Revista Morashá - ed 108

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ANO xxvII edição 108 set 2020


ANO XXVII - Setembro 2020 - Nº 108 Rolos da Torá, Londres, Charles F. Kandler, 1766-67. Miniaturas de pergaminhos em caixa de prata. As ponteiras de leitura também servem de pinos de segurança das caixas fechadas

Coordenação Editorial: Vicky Safra

Assistentes de Coordenação: Clairy Dayan Fortuna Djmal

Tradução e Preparação de Texto: Lilia Wachsmann Assessora Internacional: Muriel Sutt Seligson

Supervisão Religiosa: Rabino Y. David Weitman Rabino Efraim Laniado Rabino Avraham Cohen Jornalista Responsável: Desirée Nacson Suslick MTb 13603

Colaboradores especiais: Maria Luiza Tucci Carneiro Rabino David Y. Weitman Reuven Faingold Sergio D. Simon Tev Djmal Zevi Ghivelder Consultor: Marcello Augusto Pinto

Coordenação de Marketing: Ronaldo Mauro Erlichman Thais Sznajdleder Simeliovich Produção Gráfica: Joel Rechtman JR Graphiks - Tel: 3873 0300 Projeto Gráfico: LEN - Tel: 3815 7393

Serviços Gráficos: C&D Editora e Gráfica - Tel: 3862 8417 Tiragem: 28.750 exemplares

A distribuição é gratuíta sendo sua comercialização expressamente proibida. Morashá significa Herança Espiritual; contém termos sagrados. Por favor, trate-a com o devido respeito. Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo necessariamente a opinião da revista. É proibida a reprodução dos artigos publicados nesta revista sem prévia autorização do Instituto Morashá de Cultura. www.morasha.com.br morasha@uol.com.br


Carta ao leitor O mundo tem enfrentado, nos últimos meses, fenômenos singulares e imprevisíveis, causados por uma pandemia de proporções há muito não vistas, que o vem assolando. Tem sido, infelizmente, uma dura lição de humildade para a humanidade. Em questão de semanas, a vida mudou para bilhões de pessoas. Até as liberdades mais básicas, que considerávamos óbvias, foram drasticamente reduzidas. Durante meses, bilhões de pessoas em todo o mundo, inclusive a maioria da população do Brasil, não puderam sequer fazer as coisas do dia-a-dia: ir à escola ou ao trabalho, visitar um parente ou amigo, passear ou fazer compras. O mundo teve de parar; fábricas e empresas foram fechadas, viagens foram proibidas. As economias dos países mais ricos do mundo se contraíram a níveis nunca vistos desde a Grande Depressão. O mundo inteiro virou de cabeça para baixo – de repente, inesperadamente, em questão de poucas semanas. Pela primeira vez na história, quase todas as sinagogas do mundo inteiro, tanto em Israel quanto na Diáspora, foram fechadas. Nesse tempo em que todos tivemos de ficar isolados constatamos que, mesmo com toda evolução que houve no mundo e apesar de todos os avanços científicos, médicos e tecnológicos dos últimos anos – levando muitas pessoas a acreditar que o homem se tornara o mestre do mundo e de seu destino – com tudo isso, não temos a prevenção nem a cura para esse vírus e, apesar de bilhões de dólares investidos e muitos meses de trabalho, uma vacina ainda não está disponível. Percebemos nossa vulnerabilidade e o quão pouco sabemos e podemos controlar. Constatamos que não governamos o mundo e humildemente reconhecemos que tudo o que temos é uma dádiva Divina, que tudo depende de D’us. A pandemia já causou muito sofrimento para toda a humanidade: milhões de seres humanos foram infectados e centenas de milhares morreram. Muitos chegaram a acreditar que a pandemia significaria o fim da humanidade. Como disse o Rabino Lorde Jonathan Sacks: “Acredito que haverá consequências positivas que advirão desta triste situação em que estamos – temos apenas que manter nossa

coragem, confiança e esperança até podermos todos virar esta página. Por mais difícil que seja imaginar isso hoje, olharemos para trás e diremos: Por tudo isso, emergiremos destes tempos difíceis pessoas melhores do que éramos”. O Judaísmo nos fornece a sabedoria para podermos tirar lições deste período extremamente difícil e nebuloso. A resiliência do Povo Judeu e a força e otimismo que o mantiveram vivo por milênios deve servir como fonte de inspiração para toda a humanidade. Nós, judeus, mais do que nenhum outro povo, sabemos que o mundo já passou por épocas muito turbulentas e sombrias. Não devemos, portanto, perder as esperanças. É inegável que não podemos trazer de volta as vidas levadas pela pandemia - assim como não podemos trazer de volta os milhões de judeus que foram mortos no Holocausto. Mas a história judaica nos ensina que podemos sempre reconstruir o que foi destruído e, se necessário, começar de novo. O Rei Salomão, o mais sábio de todos os homens, ensinounos a lição atemporal de que tudo na vida passa. Esta pandemia também passará. Mas até que isso ocorra – e rezamos para que seja o mais breve possível, o Judaísmo e a própria história do Povo Judeu nos ensinam a ser fortes e resilientes e a não nos desesperarmos. À luz dos mais recentes avanços científicos e tecnológicos, muitas pessoas podem ter julgado essas preces desnecessárias e anacrônicas. Hoje, vemos que apesar de toda a genialidade do homem, essas orações são mais relevantes do que nunca. Neste Rosh Hashaná, oraremos por um ano bom e doce para toda a humanidade: um ano de cura, no qual o mundo não apenas derrotará definitivamente a pandemia, como também emergirá dela mais forte do que nunca. Shaná Tová Umetucá!


ÍNDICE

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03 carta ao leitor 06 nossas GRANDES festas O Significado de nossos atos

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nossas GRANDES festas Algumas leis relacionadas a Yom Kipur

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nossas GRANDES festas Sucot e o Tabernáculo, o Mishkan

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REFLEXÃO Alegria e aflição na pandemia POR Rabino Y. David Weitman

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HISTÓRIA Filho de imigrantes POR ZEVI GHIVELDER

30 comunidades Os judeus de Thessaloniki POR Sergio D. Simon 4


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israel Universidades de Israel em destaque

leis e tradições Adornos femininos: costume e identidade

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livros O Shabat, seus mistérios e seus sabores

ANTISSEMITISMO A inquisição espanhola

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história Safed – refúgio de conversos no século 16 POR REUVEN FAINGOLD

PERSONALIDADE Contrariando as circulares secretas do governo Vargas por Maria Luiza Tucci Carneiro 5

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nossas grandes festas

O Significado de nossos Atos “Tu Te recordas do que foi feito no mundo desde a eternidade e Te recordas de todas as criaturas desde os tempos mais remotos. Diante de Ti são desvendados todos os mistérios e os numerosos segredos desde o começo da Criação; pois não há esquecimento ante o trono de Tua glória, nem há segredo diante de Teus olhos. Tudo é revelado e conhecido por Ti, Eterno nosso D’us… Pois Tu decretaste o momento da recordação para que sejam lembrados toda alma e todo espírito, para que sejam recordadas as múltiplas ações e as inúmeras criaturas de maneira infinita... (Oração de Mussaf em Rosh Hashaná)

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osh Hashaná – o Ano Novo judaico – é um momento de Julgamento Divino. Durante os dois dias dessa festividade, D’us inicia o processo de julgamento – que perdura até o final da festa de Sucot – que determinará o destino de cada ser humano para o ano que se inicia. Nossos Sábios empregam várias metáforas para transmitir a ideia de que a Corte Celestial julga todos os seres humanos em Rosh Hashaná. Uma dessas metáforas descreve a maneira como o “arquivo” de cada pessoa é levado perante D’us. Falando de forma metafórica, D’us “abre” esses arquivos, lê e analisa seu conteúdo e, então, faz seu julgamento, decidindo o destino de cada pessoa para o novo ano.

data exige: estão totalmente desligadas do fato de que todos nós estamos diante da Corte Celestial e talvez não estejamos preparados para essa solene intimação. A realidade é que os dois dias de Rosh Hashaná são a antítese do dia 1o de janeiro. Não são um momento de folia, mas sim, os dois dias mais sérios do ano. Em Rosh Hashaná, o destino do mundo e de cada um dos indivíduos está pendurado na balança. E se estamos infelizes com a situação em que se encontra o mundo, temos de agir em Rosh Hashaná da maneira como o Juiz Supremo espera que nos comportemos. Rosh Hashaná não é, apenas, um momento em que todos os povos e o mundo inteiro são julgados, coletivamente, para o novo ano. Como deixa claro a oração de Mussaf de Rosh Hashaná, o Julgamento Divino é individual. A Corte Celestial julga os atos, bons ou ruins, que cada um de nós cometeu no ano que se encerra.

Muitos se esquecem do fato de que Rosh Hashaná é o momento em que D’us inicia seu julgamento. Essas pessoas estão felizes, com a falsa impressão de que Rosh Hashaná é o dia 1o de janeiro do Judaísmo: um feriado alegre no qual mergulhamos a maçã no mel e nos reunimos com os familiares e amigos para comer e beber, a nosso bel prazer. Esse conceito é comum, mas errôneo e perigoso, pois muitas pessoas não celebram Rosh Hashaná com a seriedade de corpo e alma que a

Mas a ideia de que D’us julga cada um de nós individualmente, e que Ele escrutiniza todos os nossos pensamentos, palavras e atos, traz à tona uma pergunta teológica: Estará D’us de fato interessado nos atos de cada ser humano? Serão nossas palavras – inclusive 6


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Muitas pessoas, inclusive as com alto grau de moralidade, têm uma determinada noção sobre as “coisas pequenas” da vida – os detalhes do cotidiano e os atos menores que todo ser humano realiza, com regularidade. E costumam perguntar: “Você acredita que D’us realmente se preocupa com esses detalhes pequenos? Você acredita que D’us se importa com o que acontece na intimidade de nosso lar, nossa cozinha e nosso trabalho?”

grandes” importam, ao passo que as “coisas pequenas” não importam tanto – se é que importam. Os pequenos detalhes que as pessoas costumam deixar de lado não são, necessariamente, coisas às quais se opõem, em princípio. Os pequenos detalhes podem também ser coisas que causam indiferença, na pessoa, ou mesmo que elas considerem benéficas; contudo, não são especialmente importantes. Essas “pequenas coisas” são parte de qualquer religião – e certamente do Judaísmo. Podem ser atos positivos, tais como colocar algumas moedas em uma caixa de Tzedacá, ou podem ser negativos, como contar uma mentira branca.

O conceito de “pequenas coisas” obviamente é muito subjetivo: o que uma pessoa considera “pequeno” ou “grande” depende do ambiente cultural e social da pessoa. Contudo,

Em muitos casos, a atitude de não se preocupar com as “pequenas coisas” na vida pode apenas ser uma fachada para a preguiça. Mas a questão se D’us se importa ou

nossas orações – e nossas ações diárias dignas de Sua atenção?

Relacionando-se com um D’us Infinito

ainda que as pessoas costumem discordar sobre o que é importante e o que não o é, podemos generalizar que a maioria dos seres humanos acredita que, na vida, as “coisas

COROA DA TORÁ EM PRATA, FINAL SÉC. 19

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não com os pequenos detalhes é uma pergunta religiosa válida. E merece ser feita. De fato, essa pergunta está no cerne do que trata a festividade de Rosh Hashaná – quando, metaforicamente, o Tribunal Celestial examina o “arquivo” de cada ser humano e o julga, segundo seus atos. A liturgia de Rosh Hashaná nos conta que D’us examina e julga todos os nossos atos. Mas, por que razão o Todo Poderoso deveria se importar com nossas ações cotidianas, os pequenos detalhes, bons ou maus, da vida? Pode-se argumentar que D’us poderia se importar com o que é notícia – guerras e terrorismo, uma pandemia mundial, eleições em Israel – eventos que afetam a vida de milhões ou PAR DE rimonim, enfeites DA TORÁ EM PRATA DOURADA E COROA DA TORÁ, MAURICE MAYER, PARIS, C. 1860

bilhões de pessoas. Mas por que Ele deveria se importar se um único indivíduo come casher? Por que Ele deveria se preocupar se a pessoa diz uma bênção antes de comer um pedaço de chocolate, cumpre os mandamentos do Shabat, coloca Tefilin, ouve o toque do Shofar em Rosh Hashaná ou come na sucá durante a festa de Sucot? Por que Ele deveria se importar se uma pessoa jejua ou não em Yom Kipur? Afinal, D’us é o Senhor do universo, onde corpos imensos, planetas e estrelas, movimentam-se como meros pontinhos dentro de uma miríade de galáxias. Cada um de nós, na Terra, é apenas um indivíduo entre bilhões de outros, e mesmo o planeta e a galáxia onde habitamos são minúsculos se comparados ao restante do universo. Dentro de nossa estrutura, muito limitada – nossa família, amigos e talvez nossa comunidade –, cada um de nós pode ser importante. Mas quando olhamos para o mundo a partir de uma perspectiva mais ampla de tempo e espaço, nossas atividades diárias e mesmo nossa própria existência parecem insignificantes. Portanto, não faz sentido crer que o Senhor do Universo pudesse ou devesse se importar com cada um de nós e com os pequenos detalhes de nossa vida – nossos pequenos atos, bons ou ruins. Por que razão D’us, que dirige e supervisiona o universo todo, deveria se preocupar com um detalhe como se um indivíduo vai à sinagoga, faz doações para um necessitado ou anima um amigo deprimido? Essa pergunta é igualmente válida no tocante à oração. Quando uma pessoa invoca a D’us, quais as chances de ser ouvido? Não seria presunçoso crer que o Senhor do Universo pode-se dedicar a ouvir as palavras e pedidos de cada um de nós?

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A pergunta se D’us presta atenção a cada pessoa – e especialmente aos detalhes de sua vida – é um problema teológico fundamental e profundo. Muitos optam por ignorar essa pergunta, enquanto outros agem como se não houvesse respostas à mesma. Em quase todos os casos, a origem dessa pergunta teológica – e toda a confusão que gera – é a imagem infantil de D’us que os adultos geralmente “pintam” para as crianças e que, por sua vez, permanece conosco mesmo depois de crescermos. Essa imagem infantil de D’us é alguém com uma longa barba branca, sentado em algum lugar dos Céus, milhares de quilômetros acima de nós, com relâmpagos em uma mão e um saco de balas na outra. Quando adultos, muitos de nós substituem essa imagem, compreendendo que é infantil e até uma blasfêmia, com a ideia de que D’us é como o diretor de uma grande empresa. Em grandes empresas, um funcionário mediano tem pouco ou nenhum contato com o diretor. Os funcionários são apenas uma pequena peça em uma grande engrenagem. O funcionário teria de fazer algo extraordinariamente bom ou ruim para ter a atenção do diretor. Na falta de qualquer dos dois cenários, é provável que o diretor nunca vá a ter contato com o funcionário, mesmo que este trabalhe para ele. À medida que subimos a cadeia hierárquica, esse padrão é amplificado. Por exemplo, o Primeiro Ministro de Israel é responsável pela segurança e bem-estar de todos os cidadãos do país, ainda que não os conheça pessoalmente nem se importe com a vida pessoal deles. Quando um cidadão escreve uma carta ao Primeiro Ministro, é algum

secretário quem responde. Talvez apenas pessoas muito famosas, excepcionais, recebam às vezes uma resposta pessoal. E pode-se entender a razão para ser assim. Se o Primeiro Ministro fosse responder a cada uma das cartas que lhe são enviadas, não teria tempo nem forças para executar seu trabalho. Os Chefes de Estado desempenham um papel vital e têm o poder de impactar a vida de milhões de pessoas. No entanto, até eles funcionam dentro de uma esfera limitada de poder e influência, comparada ao universo inteiro. Evidentemente, nenhum deles pode ser comparado a D’us – Criador e Mestre de tudo o que existe. Mas pode-se conjeturar que se um Chefe de Estado não pode relacionar-se com os cidadãos de seu país individualmente – e muito menos preocupar-se com os detalhes da vida de cada um – imaginem o quanto mais essa ideia se aplica a D’us, o responsável não apenas por nosso planeta, mas por todo o universo. Se um Chefe de Estado é inacessível aos cidadãos, como pode o Senhor de todo o universo estar acessível a cada um de nós? Aqueles que imaginam D’us como um líder muito poderoso julgam que assim fazendo estão expressando profundo respeito pelo Altíssimo. Desdenham a ideia de que D’us não tenha nada melhor 9

a fazer do que intrometer-se nos mínimos detalhes da vida de cada ser humano. Pois mesmo um pai, o quanto ele sabe da vida de seus filhos, o quanto isso o preocupa? São tantos os mínimos detalhes sobre coisas que desconhecemos totalmente. De modo geral, os seres humanos se preocupam com o que é grande e ao pensar na vastidão do universo, imaginam que D’us, que é incomparavelmente mais importante do que o ser humano mais poderoso, certamente não tem como preocupar-se com detalhes. Mas quando dizemos que D’us não está interessado ou envolvido com detalhes – com as “coisas pequenas” que fazemos ou deixamos de fazer, na realidade, estamos imaginando o Altíssimo de acordo com as nossas medidas. Independentemente do quão aumentemos a concepção Divina, continua sendo a nossa concepção, a nossa medida. setembro 2020


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Podemos ver D’us como sendo particularmente importante. No entanto, por maior que seja a nossa concepção de D’us, continua sendo uma projeção muitíssimas vezes aumentada de nossa figura humana finita. Em nossas orações e bênçãos, referimo-nos a D’us como Melech haOlam, Rei do Mundo. E, de fato, o reinado Divino é um dos principais temas de Rosh Hashaná. Contudo, precisamos ter cuidado para não interpretar erroneamente essa metáfora. Há uma diferença fundamental entre D’us e qualquer ser humano, por mais importante e poderoso que seja – um Chefe de Estado, ou até mesmo um rei. A razão para um Chefe de Estado não estar a par das preocupações diárias dos cidadãos de seu país é por ele ter uma mente limitada, além de tempo e energia limitados. Independentemente de quão talentoso e cheio de energia seja, há

um limite no que ele consegue fazer em um dia limitado a 24 horas. Por essa razão, ele precisa saber fazer suas escolhas. O líder de um país, ou qualquer pessoa que esteja no alto de uma cadeia hierárquica, só consegue concentrar-se em questões macro – no que é mais importante; ele não se pode dar ao luxo de dedicar seu tempo e sua mente a detalhes pequenos, senão seu funcionamento será prejudicado. Qualquer líder, até o mais capaz e batalhador, deve delegar os assuntos importantes a seus ministros ou pessoas de confiança – sozinho não consegue fazer tudo.

ARCA DA TORÁ DA SINAGOGA ADATH YESHURUN, SIOUX CITY, IOWA, EUA. TRABALHO DE ABRAHAM SHULKIN

No entanto, diferentemente de Chefes de Estado, D’us é Infinito. A infinitude é um conceito difícil de ser entendido, mesmo na Matemática. O infinito não tem limites: é ilimitado o número de detalhes que pode conter. Além disso, uma constatação matemática básica prova que em relação ao infinito, qualquer outro número é zero e qualquer outro tamanho é igual. Um ou um trilhão, se comparados com o infinito, são exatamente iguais a zero. Sob o ponto de vista teológico, o fato de que D’us é Infinito significa que para Ele, todos os detalhes são iguais em importância ou falta de importância, independentemente de seu tamanho. Comparada ao Infinito, uma galáxia, com todas as suas estrelas, é exatamente igual às menores partículas de um átomo. Assim sendo, não faz sentido algum que D’us se preocupe com o que ocorre em uma galáxia e não com o que ocorre a um tufo de grama. Comparado a D’us Infinito, sua magnitude é exatamente igual. Se D’us se preocupa com todo o universo, – que, por maior que seja, é finito e limitado –, pode-se dizer

Sefarim da Sinagoga Beit Yaacov Veiga Filho, São Paulo

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CARTÃO COM VOTOS DE ROSH HASHANÁ ATRIBUÍDO A HAPPY JACK. ALASCA, EUA, 1910. THE JEWISH MUSEUM, N. YORK

O conceito de que, para um D’us Infinito, não há o grande e o pequeno, é um dos temas das orações de Rosh Hashaná

que todas as suas partes mais ínfimas têm igual importância para Ele. O conceito de que, para um D’us Infinito, não há o grande e o pequeno, é um dos temas das orações de Rosh Hashaná: quando o Chazan repete a oração de Mussaf, ele recita um trecho que afirma que D’us “trata na igual medida o grande e o pequeno”. Essa é uma das maneiras de expressar a ideia de que as diferenças entre grande e pequeno, importante e sem importância, são insignificantes para Aquele que é Infinito, que está além de todas as limitações, Aquele para Quem as limitações nada representam. De forma semelhante, diz o Salmo 139: “Tu perscrutas meu íntimo e me conheces totalmente. Sabes quando me sento ou levanto e antecipas meu pensamento onde quer que eu esteja. Estás comigo quando repouso ou caminho, e Te são conhecidos todos os meus passos.... Se aos céus eu ascendesse, lá Te encontraria, e se às profundezas me lançasse, também

lá estarias”. Esse Salmo indica que D’us está ciente de onde estamos e de tudo o que fazemos, e que para Ele, os Céus e as profundezas, o distante e o próximo, a escuridão e a luz, é tudo igual. O Rabi Avraham Ibn Ezra (1089-1164) – um dos maiores poetas e filósofos da Idade Média – escreveu que esse salmo é o mais importante que há no Livro dos Salmos. O Salmo 113, o primeiro da oração de Hallel, expressa uma ideia similar. Por um lado, declara: “Muito acima de todas as nações está o Eterno, e acima dos céus Sua glória”. A noção de que D’us está acima e além de tudo é indiscutível: não pode haver semelhança ou comparação entre D’us e Suas criações. Mas, o Salmo continua: “Quem é como o Eterno, nosso D’us, que habita nas Alturas e vê o que se passa nos Céus e na Terra?”. O que esse Salmo nos diz é que, por mais elevado que seja D’us, Ele está ciente de tudo o que transpira nos Céus e na Terra. 11

MACHZOR DE ROSH HASHANÁ. FRANÇA, C. 1300

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Algumas pessoas querem louvar D’us dizendo que Ele é tão vasto e tão santificado que Sua glória está nos Céus. Contudo, ao afirmar isso, eles também deixam implícito que D’us se encontra apenas nos Céus, e, portanto, aqui na Terra e especialmente na privacidade de nosso lar e nosso trabalho, podemos fazer o que bem quisermos. Se fosse verdade que D’us se encontra apenas nos Céus e se preocupa apenas com as questões macro do universo, nós poderíamos facilmente fazer pequenas coisas erradas, “por trás de suas costas”, de forma escondida, pois esse grande D’us, que é tão ocupado com as coisas importantes, pode não me ouvir, mas tampouco Ele irá me repreender. Mas esse Salmo desfaz, em pedacinhos, a ilusão de que D’us é grande demais para estar ciente e envolvido nos detalhes mínimos do universo. O Salmo nos diz que D’us cuida dos Céus e da Terra. O Infinito está em toda parte. Portanto, Céu e Terra são iguais para Ele. Comparado a D’us

ou pequeno demais para passar despercebido, pois D’us tem uma visão plenamente abrangente, que contém tudo que se possa imaginar. Assim sendo, a crença de que algo é tão insignificante que pode escapar da atenção Divina é pior do que uma blasfêmia – é um absurdo total.

Infinito, um camundongo não é menos importante que um arcanjo. Mas para nós, criaturas pequenas e limitadas que somos, há uma diferença tremenda entre uma galáxia e um átomo. Para D’us, essa diferença e todas as demais são insignificantes. Em outras palavras, a capacidade de ver todos os detalhes é parte da Infinitude: constitui uma das definições de ser Infinito. Assim como nada é grande demais para D’us, nada é pequeno demais para Ele. Nada é insignificante

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Mas o fato de que para um D’us Infinito tudo é igualmente significativo ou sem significado, levanta uma questão fundamental: será possível que tudo seja igualmente sem significado para D’us? Em outras palavras, será que D’us chega a se importar? E por que Ele o faria? A resposta é que se D’us se preocupou em criar o mundo, com regras tão elaboradas – às quais chamamos de “leis da natureza” – para que esse mundo pudesse funcionar, então isso significa que sim, D’us deve se importar. Mesmo se desconsiderássemos a Revelação Divina no Sinai e a entrega da Torá – que nos permitiu ter um vislumbre da Sabedoria e Vontade Divinas, o simples fato de que D’us criou e mantém o universo é uma forte indicação de que Ele se preocupa com toda a existência. Portanto, se o universo tem significado e importância para D’us, todos os seus detalhes têm igual significado. Assim sendo, D’us está igualmente ciente até do ato mais ínfimo de cada um dos seres humanos, seja ele positivo ou negativo. D’us está atento a cada ato negativo, por menor que seja, mas também a cada uma das boas ações, independentemente de seu tamanho. O choro de uma criancinha é ouvido por D’us e Lhe é tão importante quanto o que um Chefe de Estado possa dizer em público, sendo ouvido por milhões de pessoas. É somente


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a idolatria de reduzir D’us a um tamanho finito, com conhecimento finito – vendo-o como um tipo de Chefe de Estado celestial – o que dá origem à pergunta “será que D’us se importa?”. São conceitos errôneos sobre D’us como este ou similares a este o que gera tanta confusão na mente e no coração dos seres humanos. O fato de se ter uma noção mais madura e mais abstrata sobre D’us não O distancia de nós. Pelo contrário, aproxima-nos d’Ele. Ao aceitarmos a premissa de que D’us tudo sabe e tudo ouve, torna-se evidente que Ele está ciente de todos os nossos pensamentos, palavras e atos. E isso, obviamente, inclui todas as orações que recitamos e os mandamentos da Torá que cumprimos. Muitas pessoas que vão às sinagogas em Rosh Hashaná e participam das longas orações desses dias, podem pensar: “Será que D’us realmente ouve minhas preces e meus pedidos? Será que Ele se preocupa com o que sente o meu coração?”. Tais perguntas estão na base da religião. Todas as preces se resumem a um ponto básico que é o fato de nos estarmos dirigindo a D’us com a convicção de que Ele está presente e nos ouve. Se temos Alguém com quem falar, podemos rezar. Se não tivermos com quem falar – se D’us está distante de nossa vida ou se Ele não se importar, então de que valem todas as orações e todos os mandamentos? A base do Judaísmo, portanto, é a consciência da presença Divina e o entendimento de que Ele vê tudo o que fazemos, ouve tudo o que dizemos e sabe tudo o que pensamos. A dificuldade que muitas pessoas encontram em se relacionar

Interior da Sanogoga Beit Yaacov, São Paulo

com D’us advém de um entendimento errôneo sobre Sua grandeza. A pessoa que pensa que D’us é muito ocupado com assuntos grandiosos e não se preocupa com uma criança que clama por Ele ao recitar os Salmos, não vê, de fato, a grandeza Divina. Para a Onisciência Divina não há grande nem pequeno, significativo ou insignificante na infinitude do universo. Para o Altíssimo, não há diferença entre os mundos. Assim sendo, para D’us não há orações que passem sem ser ouvidas, nem atos, bons ou ruins, que passem despercebidos. Devemos ter isso em mente não apenas em Rosh Hashaná, mas em todos os dias de nossa vida. O entendimento de que D’us está diante de cada um de nós deve-nos forçar, sempre, a sermos mais atentos a nossos pensamentos, palavras e ações. Essa percepção da constante 13

Presença Divina é primordial para o progresso espiritual e moral. Portanto, a abordagem correta à vida é viver como se todo dia fosse Rosh Hashaná. Diariamente, em qualquer dia do ano, antes de realizar uma ação – mesmo que seja uma ação comum, rotineira -, a Torá nos alerta para que lembremos que estamos diante do Altíssimo. D’us não está, como muitos acreditam, em um outro mundo ou nos Céus, tampouco em um reino espiritual invisível aos seres humanos. Ele está aqui e em toda parte, preenchendo toda a existência com Sua Essência Divina. BIBLIOGRAFIA

Rabi Adin (Even Israel) Steinsaltz,. Simple Words – Thinking About What Really Matters in Life. Simon & Schuster Pebbles of Wisdom from Rabbi Adin Steisaltz – Collected and with Notes by Arthur Kurzweil – Jossey-Bass. setembro 2020


NOSSAS GRANDES FESTAS

Algumas leis relacionadas a Yom Kipur Neste ano, Yom Kipur se inicia no dia 27 DE setembro, domingo, e termina na noite do dia 28 DE setembro .

C

ostuma-se fazer caparot – abate de um galo, para um homem, e de uma galinha, para uma mulher, no dia 9 de Tishrei de madrugada, 27 de setembro, por um shochet qualificado. Também é possível cumprir este costume com dinheiro, doando-o para tzedacá.

de Yom Kipur, deverá, antes de acender as velas, fazer uma ressalva dizendo que não está recebendo Yom Kipur com o ato de acendimento das velas. É, porém, necessário antecipar o recebimento de Yom Kipur para antes do pôr-do-sol. É costume os pais abençoarem os filhos, pedindo que estes sejam selados no Livro da Vida e que, em seus corações, permaneça sempre o amor a D’us. Convém também ir à sinagoga antes do pôr-do-sol, para poder participar do Kol Nidrei, a “anulação dos votos”.

É proibido jejuar no dia que precede Yom Kipur, mesmo se este jejum for por Taanit Halom. É, ao contrário, uma mitzvá fazer uma refeição adicional. A refeição que antecede o jejum deve ter pão e pratos de fácil digestão e ser concluída 20 minutos antes do pôr-do-sol. Bebidas alcoólicas são proibidas.

Restrições durante Yom Kipur Yom Kipur é o Shabat dos Shabatot e, portanto, todo trabalho profano deve cessar e todas as leis do Shabat devem ser respeitadas. Assim como no Shabat, é proibido carregar sobre si qualquer objeto durante

As mulheres devem acender as velas antes de ir à sinagoga, dizendo a bênção “Lehadlik Ner Shel Shabat Veshel Yom HaKipurim”. Se a mulher quiser locomover-se de automóvel ou usar o elevador antes do início 14


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CERIMÔNIA DO ERGUIMENTO DA TORÁ. BERNARD PICART, AMSTERDÃ, 1723-1738

Yom Kipur. Além de observar as leis do Shabat, em Yom Kipur outras cinco restrições são acrescidas: “Não comer, não beber, não trabalhar, não se lavar e nem massagear a pele (perfumes, cremes etc.), não calçar couro, não ter relações conjugais”.

Seguem-se os horários do início e término do jejum de Yom Kipur, no domingo, 27 de setembro de 2020 – 9 de Tishrei de 5780, em algumas cidades brasileiras. Nas de-mais, sugerimos que sejam consultadas as sinagogas locais: Recife: Início às 16:54h n Término às 17:46h Salvador: Início às 17:09h n Término às 18:01h Manaus: Início às 17:34h n Término às 18:25h Belém: Início às 17:48h n Término às 18:39h Rio de Janeiro: Início às 17:29h n Término às 18:24h São Paulo: Início às 17:43h n Término às 18:38h Belo Horizonte: Início às 17:32h n Término às 18:25h Brasília: Início às 17:47h n Término às 18:40h Curitiba: Início às 17:54h n Término às 18:49h Porto Alegre: Início às 18:03h n Término às 18:59h

O jejum diz respeito tanto aos homens quanto às mulheres, mesmo grávidas ou amamentando. Só em caso de doença ou onde haja algum perigo à vida, o jejum pode ser suspenso (consulte seu rabino). As crianças de 9 a 10 anos podem jejuar algumas horas, e, a partir dos 11 anos, conforme avaliação dos pais, podem jejuar o dia todo. Mas o jejum torna-se obrigatório aos 12 anos, para meninas, e aos 13, para meninos. O uso de sapato, sandálias ou tênis de couro é proibido tanto para homens como para mulheres. As crianças também devem ser orientadas neste sentido. Ao término de Yom Kipur, a Havdalá deve ser feita sem bessamim, e a Bênção da Luz deve ser feita sobre uma vela que permaneceu acesa desde o dia anterior. 15

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nossas grandes festas

Sucot e o Tabernáculo, o Mishkan “Habitareis em Sucot, cabanas, durante sete dias, todos os habitantes de Israel habitarão em Sucot; para que as futuras gerações possam saber que Eu fiz o Povo de Israel viver em cabanas, quando os tirei da Terra do Egito. Eu sou o Senhor, vosso D’us”. (Levítico, 23:42-43)

A

festa de Sucot, de sete dias, inicia-se no 15o dia do mês de Tishrei – cinco dias após Yom Kipur. O sincronismo da data é intrigante. De maneira diferente do que ocorre nas demais festividades judaicas, não há uma razão óbvia para Sucot ser celebrada nessa data. Por que razão a festa cai no mês de Tishrei, e por que se inicia no 15o dia do mês? Conta-nos a Torá que D’us nos ordena habitar em uma sucá durante a festividade de Sucot para celebrar a proteção Divina aos Filhos de Israel na vastidão do deserto, após Ele nos ter tirado do Egito (Levítico, 23:42-43).

Terra de Israel, por que razão a maneira ideal de o fazer é habitarmos em uma cabana, frágil e temporária? D’us realizou muitos milagres para o Povo de Israel durante os 40 anos de sua permanência no deserto. Não há nada de extraordinário no fato de que nossos ancestrais tivessem morado em cabanas durante os anos em que viveram no deserto escaldante. Mesmo na visão de Rabi Eliezer, no Talmud (Tratado Sucá, 11b), que ensina que a sucá de fato representa um fenômeno sobrenatural – as Nuvens de Glória que protegeram nosso povo no deserto –, por que a Torá institui uma festividade que celebra apenas esse milagre Divino, e não os demais? Por que razão, além de Sucot, ou em seu lugar, não há uma festa que celebre o maná que caiu dos Céus ou o poço que proporcionou uma fonte de água potável ao Povo Judeu em sua longa trajetória pelo deserto? Claramente há algo de profundamente significativo no ato de construir e habitar em uma sucá, que até empresta seu nome à festividade de Sucot (plural do substantivo sucá, cabana).

Como Sucot celebra a proteção Divina ao Povo Judeu após o Êxodo do Egito, faria mais sentido comemorá-la logo após Pessach, que é a data que marca a libertação de nossos antepassados da escravidão egípcia. Por que razão, então, Sucot é festejada no mês de Tishrei – cinco dias após Yom Kipur – e não logo após Pessach – nos últimos dias do mês de Nissan ou no início do mês seguinte, Iyar?

Para entender, em profundidade, o significado de Sucot – uma festividade cujo propósito é erroneamente compreendido por muitos judeus, particularmente na Diáspora –, devemos ter em mente que todas as festas

Há outro aspecto curioso na festa de Sucot. Se seu propósito é comemorar a proteção Divina sobre o Povo Judeu, ao longo de sua extensa jornada a caminho da 16


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Família de posses em Amsterdã jantando na sucá. Gravura de B. Picart (Cérémonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde, 1725, Biblioteca Nacional de MadriD

instituídas pela Torá – exceto Rosh Hashaná – comemoram eventos que ocorreram em um único ano do calendário: o ano fundamental na história do Povo Judeu, iniciado com o Êxodo do Egito. A primeira festa no calendário judaico não é Rosh Hashaná, mas Pessach. Essa festividade, que celebra a libertação judaica do jugo egípcio, é celebrada no mês de Nissan, que, como ensina a Torá, é o primeiro mês do ano. Iniciando-se na segunda noite de Pessach, começamos a contar o Omer – Sefirat HaOmer – que termina sete semanas depois, quando celebramos Shavuot. Nessa festa celebramos a Revelação Divina no Monte Sinai, ocorrida 50 dias após o Êxodo. A data significativa seguinte no calendário judaico, ainda que triste, é 17 de Tamuz, dia em que recordamos o pecado do bezerro de ouro, ocorrido nessa data. Essa

transgressão lastimável foi perdoada no 10o dia do mês de Tishrei –Yom Kipur. Até então, fazem sentido o timing e a sequência das festas e datas importantes no calendário judaico. Seguem uma cronologia lógica. Começamos celebrando Pessach no 15o dia de Nissan por ter sido nessa data que ocorreu o Êxodo do Egito. A festa de Shavuot é comemorada no dia 6 de Sivan (na Diáspora, também no dia 7) por ter sido nesse dia que D’us Se revelou ao Povo Judeu, no Monte Sinai. Jejuamos no dia 17 de Tamuz por ter sido nesse dia que Moshé, ao descer do Monte Sinai, vendo com seus próprios olhos que os judeus estavam adorando um bezerro de ouro, quebrou as Tábuas da Lei que continham os Dez Pronunciamentos Divinos (comumente chamados de Dez Mandamentos). Finalmente, 17

celebra-se Yom Kipur no 10o dia de Tishrei, por ter sido o dia em que Moshé retornou, novamente, do Monte Sinai, portando um novo conjunto de Tábuas, indicando que D’us perdoara o povo pelo pecado do bezerro de ouro. A única festividade no calendário judaico que parece estar fora de lugar – cuja data é, aparentemente, inexplicável – é Sucot. Por que razão essa festa se inicia cinco dias depois de Yom Kipur, em 15 de Tishrei? Qual a razão para não ser comemorada entre Pessach e Shavuot? Afinal, a proteção Divina ao Povo Judeu ao longo de sua jornada pelo deserto – tema principal da festa de Sucot – teve início imediatamente após o Êxodo do Egito. Faria mais sentido celebrar Sucot logo após Pessach – e não após Yom Kipur. Então, afinal, qual é a razão para isso? setembro 2020


nossas grandes festas

Kipur, em 15 de Tishrei, primeiro dia de Sucot. Essa festividade, portanto, também comemora a construção do Tabernáculo, que era a Morada Divina na Terra. Essa é uma das razões para que o principal mandamento da festa de Sucot, como seu próprio nome indica, é a obrigação de habitar na sucá – símbolo do Mishkan.

A Construção do Mishkan Uma das razões para o primeiro dia de Sucot cair no dia 15 de Tishrei é porque essa festa não celebra apenas um fenômeno que se estendeu por 40 anos – fossem as Nuvens de Glória que protegeram o Povo de Israel ou as cabanas em que viveram durante seus anos no deserto. Sucot celebra também um evento específico na História Judaica, que ocorreu cinco dias após o primeiro Yom Kipur, que foi quando nossos antepassados foram perdoados pelo pecado do bezerro de ouro. Esse evento, de profundo significado, foi a construção do Mishkan – o Tabernáculo – que foi o antecessor do Templo Sagrado de Jerusalém. De acordo com o Gaon de Vilna, os judeus começaram a construir o Mishkan cinco dias após Yom

Há vários paralelos irrefutáveis entre a sucá e o Mishkan. Uma das características que definem o Tabernáculo é o fato de ser uma estrutura temporária. A Torá descreve como foi desmontado e depois novamente montado para acompanhar os Filhos de Israel em sua jornada pela vastidão do deserto. A Torá se refere ao Mishkan como Ohel Moed – uma Tenda de Reunião, diferentemente de sua contraparte equivalente, o Beit HaMikdash (literalmente, a Casa de Santidade) – o Templo Sagrado. Apesar de sua magnificência, o Tabernáculo, diferentemente do Templo Sagrado de Jerusalém, era uma estrutura temporária: é mesmo chamado de Ohel (tenda), e não de Bait (casa). A sucá, por sua vez, também é uma estrutura temporária. Como nos ensina o Talmud, se uma sucá é muito permanente, ela é inválida, não se presta a seu propósito. E mais, a sucá é uma estrutura temporária pelo fato de que o mandamento de morar nessa cabana somente se aplica durante os dias da festa de Sucot. 18

Outro paralelo interessante entre Sucot e a construção do Mishkan é o fato dessa festa de sete dias ser seguida por outra, Shemini Atzeret – o “Oitavo Dia de Assembleia”. Shemini Atzeret é uma festividade independente, mas, de certa forma, também é uma continuação de Sucot. (Nesse dia também fazemos as refeições na sucá). A sequência dessas duas festas – Sucot, com seus sete dias, seguida de Shemini Atzeret, de um dia – é uma reminiscência da cerimônia de inauguração do Mishkan, que durou sete dias e foi seguida pelo oitavo, chamado de Yom HaShemini, o “Oitavo Dia” (Levítico, capítulo 9). A ideia de que Sucot comemora a construção do Mishkan dá origem a uma pergunta: por que razão essa estrutura física foi tão significativa ao ponto de merecer uma festividade judaica só para si, tornando-se parte de nossa recordação dos eventos ocorridos durante o primeiro ano dos Filhos de Israel no deserto? Uma das respostas é que o Mishkan foi a expressão mais potente do arrependimento judaico e, consequentemente, do perdão Divino pelo pecado do bezerro de ouro. O Mishkan foi a antítese e o antídoto do bezerro de ouro. De que forma a construção do Tabernáculo serviu de expiação para essa grave transgressão? Para erigir a estátua do bezerro de ouro, os homens do Povo Judeu – à exceção da tribo de Levi – e não as mulheres, doaram ouro, prata e joias. A construção do Mishkan foi o supremo Tikun – um reparo espiritual – para o bezerro de ouro porque deu aos Filhos de Israel outra oportunidade de contribuir com sua riqueza – dessa vez não para erguer a estátua de um ídolo, mas uma Morada para a Divindade Única e Suprema, antítese da idolatria.


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O Mishkan foi o veículo ideal para que o Altíssimo indicasse ter perdoado o povo pela idolatria praticada – sinal de rejeição a D’us –, pois o propósito principal do Tabernáculo era que a Divina Presença morasse em meio ao Povo Judeu, como está expresso na Torá: “E Me farão um Santuário e morarei entre eles” (Êxodo, 25:8). O pecado do bezerro de ouro havia criado um abismo entre D’us e Seu Povo. No Yom Kipur daquele ano, quando Moshé retornou do Monte Sinai trazendo consigo um segundo jogo de Tábuas, foi o sinal de que D’us havia perdoado o Povo Judeu. No entanto, o perdão Divino, em sua profundeza e plenitude, foi transmitido com a ordem Divina de construir o Mishkan, pois aquela foi a maneira com que D’us disse aos Filhos de Israel: Não apenas os perdoo, mas estou restaurando nosso relacionamento de volta à intimidade intensa e pura que desfrutava antes de seu grave pecado. Podemos agora entender por que razão a festa de Sucot é celebrada poucos dias após Yom Kipur. Esse que é o dia mais sagrado do ano marca o dia em que D’us perdoou o Povo Judeu por seu pecado e renovou Seu pacto com eles, como simbolizam as novas Tábuas. O fato de a Providência Divina escolher essa data específica para o perdão ao nosso povo por um pecado de gritante idolatria indica que o dia 10 de Tishrei é uma data auspiciosa para se pedir e obter o perdão Divino. Em cada Yom Kipur, oramos para que, assim como D’us perdoou nossos antepassados pelo pecado do bezerro de ouro, Ele também nos perdoe pelos pecados e transgressões que cometemos contra Ele. Nada mais adequado do que celebrar Sucot poucos dias após o Dia do

Perdão. Colocar Sucot logo a seguir de Yom Kipur é a forma em que D’us nos indica que Seu perdão é profundo e genuíno. Essa mensagem é plenamente expressa pelo fato de que, como ensina o Talmud, a Shechiná, a Presença Divina, habita em cada uma das sucás, assim como habitou no Mishkan. Durante os dias de Sucot, cada sucá serve a um propósito semelhante ao do Mishkan: é uma morada física que abriga a Presença Divina. Portanto, não surpreende o fato de haver uma tradição que recomenda que se comece a construir a sucá na noite em que termina Yom Kipur. Fazendo-o demonstramos a sinceridade de nosso arrependimento e a confiança em que D’us habitará entre nós, após ter perdoado nossos pecados em Yom Kipur. Uma das expressões mais fortes do fato de que a sucá simboliza o perdão

Divino e Sua proximidade a nós é a altura mínima que tem de ter para que seja válida. A Mishná (Tratado Sucá, 4b-5a) ensina que, para ser válida, a sucá deve ter, no mínimo, 10 tefachim de altura (um tefach equivale a 8-10 cm). O Talmud explica a razão: a sucá deve ter no mínimo esses 10 tefachim porque a Arca Sagrada, que continha as Tábuas dos Dez Pronunciamentos Divinos (os Dez Mandamentos), e que foi colocada na câmara mais sagrada do Mishkan, tinha 10 tefachim de altura. E qual a razão para essa altura? Explica o Talmud: essa é a altura mínima para que a Presença Divina possa Se revelar. Isso porque, apesar de D’us ser, obviamente Onipresente, a Shechiná, Sua Presença Revelada em nosso mundo, não desce abaixo de 10 tefachim a partir do solo. (Esse ensinamento baseia-se em um versículo do Livro dos Salmos: “...mas aos homens Ele entregou a

Maquete do interior do Mishkan, imagem reproduzida do livro “Le Tabernacle” de Mochè Levine, 1968, “Melechet Hamishkan”, Tel Aviv, Israel

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mais plenamente a mensagem do perdão Divino, tema principal do Yom Kipur. Assim sendo, e de certa forma, a festa de Sucot é uma extensão do Yom Kipur. Pois como ensinam nossos Sábios, o julgamento Celestial iniciado em Rosh Hashaná não termina em Yom Kipur, mas em Hoshaná Rabá – sétimo e último dia de Sucot. Essa festa se inicia poucos dias após Yom Kipur porque o processo de se alcançar o perdão Divino se conclui não ao final de Yom Kipur, mas ao final de Sucot.

Maquete do Aron Hakodesh, a Arca Sagrada ou Arca da Aliança. imagem reproduzida do livro “Le Tabernacle” de Mochè Levine, 1968, “Melechet Hamishkan”, Tel Aviv, Israel

terra” (Salmos, 115:16). A poderosa mensagem que nos é transmitida ao aplicar a altura de, no mínimo, 10 tefachim a uma sucá é que, para ser válida, nossa cabana precisa de uma estrutura sobre a qual a Presença Divina possa descer. Portanto, ao comer e passar o máximo de tempo possível nas cabanas durante a festa de Sucot, devemos estar conscientes do fato de que estamos recebendo a Shechiná sobre nós. Caso Sucot comemorasse apenas a proteção Divina sobre os Filhos de Israel ao longo de sua caminhada pelo deserto, faria sentido que a festa caísse logo após Pessach. Mas, ao entendermos que Sucot também celebra a construção do Mishkan, podemos compreender por que razão a festa se inicia em 15 de Tishrei – a data em que nossos antepassados começaram a construir o Tabernáculo. Contudo, há espaço para a pergunta: se Sucot é a celebração do Mishkan, por que a festa se inicia no dia em que o

Povo Judeu iniciou sua construção – e não quando foi inaugurado, no 1o dia do mês de Nissan? A resposta é que a sucá, assim como o Mishkan, é o símbolo que captura

A festa de Sucot, cuja essência e propósito ainda não são plenamente compreendidos por tantos judeus, não tem significado menor do que os demais dias sagrados do calendário judaico. Na verdade, Sucot é o ponto culminante de nossa representação anual do primeiro ano do Povo Judeu em sua caminhada pelo deserto – o ano-base, fundamental, de nossos antepassados, que se iniciou com o Êxodo do Egito. O clímax do ano judaico não é a impressionante experiência do Êxodo, celebrada em Pessach. Não é a Revelação Divina comemorada em Shavuot. E tampouco é o perdão Divino que alcançamos em Yom Kipur, dia mais sagrado do ano. O objetivo espiritual do ano ocorre em Sucot, quando construímos e habitamos na sucá – o Mishkan de nosso tempo – uma estrutura que abriga a Shechiná, a Presença Divina, em nosso mundo.

BIBLIOGRAFIA

Maquete da Mesa dos Pães da Proposição, imagem reproduzida do livro “Le Tabernacle” de Mochè Levine, 1968, “Melechet Hamishkan”, Tel Aviv, Israel

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Why a sukkah? - Dena Freundlich – Times of Israel https://blogs.timesofisrael.com/why-asukkah/ A House in Three Versions – Yanki Tauber – Chabad.org https://www.chabad.org/parshah/article_ cdo/aid/638675/jewish/A-House-InThree-Versions.html


reflexão

ALEGRIA E AFLIÇÃO NA PANDEMIA POR Rabino Y. David Weitman

A

s notícias que nos chegam sobre a pandemia, em geral, e suas consequências nos doentes e óbitos são assustadoras. Lamentamos imensamente e nos entristecemos. Cinco meses se passaram e o quadro permanece escuro, levando muitos à depressão. À espera do sol atrás das nuvens, qual seria a recomendação judaica neste período de angústia e adversidade? Há possibilidade de momentos felizes em meio a esta aflição?

Na mística judaica encontramos duas afirmações importantes: “Tão logo um pensamento iníquo surge, empurre-o com ambas as mãos e livre sua mente dele” e “Momento de alegria e de coração partido podem conviver, pois o choro está alojado em um lado do coração, e a alegria, no outro” (Tanya, caps. 12 e 34).

atenção traz um aumento de mágoa” (Eclesiastes 1:18). Pois, quando nos concentramos em um assunto aflitivo, a dor aumenta. Porém, se desviamos a nossa atenção, somos capazes de diminuir a mágoa, pois as emoções dependem do conhecimento. Não se concentrar em um elemento perturbador e voltar nossa atenção para assuntos felizes é a solução nestes momentos de angústia e desespero. Isso explica por que sobreviventes do Holocausto, que viram o inferno na Terra, ou pessoas que passaram por tragédias dolorosas, conseguiram se reerguer e reconstruir suas famílias, e, por outro lado, pessoas que perdem o seu RG ficam aflitas por semanas. O controle da mente exige um distanciamento, até mesmo que se ignore certos pensamentos.

Explicando um pouco mais, o ser humano se expressa de três modos: pensamento, fala e ação, que são chamados de “vestimentas da alma”. Enquanto a fala e a ação podem ser interrompidas – eu posso parar de falar e agir –, o pensamento flui constantemente e não para (mesmo quando dormimos). Mas se eu não posso pará-lo, posso desviar a atenção da minha mente para outros tópicos. O controle da mente permite que nos distanciemos de certos assuntos e os ignoremos, permitindo assim o surgimento de outros pensamentos.

Ilustrando isso com uma típica anedota judaica: Conta-se que um sábio, andando pela rua, foi parado por uma menina, que lhe indagou: “Mestre, o senhor dorme com a barba em cima ou embaixo do cobertor? ”. O sábio nunca havia pensado no assunto, e disse: “Minha filha, não sei lhe dizer”. Aos 80 anos de idade, ele sempre dormiu bem e nunca se preocupou com isso. No final da história, ele ficou sem dormir três meses, pois, toda vez que ele se deitava, ficava concentrado, observando se a barba estava em cima ou embaixo do cobertor.

O Rei Salomão, conhecido por sua sabedoria, escreve: “Um aumento de

Tristeza e felicidade não são dois polos opostos, incapazes de conviver, pois 21

um não exclui o outro. São expressões diferentes que manifestam estágios distintos das nossas emoções. O Judaísmo – e isso é confirmado pela psicologia moderna – nos ensina que estas emoções podem se manifestar simultaneamente, pois o choro é alojado em um lado do coração, e a alegria, no outro lado. Não podemos modificar os eventos tristes que acontecem, mas podemos decidir em que queremos nos concentrar. Cada um de nós tem assuntos que causam alegria, seja no campo familiar, profissional, social etc. São neles que devemos focalizar a nossa atenção, e assim teremos alegria em (parte de) nosso coração. Os números não mentem, mas, de vez em quando, podemos nos desligar, desviar a nossa atenção “com ambas as mãos” e voltá-la para assuntos e afazeres alegres, que nos trazem satisfação. Desta forma, cumpriremos o antigo ditado iídiche “Tracht gut vet zain gut” – “Pense no bem e será bom”. Que possamos ver em breve o sol dissipar as nuvens e brilhar com todo o seu esplendor, com proteção Divina, saúde e felicidade para todos. Shnat Briut veHatslachá, Tizku leshanim rabot! Artigo originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo em 25/06/2020.

Rabino Y. David Weitman, Rabino-Chefe da Congregação Beit Yaacov, S. Paulo, escritor e palestrante

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HISTÓRIA

filho de imigrantes Por ZEVI GHIVELDER

O relato a seguir é uma breve lembrança da vida dos meus pais, que saíram no século passado da Bessarábia, uma bela e conturbada região localizada entre a Romênia e a Rússia, e se radicaram no Brasil, no Rio de Janeiro. Espero que meus netos e os netos dos meus netos, se vierem a tomar conhecimento desta narrativa, renovem o orgulho por terem atravessado o Mar Vermelho guiados por Moisés, e sempre se empenhem pela sobrevivência do Povo Judeu

e

m 1913, um judeu chamado Menachem Mendel Beilis, habitante da cidade de Kiev, na Ucrânia czarista, foi preso e acusado de assassinar um filho pequeno de camponeses e usar seu sangue para um suposto ritual satânico judaico. Esse absurdo ganhou repercussão internacional e, mais uma vez, expôs o cruel antissemitismo russo. Levado a julgamento, Beilis foi absolvido.

Em abril de 1961, eu estava em Jerusalém cobrindo o julgamento do criminoso de guerra nazista Eichmann para a revista Manchete, quando um jornal local publicou que, dentre as centenas de correspondentes especiais do mundo inteiro, eu era o mais jovem. Certo dia, fui chamado à recepção na entrada do tribunal. Aguardavam-me dois senhores com capotes pretos e barbas brancas. Um deles perguntou: “Vimos seu nome no jornal. Você é da família do grande Moshe Ghivelder?” Confirmei ser seu neto e ele completou: “Nós viemos de Tel Aviv só para tocá-lo”. Ambos me abraçaram, me beijaram, se despediram sem dizer mais nada, e sumiram na dobra da primeira esquina.

Meu pai, Saul, costumava contar que uma de suas memórias mais remotas da infância, quando tinha oito anos de idade, foi percorrer o shtetl (pequena cidade) de Britshon, na Bessarábia, numa carruagem aberta, ao lado do pai, Moshe, que tocava um sino e gritava em iídiche: “Atenção, atenção, judeus! Beilis está livre! Beilis está livre! ”

Há um livro sobre Britshon, publicado em Israel, metade em hebraico e metade em iídiche, no qual Moshe figura com destaque. Junto com minha avó Ella, mais uma filha e o genro, emigrou para a antiga Palestina em 1933. Morreu quatro anos depois, atropelado por um carro em Tel Aviv.

Meu avô desempenhava as funções de rabino de Estado, com poderes para emitir certidões e praticar diferentes atos administrativos inerentes à comunidade judaica que compreendia 90 por cento dos habitantes de Britshon. Embora não fosse ortodoxo, mantinha o título de rabino. Era inflamado ativista sionista e se notabilizara como excepcional orador, conforme pude atestar.

Em 1917, por consequência da revolução bolchevique, a Rússia perdeu o domínio da Bessarábia que se tornou uma província da Romênia. Para todos os que lá viviam, sobretudo para os judeus, foi um choque 22


REVISTA MORASHÁ i 108 FOTO: NIELS ANDREAS

GRANDE TEMPLO ISRAELITA DO RIO DE JANEIRO

cultural devastador e uma perda de identidade que, bem ou mal, se alinhava na Rússia imperial. As afinidades dos judeus com os romenos eram semelhantes às afinidades com os esquimós. Todos falavam iídiche e russo e o idioma da Romênia, de raiz latina, lhes era totalmente estranho. Meu pai cursou todo o ensino médio no idioma romeno, o que deve ter sido bem penoso. Em seguida, foi para Tchernovitz (atual Cernovici), cidade moderna e cosmopolita, onde pretendia cursar a faculdade de direito. Foi rejeitado pelo fato de ser judeu. Voltou para a cidade natal e passou a lecionar hebraico. Casou-se com minha mãe, Fanny, e sentiu que as perspectivas por uma vida melhor estavam a uma distância abissal.Em 1929, decidiu assuntar o Brasil, seguindo o rumo de mais

de uma dezena de amigos que já haviam partido para o Rio de Janeiro e São Paulo. Se tudo desse certo, a mulher viria no ano seguinte, como de fato aconteceu. O plano era juntar dinheiro e, quando a conta fechasse, iriam para a Palestina ao encontro da família. A eclosão da guerra, em

Menachem Mendel Beilis

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1939, acabou com o propósito de deixar o Brasil. A partir da década de 20, a imigração em grande massa de judeus da Rússia, Polônia e Bessarábia chegou ao Brasil e à Argentina. Os que ficaram em países europeus jamais poderiam imaginar a tragédia existente em seus horizontes. Quando a Bessarábia foi ocupada pela Alemanha nazista, em 1940, minha avó materna, Esther, e sua filha, minha tia Hannah, atravessaram o rio Dniester e fugiram para a Ucrânia. Meu avô, Itsik, ficou de encontrá-las em seguida porque ainda queria vender algumas coisas e liquidar os negócios. Porém, os nazistas chegaram e o assassinaram de imediato, junto com outros judeus. setembro 2020


HISTÓRIA

As duas mulheres continuaram fugindo e só pararam em AlmaAta, no Cazaquistão, onde ficaram durante toda a guerra nas mais adversas condições. Depois, voltaram para a Romênia e se radicaram na cidade de Jassi. Foi só então que minha mãe recebeu uma carta e ficou sabendo que sua mãe e a irmã tinham sobrevivido. Esther veio para o Brasil em 1949 e aqui viveu longos anos. Dentre os milhares de imigrantes recém-chegados ao Brasil, poucos

sefaradim, oriundos sobretudo da Síria e do Líbano. Ao contrário dos ashquenazim, judeus do leste Europeu, eram mais religiosos e menos nacionalistas. A maioria dos imigrantes foi levada a se dedicar a um comércio específico: vender produtos de porta em porta, cobrando prestações mensais e assim incorporando à paisagem brasileira a figura do “judeu da prestação”. O lucro das vendas era precário, mas dava para viver, mesmo porque o sistema

Meus pais, Saul e Fanny Ghivelder, z’l. Eu tinha um ano de idade, na foto

possuíam algum dinheiro para começar um negócio. A imensa maioria só tinha dinheiro guardado para se sustentar por um semestre, se tanto. Aqueles que detinham qualificação profissional continuaram a exercer suas atividades de origem, lutando conta a tormentosa barreira do novo idioma que, de qualquer maneira, foram obrigados a assimilar. Na década de 20, vieram também, em quantidade bem menor, os

Sinagoga de nilópolis,fundada em 1928

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de prestações era bem acolhido, já que o comércio tradicional só operava com pagamentos à vista. Assim os judeus se especializaram em “clapn clientele” (bater clientela, em iídiche). Esses imigrantes eram chamados de clienteltchics. Sob chuva ou sol, percorriam a pé inesgotáveis quilômetros dos bairros da cidade em busca de freguesia. Meu pai, de formação intelectual, jamais tinha lidado com qualquer tipo de comércio na vida; começou a “bater clientela” vendendo bonecas. Sentiu vergonha dele mesmo, vendo o filho do grande Moshe, batendo de porta em porta no percurso de uma desconhecida paisagem tropical. As bonecas foram péssima escolha, porque se ele obtinha algum sucesso na parte da manhã, gastava a metade do dinheiro para pagar o rapaz que carregava a mercadoria. Por isso, os prestamistas preferiam vender joias, relógios e bijuterias, que levavam nos bolsos. Boa parte dos judeus foi viver nos maiores ainda aprazíveis subúrbios cariocas, Meier, Cascadura e Madureira, ao mesmo tempo em que se concentraram na Praça Onze, bairro de classe média baixa, perto do centro da cidade. Outros se radicaram em subúrbios longínquos, como Nilópolis, onde construíram uma sinagoga, hoje em ruinas. Os clienteltchiks e seus pares foram heróis anônimos da continuidade judaica no Rio de Janeiro. Trabalhavam sem trégua para manter suas mulheres e filhos, sob um clima que jamais haviam presenciado na Europa. Ganhavam pouco, muito pouco. De modo geral, a vida lhes era adversa. Mas, apesar de tudo, tiveram determinação e se empenharam no sentido de fazer prevalecer o bem comum. Era um instinto ancestral, através do qual levantaram os recursos necessários para fixar os alicerces


REVISTA MORASHÁ i 108

da comunidade. Esses imigrantes, muitos dos quais rudes e desprovidos de instrução, partiram do zero, criaram e sedimentaram entidades que atravessaram de duas a três gerações. Em um domingo de 1920, um pequeno grupo de judeus embarcou num trem na estação Leopoldina e desceu, quarenta minutos depois, no afastado subúrbio de São João do Meriti. Não havia transporte público e eles tiveram que caminhar sob um calor de 40 graus por uma estrada de terra para inspecionar um grande terreno, na localidade de Vila Rosali, que pretendiam adquirir para lá instalar o cemitério comunitário. Um dos integrantes do grupo anos depois comentou para meu pai: “Parecia que a gente estava percorrendo o deserto e que caminharia por 40 anos”. O cemitério de Vila Rosali passou a ser administrado pela Chevra Kadisha, entidade que já existia. Certa noite, já na década de 40, os diretores da sociedade deixavam a sede da instituição, após uma reunião, quando viram um caixão solitário, contendo um homem, que seria levado para o cemitério no dia seguinte. Um dos presentes disse: “Podem ir que eu vou ficar com ele”. Perguntaram: “Você o conhece?” Respondeu: “Não, mas um judeu não deixa outro judeu sozinho na hora da morte”. E ficou ali sentado numa cadeira até de manhã, quando chegou alguém da família do morto. Desde o primeiro dia de sua chegada ao Rio de Janeiro, o sentimento dos imigrantes judeus era a certeza de que valiam quaisquer sacrifícios por uma vida melhor para cada qual, para todos e para suas mulheres e filhos, vivenciando algo que podiam apalpar: a beleza da sobrevivência.

praça 11 de junho, 1922. rio de janeiro

Nessa esteira, ao longo dos anos, viram crescer instituições destinadas a beneficiar e confortar seres humanos dos 8 aos 80 anos de idade: do Lar da Criança ao Lar da Velhice. A solidariedade entre os imigrantes não era favor, tinha quase o rigor de obrigação. Aconteceu que um judeu era sócio de uma firma que faliu, acusada de fraude. Como não prestou atenção ao processo, foi julgado e preso. Disse para os filhos que ia demorar numa viagem de negócios para os Estados Unidos. Quando se aproximou o fim do cumprimento da pena, seus amigos

se reuniram, fizeram uma coleta e compraram brinquedos americanos importados para ele dar aos filhos no suposto retorno da viagem. No curso da tradição milenar do povo judeu, a educação teve prioridade. Na década de 40 já existiam no Rio duas escolas judaicas de bom porte: o Ginásio Hebreu-Brasileiro e o Colégio Sholem Aleichem, no qual fiz o curso primário. Mas, não foi fácil. A escola ficava na zona norte, na Tijuca, e eu morava na zona sul, no Flamengo. No Rio daquele tempo inexistiam grandes túneis e viadutos.

Juventude Sionista Macabi, Britshon, 1923. Meu pai, Saul, é o segundo, sentado, da esq. para a dir.

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HISTÓRIA

O percurso de uma zona para outra superava cerca de uma hora, mesmo de carro. Para mim e outras crianças da zona sul o colégio era praticamente inacessível. O diretor da escola, o professor Tabak, teve uma ideia inédita: contratou um táxi que ia nos buscar, um por um, e trazer de volta. Éramos seis, dois no banco da frente, quatro no banco de trás. O táxi rodava, rodava, e parecia que a viagem nunca ia acabar. Ainda me lembro do dia em que, em sinal de luto, as aulas foram suspensas porque tinha chegado ao Brasil a tardia notícia da eliminação dos combatentes do gueto de Varsóvia. Na segunda metade da década de 30, a efervescência política que abalava a Europa atingiu em cheio o Brasil, configurada nas ações comunistas e integralistas, ambas reprimidas pelo governo Vargas. Contudo, os imigrantes judeus passavam ao largo daqueles movimentos e se empenhavam em outro vigoroso embate: sionistas contra antissionistas, chamados em iídiche de roiter (vermelhos). Os sionistas, dentre os quais meu

Moshe Ghivelder, meu avô (1875-1937)

pai, alimentavam um sonho que parecia impossível, uma pátria judaica. Os roiter, seduzidos pelo comunismo, se apegavam à seguinte formulação teórica: o antissemitismo era resultante da luta de classes; portanto, se as classes sociais deixassem de existir, o antissemitismo também seria extinto. Até a invasão da Polônia, em 1939, fingiam ignorar que, mesmo sem classes sociais definidas, o antissemitismo continuava sendo uma predileção soviética.

No ano seguinte, persistiram na sua ideologia, mesmo quando Hitler e Stalin assinaram um pacto de não-agressão. Depois da 2ª Guerra Mundial, as cinzas do Holocausto fizeram com que muitos roiter abandonassem suas obsessivas posições. Convenceram-se de que se já existisse um estado judeu na antiga Palestina, a matança não alcançaria seis milhões. Entretanto, parte considerável dos roiter permaneceu antissionista mesmo depois da criação de Israel. Meu pai costumava dizer: “Preciso nascer de novo para entender como um judeu pode não ser sionista”. Naquele tempo, entre as partes conflitantes havia pontos comuns. Primeiro, evitar que a violenta repressão posterior ao fracassado movimento rebelde comunista, em 1935, viesse a atingir de alguma forma a comunidade. Depois, o temor pela crescente ascensão da Ação Integralista Brasileira. Seu líder, o paulista Plínio Salgado, tinha como inspiração política o fascismo de Benito Mussolini, vitorioso na Itália. A exemplo do ditador italiano, Salgado organizou milícias agressivas que desfilavam pelas capitais do país usando camisas verdes. Os imigrantes assistiam àquelas demonstrações nacionalistas com total sensação de impotência. Perguntei ao meu pai se os judeus pelo menos pensavam em esboçar uma reação e ele respondeu que simplesmente não havia o que fazer. O senso comum indicava que o melhor era ficarem todos quietos, sem chamar qualquer atenção. A situação piorou quando o protagonismo do integralismo foi assumido pelo intelectual Gustavo Barroso, cearense nascido em 1888. Com 35 anos de idade já tinha

Colégio Hebreu Brasileiro, rio de janeiro

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assinado mais de uma dúzia de livros, sendo acolhido na Academia Brasileira de Letras. Orador articulado e bom escritor, dedicou todas as suas virtudes para divulgar o integralismo e incrementar suas fileiras. Barroso foi além do fascismo de Plínio Salgado, impregnandose dos discursos antissemitas do nazismo e sabendo reproduzi-los. Os imigrantes judeus já conheciam a difamação que sofriam de conspiração internacional contida no livro apócrifo “Os Protocolos dos Sábios de Sião”, editado pelo regime czarista, que Barroso traduziu para o português. Sua pregação racista e insultuosa ultrapassava todos os limites da decência. Em um de seus textos chamou os judeus de vermina (conjunto de insetos) e maléficos. Os imigrantes sequer conheciam o significado das palavras vermina e maléfico, mas sabiam que por trás delas havia um fermento de ódio que poderia explodir a qualquer momento. Em outro texto escreveu que “os judeus são o que há de pior na espécie humana”. Baseado nos “Protocolos” insistia em alertar para o “perigo judaico”, chegando à paranoia de escrever sobre um ritual de sangue feito por judeus no sertão baiano, que poderia se espalhar por todo o país. Apesar dessa monstruosidade, os imigrantes não tinham condições para reagir. Porém, o silêncio dos judeus era perturbado e eloquente. Em novembro de 1937, o presidente Getúlio Vargas cancelou as eleições marcadas para o ano seguinte e decretou a instauração do Estado Novo, um regime autocrático à semelhança dos que existiam na Alemanha nazista e na Itália fascista. O componente antissemita ficou oculto, mas não deixaria de mais tarde se manifestar.

No dia 11 de maio de 1938, a Ação Integralista Brasileira, apoiada por um destacamento naval, pegou em armas e atacou o Palácio Guanabara, residência do ditador Getúlio, com o intuito de prendê-lo e tomar o poder. O levante fracassou, 1.500 integralistas foram presos e Plínio Salgado partiu para o exílio. O exacerbado antissemitismo de Gustavo Barroso caiu em silêncio até sua morte, em 1959. Não consta que ele jamais se tenha arrependido da militância em favor do nazismo. E os imigrantes e seus filhos jamais o perdoaram.

Presidente Getulio Vargas, 1937

No dia 30 de setembro de 1937, às sete da noite, o general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, ocupou o microfone da Hora do Brasil, transmissão oficial do governo, para anunciar que as autoridades haviam descoberto um plano de origem comunista, destinado a derrubar o poder vigente, além de prender e assassinar civis e militares. O dito plano recebeu o nome de Plano Cohen, por ter sido redigido por um comunista de sobrenome Cohen. O anúncio do general passou ao largo de especificar ou dar pormenores mais consistentes sobre quando, onde e como o documento tinha sido apreendido, mas o uso do sobrenome Cohen correspondia a uma provocação antissemita, tanto grosseira quanto gritante, já que Cohen era, e continua sendo, o mais comum dos sobrenomes judaicos desde séculos. O tal plano, conforme exposto, era oriundo do Partido Comunista Brasileiro em conjunto com partidos comunistas internacionais. Essa conexão de caráter mundial e conspiratório ia justamente de encontro à infâmia

Saul Ghivelder, professor de hebraico. Lamentavelmente todos essas crianças morreram no Holocausto. Britshon, 1926

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HISTÓRIA

existente nos “Protocolos”. Com a intenção de justificar a ditadura tramada nos porões do governo. Em novembro, o presidente Vargas fez um discurso no qual afirmou que, em vista da ameaça do Plano Cohen, o país se encontrava em estado de guerra. Portanto, o Congresso seria fechado, dando lugar a um novo regime, o Estado Novo. Mais uma vez, a comunidade optou por permanecer passiva. Os judeus logo deduziram que tudo não passava de uma grotesca falsificação, porém não tinham acesso aos jornais e estações de rádio para contestar o plano e tampouco queriam estar envolvidos na repressão ao comunismo. Havia um só jornalista judeu que tinha alcançado notoriedade na imprensa, Samuel Wainer, filho de imigrantes da Bessarábia, mas ele era alheio às causas judaicas. O Estado Novo teve impactos sobre judeus, tanto no Brasil como na Europa. No Rio de Janeiro foi proibida a circulação do jornal Idishe Presse (Imprensa Israelita), escrito em iídiche, e também foi proibido um programa de rádio parcialmente falado no mesmo idioma. Quando, em agosto de 1942, o Brasil declarou guerra ao chamado Eixo (Alemanha, Itália e Japão), as restrições aos

Brasil com a encenação da peça “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues).

Zygmunt Turkow (1925)

estrangeiros se tornaram mais severas. Foram fechados clubes sociais e recreativos e de imigrantes ou cidadãos de origem alemã ou italiana. No Rio de Janeiro, foram permitidos eventos somente falados em português. Se eventualmente chegasse um emissário sionista da Agência Judaica, os imigrantes se reuniam para ouvi-lo no Grande Templo, como se estivessem participando de uma cerimônia religiosa. O famoso ator e diretor polonês Zygmund Turkow ensaiava uma peça com amadores a ser representada em iídiche e teve que abandonar o projeto. (Em 1943, Turkow revolucionou o teatro no

palácio do catete, rio de janeiro

O impacto mais cruel desferido pelo Estado Novo foi a proibição da concessão de vistos especificamente para judeus, conforme memorando enviado pelo Ministério das Relações Exteriores a todas as embaixadas e consulados brasileiros. A ditadura Vargas ignorou as levas de refugiados judeus que convergiam para a Espanha e Portugal, de onde pretendiam alcançar as Américas. Os que tiveram mais sorte conseguiram vistos para a Bolívia, com trânsito pelo Rio, aonde muitos desembarcaram e decidiram permanecer em situação ilegal. A ditadura de Getúlio Vargas, feroz e impiedosa, durou oito anos. Quando caiu, em 1945, o mesmo general Góes Monteiro declarou que o Plano Cohen tinha sido uma farsa. Justificou o nome Cohen afirmando que era uma alusão a Bela Kuhn, evolucionário comunista, judeu húngaro, que chegou a presidir a Hungria durante quatro meses, em 1919. Foi uma declaração tão insossa quanto ridícula. O fato é que o nome Cohen ficou associado a traição e conspiração, no melhor estilo antissemita. Em janeiro de 1941, meus pais, eu e dois irmãos fomos morar num apartamento alugado na rua Paissandu, uma bela rua estendida desde a praia do Flamengo até o Palácio Guanabara, com fileiras de palmeiras imperiais nas duas calçadas. Às vezes, o ditador Getúlio fazia a sesta e depois gostava de andar a pé pela rua Paissandu, escoltado à pequena

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distância por um carro com guarda-costas. Percorria cerca de um quilômetro e meio, até a esquina da rua Marquês de Abrantes, onde embarcava no carro e seguia para o expediente no Palácio do Catete. Uma das minhas mais longínquas recordações da infância é a de Getúlio Vargas passando pelo nosso prédio com as mãos para trás, seguido por um bando de crianças que gritavam “Doutor Gegê, doutor Gegê!”. Enquanto caminhava, ele ia soltando moedas no solo. Muitas vezes comprei balas com os trocados largados pelo “doutor Gegê”. Dois anos depois, em função de o Brasil se encontrar em estado de guerra, o governo emitiu um decreto segundo o qual súditos do Eixo estavam impedidos de residir num raio de tantos quilômetros no entorno do Palácio Guanabara, raio que incluía nosso apartamento. No entanto, como éramos judeus, não poderíamos ser enquadrados como perigosos inimigos da Pátria. Um dia bateu na nossa porta um homem bem vestido, bem falante, que se identificou como Valente, policial. Disse que meus pais haviam chegado ao Brasil com passaporte romeno e como a Romênia se tinha aliado ao regime nazista, ambos eram inequívocos súditos do Eixo. Portanto, estávamos obrigados a morar em algum bairro mais distante. Deu um prazo de quinze dias para a mudança. Meu pai argumentou que como judeu, era um absurdo que tivesse qualquer ligação com o Eixo. O policial respondeu que não se tratava de religião, mas de nacionalidade: “O senhor e sua senhora são romenos e ponto

Os "meninos" Ghivelder: Joel, Moisés z’l e Zevi

final”. Não adiantou meu pai dizer que tinha três filhos brasileiros, razão pela qual ficava isento de cumprir o decreto. Irredutível, o homem disse que a lei era alheia à paternidade, só considerava a nacionalidade. Passados quinze dias, o homem voltou. Meu pai explicou que não tinha encontrado outro apartamento por causa da crise imobiliária, decorrente da guerra. O Valente deu-lhe mais quinze dias. Findo o prazo, pediu ao meu pai para acompanhá-lo até o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) para a simples formalidade de preencher um formulário justificativo. Lá chegando, sem dizer uma palavra, trancou meu pai numa cela e foi embora. Durante cinco dias minha mãe não teve qualquer notícia e, a rigor, não havia como agir. Um grupo de amigos do meu pai se reuniu, tomou coragem, e foi até o DOPS. Um delegado lhes disse para se retirarem de imediato, senão todos seriam presos. Minha mãe pretendeu recorrer ao general, depois marechal, Cordeiro de Farias, nosso vizinho de andar. Este militar tinha atuado 29

como interventor no Rio Grande do Sul e era uma das figuras mais proeminentes do Estado Novo. Assim que regressou ao Rio, interveio pelo meu pai que voltou para casa e ficou sabendo a verdade. O tal Valente, não era policial, mas membro da equipe de guardacostas do presidente Vargas. Não se comoveu com a nossa situação porque queria morar perto do trabalho no Palácio Guanabara. (Ele foi castigado pelo mal que nos causou de forma indireta: cumpriu dez anos de prisão por ter participado, em 1954, do atentado contra Carlos Lacerda, atentado gerador da crise política que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas). O general disse que, de qualquer maneira, a lei era a lei e nós teríamos que deixar o apartamento o mais rápido possível. Tivemos que nos acomodar, pai, mãe e três filhos num só quarto da pensão da dona Augusta. Apesar de tanta turbulência, eu era feliz – e sabia. Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.

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comunidades

Os judeus de Thessaloniki POR Sergio D. Simon

A importante história dos judeus de Thessaloniki, até o extermínio praticamente total da comunidade judaica durante o Holocausto, é pouco conhecida em nosso meio, e merece ser contada mais uma vez

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uem visita hoje a jovem e vibrante cidade de Thessaloniki, centro cultural da Grécia, não se dá conta da longa história judaica da cidade. Por vários séculos, Thessaloniki foi a cidade europeia com maior concentração de judeus entre a sua população – em vários censos antigos, a cidade contava com mais de 50% dos seus habitantes como sendo judeus, fato jamais igualado no restante da Europa.

sinagogas tenha sido transformada na primeira igreja católica da Grécia, mas este fato é disputado por vários autores. Benjamin de Tudela, o grande viajante judeu do século 12, cujas aventuras o levaram da Espanha até a região do Iraque e do Irã modernos, menciona em seu Sefer haMassaot (“Livro das Viagens”) uma comunidade judaica de cerca de 500 pessoas em Thessaloniki, no ano de 1170. Tudela dá grande ênfase ao fato de que judeus e muçulmanos conviviam em grande cordialidade e respeito em toda a região.

Thessaloniki, também conhecida como Tessalônica ou Salônica, foi fundada em 315 E.C. por Cassandro da Macedônia e, por sua posição estratégica como porto do Mar Egeu, logo se tornou uma cidade de vital importância para a região. A cidade cresceu tanto em importância comercial que rivalizava com Atenas e, mais tarde, com Constantinopla, como centro econômico e cultural da região, tida inclusive como a segunda capital do Império Otomano.

Com o passar dos séculos esta pequena comunidade foi aumentando às custas de imigrações de judeus ashquenazis e italianos. Com a conquista de Thessaloniki em 1430 pelos turcos e a instalação do Império Otomano a partir de 1453, os judeus de Thessaloniki foram todos removidos para a capital Constantinopla pelo próprio califa. O censo de 1478 não registra nenhum judeu na cidade.

Não se tem certeza sobre a época em que os primeiros judeus se estabeleceram na cidade. Sabe-se, entretanto, que o apóstolo Paulo chegou a Thessaloniki no ano 57, tendo ido pregar em três sinagogas, na tentativa de convertê-los à nova religião. Talvez uma destas

A situação viria a mudar em 31 de março de 1492, com a assinatura, por Fernando II e Isabela I de Aragão, do Decreto de Alhambra, que determinava a expulsão dos judeus de todos os seus domínios. Muitos judeus da Espanha foram então a Thessaloniki, às 30


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Aristotelous, a praça principal de Thessaloniki

vezes com passagem temporária dessas famílias por Portugal. Já no próprio ano de 1492 começaram a chegar os primeiros judeus de Majorca, seguidos de outras levas vindas de Sevilha, Aragão e outras cidades espanholas. Poucos anos depois seria a vez dos judeus portugueses, devido às perseguições aos “marranos” ou judeus conversos. Tal leva migratória fez com que a comunidade judaica constituísse, em 1519, 56% da população local. Em 1520 foram contados 20.000 judeus na cidade. A entrada em Até 330 E.C. a cidade era conhecida por Bizâncio. Em 1453 tem seu nome mudado para Constantinopla – denominação bastante difundida no Ocidente. Durante o período otomano, os turcos a conheciam por Istambul, mas a cidade continuou conhecida como Constantinopla, especialmente pelos europeus, até o nome Istambul ser oficialmente adotado pela República turca, em 28 de março de 1930.

Thessaloniki, bem como em outras cidades do Império Otomano – notadamente Constantinopla1 e Smirna – era bem-vinda pelo Império Otomano, tendo os judeus, conhecidos na região como dhimmis (não-muçulmanos com proteção legal) recebido proteção oficial do

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MEMORIAL DO HOLOCAUSTO. TESSALÔNICA

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Califa. Além da grande imigração da Península Ibérica, Thessaloniki passou a receber, com seu novo status de centro judaico, judeus vindos da Áustria, da Hungria e da Bulgária. Em 1613, os judeus constituíam 68% dos habitantes da cidade! Devido a essa imigração de vários países, a comunidade judaica se dividiu em várias al’jamas (congregações, em espanhol arcaico), cada qual com seu rito e tradições ligeiramente diferentes. Essas al’jamas orbitavam sempre em torno de uma sinagoga, geralmente com o nome da cidade de origem daquela mini-comunidade. Assim, as sinagogas eram conhecidas como Lisboa Iashan (Velha Lisboa), Katalan Iashan (Velha Catalunha), Katalan Hadash (Nova Catalunha), Sicilia, Kastilla, Aragon, e assim por diante. Para coordenar tamanho setembro 2020


comunidades

número de sinagogas foi criado um órgão governamental oficial, Talmud Torá Hagadol, composto por sete membros eleitos por mandatos de um ano. A comunidade esmerou-se, também, na educação de seus jovens. As ieshivot de Thessaloniki estavam entre as melhores da Europa: além de educação religiosa formal, os jovens recebiam educação secular completa, incluindo árabe e latim, medicina, astronomia e ciências naturais. A tanto chegou a fama das ieshivot da cidade que elas passaram a ser frequentadas por jovens vindos de vários pontos da Europa e de todo o Império Otomano. Provavelmente nenhum outro centro judaico da época apresentava tanta organização e prestígio quanto Thessaloniki.

viveu em Thessaloniki entre 1532 e 1534, onde foi Rosh ha-Ieshivá, antes de emigrar para Sfat, em Israel. O Rav Shlomo Alkabez, autor da famosa reza que recebe o Shabat, Lechá Dodí, nasceu e cresceu em Thessaloniki, tendo emigrado para Israel após seu casamento.

TRAJES AINDA INFLUENCIADOS PELA CULTURA ORIENTAL. JUDEUS DE TESSALÔNICA. IMAGENS DO LIVRO RAÍZES DE UMA JORNADA, 2009, S. Paulo

A cidade tornou-se um importante centro de estudos judaicos, com uma enorme contribuição ao cancioneiro ladino e à própria liturgia judaica. O próprio Rav Yosef Caro, autor do Shulchan Aruch, veio de Toledo e

Esta pujança levou os judeus a dominar a vida econômica da região. Atuavam em todos os níveis da sociedade, desde artesãos refinados até grandes mercadores que controlavam o porto – que, inclusive, não funcionava no Shabat. No entanto, a atividade que mais caracterizou a comunidade judaica da cidade era a confecção em lã, de altíssima qualidade, e exportada para todo o Império Otomano: roupas, cobertores, tapetes e carpetes, eram supridos regularmente ao califado, em Constantinopla, e distribuídos por todo o Império. Mas após a grande efervescência da construção da nova grande comunidade judaica, nos séculos 16 e 17, começa a declinar a atividade intelectual e religiosa da cidade. Uma ideia que corria a comunidade, de tempos em tempos, era a de que estava se aproximando a Era da Redenção, com a chegada do Messias, que coincidiria com o fim do mundo.

Visita do Grão-rabino de Salônica, Jacob Mair, a Esmirna. 1919. IMAGENS DO LIVRO RAÍZES DE UMA JORNADA, 2009, S. Paulo

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Um episódio bem conhecido foi a chegada na comunidade de um jovem rabino, enérgico e com o poder da palavra, no ano de 1651. Seu nome era Shabetai Zvi e ele havia sido expulso recentemente de Smirna, devido à afirmação de ser o Messias e de que o fim do mundo se aproximava. Em Thessaloniki, Shabetai conseguiu seguidores que acreditavam piamente em


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suas afirmações – principalmente entre os congregados da Sinagoga Shalom. Certa noite, no jantar no pátio da sinagoga, Shabetai afirmou, repentinamente, que ele era o Messias, filho do Rei David, e que todos deveriam segui-lo. O rabinato acabou por expulsá-lo da cidade, mas ele continuou a pregar nos arredores de Thessaloniki. A desordem gerada na sociedade foi tanta que o sultão ordenou sua prisão imediata. Na prisão Shabetai Zvi acabou por se converter ao Islamismo, o que resultou em uma série de conversões entre os judeus que ainda o seguiam. No ano de 1686, trezentas famílias judaicas muito ricas converteramse simultaneamente ao Islamismo, mas praticaram uma religião isolada, nunca absorvida pela religião islâmica praticada pelos turcos da cidade. Esse grupo (conhecidos como Dönme – renegados), isolado dentro das duas religiões, acabou transformando-se em importante fonte intelectual das ideias modernistas que levaram à revolução que criou a República Turca

favorável à comunidade judaica: houve acesso imediato a mercados europeus até então inacessíveis, houve licença oficial para os judeus trabalharem no domingo ao invés de no Shabat, e houve ainda um apoio importante à causa sionista.

Ben-Gurion,1912, ÉPOCA EM QUE VIVEU EM THESSALONIKI

moderna – a revolução dos Jovens Turcos, em 1908. Em 1912, após a 1ª Guerra dos Bálcãs, Thessaloniki passou às mãos da Grécia. Muitos membros da comunidade judaica, acostumados a pertencer aos turcos do Império Otomano, não receberam bem a notícia. A anexação à Grécia, entretanto, acabou sendo bastante

Em busca de apoio político, a cidade foi visitada por David Ben-Gurion, Zeev Jabotinsky e Yitzhak Ben-Zvi, o que demonstra a importância da comunidade de Thessaloniki para os líderes sionistas. Um fato pouco conhecido é que o próprio BenGurion morou em Thessaloniki a partir de 1911. Aparentemente, este grande líder sionista, saído da sociedade extremamente antissemita de Plonsk, era fascinado pela possibilidade de judeus terem uma vida de liberdade completa no Império Otomano, tendo se alistado voluntariamente no exército otomano, no final da 1ª Guerra, com a finalidade de lutar contra os ingleses na Palestina. Ben-Gurion trabalhou como jornalista em Thessaloniki, aprendeu a língua turca de maneira fluente e cursou a

VISTA DA CIDADE DE THESSALONIKi

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comunidades

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1. Jontov Eskenazi, que ocupava o cargo honorífico de cônsul italiano em Comotini. 1938 2. Joseph, Albert, Henriquieta, Samuel, Elias e Renée Sarfaty com os noivos, Matheus e Alegre. (O casal foi levado para Auschwitz e de lá jamais retornou). Salônica, 1932 3. Fortunée Eskenazi abraça sua irmã Alice (d) e a prima Lucie Cazes (e). Comotini, 1938. IMAGENS DO LIVRO RAÍZES DE UMA JORNADA, SÃO PAULO, 2009

Faculdade de Direito em Istambul a partir de 1912. A ligação da comunidade com o jovem Estado de Israel era muito presente, e muitas famílias de Thessaloniki para lá emigraram já após a 1ª Guerra Mundial.

Samuel Sarfarty (à dir.) e soldados gregos, meses antes da Grécia declarar guerra à Alemanha. Salônica, 1940. IMAGENS DO LIVRO RAÍZES DE UMA JORNADA, 2009, S. Paulo

As condições econômicas desfavoráveis no período entre guerras fizeram com que uma parte da comunidade emigrasse. Uma porção importante foi para Paris e

para outros países europeus como Suíça, Espanha e Inglaterra; uma parte para a América do Sul e muitos para a Palestina. O avô materno do presidente francês Nicolas Sarkozy era Aaron Mallah, um judeu de Thessaloniki que foi um dos maiores cirurgiões urológicos de Paris. Outros judeus conhecidos saíram de Thessaloniki: o regente Maurice Abravanel, de enorme sucesso nos Estados Unidos; a família Recanati,

Nazistas obrigam judeus a fazer exercícios físicos. Salônica, 11 de julho de 1942. IMAGENS DO LIVRO RAÍZES DE UMA JORNADA, 2009, S. Paulo

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fundadores do Israel Discount Bank e grandes filantropos israelenses; Isaac Carasso, que saiu de Thessaloniki para Barcelona, onde fundou a companhia Danone, depois adquirida pela Nestlé; Mordechai Mano, pioneiro da indústria marítima de Israel, além de outros. Com este movimento migratório, no início da 2ª Guerra a comunidade reduzira-se a cerca de 54.000 membros. A Macedônia, incluindo Thessaloniki, foi invadida por tropas alemãs em abril de 1941. De início, foi assegurado aos judeus que as leis de Nuremberg não seriam aplicadas a eles, o que deu à comunidade uma falsa sensação de segurança. Em julho de 1942, entretanto, todos os jovens judeus entre 18 e 45 anos foram presos pelos alemães e submetidos a trabalhos forçados de construção de estradas, extremamente extenuantes, que causaram grande quantidade de mortos. Finalmente, em fevereiro de 1943 foram instituídas as leis de Nuremberg,

Homenagem da cidade de Thessaloniki aos judeus mortos no Holocausto, 2013

Sinagoga Monastiriotes. Salônica. IMAGENS DO LIVRO RAÍZES DE UMA JORNADA, 2009, S. Paulo

restringindo fortemente a movimentação dos judeus e obrigando-os ao uso de braçadeiras amarelas. No fim do mês os judeus já estavam enclausurados em três pequenos guetos, sendo daí transportados para os campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau e Bergen-Belsen. Apenas cerca de 3.000 judeus conseguiram escapar da cidade após a invasão alemã. Dos 54.000 deportados para os campos de extermínio mais de 90% morreram, fazendo de Thessaloniki uma das comunidades mais destroçadas pelo nazismo. Sem dúvida, a maior comunidade sefaradi a ser varrida do mapa pela Alemanha Nazista. 35

Quem visita hoje a Thessaloniki moderna, alegre, jovem e pujante, encontra poucos vestígios da antiga comunidade judaica: o Museu Judaico de Thessaloniki, o Cemitério Judaico (o mais antigo cemitério judaico da região mediterrânea) e uma única sinagoga de antes da 2ª Guerra, a sinagoga Martirioton. É o que restou desta que foi, durante muitos séculos, uma das mais importantes comunidades judaicas da Europa.

Sergio D. Simon é médico oncologista e presidente do Museu Judaico de S. Paulo.

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leis e tradições

Adornos Femininos: Costume e Identidade A coleção de vestuário e joalheria feminina do Museu Israel, em Jerusalém, é uma das maiores e mais ricas do mundo. A ampla variedade de trajes e adornos expostos em suas galerias nos permiteM conhecer a rica e fascinante cultura judaica das diferentes comunidades onde viveram os judeus, através dos tempos. Dentre os mais deslumbrantes estão os adornos para cobrir a cabeça usados pelas mulheres judias depois de casadas, em hebraico, Kissui ha-Rosh, nas várias comunidades através do mundo e dos tempos

D

e acordo com a Lei Judaica, uma mulher casada deve cobrir seus cabelos. Inúmeros simbolismos espirituais e religiosos estão por trás do ato de um judeu cobrir a cabeça. No caso do homem, é um sinal de reverência a D’us. Desde tempos imemoriais praticavase o costume judaico de cobrir a cabeça em todos os momentos, mas a tradição de usar uma kipá, o solidéu judaico, não se origina em nenhuma passagem bíblica. Era, sim, um costume que se tornou lei, como sinal de reverência e de nosso reconhecimento de que há um Ser Supremo “acima” de nós, nosso D’us, Todo Poderoso, que tudo observa e tudo sabe.

a beleza da mulher, de todas as idades. Nos tempos bíblicos, até as mais jovens e solteiras chegavam a cobrir os cabelos, mas para as mulheres casadas, o fato de usar um Kissui ha-Rosh, uma cobertura adequada para seus cabelos, era algo fundamental, símbolo de seu compromisso matrimonial.

Já para as mulheres, cobrir os cabelos após seu casamento é um mandamento, uma mitzvá de um significado profundo. É uma questão de modéstia, tzniut, sendo por isso que, há milênios, as mulheres judias casadas cobrem a cabeça. Na literatura rabínica, há várias histórias que relatam as bênçãos obtidas por mulheres que cumpriam o mandamento de cobrir sua cabeça.

Ao cobrir os cabelos a mulher judia casada declara, com modéstia: “Podem ver-me, mas não estou descoberta ao olho público. Mesmo meus cabelos, parte mais óbvia e visível de minha pessoa, não estão visíveis a olhos estranhos”. Ao cobrir seus cabelos, a mulher cria uma barreira psicológica, uma distância cognitiva. Sua beleza se torna imperceptível, discreta, inatingível.

No Livro dos Salmos, o Rei David afirma: “A dignidade da filha de um rei é a sua modéstia”. Com isso, nosso David ha-Melech atestava que a glória interior da filha da realeza tinha profundo impacto em sua aparência exterior, e esse efeito era percebido na forma como se trajava.

Essa obrigação da mulher casada de cobrir os cabelos sempre foi tema de debates por parte de autoridades rabínicas. Em diferentes épocas e países os rabinos se

A cabeleira feminina sempre foi considerada um atrativo, um detalhe muito importante para realçar 36


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ADORNO PARA CABEÇA DE MULHERES CASADAS. GEÓRGIA, INÍCIO SÉC. 20

questionavam de que forma essa lei deveria ser cumprida, abrangendo perguntas que incluíam detalhes sobre o tipo de material que podia ser utilizado nos Kissui ha-Rosh e se, no cumprimento da prática, alguma parte do cabelo da mulher podia ou não ser exposta; se isso devia ser feito apenas fora do lar ou também em casa, e inclusive discutiam quais as exigências quando se tratava de mulheres divorciadas e viúvas. Na época rabínica, por exemplo, Rabi Maharam Alshakar (séc. 16, Espanha, Cairo e Jerusalém), dizia que era permitido deixar à mostra algumas mechas de cabelo, na testa, sob os turbantes ou outros adereços, apesar de que a tradição ditava que todos os fios do cabelo feminino estivessem cobertos. Esta determinação criou aquilo que muitos judeus ortodoxos entendem

como a “regra da medida da largura da mão”, ou um tefach, de cabelo. No século 20, o Rabino Moshe Feinstein, defendia ser “adequado” cobrir totalmente os cabelos, afirmando, contudo, que deixar à mostra um tefach, um palmo de cabelo visível, não constituía uma violação da Dat Yehudit, “da lei referente à mulher judia”. Várias mulheres optam por usar uma peruca para cobrir seus cabelos, conhecida no mundo judaico como sheitel. É interessante notar que o uso de perucas se popularizou entre os não-judeus bem antes do que entre as mulheres 37

judias praticantes. Na França, no século 16, as cabeleiras artificiais começam a ser um acessório da moda para homens e mulheres. Nessa época, os rabinos rejeitaram seu uso por mulheres judias por não considerarem adequado copiar os “costumes dos outros povos”. Algumas mulheres passaram a ver as perucas como uma forma de cobrir a cabeça sem ter que recorrer a adereços, turbantes ou lenços trabalhados. Finalmente, seu uso passou a ser adotado, relutantemente, mas, ainda assim, as mulheres continuaram adornando as perucas com outros recursos, tais como chapéus ou lenços com bonitas amarrações (tíchel, em iídiche). E essa tradição perdura até hoje em muitas comunidades religiosas e chassídicas. setembro 2020


leis e tradições

adereços podemos saber se a mulher era sefaradita, ou oriental, ou se era de origem ashquenazi, da Europa Oriental ou Ocidental, de família chassídica e a que linha chassídica ela pertencia ou se seus familiares eram mitnagdim (oponentes do Chassidismo). Os adereços nos revelavam não apenas o estado civil de uma mulher, mas onde e quando esse objeto de vestuário era utilizado; se era usado quando ela frequentava locais públicos ou privados, na sinagoga ou no lar; e se era usado em uma ocasião especial, pois havia variações nos adereços usados em ocasiões como o Shabat, as festividades religiosas, os casamentos. Os adornos variavam, também, de acordo com o status social e econômico da família.

Comunidades sefaraditas e orientais

RETRATO DE HANNAH, FILHA DO PINTOR ISIDOR KAUFMANN

O estudo dos adereços usados na cabeça por mulheres judias é muito amplo por serem os Kissui ha-Rosh um dos principais símbolos no vestuário feminino judaico e, consequentemente, um dos elementos principais de qualquer indagação histórica, antropológica ou social sobre a época e comunidade onde viviam e vivem as mulheres.

é um costume obscuro, “medieval”, de outra era. É um detalhe atemporal – e sempre atual – da tradição judaica tanto entre as mulheres que vivem na Diáspora como em Israel, entre donas de casa, professoras, executivas e ocupantes de cargos públicos, onde quer que vivam.

Atualmente, para milhares de mulheres judias casadas cobrir os cabelos depois do casamento não

Como variavam os costumes e estilos entre as diferentes comunidades, através desses

Símbolos no vestuário feminino judaico

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As mulheres sefaraditas e do Oriente Médio, que tinham maior poder aquisitivo e melhor status social, usavam adereços de rico tecidos, adornados por lindos bordados e pedras semipreciosas, fios de ouro e prata, pérolas, corais, outras joias e até moedas. As joias e moedas utilizadas nesses adornos para cabeça eram de propriedade da esposa, isto é, faziam parte de seu dote. Nos países orientais, como Marrocos e Tunísia, então, não havia limites para as noivas no dia do casamento e nos que antecediam seu “grande dia” na criatividade de suas coiffes e sua maquilagem, ainda acentuada por pinturas com hena nas mãos e antebraço, e nos pés. Acreditavam que esse


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costume traria felicidade e fortuna e, muito importante, servia para afastar os maus olhados e maus espíritos que poderiam atrapalhar a felicidade do casal que estava prestes a se formar. Como sabemos, nada mais bonito do que os adornos usados, desde sempre, para cobrir os cabelos da noiva nos casamentos judaicos. Um dos adereços que podem ser admirados na coleção de vestuário feminina do Museu Israel é um lindo xale para noiva, bordado em lantejoulas e proveniente de Bukhara e Uzbequistão, início do século 20. Feito em tule de algodão, é todo recoberto com lantejoulas e fios de seda, com franjas também em seda. Com esse belo ornamento cobrindo seu rosto e sua cabeça, a noiva certamente seguia em frente, abençoada e temente a D’us, firme e feliz, dos braços de seu pai para os de seu marido, pronta para criar mais uma família dentre os Bnei Israel, os Filhos de Israel. Como vimos acima, nas comunidades judaicas orientais os adereços de mulheres de famílias mais prósperas eram confeccionados em rico tecidos, de cores vivas, com suntuosos bordados. No Marrocos, em Bukhara, na Géorgia e no Iraque, as mulheres judias incorporaram o uso de cabelos “falsos”, que podiam ser confeccionados parcialmente com fios humanos ou de animais, seda ou fibras de lã. No Marrocos, quando era proibido o uso de cabelo humano, usava-se crina de cavalo, seda ou penas. O cabelo falso era repartido acima da testa, com cachos nas laterais ou duas longas tranças negras ao longo do rosto; ou também tranças amarradas nas costas. Muitos arranjos no Marrocos incluíam o Swalf ou Fasfift, uma faixa estruturada, feita de diferentes materiais, usada em volta da cabeça,

Xale para o casamento, todo bordado em lantejoulas. Usado em Bukhara e Afeganistão. Uzbequistão, início do séc. 20

como uma tiara, desde a testa, e que podia ser enfeitada com bordados, pérolas, miçangas, entre outros. O cabelo postiço, quando usado, variava em seu feitio.

Os Fasfift chegavam a ser usados como diademas, como se pode ver na imagem de um desses adornos, oriundo de Kl’a el-Meguna, sul do Marrocos. A foto é de meados do

FASFIFT, DIADEMA FEMININO. KL’A EL-MEGUNA, SUL DO MARROCOS, MEADOS SÉC. 20

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confeccionado em lã, com uma faixa em lã sintética, veludo e bordado em linha metalizada, com uma borla em fio sintético, ao qual, em muitas ocasiões, era incorporado um pingente de cabelo “falso”, como era costume no local. Na Tunísia, as mulheres podiam expor cachos sobre a testa, fazendo uma franja cacheada.

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1. Casquete e placa (Fes-u Tassa). Bagdá, Iraque. final séc. 19 e início séc. 20 2.-3. Kufiya, adorno de cabeça para uso diário. Djerba, Tunísia, início séc. 20.

Para as mulheres, cobrir os cabelos após seu casamento é um mandamento, uma mitzvá de um significado profundo

ornamento cônico com bordado em trilho. Túnis, Tunísia, início séc. 20

século passado. O diadema de tecido foi confeccionado em lã de feltro, acolchoado, e adornado com imitação de moedas, corais, contas em plástico e pendentes em prata. No Iraque, no século 19, as mulheres casadas usavam nos cabelos um casquete (Fes-u-tassa)

Nesse país são inúmeros os adereços, multicoloridos, usados conforme a ocasião. No início do século 20, em Djerba, uma região do país, as mulheres usavam no dia-a-dia adereços coloridos na cabeça, Kufiyas, confeccionados em algodão ou seda acolchoados, com bordados em linha metalizada. Usavam, também, toucas cônicas ou arredondadas, trabalhadas em cartão acolchoado, com traços em capitonê, forradas em veludo ou algodão, com cordões metalizados, fios enrolados, e bordados em fio de prata e lantejoulas. Mas em dias de festas, ainda em Djerba, Tunísia, no século 20, as

KUFIYA, CASQUETE PARA FESTAS. DJERBA, TUNÍSIA, SÉC. 20

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mulheres usavam na cabeça Kufiyas festivos – casquetes forrados em algodão e recobertos com medalhas. São lindos adereços costurados à mão, com placas como medalhas em ouro batido, gravadas e furadas fazendo arabescos. E enfeitados com contas de vidro. Em Sana’a, no Iêmen, no início do séc. 20, usavam um Gargush Mezahhar, capuz tramado com fios de seda, algodão e fio metálico, em desenho de brocado, com cinco diferentes forros em algodão. Decorado com cordão metalizado e fio de seda, apliques em feitio de correias em prata, pendentes em filigrana de prata e prata dourada. Pérolas e contas de vidro completam os enfeites.

DETALHE DE STERN-TÍCHEL, ADEREÇO RECOBERTO EM JOIAS. POLÔNIA, SÉC. 19

Na Europa

TOUCA FEMININA, ALEMANHA, 1840

E, enquanto no Uzbequistão, as mulheres costumavam esconder os cabelos com os Kallapüshak, na Geórgia, no início do século 20, as mulheres judias casadas cobriam a cabeça com um adereço composto de uma faixa na testa, com cachos de cabelo pendurados nas laterais e um lenço em renda.

Na Europa, eram também de grande beleza os adereços usados para cobrir os cabelos de mulheres judias com maior poder aquisitivo e status social. De estilo totalmente diferente dos usados no Oriente Médio, eram confeccionados em ricos tecidos, adornados por bordados, pedras semipreciosas, fios de ouro e prata, pérolas, corais e outras joias. Em meados do século 19, na Alemanha muitas mulheres costumavam usar toucas de seda. Podiam ser nesse tecido, bordado com fios metalizados em ouro e prata, com lindo trançado em pontos de tricô e lantejoulas. Arremates com renda de algodão. No mesmo período, na Polônia, havia mulheres usando toucas 41

confeccionadas em seda recoberta de fios de metal e ouro, com renda de algodão recoberta de fios metálicos. Como vimos através de belas fotos, o cumprimento dos preceitos religiosos não desmereceu, em nada, a beleza das mulheres judias, de todas as épocas e de todas as regiões. Ao contrário, atendendo às regras de tzniut, de modéstia e respeito, e adaptando os costumes judaicos às práticas e à moda do local onde viviam, as mulheres judias, filhas das Matriarcas de nosso povo, cumpriram as mitzvot que, há milênios, regem o Povo Judeu.

Fotos do livro The Jewish Wardrobe, from the collection of the Israel Museum, Jerusalem, 2019

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antissemitismo

A Inquisição Espanhola A Inquisição foi introduzida tardiamente na Espanha, por Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os Reis Católicos, no final do século 15, cerca de 250 anos após ter sido criada pela Igreja Católica. Mas foi nos domínios da Coroa Espanhola que alcançou novas dimensões de intolerância e perversidade, tornando-se o capítulo mais aterrorizante na história da Inquisição

o

Tribunal da Santa Inquisição foi inicialmente criado no século 13, para julgar e punir hereges cristãos que tinham atitudes ou ideias que “negavam um artigo de verdade da fé católica”. Na Espanha, porém, a Inquisição adquiriu características própria. O principal alvo eram os conversos - judeus forçados, por violência ou pressão, a se converter ao Cristianismo. Eles eram suspeitos de praticar o Judaísmo em segredo. E, enquanto a autoridade máxima da Inquisição Papal, como passou a ser conhecida, era o Pontífice, na Espanha, apesar de representar a Igreja, era principalmente um instrumento da Coroa. A Inquisição Espanhola unia o poder espiritual e temporal - resultando daí uma tirania semelhante, porém muito mais poderosa e invasiva.

A criação da Inquisição No início do século 13, as seitas cristãs heréticas proliferavam em toda a Europa. Para a Igreja elas representavam uma ameaça ao poder e hegemonia da doutrina católica. Tornava-se indispensável erradicá-las para a manutenção da ortodoxia católica. Para lutar contra os cátaros, por exemplo, uma das maiores seitas, cuja doutrina ameaçava suplantar o Catolicismo no sul da França, o Papa Inocêncio III pregou a Cruzada Cátara ou Albigense. Primeira cruzada num país cristão contra outros cristãos, durou vinte anos, arrasando o sul da França e tirando a vida de milhares de pessoas. A Igreja estava ciente de que para erradicar as heresias precisaria de um instrumento de longo alcance, institucional e legal, fundamentado nas leis canônicas. Durante o 4º Concílio de Latrão, convocado em 1215 pelo Papa Inocêncio III, foi criado um tribunal eclesiástico que se incumbiria de julgar e punir todo pensamento ou ação que se desviasse da ortodoxia católica. A direção dessa instituição foi entregue aos dominicanos, que estavam envolvidos na luta contra as heresias desde a fundação da ordem, em 1209.

Vale ressaltar que a Inquisição tinha jurisdição apenas sobre cristãos. Uma pessoa não batizada acusada de blasfêmia era julgada por um tribunal secular, mas na Espanha mesmo os judeus foram alvo de sua perseguição. Tendo recebido do Papa a permissão de “adaptar” sua conduta de acordo com as “necessidades locais”, os inquisidores espanhóis facilmente encontraram uma forma “legal” de incluí-los em sua alçada, jogá-los em suas prisões e queimá-los vivos. 42


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vista geral de toledo

Em 1233, o Papa Gregório IX deu carta branca aos dominicanos “em sua tarefa de combater as heresias”, autorizando-os a “agir sem apelação, chamando a ajuda do braço secular, se necessário”. Gregório IX determina também o estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício ou Tribunal da Santa Inquisição a ser composto por dominicanos que responderiam apenas à Santa Sé.

triviais, torturá-lo e pronunciar sumárias sentenças, inclusive de morte na fogueira. Como os inquisidores “não derramavam sangue, pois poderia fazer com que parecessem não serem cristãos”, eles contornavam esse impedimento cinicamente entregando os condenados à autoridade civil, com a ordem de os queimar vivos, na estaca.

A partir dessa data os inquisidores estavam investidos de poderes investigativos e judiciais, e suas determinações estavam além do poder de interferência de outras autoridades religiosas ou civis. Levantada a suspeita de heresia, os inquisidores podiam prender qualquer cristão, por mais poderoso que fosse, aprisioná-lo, ordenar imediato confisco de seus pertences, desde os mais valiosos até os mais

A SINAGOGA DE CÓRDOBA, CONSTRUÍDA EM 1315, É UMA DAS MAIS ANTIGAS QUE RESTAM NA EUROPA

Antecedentes na Espanha Até o século 13 a Península Ibérica estava fora da esfera e poder da Igreja. No século 8, forças islâmicas haviam conquistado a maior parte da Península. Desde então, durante séculos, os príncipes cristãos lutaram para recuperar os territórios perdidos. A “Reconquista”, iniciada em 718 (ou 722), só terminaria efetivamente em 1492 com a conquista do último bastião mouro, o Reino de Granada. Entre os principais Reinos Cristãos que surgiram durante a Reconquista estão Navarra, Castela, Aragão, Leão e Portugal. A princípio, os nobres cristãos não poupavam as populações judaicas, mas as perseguições acabaram à medida que os fidalgos perceberam que não tinham outro

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talento além de guerrear, e que precisavam dos judeus. Hábeis artesãos, comerciantes, banqueiros, homens de grande cultura, fluentes em árabe assim como nos idiomas utilizados nos Reinos Cristãos, os judeus eram indispensáveis para a continuidade da vida urbana nas áreas conquistadas.

chega a um ponto crucial quando a maior parte da Península está em mãos cristãs, ficando apenas o Reino de Granada sob domínio islâmico. A Igreja, que sempre viu com repugnância a política de conciliação adotada pelos governantes cristãos, exige deles medidas duras contra os judeus. A maioria não cede às

Erguida em Toledo no séc.13 e originalmente conhecida como a Sinagoga Ibn Shushan, a sinagoga foi transformada na metade do séc 15 em igreja com o nome de Santa Maria La Blanca

À medida que as forças cristãs vão reconquistando territórios, os governantes islâmicos, até então religiosamente tolerantes, tornamse intransigentes com as demais religiões. Em várias ocasiões, a escolha dada aos judeus era a conversão ou a morte. A partir do final do século 12, essa intolerância leva-os a procurar refúgio nos Reinos Cristãos. Lá estabelecem inúmeras comunidades, ricas e importantes, onde se destacam por seu conhecimento matemático, diplomático e científico. Isso fez com que no início do século 13 houvesse judeus em posições de grande poder político, econômico e social. A história de Sefarad, como é chamada em hebraico a Espanha,

pressões, mas com o tempo, as mesmas surtem efeito e medidas antijudaicas são adotadas. No entanto, a exigência de estabelecer os Tribunais da Inquisição é acatada apenas pelo rei de Aragão, em 1238. E, mesmo assim, seu funcionamento era proforma.

Os conversos O século 14 marca uma mudança na atitude dos cristãos em relação à população judaica. De nação mais tolerante da Europa, onde muçulmanos, cristãos e judeus viviam lado a lado, gradualmente Sefarad se torna a mais intolerante. A mudança em relação à população judaica foi fruto da feroz campanha 44

antijudaica empreendida pela Igreja. Sermões inflamatórios são proferidos por padres e por frades que percorrem a Península. Antigas fontes pagãs e cristãs são utilizadas para a criação de um retrato infame dos judeus, impregnando o imaginário e a cultura popular, a arte, a música e a literatura. Os judeus são retratados como “verdadeiras encarnações do diabo”, ou, no mínimo, seus parceiros no mal, seres malignos que “tramavam constantemente a destruição do Cristianismo”. Em junho de 1391, a violência antijudaica explode em Sevilha. Relatos da época afirmam que os cristãos “mataram muitos de meu povo… e muitos morreram para santificar o Nome de D’us e muitos violaram o Pacto Sagrado” (através da conversão...). A violência espalhase de uma cidade a outra e, em todos os lugares, era oferecida a mesma opção aos judeus: conversão ou morte. As estimativas sobre o total da população judaica que vivia em Sefarad variam, mas historiadores acreditam que quando a calma foi restaurada – um ano após os massacres – cerca de 100 mil haviam sido mortos, 100 mil sobreviveram e 100 mil se converteram. Até meados de 1415 houve outras 50 mil conversões. No século 15 a população judaica de Sefarad estava dividida entre os judeus e os conversos – também chamados de anussim, ou cristãosnovos. E, entre os conversos também havia distinções. Uma parte deles, os criptojudeus, mantinham sua fé no maior sigilo e na medida do possível; outra parte abraçou o Cristianismo, tornando-se, na maioria dos casos, cristãos “mornos”.


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A conversão, porém, não blindava os novos cristãos da hostilidade dos “cristãos-velhos“ que se referiam a eles utilizando o termo “marranos” (porcos, em espanhol). A partir de 1391, para distinguir os cristãosvelhos dos “novos” é incorporado na vida espanhola um conceito racial: o de limpieza de la sangre (pureza de sangue). Para um cristão provar sua “pureza de sangue” devia provar que não havia judeus ou muçulmanos em sua linhagem. Uma das primeiras indicações oficiais da aplicação do conceito de “pureza do sangue” foi o Edito de Toledo, de 1449, pelo qual todos os conversos ficavam destituídos de posições oficiais. Os conversos tornaram-se um grupo à parte. Viviam e se casavam entre si e mantinham estreitos laços comerciais. Geralmente estavam entre as pessoas mais instruídas e poderosas de Sefarad, sendo que vários galgavam posições de destaque na administração real, na burocracia civil e até mesmo na Igreja. As autoridades eclesiásticas que, a princípio, celebraram as conversões como uma vitória do Cristianismo, começam a perceber que haviam sido um tiro no pé, pois muitos dos recém-convertidos seguiam às ocultas o Judaísmo. Surgira na Espanha uma nova forma de “heresia”, a judaizante. Ao longo do século a “questão dos conversos” deixa de ser apenas um problema religioso e se torna também social. O ódio e ressentimento dos cristãosvelhos em relação ao conversos provoca explosões de violência e são registrados recorrentes pogroms em toda Sefarad.

independentes. A formação do Reino da Espanha teve início, em 1469, com o casamento de Isabel de Castela e Leão e Fernando II de Aragão. Em 1474, Isabel ascende ao trono de seu reino. Cinco anos depois, seu marido, Fernando, tornase rei de Aragão. De 1479 em diante, eles governavam conjuntamente o que era, de fato, um único reino. Nos anos seguintes foram expandindo seu poder e domínio sobre grande parte de Sefarad. Inicialmente, Fernando e Isabel não tinham atitudes hostis em relação a conversos ou judeus, muitos dos quais ocupavam importantes cargos na corte e na administração do Reino. Entre eles, o Rabi Isaac ben Judah Abravanel e Don Abraham Senior, de Segóvia, respectivamente Rabino Chefe de Castela e Coletor-Chefe de impostos reais. Em várias ocasiões os soberanos intervieram para impedir pogroms, assim como para conter os excessos das autoridades municipais em sua tentativa de restringir os direitos dos judeus. Ademais, os Reis

dependiam da riqueza judaica para financiar seus empreendimentos. A guerra travada contra Granada, por exemplo, último reduto em poder dos mouros, iniciada em 1482, foi em grande parte financiada por conversos e judeus. Mas, numa época em que a unidade da fé era a meta suprema de um governante cristão e a heresia o maior dos crimes, não havia lugar para tolerância religiosa. Os Reis acreditavam ser sua obrigação extirpar a “heresia conversa”, e tomar medidas para impedir a população judaica de “influenciar” os cristãos. Ademais, sabiam que era necessário haver uma forte unidade religiosa para fazer com que os espanhóis superassem diferenças linguísticas, culturais e institucionais fazendo da Espanha uma nação unida. Coube a Alonso de Espina, o superior da Casa de Estudos de Salamanca, “idealizar” a solução do “problema dos conversos”. Espina, que odiava igualmente judeus e conversos, pregava a conversão forçada de todos

Os Reis Católicos e a Inquisição Em meados do século 15, Sefarad era ainda um conjunto de reinos

TOMÁS DE TORQUEMADA, O GRANDE INQUISIDOR DA ESPANHA, COM O REI FERNANDO II DE ARAGÃO E A RAINHA ISABEL DE CASTELA, EM 1478

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antissemitismo

os judeus e a instalação da Inquisição como uma arma corretiva para lidar com a apostasia dos conversos. Caso isso não fosse suficiente para extirpar o judaísmo da Espanha, Espina defendia a expulsão ou extermínio. Em seu devido tempo, todas as sugestões de frei Alonso foram adotadas pelos governantes ibéricos. Em 1477, outro frade, o dominicano Alonso de Ojeda, convenceu os monarcas que a “heresia” dos conversos só poderia ser combatida se instalada a Inquisição. Os Reis concordaram, porém não queriam a interferência do Papa em seu Reino. Enviaram uma petição ao Papa Sisto IV sobre a instalação da Inquisição na Espanha, mas sob jurisdição da Coroa. Era algo inédito e o Papa hesitou. Cedeu frente às pressões do cardeal espanhol Rodrigo Bórgia, futuro Papa Alexandre VI. Em novembro de 1478, Sisto IV autoriza a criação da Inquisição na Espanha sob jurisdição real. O primeiro Tribunal do Santo Ofício foi instalado em Sevilha, em 17 de setembro de 1480. A demora de quase dois anos foi resultado da luta dos conversos contra sua instalação, e uma hesitação inicial por parte dos Reis. O alvo principal da Inquisição eram os “judaizantes”, conversos suspeitos de continuarem praticando o Judaísmo em segredo ou, pior ainda, de levar outros de volta à sua religião. Os judeus também não estavam a salvo. De acordo com as leis canônicas, eles e os muçulmanos estavam fora da jurisdição da Inquisição. Porém, a Inquisição podia enquadrar os judeus facilmente, acusando-os de induzir um cristão a adotar alguma prática “herética”, ou seja, algum rito judaico. Essa era uma

acusação perigosa e levantada com frequência contra eles. O medo tomou conta dos conversos. Alguns saíram de Sevilha e procuraram abrigo nos domínios de outros nobres. Mas, quando a Inquisição ameaçou excomungar e confiscar os bens de quem lhes desse abrigo, os conversos foram enviados de volta. Outros decidiram lutar. Diego de Susan, um dos homens mais poderosos de Sevilha, após

Seis conversos foram queimados vivos. Alguns dias depois, Diego de Susan e outros dois participantes da frustrada conspiração foram queimados na estaca. Logo em seguida, os demais participantes tiveram a mesma sorte. No início de novembro as chamas ganharam mais 298 vítimas. Todos eles eram conversos. Segundo os registros, entre 1481 e 1488, houve 750 autos-de-fé apenas em Sevilha.

Rua no antigo bairro judeu de Sevilha

reunir outros conversos, engendrou um plano de luta. Descobertos, os conspiradores foram presos, prontamente julgados e sentenciados à estaca, isto é, a serem queimados vivos. A imensa riqueza dos condenados foi imediatamente confiscada pelo Tesouro real. A Inquisição e a Coroa cobiçavam a riqueza dos conversos e o interesse econômico acabou elevando exponencialmente as acusações. Em 6 de fevereiro de 1481, foi realizado o primeiro auto-de-fé. 46

Torquemada e a Inquisição Tomás de Torquemada, um dominicano confessor dos Reis Católicos, passou à história como o representante da face mais aterrorizante da Inquisição. Torquemada foi nomeado Inquisidor em fevereiro de 1482 e, em outubro do ano seguinte, Inquisidor Geral, presidindo o recém-criado Consejo de La Suprema y General Inquisición, a autoridade máxima da Inquisição Espanhola. Os membros da


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Suprema e o Inquisidor Geral eram indicados pela Coroa, evitando, dessa forma, a possibilidade de intervenção papal. A Suprema controlava todos os tribunais, assim como a receita de seus confiscos, assegurando-se de que a maioria dos lucros fossem para o Tesouro real. Entre os inéditos poderes que o Papa concedera à Inquisição Espanhola constava a autorização de modificar as regras tradicionais da Inquisição, atendendo às “peculiaridades” espanholas. Com isso, a instituição inquisidora se autogovernava, ficando independente do Papado. Era aliada subordinada ao poder real e em mais de uma ocasião, foi usada para propósitos políticos. Maquiavélico e dono de implacável fanatismo e crueldade, Torquemada organizou e expandiu o alcance do Tribunal Inquisidor. Sua “devoção” ao papel de Grande Inquisidor o fez recusar o Bispado de Sevilha. Apesar de não abandonar o humilde traje de frade dominicano, Torquemada gostava de luxo. Morava em palácios luxuosos e em suas viagens era sempre acompanhado por 50 guardas montados e 250 homens armados. Tampouco se acanhava em se apropriar de parte das riquezas judaicas confiscadas pela Inquisição. As queixas sobre a atuação da Inquisição começaram logo após ele ter assumido o cargo de Grande Inquisidor. Os dignitários de Barcelona se dirigiram ao Rei Fernando: “Estamos arrasados com as notícias que recebemos das execuções e dos atos que dizem estar havendo”. Vários bispos espanhóis enviaram suas queixas para o Papa que respondeu deplorar o fato de que “muitos autênticos e fiéis cristãos, com base em testemunhos de inimigos, sem qualquer prova

INTERIOR DA SINAGOGA DO TRÂNSITO, COM RICA DECORAÇÃO EM ESTUCO. foi erguida em Toledo em 1356. A sinagoga foi transformada na metade do séc 15 em igreja

legítima, foram metidos em prisões, torturados … privados de seus haveres … e entregues ao braço secular para serem executados… A Inquisição, há algum tempo, é movida não por zelo pela fé e a salvação das almas, mas pelo desejo de riqueza”. Era profundo o ódio de Torquemada pelos judeus e conversos. Não considerava confiável nenhum judeu – convertido ou não. Para o dominicano, só podiam viver na Espanha pessoas de “sangre limpia”, e ele pregava a expulsão ou morte de todos que não fossem cristãos puros. O reinado de terror instalado por Torquemada levou os conversos a uma oposição frenética – apelos a Roma, aos magistrados e também à Coroa, a quem ofereceram somas vultosas. Ao verem que nada disso lhes era de valia, os conversos recorreram a violentas contramedidas. Em 1485 assassinaram o Inquisidor de Aragão, Pedro de Arbues, na catedral de Saragoça. 47

Mas a Inquisição não retrocedeu, pelo contrário. Iniciou uma violenta campanha antissemita, atiçando a hostilidade dos cristãos. Em seguida, dirigiu petição à Coroa pedindo a adoção de medidas “apropriadas” contra os judeus como forma de acalmar os ânimos. A proposta era a expulsão em massa. Para apaziguar a Inquisição, em janeiro de 1483 os monarcas expulsaram os judeus de Andaluzia e, em maio de 1486, os de Aragão, mas a expulsão em grande escala teve de ser adiada. A Coroa precisava da riqueza judaica para financiar a campanha contra Granada. Ademais, havia certa hesitação por parte da Coroa em tomar uma medida tão drástica. Numa carta, o Rei escreveu: ... “fazemo-lo com grande dano para nós, buscando e preferindo a salvação de nossas almas acima do nosso proveito...”. E, mesmo Isabella, que era profundamente religiosa, hesitou entre sua obrigação de estadista e o que considerava setembro 2020


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seu dever de fé. Torquemada incansavelmente cobrava dela o serviço que devia à Cristandade erradicando de seus domínios a presença judia. Existem indícios de que um acordo secreto foi concluído entre a Coroa e Torquemada. Representando a Inquisição, ele aceitou o adiamento da expulsão em massa dos judeus até a conquista definitiva de Granada pelos espanhóis. Em 2 de janeiro de 1492, o estandarte da Coroa espanhola foi alçado na torre de Alhambra, palácio-fortaleza em Granada. Com a capitulação do último reduto islâmico consolidava-se a unificação da Espanha como um país cristão. Logo após a queda de Granada, já circulavam rumores de que os judeus seriam expulsos em massa. Ainda havia inúmeros judeus ocupando cargos importantes na corte, entre eles o Rabi Isaac ben Judah Abravanel e Don Abraham Senior. Inutilmente, eles tentaram fazer os soberanos mudarem de ideia. Um famoso quadro pintado

EXPULSÃO DOS JUDEUS DA ESPANHA (NO ANO DE 1492), POR EMILIO SALA FRANCÉS

por Emilio Sala Francés, reproduzido acima, retrata o evento . Na tela, um representante dos judeus implora pela reversão do decreto de expulsão, de 1492. A figura do judeu deve ser Dom Abraham Senior ou Rabi Isaac Abravanel. Com o manto vermelho, provavelmente Torquemada. Passados menos de 90 dias da tomada de Granada, em 31 de março, foi, então, assinado o decreto

“AUTO-DA-FÉ NA PLAZA MAYOR, MADRI. FRANCISCO RIZI (1683, MUSEU DO PRADO)

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de expulsão do Reino de todos os judeus e mouros que não aceitassem a conversão ao Cristianismo. Judeus e mouros receberam um prazo de quatro meses para escolher entre o exílio ou o batismo. Muitos judeus partiram. Um grupo de seiscentas famílias de abastados judeus espanhóis obtiveram permissão para se estabelecer em Portugal.


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Mas, em 1497 o Rei D. Manuel I decreta a conversão forçada dos judeus que viviam em Portugal. Em 1536, quando o Vaticano autoriza a instalação da Inquisição em Portugal, nos moldes da Espanhola, eles se viram sem ter para onde escapar.

acusação e nem quem os acusava. O sigilo quanto aos informantes e testemunhas era uma “inovação espanhola” e impulsionava as delações.

Após a expulsão da Espanha As fontes divergem sobre os números, mas estima-se que 120 mil entre judeus e conversos tenham optado por permanecer na Espanha. Todos eram obrigados por lei a seguir a religião cristã e se tornaram presa fácil da Inquisição. O Tribunal do Santo Ofício não se interessava pela heresia em geral, apenas pela prática secreta de ritos judaicos. Em 1492, já havia Tribunais do Santo Ofício operando em oito grandes cidades e, na década seguinte, havia um tribunal em quase todas as cidades do país. A Coroa espanhola também se preocupava em preservar a unidade de crença em suas novas colônias, sendo assim despachados agentes da Inquisição ao Novo Mundo desde 1522. Seguindo um decreto real de que uma Inquisição separada fosse estabelecida no Império Espanhol nas Américas, três diferentes cortes foram subsequentemente instauradas, uma em Lima, em 1570, uma na Cidade do México, em 1571, e uma em Cartagena, em 1610. Nos três séculos de domínio espanhol, 1

“SÃO DOMÊNICO PRESIDINDO UM AUTODA-FÉ”, POR PEDRO BERRUGUETE. 1495

30 hereges foram queimados em Lima e 41 na Cidade do México.

Metodologia e técnicas A Inquisição espanhola endossou a “metodologia“ e técnicas da Inquisição Papal, mas de modo ainda mais cruel. Muitos eram presos antes mesmo da avaliação de seu caso e podiam ficar encarcerados durante anos, sem saber qual era a

A Inquisição usava de tortura para forçar confissões, sendo as mais utilizadas a cremalheira, a roda, o pêndulo e a tortura d’água. Mas, na realidade, qualquer tipo de tortura idealizado pela sádica imaginação dos inquisidores era igualmente sancionado. Durante as sessões de tortura, as únicas palavras ditas ao acusado eram “Diga a verdade”. Segundo Henry Charles Lea1, renomado historiador, “o tabelião anotava fielmente tudo o que se passava, mesmo os uivos das vítimas. ... Seus piedosos apelos por misericórdia ou por morte imediata”. O historiador continua: “Nada é mais apropriado para provocar nossa mais profunda compaixão do que aqueles relatos factuais a sangue-frio”. O requisito para um acusado escapar de mais sessões de tortura era a delação de outros. O objetivo dos inquisidores “não era salvar a alma do acusado, mas alcançar o bem público e impor medo aos demais”. Milhares de homens e mulheres de todas as idades ficaram aleijados ou enlouqueceram em virtude das torturas. E os poucos que eram liberados descobriam que estavam arruinados devido ao confisco de seus bens. O ponto culminante dos processos dos Tribunais do Santo Ofício eram os autos-de-fé. Eles eram uma demonstração pública do triunfo da fé católica e do poder da Inquisição. Na Espanha, o autode-fé acabou sendo uma ocasião social de perversa excitação das

Historiador americano do século 19, considerado a maior autoridade na História da Igreja no final da Idade Média, e sobre sua história institucional, legal e eclesiástica. 49

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antissemitismo

massas, em muitos casos organizada para celebrar um casamento real ou alguma outra função pública. Tornara-se uma exibição pública, armada com esmero, a pronúncia da sentença e a discussão sobre os detalhes das penas em meio à cruel cerimônia. A população corria para assistir os cortejos de condenados e penitentes, que eram praticamente arrastados, com os pés descalços e trajando túnicas amarelas - os “sambenitos” - e chapéus cônicos também amarelos, para humilhálos ainda mais. Além disso, eram forçados a se retratar publicamente de seus “erros” contra a fé cristã. Após a leitura das sentenças os inquisidores “entregavam” os réus condenados à estaca às autoridades civis que se incumbiam de cumprir as sentenças. Se eles se arrependessem nos últimos momentos, eram “piedosamente” estrangulados antes de ser acesa a fogueira. Caso contrário, eram queimados vivos. É impossível calcular com precisão a incidência da pena de morte na história da Inquisição Espanhola.

O Fim da Inquisição Em 1701, quando o Rei Filipe V ascendeu ao trono e se recusou a assistir a um auto-de-fé realizado em sua honra, parecia que algo estava para mudar. Mas, pouco depois, a Inquisição retomou suas “atividades” com a mesma severidade dos séculos anteriores. Na verdade, sob o domínio ineficaz dos últimos Habsburgos2, a Inquisição Espanhola tinha poder

2

O ramo espanhol dos Habsburgos governou a Espanha e vários outros territórios de 1516 até ele ser extinto em 1700.

“AUTO-DE-FÉ DA INQUISIÇÃO”, ÓLEO DE FRANCISCO DE GOYA

suficiente para funcionar quase que independentemente da Coroa. Gradualmente, porém, durante o século 18, suas atividades foram diminuindo. Entre 1740 e 1794, o Tribunal de Toledo julgou apenas um caso por ano, em média. O impacto da Revolução Francesa tiraria a Espanha de sua letargia. Em 1808, o exército de Napoleão, liderado pelo Marechal Joachim Murat, ocupa o país. Os Bourbon foram depostos e o irmão de Napoleão, Joseph, tornou-se rei. A religião católica seria tolerada como qualquer outra. A Inquisição imaginou-se salva e ainda poderosa; e alguns dos inquisidores prenderam o secretário de Murat, um estudioso dos clássicos que se autoproclamava revolucionário ateu. Murat prontamente despachou tropas para libertá-lo. Em 4 de dezembro de 1808, o próprio Napoleão chegava a Madri. Nesse mesmo dia, emitiu um decreto abolindo a Inquisição e confiscando suas propriedades. Em julho de 1814, após a derrota de Napoleão, Fernando VII foi restaurado ao trono espanhol. 50

Com ele, restaurou-se nominalmente a Inquisição. O último processo de um judeu na Espanha ocorreu em Córdoba, em 1818. Embora o antissemitismo permanecesse disseminado no país, muitos espanhóis já viam sua Inquisição como anacrônica. Finalmente, em 15 de julho de 1834, um decreto aboliu a Inquisição Espanhola e também em seus domínios ultramarinos. Sintetizando o veredicto da História sobre a Inquisição, o historiador Henry Lea escreveu: “O zelo fanático, a crueldade arbitrária e a insaciável cobiça se rivalizavam na construção de um sistema inimaginavelmente atroz. Era um permanente deboche da justiça – talvez o mais injusto jamais concebido pela arbitrária crueldade humana”.

BIBLIOGRAFIA

Lea, Henry Charles, A History of the Inquisition of Spain (Vol. 1-4): Complete Edition - eBook Kindle Kamen Henry, The Spanish Inquisition eBook Kindle Green,Toby, Inquisition: The Reign of Fear eBook Kindle


PERSONALIDADE

CONTRARIANDO AS CIRCULARES SECRETAS DO GOVERNO VARGAS POR Maria Luiza Tucci Carneiro

A trajetória do embaixador brasileiro Luis Martins de Souza Dantas, um dos melhores exemplos contra o antissemitismo endossado pelo governo de Getúlio Vargas

o

utros diplomatas podem ser arrolados, alguns inclusive – entre os quais o próprio Souza Dantas – citados pela primeira vez no meu livro O Anti-semitismo na Era Vargas, cuja edição de lançamento é de 1988. Até esta data, o teor das Circulares Secretas antissemitas emitidas durante os governos de Getúlio Vargas (1937-1945) e de Eurico Gaspar Dutra (19461950) eram totalmente desconhecidas. Da mesma forma, era desconhecida a história de Souza Dantas e seu envolvimento com os judeus refugiados em Paris, assim como as ações salvacionistas de Aracy Moëbius de Carvalho. Mesmo porque o acesso aos documentos diplomáticos considerados secretos sob a guarda do Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI) estavam proibidos aos pesquisadores. Com uma autorização especial da diretora desse acervo, consegui consultar cerca de 3.400 documentos, entre os quais aqueles que

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faziam referência às Circulares Secretas e aos judeus interessados em obter vistos para o Brasil. Após vários meses de pesquisa, constatei que a maioria dos diplomatas brasileiros expressou repúdio aos judeus que, na Europa, corriam o risco de serem assassinados nos campos de extermínio mantidos pela Alemanha nazista e países colaboracionistas. Raros tiveram a coragem de protestar contra o teor das Circulares Secretas emitidas pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil a partir de 7 de junho de 1937. A primeira Circular Secreta recebeu o nº 1.127 sendo emitida em 7 de junho de 1937, configurando assim a adoção de uma política imigratória antissemita pelo governo Vargas. Nesta época, Mario de Pimentel Brandão ocupava o cargo de ministro das Relações Exteriores. As intenções antissemitas constam no item C: “fica recusado visto no passaporte a toda pessoa de que se saiba, ou por declaração própria (folha de identidade), ou qualquer outro meio de informação seguro, que é de origem étnica semítica1.

Ofício Confidencial-Urgente de Hildebrando Accioly, Secretario Geral interino do MRE para Arthur Leite de Barros Junior, Secretario da Segurança Pública do Estado de São Paulo. Rio de Janeiro, 11 de junho de 1937. Lata 602, Março 9458. Acervo: AHI/RJ; Arqshoah/ Leer-USP.

No entanto, a postura de um único embaixador fugia às regras secretas impostas pelo governo: Luis Martins de Souza Dantas (1876-1954). Outros nomes surgiram, 51

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inicialmente sem comprovação: Carlos Martins Pereira, embaixador do Brasil em Washington, Orlando Arruda, secretário da Legação brasileira em Varsóvia, Murillo Martins de Souza, cônsul-geral do Brasil em Marselha, e Aracy Moebius de Carvalho, funcionária do consulado-geral de Hamburgo, com a conivência do cônsul e escritor brasileiro João Guimarães Rosa. Prosseguindo com a divulgação destes documentos, secretos até 1995, publiquei minha Tese de Livre Docência intitulada Cidadão do mundo: o Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do Nazifascismo (Perspectiva, 2020). Souza Dantas era um diplomata educado na velha escola do Império brasileiro, acostumado a circular entre a elite, onde recrutava seus servidores. Durante o período em que foi embaixador em Roma, manteve o retrato autografado de Mussolini pendurado na parede da embaixada, de Vittorio Emmanuele, rei da Itália, de Santos Dumont, do ex-presidente francês Raymond Poincaré e do poeta italiano Gabriele D’Annunzio (que o chamava de “ambasciatore delle grazie” – embaixador das graças). Solteiro até os 57 anos, o embaixador Souza Dantas casou-se em 30 de setembro de 1933 com Elise Meyer Stern, viúva americana residente em Paris. Era irmã de Eugene Meyer, proprietário do jornal The Washington Post. Embora Elise fosse judia, a cerimônia seguiu o rito católico. Amigo de celebridades como Coco Chanel, Madeleine Carlier, Marie Bell e Arletty, manteve como seu secretário o artista Cícero Dias, perseguido no Brasil como comunista.

Ignorando as determinações impostas pelo Itamaraty, Souza Dantas procurou driblar as proibições antissemitas impostas pelo órgão concedendo “vistos camuflados”. Auxiliado por alguns assessores de confiança – cujos nomes dificilmente conseguiremos apurar – o embaixador facilitou a liberação de centenas de vistos emitidos em caráter permanente, temporário, em trânsito ou diplomático. O historiador Fábio Koifman contabilizou 473 vistos, relação publicada em seu livro Quixote nas trevas: O embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo, [Editora Record, 2001] Uma série de artimanhas foram empregadas por estes “missionários da diplomacia” de forma a “encobrir” o “J” vermelho, marca estigmatizante que ora acompanhava os passaportes dos judeus alemães e se apresentava como cicatriz no espírito daqueles que, por serem judeus, haviam perdido os direitos de cidadania e, quando não, o direito à vida. Uma série de cuidados 52

deveriam ser tomados no ato do preenchimento dos papéis diplomáticos para evitar a desconfiança por parte dos fiscais da imigração no Brasil que, nos portos de desembarque, tinham como missão identificar os “indesejáveis” (por raça ou por ideias políticas). Se flagrados, os “indesejáveis” poderiam ser impedidos de desembarcar, ato que alterava totalmente seu destino. Os trâmites para a liberação de um desembarque, nos casos de ilegalidade envolvendo passageiros judeus, expressam que o antissemitismo circulava pelos meandros burocráticos do Estado presidido por Getúlio Vargas (1933-1945). Uma autorização de desembarque dependia, muitas vezes, de múltiplos pareceres: submetida à avaliação do chefe da Polícia Política/DOPS (encarregado de supervisionar a mobilidade e as atividades políticosociais da comunidade judaica em território nacional), passava pelo crivo de vários ministros (das Relações Exteriores, da Justiça e Negócios Interiores, do Trabalho) culminando com a devida anuência do presidente da República, no caso, Getúlio Vargas. Quaisquer rasuras na documentação deveriam ser evitadas, da mesma forma como os prazos deveriam ser minuciosamente calculados, prevendo-se o tempo de duração da viagem, tarefa difícil se contabilizadas as dificuldades impostas pela guerra na Europa. Imprevistos eram considerados de antemão, caso um passageiro portasse um visto “caduco”, ou seja, que tivesse expirado antes do desembarque no país de destino.


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Uma das soluções possíveis usadas pelos diplomatas era deixar em branco o espaço destinado à data de emissão do visto, que seria preenchida pelo portador algumas horas antes do desembarque. Enfim, riscos menores se comparados com o destino daqueles que já haviam sido enviados para os campos de concentração e/ou extermínio. Movidos por este espírito humanitário, alguns poucos diplomatas ignoraram as regras impostas pelas Circulares Secretas. Movidos por sua sensibilidade de homens públicos – e não pelos interesses que se ajustavam às negociações políticas – estes diplomatas atribuíam vistos aos judeus – muitos dos quais apátridas – na categoria de católicos, turistas, artistas em trânsito, empresários em viagem de negócios e até mesmo como diplomatas. Até hoje consideramos impossível a definição do número de judeus salvos por estes diplomatas, da

mesma forma como contamos com um total aproximado dos judeus que ingressaram no país. Temos sim, após 1938, os dados oficiais que se prestam para comprovar a prática restritiva imposta pelas Circulares Secretas. Agindo na clandestinidade e amparados por sua influência diplomática, esses poucos diplomatas camuflaram seus atos humanitários. Se descoberta, a “fraude” era apurada pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) e seus responsáveis julgados pelas irregularidades verificadas na entrada e permanência de estrangeiros em território nacional”. Assim, com base em denúncias contra o embaixador Luis Martins de Souza Dantas, Getúlio Vargas submeteu à análise daquele departamento o segundo processo administrativo instaurado com tais fins: apurar irregularidades. Segundo processo? Sim, porque um primeiro, por carência de tempo, não havia permitido o total esclarecimento dos fatos.

Por ordem de Getúlio Vargas, o segundo inquérito foi concluído e relatado pelo DASP que, baseandose no informe emitido por uma Comissão de Inquérito, ultimou o processo na forma do Estatuto dos Funcionários Públicos, opinando sobre as conclusões apresentadas. De acordo com o art. 254 do referido estatuto, os indiciados deveriam ser citados preliminarmente para que, no prazo legal, apresentassem sua defesa. Entre os indiciados estavam o embaixador Luis Martins de Souza Dantas e outros dois cônsules brasileiros.

A postura filossemita de Souza Dantas A postura filossemita de Luis Martins de Souza Dantas encontrase detalhadamente registrada nas páginas do processo administrativo instaurado pelo governo Vargas em 1942, que o afastou definitivamente da carreira diplomática.

O Palácio da Guanabara foi utilizado pelo presidente Getúlio Vargas como residência oficial durante o Estado Novo – 1937 a 1945

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submetida à Alemanha nazista até dezembro de 1944. Como todos os demais países ocupados, a França sofreu pilhagem econômica, humana, territorial (anexação da Alsácia e Lorena) e cultural, efetivada com o roubo de obras de artes dos museus franceses.

O embaixador Souza Dantas, ao centro, conversando com Oswaldo Aranha (esq.) e Getúlio Vargas (dir.)

Apesar dos serviços prestados desde 1897, quando Dantas assumiu como adido junto à Legação brasileira em Berna (Suíça), o governo brasileiro não o poupou de ser sentenciado. Dantas, após ter se tornado ministro residente em Buenos Aires, em 1912, por merecimento, percorreu com mérito várias outras missões diplomática. Em dezembro de 1922, assumiu a chefia da embaixada brasileira em Paris, onde permaneceu até junho de 1940 quando, forçado pela invasão das tropas alemãs à França, transferiu-se para Vichy. Foi o primeiro embaixador a tomar essa decisão que, posteriormente, foi seguida por outros representantes estrangeiros. Apesar do controle, permitia que seus subordinados mantivessem contato com as autoridades alemãs em Paris, a fim de obter informações que repassava ao Itamaraty. Enquanto as forças nazistas avançavam, milhões de judeus radicados na França ou em trânsito abandonavam sua residência com o objetivo de deixar o país, antes que suas cidades fossem ocupadas. Cerca de 10 milhões de pessoas viajaram

em direção ao sul do país de carro, trem, bicicleta e até mesmo a pé. Em pouco tempo, as estradas estavam lotadas, impossibilitando a passagem das tropas francesas que avançavam em direção ao norte. Paris foi abandonada e declarada “Cidade Aberta”, facilitando a entrada dos nazistas. A cidade permaneceu

Pouco antes de deixar Paris ocupada, Souza Dantas passou a emitir vistos diplomáticos para quem os pedisse sem exigir nada em troca. A maioria era de origem judaica, portando passaportes com o “J” vermelho ou com o Passaporte Nansen emitido pela Liga das Nações. Tal atitude configurou-se posteriormente como uma afronta ao governo Vargas que proibia a concessão de vistos aos judeus refugiados. Por volta de agosto de 1940, seguiram para Vichy todas as embaixadas estrangeiras e, por razões históricas, a chamada “Zona Livre” transformou-se em um dos raros refúgios para aqueles que queriam escapar da Solução Final, ainda que por pouco tempo. Apesar do processo administrativo aberto pelo governo brasileiro que o sentenciou “culpado”, Dantas continuou interinamente à frente da embaixada, que foi invadida pelos alemães em maio de 1943. Em 12 de dezembro de 1940, Oswaldo Aranha expediu a Circular Secreta n° 1.498, pela qual era reiterada a proibição de concessão de vistos a judeus. Souza Dantas passou então a assinar os documentos com datas anteriores à da circular. Nem todos os que ele auxiliou se dirigiram ao Brasil.

Ações humanitárias de Souza Dantas Ofício Secreto do cônsul-geral do Brasil, Mário Moreira da Silva, a Oswaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores, comunicando que “tem a honra” de recusar vistos aos judeus. BUDAPESTE, 12 DE AGOSTO DE 1938

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Durante o período em que esteve à frente da embaixada brasileira em Paris, e mais especificamente a partir


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de 1933, Dantas procurou ajudar o maior número possível de apátridas, refugiados políticos, judeus e não judeus, a fugir das perseguições antissemitas empreendidas pelos seguidores de Hitler. Seu empenho e sensibilidade para as causas humanitárias encontram-se registradas nos documentos que encaminhou ao Ministério das Relações Exteriores. No entanto, a memória coletiva se faz curta, omissa e viciosa, acobertada pela imagem de falsos heróis que continuam a ser erroneamente homenageados cristalizando mitos. O governo brasileiro, ao tentar rastrear “provas” que atestassem o crime administrativo praticado por Souza Dantas e outros diplomatas de carreira, deixou registrada sua postura antissemita. Entretanto, ao penalizar os diplomatas simpatizantes das causas humanitárias, as autoridades brasileiras não se deram conta de que assinavam a própria condenação. Um silêncio sepulcral sobre os atos humanitários de Souza Dantas persistiu até os anos de 1990, acobertado pelo ranço do secretismo que proibia o acesso à documentação diplomática produzida a partir da década de 1930 identificada pelos assuntos “imigração semita” ou “imigração judaica”.

no cumprimento das Circulares Secretas (antissemitas, na sua essência) as autoridades brasileiras garantiram a preservação dos indícios relacionados com a questão judaica. Tais documentos provavam que, ao emitir vistos contrariando as Circulares Secretas, Souza Dantas havia salvo centenas de judeus: documentos assinados no passado se prestaram para provar o “crime humanitário” de Souza Dantas. Analisando a montagem do processo administrativo é possível detectar a lógica do antissemitismo moderno que permeou, sem dúvida nenhuma, a mentalidade do grupo que servia ao presidente Vargas: Oswaldo Aranha, Eurico Gaspar Dutra, Francisco Campos, Gustavo Capanema, Filinto Müller, Vicente Rao, entre outros. As investigações nos arquivos diplomáticos retrocederam até 1932, concentrando-se no período entre 1939-1940, quando se intensificou o “êxodo” de judeus alemães. Apavorados com o plano de extermínio arquitetado pelo Estado nazista, os refugiados apelavam por qualquer tipo de ajuda para conseguir um visto.

No decorrer do processo, funcionários orgânicos vasculharam os arquivos diplomáticos em busca de provas contra o embaixador Souza Dantas. Interessava reunir qualquer pedido de visto para semitas emitido pela embaixada brasileira de Paris. Uma verdadeira teia de relações de amizade pode ser detectada nestes registros que, avaliados décadas depois, tiram do anonimato outros carrascos antissemitas2. Os documentos que os burocratas interpretavam como provas de erro administrativo (“irregularidades”) para nós se apresentam como provas de um gesto humanitário, filossemita. Uma série de pedidos de autorização de vistos encaminhados pelo consulado-geral em Paris (grifado no original) em 1936, chamou a atenção dos burocratas brasileiros encarregados de apurar tais irregularidades. O grande número de artistas com nomes judaicos salta à vista de qualquer leitor mais desavisado, que poderá perceber que havia uma conexão entre Nicholas Ladany, diretor artístico do Cassino

PARIS OCUPADA POR NAZISTAS

Ao processarem o embaixador Souza Dantas por “irregularidades”

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Lembramos aqui o debate produzido pelos estudos de Daniel Jonah Goldhagen publicados em Os carrascos voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto. Trad. Luiz Roizman. S. Paulo: Companhia das Letras, 1977; comentado na obra FINCHELSTEIN, Federico (Es.) Los Alemanes, el Holocausto y la Culpa Colectiva: el Debate Goldhagen. Buenos Aires: Editoral Universitaria Buenos Aires, 1999.

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da Urca, e o referido consulado. Junto a esta documentação um telegrama assinado por “Exteriores” liberava o visto para Georges Djounkovsky, via consulado-geral de Paris. Uma nota acrescenta: “para atender a pedido do Senhor Embaixador Souza Dantas, por officio Nº 70, de 29 de junho de 1936, da Embaixada de Paris”. Assim, a partir desta data, começamos a cruzar os pedidos de Dantas, que já se posicionava como “mentor” de uma série de estratégias salvacionistas. Até então, o controle de entrada de judeus refugiados se fazia de forma assistemática. O círculo político antissemita do governo brasileiro não tardou a se pronunciar contrário a iniciativas deste tipo. Em maio de 1937, a Ordem de Serviço nº 25 (antissemita), emitida pelo Ministério das Relações Exteriores, antecipava o teor da primeira Circular Secreta de nº 1.127, de 7 de junho de 1937. Em nome do ministro de Estado, Hildebrando Accioly, secretário-geral do MRE, alertava Arthur Leite de Barros Junior, da Segurança Pública do Estado de S. Paulo, para o perigo de ser liberado o visto no passaporte de Gleb Rossine, refugiado russo contratado para trabalhar na Société des Sucréries Brésiliennes. O referido pedido vinha do consulado-geral do Brasil em Paris. Accioly recorria a tal Ordem de Serviço expedida com o intuito de “impedir, quanto possível, a entrada no Brasil de immigrantes israelitas sem nacionalidade que, incluídos nas quotas de immigração dos países de onde procedem, burla,

Ordem de Serviço n. 25 visto em passaporte de apátrida. Rio de Janeiro, 25 de maio de 1937. Anexo. Lata 602, Maço 9458. AHI/RJ.

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as disposições constitucionais a respeito, e a entrada, também de indivíduos apátridas que, tornandose posteriormente indesejáveis, constituiriam, pela impossibilidade da sua expulsão, um problema para as autoridades brasileiras”.3 Através desta acusação – de que os imigrantes judeus apátridas

Sua postura intelectual e diplomática não tardou a chamar a atenção dos círculos internacionais envolvidos com a causa humanitária. Em dezembro de 1937, E. Montarroyos, delegado do Brasil no Instituto Internacional de Cooperação Internacional, enviava a Mario de Pimentel Brandão, ministro das Relações Exteriores, cópia do

Moradores do bairro judeu em Chelmza, Polônia, país invadido por tropas nazistas em 1939

estavam fazendo uso das quotas imigratórias destinadas às múltiplas nacionalidades – podemos compreender a razão da instituição imediata de Circulares Secretas. Por meio de uma ordem interna, barrava-se a entrada de judeus enquanto que, do “ponto de vista legal”, o governo brasileiro continuava a manter o sistema de quotas sem restrições. Ou seja, a lei era uma, e a prática (de bastidores) era outra, antissemita. Dantas, que acompanhava de perto o drama vivenciado pelos judeus na Europa, saiu em defesa desse grupo e, principalmente, dos judeus brasileiros radicados ou em trânsito por Paris. 56

Refugiados judeus no porto de Lisboa. Imagem de Roger Kahan (1940)


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discurso pronunciado por Souza Dantas, em 8 de julho desse ano, na sessão inaugural do Congresso da Aliança Francesa na presença de Albert Lebrun, presidente da República Francesa. O sucesso alcançado foi tal que a Sociedade Positivista Internacional publicou-o em sua revista, além de reproduzilo em separata para divulgação. A postura filossemita de Dantas, ao longo de 1938, vai-se tornando cada vez mais evidente. Procurado por amigos políticos em evidência (não nomeados em seu telegrama), Dantas solicita autorização do Ministério das Relações Exteriores para resolver vários casos isolados de israelitas interessados em receber o visto para o Brasil. Assume total responsabilidade sobre cada uma das decisões que seriam “bem estudadas e de acordo com as instruções do Chanceler Aranha”. Uma das recomendações favorecia um israelita austríaco de alta situação social interessado em fundar em Porto Alegre (RS) uma casa comercial, editora de obras estrangeiras traduzidas para o português. Outros pedidos nesta mesma direção foram encaminhados por Mario de S. Brisson, cônsul-geral do Brasil em Paris. A resposta de Carlos de Ouro Preto, em nome do ministro do Estado das Relações Exteriores, foi de que os pedidos não deveriam ser atendidos, por contrariarem as normas adotadas pelo Conselho de Imigração e Colonização. Com o assassinato de Ernst von Rath (1909-1938), secretário da embaixada alemã em Paris, por 4

Trecho do telegrama de Souza Dantas, da embaixada brasileira em Paris para o MRE. Vichy, 17 de agosto de 1942, 640.16 (99). Acervo: AHI/RJ; Arqshoah/ Leer-USP.

famílias destes perseguidos estavam sendo “literalmente separadas: os maridos, de cabeça tosadas, são tangidos para trabalhar na Silésia; suas mulheres são internadas nos campos de concentração na Polônia; uns sem jamais poder saber dos outros, todos relegados a destinos ignorados; e os filhos, mesmo os de idade mais tenra, são violentamente arrancados às mães e confinados em asilos especiais, onde sucumbem os rebentos da raça maldita”.4

Herschel Grynszpan – filho de poloneses judeus deportados, em 6 de novembro de 1938 – a situação vivenciada pelos judeus perseguidos pelos nacionais-socialistas tornou-se ainda mais delicada. Nesta época, Dantas alertou para o fato de que o julgamento do crime não poderia ser reivindicado pela Alemanha, nem justificaria um pedido de extradição, apesar da ficção do Direito Internacional que considera território estrangeiro a sede da embaixada.

Cinco dias depois, Souza Dantas denunciava a entrega de judeus estrangeiros pela França à Alemanha, especialmente os nacionais dos países sob ocupação militar nazista. Este seu telegrama deve ser avaliado como um dos mais expressivos documentos diplomáticos redigidos por um brasileiro acerca do Holocausto, acontecimento de brilho insuportável. Reproduzindo-o com todas as letras, estaremos recuperando detalhes deste fenômeno sem antecedentes na História. Somente quem vivenciou de perto estes tempos de infâmia ou quem sentiu na pele [e no coração] a intolerância nazista, tem condições de escrever como Dantas:

Sempre que teve oportunidade, e principalmente após 1940, Dantas informou oficialmente ao chanceler Oswaldo Aranha a tragédia vivenciada pelos judeus na França ocupada pelos nazistas. Seus escritos assumem a forma de denúncia e alerta, simultaneamente. Em 17 de agosto de 1942, via telegrama, o embaixador brasileiro alertou o ministro das Relações Exteriores para o fato de que a “Gestapo” estava procedendo naquele país uma verdadeira escravização e extermínio dos judeus. Segundo o embaixador, as

“Parte é encurralada em vagões fechados em chumbo, adequados para o transporte de animais. Os homens e as mulheres seguem para rumos diferentes, todos apartados dos filhos, que são deixados ao desamparo. Estão ocorrendo entre as vítimas numerosos suicídios e as cenas mais lancinantes no momento do dilaceramento das famílias. Em vão a Santa Sé, por intermédio do Núncio Apostólico vem agindo junto a êste Govêrno, que protesto submeter-se às exigências alemãs, no próprio interêsse dos israelitas franceses, afim de evitar seja

Denúncia sobre o extermínio de judeus na França ocupada. Telegrama de Luis Martins de Souza Dantas, da embaixada do Brasil em Vichy para Oswaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores. Vichy, 17 de agosto de 1942

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compelido a extraditá-los também, o que, aliás, fará desde que os alemães o queiram. Sei que os Senhores De Monzie, Prefeito de Cahors, Jean Mistler e Des... todos êles membros do Conselho, acabam de demitir-se de suas funções públicas, em sinal de protesto contra as medidas que violam o tradicional direito de asilo e os mais elementares princípios da humanidade, deshonrando a França.”5 Dentre aqueles que receberam visto por intermédio de Souza Dantas, estava Ziembinski, ator e diretor polonês, que assim relatou em uma de suas entrevistas: “Nós, refugiados, estávamos submetidos aos maiores escárnios, às maiores torturas, os soldados franceses pegando ratos e enfiando no colo das mulheres, no peito, para espantar, coisa horrorosa. E, no meio disso, nós ficamos, até que, de repente, se ouve que existia um Dom Quixote que se chamava... meu D’us do céu, me escapa agora... o famoso embaixador Dantas, que disse o seguinte: ‘Abra as portas da embaixada que eu vou dar vistos diplomáticos’. E deu”.

Souza Dantas preso pelos nazistas Ao mesmo tempo em que as investigações sobre os atos “irregulares” de Souza Dantas prosseguiam no Brasil, os nazistas invadiam a Zona Livre, entrando na

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Trecho do telegrama de Souza Dantas, da embaixada brasileira em Vichy para o MRE (em aditamento ao telegrama nº 102). Vichy, 21 de agosto de 1942. 640.16 (99). Acervo: AHI/RJ; Arqshoah/SP.

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Diário Carioca, Rio de Janeiro, 16 de abril de 1944, p. 2. Acervo: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://memoria.bn.br/pdf/093092/ per093092_1944_04806.pdf>. Acesso em: 13 out. 2019]

embaixada brasileira em Vichy em busca de arquivos. O conselheiro Trajano Medeiros do Paço, que vivera em Berlim e falava fluentemente o alemão, informou os militares que todos os papéis haviam sido queimados. Souza Dantas, chamado em sua residência, protestou, alegando que as leis das convenções internacionais estavam sendo violadas pois, na sua embaixada, estavam em solo brasileiro. Por resistir à invasão,

PASSAPORTE EMITIDO COM A ASSINATURA DO EMBAIXADOR SOUZA DANTAS

o diplomata brasileiro foi preso e internado com outros colegas em Bad Godesberg (Alemanha), sendo libertado somente em 1944 graças à interferência de Antonio de Oliveira Salazar, de Portugal. Entre os 25 brasileiros permutados com prisioneiros e feridos do Eixo estavam: Antonio Dias Tavares Bastos, secretário particular do embaixador; Sra. Bastos; Roberto de Castro Brandão, vice-cônsul; Carlos Cardoso; Paulo de B. Carneiro, secretário particular; João Pinto da Silva, ministro; Artur Teixeira de Mesquita, vice-cônsul, e Sra. Mesquita; Luis Martins de Souza Dantas, embaixador; Trajano 58

Medeiros Paço, conselheiro, e Sra. Paço; Osório Dutra, cônsul, e Sra. Dutra; Orlando Leal, vice-cônsul, e Sra. Leal; Leão, arquivista, e Sra. Leal; Lavi José Teixeira Lima, adido; Pantaleão Machado, adido, e Sra.; Vitor Augusto Shaw, adido; Luciano Turque, adido, Sra. Turque e senhorinha Turque.6 A imprensa portuguesa e brasileira, sem muito alarde, anunciava que, em 16 de abril de 1944, seria realizada a troca de 1.180 súditos e feridos de guerra alemães, bem como cerca de 30 funcionários do governo de Vichy, transportados pelo vapor Gripsholm. Nessa mesma época chegariam a Lisboa, por estrada de ferro, 307 cidadãos americanos, inclusive hispano-americanos e brasileiros. A permuta diplomática foi efetuada com o cerimonial usual, sob os auspícios do Ministério das Relações Exteriores de Portugal, com a presença de representantes da Cruz Vermelha. Souza Dantas faleceu em Paris no dia 14 de abril de 1954. Alguns dias depois, em 29 de abril, a Guarda Republicana saiu em desfile pela Avenida Georges V, bem no centro de Paris, em frente à igreja de São Pedro de Chaillot. Assim, o governo francês prestou sua homenagem excepcional e inusitada ao exembaixador, gesto singular que foi acompanhado por políticos, intelectuais, jornalistas, artistas e outras tantas pessoas de prestígio na sociedade francesa. No Brasil, a imprensa apenas registrou seu falecimento, enaltecendo-lhe as qualidades.

Um Justo entre as Nações Os vistos indeferidos a milhares de judeus pelo governo de


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Getúlio Vargas devem ser interpretados como um sinal de descomprometimento com a causa judaica que, desde o início da 2ª Guerra Mundial, clamava por soluções imediatas. Quando distante das pressões dos Estados Unidos e da GrãBretanha, assim como dos grupos de socorro internacional, o governo Vargas fez valer princípios antissemitas em prol da higienização da raça brasileira. Tanto assim que penalizou (“a bem do serviço público”) aqueles que, na condição de membros da diplomacia brasileira, haviam se disposto a acudir os refugiados judeus, dentre os quais Luis Martins de Souza Dantas. Neste caso, o povo de Israel tem uma dívida para com o embaixador brasileiro que, desafiando as regras impostas pelas circulares antissemitas, atribuiu vistos a centenas de judeus. Em um dos seus telegramas, Souza Dantas explicou que “se viu obrigado, sem perder um minuto, a assumir funções consulares para, literalmente, salvar vidas humanas, por motivo da maior catástrofe que sofreu até hoje a humanidade. Fiz o que teria feito, com a nobreza d’alma dos brasileiros, o mais frio deles, movido pelos mais elementares sentimentos de piedade cristã”. E referindo-se aos vistos atribuídos aos refugiados judeus, afirmou: “foram todos concedidos somente para facilitar a saída da França de infelizes votados ao suicídio e a poucos, que apenas serviram para chegar até aí, segundo me informou esse Ministério, sem se ter verificado o menor dâno ao país”.

Solução Final pelos nazistas, se negaram a conceder vistos aos refugiados por estes serem judeus. Felizmente este silêncio foi rompido com a abertura dos arquivos secretos do Itamaraty, possibilitando pesquisas inéditas sobre este período conturbado da história da humanidade.

e inadimplência para com os direitos humanos e, em especial, para com a questão judaica. Através do processo administrativo instaurado contra o diplomata em 1941 e de outros documentos localizados em seções distintas do Arquivo Histórico do Itamaraty (Rio de Janeiro), temos condições de comprovar o real envolvimento de Souza Dantas com a causa judaica. Ao mesmo tempo, reafirmamos a prática sistemática de um antissemitismo político por parte de autoridades do alto escalão governamental brasileiro que, nos momentos cruciais de execução da A Praça da Ópera, em Paris, foi o último endereço de Souza Dantas antes da sua morte, em 1954

Diante da aposentadoria forçada de Souza Dantas em 1944, duas palavras se prestam para classificar a atitude do governo Vargas: omissão 59

No entanto, até o ano 2000, ações humanitárias de Luis Martins de Souza Dantas ainda não haviam sido reconhecidas pelo Yad Vashem, instituição criada em 1953 pelo Parlamento israelense para a rememoração permanente, religiosa e histórica, em memória das vítimas do Holocausto. Além disso, firmouse o compromisso de homenagear e agradecer a todos aqueles não judeus que arriscaram suas vidas para salvar judeus durante o Holocausto, os “Justos entre as Nações”, título que designa uma pessoa de elevada moral, que oferece empatia, compaixão e ajuda a judeus em tempos de grandes dificuldades e perseguições. Essa escolha leva em consideração a atuação excepcional, que exibe coragem e riscos, implicando perigos relativos à sua segurança, liberdade física, intelectual e profissional. Conhecendo os critérios do Yad Vashem, assim como a documentação comprobatória das ações humanitárias do embaixador brasileiro Luis Martins de Souza Dantas, encaminhei para esta instituição, no ano 2000, cerca de 220 registros pesquisados no Arquivo Histórico do Itamaraty. Com o apoio do cônsul Medad Medina, do consulado-geral de Israel em São Paulo, solicitei a setembro 2020


PERSONALIDADE

abertura de um processo com o objetivo de conseguir a outorga do título “Justo entre as Nações” à Souza Dantas. Antecipando-se ao reconhecimento oficial do Yad Vashem, o consulado geral de Israel em S. Paulo, a Universidade de São Paulo e o Centro Universitário Maria Antonia organizaram, em 10 de maio de 2001, o painel de debate “A Ética diplomática em tempos de guerra” do qual participaram: o cônsul Medad Medina, o prof. Dr. Roberto Romano, do Departamento de Filosofia da Unicamp, e eu, profa. Dra. Maria Luiza Tucci Carneiro, do Departamento de História da FFLCH-USP. Na ocasião foi aberta a exposição “Vistos para a vida – Diplomatas que salvaram a vida de judeus na Segunda Guerra Mundial”, com a participação do reitor prof. Dr. Jacques Marcovitch. A outorga do título de “Justo entre as Nações” ao embaixador Luis Martins de Souza Dantas foi anunciada em 11 junho de 2003, após intensa pesquisa complementar junto a renomados historiadores Aracy Guimarães Rosa

O embaixador Luis Martins de Souza Dantas (ao centro, de manteau e gravata borboleta) no aeroporto, após ter sido trocado por prisioneiros alemães. Apresentando cumprimentos de despedida: Dr. Guilherme Pereira da Rosa (1o plano a partir da esquerda) e Dr. Cesário Alvim. Lisboa, 26 de abril de 1944. Fundo do jornal O Século. Acervo: Arquivo de Fotografia de Lisboa-CPF/MC

brasileiros e testemunhos de sobreviventes do Holocausto. Ficou assim comprovado que os esforços do embaixador foram fundamentais para salvar centenas de judeus em tempos sombrios. O nome do embaixador passou também a fazer parte do Muro de Honra no Jardim dos Justos, no Yad Vashem. Ficou também comprovado que durante o período em que esteve à frente da embaixada do Brasil em Paris, Souza Dantas manteve uma parceria “silenciosa” com o português Aristides de Sousa Mendes, cônsulgeral de Portugal em Bordeaux. Ambos não mediram esforços para fornecer vistos para a vida aos judeus em fuga, hoje reconhecidos por seus gestos humanitários e heroicos. Este reconhecimento chegou 49 anos depois de sua morte. Souza Dantas faleceu em 1954, aos 78 anos, em Paris, onde voltara a residir. Somente em 30 de janeiro de 2013, no Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, cerimônia promovida pela Conferederacão 60

Israelita do Brasil em Brasilia (DF), é que o governo brasileiro homenageou publicamente o embaixador Luis Martins de Souza Dantas, e Aracy Guimarães Rosa, funcionária do consulado de Hamburgo, na Alemanha. Ao distingui-los como heróis brasileiros, que correram o risco de morte na emissão de vistos para os Brasil, a então presidente Dilma Roussef fez justiça ao pedir desculpas ao povo israelita. Ao enfatizar que “a coragem humana também é uma prova de que os seres humanos, que as pessoas as mais normais são capazes de gestos grandiosos. E que são capazes de se lançar para além das suas limitações cotidianas”. Maria Luiza Tucci Carneiro é historiadora, Professora Livre Docente do Depto. de História da Universidade de São Paulo. Autora de: O Anti-semitismo na Era Vargas; O Veneno da Serpente. Reflexões sobre o Anti-semitismo no Brasil; Preconceito Racial em Portugal e Brasil Colônia; e Cidadão do Mundo, O Brasil diante do Holocausto e dos judeus refugiados do Nazismo, dentre outros. Coordena junto ao LEERUSP o Arqshoah- Arquivo Virtual sobreHolocausto e Antissemitismo, www.arqshoah.com.br


israel

Universidades de Israel em destaque A educação faz parte da cultura nacional de Israel, e o alto nível do Ensino Superior no país é elogiado por estimular o desenvolvimento econômico e promover o boom tecnológico. Uma das consequências da excelência no ensino em suas universidades foi o aumento no número de alunos de todo o mundo interessados em dar continuidade a seus estudos em universidades israelenses

O

QS World University Ranking1 é uma publicação anual inglesa que contém a classificação total e por matéria de todas as instituições de ensino superior do mundo. Em seu relatório do último ano, publicado em abril de 2020, sete das 34 instituições de ensino superior de Israel constam do ranking das 100 melhores universidades do mundo.

À frente das instituições israelenses está a Universidade Hebraica de Jerusalém (UHJ) com quatro programas – o Departamento de Teologia, Divindade e Estudos Religiosos foi considerado o 11º melhor do mundo; sendo que seu Departamento de História Clássica e Antiga se classificou em 34º lugar. A educação sempre foi uma prioridade para os judeus, em todas as épocas, e o mesmo ocorre com o Estado de Israel desde antes mesmo da independência, em 1948. As primeiras universidades surgiram entre as décadas de 1910 e 1930, criando a base para o desenvolvimento científico, industrial e tecnológico e fazendo do país um celeiro de inovação internacionalmente reconhecido e visita obrigatória para acadêmicos, empresários e novos empreendedores. Fortemente comprometidas com formação de excelência, pesquisa e desenvolvimento, as universidades foram fundamentais para transformar Israel em uma nação empreendedora e incubadora de projetos de tecnologia de ponta, uma verdadeira Start-up Nation”.

Em sua 10ª edição, o trabalho analisou mais de 13.100 programas escolhidos dentre 1.368 instituições acadêmicas de nível superior, em 83 cidades. De Israel, foram avaliados 86 programas. O estudo considera quatro indicadores: reputação acadêmica, reputação no mercado profissional, citações em papers (artigos científicos) e o índice H – uma ferramenta que mede a produtividade da infraestrutura de pesquisa instalada para o programa em questão. O Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, em Boston, EUA) foi o líder mundial em 12 programas, seguido por Harvard, com 11, e Oxford com oito.

A excelência de seu ensino superior foi reconhecida pelo QS Higher Education System Strength Ranking, publicado pela primeira vez em 2016, no qual ganhou um destacado 28º lugar como o mais forte sistema educacional nacional.

QS World University Rankings são classificações universitárias

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anuais publicadas pela Quacquarelli Symonds, do Reino Unido. 61

setembro 2020


israel

Universidade Hebraica de Jerusalém

O país possui nove universidades e várias outras faculdades. O hebraico é o idioma oficial dos programas, mas algumas oferecem opções em inglês. No Global Innovation Index, de 2019, uma publicação conjunta da Universidade Cornell, INSEAD (Business School for the World) e WIPO (World Intellectual Property Organization), Israel surge como a economia mais inovadora do Norte da África e da Ásia Ocidental. No item economia inovadora em termos globais, pela primeira vez o país ficou entre os dez primeiros. No que se refere ao registro internacional de patentes, Israel também se classificou entre os dez primeiros, ao lado do Japão e da República da Coreia. Por trás dessa história de sucesso está o que tem sido definido de ecossistema de inovação, que

envolve empreendedores, talentos individuais e instituições de ensino de nível superior, além de agências governamentais e financeiras, atuando de forma entrosada e colaborativa. Com mais empresas start-ups na área de high-tech logo após os Estados Unidos, Israel está conquistando seu espaço como o próximo grande centro na área de biotecnologia.

Por que estudar em Israel? Israel pode ser o lugar certo para quem está em busca de um ambiente acadêmico comprometido com a excelência, pronto a oferecer quadros docentes internacionalmente reconhecidos, que incluem ganhadores de Nobel, laboratórios avançados de várias áreas, desafios de aprendizagem, além de uma história milenar e de grande diversidade 62

cultural. Suas universidades fazem parte dos mais diferentes rankings internacionais, sendo possível até estudar em inglês em alguns dos programas oferecidos. Inovação é palavra de ordem num país que se tornou conhecido, em todo mundo, como start-up nation. Celeiro de tecnologia de ponta, o país registra o maior investimento per capita neste tipo de empresa. Foi considerado, por mais de uma vez, o terceiro país mais inovador do mundo pelo Índice Fórum Global de Competitividade do Fórum Econômico Mundial. Estudar em Israel é a oportunidade de fazer parte deste ecossistema onde empreendedorismo já é parte da cultura local. O reconhecimento do alto nível das suas instituições acadêmicas atrai um número cada vez maior de estudantes estrangeiros, o que possibilita também uma experiência


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de convivência com pessoas de diferentes universos culturais e permite, também, uma vivência única e enriquecedora. Dados do Conselho para Educação Superior israelense indicam que atualmente há cerca de 12 mil estudantes estrangeiros nas universidades e faculdades do país.

utilizado pelo corpo humano para decompor proteínas indesejadas e, assim, proteger-se de doenças, como a leucemia e a fibrose cística. Em 2011, também o Nobel de Química foi para Dan Shechtman, por sua descoberta dos chamados quasecristais2.

Universidade de Tel Aviv

O Instituto Technion de Haifa O Technion é a instituição de ensino superior mais antiga de Israel, tendo sido criada em 1912. Um de seus principais apoiadores foi Albert Einstein, que visitou o campus em 1923. O Instituto cresceu rapidamente, tornando-se pioneiro em áreas como biotecnologia, células-tronco, espaço, ciências da computação, nanotecnologia e energia. Classificado entre as 50 melhores instituições de ensino tecnológico do mundo, o Technion é uma importante fonte de inovação e inteligência que impulsiona a economia israelense. Seus formandos representam 70% da força de trabalho no setor de alta tecnologia, estabeleceram a infraestrutura industrial de Israel, reforçaram suas capacidades de defesa tecnológica e foram pioneiros em suas empresas de base tecnológica. O Technion é a única universidade israelense que possui campus no exterior – em Nova York, em parceria com o Jacobs Technion-Cornell Institute; e na China, o Guangdong Technion Institute. Com 18 faculdades e 60 institutos de pesquisa, oferece 50

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instituto technion

cursos de graduação e 82 de pósgraduação. Atualmente, conta com 14 mil alunos e 620 professores. Mantém também parcerias com 12 hospitais e universidades no exterior, num total de 200 convênios. Além dos cursos em hebraico, o Technion oferece atualmente dois cursos de graduação em inglês: Engenharia Mecânica, com foco em robótica, e Engenharia Civil, em meio ambiente. Em 2004, o Nobel de Química foi para os professores Aaron Ciechanover e Avram Hershko, da instituição, ao lado do norteamericano Irwin Rose. Foram premiados por suas pesquisas, na década de 1980, que ajudaram a Ciência a compreender o mecanismo UNIVERSIDADE HEBRAICA DE TEL AVIV

Um quase-cristal ou quasicristal é um sólido com um espectro de difração essencialmente discreto, como os cristais clássicos, mas com uma estrutura não periódica. 63

Fundada em 1956, a Universidade de Tel Aviv (UTA) é a maior de Israel, com cerca de 30 mil alunos, dos quais 14 mil na área de pós-graduação. Composta por nove faculdades e 126 escolas e departamentos, além de 400 laboratórios, em todo o espectro de Ciências, Humanidades e Artes, é um dos grandes centros de pesquisa de Israel. A instituição está envolvida em mais de cinco mil projetos inovadores em disciplinas clássicas e áreas de ponta, desde a bioinformática até a nanotecnologia. Conta com mais de mil professores e 1.400 da área médica que atuam em 17 hospitais. Mantém parcerias com mais de 150 das principais instituições acadêmicas e corporativas do mundo, promovendo regularmente programas internacionais conjuntos em seu campus, além de acordos de cooperação com mais de 280 instituições, em 46 países. Nos rankings internacionais, a UTA vem aparecendo, nos últimos anos, na lista da Reuters das “Top 100 Innovation Universities”; em 2017, em oitavo lugar no ranking mundial de formandos que criaram “unicórnios”, empresas que valem U$ 1 bilhão ou mais, sendo a única instituição incluída na lista das dez delas localizadas fora dos Estados Unidos. No Ranking de Shangai de 2017, foi incluída entre as 100 mais destacadas nas áreas de Economia, Estatística, Ciências Políticas e Psicologia. setembro 2020


israel

Ocupa, ainda, a quinta posição de instituições escolhidas para concessão de recursos financeiros do European Research Council, dentre 172 instituições europeias.

Universidade Hebraica, de Jerusalém A Universidade Hebraica de Jerusalém, fundada em 1918 e inaugurada oficialmente em 1925, foi classificada em 2020 entre as 100 principais universidades do mundo e a primeira entre as israelenses. Inspirada na visão de dirigentes sionistas de criar um centro de ensino superior no Estado de Israel, teve sua pedra fundamental colocada em 1918 no Monte Scopus por Chaim Weizmann (que viria a ser o primeiro presidente do país). O reconhecimento alcançado pela UHJ ao longo de sua história confirma sua reputação de excelência e liderança na comunidade científica. Grandes personalidades, como Albert Einstein, Martin Buber, Sigmund Freud e Chaim Weizmann, passaram pelos quadros da instituição. Entre seus 1.500 atuais professores estão o vencedor do Nobel de Economia de 2005, Robert (Yisrael) Aumann, por suas pesquisas sobre a Teoria dos Jogos. A partir de três institutos centrais de pesquisa - Química, Microbiologia e Estudos Judaicos – a Universidade criou faculdades e diversos institutos que se dividem atualmente em quatro campi: Monte Scopus, Guivat Ram, Ein Kerem e Rehovot. A universidade oferece os cursos de graduação em hebraico e os de pós-graduação e de verão em inglês, quase todos. Dentre seus institutos de renome internacional, destacam-se o

instituto weizmann

Centro Médico Hadassa, principal faculdade de medicina do país, e as faculdades de Agricultura, Nutrição e Meio Ambiente. A UHJ mantém 209 programas de intercâmbio para estudantes com 95 instituições acadêmicas, em 24 países; 220 pesquisadores de pós-doutorado, em 26 países; 320 acordos de cooperação com instituições de 44 países, além de receber anualmente alunos do exterior para os diversos cursos oferecidos pela Rothberg International School.

Instituto Weizmann de Ciências Localizado em Rehovot, o Instituto Weizmann de Ciências é uma das mais respeitadas instituições de pesquisa multidisciplinar no mundo, oferecendo apenas programas de pós-graduação. Possui cerca de três mil cientistas, estudantes, técnicos e equipe de apoio. Sempre em busca de novos caminhos no combate às doenças, desenvolver novas tecnologias e materiais e criar estratégias para proteger o meio ambiente, o Instituto foi destacado recentemente pela revista Nature como um dos dez mais inovadores do mundo (o único fora dos EUA). 64

Em seus laboratórios foram desenvolvidos os fundamentos de sete dos 25 medicamentos mais vendidos no mundo. Sua área de atuação é ampla e inclui desde Matemática, Física, Astronomia até Ciências do meio ambiente. Ali foi construído um dos primeiros computadores do mundo e criado o exame amniocentese, para mencionar apenas dois exemplos. Foi considerado um dos principais institutos multidisciplinares do mundo pelo U-Multirank de 2019 em duas categorias principais: publicações mais citadas e patentes concedidas. O estudo, realizado desde 2014, é uma iniciativa da Comissão Europeia e coleta informações sobre centenas de institutos, no mundo todo. Em 2009, a professora da instituição, Ada Yonath, foi vencedora do Prêmio Nobel de Química, após mapear os ribossomos — estruturas celulares responsáveis pela produção das proteínas.

Universidade de Haifa Fundada em 1963, a Universidade de Haifa tem aproximadamente 18 mil alunos distribuídos nas áreas de Humanidades e Ciências Sociais, Direito, Bem-Estar Social, Ciências da Saúde, Ciências da Educação, Economia, Ciências da Engenharia, Ciências Naturais, Negócios e Gestão, e Ações Comunitárias. É a instituição de ensino mais importante do Norte de Israel, dedicando-se tanto à formação dos alunos para um mercado competitivo quanto à pesquisa e desenvolvimento, além de atuar para o fortalecimento da economia regional. Um de seus princípios mais importantes, é a manutenção de um ambiente acadêmico multicultural e de tolerância.


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e educacional de toda a região do Neguev. Mais de 6 mil alunos estão envolvidos em uma série de projetos comunitários e sociais.

Com seis faculdades, 56 departamentos, oito escolas e 69 centros e institutos de pesquisa, a Universidade de Haifa vem conquistando o reconhecimento internacional em uma série de campos, entre os quais, Saúde Pública, Segurança, Estudos do Holocausto, Pesquisa do Câncer, Neurociências, Bioinformática e Ciências Marinhas.

Transferência de Tecnologia

Universidade ben-Gurion A Universidade Ben-Gurion, em Beersheva, sul do Israel, foi fundada em 1969. Inicialmente denominada Universidade do Neguev, teve seu nome mudado em 1973, após a morte do lendário David BenGurion, que ocupou o cargo de primeiro-ministro após a criação do Estado, em 1948, e que era grande defensor do Neguev. Conta atualmente com 20 mil estudantes e, desde sua criação, já formou 130 mil alunos. Além dos cursos proferidos em hebraico, oferece, ainda, 18 programas de graduação em inglês, atraindo estudantes estrangeiros, e um programa de estudos no exterior. A universidade possui três campi principais: Marcus Family Campus em Beersheva; o campus de pesquisas em Sde Boker e um terceiro campus em Eilat. É sede também de vários outros institutos, como o Instituto Nacional para Biotecnologia do Neguev; o Instituto Nacional de Energia Solar; o Instituto Ilse Katz para Nanociência; o Instituto Jacob Blaustein para Pesquisa do Deserto; o Instituto Ben-Guiron para Estudo de Israel e do Sionismo e o chamado Heksherim, Instituto de Pesquisa para Literatura e Cultura Judaica e de Israel.

universidade ben-gurion

Como as demais universidades israelenses, a Ben-Gurion também desenvolve projetos de pesquisa e desenvolvimento em várias áreas, envolvendo alunos e professores em seus avançados laboratórios e mais de 60 centros interdisciplinares de pesquisa. Neles, também, a pesquisa básica caminha ao lado da pesquisa aplicada. É considerada líder em pesquisa ambiental e sustentabilidade, tendo criado um projeto denominado “Campus Verde”, através do qual investe em pesquisas para energias alternativas e renováveis. A universidade é parceira de instituições públicas e empresas na implantação do Parque de Tecnologias Avançadas, localizado próximo ao Marcus Family Campus, beneficiando o desenvolvimento regional através da criação de um polo de tecnologia inovador na região, com a presença de multinacionais e grandes empresas israelenses. Próximo ao parque será erguido o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Alta Tecnologia das Forças de Defesa de Israel. A universidade tem sido uma peça fundamental no desenvolvimento industrial, agrícola 65

A transferência de tecnologia das universidades para o setor industrial faz parte da rotina acadêmica de Israel. Assim sendo, há décadas vêm sendo criados Escritórios de Transferência de Tecnologia (ETT) em todas as universidades e na maioria dos centros e institutos de pesquisas do país. Estes ETTs têm gerado mais dividendos resultantes de registros de propriedade intelectual do que o que se vê em muitos países, nos últimos anos, à exceção dos Estados Unidos. Por trás desse sucesso há dois pontos a destacar: de um lado, o setor militar, que concentra suas pesquisas em poucas áreas, incluindo grandes volumes de dados e criptografia; do outro, as universidades, ativas em vários outros segmentos. Mais recentemente, na área de Biofarma. Os ETTs têm sido responsáveis por boa parte das inovações e avanços de Israel, com a criação de empresas e acordos de licenciamento para a indústria oriundos de pesquisas das nove universidades israelenses e 11 instituições de pesquisa nacionais. Em 2019, foram responsáveis por quase mil pedidos de registro de patentes e pela criação de mais de 70 start-ups. Atuam como braço comercial das invenções e descobertas desenvolvidas pelos professores e estudantes, sem perder de vista seus objetivos de formação de profissionais de excelência e investindo no aprimoramento da pesquisa básica. Recentemente têm-se voltado, também, para suas aplicações no mercado financeiro. setembro 2020


LIVROS

O SHABAT, SEUS MISTÉRIOS E SEUS SABORES Para entender o que é o Shabat é preciso vivenciá-lo, diz Pessy Gansburg em seu livro “Shabat, costumes e tradições judaicas: uma perspectiva gastronômica através dos tempos”

O

Shabat é o dia em que, para um judeu, a vida mundana é interrompida; cessam o corre-corre do diaa-dia, os telefonemas, o trabalho diário... tudo fica em suspenso.

É o dia que nos faz refletir, que nos lembra, semana após semana, que D’us é o verdadeiro Criador do Universo e, nesse dia, a glória de D’us se torna mais perceptível na Terra. O Shabat é a manifestação da sefirá feminina de Malchut, a Realeza, uma sefirá que representa a Shechiná – a presença iminente de D’us no mundo. Não surpreende, portanto, o fato de a mulher desempenhar um papel fundamental no cumprimento da observância do dia sagrado. É ela que faz as chalot, acende as velas de Shabat, prepara

o jantar festivo, arrumando a mesa com toda a dignidade que o dia requer. Para cada judeu, de forma especial, o dia traz a lembrança de uma imagem, um perfume, um sabor, uma música. As velas acesas, a mesa posta, o perfume das chalot – os pães trançados especiais para o Shabat –, filhos e amigos ao redor 66

da mesa, a voz do pai entoando as berachot para receber esse dia santificado. Tudo isso é gravado no coração e na alma judaica, através dos tempos. E Pessy Gansburg decidiu homenagear o Shabat publicando um livro diferente sobre o sétimo dia da semana, no qual ela mescla os costumes, as tradições e a espiritualidade judaica às suas deliciosas receitas.


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No livro “Shabat, costumes e tradições judaicas: uma perspectiva gastronômica através dos tempos”, a autora consegue entrelaçar a espiritualidade desse dia sagrado a dezenas de receitas excelentes e, ao mesmo tempo, simples. A receita de sua chalá, ou melhor, de suas chalot de vários sabores, é imperdível. Mesmo para os mais inexperientes na cozinha é impossível não conseguir acertá-la. Judia norte-americana, Pessy cresceu em Crown Heights, centro do movimento Chabad. Casou-se com o Rabino Noach Gansburg, que era shaliach, emissário do Rebe na Itália, e que, na época, estava estudando na ieshivá em Nova York. O casal foi enviado, em 1987, para atender a comunidade de Porto Alegre, no sul do Brasil. Nas palavras de Pessy, fomos em “uma missão do Rebe Menachem Mendel Schneerson levar o judaísmo àquela cidade que, para nós, parecia ser o último cantinho do mundo”. “A prática da Cashrut era praticamente inexistente em Porto Alegre”, revela Pessy. “Carnes e galinhas que consumíamos tinham que vir de São Paulo. Para os laticínios, íamos direto às fazendas, levando aqueles galões de leite, antigos, e eu fazia, em casa, manteiga, creme de leite, queijo, iogurte. E qualquer produto que eu precisasse, era eu quem tinha que torná-lo casher, pois não havia de onde encomendar nenhum alimento que atendesse às leis alimentares judaicas. Foi aí que eu vi que tinha que aprender a cozinhar, eu mesma.... Mas na época não havia Google...

e, para perguntar à minha mãe, uma excelente cozinheira, as ligações telefônicas para os Estados Unidos eram muito caras … Eu me guiava por dois livros de receitas casher. E foi assim, de certa forma, que aprendi a cozinhar, sempre tendo que improvisar muito, pois essas receitas usavam produtos que obviamente não eram encontrados em Porto Alegre. Tive mesmo que aprender a adaptar as receitas ao que eu tinha à mão. Começamos a convidar as pessoas para passarem o Shabat conosco. E quando você convida uma pessoa ou uma família para partilhar com você o jantar de Shabat, a mesa se torna um ambiente alegre, a casa fica mais leve e divertida. Então o Shabat e as nossas festas passaram a ser as ocasiões em que convidávamos as pessoas e, nessas ocasiões, mostrávamos a eles a beleza do Judaísmo. Assim fomos conhecendo a kehilá, a comunidade de Porto Alegre. Eu fazia chalot, preparava entradas, saladas, um kuguel1, o guefiltefish, tradicional peixe dos judeus ashquenazis, e as pessoas gostavam muito. Era o espírito do Shabat, com pessoas alegres, reunindo-se numa ocasião importante em nossa semana, e essas ocasiões eram muito apreciadas por todos”. “Então, desde o início de nossa shlichut, de nossa missão, a cozinha

judaica foi minha contribuição como uma enviada, uma shlichá do Rebe de Lubavitch, do movimento Chabad. O Rebe costumava dizer que um shaliach, seu enviado, era sempre uma “metade”, e por isso precisava ser completado com sua shlichá! Pessy quis compartilhar esse aprendizado que, de fato, a levou a se tornar uma verdadeira chef de cuisine judaica. O primeiro livro de receita que publicou foi há vários anos, com receitas de Pessach. Publicou também um lindo livro para as meninas de 12 anos, sobre o significado de ser Bat-Mitzvá, que constitui um verdadeiro guia do papel da mulher judia. Com o passar do tempo, já em São Paulo, e em contato com outras comunidades judaicas, ela foi-se especializando em receitas do cardápio sefaradi. Sua chalá de zaatar, por exemplo, é o maior sucesso. Agora, com esse belo livro “Shabat, costumes e tradições judaicas: uma perspectiva gastronômica através dos tempos”, publicado pela editora Novo Horizonte, Pessy fará parte da vida de muitas famílias que, através de suas receitas, poderão compartilhar de um jantar de Shabat saboroso e cheio de espiritualidade.

Lekach de mel, tradicional bolo servido em Rosh Hashaná

Kuguel é um bolo salgado, assado, feito comumente com macarrão ou batata. É um prato judaico ashquenazi tradicional, frequentemente servido no Shabat e no Yom Tov, dias de festa.

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HISTÓRIA

SAFED – REFÚGIO DE CONVERSOS NO SÉCULO 16 POR REUVEN FAINGOLD

A pequena Safed ou Tzfat, em hebraico, é uma cidadezinha da Galileia Incrustada no pé de uma colina e cercada por montanhas. Berço do misticismo judaico, foi um porto seguro onde se estabeleceram, no século 16, inúmeros conversos em fuga durante a Inquisição. Os anseios messiânicos, aliados à enorme vontade dos conversos de retornar ao Judaísmo, fazem parte desta heroica e desconhecida epopeia da História Judaica

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zfat é uma das quatro cidades mais sagradas no Judaísmo, juntamente com Jerusalém, Hebron e Tiberíades, e é um dos principais berços da mística judaica, a Cabalá. O maior cabalista de todos os tempos, Rabi Yitzhak Luria, o Ari HaKadosh, Ari, o Santo, lá se estabeleceu. A cidade foi o lar de outras grandes figuras da História Judaica, entre eles, Rabi Yossef Caro, o autor do Shulchan-Aruch (Código de Lei Judaica); Rabi Moshé Cordovero, professor do Ari e autor da obra cabalística Pardess Rimonim; e Rabi Shlomo Alkabetz, autor do Lechá-Dodi, hino litúrgico cantado no Shabat em todas as sinagogas do mundo.

Outro grande sábio de Tzfat foi o Rabi Yakov Birav - o rabino-chefe da comunidade. Rico e generoso, homem de grande sabedoria e conhecedor profundo do Zohar, o Livro do Esplendor, Rabi Birav quis restabelecer o Sanhedrin - a Suprema Corte Judaica - para acelerar a vinda do Mashiach. Encontrou-se uma resolução para reconvocar o Sanhedrin baseada numa legislação de Maimônides que pedia a convocação dos rabinos mais sábios, eruditos e íntegros. Um deles seria escolhido e autorizado a conceder Smichá1. Tudo isso foi organizado em Tzfat e implementado no ano de 1538.

EXÍLIO EM ERETZ ISRAEL Em sua interpretação do Livro de Isaías (43:6), Rabi Isaac Abravanel escreve: “Foi no ano de 5252 (1492), quando o Espírito Divino agiu e os Reis da Espanha expulsaram 300 mil almas de seus Reinos, saindo pelo Ocidente rumo à Terra de Israel. Saíram não apenas os judeus, mas também os anussim2 que haviam abandonado a Torá migrando todos para lá, reunindo-se na Terra Santa”.

Smichá - Palavra derivada de um termo hebraico que significa invocar ou estar autorizado. Refere-se à ordenação de um rabino no judaísmo, que passa oficialmente a possuir autoridade para dar conselhos ou julgamentos de acordo com a Lei judaica. 2 Anusim ou anussim é o termo empregado na literatura rabínica para designar os judeus convertidos à força ao Islã ou ao Cristianismo, mas que continuaram clandestinamente guardando os ritos e costumes judaicos (criptojudeus). Para os judeus convertidos a força na Península Ibérica costuma-se usar, na literatura não rabínica, termos como “conversos”, “cristãosnovos” ou o pejorativo utilizado pelos cristãos-velhos espanhóis, “marranos”, que significa porcos. 1

Entre 1492-1497 encerra-se, na Península Ibérica, o “Tempo dos Judeus”, uma época de florescimento político, social e cultural dos judeus ibéricos, dando 68


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VISTA PANORÂMICA DE TZFAT

início ao “Tempo dos Conversos”, um período de perseguições inquisitoriais e sofrimento. Cabe notar que, na Península Ibérica, o “Tempo dos Judeus” se estende aproximadamente do ano 711, quando da conquista muçulmana da Península, até 1492, ano em que os Reis Católicos expulsaram maciçamente a população judaica da Espanha, e o ano 1497, data do decreto de Dom Manuel I determinando a expulsão e a conversão forçada dos judeus que viviam em Portugal. O “Tempo dos Judeus” coincide com o tão decantado período na história da Península Ibérica de convivência relativamente pacífica entre as três religiões monoteístas. Para sermos mais precisos, o “Tempo dos Conversos” começa quando os Reis Católicos estabeleceram a

CHANUKIÁ COM OS “DEZ MANDAMENTOS”, SINAGOGA RABI YOSEF CARO

Inquisição na Península Ibérica (V. matéria à pág. 42) legitimando um período de terror e perseguições. Durante o “Tempos dos Conversos” milhares de judeus e conversos deixaram os territórios ibéricos em busca de paz e liberdade religiosa. Dentre os primeiros exilados estava o Rabi Isaac ben Judah Abravanel, o administrador e fiel conselheiro dos Reis Católicos. 69

Ao analisar as ondas migratórias de conversos para Eretz Israel, percebe-se que, durante 40 anos (1492-1532), não há nenhuma leva de imigração para a região. Num primeiro momento, os conversos constituíram uma grande diáspora hispano-portuguesa espalhada em países próximos à Espanha e Portugal e por todo o Mediterrâneo. Fundaram suas comunidades na Europa Ocidental, na França, Itália, Países Baixos, Holanda e Reino Unido; no Império Otomano, especialmente em Istambul e Salônica (hoje, Tessalônica), e em outras inúmeras cidades do norte da África, principalmente no Marrocos.

CONVERSOS EM ERETZ ISRAEL Os documentos são lacônicos quanto à presença de conversos em setembro 2020


HISTÓRIA

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1. INTERIOR DA SINAGoGA KOSOV 2. BIBLIOTECA DA SINAGOGA RABI YOSEF CARO 3. TÚMULOS de Tzadikim NO CEMITÉRIO DE TZFAT

Jerusalém, no século 16. O “Itinerário de Peregrinação a Terra Sancta” de Frei Pantaleão de Aveiro, um franciscano português que visitou a Terra Santa em 1565, comenta que “desde a conquista do Oriente Médio pelos turcos, há em Jerusalém um número de judeus pobres; e que os ‘portugueses’ são 30 indivíduos, um deles médico importante de Évora de nome Barbosa”. Em outro trecho da obra Pantaleão escreve que “nas proximidades do túmulo do Profeta Samuel (Nebi Shmuel) se estabeleceram judeus portugueses e castelhanos”. É muito possível que as expressões “portugueses” e “judeus portugueses” sejam uma referência aos conversos de origem lusitana. Com a conquista da Terra de Israel pelo Império Otomano, no início do século 16, a pequena Tiberíades surge como um sonhado porto seguro para conversos hispanoportugueses. Viajantes que chegaram à Terra Santa e visitaram o território arrendado aos conversos pelo sultão otomano descrevem Tiberíades como “um verdadeiro paraíso”. O projeto colonizador de Tiberíades contou com o apoio do sultão Salim II e visava manter um território autônomo para os conversos. Os recursos para viabilizar esta importante obra filantrópica foram disponibilizados por Doña Gracia Mendes Nassi (La Señora) e seu sobrinho Dom Joseph Mendes

CONVERSOS EM SAFED

RABI yosef caro

Nassi. Essa família de banqueiros espanhóis escolhera, em 1492, o exílio à conversão, refugiandose em Portugal, onde foram convertidos à força, em 1497. No entanto, a família Mendes nunca abandonou as Leis de Moisés. Documentos emitidos por cortes judaicas se referem aos irmãos Francisco e a Diogo Nassi como “Rabis Anussim”, responsáveis por conduzir as orações entre os conversos. E era em prol destes que Doña Gracia e Dom Joseph trabalhavam, não medindo custos e nem perigos. De acordo com os dois, Tiberíades tinha o potencial de se tornar uma província judaica semiautônoma, onde os judeus poderiam estabelecer-se e viver em segurança. 70

O século 16 se caracterizou pela intensificação das perseguições inquisitoriais que ocorriam em terras cristãs. As fontes judaicas da época descrevem Safed como um importante refúgio de conversos. Um dos sábios da cidade dizia: “Os anussim …. chegam às nossas terras para voltar ao Judaísmo”. Lá, fundam comunidades autônomas com pessoas sedentas por debater questões de Halachá. Esta literatura aborda temas vinculados ao status dos conversos em suas congregações. Dentre as perguntas mais frequentes incluíam-se: São os conversos ainda parte de Israel? Que deverão fazer para reintegrar-se às novas comunidades? Estes eram alguns dos principais assuntos debatidos em Jerusalém, Tiberíades e Safed, como também nas comunidades da “diáspora hispano-portuguesa” e no Império Turco-otomano. Dentre os temas que preocupavam os conversos podemos citar o status individual de cada um deles frente à sua congregação, direitos de herança, a questão de serem ou não aptos a preencher funções destinadas aos Cohanim (sacerdotes), podiam consumir e abençoar o vinho casher e, caso não pudessem, poderiam ser convocados pelo tribunal rabínico para prestar testemunho?


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Certa vez, o renomado cabalista Rabi Salomão Ha-Levi Alkabetz (1500-1576) redigiu uma oração sobre a Gueulá (Redenção), lembrando aqueles conversos portugueses que heroicamente fincaram raízes em Eretz Israel. Assim escreve esse autor do “Lechá Dodi”: “Houve aqueles que foram forçados a se converter, sendo feridos amargamente em sua honra. Houve aqueles que foram forçados a se ajoelhar a outro D’us, morrendo queimados pela ‘Santificação do Nome de D’us’ (al Kidush Hashem) nos autos-da-fé; sacrificando a vida de filhos e filhas para não profanar Teu Nome.... Agora seus espíritos anseiam ascender ao Monte Sion, o Monte do Todo Poderoso... Eles se congregam diante de Ti e como leões chegam para inclinar-se frente a Ti nesta Terra Sagrada, deixando para trás bens, conforto, dinheiro e ouro, hoje distantes de Eretz Israel”. Através dessa oração é possível sentir o respeito e a admiração que os conversos chegados há pouco tinham por Safed e pela Terra de Israel. Esses conversos voltavam abertamente ao Judaísmo, procurando redimir seus erros por intermédio de flagelos. Entendiam que suas transgressões (averot) precisavam ser punidas com um castigo físico. Esta visão dos anussim se origina numa antiga tradição judaica, que reza que para cada transgressão existe um castigo, ideia que já era presente no movimento martirológico judaico dos “Chassidei Ashkenaz”, vigente durante as Cruzadas. Os conversos denominavam os “Cinco Livros de Moisés” de Brívia ou Bíblia. Na Península Ibérica os conversos não podiam usar abertamente nenhuma terminologia judaica.

portugueses, estes últimos foragidos da Inquisição. O segundo peregrino é o já mencionado Frei Pantaleão de Aveiro. Este franciscano, que para alguns estudiosos teria origem conversa, oferece relatos curtos acerca da vida judaica nas diferentes cidades santas do Oriente Médio. Peregrino, mantinha diálogos com judeus portugueses, mas procurava esquivar-se das polêmicas e discussões teológicas com seus conterrâneos cristãos. arizal synagogue

ARCA DA ALIANÇA, SINAGOGA ARI HAKADOSH, em Tzfat

Outras fontes para o estudo dos conversos são os textos redigidos por dois viajantes cristãos. Um deles é o peregrino espanhol Juan Perera, que visitou Safed em 1552. Em sua vasta obra “Camino y peregrinación desde Roma a Jerusalém” (1619), registra a existência de judeus na cidade, basicamente espanhóis e

Frei Pantaleão de Aveiro foi informado que em Safed habitavam mais de 400 judeus, a maioria nascidos em Portugal. Mesmo que estes dados não sejam exatos, é importante enfatizar que a maioria dos judeus lusitanos que chegavam a Safed eram descendentes de judeus convertidos à força em Portugal, em 1497. Eles ensinavam a seus filhos a “Bíblia”3 em ladino. O rabino de Fez, Issaschar Ibn Sussan (1539-1572), que traduziu a “Bíblia” ao árabe, afirmava que “entre conversos há alguns sábios e cultos, versados nas interpretações bíblicas”.

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entrada da Sinagoga do Arizal, de rito ashquenazi, em Tzfat

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HISTÓRIA

A presença de conversos portugueses em Safed pode ser constatada nos arquivos de Istambul. Lá estão arquivadas listas de contribuintes tributados pelo governo turcootomano, que registram a tributação da totalidade dos habitantes da Terra Santa desde o estabelecimento definitivo dos otomanos, em 1517. Nelas, os conversos são denominados de “portugueses”. Os dados estatísticos dos contribuintes judeus de Safed estão distribuídos em três listas, sendo que cada uma elenca o nome do contribuinte ou a congregação tributada. Na primeira lista, de 1525-1526, constam 21 casas de famílias portuguesas. Numa segunda, de 1555-1556, contabilizam-se 143 casas de família lusas e, na terceira, dos anos 1567-1568, encontram-se 200 casas de família portuguesas. Mesmo havendo um possível erro na documentação, é evidente que, em quatro décadas, foi gigantesco o crescimento da população conversa da cidade. A comunidade dos “portugueses” era superada numericamente apenas pelos judeus “castelhanos”, os anussim vindos da Espanha.

MOTIVAÇÕES MESSIÂNICAS Vários são os motivos que levaram inúmeros conversos a escolher a Terra Santa como refúgio diante das perseguições dos tribunais da Inquisição e suas fogueiras. Mas, é provável que o fluxo de conversos

RUA ESTREITA DE TZFAT E DETALHE COM A PALAVRA “SHALOM”

a Eretz Israel, em geral, e a Safed, em particular, atendesse também a fortes anseios messiânicos. A catástrofe vivida pelos judeus ibéricos, com o Edito de Expulsão da Espanha, em 1492, e o batismo forçado em Portugal, em 1497, influenciou-os decisivamente na escolha de um novo lar onde recomeçar. A expulsão de 1492 foi interpretada como o fim de uma era de prosperidade e criatividade para o Judaísmo espanhol. Havia nessa população judaica um profundo sentimento escatológico e messiânico. O Judaísmo na Península Ibérica chegava a seu fim e, portanto, a chegada a Safed era um alivio espiritual, pois lá poderiam voltar a observar abertamente seu Judaísmo. O ano de 1492 retoma a ideia messiânica da qual não se separaram os judeus, em todos os tempos, entre eles os conversos. Esta eterna crença judaica inclui uma contagem regressiva (sfirat haketz) para a volta do Messias. Rabi Dom Itzhak Abravanel dedicou uma trilogia a essa ideia. Para Rabi Abravanel, a chegada do Messias redimirá todos os judeus desgarrados do rebanho de Israel. Entre eles, serão reunidos na cidade santa de Jerusalém os judeus assassinados pela Inquisição.

Pôr-do-sol no bairro dos artistas, em Tzfat

As expectativas messiânicas difundidas pelos conversos chegaram rapidamente à Terra de Israel, assim como às comunidades estabelecidas em Roma, Livorno, Ferrara, Ancona, Veneza, Amsterdã, Antuérpia, Londres, Paris, Marselha, Nantes, Bordeaux, Constantinopla e Esmirna. Esta efervescência messiânica jamais deixou de palpitar nos corações dos judeus e conversos ibéricos desde a fatídica Expulsão. 72


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A cidade de Safed ficou famosa por ser um centro de expectativas e vivências messiânicas, pois segundo o “Livro do Esplendor” (Sefer HaZohar), o Messias se revelará na Galileia. O cabalista Rabi Abraham Ben Eliezer Ha-Levi (15401600) afirmou: “Não sabia que toda semente de Redenção precisa florescer em Jerusalém, apenas sei que quando o Messias se apresentar será na Galileia; e será uma Redenção libertadora, tanto para os moradores da Terra de Israel como para aqueles que a visitam”.

VIDA COMUNITÁRIA EM SAFED A primeira leva migratória de 21 exilados é talvez a do ano de 1525. Nos anos de 1530, 1540 e 1550 este número deve ter crescido exponencialmente como resultado do estabelecimento do Santo Ofício da Inquisição em Lisboa, em 1536. Em relação à vida comunitária dos conversos de Safed, a documentação pouco informa. Qualquer referência à “comunidade de portugueses” (Kehilat Portugal), sempre deverá ser entendida como a “comunidade dos conversos portugueses”. Os portugueses mantinham financeiramente suas próprias instituições, entre elas a Sinagoga Portuguesa e o Tribunal “Kahal Kadosh” português (K”K, da Comunidade Sagrada de portugueses). Em carta dos rabinos de Safed aos de Modena, os primeiros se referem ao “Kahal Kadosh” lusitano como uma entidade autônoma que atua junto à kehilá (comunidade) dos asquenazitas e dos provençais. Uma importante instituição fundada pelos conversos de Safed foi a “Associação de Retornados

entrada da Sinagoga Aboab, em Tzfat

ao Judaísmo” (Chevrat Baalei Teshuvá). Seu objetivo era redimir os pecados de seus membros através da flagelação (halka’á), a reclusão para introspecção e orações especiais. Num texto do Rabi Yaacov Birav (14741546), citando Rabi Shimon ben Tzemach Duran (1361-1444), aparece o termo “Baalei teshuvá” (retornados ao Judaísmo), em referência aos conversos. Também o Rabi Ovadia de Bartenura (1445-1515) denomina os conversos “Baalei teshuvá”. Esta “Associação de Retornados” é lembrada em documentos sobre costumes de Safed e em outros textos de sábios. Assim, o grande Rabi Abraham Ha-Levi nos comenta que “os membros dessa Associação jejuam e rezam minchá chorando aos prantos e se autoflagelam, alguns o fazendo todos os dias, enquanto outros, duas ou até três vezes por semana. Eles acordam no meio da noite para estudar, vestem-se de preto e deitam-se no chão lamentando a destruição do Templo de Jerusalém”. Rabi Moisés de Leiria oferece valiosa informação acerca da 73

Interior da sinagoga Aboab, em tzfat

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HISTÓRIA

“Associação de Retornados”. Ele ficou estupefato, ao ver que, “Erev Rosh Chodesh” (véspera do início do mês), os conversos se congregavam em suas sinagogas e ieshivot, passavam o dia rezando, jejuando e chorando pela destruição do Templo, por seus pecados e os de seus antepassados”.

IDENTIDADE DOS CONVERSOS As levas migratórias dos conversos que chegaram a Safed durante a segunda metade do século 16 compunham-se de judeus de origem espanhola, que, com a expulsão de 1492, foram obrigados a deixar o país ou se converter. Entre os que abandonaram em 1492 a Espanha estavam 600 famílias abastadas que conseguiram permissão de se estabelecer em Portugal. Quase todos eles tinham sobrenomes hispânicos. Poucos adotaram sobrenomes portugueses, como os Sagres (nome de importante cidade lusa), cujos descendentes eram reconhecidos sábios dessa cidade cabalística nos séculos 16 e 17.

renomada família Guedalya. Entre os conversos lisboetas que fugiram da cidade de Lisboa na perseguição de 1506 está Yehudá Guedalya, que tinha uma gráfica nessa cidade. Ao fugir para Salônica, também trabalhou na gráfica de Eliezer Toledano, abrindo mais tarde sua própria gráfica nessa mesma cidade. O pai de Yehudá era o “Mestre Pedro”, médico na corte portuguesa.

A CONVERSÃO FORÇADA Definir o termo converso não é tarefa fácil. Estamos falando de judeus que abandonaram o Judaísmo à força, tendo muitos entre eles se tornado cripto-judeus, mantendo, no maior sigilo, as Leis e festas judaicas. A Inquisição e a população cristãvelha os acusava de “judaizar“. Rabinos e cabalistas de Safed trazem detalhes relevantes sobre a

As flagelações e a reclusão ascética das quais falamos acima testemunham o grau de arrependimento por eles terem sido forçados e terem concordado em abandonar a fé de seus ancestrais. Reafirmam a persistência e devoção desses retornados às comunidades de Israel. Por isso, há historiadores que falam desses convertidos como almas que foram obrigadas a transitar por um mundo duplo, sendo considerados verdadeiras “almas em litígio”. Com muita emoção, Rabi Salomão Ha-Levi Alkabetz registra: “O judeu que acredita com fé sincera e pura, está disposto a sofrer e entregar sua própria vida em Nome de D´us (al Kidush Hashem), jamais temerá morrer por Ele, sempre com o objetivo de não transgredir sequer o menor dos preceitos e mandamentos da Torá. E mesmo que a maldade o assole, seu coração ficará feliz em poder honrar o Criador”.

A família de Moisés de Leiria, mencionado anteriormente, vivia em Leiria desde o século 15 e tinha raízes nesta antiga vila portuguesa. Outro judeu de nome Yosef de Leiria é citado na Responsa do do renomado sábio Rabi Yaacov Birav. Inclusive Rabi Moisés Cordovero (sábio natural de Córdoba) teve em sua genealogia alguns ancestrais lusos e não por acaso foi escolhido para servir na comunidade portuguesa de Safed. O Tribunal de Safed recebeu pedidos de divisão de heranças, um deles era o espólio de David Oliveira, filho da

“conversão forçada” desses novos cristãos. O tema os preocupava profundamente. Mesmo passadas duas a três gerações do “Édito de expulsão” de 1492, aqueles que escrevem sobre esta delicada questão o fazem com muita sensibilidade, narrando atos heroicos de “Kidush Hashem”. Perdão e compaixão são dois termos frequentes para descrever as provações enfrentadas pelos conversos, o que demonstra o enorme respeito e a admiração dos sábios de Safed por eles.

PÁTIO NUMA RUA DE TZFAT

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Rabi Moisés Alsheich Hakadosh (1508-1593) também descreve sob uma luz positiva a prática sincera de “Kidush Hashem” dos judeus conversos, que, uma vez convertidos, perseveraram na


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prática do judaísmo. O sábio de Safed faz uma diferença entre aqueles que rapidamente se entregaram à morte e aqueles que optaram por sofrer tormentos prolongados. Mas, afirma: “Todos eles são merecedores de louvores e devem ser considerados como excelentes exemplos de ‘Santificação do Nome de D´us’”. Um outro cabalista de Safed foi o prodigioso Rabi Moisés Cordovero (1522-1570), o maior discípulo de Rabi Yosef Caro. Para Rabi Cordovero, os conversos que foram testados em sua fé e se converteram não devem ser julgados e castigados por suas ações, por não serem ações sinceras, vindas do fundo da alma. Na obra “Or Yakar” (Luz querida) escreve: “Os anussim carregarão por toda a vida essa mancha (haver deixado o Judaísmo); mas nunca deverão ser punidos. O pecador

BIBLIOGRAFIA

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VISTA DE TZFAT MODERNA

intencional é o pior; este, sim, deve ser punido por seu pecado, uma vez que pode conduzir ao pecado os demais. Já ao converso, não há como negar-lhe a santidade”. Uma postura misericordiosa para com os anussim emerge também da obra “Reshit Chochmá” (Início da Sabedoria) do Rabi Eliyahu de Vidas (1518-1587). Em sua obra “Shaar Ha’ahavá” (O Portão do Amor), compara os conversos que retornaram à Providência Divina com a geração do Egito, pois ambos se libertaram não apenas da escravidão do corpo rumo à Redenção, mas também da escravidão espiritual que martirizava suas almas. Nos dois casos - conclui Rabi Eliyahu de Vidas - testemunhamos um amor incondicional ao D’us de Israel, à Torá e aos ensinamentos sagrados.

PALAVRAS FINAIS No século 16, Safed foi cidaderefúgio de conversos. Eles abandonaram sua máscara cristã e retornaram abertamente ao Judaísmo, estabelecendo várias comunidades de portugueses e mantendo costumes do judaísmo 75

sefaradi. O peso da conversão sempre esteve presente na vida destes seres humanos, que desejavam ser aceitos como judeus de qualquer forma e, para isso, até recorreram a flagelações, introspecção e jejuns. Não encontramos nos cabalistas de Safed uma postura única em relação aos conversos. A literatura cabalista traz opiniões diversas, demonstrando como a “questão dos conversos” preocupava a todos por igual. No entanto, fica evidente que a maioria deles mantém uma visão de compaixão, misericórdia, amor e aproximação com os conversos chegados à cidade. Fica gravada eternamente a bela frase do cabalista Rabi Moisés Cordovero: “Os anussim carregarão eternamente sua pecha, o defeito moral da conversão, mas jamais deverão ser punidos por suas transgressões, pois suas ações foram impensadas, posturas falsas, nada sinceras, que não surgiam do fundo do coração”. Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.

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