigas utilizadas há quase dois mil anos. Segundo Les Saidel, a principal diferença entre os pães artesanais e os industrializados são os ingredientes e o trabalho da massa com as mãos, durante todo o processo. No seu caso, por exemplo, utiliza o fermento natural, que passa por um intenso processo até atingir o ponto considerado ideal. A massa é sovada e separada para cada pão de forma totalmente manual. Em seguida, os pães são deixados em repouso a noite inteira, sendo assados no tradicional forno de tijolos somente na noite seguinte. 55

Na Baixa Galileia, trilha reconstitui locais e marcos bíbicos após a destruição do Segundo Grande Templo

A Trilha de Caminhada Sanhedrin A Trilha de Caminhada Sanhedrin é a primeira que passa por inúmeros locais e marcos bíblicos, na Baixa Galileia, onde viveram Sábios e Juízes judeus logo após a destruição do Segundo Grande Templo, no ano 70 da E.C. Com a extensão de cerca de 70 Km a partir do Parque Nacional Beit Shearim, próximo à cidade de Tivon, até Tiberíades, a trilha foi inaugurada durante as comemorações de 70 anos do Estado de Israel, em 2018. Todas as informações sobre a rota podem ser obtidas através de um aplicativo, incluindo links de mapas, vídeos e imagens de reconstruções de sítios arqueológicos ao longo do tempo. A trilha possui cinco roteiros diferentes. “Ao caminhar utilizando o aplicativo especialmente criado para a região, os visitantes terão a oportunidade de aprender sobre os períodos talmúdico e mishnaico, ‘conectandose’ com os Sábios que moldaram o Judaísmo”, disse na época Yair Amitzur, inspetor para a Galileia Oriental do Departamento de Antiguidades de Israel. dezembro 2019


shoá

FRANCESKA MANN, símbolo de resistência e bravura 23 de outubro de 1943. No vestiário do Crematorium II de Auschwitz-Birkenau, quando poucos passos a separavam das câmaras de gás, Franceska ManN, uma bailarina judia polonesa, consegue arrebatar a arma de um oficial nazista e dispara, acertando-o em cheio. Esse relato de testemunhas oculares consta dos anais do Tribunal Militar Internacional, de Nuremberg.

E

sse ato de resistência judaica, perpetrado por uma mulher, foi tema central do enredo que a Companhia de Balé de Jerusalém apresentou em um espetáculo estreado em setembro último, intitulado “Memento”, ou lembrança. Coreografado e dirigido por Nadya Timofeyeva, jovem diretora artística do Jerusalem Ballet and School of Ballet, é uma homenagem à coragem e determinação de Franceska, uma jovem prima ballerina judia que vivia na Polônia antes da 2ª Guerra Mundial. Como explicou a diretora, “Tratase de um balé sobre a esperança dela, sua vida, sua tenacidade, sua bravura”. Coincidentemente, a estreia foi em Tel Aviv, no Suzanne Dellal Center, em 1º de setembro, exatos 80 anos após a invasão da Polônia pelos exércitos do Terceiro Reich.

o mundo visse o que ocorria na Europa e fizesse algo para deter aquela fúria. Outro aspecto no tema central é a sua firme determinação pessoal de não perder as esperanças até o momento final (…). No último pas de deux, quando ela sabe que está para morrer, a bailarina enrosca seu corpo em torno do nazista e o esmaga, completamente”. Doze bailarinos participam do espetáculo, além de Adam Greenfeld, um ex-soldado das Forças de Defesa de Israel, com necessidades especiais, que representa o pai de Franceska.

O balé transporta o público ao passado, dando-lhe a sensação de conhecer uma certa família judia que vivia na Europa antes e durante a 2a Guerra Mundial. Nas palavras de Nadya Timofeyeva, “é importante lembrarse deles e saber como foi súbita e rápida a mudança de sua vida… Tudo o que era bom se transformou em tragédia… O leit motif que acompanha todo o espetáculo é a enorme esperança de Franceska de que

A vida de Franceska Mann

Mas quem foi Franceska Mann? Seu nome quase não aparece nos livros de história sobre a Shoá, permanecendo praticamente desconhecida. Timofeyeva teve que cavar fundo, recorrendo a Yad Vashem para juntar os pedaços e traçar sua história.

Franciszka Manheimer-Rosenberg, seu nome verdadeiro, nasceu em fevereiro de 1917, em Varsóvia, em uma família judia com posses. Desde cedo mostrou interesse pelo balé, no que foi incentivada pelos pais. Estudou, com muito afinco, com os melhores professores da Polônia. 56


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FRANCESKA MANN

Era uma jovem linda, de cabelos escuros encaracolados, um sorriso glorioso e um futuro promissor. Seu sonho de uma carreira de sucesso no mundo da dança parecia estar-se tornando realidade. Chegou a ser considerada uma das bailarinas mais lindas e promissoras de sua geração, tanto no balé clássico quanto no moderno, e suas apresentações eram sempre muito apreciadas. Mas, a exemplo do que ocorreu com os outros judeus poloneses, sua vida mudou radicalmente em setembro de 1939, quando os exércitos do Terceiro Reich invadiram a Polônia. Em Varsóvia sob ocupação alemã, ela foi obrigada a se mudar para o Gueto, assim como todos os outros judeus da cidade. As condições de vida dentro do Gueto eram escabrosas: fome, doenças, falta de

medicamentos e de saneamento básico dizimavam sua população. Não há informações sobre a vida de Franceska no período em que viveu no Gueto, nem como ou quando conseguiu sair e se esconder no lado ariano. Sabe-se, com certeza, que sobreviveu às grandes deportações e à liquidação do Gueto em maio de 1943.

Franceska e o “Caso do Hotel Polski” Em maio de 1943, uma esperança tomou conta dos judeus que haviam sobrevivido à liquidação do Gueto de Varsóvia. Ninguém mais duvidava que as intenções nazistas eram o extermínio dos judeus europeus. Espalhou-se a notícia de que, no hotel situado na Rua Dluga, 29, podiam-se comprar, a um alto custo, passaportes de países da 57

VARSÓVIA, POLÔNIA

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shoá

HOTEL POLSKI, VARSÓVIA

América do Sul. Estes garantiriam àqueles judeus escondidos no lado ariano a possibilidade de deixar a área do Governo Geral. Para eles, conseguir um passaporte representava a única esperança de escapar da morte. A questão, que acabou sendo conhecida como o “Affair do Hotel Polski”, continua sendo debatida pelos estudiosos do Holocausto, e Rua Długa, 29, permanece sendo o endereço mais enigmático do Gueto de Varsóvia. De acordo com o Instituto Histórico Judaico “Emanuel Ringelblum”, para uma melhor compreensão do caso devese voltar a 1941 e 1942. Havia duas organizações judaicas que operavam na Suíça ajudando os judeus que se encontravam sob ocupação nazista e que contavam com a colaboração dos Cônsules Honorários de vários países sul-americanos, que emitiam passaportes e os enviavam à Polônia.

ação de liquidação do gueto. Não se sabe exatamente como, após a supressão do Levante do Gueto de Varsóvia, esses passaportes chegaram às mãos de dois colaboradores judeus: Leon Skosowski e Adam Żurawin, que passaram a vende-los. No início, o ponto de contato para a aquisição de um passaporte era o Hotel Rogal, no no 31 da Rua Chmielna, mudando-se posteriormente para o Hotel Polski, na Rua Dluga, 29. Supostamente, os pontos de partida para aqueles que tinham comprado os passaportes seriam

A maior parte desses documentos nunca chegaram a seus destinatários, que morreram durante à grande 58

certos campos especiais, na França, onde seriam trocados pelos prisioneiros de guerra alemães internados pelos Aliados. Em muitos relatos há informações claras de que Skosowski e Żurawin trabalhavam para a Gestapo e a hipótese mais comum, desde o pós-guerra, é que todo o assunto fosse uma armação preparada pelos alemães para identificar e capturar o maior número possível de judeus que ainda viviam em Varsóvia. Mais de 2.500 judeus escondidos no lado ariano na Primavera de 1943 acreditaram naquela garantia


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de que os passaportes internacionais lhes salvariam a vida. A maioria deles havia pago altas somas para conseguir os documentos, como relata Filip Müller na obra Eyewitness Auschwitz: Three Years in the Gas Chambers (Testemunha ocular em Auschwitz: Três anos nas Câmaras de Gás, em tradução livre). Todas essas pessoas acreditavam que os passaportes lhes permitiriam deixar o Governo Central, salvandoos da morte certa. Franciszka Manheimer-Rosenberg foi uma delas. Ela ficou no Hotel Polski até julho de 1943, quando deixou Varsóvia. Fazia parte do último grupo de judeus, cerca de 600, que os nazistas embarcaram rumo ao campo de Bergen-Belsen, na Alemanha. O deslocamento, supostamente, era parte do chamado plano para “troca de judeus”. Ao chegar, eles foram instalados no Sonderlager, um campo especial.

Última farsa Em meados de outubro de 1943, os nazistas ordenam uma nova transferência dos “judeus de troca”. Cerca de 1800 deles são levados de Bergen-Belsen para AuschwitzBirkenau, onde chegaram em 23 de outubro de 1943.

Obersturmführer (2º Tenente) e Líder da Custódia Preventiva do campo de mulheres, em Birkenau. O tal do “representante do Ministério das Relações Exteriores” dirige-se a eles: “Senhoras e senhores! Recebi instruções do Ministério das Relações Exteriores para organizar sua viagem à Suíça. Esta é a última parada em território do Terceiro Reich. Trouxemo-los até aqui porque as autoridades suíças insistem em que todos vocês sejam desinfetados antes de cruzar a fronteira. Temos aqui instalações próprias para o procedimento de desinfecção em larga escala”. FRANCESKA MANN

lhes as boas-vindas. Fomos orientados a fazer todo o possível para apressar sua partida para o exterior. Com esse propósito, um representante do Ministério está conosco e lhes dirá como transcorrerá o restante de sua viagem”. Na realidade o “representante” do Ministério das Relações Exteriores era Franz Hossler,

Continou apontando para o Crematório: “Neste edificio foi instalada uma grande casa de banhos, para onde se dirigirão depois. Outro detalhe: após o banho, tenham em mãos os documentos de viagem para nos certificarmos que foram desinfetados. Repito: as autoridades suíças declararam que ninguém cruzará a fronteira sem esse certificado em seu passaporte. Seu trem especial está na estação. Partirá amanhã, às 7 horas, e os levará à fronteira. Peço-lhes,

Ruínas de um edifício de apartamentos em Varsóvia destruído durante a guerra. Nunca foi restaurado

Já na plataforma de desembarque dos trens, os alemães começaram a encenar os últimos capítulos da farsa que começara no Hotel Polski. Os recém-chegados foram recebidos por um oficial da SS, Lagerführer Johann Schwarzhuber, chefe do campo masculino em Birkenau. Primeiro, ele se dirige à multidão de pessoas desorientadas: “Senhoras e senhores. Em nome da administração do campo, dou59

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shoá

de viagem. Os SS começaram arrancando-lhes anéis e relógios. Em suas memórias, Rudolf Hoess, SS-Obersturmbannführer (TenenteCoronel) que foi comandante do campo de concentração de Auschwitz, escreveu: “A maioria das pessoas nos vestiários fazia o que lhes era mandado, mas havia alguns que ficaram olhando, como se aguardando por uma maneira de escapar de lá.

Crematório II, em 20/1/1943

portanto, que, para o seu próprio bem, sigam as instruções do pessoal do campo. Termino desejando-lhes uma viagem agradável, amanhã”. Depois daquele “teatrinho”, trazem cartazes com letras do alfabeto. Hössler continua seu discurso. “Senhoras e senhores. Vocês podem ver todos os cartazes com letras. Olhem com atenção para os mesmos”. E foi apontando, um por um, os cartazes, de A a Z. E continuou: “Quando estiverem vestidos, após o banho, façam um fila atrás do cartaz com a inicial de seu sobrenome. Vocês então receberão um certificado confirmando a sua desinfecção. Lembrem-se, também, dos números dos cabides nos vestiários para que as formalidades necessárias sejam prontamente cumpridas, de forma eficaz. Não considerem esse processo de desinfecção como algo que tenhamos arquitetado para perturbá-los. Enfatizo, novamente, que foi uma exigência das autoridades suíças. Sendo assim, é do seu interesse submeter-se a esse procedimento inevitável de forma rápida. Lembrem-se, também, que

os trilhos da ferrovia costumam estar bloqueados por ações terroristas do inimigo. Portanto, apressem-se se quiserem sair daqui rapidamente! ”. O anúncio aumentou os temores dos judeus causando desconforto generalizado. Ao chegar no vestiário da suposta sala de banhos as mulheres estavam cada vez mais assustadas. Hesitaram em tirar a roupa, pois em suas vestes levavam escondidos os documentos

Os SS passam a gritar suas ordens, em tom mais alto e ríspido, mas muitos continuavam atônitos, sem tirar a roupa. Os guardas, armados com porretes e já com a mão no coldre, começam a espancar quem ainda estava vestido. Muitas pessoas já estavam sendo encaminhadas pelo corredor diretamente às câmaras de gás”. Durante esse processo que acabaria com todas as mulheres mortas nas câmaras de gás, dois nazistas, Oberscharführer Josef Schillinger e o SS Unterscharführer (sargento-chefe) Wilhelm Emmerich, começam a observar, magnetizados, os movimentos de uma judia linda, de cabelos escuros. Era Franceska Mann. Ao perceber que os dois a observavam fixamente, ela resolve encenar sua última apresentação, sua última dança. Ao tirar um de seus sapatos de salto alto, inclinou-se contra uma coluna. Fascinados com sua beleza e seus movimentos propositalmente lânguidos, os dois nazistas não conseguiam parar de olhar para ela. E não percebem quando, num movimento rápido, ela atira seu sapato na testa de Schillinger.

As ruínas das câmaras de gás

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O nazista cai no chão e ela, jogandose sobre seu corpo, tira sua arma do coldre. Dá dois tiros e o atinge em cheio, no estômago. E, rapidamente,


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dispara outra vez e atinge Emmerich na perna. Emmerich consegue subir as escadas, e sai do vestiário em busca de socorro, deixando Schillinger no chão. Um tumulto geral se instalou no vestiário feminino. Outras mulheres passam a atacar os SS. Elas trancam a porta por dentro. Depois tentam chegar ao corredor de onde pudessem escapar. As luzes se apagam, por uns momentos. Todos iam tateando, em meio à escuridão, tentando entender o que se passava. Segundo Jerzy Tabeau, em seu livro The Report of the Polish Major (O Relato do Major Polonês, em tradução livre), um SS teve seu nariz quebrado, outro foi escalpelado. Os SS que estavam de guarda, do lado de fora, ouviram aquela agitação e pediram reforços. Momentos depois, o Comandante Rudolf Hoess chega com seus homens que, fortemente armados com metralhadoras, cercam o local. As duas portas foram prontamente guardadas por metralhadoras e possantes holofotes, tornando impossível alguém escapar. As mulheres ainda tentavam fugir em meio ao tiroteio que se seguiu, escondendo-se atrás das colunas do vestiário. Muitas foram abatidas quando as metralhadoras abriram fogo. E aquelas que haviam acreditado nas mentiras dos SS, antes da corajosa ação de Franceska Mann, morreram nas câmaras de gás enquanto a revolta se desenrolava

Ilustração de Franceska ATIRANDO EM Schillinger

do outro lado. E aquelas que, porventura, haviam sobrevivido às metralhadoras nazistas foram mortas depois. Nenhuma delas sobreviveu. A linda bailarina caminhou para sua morte com força, coragem e confiança, segundo testemunho na obra Eyewitness Auschwitz (Testemunha Ocular em Auschwitz), de Filip Mueller, e no relato do também prisioneiro de Birkenau, Jerzey Tabau, perante o Tribunal Militar Internacional, em Nuremberg. Não se tem certeza, no entanto, de como ela morreu, há

muitas versões. Mas o que se sabe é que seu corpo foi colocado sobre uma mesa na sala de dissecação, para servir de alerta aos outros homens das SS. Tinham que estar vigilantes, sem baixar a guarda, nem por uma mulher bonita e aparentemente frágil. A morte do guarda nazista galvanizou os prisioneiros de Auschwitz-Birkenau. A caminho do hospital de Katowice, Schillinger chorava perguntando: “Oh Gott , Mein Gott, was hab Ich getan, das Ich so leiden muss?” (“Ó, D’us, meu D’us, o que eu fiz para sofrer tanto assim? ”). Relatos informam que ele faleceu no hospital, no dia seguinte. Emmerich sobreviveu. Em suas memórias, assim escreveu Wieslaw Kielar: “Os atos de Franceska Mann tornaram-se um símbolo, passaram a ser contados e recontados e enfeitados de várias maneiras até virar uma lenda. Sem dúvida, aquele ato heroico, por parte de uma mulher frágil a caminho de sua morte, deu apoio e coragem moral a todos os prisioneiros.De repente, percebemos que se ousássemos erguer o punho contra eles, aquele punho poderia matar, pois eles, também, eram mortais”...

BIBLIOGRAFIA

Martin ,Gilbert, The Holocaust: The Human Tragedy. Kindle Edition

Southern, Cynthia, The Vixen Who Shot A Nazi: The story of Franceska Mann, who shot SS Guard Josef Schillinger, in AuschwitzBirkenau. Kindle Edition

BIBLIOGRAFIA Dançarinos do Jerusalem Ballet executam a última dança de Franceska Mann em Auschwitz: MEMENTO.

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HISTÓRIA

O papel dos judeus de Argel na ocupação francesa Por Nimrod Etsion Koren

A conquista da Argélia pela França, em 1830, uma ocupação que marcou o início do Segundo Império Colonial Francês1, ocorreu devido a múltiplos fatores, entre eles a supressão da pirataria e rivalidades comerciais. Mas o cerne da decisão de invadir o país foi um escândalo econômico, centrado em uma enorme dívida contraída pela França imperial contra uma casa comercial pertencente a duas das famílias judaicas mais poderosas nos países islâmicos, à época – Bakri e Busnach.

S

éculos antes da ocupação militar, o Norte da África já começara a sentir a influência econômico-comercial da Europa. A invasão europeia da Argélia, nos séculos 17 e 18, foi acompanhada pela ascensão de uma nobreza financeira judaica no país, com conexões comerciais e familiares no exterior. Essa elite, de origem italianolivornesa, beneficiou-se de suas estreitas relações com os governantes locais, relações essas que constituíram um dos importantes fatores responsáveis pela exclusividade que gozavam em vários negócios lucrativos. As franquias produtivas dos principais comerciantes judeus, assim como seu talento comercial e seus laços familiares e diplomáticos, que ramificavam o enorme crédito

concedido a seus clientes, levaram a um aumento sem precedentes no comércio entre as duas regiões do Mediterrâneo – mas, também, ao acúmulo de enormes dívidas que minaram a estabilidade da Argélia e que acabaram por levar à sua conquista. No entanto, na decisão de enviar os exércitos franceses, foram levados em conta outros elementos cujas origens datam de 150 anos antes.

Pirataria e influência no Palácio do Dey Em maio de 1830, para impedir a oposição à ação, o Ministro das Relações Exteriores da França assegurou aos poderes que a operação planejada se destinava apenas a reprimir a pirataria e a escravidão dos cristãos – que os aliados da França não conseguiram eliminar durante as Guerras Berberes2. O roubo marítimo era um fenômeno generalizado no Mediterrâneo desde o início do período otomano, quando os piratas turcos se tornaram corsários, funcionando como uma marinha regular, subordinada ao sultão. Entre os piratas da Berbéria3, foram os argelinos os que se destacaram por sua bravura. Espanhóis, ingleses e holandeses também eram alvo da pirataria, mas no início da luta contra

O império colonial francês era constituído pelas colônias ultramarinas, protetorados e territórios mandatários que ficaram sob domínio da França a partir do século XVI. 2 Série de conflitos que culminaram em duas guerras principais (1805 e 1815) travadas entre os Estados Unidos, Suécia e Berbéria. 3 Berbéria, Berberia, Barbária, Costa Berberisca, Costa Berbere ou Costa Barbaresca é o termo que os europeus utilizaram desde o século XVI até ao século XIX para se referir às regiões costeiras de Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia, ou seja, o atual Magrebe, à exceção do Egito. 1

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FAROL DO ALMIRANTADO, ARGEL, CAPITAL DA ARGÉLIA, ÁFRICA DO NORTE

o assalto ao mar da Argélia, os franceses os representavam como um método único de combater o fenômeno. Eles não perseguiram os corsários argelinos no mar, mas atacaram aqueles que os enviavam, bombardeando as costas de Argel e seus habitantes, como fizeram cinco vezes entre 1661-1688. A acusação feita aos comerciantes judeus de Argel, de que eram parceiros dos corsários, surge pela primeira vez quando os bens desviados começaram a aparecer nos mercados das cidades portuárias europeias onde os comerciantes livorneses operavam. A primeira evidência disso pode ser vista nas palavras de D’Arvie, cônsul da França na Argélia (1675), que sugeriu a participação de alguns dos judeus da Argélia na compra do saque de corsários, ‘que eles repassam para Marselha e Livorno

judeu de Argel, final do séc. XIX

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com lucro decente’. Os franceses suspeitavam que os comerciantes judeus, envolvidos como estavam na vida das feiras europeias, poderiam apreciar o valor de cada item, de cada tecido, e, assim, fixar um preço máximo – mas, ao mesmo tempo, significativamente mais baixo do que o preço original pago antes de serem roubados. De acordo com o ponto de vista da França, o possível envolvimento dos comerciantes judeus ajudou a incorporar os saques no sistema comercial tradicional, de maneira eficaz e lucrativa. A Câmara de Comércio de Marselha, perdendo a concorrência comercial para os judeus argelinos, passa a acusá-los, sistematicamente, na maioria das vezes sem provas, de que a origem da mercadoria barata que ofereciam era fruto da pilhagem praticada por corsários – da qual seriam receptadores. dezembro 2019


HISTÓRIA

com o próprio governante, o Dey4 de Argel. Entre os principais dignitários judeus livorneses, ele mesmo escolheu seus enviados diplomáticos, seus tesoureiros e o próprio líder da comunidade judaica. O grande impacto que o alto nível da influência judaica teve no Palácio do Dey, em Argel, deixou muito descontentes os membros da Câmara de Comércio de Marselha.

O CASBAH, ARGEL, 17 DE DEZEMBRO DE 2016: PINTURA SOBRE LADRILHOS: “JARDIM VERANIL NO PALÁCIO DO DEY”

Em 1682, deterioram as relações entre os franceses e os judeus, acabando por levar à deportação destes últimos de Marselha (muitos dos quais tinham laços familiares com os judeus de Argel e Tunes). Paralelamente foi realizada uma campanha militar punitiva, liderada pelo almirante Marquês de Bouchet, que é enviado para bombardear o porto de Argel. Mas, dessa vez, os argelinos respondem com o uso da força. Prendem o renomado cônsul francês Jean LeVacher, amarramno a uma bala de canhão e o lançam contra a frota do almirante. Outro cônsul recebe tratamento semelhante, em 1688, o que provavelmente ajuda a pôr fim às campanhas punitivas francesas contra a Argélia. Mas o trauma da execução brutal dos dois cônsules acompanharia os monarquistas

Título dado aos governantes da Regência de Argel e, depois, da Argélia, antes da colonização francesa.

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na França por cerca de 150 anos, de modo que, ao conquistar Argel, sua primeira ação foi transportar para a França o famoso canhão berbero ‘La Concilier’, maior símbolo do sacrifício francês na guerra dos piratas. Até hoje esse canhão é exibido, sobre um palco de granito, no complexo militar da cidade de Brest.

Essa tendência muda em meados do século 18, quando a França, através da Royal Monopoly Company, fundada em 1741, começa a consolidar sua influência na economia argelina. Isso se deu, entre outros motivos, devido à criação de lojas em Argel e até de fábricas de roupas de lã, couros e beneficiamento de açúcar. A instalação da Royal Monopoly Company quase resultou no empobrecimento total dos comerciantes judeus argelinos durante a década de 1780. Mas houve um evento político que não apenas mudaria as relações francesas e argelinas, com ênfase na economia, mas a própria história do Ocidente.

A animosidade entre a França e os livorneses Nesse sentido, embora o tema da atividade dos corsários envolvesse indiretamente os “livorneses” em Argel, sua influência na política externa da Argélia era direta e visível. Fontes francesas indicam que forte animosidade entre os dois grupos ao longo da maior parte dos séculos 17 e 18, sendo uma das razões para isso a proximidade dos judeus com os governantes argelinos. Durante o século 18, a elite financeira livornesa manteve seu prestígio não apenas aos olhos da população judaica local, mas 64

A CIDADELA, PALÁCIO DO DEY, NO CASBAH DE ARGEL. TORRE OCTOGONAL DECORADA EM LADRILHOS


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Crédito, dívidas e revoluções: 1827-1789 Como mencionado acima, os principais comerciantes judeus ficaram frustrados com a hostilidade dos cônsules e a feroz competição imposta a eles pela Câmara de Comércio de Marselha, que levaram o rei da França a fechar os mercados de seu país. Com a eclosão da Revolução Francesa, parecia que os ventos da guerra, soprando através do mar, poderiam realmente beneficiar os livorneses. Os Deys que, através dos tempos, sofreram com a dureza dos Bourbon, também compartilhavam esperanças de melhorar as relações com o novo regime. Quem primeiro reconheceu a oportunidade criada pelo novo clima político foi a família Bakri. Michel Cohen Bakri, que emigrou de Livorno para Argel em 1770, da mesma forma como fizera Meir Anschel Rothschild, espalhou seus cinco filhos em importantes portos comerciais – Gênova, Livorno, Nápoles, Alexandria

LAGHOUAT - O PORTO DE ARGEL

e Tunes – estabelecendo uma grande casa comercial da família Bakri. Às vésperas da Revolução Francesa, os Bakri conseguiram obter exclusividade na exportação de grãos para a França. De fato, alguns meses após a decapitação de Luís XV, um dos membros da família, Jacob Cohen-Bakri, foi enviado a Marselha, como principal

argel, final do séc. xix

comerciante de Dey. Depois disso começaram a fornecer trigo para a Provença durante a seca que atingiu o sul da França. Mas um desenvolvimento mais significativo ocorreria em 1794, com a aplicação de uma lei promulgada na França que obrigava, de forma geral, ao recrutamento militar. Isso fez do Exército Revolucionário o maior da história, com um contingente de um milhão de soldados. Ao mesmo tempo, Jacob Bakri muda-se para Paris, onde abre um escritório próximo ao Museu do Louvre. Pouco depois, a família Bakri se tornaria o maior fornecedor de grãos do exército napoleônico. Em 1797, a família Bakri adquire significativo poder quando Naftali Busnach, confidente e consultor muito próximo do novo ministro das Finanças da Argélia, Mustafa Ben-Ibrahim, estabelece, juntamente com os Bakri, a casa comercial Bakri-Busnach, que logo se tornaria um verdadeiro império comercial no Mediterrâneo. Com a expansão das guerras napoleônicas, seus contratos

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HISTÓRIA

com os exércitos franceses levaram a um aumento sem precedente no volume de comércio entre os dois países. Na época, o cônsul O'Brien, dos Estados Unidos, informou a seu governo que 170 navios carregados de trigo, cevada, peles e azeite, no valor de milhões de dólares, navegavam todos os anos das margens da Argélia até os portos europeus. A esses aspectos econômicos somaram-se importantes aspectos políticos. Negócios de grande escala foram fechados com o apoio do Dey. Seu governo provou ser um aliado estável da Nova República Francesa, reconhecendo-a e

prestando-lhe assistência essencial à sua sobrevivência. Na época, a França revolucionária precisava desse apoio, pois era isolada em todo o continente europeu. Esse foi o pano de fundo que deu origem aos enormes embarques de mercadorias, bem como à razão para que a França não honrasse a contrapartida financeira criando no futuro uma importante dívida que seria um dos fortes motivos para a futura invasão militar.

O fator financeiro Crédito ilimitado A ascensão da Casa BakriBusnach é um ponto de inflexão

caracterizou suas atividades foi a concessão de crédito. A casa de comércio fornecia mercadorias de forma ilimitada, sem se incomodar com a data de seu pagamento – em parte porque o Dey era o fiador das transações. Até a ascensão dos Bakri-Busnach, não há evidências de tal atividade. A atividade comercial da Argélia, até o início da Revolução Francesa, era tradicional, baseada principalmente em uma troca de dinheiro por mercadorias. O crédito, a grande inovação trazida por Bakri e Busnach da Europa, que permitia a compra de grande volume de mercadorias mediante cartas de crédito, encantou os republicanos franceses e eles disso se aproveitaram ao máximo. Mas não foi o generoso crédito livornês o que deu origem à dívida. De fato, durante toda a Revolução Francesa, os franceses pagaram pelas mercadorias, ainda que tardia e parcialmente. Mas a partir de 1799, quando o montante em aberto chegava a 8 milhões de francos, foi adotada uma política diferente, ditada precisamente por Napoleão, que, um ano antes, quando invadiu o Egito, havia desfrutado dos maiores embarques jamais fornecidos pela casa Bakri-Busnach.

Revolução de 18 de Brumário5 - O esfriamento das relações bilaterais

TEATRO MUNICIPAL, ORAN

O golpe de Estado de 18 de Brumário do ano VIII (Brumário, palavra derivada de “bruma” ou “névoa”, em francês pelo calendário da Revolução Francesa, correspondente a 9 de novembro de 1799 pelo calendário gregoriano) iniciou a era do governo napoleônico na França.

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A Segunda Coligação ou Segunda Coalizão foi um conjunto de alianças e compromissos estabelecidos entre várias potências europeias (incluindo o Império Otomano) que se confrontaram com a França na fase final da Revolução Francesa.

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na história econômica da Argélia e de sua comunidade judaica. Os métodos de operação deles incluíam os elementos tradicionais nas transações comerciais, tais como: cooperação com os berberes, passando por grande influência na corte do Dey e uso dessa influência para obter concessões, até mesmo recorrendo ao uso de intrigas políticas. A principal inovação que 66

Como mencionado acima, a Revolução de 1789 estreitou as relações entre Argel e Paris, mas a revolução que ocorreria na França na década seguinte esfriou essas relações. Imediatamente após tomar o poder, Napoleão embarca em uma série de ações destinadas a enfrentar as consequências da derrota, pela Segunda Coligação6, dos exércitos


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franceses naquele ano. Uma das primeiras foi uma diretriz sobre a interrupção da transferência de dinheiro para Argel. A partir desse momento, uma dívida que nunca seria paga começa a se acumular. A causa oficial para a cessação do pagamento foi a acusação de que a Casa Bakri-Busnach mantinha comércio paralelo com os seus inimigos, os ingleses. Mas fontes contemporâneas indicam que sua lealdade à França era impecável. De fato, mesmo depois de 1799, e apesar dos pagamentos terem cessado, os bens continuavam sendo fornecidos aos exércitos e aliados franceses. Os comentários do então ministro francês das Relações Exteriores, Charles-François Delacroix, indicam o motivo real da conveniente decisão da França de não honrar a dívida: “A falta de pagamento aos judeus impedirá que eles se desvinculem de nossos interesses”. Em outras palavras, o medo da possibilidade de cooperação judaico-inglesa preocupava os franceses, e eles decidiram usar a dívida como uma maneira de manter a lealdade judaica. Mas havia outras razões para isso, além de forçar a lealdade. Embora o sucesso de Bakri e Busnach tenha sido sem precedentes, nem todos à sua volta aplaudiam seus negócios e muitos pagaram alto preço por conta deles - tanto os locais quanto os estrangeiros. A francesa “Royal African Company”, que floresceu na Argélia até 1790, começou a perder seu poder ao longo da década e, em 1798, entrou em colapso, fechando 7

logo depois suas portas. A culpa foi atribuída a Bakri-Busnach. Vários cônsules e comerciantes ficaram contrariados com sua exclusividade sobre o comércio de grãos. Alguns os acusaram de incitar o Dey a apreender navios franceses no mar, para comprá-los posteriormente em leilões. A Câmara de Comércio de Marselha também afirmou que, enquanto os judeus controlassem a Argélia, “nenhum francês seria capaz de lá se estabelecer”.

Massacre de 1805 Ondas de explosão chegam a Argel Ao lado dos franceses, havia outros círculos que foram perturbados pelo poder dos dignitários judeus da Argélia e que, portanto, queriam enfraquecê-los. Como mencionado, os ingleses tentaram sabotar a aliança entre a Argélia e a França desde o início. Seus aliados otomanos também começaram a ficar preocupados, pois a Argélia, oficialmente subordinada a eles, estava ajudando um exército cristão a desmantelar o Império Otomano7. E, além disso, aumentou também a indignação das massas muçulmanas, tanto contra a casa comercial cujas

enormes remessas para a França drenaram o país de seus recursos e levaram a uma terrível escassez, como contra o Dey, que se deixara controlar pelos ‘judeus infiéis’. Essas forças entraram em erupção em 1805, levando ao pogrom mais violento da história dos judeus argelinos. Seu estopim foi o assassinato de Naftali Busnach em seu escritório, no palácio, continuando com o massacre de dezenas de judeus, alguns durante suas orações nas sinagogas. Pouco tempo depois, o aliado de Busnach, Dey Mustafa, também foi liquidado. Em 1805, o golpe contra os chefes da comunidade judaica foi tão mortal que prejudicou seus status, o que fez com que o Palais de l’Elysée se esquivasse mais facilmente de suas dívidas.

A queda de Napoleão e a vingança da Restauração Um marco ainda mais significativo em relação a essa dívida reside no estabelecimento da Restauração Francesa ou Restauração Bourbon, que tomou o poder com a derrota e o exílio de Napoleão, em 1814.

PRAÇA DA REPÚBLICA, ARGEL

A invasão por Napoleão ao Egito e à Palestina, nos anos de 1799-1798, que foi frustrada pela ajuda inglesa, também constituiu uma tentativa de desmantelar o Império Otomano. 67

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HISTÓRIA

De fato, a ascensão da monarquia constitucional, encabeçada por Louis XVIII, que não desfrutou dos enormes embarques e herdou apenas sua dívida, despertou esperanças de mudança, no coração de Jacob Bakri, que, após alguns anos de perseguição por seus inimigos, retornou a uma posição de influência, sob um novo Dey.

Talleyrand-Périgord e da assinatura de vários acordos de dívida, o rei Luís XVIII decidiu punir a Argélia por suas relações amistosas com o regime revolucionário e por seu apoio abrangente aos elementos que decapitaram seu irmão Luís XVI uma decisão que seu herdeiro, Carlos X (1824-1830), manteve com mais empenho ainda.

Apesar do reconhecimento da dívida pelo Ministro das Relações Exteriores Charles-Maurice de

As dívidas eram enormes (em 1820 excediam a cifra de 20 milhões), mas não foram o motivo que levaria a França a invadir a Argélia. Na verdade, o não pagamento prejudicou o tesouro de Hussein Dey (1818-1830), que se tornou o principal credor da casa Bakri, demostrando sua frustração, de forma exacerbada, na impertinência com que conduzia suas tratativas com a França. Não apenas a evasão do pagamento minou seu status, mas também as manipulações que os reis franceses haviam feito contra ele. Isso tudo o fez pensar que, a qualquer momento, eles abririam seus cofres para compensá-lo.

napoleão bonaparte

Crise diplomáticopolítico-militar, 1827-1830 Ataque de Argel pelo mar, 29/6/1839, óleo de Theodore Gudin

A causa imediata da invasão da Argélia pela França foi uma crise diplomática que levou ao uso da força militar

HUSSEIN DEY ATINGE PIERRE DEVAL, CÔNSUL FRANCÊS, COM PÁ MATA-MOSCAS

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A causa imediata da invasão da Argélia pela França foi uma crise diplomática que levou ao uso da força militar. Como mencionado, a França não pretendia pagar suas dívidas e não deu muita importância a isso, mas usou o assunto como chantagem política e uma alavanca para pressionar o Dey a fortalecer os interesses franceses em seu país. A razão para isso foi que, durante o período de Restauração, a França começa a reabilitar suas fábricas em solo argelino. Mas, como uma lição aprendida do passado e no que acontecera com as fábricas de Busnach, destruídas no pogrom,


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os franceses adotam um método diferente – decidem fortificar suas fábricas. E o responsável por isso não foi outro senão Alexander Deval, o cônsul francês em Anaba, em 1825 (sobrinho de Pierre Deval), que, contrariamente ao acordo, blindou as fábricas francesas em Anaba e La Cal. O clima se intensificou ao longo dos anos, até que o Dey finalmente perdeu o controle e agrediu fisicamente o cônsul francês, Pierre Deval, em um incidente conhecido como “the Fan Affair”. De acordo com relatos, o diplomata Pierre Deval foi ter com o Dey, atendendo a uma convocação. Pressionado, o cônsul desconversara altivamente sobre as exigências de pagamento e Hussein Dey, não contendo sua fúria, atinge-o, no rosto, com um leque ou pá mata-moscas que tinha em mãos. No encontro havia sido tratada outra questão além da dívida – a proibição da colocação de armas francesas pesadas em solo argelino e a ameaça de abolir o status especial dos comerciantes franceses. Após a reunião, Deval alegou ter sido agredido e o governo francês viu isso como uma violação da honra da França. Além de cortar as relações com a Argélia, declarou um bloqueio naval total. Mesmo a abordagem intransigente do Hussein Dey não ajudou a resolver a crise. A recusa em pedir desculpas à França, pode ser explicada como um desejo de proteger o respeito a seu regime. Mas, quando no ano anterior à invasão (1829), o Dey respondeu a uma proposta de compromisso da França, recorrendo a bombardeios aos navios franceses, é difícil não

CORREIO CENTRAL, ARGEL. ARQUITETURA ESTILO COLONIAL FRANCÊS

ORAN, rua dos Judeus

ver isso como uma provocação. De qualquer maneira, aparentemente Hussein Dey não previu adequadamente as consequências das mudanças políticas que ocorreram em Paris. Aos olhos do rei de França, Hussein Dey podia ser humilhado e derrotado por ser alguém que prejudicava o prestígio da França. Era uma maneira de infligir derrota à frente liberal que se intensificara contra ele. Este não é o lugar para elaborar as circunstâncias políticas únicas que ocorreram nas vésperas da Revolução de julho de 1830 – a derrota do partido conservador nas eleições de março, a dissolução 69

do parlamento como resposta do rei, a ascensão da imprensa liberal crítica, a ação subversiva de organizações clandestinas, como os Carbonari, e uma forte alta dos preços dos alimentos devido à mais grave seca, ainda mais do que a que ocorrera às vésperas da Revolução Francesa. Tudo isso levou o Rei de França a radicalizar a política interna e reformular a política externa, de forma não feita desde a derrota de Napoleão, com expansão territorial e renovação colonial. Isso, na esperança de que a fama na arena internacional compensasse a crescente frustração em casa. Em maio, o rei Carlos X permanece em Toulon, declarando que uma vitória rápida na Argélia garantiria a vitória do partido real nas eleições. Algumas semanas depois, suas tropas partem para invadir a Argélia, em uma operação formidável que excedia o tamanho exigido para a ocupação britânica da Índia. Iniciava-se uma ocupação que duraria longos anos, até 1962.

Nimrod Etsion Koren é aluno de pós-graduação no Departamento de História, Filosofia e Estudos Judaicos na Universidade Aberta de Israel.

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antissemitismo

Como deter a escalada do antissemitismo? POR Deborah E. Lipstadt

Como podemos lutar contra o antissemitismo que toma conta dos Estados Unidos e da Europa? A historiadora Deborah Lipstadt responde, no artigo que REPRODUZIMOS a seguir, “A melhor maneira de combater o antissemitismo? A alegria judaica!”. Esse é o título da materia publicada pela historiadora em outubro, e faz parte de uma SÉRIE QUE CELEBRA UM ANO DO massacre na sinagoga “Tree of Life”, em Pittsburgh.

E

screvo este texto após uma tentativa de massacre em Halle, Alemanha, e me antecipando à celebração de um ano da tragédia da sinagoga “Tree of Life”, o pior ataque antissemita já ocorrido em território americano. Mas, não fosse uma porta fortemente trancada, em Halle, essa também poderia ter sido uma tragédia de proporções indescritíveis.

Apesar de o antissemitismo de direita ser mais declaradamente violento, não falta antissemitismo na esquerda. Nós o vemos na liderança do Partido Trabalhista britânico, nos tuítes e comentários de pessoas como a deputada democrata norte-americana Ilhan Omar, sobre o movimento BDS, em seu intenso desprezo e ódio por Israel, e na maneira como a identidade das vítimas do Holocausto judaico está sendo removida das celebrações do Holocausto.

Para mim, historiadora do antissemitismo, a maneira mais natural, ou mesmo lógica, de marcar esses eventos difíceis seria lamentar o fato de que esse ódio, dos mais antigos, continue a crescer, evoluir e se desenvolver, tanto nos partidos de direita quanto nos de esquerda. Eu poderia mostrar como os terroristas de direita – Halle, Pittsburgh e Poway, entre tantos outros – estão ligados entre si, apesar do fato de que nenhum deles provavelmente conheça o outro. Podem não estar conectados, pessoalmente. Mas não são lobos solitários. Todos leem os mesmos artigos, citam os mesmos blogueiros, postam nos mesmos websites e compartilham os mesmos ódios. De fato, nesta nossa era da Internet e das mídias sociais, o conceito de lobo solitário é um anacronismo.

Assistam, por exemplo, a declaração emitida na Grã-Bretanha, pelo University College Union (UCU), principal grupo estudantil no Reino Unido, acerca do Dia de Lembrança do Holocausto. A declaração lamentava a perseguição alemã aos “sindicatos, inclusive os socialdemocratas e os comunistas”, “Roma e o povo sinti, da Europa”, “negros”, “pessoas com necessidades especiais”, “maçons”, “gays e lésbicas”, “Testemunhas de Jeová” e “associais”, que incluem “pedintes, alcoólatras, viciados, prostitutas e pacifistas” e “poloneses não-judeus e prisioneiros de guerra eslavos”. Nessa lista, abrangente e um tanto questionável, não há menção aos judeus. Após uma enxurrada de críticas, a UCU se desculpou e inseriu os judeus em sua 70


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Flores na porta da Sinagoga de Halle, no leste da Alemanha, após a tentativa de atentado antissemita e um tiroteio em pleno Yom Kipur

declaração. Mas, para início de conversa, há que se perguntar o que os teria levado à omissão dos judeus.

O antissemitismo trata o judeu como “objeto” – o que fazem aos judeus. O antissemitismo elimina o judeu como “sujeito” – o que os

Hoje em dia, os antissemitas, entre os quais aqueles que no passado jamais ousaram expressar publicamente seu ódio, sentemse encorajados a fazê-lo. Na verdade, sentem-se mais do que encorajados. Acreditam que haja uma vasta parcela da opinião pública e de líderes mundiais que, ainda que não o expressem abertamente, são simpáticos a seu nacionalismo branco – que inclui o ódio aos judeus. Mas, por mais que me preocupe com o que os antissemitas possam fazer aos judeus, preocupa-me ainda mais o que nós possamos fazer a nós mesmos em virtude do antissemitismo.

EM POWAY, CALIFÓRNIA, UM HOMEM ABRIU FOGO NUM SÁBADO, DENTRO DE UMA SINAGOGA, EM MEIO À CELEBRAÇÃO DE UM DIA SANTIFICADO

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judeus fazem. Recentemente, isso me voltou à lembrança quando um rapaz que era meu aluno há alguns anos apareceu em meu gabinete usando uma kipá, algo que nunca fizera antes. Apesar de tentada a lhe perguntar, “E aí, o que o levou a usar a kipá? ”, fiquei calada pois achei inadequado. Discutimos seu trabalho e seus planos de pósgraduação. Quando se levantou para ir embora, ele se virou para mim e, com um visível entusiasmo, apontou para a cabeça, e me perguntou: “Você notou a minha kipá? ”. Fingindo pouco caso, respondi: “Ah, sim, isso é novidade, não? ”. Ao que ele rapidamente, e com orgulho, me disse que, em virtude dos ataques aos judeus, ele fazia questão de mostrar a essa gente que eles não o assustavam. “Essa é minha resposta àqueles que nos odeiam”. dezembro 2019


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Fiquei calada, mas meus sentimentos estavam todos embaralhados. Estava orgulhosa de sua “chutzpá”, sua audácia e sua recusa em se acovardar diante das ameaças (apesar de que pessoalmente, não o tinham ameaçado). Mas meu coração se partiu, pois sua motivação para se identificar como judeu fora provocada pelos que nos odeiam. Ele havia dado poder a eles sobre sua identidade. Como eles se manifestam ou agem contra nós, ele fortaleceu sua identidade judaica. Ele havia sido motivado pela tristeza da vida judaica, e não pelo júbilo de ser judeu. Em Pittsburgh, Poway e Halle, as vítimas pretendidas estavam dentro da sinagoga quando foram assassinadas. Na sinagoga “Árvore da Vida”, elas haviam chegado cedo, no início do serviço religioso. Imagino que alguns lá estivessem para dizer o Kadish por um luto na família, ou quisessem assegurar que houvesse o minyan, o quórum necessário para que outros pudessem dizer o Kadish. Para algumas das vítimas, a sinagoga era o seu “clube”

e adoravam lá estar. Alegravam-se em se encontrar e passar algumas horas juntos, todo Shabat. Em Halle, após o ataque, quando a polícia não deixou sair quem estava dentro da sinagoga pois a situação ainda não estava controlada, os congregantes continuaram a rezar, estudar o Livro Sagrado e cantar. Logo depois, quando foram transferidos para um hospital local, reuniram-se na cafeteria e terminaram as orações com cantos e danças. Só então quebraram o jejum e tomaram cerveja.

O PRESIDENTE TRUMP E SUA ESPOSA MELANIA, ACOMPANHADOS DO RABINO JEFFREY MYER, EM VISITA À SINAGOGA “ÁRVORE DA VIDA”, APÓS O ATENTADO

Aquilo foi uma afirmação de vida judaica diante da possibilidade da morte. Aqueles judeus nos deram uma importante lição. Mesmo quando os outros se levantam contra nós, nós reafirmamos nossa identidade judaica. Mesmo estando de prontidão – e seríamos loucos de não estar – nós o fazemos para poder ter a liberdade de celebrar a vida judaica de todas as suas formas.

A Sinagoga “Tree of Life”. Flores em memória Das vítimas do pior ataque antissemita já ocorrido em território americano. Pittsburgh

Somos portadores de uma tradição magnífica, que se expressa em contexto religioso, intelectual, filantrópico, artístico, comunitário e político. Apesar do empenho e esforços de tantas gerações de nãojudeus em nos prejudicar, matar e até aniquilar, nós celebramos nossa tradição multifacetada e celebramos tudo o que ela deu ao mundo. E nós o fazemos – não por causa da tentativa de nos destruir – mas apesar dela. Somos muito, muito mais do que vítimas. Deborah E. Lipstadt é Historiadora. Atualmente é Professora da Cadeira Dorot de História do Holocausto, na Emory University e é membro do Conselho do Memorial do Holocausto.

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Deborah Esther Lipstadt

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eborah Esther Lipstadt é historiadora norte-americana. Uma das autoridades acadêmicas mais respeitadas no tema do Holocausto e antissemitismo, é mais conhecida por ser a autora dos livros Denying the Holocaust (1993), History on Trial: My Day in Court with a Holocaust Denier (2005) e The Eichmann Trial (2011). Desde 1993 é a professora titular da cátedra Dorot de História Judaica Moderna e Estudos do Holocausto, na Emory University, em Atlanta, Geórgia. Lipstadt nasceu na cidade de Nova York, filha de Miriam e Erwin Lipstadt. Na juventude, estudou no Hebrew Institute de Long Island, e com o Rabino Emanuel Rackman, Rabino americano, da linha Ortodoxa Moderna, tendo passado várias férias de verão no Camp Massad, um acampamento judaicosionista para jovens. Ela passou o primeiro ano do Ensino Médio em Israel, durante a Guerra dos Seis Dias, como aluna de intercâmbio na Universidade Hebraica de Jerusalém. Terminou seus estudos de graduação em História Americana no City College de New York, em 1969, com o título de Bacharel. Matricula-se na Brandeis University, onde completa o Mestrado, em 1972, e o Doutorado em História Judaica, em 1976.

Após receber o título de Doutora, Lipstadt primeiro leciona na Washington University, em Seattle, e depois na UCLA, em Los Angeles. Em 1985, ela retorna à Brandeis University como diretora da instituição independente, BrandeisBardin Institute, durante dois anos. A seguir, recebe uma bolsa de pesquisa do Centro Internacional Vidal Sassoon para o Estudo do Antissemitismo, na Universidade Hebraica de Jerusalém, quando se aprofundou no tema da negação do Holocausto, tendo ajudado a criar o Instituto de Estudos Judaicos nessa instituição. Já na qualidade de consultora do Museu Memorial do 73

Holocausto dos Estados Unidos, o Presidente Bill Clinton a indica, em 1994, como membro do Conselho do Memorial do Holocausto. Ao longo de sua bela carreira, Deborah Lipstadt recebeu vários prêmios e doutorados honorários de várias universidades. Após a publicação do livro “Negando o Holocausto”, em junho de 1993, ela recebeu o National Jewish Book Award de 1994. Deborah Lipstadt ficou internacionalmente famosa em setembro de 1996, quando o negacionista do Holocausto, David dezembro 2019


antissemitismo

Irving, abriu um processo cntra ela e sua editora, a Penguin Books, por difamação, em um tribunal britânico, por terem caracterizado alguns de seus trabalhos e declarações públicas como negação do Holocausto, em seu livro Denying the Holocaust (Negando o Holocausto). A lei inglesa coloca o ônus da prova sobre o réu e não sobre o requerente. Lipstadt e a editora Penguin ganharam a causa demonstrando perante o tribunal que as acusações de Lipstadt contra Irving eram consistentemente verdadeiras. O jornal The Times escreveu sobre a vitória da historiadora: “A História ganhou seu dia no tribunal com uma vitória esmagadora”. Esse julgamento deu origem ao filme Denial (Negação), de 2016, com a atriz Rachel Weisz no papel de Lipstadt. O filme se baseou em seu livro de 2005, History on Trial: My Day in Court with David Irving (A História em julgamento: Meu dia no Tribunal com David Irving), dirigido por Mick Jackson. Em fevereiro de 2007, Lipstadt denunciou uma nova vertente do negacionismo do Holocausto, que ela denominou de “negação branda”, no jantar anual de fund-raising da Federação Sionista, em Londres. Referindo-se a grupos como o Conselho Muçulmano da GrãBretanha, ela teria dito: “Quando

grupos de pessoas se recusam a celebrar o Dia da Lembrança do Holocausto a menos que se dedique igual atenção e tempo ao preconceito contra os muçulmanos, estamos diante de uma ‘negação branda’ ”. De forma similar, ela criticou o filósofo e historiador alemão, Ernst Nolte1, por dedicar-se a promover a “negação branda” do Holocausto, argumentando que Nolte pratica uma forma ainda mais perigosa de negacionismo do que os negadores do Holocausto. Referindo-se a Nolte em uma entrevista em 2003, Lipstadt afirmou: “Historiadores como o alemão Ernst Nolte, de certa forma são mais perigosos ainda que os negacionistas. Ele é um antissemita de primeira linha, que tenta reabilitar Hitler dizendo que ele não era pior do que Stalin. Mas ele é cuidadoso em não negar o Holocausto. Os negadores do Holocausto tornam a vida de Nolte mais confortável. Com sua argumentação radical, eles conseguiram puxar o centro da questão sobre o negacionismo histórico mais para o seu lado. Consequentemente, um extremista menos radical, tal como Nolte, sente-se mais próximo ao terreno do “meio”, menos radical e mais

1 N.R.: Ernst Nolte morreu em 2016. Ele foi acatado por negacionistas do Holocausto e por neonazistas. Em um de seus artigos, publicado em 1986, “O passado não desaparecerá”, ele defendeu que ao internar os judeus, Hitler reagia ao que ele considerava uma conspiração judaico-bolchevique e a uma “declaração de guerra” sionista, de 1939, conclamando todos os judeus a apoiarem a Grã-Bretanha. Nolte efetivamente “condenou” o nazismo e admitiu que tivesse ocorrido uma “ampla liquidação” durante o Holocausto, apesar de que também se referia à “assimchamada” aniquilação dos judeus e o preconceito dos historiadores judeus.

indefinido, o que o torna mais perigoso”. Deborah Lipstadt voltou ao tema do “negacionismo brando” do Holocausto ao reagir à declaração do governo Trump no Dia Internacional de Recordação do Holocausto, em 27 de janeiro de 2017, declaração essa que foi condenada pela ausência de uma menção específica aos judeus como as principais vítimas do Holocausto e do antissemitismo. “O Holocausto foi ‘despido de Judaísmo’. É possível que tudo tenha começado com um erro. Simplesmente talvez alguém não tenha percebido que o que estavam fazendo. Mas também é possível que alguém o tenha feito deliberadamente”. Em maio de 2018, ela publicou mais um livro, “Antisemitism: Here and Now” (Antissemitismo: Aqui e Agora). Infelizmente, esse livro foi profético. “Quando esse livro for publicado”, ela escreveu em sua introdução, “já conheceremos novos exemplos de antissemitismo”. Cinco meses mais tarde, um supremacista branco matou 11 pessoas na Sinagoga “Tree of Life” em Pittsburgh, no que constituiu o ataque mais mortal contra a comunidade judaica nos Estados Unidos. O incidente fez com que o livro de Lipstadt se tornasse ainda mais crucial para entendermos o desalentador ressurgimento do antissemitismo – tanto de esquerda quanto de direita. Em uma entrevista, concedida no final de 2011 a historiadora, declarou que “Se o antissemitismo se tornar a razão através da qual se reflete a visão judaica de mundo, se esse antissemitismo se tornar o seu prisma, então tudo fica muito pouco saudável – e a tradição judaica jamais quis isso.”

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REVISTA Morashá i 93

A revista Morashá é de excelente conteúdo e excepcional qualidade de confecção, e possui, a meu ver, alto valor agregado em comparação às demais existentes no mercado (as minhas são guardadas com carinho). Felicito-os pelo grande trabalho de divulgação da nossa história e tradições judaicas. Sérgio Henrique Negri Rio de JaneirO - RJ

Os artigos publicados na Morashá são extremamente interessantes e me abrem novas visões de entendimento de questões ligadas à nossa religião, razão do meu interesse. Sergio Loeb São Paulo - SP

Gosto muito dos artigos da Morashá que falam sobre as conquistas de Israel, consideradas impossíveis. Só com a ajuda de D’us conseguimos vitórias: Guerra dos Seis Dias, Guerra de Yom Kipur e também as grandes batalhas antigas. Gosto muito, também, dos artigos de Zevi Ghivelder, dos artigos sobre pessoas ligadas a tudo que se refere a Israel. Não conheço Israel, mas qualquer coisa ligada ao país (hino, músicas, conversa em hebraico, etc.) me comovem. Leio toda a revista, sempre! E guardo. Gosto, ainda, de rever as antigas edições. Algumas com mais de 10 anos. Agradeço, mais uma vez, por receber a publicação. Boris Kottler Salvador - BA

Agradeço o envio por todos esses anos da maravilhosa revista Morashá impressa, com a qual aprendi muito. Continuarei a apreciar seu conteúdo pelo site. Parabenizo toda a equipe pelo trabalho impecável. Ester Fogel Paciornik Curitiba - PR

A Morashá, após lida pela família, é doada para as casas de repouso da velhice israelita religiosa de Milão. Andrea Massarani, Milão - Itália

Minha mãe, Sonia Gutnik, recebe a vossa preciosa publicação em sua residência no Rio de Janeiro e, agora, aos 94 anos, sem poder sair à rua, relê as antigas edições que guarda cuidadosamente junto à cadeira onde passa sentada a maior parte do dia. Ida Gutnik Rzezinski Tipping Austrália

A Morashá é maravilhosa e o conteúdo de ótima qualidade. Sei que hoje temos acesso à revista por meio eletrônico, mas prefiro ter os exemplares impressos. Nelia Alhadeff de Carvalho São Paulo - SP

A Biblioteca Municipal Professor João de Sousa Ferraz agradece o envio das revistas Morashá desde 2013. BIB. MuN. Prof. João de Sousa Ferraz Limeira - SP

Recebo a revista Morashá, que tanto admiro, há mais de 20 anos. Mudei para outra localidade e gostaria de continuar recebendo a sua excelente revista. Não gostaria de ver material de tão excelente qualidade extraviado, pois coleciono todos os números desde que recebi o primeiro exemplar. Marcel Jacques Sardon Taquara - RS

É com muita alegria que anuncio o recebimento da Morashá em minha casa. Chega em período de ano novo, fantástico! Desejo a todos da revista um ano repleto de Paz, Alegria e que as luzes iluminem vossas jornadas. Edson Domingues São Paulo - SP

É com muita alegria que leio a Morashá. Esta revista maravilhosa que nos revela a atuação do Povo Judeu na história. Povo glorioso e incansável, que tanto bem fez à humanidade. Abençoado por D’us e, ao mesmo tempo, tão perseguido, odiado e discriminado pelo mundo. Parabéns. Edson da Costa Oliveira Monte Aprazível - SP

Agradeço a preciosa e sempre muito esperada revista Morashá. De excelente conteúdo, belíssimas ilustrações e fotos. É com grande prazer que lemos e relemos suas publicações. E esta edição das “Grandes Festas”, como têm sido todas as edições, está muito especial. W.R.Mundel Por e-mail

Agradeço o envio dos exemplares da excelente Morashá. Sucesso e realizações a vocês que estudam a Torá, mas também se empenham em tornar o mundo um lugar melhor. Helena Cristina Ragazini Guaratinguetá - SP

Adorei o artigo da Morashá de Abril de 2019 sobre o nascimento da Força Aérea de Israel, entre outros, muito bem escritos. Gosto de história, sou Genealogista. Afrânio Franco de Oliveira Mello Itapetininga - SP

Agradeço sempre a excelente revista Morashá, cuja leitura me é sempre prazerosa. Sara Roizenblit Rio de Janeiro, RJ

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ANO xxvII edição 106 DEZ 2019

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