ANO XXVI - edição 105 SETEMBRO 2019
ANO xxvI edição 105 set 2019
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ANO XXVI - Setembro 2019 - Nº 105 Sinagoga de Colônia, Alemanha, à rua Glockengasse, inaugurada em 1861. Lamentavelmente também esta foi destruída na Kristallnacht, em 1939.
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Carta ao leitor Conta o Midrash a seguinte história: Rabi Yannai andava em uma estrada quando viu um homem de aparência nobre e impressionante. Pelo seu traje e conduta, supôs que se tratasse de um erudito. Sendo assim, convidou-o à sua casa e lhe ofereceu comida e bebida. Durante a refeição, tentou averiguar seu grau de conhecimento da Torá. Logo descobriu que esse homem, que aparentava ser um erudito, nada sabia sobre Judaísmo. Nunca havia estudado a Torá. Encerrada a refeição, Rabi Yannai pediu a seu convidado que recitasse o Birkat Hamazon (Bênção após as Refeições), mas ele nem sequer tinha conhecimento dessa bênção. Desapontado, Rabi Yannai insulta o convidado. Este, por sua vez, levanta-se e agarra seu anfitrião, dizendo, “Minha herança está contigo e tu a estás retendo, mantendo-a afastada de mim! ”. Perplexo com tal afirmação, Rabi Yannai pergunta: “Que herança tua está comigo?”. O convidado explica: “Uma vez passei por uma escola e ouvi vozes de crianças recitando: Torá Tzivá Lanu Moshé, Morashá Kehilat Yaacov – ‘A Torá que Moisés nos deu é a herança (Morashá, em hebraico) da congregação de Jacob’. Eles não disseram ‘a herança da congregação de Yannai’, e sim, ‘a herança da congregação de Jacob’ ”. Rabi Yannai compreendeu que não deveria ter menosprezado o convidado; a falta de conhecimento da Torá era resultado de ter sido privado de sua herança espiritual. Esse relato do Midrash é imbuído de um profundo significado. A história de Rabi Yannai e seu convidado, ocorrida há quase dois milênios, é extremamente relevante para nossa geração. Ensina que até mesmo um homem que não tinha praticamente nenhum conhecimento sobre o Judaísmo, sabia que a Torá era sua herança e que ninguém tinha o direito de mantêlo afastado da mesma.
De fato, a “herança da congregação de Jacob” – Morashá Kehilat Yaacov – pertence a todos os judeus, sem exceção. Nenhum indivíduo ou grupo pode reivindicar que a Torá é sua propriedade privada. A Torá não pertence apenas àqueles que são mais cuidadosos no cumprimento de seus mandamentos ou àqueles que moram na Terra de Israel; e nem mesmo aos que dedicam seu tempo a estudá-la. A Torá pertence a todo membro do Povo Judeu, mesmo àqueles que nem sabem o que representa. O fato de a Torá ser a “Herança da congregação de Jacob” significa que é um legado de D’us não apenas a nossos antepassados, mas também a nós e a todas as gerações futuras. Mesmo quem não possui nenhum conhecimento da Torá - como o convidado do Rabi Yannai - pode retornar e se reconectar, dizendo: “Estou retornando à propriedade dos meus antepassados”. E como a Torá é patrimônio de todo o Povo de Israel, deve ser transmitida a todos os judeus, inclusive àqueles que nem sequer sabem que possuem essa herança espiritual de valor infinito. A tarefa de devolver esse legado perdido a seus donos constitui uma responsabilidade sagrada de importância incalculável. Nesse novo ano que se inicia, a Revista Morashá reafirma seu compromisso de continuar a disseminar e a restaurar a herança eterna do Povo Judeu – Morashá Kehilat Yaacov – a seus legítimos herdeiros. Todos aqueles que contribuem a este projeto de alguma forma são parceiros nessa tarefa grande e sagrada. Que o ano de 5780 seja repleto de bênçãos para todos nós! Shaná Tová Umetuká – um ano bom e doce!
ÍNDICE
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32
54
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03 carta ao leitor
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Guia Espiritual para os
ATUALIDADES Reflexões após 25 anos da destruição da AMIA por BERNARDO KLIKSBERG
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ISRAEL As maravilhosas cavernas de Israel
06 nossas grandes festas Dez Dias de Teshuvá
nossas leis Algumas leis relacionadas a Yom Kipur
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nossas grandes festas Lições para os Sete Dias de Sucot
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PERSONALIDADE Enzo Sereni um nome para a história POR ZEVI GHIVELDER 4
REVISTA MORASHÁ i105
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42 40 ARTE
60 arqueologia
Festival Judaico de Cinema por JOEL RECHTMAN
Estrada da Peregrinação
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capa Os judeus na Alemanha medieval
israel Museu Amigos de Sion
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história A imagem do “outro” no conflito judaico-árabe
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SHOÁ Gyula Zilzer, o artista por REUVEN FAINGOLD
POR NIMROD ETSION KOREN
75 5
cartas setembro 2019
NOSSAS GRANDES FESTAS
Guia Espiritual para os Dez Dias de Teshuvá O mês judaico de Tishrei é o mais importante do ano. É repleto de dias sagrados judaicos. Os primeiros dois dias do mês são Rosh Hashaná; o 10o, Yom Kipur. No dia 15, começamos a celebrar a festa de Sucot, de sete dias, seguida por Shemini Atzeret e Simchat Torá.
O
fato de tantas festividades, incluindo os dias temíveis de Rosh Hashaná e Yom Kipur, serem celebradas em Tishrei confirma o enorme poder espiritual e potencial desse mês. Tishrei e seus dias sagrados são os principais centros de energia – o sistema nervoso cósmico – que impactam o ano inteiro.
surpresa o fato de tantos judeus se sentirem compelidos a ir à sinagoga. Mas, o que significa que Rosh Hashaná seja o Dia do Julgamento? Muitos creem que significa que nesse dia sagrado, deveríamos tremer perante D’us, temerosos da iminente ira Divina e seu castigo. Quem assim pensa está profundamente enganado em seu entendimento do que é Rosh Hashaná. O Ano Novo judaico é um momento de reverência, não de medo ou ansiedade. Em Rosh Hashaná, não mencionamos nem confessamos pecados. Pelo contrário, fazemos fartas e ricas refeições, usamos nossa melhor roupa e fazemos orações belas e emocionantes.
Este artigo é um breve guia espiritual para os Dez Dias de Teshuvá, que se iniciam em Rosh Hashaná e terminam no final de Yom Kipur. Preparamos, também, um artigo sobre a festa de Sucot, que se inicia na segunda metade do mês de Tishrei.
1 de Tishrei: Primeiro dia de Rosh Hashaná
Para chegarmos em Rosh Hashaná com o estado de espírito adequado, temos que entender o verdadeiro significado do Julgamento Divino. A Torá nos ensina que nosso relacionamento com D’us é uma parceria. E parceiros são responsáveis uns pelos outros. Rosh Hashaná é o dia em que D’us decide se irá renovar Sua parceria com cada um de nós. É o dia em que nos colocamos diante d’Ele para falar de nosso progresso no ano findo em cumprir a missão Divina que Ele nos legou. Rosh Hashaná é, também, o dia em que
Além de celebrar o nascimento da humanidade, pois foi no dia 1º de Tishrei que D’us criou Adão e Eva, Rosh Hashaná é o Yom HaDin – o Dia do Julgamento. Em Rosh Hashaná, D’us julga o mundo e todos os seus habitantes. Nesse dia, pedimos a D’us que nos julgue favoravelmente e nos inscreva no Livro da Vida. Considerando-se a extraordinária importância do dia – sem dúvida, o mais importante do ano – não causa 6
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o shofar
visualizamos o que pretendemos realizar ao longo do ano. Em Rosh Hashaná, a Corte Celestial se prepara para julgar e decidir se nosso mundo merece continuar existindo por mais um ano. E como o destino de toda a humanidade fica à mercê dessa decisão, esse dia exige extrema atenção e reverência. Com os sons do Shofar, nossas intensas orações e boas resoluções, levamos D’us a continuar interessado em Sua parceria conosco. No Dia do Julgamento, preocupa-nos saber se D’us continuará mantendo o mundo que criou. Pois, como explica a Cabalá, se, por um momento apenas, D’us parasse de recriar o Seu mundo, tudo voltaria a inexistir – como antes da Criação. Chegamos à sinagoga pouco antes do início de Rosh Hashaná para recitar a tradicional oração do
entardecer, a Minchá. Ensina a Cabalá que ao rezarmos a última Minchá do ano – enquanto o sol se põe antes do início de Rosh Hashaná – o mundo entra em um estado de sonolência: tudo para em um silêncio cósmico, por temor de que D’us não renove Seu contrato com a humanidade.
Tocando o Shofar no Kotel, Jerusalém
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E então, à medida que se inicia Rosh Hashaná, começa o despertar do mundo. Isso ocorre aos poucos, até que, na manhã seguinte, ocorre o pleno despertar quando é tocado o Shofar, que serve para vários propósitos. Um deles é para despertar o universo – e cada um de nós – daquele sono cósmico em que estávamos. Rosh Hashaná é o Dia do Julgamento e, durante os dois dias dessa festa, o destino do mundo todo espera por uma decisão dos Céus. Devemos estar alegres nesse dia por ser um dia sagrado e festivo, ou apreensivos, já que é o Dia do Julgamento? Por um lado, é o dia em que somos todos julgados pelo Rei e Juiz Supremo. Por outro, Rosh Hashaná é o aniversário da humanidade – um dia em que celebramos, com festa e júbilo, por ser quando, metaforicamente, “coroamos o Rei”: SETEMBRO 2019
NOSSAS GRANDES FESTAS
3 de Tishrei:
Um shofar e alimentos simbólicos de Rosh Hashaná
pedimos a D’us que mantenha seu interesse em Seu mundo, não abrindo mão de Seu reino. Rosh Hashaná é um dia de reverência e de celebração; como dizem nossos Sábios, “uma celebração envolta em apreensivo tremor”. Quando estamos perante o Rei Todo Poderoso, sentimos reverência, mas também o privilégio de estar diante do Rei de todos os reis, abençoado o Seu Nome. Ao nos colocarmos perante Ele, é tanta a alegria que queremos dançar – mas não o fazemos por respeito. Essa alegria merece uma expressão mais adequada; deve ser envolta em veneração e reverência.
2 de Tishrei: Segundo Dia de Rosh Hashaná Rosh Hashaná é uma festa de dois dias – não apenas na Diáspora, mas também em Eretz Israel. Desde a época do Templo Sagrado de Jerusalém, Rosh Hashaná era celebrado em dois dias pelos habitantes da Terra de Israel. Segundo o Talmud, esses dois dias constituem um único dia.
Isso significa que o Dia do Julgamento dura dois dias, ininterruptamente. Portanto, é um erro pensar que basta cumprir com os mandamentos de Rosh Hashaná durante um único dia. É imperativo fazer Kidush e ter refeições festivas nas duas noites e nos dois dias da festa. Também é necessário ir à sinagoga nos dois dias – não apenas no primeiro, como muitos fazem. Às vezes, o primeiro dia de Rosh Hashaná cai no Shabat, quando não se toca o Shofar. Quando isso ocorre, toca-se o Shofar apenas no segundo dia da festa. É importante lembrar que ouvir os seus toques é o mandamento central de Rosh Hashaná. Aquele que ouve os toques do Shofar em Rosh Hashaná atrai a misericórdia Divina sobre si próprio e sobre o mundo todo. Ao ouvir esses toques, cumprimos o mandamento bíblico que assegura que D’us irá renovar Seu contrato com a humanidade para o ano vindouro. Assim sendo, é de extrema importância que cada um de nós, judeus, ouça os toques do Shofar em Rosh Hashaná. Não é exagero dizer que o futuro do Povo Judeu – e do mundo todo – depende disso. 8
No 3º dia de Tishrei, guardamos o Jejum de Guedaliá, abstendonos de alimentos e bebidas do amanhecer até a chegada da noite. Esse jejum marca um evento ocorrido no ano de 423 AEC: o assassinato de Guedaliá ben Achicam, governador judeu da Terra de Israel, que esteve no cargo por um curto período após a destruição do primeiro Templo Sagrado de Jerusalém. Sua morte representou o fim do que restava de uma comunidade judaica que permaneceu na Terra Santa após a queda do Templo. Após seu assassinato, os judeus fugiram para o Egito. A partir do 3º dia de Tishrei, estamos a uma semana de Yom Kipur. Rabi Yitzhak Luria, o Arizal, o maior Cabalista de todos os tempos, ensinava que os sete dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur correspondem aos sete dias da semana e têm o poder de reparar e expiar por todos os dias do ano que findou. Por exemplo, o domingo entre Rosh Hashaná e Yom Kipur pode servir de expiação para todos os domingos do ano findo; o mesmo valendo para os demais dias da semana. O Shabat que cai entre Rosh Hashaná e Yom Kipur, conhecido como Shabat Teshuvá, é, portanto, um Shabat muitíssimo especial. É importante estar atento a nosso comportamento durante esses sete dias. Devemos fazer o possível para ir à sinagoga no Shabat Teshuvá, melhorando nosso cumprimento aos mandamentos desse dia santo. Durante sete dias e, em especial, no Shabat Teshuvá, é possível retificar muitos erros e transgressões cometidos durante o ano findo.
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se aplica a todos os seres humanos, até mesmo aos mais justos e espiritualmente elevados. Teshuvá é uma escada infinita que subimos em direção a D’us Infinito.
4 de Tishrei: Maimônides, o maior filósofo judeu e um dos maiores legisladores em Torá de todos os tempos, escreveu o seguinte em sua obra Leis da Teshuvá (3:4): “Uma pessoa deve ver a si próprio e ao mundo de forma equilibrada nas duas extremidades da balança – se fizer uma boa ação, isso inclina a balança, trazendo para a pessoa e o mundo todo redenção e salvação. Assim sendo, nos dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur, mais do que durante todo o ano, é costume aumentar a prática da tzedaká e das boas ações, bem como o cumprimento das mitzvot (os mandamentos Divinos). Maimônides nos ensina, com base no Talmud, que todo ser humano deve viver como se o destino do mundo todo repousasse sobre seus ombros. Isso significa que nenhum de nós deve pensar que somos apenas um entre as bilhões de pessoas do mundo. Devemos, sim, sempre agir como se o destino da humanidade dependesse de nós, estivesse em nossas mãos, e que, por meio de nossos pensamentos, palavras e atos positivos, pudéssemos trazer redenção e salvação para este nosso mundo. Como podemos trazer redenção e cura para o mundo? Por meio das orações, do estudo da Torá, de atos de bondade e generosidade e do processo de Teshuvá – um conceito muito mal interpretado. Teshuvá é um elemento central do Judaísmo, mas não significa o que muitos julgam. Teshuvá não é simplesmente o lamento por erros e transgressões, nem mesmo a decisão de cumprir um número maior de mandamentos da Torá. Teshuvá significa “retorno”. Essa palavra significa que o que D’us espera de nós é que “retornemos” – a Ele, à Sua Torá, à nossa herança espiritual e à nossa própria alma –
ou seja, retornar àquela parte de nós que é sempre saudável, boa e pura, como recitamos na oração matinal, “A alma que Tu me deste é pura”. Fazer Teshuvá significa retornar à Fonte e Origem de tudo – ao Altíssimo. E como Ele é Infinito, o caminho da Teshuvá é infinito e
Conta-se a seguinte história sobre o Tzemach Tzedek, o terceiro Rebe da dinastia Chabad-Lubavitch. Certa vez, quando ainda era criança, brincava em uma escada com outras crianças. Estas subiam até a metade da escada, e ele era o único que subia até o fim. Mais tarde, seu avô, o Rabi Shneur Zalman de Liadi – fundador e primeiro Rebe do Chabad-Lubavitch –, que observara enquanto o neto brincava na escada, perguntou-lhe: “Por que você não teve medo de subir até o topo, quando todos os seus amiguinhos só iam até a metade? ”. O menino, que ao crescer se tornaria um grande Rebe, mestre da Torá e fazedor de milagres, respondeu: “Nada demais...
Dois judeus rezando no Kotel, o Muro das Lamentações , Jerusalém
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NOSSAS GRANDES FESTAS
eu não olhava para baixo. Só para cima. Ao ver quão embaixo eu estava, sentia-me impelido a subir cada vez mais alto”.
Cabalá também dizia que quando choramos nesses dias, é um sinal de que estamos sendo julgados nos Céus.
A verdadeira Teshuvá ocorre quando olhamos para cima e continuamos a subir a escada infinita que, como no sonho de nosso Patriarca Yaakov, toca a Terra, mas chega aos Céus. Como disse o Profeta Isaías: “Erguei para o alto vossos olhares e percebei: Quem tudo criou? ...” (Isaías 40:26). Ao olhar para o alto, na direção
A partir de Rosh Hashaná e até Yom Kipur, a Corte Celestial reúne-se para julgar – não só o mundo em sua totalidade, mas também cada uma das pessoas e criaturas que nele habitam. E como não somos profetas, não sabemos exatamente quando nossos “dossiês” estão sendo analisados nos Céus, nos
qualquer momento nos sete dias entre Rosh Hashaná e Yom Kipur. Quando estamos espiritual e emocionalmente sensibilizados durante esses dias e as lágrimas nos vêm aos olhos, é provável que estejamos sendo julgados nas Alturas. E quando isso acontecer, é um bom momento de reavaliarmos nossa vida e tomarmos boas decisões para o ano que recém se inicia. Mas qual seria o significado do ensinamento do Arizal de que a alma de um judeu que não chora durante os Dez Dias de Teshuvá não está intacta? Isso quer dizer que o judeu que não se sente emocionado nesses 10 dias deveria reexaminar o estado de sua espiritualidade e seu relacionamento com D’us. Os Dez Dias de Teshuvá são o momento de maior força espiritual do ano. Quem não sente as lágrimas brotarem em seus olhos nesses dias deveria repensar se não se teria tornado espiritualmente insensibilizado – se sua alma não está profundamente adormecida.
6 de Tishrei:
A sinagoga Ashkenazi HaAri, Tzfat
dos Céus infinitos, sentimo-nos motivados a crescer e subir cada vez mais, para somente ir em direção ao Altíssimo. Isso constitui a verdadeira Teshuvá, um dos principais temas dos dez dias mais espiritualmente intensos do ano.
5 de Tishrei: Rabi Yitzhak Luria, o Arizal, ensinava que aquele que não chora durante os Dez Dias de Teshuvá, não tem a alma intacta. Esse mestre da
Dez Dias de Teshuvá. Poderia ser nos primeiros momentos de Rosh Hashaná, ao término de Yom Kipur, ou a qualquer momento nesse período. Mas o Arizal nos revelou que um sinal de que estamos sendo julgados pela Corte Celestial é aquele momento em que vertemos algumas lágrimas nos Dez Dias de Teshuvá. Há quem chore durante o toque do Shofar; há quem chore em Yom Kipur – durante o Kol Nidrei ou na Neilá. Outros podem, súbita e inexplicavelmente, lacrimejar a 10
Esse dia constitui o ponto central dos Dez Dias de Teshuvá. O Talmud nos ensina que esses 10 dias temíveis constituem o período a que se refere o Profeta quando proclama: “Buscai o Eterno no melhor momento para encontrá-Lo; clamai por Ele quando perto de vós está! ” (Isaías 55:6). Mas não está D’us sempre Onipresente? Como poderia estar mais próximo ainda durante os Dez Dias de Teshuvá? Nossos Sábios explicam que as palavras do Profeta Isaías falam a partir da nossa perspectiva, não da Divina. Houve época na história de nosso povo em que a Presença Divina era
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palpável. Por exemplo, aconteciam milagres no Templo Sagrado de Jerusalém diariamente: quem quer que visitasse a Morada de D’us podia testemunhá-los, sem haver sombra de dúvida sobre Sua Existência e Providência. No entanto, quando o Templo foi destruído, Jerusalém caiu e o Povo Judeu foi lançado ao exílio, a Presença de D’us no mundo foi ocultada. O grande mestre do Hassidismo, o Maguid de Mezeritch, revelou a razão para o exílio de nosso povo e a ocultação Divina. Sua explicação: D’us é como um pai que se esconde de seu filho quando brincam de “esconde-esconde”. D’us não Se esconde por querer afastarse de Seu filho, mas para evocar o desejo do filho de O procurar e O encontrar. Ao Se ocultar, o Pai Celestial desperta em Seus filhos a saudade d’Ele, pois não há alegria maior do que procurar e encontrar D’us. Há, no entanto, um risco inerente nesse jogo celestial. Se, após uma busca prolongada, a pessoa sente que não encontrou D’us, ela pode começar a se questionar se Ele está realmente presente no mundo. Desde que o filho saiba que seu Pai apenas está-se escondendo para que ele O encontre, não há problema. O filho continuará a procurá-Lo. O problema é quando a pessoa crê que não encontra D’us porque Ele está ausente – e não apenas escondido. Quando paramos de procurar D’us, por ignorância ou desespero, esquecemo-nos do simples fato de que D’us Se está ocultando; começamos a pensar que D’us nem está presente. O essencial, pois, é nunca parar de buscar D’us. Como D’us Se oculta de nós, e o Templo Sagrado não mais existe, e os profetas já não vivem entre nós – há muitos que questionam
Sua própria existência. Isso é terrível e que nunca nos ocorra tal pensamento. Outros julgam que D’us abandonou nosso mundo ou que está apenas perifericamente envolvido em nossa vida. A verdade é que D’us está completa e intimamente envolvido em cada mínimo detalhe da existência de cada um de nós, seres humanos ou criaturas, ainda que Ele oculte Sua Presença. O Judaísmo é uma busca contínua de D’us, sempre
lugares, como na Terra de Israel, particularmente em Jerusalém, é mais fácil encontrá-Lo – Sua Presença é menos oculta. O mesmo se aplica a certas épocas do ano. Há dias em que o Altíssimo está mais oculto e outros em que está menos obscurecido. Exemplificando: no início do mês de Menachem Av – o período mais triste e difícil de nosso ano, que culmina com Tishá b’Av –, a Presença Divina está mais oculta. No mês seguinte, Elul, Sua Presença
Um chassid e um soldado rezam no Kotel, jerusalém
presente, ainda que oculto. Oramos e estudamos a Torá e cumprimos seus mandamentos como uma forma de comungar com Ele: para buscá-Lo e O encontrar. E é enorme o júbilo de quem O procura e encontra. Mas se o filho desiste de encontrar Seu Pai Celestial, a ocultação é dupla – a ocultação do simples fato de que D’us apenas está oculto, jamais ausente. O grau de ocultação Divina depende de nossa perspectiva e, portanto, pode variar. Em alguns 11
se torna menos camuflada. Mas é no mês de Tishrei, especialmente durante os Dez Dias de Teshuvá, que Ele está menos oculto. Trata-se da época mais auspiciosa do ano para que nós, filhos, busquemos e encontremos nosso Pai em Seu jogo celestial de “esconde-esconde”. Era isso o que o Profeta tinha em mente ao dizer: “Buscai o Eterno no melhor momento para encontrá-Lo; clamai por Ele quando perto de vós está! ” (Isaías 55:6). Nos Dez Dias SETEMBRO 2019
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de Teshuvá, D’us está mais presente no sentido de que está menos oculto do que em outras épocas do ano. Temos, pois, mais consciência d’Ele e de Sua Presença, pois podemos senti-La mais perto de nós. Essa é a principal razão para tantos judeus – que nunca vão à sinagoga durante o ano – o fazerem em Rosh Hashaná e Yom Kipur.
7 de Tishrei: Estamos a apenas três dias de Yom Kipur. Como nos preparar adequadamente para esse dia tão singular? Compreendendo a tarefa extraordinária que todos nós, judeus, devemos executar em Yom Kipur: assumir o papel do Cohen Gadol, o Sumo Sacerdote. Antes da destruição do Templo Sagrado de Jerusalém, o ponto mais alto do serviço de Yom Kipur era quando o Cohen Gadol entrava no Kodesh HaKodashim – o Santíssimo. Era o único dia do ano em que se podia entrar nesse recinto mais sagrado do Templo e apenas o Sumo
Sacerdote tinha o direito de o fazer. Era um momento tão intenso que se o Sacerdote não estivesse totalmente puro – se tivesse cometido uma transgressão por pequena que fosse, e pela qual não tivesse expiado -, ele teria morte fulminante. Se isso acontecesse, os demais Cohanim teriam que remover seu corpo com uma corrente previamente amarrada em seu calcanhar. Mas se ele conseguisse o perdão Divino para o Povo Judeu, ele sairia irradiando um brilho especial, vividamente descrito nas orações de Yom Kipur. Hoje em dia não temos Sumos Sacerdotes para obter o perdão para todo o nosso povo, o Povo Judeu. Portanto, cada um de nós, sejamos ou não Cohanim, tem que tentar fazer seu papel. Em Yom Kipur, a sinagoga – que o Talmud chama de Mikdash Me’at (pequeno Tabernáculo) – representa o Templo Sagrado de Jerusalém. Muitos judeus têm o costume de se vestir de branco durante o dia de Kipur, lembrando o Cohen Gadol que só podia entrar no Santíssimo vestindo branco.
Gravura em madeira reproduzindo o Primeiro Grande Templo de Jerusalém,1886
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E com nossas orações, nosso jejum e nossa Teshuvá, tentamos replicar o que o Cohen Gadol tinha a honrosa missão de fazer ao entrar no Kodesh HaKodashim: obter o perdão Divino e expiar por todo o Povo Judeu. Em Yom Kipur, cada um de nós deve jejuar e orar e se comportar como se o futuro de todo o nosso povo dependesse apenas de nós. Devemos, pois, agir com a mesma atenção e seriedade que se exigia do Sumo Sacerdote quando entrava no Santíssimo. Em Yom Kipur, a missão de cada um de nós é emergir desse dia santificado como se fôssemos o Cohen Gadol ao sair do Kodesh HaKodashim, tendo cumprido sua missão com sucesso.
8 de Tishrei: Só faltando dois dias para o Yom Kipur, cabe a cada um de nós, judeus, refletir sobre o significado desse dia sagrado. Por que esse dia é tão especial e único? Por que é o dia do ano que mobiliza o coração e a alma de nosso povo, o Povo Judeu, como nenhum outro?
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preparamos para o dia grandioso que se iniciará logo após o pôr do sol.
Yom Kipur marca o dia em que Moshé, após implorar a D’us durante 80 dias para perdoar os judeus pelo pecado do Bezerro de Ouro, finalmente consegue obter o perdão Divino. Era o dia 10 de Tishrei – a data consagrada como Yom Kipur – quando D’us finalmente disse a Moshé: “Perdoei de acordo com tuas palavras”. Yom Kipur simboliza o vínculo eterno entre D’us e o Povo Judeu. Interessante notar que levou apenas 40 dias para que Moshé recebesse a Torá, de D’us, no Monte Sinai; mas levou o dobro do tempo, 80 dias, para que ele obtivesse o perdão para o seu povo, após o pecado do Bezerro de Ouro. Mas quando ele finalmente desce a montanha, em Yom Kipur, ele traz um novo par de Tábuas que nunca se quebraram, como ocorrera com as primeiras. Isso nos ensina que é muito mais difícil refazer um relacionamento após tê-lo quebrado do que fazê-lo pela primeira vez. Mas quando o conseguimos, esse relacionamento é mais forte do que nunca. Apesar do longo jejum e das proibições desse dia, Yom Kipur é uma data de grande júbilo. O Talmud ensina que é um dos dois dias mais felizes do ano por ser o dia em que D’us perdoa Seu povo pelas transgressões cometidas contra Ele. O outro é o dia 15 do mês de Menachem Av. Yom Kipur também é associado com a entrega da Torá, por ser quando Moshé voltou ao acampamento dos judeus com o novo par de tábuas dos Dez Pronunciamentos Divinos, os Dez Mandamentos, que constituem o núcleo dos 613 mandamentos da Torá.
Ao nos prepararmos para o jejum de 25-horas de Yom Kipur, é importante levar em conta que se trata de um jejum alegre, diferente do de Tisha b’Av, que é um jejum profundamente triste.
ReproduçÃo do Aron Hakodesh - a Arca Sagrada ou Arca da Aliança - ponto focal do Tabernáculo e do Templo de Jerusalém
vínculo com D’us é incondicional e eterno. Se o Todo Poderoso perdoou nosso povo pelo pecado do Bezerro de Ouro, Ele também há de nos perdoar pelos pecados que possamos ter cometido contra Ele.
9 de Tishrei: Esse dia, que antecede Yom Kipur, é de grande expectativa, pois nos
Uma das razões para a Torá determinar nosso jejum em Yom Kipur é que nesse dia somos intimados a transcender nossas limitações físicas para nos assemelharmos aos anjos. O trabalho, o alimento e a bebida, assim como outros prazeres físicos e preocupações nos distraem de nosso íntimo espiritual. Passamos praticamente o Yom Kipur inteiro no aconchego de uma sinagoga, e lá nos desconectamos do mundo exterior. Passamos o dia em oração; com nossa intenção totalmente dedicada a transcender o mundo físico e adentrar nosso íntimo espiritual mais puro – buscando nosso verdadeiro encontro com D’us.
VÉSPERA DE YOM KIPUR. LITOGRAFIA EM PAPEL, EFRAIM GRAWER, 1899
Yom Kipur é o dia mais feliz do nosso ano, pois nos ensina que nosso 13
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10 de Tishrei: Yom Kipur Ao contrário do que muitos pensam, Yom Kipur não é o dia mais sagrado do ano. A maioria das pessoas desconhece esse fato, mas o Shabat, cada um deles, é um dia mais santificado do que Yom Kipur. No entanto, não podemos negar que o Dia da Expiação é um dia singular: é o dia mais reverenciado do calendário judaico. É o último dia, o clímax dos Dez Dias de Teshuvá. Yom Kipur é nossa melhor oportunidade de fazer Teshuvá – de retornar a D’us, à Torá e ao ponto mais íntimo de nossa alma. Yom Kipur é o único dia do ano em que a dimensão mais interior de nossa alma se revela e brilha. A quinta dimensão da alma, a mais elevada - Yechidá (a unicidade) –, que representa a unicidade interior de nossa alma, somente é revelada em Yom Kipur. Essa é uma das razões para o Yom Kipur ser o único dia do ano em que rezamos cinco vezes: Arvit, Shacharit, Minchá, Mussaf e Neilá. A santidade é o tema do dia, por isso tentamos nos assemelhar aos anjos. O Maharal de Praga, um dos maiores Sábios e místicos nossos, famoso por ter concebido o Golem, ensinava: “Todos os mandamentos que D’us nos ordenou em Yom Kipur destinam-se a remover, ao máximo, nossa ligação com o mundo físico, até o ponto em que nos pareçamos totalmente a um anjo”. Em Yom Kipur, mergulhamos nosso ser inteiramente no mundo do sublime. E o fazemos minimizando de todas as maneiras nossa interação com o material. Não comemos nem bebemos, não mantemos relações conjugais, não nos banhamos, não usamos cremes
sefarim da sinagoga beit yaacov, são paulo
nem perfumes, e tampouco usamos calçados de couro. Procuramos não dormir muito, pois as orações da noite são longas e passamos praticamente o dia inteiro na sinagoga, imersos em oração. Investimos nossa energia na data de Yom Kipur por ser o dia mais auspicioso para fazermos Teshuvá – para modificar nossa vida e ascender espiritualmente – e assim alcançar o perdão Divino. Se há um dia no ano em que temos a oportunidade de reiniciar do zero – virar a página, mesmo – esse dia é Yom Kipur. É o dia em que temos o poder de pedir o que quisermos – para alcançar nossos desejos e sonhos. Yom Kipur é o dia mais importante em nossa vida. Ao término da Neilá – a quinta e última oração de Yom Kipur – proclamamos na sinagoga: Shemá Israel – “Ouve, ó Israel, o Eterno é nosso D’us, o Eterno é Um”. 14
O Rabi Yeshaya HaLevi Horowitz, conhecido como o Shaloh, importante sábio medieval do século 16, escreveu: “Para o judeu, não há experiência mais elevada do que quando reconhece a Unicidade de D’us e atesta sua prontidão em sacrificar a sua vida a D’us”. O término de Yom Kipur – que conclui os Dez Dias de Teshuvá – é o momento mais poderoso do ano. É o momento em que estamos mais próximos da essência de D’us, o Santo, Bendito é o Seu Nome.
BIBLIOGRAFIA
Jacobson, Simon. 60 Days – A Spiritual Guide to the High Holidays. MLC – Meaningful Life Center. O trecho do artigo que aborda o tema da ocultação Divina (6 de Tishrei) é baseado em um pronunciamento do Lubavitcher Rebe, proferido em 15 de Shevat, 5739 – 12 de fevereiro de 1979: https://www. chabad.org/therebbe/livingtorah/player_ cdo/aid/666122/jewish/Father-WhereAre-You.htm
NOSSAS LEIS
Algumas leis relacionadas a Yom Kipur Neste ano, Yom Kipur se inicia na TERÇA-feira, 8 de outubro, e termina na noite de QUARTA-FEIRA, 9 de outubro .
C
ostuma-se fazer caparot – abate de um galo, para um homem, e uma galinha, para uma mulher, no dia 9 de Tishrei de madrugada, dia 8 de outubro, por um shochet qualificado. Também é possível cumprir este costume com dinheiro, doando-o para Tzedacá.
Yom HaKipurim”. Se a mulher quiser locomover-se de automóvel ou usar o elevador antes do início de Yom Kipur, deverá, antes de acender as velas, fazer uma ressalva dizendo que não está recebendo Yom Kipur com o ato de acendimento das velas. É, porém, necessário antecipar o recebimento de Yom Kipur para antes do pôr-do-sol.
É proibido jejuar no dia que precede Yom Kipur, mesmo se este jejum for por Taanit Halom. É, ao contrário, uma mitzvá fazer uma refeição adicional. A refeição que antecede o jejum deve ter pão e pratos de fácil digestão e ser concluída 20 minutos antes do pôr-do-sol. Bebidas alcoólicas são proibidas.
É costume os pais abençoarem os filhos, pedindo que estes sejam selados no Livro da Vida e que, em seus corações, permaneça sempre o amor a D’us. Convém também ir à sinagoga antes do pôr-do-sol, para poder participar do Kol Nidrei, a “anulação dos votos”.
Restrições durante Yom Kipur
As mulheres devem acender as velas antes de ir à sinagoga, dizendo a bênção “Lehadlik Ner Shel
Yom Kipur é o Shabat dos Shabatot e, portanto, todo trabalho profano deve 15
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NOSSAS LEIS
“OUVE Ó ISRAEL”, ÓLEO SOBRE TELA, 1910-15, Isidor Kaufman
cessar e todas as leis do Shabat devem ser respeitadas. Assim como no Shabat, é proibido carregar qualquer objeto durante Yom Kipur. Além de observar as leis do Shabat, em Yom Kipur outras cinco restrições são acrescidas: “Não comer, não beber, não trabalhar, não se lavar e nem massagear a pele (perfumes, cremes etc.), não calçar couro, não ter relações conjugais”. O jejum diz respeito tanto aos homens quanto às mulheres, mesmo grávidas ou amamentando. Só em caso de doença ou onde haja algum perigo à vida, o jejum pode ser suspenso (consulte seu rabino). As crianças de 9 a 10 anos podem jejuar algumas horas, e, a partir dos 11 anos, conforme avaliação dos pais, podem jejuar o dia todo. Mas o jejum torna-se obrigatório aos 12 anos, para meninas, e aos 13, para meninos. O uso de sapato, sandálias ou tênis de couro é proibido tanto para homens como para mulheres. As crianças também devem ser orientadas neste sentido. Ao término de Yom Kipur, a Havdalá deve ser feita sem bessamim, e a Bênção da Luz deve ser feita sobre uma vela que permaneceu acesa desde o dia anterior. 16
Seguem-se os horários do início e término do jejum de Yom Kipur, em algumas cidades brasileiras. Nas demais, sugerimos que sejam consultadas as sinagogas locais: Recife: Início às 16h54 n Término às 17h45 Salvador: Início às 17h10 n Término às 18h02 Manaus: Início às 17h32 n Término às 18h23 Belém: Início às 17h45 n Término às 18h36 Rio de Janeiro: Início às 17h30 n Término às 18h25 São Paulo: Início às 17h50 n Término às 18h43 Belo Horizonte: Início às 17h36 n Término às 18h29 Brasília: Início às 17h50 n Término às 18h42 Curitiba: Início às 18h00 n Término às 18h55 Porto Alegre: Início às 18h10 n Término às 18h07
NOSSAS GRANDES FESTAS
Lições para os Sete Dias de Sucot A festa de Sucot se inicia no 15o dia do mês judaico de Tishrei – cinco dias após Yom Kipur. Durante os sete dias dessa festa, habitamos em uma cabana chamada Sucá (daí o nome da festa), onde fazemos nossas refeições e executamos as demais atividades – como estudar a Torá e desfrutar da companhia da família e amigos–, algo que normalmente faríamos em casa. Durante a semana de Sucot, a Sucá passa a ser nosso lar – havendo, mesmo, quem tenha o costume de nela dormir.
A
s Sucot (plural de Sucá) – cabanas frágeis e temporárias – fazem-nos recordar nossa total dependência do Todo Poderoso. Elas celebram as “Nuvens da Glória” que pairavam sobre nós, judeus, protegendo-nos enquanto vagávamos pelo deserto, durante 40 anos, a caminho da Terra de Israel. Esta festividade também engloba um outro mandamento – referente às Quatro Espécies: o Lulav (um ramo de palmeira), o Etrog (cidra), o Hadáss (galhos de murta) e o Aravá (ramos de salgueiro). A Torá nos ordena juntar essas quatro espécies em nossas mãos. Temos o costume de sacudi-las em quatro direções, após pronunciar a bênção apropriada.
deste mandamento? Por que D’us haveria de querer que morássemos em cabanas durante sete dias? São várias as razões. Uma delas é para nos ensinar que o mundo físico onde vivemos é como uma Sucá – uma residência temporária para todos nós.
Sucot é chamada de Zman Simchatenu – época de nosso júbilo. Essa festividade de sete dias é muito alegre, profundamente mística e traz em si lições importantes e atemporais. Neste artigo, discutiremos sete dessas lições – uma para cada dia da festividade.
Certa vez, um homem rico foi visitar o Grande Maguid e ficou chocado ao ver que ele vivia em uma simples cabana. Consternado com a moradia extremamente humilde do Maguid, ele se ofereceu para proporcionar ao grande Sábio uma moradia de acordo com seu status. Mas o Rabi Dov Ber recusou a oferta, pedindo ao seu generoso interlocutor que descrevesse sua própria casa – que, naturalmente, era uma luxuosa mansão; e que descrevesse suas acomodações quando em viagem. Quando o homem abastado completou sua descrição, o Maguid comentou: “Vejo que suas acomodações em
Este ensinamento nos é transmitido por uma história acerca do Mestre Hassídico do século 18, Rabi Dov Ber de Mezeritch, conhecido como o Grande Maguid. Esse mestre foi o sucessor do Baal Shem Tov na liderança do Movimento Hassídico. Um dos maiores eruditos em Torá de todos os tempos, o Grande Maguid foi o mestre dos fundadores das grandes dinastias Hassídicas.
1a Lição: O mundo é nossa residência temporária Habitamos na Sucá durante a festa de Sucot pois D’us nos ordenou assim proceder. Mas qual o significado 17
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NOSSAS GRANDES FESTAS
viagem de negócios são bem mais modestas do que seu lar. Pois o mesmo sucede comigo. Sou apenas um viajante neste mundo. Meu verdadeiro lar não é aqui. Por isso minhas acomodações enquanto estou aqui, em trânsito, são muito mais modestas do que minha residência permanente”. Obviamente não há nada de errado em se ter belas moradias e bênçãos materiais. Nenhum de nós é um gigante espiritual como o Maguid de Mezeritch, para quem os prazeres físicos e o conforto não eram importantes. Mas essa história do extraordinário Mestre Hassídico ecoa um dos ensinamentos trazidos pela festa de Sucot: Somos apenas transeuntes neste mundo físico, que, como a Sucá, é uma moradia temporária. Nosso verdadeiro lar não é aqui, mas lá onde nossas almas habitavam antes de descer a este mundo, e para onde todos nós iremos após terminar nossa missão na Terra. A morada permanente de nossas almas é muito mais
HaMinim, as Quatro Espécies: três galhos de murta (Hadassim), dois ramos de salgueiro (Aravot), um ramo de palmeira (Lulav) e uma cidra (Etrog) – os quais juntamos e sacudimos em seis direções. E o fazemos todos os dias de Sucot, menos no Shabat.
Aravá – um ramo folhoso do salgueiro é uma das Quatro Espécies
majestosa e bela do que as estruturas mais imponentes construídas pelo homem neste mundo físico.
2ª Lição: A união do Povo Judeu Além de habitar na Sucá, um importante mandamento da festa de Sucot é ter-se em mãos os Arbaat
Um famoso Midrash nos ensina que as Quatro Espécies correspondem a quatro tipos de judeus. O Etrog, com seu gosto delicioso e perfume inebriante, representa o judeu que estuda a Torá e faz boas ações. O Lulav, que produz frutos com sabor, mas sem perfume, simboliza um estudioso de Torá – aquele que se dedica inteiramente ao seu estudo e, portanto, tem pouco tempo para realizar muitas ações de bondade. O Hadáss, que tem perfume, mas não tem sabor, representa um ativista envolvido – aquele judeu que realiza muitos atos de bondade, mas não tem tempo nem aptidão intelectual para estudar muito a Torá. Finalmente, o Aravá, sem gosto e sem perfume, e simboliza o judeu que nem estuda muito a Torá nem realiza muitos atos de generosidade: ele é alguém que ainda não usou seu potencial intelectual nem sua capacidade para fazer deste mundo um lugar melhor. Aparentemente, ninguém gostaria de ser representado pelo Aravá. A maioria de nós, judeus, gostaria de ser o Etrog ou, quem sabe, o Lulav (aqueles que gostam do estudo), ou ainda o Hadáss (caso não sejam tão dotados, intelectualmente, e prefiram ser ativistas). Mas o mandamento das Quatro Espécies nos ensina que mesmo o Aravá, que simboliza um judeu aparentemente despido
Hadáss– ramo da árvore de murta
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“CONSTRUINDO CABANAS PARA SUCOT EM JERUSALÉM”, GRAVURA, AUGSBURG, ALEMANHA, SÉC. 18
de conhecimento da Torá ou da prática de boas ações, é indispensável. Pois sem esta espécie, não se pode cumprir a mitzvá dos Arbaat HaMinim, ponto central na festa de Sucot. Mesmo se tivermos o Etrog mais bonito, um Lulav alto e forte, os Hadassim pujantes e brilhantes, sem o Aravá o mandamento das Quatro Espécies não pode ser cumprido. A mitzvá das Quatro Espécies transmite a lição da importância suprema de nossa união. E nos ensina que precisamos uns dos outros – nenhum de nós é indispensável – mesmo aqueles que possamos julgar sejam Aravot. Os dois principais mandamentos de Sucot – segurar as Quatro Espécies e habitar numa Sucá – representam uma perfeita união. Como ensina o Talmud: “Cabe a todo Israel habitar em uma simples
Sucá”. Ainda que a Lei especifique que uma Sucá deve ter um máximo e um mínimo de altura, não há limite para sua extensão: a Sucá ideal seria aquela que abrigasse todo o nosso povo, o Povo Judeu, em conjunto.
criança com Lulav, de Isidor Kaufmann
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Durante a Festa de nossa Alegria, nós, judeus do mundo todo, em Israel e na Diáspora, vivemos fisicamente em diferentes Sucot, mas espiritualmente, estamos vivendo juntos sob uma Sucá que nos une, a todos. De forma semelhante, reunimos as Quatro Espécies, simbolizando diferentes personalidades, e reconhecemos que nossa diversidade é a nossa força e que cada um de nós tem uma contribuição única a ser feita para o bem maior. Fazendo uma observação interessante sobre uma das Espécies: O Rei Salomão, o mais sábio dos homens, observou que o Etrog é uma “fruta atormentada”, pois permanece o ano todo na árvore, sob quaisquer condições climáticas. De modo similar, vemos, em nossa vida, que as pessoas mais talentosas são acossadas pela labuta e pelas dificuldades. SETEMBRO 2019
NOSSAS GRANDES FESTAS
3ª Lição: A centralidade do estudo da Torá Como vimos acima, todas as Quatro Espécies - Etrog, Lulav, Hadáss e Aravá – são essenciais para o cumprimento deste mandamento. No entanto, cabe lembrar que antes de cumprir essa mitzvá dizemos a seguinte bênção: “Bendito és Tu, Eterno, nosso D’us, Rei do Universo, que nos santificaste com Teus mandamentos e nos ordenaste segurar o Lulav”. Por que razão essa berachá do mandamento das Quatro Espécies apenas menciona o Lulav? Por que não todas as Quatro Espécies, ou o Etrog, que simboliza o estudo da Torá e a prática de boas ações? Como nos ensina o Talmud, o fato de a bênção mencionar apenas o Lulav indica que esta Espécie tem certa proeminência entre as outras três, mesmo sobre o Etrog. Por que o Lulav supera o Etrog? Pelo fato de simbolizar os judeus que se dedicam integralmente ao estudo da Torá. Mas o Etrog, por sua vez, simboliza aquele que estuda a Torá, mas também dedica muito de seu tempo a praticar boas ações. O judeu que é simbolizado pelo Etrog não se dedica inteiramente ao estudo da Torá pelo fato de ser ocupado com outros assuntos, também dignos e sagrados. Mas, em se tratando do estudo da Torá, não há dúvida de que o Lulav é superior ao Etrog. Uma das razões para o Lulav desfrutar da honra de ser a única Espécie mencionada na berachá das Arbaat HaMinim, as Quatro Espécies, é uma indicação para nós do quão importante é o estudo da Torá e o quanto devemos honrar nossos Sábios. O Judaísmo permaneceu vivo ao longo dos milênios pelo fato de nossos mestres e rabanim se terem dedicado
“VOCÊ SENTARÁ NA SUCÁ DURANTE SETE DIAS”, ILYA SCHOR, GUACHE COM FOLHA DE OURO
integralmente a estudar e ensinar a Torá. Rabi Shimon bar Yochai, um dos pilares do Talmud e autor do Zohar, passou 13 anos em uma caverna dedicando-se ao estudo da Torá, nada mais. E Rabi Akiva, o maior mestre do Talmud, que literalmente sacrificou sua vida para
CAIXA DE ETROG, YOAV S LIBERMAN. 2004
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garantir a eternidade da Torá, passou 24 anos longe de casa dedicado ao estudo e à transmissão de nossa herança espiritual. Não fora por esses Sábios, a Torá se teria perdido e, consequentemente, o Povo Judeu teria deixado de existir. Há muitos que creem que o Etrog personifique o judeu ideal – aquele que estuda a Torá, mas também se empenha em tornar o mundo um lugar melhor. Quem consegue fazer ambas as coisas – judeus que se dedicam a estudar a Torá e que também lideram suas comunidades, ou as auxiliam – certamente merece nossa admiração e reconhecimento. Mas não é raro encontrar pessoas assim. Em todas as sinagogas deparamo-nos com judeus que são simbolizados pelo Etrog: frequentam as orações diárias, estudam a Torá, e também trabalham, dedicando seu tempo, energia e talento para beneficiar outros seres humanos. Por outro lado, os judeus que são simbolizados pelo Lulav, são bem mais difíceis de encontrar. Estudar
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a porção semanal da Torá ou mesmo uma página do Talmud por dia, não faz de ninguém um Lulav. Poucos são os que verdadeiramente se tornam Sábios – que podem dedicar-se plenamente ao estudo e ao ensino da Torá, de todo coração e com toda a alma. Aquele que é simbolizado pelo Lulav vive e respira Torá. É nisso que pensa ao se levantar até o momento em que o sono o vence, forçando-o a abandonar, por horas, o estudo da Torá.
místicos, os – “os Sete Pastores” – que personificam as sete Sefirot da emoção. E eles são Avraham, Itzhak, Yaacov, Moshé, Aharon, Yossef e David. O Zohar, obra central da Cabalá, diz: “Quando um homem senta na Sucá na sombra da fé, a Shechiná (a Presença Divina) abre suas asas sobre ele – e Avraham e cinco
E esse regozijo nos une a D’us e a outros seres. E, como, na verdade, a alegria não pode ser celebrada quando estamos sós, somos obrigados a convidar amigos – terrestres e celestiais – para conosco habitar na Sucá.
A Torá constitui a Palavra de D’us: Sua Sabedoria e Vontade. No Zohar está dito que o estudo contínuo da Torá é o que mantém a existência do mundo. O verdadeiro Sábio em Torá - um Lulav genuíno – ergue e mantém o mundo. É um Sefer Torá que anda e respira. Certamente devemos honrar nossos Sábios e seu cabedal de conhecimento da Torá – e esta é uma das razões para apenas o Lulav ser mencionado na bênção das Quatro Espécies.
4ª Lição: Sete convidados místicos em todas as SucOT Não se pode celebrar uma ocasião sozinho, seja um aniversário seja um casamento. Celebramos rodeados de outras pessoas. Por essa razão é costume receber, com alegria, convidados à nossa Sucá. A celebração da festividade, cujo nome é “Época de nosso júbilo”, requer que compartilhemos essa alegria com outros. Nos sete dias de Sucot, além de convidar amigos para nossa Sucá e, assim, celebrar refeições festivas em boa companhia, temos o costume, segundo a tradição Cabalista, de também receber sete convidados
A festa de Sucot é a “época de nosso júbilo”, pois nós, seres humanos, não costumamos celebrar sozinhos. D’us também se junta à celebração e Se regozija conosco, Suas criaturas. Como escreveu o Rabi Shneur Zalman de Liadi, o Baal HaTanya: “Sucot é chamada de ‘época de nosso júbilo’ – o júbilo de D’us com Israel e o júbilo de Israel com D’us. Ambas as situações se fundem em uma única celebração harmoniosa dos Céus com a Terra”.
5ª Lição: Interessar-se por toda a Humanidade
Uma sucá. A festa de Sucot, celebrada durante sete dias, é cumprida pelo atendimento a dois mandamentos: habitar em uma Sucá e sacudir as Quatro Espécies
homens justos, sendo David um deles, estabelecem sua morada a seu lado. O homem deve alegrar-se cada dia da festa acompanhado desses homens que lhe fazem companhia”. (Zohar, Emor 103a). Esses convidados elevados vêm alimentar-nos de espiritualidade, cada um deles compartilhando a qualidade que lhe é única. De nosso lado, não há hospitalidade maior do que lhes possamos oferecer do que tomá-los como exemplo. 21
Durante a festa de Sucot, leemse na sinagoga várias passagens dos escritos dos Profetas. Tais passagens, em especial as profecias de Zechariah e Ezequiel, falam-nos da transformação do mundo e seus povos, que ocorrerão no Final dos Tempos. O mundo terá que passar por um Dia de Julgamento perante D’us. E, por fim, Ele Se revelará em toda a Sua majestade. E quando isso ocorrer, todos os povos do mundo reconhecerão Sua suprema soberania, e irão a Jerusalém, em peregrinação, para O reverenciar. Como está escrito: “Então, cada uma das nações, dentre as que invadiram Jerusalém, que sobreviver, subirá cada ano para adorar o Rei, o Eterno dos Exércitos, e celebrar a festa de Sucot” (Zechariah, 14:17). Assim, pois, Sucot, símbolo da proteção Divina sobre Israel, será especialmente SETEMBRO 2019
NOSSAS GRANDES FESTAS
de Yom Kipur, cabe-nos vivenciar D’us como nosso Rei e Juiz – única Autoridade Absoluta sobre nós e nossa vida. Mas não basta cumprir as leis de Rosh Hashaná e Yom Kipur: falta a esses dias sagrados um elemento de intimidade, de amor e, mais importante, de comunhão com o Divino. Por essa razão, o mês de Tishrei nos dá as festas de nosso júbilo: Sucot e Shemini Atzeret/ Simchat Torá. Como ensina a Cabalá, assim como os pássaros precisam de asas para voar, nós, judeus, necessitamos de amor e reverência a D’us para nos elevarmos, espiritualmente.
As Quatro Espécies: Lulav, Etrog, Hadáss e Aravá
reconhecido pelos povos do mundo, e eles serão recompensados por isso.
6ª Lição: Reverência e amor a D’us
As celebrações de Sucot sempre tiveram um efeito profundo sobre todos os povos. As 70 oferendas levadas ao Templo Sagrado de Jerusalém durante essa festividade correspondiam e serviam de proteção aos 70 povos que descendiam dos filhos de Noé (que, aliás, constituem os povos atuais do mundo). O Povo de Israel levava aqueles sacrifícios como expiação por todos os demais povos, orando por seu bem-estar, bem como pela paz universal e harmonia entre toda a humanidade.
Os místicos judeus ensinam que tudo o que podemos conseguir, com reverência, em Rosh Hashaná e Yom Kipur, pode ser conseguido em Sucot e Shemini Atseret/Simchat Torá com alegria.
Hoje em dia, tais oferendas são recriadas por meio de nossas orações. Nossa alegria e os serviços religiosos ao longo da semana de Sucot continuam a ter, como em tempos antigos, um impacto cósmico no destino do mundo. Vemos, pois, que a Torá não se preocupa e protege apenas os judeus. A celebração de Sucot visa a atrair as bênçãos e a paz Divinas não apenas sobre o Povo Judeu, mas sobre todo o gênero humano.
Na primeira metade do mês de Tishrei, mês de Rosh Hashaná e
Há muitos judeus que somente cumprem os mandamentos da Torá por reverência ou temor a D’us. Vão à sinagoga em Rosh Hashaná e Yom Kipur – não por um desejo íntimo de o fazer, mas porque temem que, não o fazendo, serão punidos, de alguma forma, pelos Céus. Para eles, os mandamentos da Torá são um ônus e D’us, um Ser temível. São pessoas que rezam, até efusivamente, em Rosh Hashaná e Yom Kipur, apenas por buscarem a autopreservação. E essas pessoas que
Ushpizin-MIZRACH para SUCOT. Entalhe em madeira, com colorido. Bukovina, 1920. Museu da História Judaica, Rússia. (OS USHPIZIN SÃO OS VISITANTES CELESTIAIS QUE RECEBEMOS NA SUCÁ, DURANTE OS SETE DIAS DE SUCOT. MIZRACH refere-se ao Muro Oriental do Templo de Jerusalém)
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apenas reverenciam ou temem a D’us, via de regra não apreciam as ocasiões felizes do Judaísmo, como a festa de Sucot, pois não têm muito amor a D’us. Ainda que sejamos ordenados a venerar o Altíssimo, o relacionamento com o Divino quando destituído de amor é apenas limitado – em geral não sobrevive nem aumenta. Ademais, quem reverencia D’us sem O amar – quem apenas O teme e respeita – demonstra que não entende, plenamente, a essência e propósito fundamental da Torá e seus mandamentos. A Torá nos impõe, explicitamente, servir a D’us com alegria, e a razão para fazê-lo é que o estudo da Torá e o cumprimento de seus mandamentos nos foram dados como uma ponte para conectar o homem finito com D’us Infinito. E é através do estudo da Torá e do cumprimento de seus mandamentos que podemos comungar com o Todo Poderoso. É uma concepção totalmente errada ver a Torá e seus mandamentos como um ônus que, se não cumprido propriamente, levará à punição Divina e ao sofrimento. Devemos ver a Torá e suas mitzvot em sua luz própria, como de fato são: o meio para vencer o enorme abismo entre o homem, finito, e o Altíssimo, Infinito.
Mas talvez não tenham a mesma devoção quando se trata das orações de Rosh Hashaná ou do toque do Shofar. Muitos não cumprem adequadamente as proibições de Yom Kipur. Em Tishá b’Av, eles não são vistos. Devemos servir a D’us com alegria, mas também com a reverência que Ele, Rei Infinito, merece. Não podemos escolher apenas o que é agradável e fácil no Judaísmo: há dias de festa e júbilo, mas também há dias de jejum e de introspecção. Há um momento para a dança, mas também há um momento de oração. Os Dez Dias de Teshuvá, que se iniciam em Rosh Hashaná e concluem ao terminar Yom Kipur – são a oportunidade de fortalecer nossa reverência a D’us. Sucot e Shemini Atzeret/Simchat Torá são as oportunidades festivas de aumentar nosso amor a Ele. Ao fortalecermos essas “asas” de nosso serviço Divino, não há limites sobre a altura espiritual que podemos alcançar no restante do ano.
7ª Lição: Hoshaná Rabá: a importância da humildade Hoshaná Rabá, literalmente a “Grande Salvação”, é o nome do sétimo e último dia da festa de Sucot. Hoshaná Rabá coloca a chancela final do julgamento de cada um de nós: o veredicto anotado em Rosh Hashaná e reafirmado em Yom Kipur é finalmente chancelado e ratificado nesse dia. Como ensina o Zohar: “Este é o dia do julgamento final para a água, fonte de todas as bênçãos... No sétimo dia de Sucot o julgamento do mundo é finalizado e os editos são expedidos pelo Rei”. Hoshaná Rabá, último dia de Sucot, é quando a Corte Celestial toma as decisões finais acerca dos julgamentos feitos nos Dez Dias de Teshuvá. O Parecer Celestial assinado em Rosh Hashaná e confirmado em Yom Kipur é ratificado em Hoshaná Rabá. Daí a importância e o poder desse último
Judeus segurando as Quatro Espécies na frente do Kotel, Jerusalém
Há judeus que temem, mas não amam a D’us, mas também há aqueles que sentem apenas amor sem realmente reverenciá-Lo. D’us é nosso Pai, mas também nosso Rei, e até os reis de carne e osso exigem a devida reverência. Os judeus que amam a D’us mas não O reverenciam estão interessados, apenas, nos aspectos alegres e agradáveis da Torá: podemos vê-los desfrutando das refeições na Sucá, dançando com fervor em Simchat Torá e se alegrando em Purim. 23
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NOSSAS GRANDES FESTAS
Sucot na frente do Kotel, Jerusalém
dia de Sucot – que, de certa forma, é mesmo comparado a Yom Kipur. É interessante que o serviço de Hoshaná Rabá gire em torno do Aravá, os ramos de salgueiro, que, como vimos acima, representa o judeu que não tem muitos conhecimentos sobre a Torá nem pratica muitos mandamentos Divinos. Como ensina o Talmud: “Em Hoshaná Rabá… os Cohanim rodeavam o altar do Templo com ramos de salgueiro”. Em Hoshaná Rabá, selecionamos um simples salgueiro para uma mitzvá muito especial. Aliás, esse dia é chamado de “Dia do Salgueiro”. O mandamento realizado com esses ramos é tão importante que os Mestres do Talmud ordenaram o calendário judaico de forma que Hoshaná Rabá jamais caia no Shabat – já que nesse dia não é permitido segurar o Aravá. Por que o Aravá – a menos ilustre entre as Quatro Espécies – é a protagonista do dia da Grande
Salvação? Pelo fato de não haver qualidade maior perante D’us do que a humildade. Moshé, o maior de nossos profetas e líderes, foi o homem mais humilde que já existiu. O problema de muitos dos eruditos em Torá, líderes, ativistas e filantropos – todos eles judeus simbolizados pelo Lulav, o Etrog e o Hadáss – é que muitas vezes lhes falta humildade. Na verdade, essa qualidade é raramente encontrada entre nós, seres humanos. Mas ninguém consegue dedicar-se inteiramente a D’us e à Sua Torá se lhe falta humildade. Nossos Sábios nos ensinam que justamente pelo fato de Moshé ter sido o mais humilde dos homens, ele conseguiu se tornar o maior dos profetas. Como era despido de ego, ele funcionava como um canal transparente que transmitia a Vontade e a Sabedoria de D’us a todo o nosso povo, o Povo Judeu. Há outra lição fundamental transmitida pelo Aravá: um judeu não é definido pelo que sabe ou faz, mas pelo que é. Certamente 24
devemos honrar nossos Sábios – simbolizados pelo Lulav; admiramos os judeus personificados pelo Etrog; e apreciamos as pessoas envolvidas, que são representadas pelo Hadáss. O Aravá, no entanto, nos ensina que nenhum de nós é mais judeu do que qualquer outro de nossos irmãos, judeus como nós. A Grande Salvação vem a nosso mundo quando nele paira a paz e a união, atributos geralmente encontrados entre os verdadeiramente humildes. O Aravá nos ensina que a humildade é um canal para as maiores bênçãos, e a isso se deve seu papel primordial em um dia de tão grande importância no calendário judaico – o dia que ratifica o que foi determinado nos Céus em Rosh Hashaná e selado em Yom Kipur.
BIBLIOGRAFIA
Jacobson, Simon. 60 Days – A Spiritual Guide to the High Holidays. MLC – Meaningful Life Center.
ATUALIDADES
REFLEXÕES APÓS 25 ANOS DA DESTRUIÇÃO DA AMIA POR BERNARDO KLIKSBERG
Esse foi o pior atentado terrorista contra a população civil judaica após o término da 2ª Guerra Mundial. Passados 25 anos de sua perpetração, faz-se imprescindível refletir sobre o ocorrido e suas implicações.
Ao mesmo tempo, 300 feridos. Entre eles os transeuntes, que passavam pela rua, vizinhos próximos, motoristas de algumas viaturas.
Primeira reflexão: Honrar a memória abençoada das vítimas Eram 9h53min de 18 de julho de 1994. Na Av. Pasteur, 633, sede da Asociación Mutual Israelita de la Argentina, a AMIA, instituição central da comunidade judaica argentina, desenvolvia-se a sua multifacetada atividade diária. O trabalho espiritual, educativo, cultural, social, de atenção aos nascimentos, casamentos, funerais, além de apoiar, cuidar e orientar transcorria a toda marcha, atendendo centenas de pessoas que para lá se dirigiam todos os dias. Ao mesmo tempo, a organização de atividades nas quais a AMIA era pioneira em âmbito nacional, como a proteção aos deficientes e outros corria a todo vapor.
A AMIA passou a ser a Cidade da Matança, como evocava o grande poeta Chaim Nachman Bialik em suas descrições sobre os pogroms de Kishnev. Arderam as pessoas e os livros de uma das maiores bibliotecas judaicas. Em primeiro lugar, honra aos humildes e dedicados funcionários da instituição que pereceram, aos membros da comunidade que lá se encontravam, aos afetados por estarem nas redondezas.
Soa uma explosão que foi ouvida em grande parte de Buenos Aires. No local onde se erguia esse alto edifício, que inspirava respeito e apreço coletivos, não resta pedra sobre pedra. Em poucos minutos, transformou-se em uma montanha de escombros.
Bendita seja sua memória. D’us ampare suas famílias, das quais foram arrancados de um minuto a outro.
Tudo desapareceu, convertendo-se em uma gigantesca sepultura com 86 vítimas soterradas, de onde apenas se ouviam alguns gemidos de sobreviventes temporários.
A comunidade inteira, a cidadania argentina, o judaísmo do mundo, o Estado de Israel, muitos mundos afora exigiram explicações, pedindo justiça. A um crime de
Segunda reflexão: Justiça e impunidade
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ATUALIDADES
Milhares de pessoas exigem que seja feita justiça, que sejam encontrados e punidos os culpados do atentado contra a AMIA
tal magnitude não podia ocorrer a mesma sorte que ao atentado de dois anos antes, em 1992, contra a Embaixada de Israel na Argentina, cujos responsáveis nunca foram encontrados... Era imprescindível encontrar-se os culpados da AMIA, para que se soubesse que não se pode matar inocentes, sem castigo, que a vida humana é sagrada como o proclama a Bíblia. A comunidade encabeçou sua luta com o chamado bíblico: “JUSTIÇA, JUSTIÇA PERSEGUIRÁS”. A Bíblia repete justiça duas vezes para enfatizar sua importância, indicando que essa luta não deve jamais ser abandonada até que se consiga que prevaleça a justiça. E não diz “Por justiça clamarás”, senão “a justiça perseguirás”. Com isso deixa clara a mensagem de que cada um de nós não deve poupar esforços para se empenhar que seja feita justiça. Imediatamente surge a “Memória Ativa”, uma combativa organização
de familiares das vítimas, que incitou o interesse universal com uma manifestação semanal nos Tribunais, na exata hora e dia da semana em que ocorrera o atentado, e outras dignas organizações de familiares; e a comunidade protestou e reclamou, por meio de uma incessante ação jurídica e grandes atos anuais. Transcorridos 25 anos, não há ninguém preso, nem incriminado;
o caminho esteve cheio de pistas falsas, encobrimentos e todo tipo de obstáculos. O processo que hoje tem 500 mil páginas não levou a nenhum resultado. A decisão comunitária unânime é uma só. Como prega a Bíblia, continuar lutando até que diante de um crime de tal magnitude apareçam evidências concretas. A comunidade, com a solidariedade de todo o Povo Judeu, e de Israel, optou pelo PERSEGUIRÁS de que fala a Bíblia.
Terceira reflexão: Enfrentar o antissemitismo hoje A matança da AMIA e a impunidade em torno dela, deve levar-nos, todos, a redobrar nossos esforços para deter as alarmantes ocorrências antissemitas atuais. Os últimos informes de respeitadas instituições internacionais europeias
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e americanas afirmam haver, hoje, uma nova onda antissemita. A favorecê-la, o surgimento de partidos e movimentos xenófobos e racistas, que proclama o ódio ao imigrante, às minorias, e o antissemitismo que trata de ganhar o favor das massas em sérias dificuldades econômicas e sociais. Os neonazistas e xenófobos ganham poder político em diversos países europeus. A nova direita alemã, arraigada na Alemanha Oriental, avança nos parlamentos. Um de seus líderes, Alexander Gauland, declarou: “O Holocausto é apenas um insignificante dejeto de pássaro em mais de mil anos de exitosa história alemã”... Victor Urban, o líder xenófobo da Hungria, incluiu neonazistas em seu governo e prossegue em uma implacável campanha contra o proeminente filantropo judeu, George Soros; o governo polonês proibiu as manifestações contra os colaboracionistas poloneses do nazismo; líderes pró-nazistas durante a guerra recebem homenagens em diversos países europeus. De acordo com uma pesquisa da CNN, 20% dos europeus afirmam que os judeus têm demasiada influência nas finanças e na política. E 34% dos europeus sabem pouco ou nada acerca do Holocausto, enquanto 32% afirmam que os judeus exploram o Holocausto para melhorar sua posição.
Imagens da sede da Asociación Mutual Israelita Argentina (AMIA), após o atentado terrorista de 18 de julho de 1994
Na França as manifestações antissemitas aumentaram 100% em 2018; na Alemanha e na Inglaterra, 60%. Na Europa, 43% dos judeus não frequentam as sinagogas e as instituições comunitárias por temor à sua segurança. E não usam Kipá por medo. Entre 2.700 jovens judeus de 12 países entrevistados, 80% consideram que o antissemitismo vem crescendo em seus países. Consideram as mídias sociais muito responsáveis por isso. Deles, 45% têm medo de mostrar em público que são judeus e 44% já sofreram algum ataque antissemita. Impõese como indispensável denunciar e enfrentar de forma combativa as novas formas de antissemitismo, de todos os tipos.
UMA CONCLUSÃO Transcorridos 25 anos do atentado contra a AMIA, a instituição ergueu27
se de suas cinzas e é, novamente, um foro pujante de realização judaica e nacional. Os assassinos não lograram seu objetivo de destruí-la. Não conseguiram dobrar seu espírito. Hoje nos cabe recordar e honrar as vítimas, continuando a exigir justiça, e render-lhes homenagem com o combate a novas formas de antissemitismo. Rabi Shimon ben Gamliel disse, no Pirkei Avot, que o mundo se sustenta em três pilares: a verdade, a justiça e a paz. Buscar a verdade e a justiça no caso AMIA e criar paz pela erradicação do antissemitismo, da xenofobia e dos racismos é assegurar esses pilares e fazer TIKUN OLAM, o reparo do mundo.
BERNARDO KLIKSBERG É Doutor Honoris Causa da Universidade Hebraica de Jerusalém e de inúmeras universidades na A. Latina, Europa e Ásia. Assessor da ONU, Unesco, Unicef, FAO, OIT, OPS e outros organismos internacionais.
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ISRAEL
As maravilhosas cavernas de Israel Israel fechou o ano de 2018 tendo recebido 4.1 milhões de turistas, 14% a mais do que no ano anterior, batendo seu próprio recorde pela segunda vez. O turismo não para de crescer, atraindo visitantes do mundo inteiro.
a
revista EuroMonitor classificou Israel o destino turístico de crescimento mais rápido do mundo não só pelos seus tradicionais pontos culturais e religiosos, mas também pelas novas atrações que surgem anualmente, desvendando facetas surpreendentes do país.
Sodoma, no extremo sudoeste do Mar Morto, perto do local árido em que, segundo a Torá, a mulher de Lot foi transformada em uma estátua de sal. A Caverna Malcham foi descoberta pelo professor Amos Frumkin, diretor da Unidade de Pesquisas de Cavernas da Universidade Hebraica de Jerusalém, na década de 1980. Utilizando os métodos disponíveis na época, ele e sua equipe estimaram que a caverna media, então, cinco quilômetros. Há dois anos, porém, o espeleólogo israelense Yoav Negev decidiu completar o trabalho de Frumkin. Fundador do Clube Israelense de Exploradores de Cavernas, uniu-se ao especialista Boaz Langford para organizar uma equipe internacional, em parceria com a Universidade Hebraica. Em 2018, a equipe passou 10 dias cartografando a caverna. Em 2019, outra equipe voltou ao local para 10 dias adicionais de medições.
Em março de 2019, por exemplo, uma notícia inicialmente divulgada em jornais e revistas especializados ganhou as manchetes da imprensa, em geral, e colocou o país no centro das atenções: o Estado Judeu possui a maior caverna de sal do mundo, medindo 10 quilômetros de extensão em passagens e câmaras subterrâneas. Denominada de Caverna Malcham, bateu o recorde de 13 anos mantido pela Caverna 3N, no Irã, com cerca de sete quilômetros. O fato foi confirmado após um trabalho de mapeamento de dois anos, realizado no local por um grupo internacional formado por 80 espeleólogos, de nove países, e coordenado pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Segundo os especialistas, Malcham foi modificada pela ação da chuva, que dissolveu sua superfície, e, com o tempo, irá se expandir ainda mais. Esta nova recordista mundial está localizada no Monte
Enormes blocos de sal – alguns de cor âmbar devido à poeira a minerais – sobressaem-se para formar estruturas singulares, que receberam sugestivos nomes dados pelos especialistas. Um destes blocos, que parece ter sido talhado, é chamado “A Guilhotina”. Outros blocos de sal encontrados em outras áreas são chamados, por exemplo, “Os 10 Mandamentos”, “Câmara de Casamentos”, onde 28
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A CAVErnA AVSHALOM, TAMBÉM CONHECIDA COMO SOREQ, É FAMOSA PELaS SUaS ESTALACTITES E ESTÁ LOCALIZADA NAS PROXIMIDADES DE BEIT SHEMESH. sETEMBRO DE 2017
centenas de estalactites brancas, de diversas formas, criam um efeito muito especial.
Cavernas de Norte a Sul É quase impossível contar quantas cavernas Israel possui, pois novas descobertas surgem quase diariamente. A maioria é formada pela infiltração das águas das chuvas nos solos; outras por escavações em antigas pedreiras, entre outras formas. Apesar da maioria das cavernas estarem fechadas ao público, outras fazem parte das opções para quem está em busca de um programa diferente.
da Judeia, entre Jerusalém e Beit Shemesh. O local foi casualmente descoberto, há 44 anos, por operários que trabalhavam em uma pedreira de calcário e encontraram, em seu interior, estalactites e estalagmites com aproximadamente quatro metros. Estudiosos acreditam que algumas datam de mais de 300 mil
anos ao passo que outras ainda estão em formação. O Parque Nacional Beit GuvrinMaresha, localizado em uma área chamada de “terra de milhares de cavernas”, na região central do sul de Israel, possui uma atração especial: o Complexo Bell de
caverna de sal de Malcham
A pequena Caverna Sorek (Avshalom), também chamada de Caverna de Estalactite, está localizada em uma reserva natural, nas encostas a Oeste das montanhas 29
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israel
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4.
1. PARQUE NACIONAL NAHAL MEAROT 2. CAVERNAS DE QUMRAN 3. CAVERNAS DE BEIT GUVRIN - MARESHA 4. CAVERNAS BEL E ETZVA
Cavernas, com mais de 70 delas conectadas por uma série de passagens. A mais alta dessas cavernas mede mais de 5 metros de altura! Escavadas como pedreiras durante o período inicial árabe, entre os séculos 7 e 11 da Era Comum, esse conjunto de cavernas deve seu nome ao fato de seu formato de sino, “bell”, em inglês. Inscrições árabes e cruzes ainda podem ser vistas em suas paredes. O local tornou-se mais conhecido, há alguns anos, quando serviu de cenário para o filme “Rambo III”, de Sylvester Stallone. Outras cavernas que atraem a atenção dos turistas são as 11 localizadas na região de Qumran e que remontam a fatos importantes 1
Os natufianos eram os povos sedentários caçadores-coletores do Período Epipaleolítico Tardio, que viveram na região do Mediterrâneo Oriental, há cerca de 12.500 e 10.200 anos.
da história judaica, na região. Uma seita de judeus – a seita de Qumran ou do Mar Morto viveu na área desde 150 AEC até 68 EC, quando o local foi destruído pelos romanos, durante a Grande Revolta Judaica (66-73 EC). A seita guardava pergaminhos que haviam sido escritos entre o século 2 AEC e o século 1 EC em cavernas próximas a Qumran. Tais manuscritos foram encontrados a partir de 1947 e se tornaram conhecidos como os Manuscritos do Mar Morto. Os Pergaminhos estão expostos na Cúpula do Livro, um anexo do Museu de Israel, em Jerusalém. Situada em uma região de calcário na Alta Galileia, a Caverna HaYonim (Caverna de Pombos) foi usada como moradia entre 250 mil e 12 mil anos atrás. Escavações lá realizadas trouxeram à tona lâminas, braseiros, pisos e túmulos. “Este é um bom exemplo das cavernas naturais pré-históricas e 30
podem ser associadas a dois tipos de seres humanos que coexistiram no início da Era Glacial – o Homo Sapiens e o Neandertal”, explica Frumkin. “No chamado Período Natufiano1, cerca de 11 mil anos atrás, as pessoas começaram a construir pequenas casas – estruturas assim podem ser vistas na entrada desta caverna”. Não muito distante da Caverna HaYonim está a Caverna Tabun (Caverna Forno). Lá foi encontrado um esqueleto feminino Neandertal de cerca de 120 mil anos. O local é assim chamado por se assemelhar a uma chaminé (forno é tanur, em hebraico, e tabun, em árabe). Há indícios de que diferentes grupos de seres humanos viveram no local entre 500 mil e 40 mil anos atrás. Tabun é a mais alta dentre as três Cavernas Carmel situadas na Reserva Natural Nahal Me’orot. Alguns degraus levam os turistas do Centro de Visitantes até a entrada.
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Escavações realizadas no local identificaram ferramentas de caça e de trabalho em metal, além de pilhas de ossos de antílopes e outros restos de alimentos. A Caverna Hanahal (El-Wad) é a maior desse complexo. No Centro de Visitantes, um audiovisual sobre a vida cotidiana pré-histórica e um esqueleto em exposição ilustram os costumes fúnebres da cultura natufiana, há dez mil anos. Mais de cem antigos esqueletos foram desenterrados, alguns com enfeites feitos de pedras, ossos ou conchas. Marcada por lendas, a Caverna de Zedequias está localizada a cerca de 400 metros abaixo do muro norte da Cidade Velha de Jerusalém. O local é descrito no episódio bíblico em que Zedequias, o último rei de Jerusalém, tentou fugir para Jericó durante o cerco babilônico. Ele foi capturado e torturado, razão pela qual a fonte, na parte de trás da caverna, é chamada de Lágrimas de Zedequias.
Arqueólogos acreditam que foi dessa caverna, uma antiga pedreira, que foram levadas as pedras gigantescas para construir o Segundo Templo, no século 4 antes da Era Comum. A caverna é iluminada e há inscrições em hebraico, árabe e inglês. Mais da metade de sua extensão já está aberta ao público para visitação. A Caverna Pa’ar, na Alta Galileia, formou-se pelo fluxo de água que corria da superfície para um amplo subterrâneo de solo de calcário. “Talvez este seja o melhor exemplo do que acontece em solos de calcário sob ação constante da água”, diz Frumkin. A Caverna Hariton é a maior de calcário de Israel e um verdadeiro labirinto. Para conhecê-la, é melhor estar acompanhado por um guia, usar sapatos apropriados e levar
uma lanterna. Está localizada perto de Belém e ao sul do Herodion de Jerusalém, perto da cidade de Tekoa. Segundo o historiador Flávio Josefo, Hariton foi parte de um sistema subterrâneo de rotas de fuga usado pelos judeus para escapar dos romanos há mais de 2 mil anos. Uma verdadeira visita ao passado da região.
caverna no deserto. Neguev, Israel
oficial
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PERSONALIDADE
ENZO SERENI UM NOME PARA A HISTÓRIA POR Zevi Ghivelder
Justamente por ter sido italiano, é lícito acrescentar ao nome de Enzo Sereni o aposto de Homem da Renascença, tais eram suas múltiplas qualidades, virtudes e inteligência. Ele foi uma referência do sionismo italiano nos anos de1920 e nas décadas seguintes um devotado pioneiro, agente secreto e um dos pilares da comunidade judaica, o yshuv, na Terra de Israel no mandato britânico.
A
mansão de cinco andares na rua Cavour, no centro de Roma, vinha sendo uma autêntica fortaleza da família Sereni através de décadas. Em 1901 a Itália tinha começado a viver uma nova realidade política por causa da unificação de seu reino, fazendo percorrer por todo o país um agradável sopro de liberdade que também se estendeu aos cinco mil judeus que viviam na capital italiana.
por conta do prestígio que detinham e do respeito que impunham. Enzo, filho de Samuel e Alfonsa (Pontecorvo de solteira), nasceu no quarto andar da propriedade da rua Cavour no dia 17 de abril de 1905. Tinha um irmão mais velho, Enrico, e viria a ter outro mais moço, Emilio, sempre chamado como Mimo. Samuel era um médico clínico de renome e médico particular do rei da Itália, Vitor Emmanuel III. Um andar acima vivia seu tio Angelo, casado com Armalinda, admirada por sua beleza nos circuitos elegantes de Roma. Angelo era um advogado famoso e mais próximo de suas raízes do que Samuel. Quando algum judeu importante, de alguma parte do mundo, passava por Roma o tradicional jantar de boas-vindas sempre acontecia nos domínios de Angelo.
A imponente mansão dos Sereni foi a primeira grande edificação de propriedade de judeus, erguida em1870, fora dos limites do antigo gueto incrustado na cidade. A família, sempre muito unida, tinha um comportamento peculiar. Se era possível considerá-la como um núcleo de judeus assimilados, por outro lado os Sereni celebravam com rigor as datas judaicas sagradas e nacionais. Em Chanuká acendiam as velas que evocavam o Templo de Jerusalém e em Pessach (o êxodo do Egito) o Seder era cumprido em todas as suas etapas. O Shabat (sábado) era um dia como qualquer outro, mas pelo sim, pelo não, as mulheres se abstinham de costurar ou de fazer tricô. De certa maneira, embora estivessem longe de possuir uma fortuna, os Sereni podiam ser comparados, em termos italianos, aos Rothschild de outras capitais europeias,
Esse destaque social era compartilhado por outros judeus italianos que ascendiam a postos importantes na vida do país, permanecendo fiéis às suas origens. Mantiveram essa postura ao contrário de muitos outros que se converteram ao cristianismo na esperança de assim serem mais bem aceitos nas instâncias políticas. Entre os fiéis ao judaísmo se destacou Luigi Luzzatto que assumiu o 32
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Givat Brenner foi fundado em 1928 por Enzo Sereni e um grupo de imigrantes da Lituânia , Polônia e Alemanha.
desaparecidos, tendo 700 recebido condecorações.
posto de primeiro-ministro em 1910. Outro judeu, Ernest Nathan, foi prefeito de Roma de 1907 a 1913. Três anos antes do nascimento de Enzo, dos 350 ocupantes de assentos no senado italiano, seis eram judeus. O trono do Vaticano pertencia ao Papa Pio X. No livro Os Papas contra os judeus, do historiador americano David Kertzer, este escreve que Pio X tinha uma posição singular com relação aos judeus. O Pontífice assinalava dois tipos de antissemitismo: “o bom” e “o mau”. O mau era o antissemitismo tradicional e muitas vezes secular, tal como o conhecemos até os dias atuais. “O bom” antissemitismo apenas dizia respeito à rejeição aos judeus em função de seu alegado poder econômico, outra noção que perdura através dos tempos. A 1ª Guerra Mundial terminou no ano em que Enzo Sereni fez o seu Bar
enzo sereni
Mitzvá (cerimônia de emancipação aos treze anos de idade). No conflito, o exército italiano contou com 15 mil judeus, dos quais a metade era constituída por oficiais. Finda a guerra foram contados 420 judeus entre os mortos e 33
No verão de 1921, Enrico, o irmão mais velho de Enzo, fez uma viagem à Alemanha e à Áustria. Em Viena, entrou numa livraria que continha grande quantidade de livros judaicos e sua atenção foi chamada por um cartaz. Era o anúncio da realização do Congresso Mundial Sionista, o primeiro do pós-guerra, a ser realizado na cidade de Carlsbaad, na Checoslováquia. Num impulso resolveu ver de perto do que se tratava, pelo menos por um dia. Acabou ficando em Carlsbaad durante todo o tempo do congresso. Ficou deslumbrado com o que viu: judeus inteligentes ao lado de escritores e intelectuais, judeus bem falantes, bem vestidos, todos idealistas com sólidas convicções. No regresso a Roma, seu relato fez com que Enzo ficasse profundamente setembro 2019
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impressionado e também se voltasse para o sionismo. Meses depois chegou a Roma Dr. Israel Reichert, graduado pela Faculdade de Ciências Naturais de Berlim. Ele estava empenhado em recrutar jovens judeus para um movimento sionista ao qual deu o nome de Hapoel Hatzair (Jovem Operário). Ao contrário de boa parte dos judeus que se haviam deixado seduzir pelo comunismo, Reichert pregava que a luta de classes não era uma questão judaica e que a verdadeira questão judaica era o renascimento de uma identidade nacional. Enzo Sereni era aluno do Collegio Romano quando conheceu Reichert. Foi a seu encontro depois das aulas e começou uma conversa que varou a madrugada. Ele ficou emocionado com a narrativa sobre os jovens judeus que se haviam tornado pioneiros em kibutzim (colônias agrícolas coletivas) na Terra de Israel, nas quais ninguém era explorado em seu trabalho, e tudo pertencia a todos em bases igualitárias.
ENZO EM SEU BAR MITZVAH EM ROMA, EM 1918
biblioteca. Tinha feito fortuna exportando queijos para os Estados Unidos. Enzo e Ada entraram juntos na Universidade de Roma. Ele se voltou para o curso de filosofia e ela optou pela faculdade de química. Em 1923, o fascismo praticamente dominava a Itália. Mussolini não podia ser considerado antissemita, mas era um ferrenho antissionista. Repetia que o sionismo implicava
dupla lealdade para os judeus italianos, o que era considerado uma traição na perspectiva de sua ideologia totalitária. Além disso, considerava que o sionismo era um movimento manipulado pelo império britânico para exercer maior domínio no mundo árabe. Os sionistas europeus concluíram que tal atitude apresentava perigo para os judeus e o líder do movimento sionista revisionista, Vladimir Jabotinsky, viajou para Roma com a incumbência de acalmar o ânimo fascista. Mussolini, porém, não o recebeu. Os judeus italianos sentiram que era hora de agir. Formaram uma delegação composta por Dante Lattes, diretor do escritório sionista em Roma, Moshe Beillinson, revolucionário bolchevique dissidente da União Soviética e Angelo Sacerdoti, rabino-chefe de Roma. A comissão assegurou a Mussolini que era desnecessário desconfiar do sionismo porque os judeus italianos fariam contato com
a FAMÍLIA SERENI DURANTE A 1ª GUERRA MUNDIAL
Às vésperas de se matricular no curso de filosofia da Universidade de Roma, Enzo se dedicou a tudo que servisse como sua colaboração para a luta contra o fascismo. Dizia-se sionista e socialista, mas não pensava em se radicar na então Palestina no mandato britânico. Mesmo porque estava apaixonado por uma bonita jovem judia, chamada Ada, de idade igual à sua, pertencente à família Ascarcelli, oriunda da Espanha de onde havia sido expulsa pela Inquisição. Era uma família aristocrática e secular, mas observante das tradições judaicas. O pai de Ada era um estudioso da história e dono de uma grande 34
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as comunidades judaicas dos países árabes. Estas seriam capazes de influir para estabelecer um bom relacionamento de seus governos com o fascismo. Não há um registro preciso sobre a reação de Mussolini no decorrer dessa reunião nem ao término dela, mas ele afirmou que quando o Dr. Chaim Weizmann, de quem ouvira falar, viesse à Itália, teria o prazer de recebê-lo, como de fato o recebeu em abril daquele ano. Foi uma conversa amena, na qual Mussolini disse: “O senhor sabe que nem todos os judeus são sionistas”. Ao que Weizmann respondeu: “Assim como o senhor sabe que nem todos os italianos são fascistas”. Weizmann voltou para Londres convencido de que a verdadeira e maior preocupação de Mussolini era com os ingleses e não com o sionismo. Nos quatro anos seguintes, Enzo se dedicou a combater o fascismo e a se devotar ao sionismo tanto prático quanto teórico. No capítulo prático promovia reuniões com jovens judeus aos quais repetia que o mais importante era passar da palavra à ação e que ele mesmo pretendia se juntar aos pioneiros que faziam renascer a abandonada Terra de Israel. No campo teórico, aprofundou-se no estudo dos escritos de Aaron David Gordon (1856-1922) e de Ber Borochov (1881-1917), ambos ucranianos, extraordinários pensadores do judaísmo e formuladores de um sionismo dinâmico e baseado em princípios socialistas. Em fevereiro de 1927, Enzo e Ada decidiram que chegara a hora de dar consequência a seu ideal e partir para a então Palestina, iniciativa para a qual contaram com a adesão de Mimo, seu irmão. Houve uma comovente e
ENZO E ADA SERENI E SUA PRIMEIRA FILHA ANTES DE SUA PARTIDA PARA A PALESTINA EM 1927
concorrida despedida na mansão da rua Cavour e, no dia seguinte, toda a família acompanhou os viajantes, mais a pequena Hannah (nascida em julho do ano anterior) até Nápoles. Enzo, Ada e Mimo ali embarcaram, rumo a Alexandria, no Egito, no navio Italia, no qual já se encontravam dezenas de judeus engajados na causa sionista.
OS IRMÃOS SERENI, ENZO, ENRICO E EMILIO
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Pela primeira vez os três ouviram um vasto repertório de canções cantadas em hebraico e assistiram aos demais viajantes, de braços dados e com formação em círculos, se divertir numa dança chamada hora. Foi a bordo do navio que Enzo e Mimo resolveram acrescentar um nome em hebraico entre seus nomes e sobrenomes. Assim, informalmente, um passou a se apresentar como Enzo Chaim Sereni e o outro como Emilio Uriel Sereni. Desembarcaram em Alexandria e seguiram para o Cairo, onde fizeram uma breve parada turística. Embarcaram num trem da linha Kantara-Beirut e ficaram assombrados com seus companheiros de viagem: homens grosseiros e falando aos berros junto a mulheres com longas vestes negras da cabeça aos pés, deixando à mostra apenas os olhos. A paisagem vista do trem era desoladora: uma sucessão de dunas de areia branca, enfeitadas em El Arish por coqueirais e à esquerda pelo lindo azul do mar Mediterrâneo. Em Ramleh, fizeram uma baldeação para a linha Jerusalém-Jaffa. À medida que o setembro 2019
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comboio avançava rumo ao norte, Enzo e Ada começaram a avistar ao longe alguns espaços cobertos de verde. Foi-lhes o primeiro sinal do trabalho de recuperação do solo empreendido pelos pioneiros judeus. O jovem casal Sereni desembarcou em Jaffa no dia 17 de fevereiro de 1927. Imediatamente foram à procura de um rabino que os casou numa celebração religiosa no dia 19. Em julho nasceu a filha, Hagar. A Palestina daquela época vivia um tempo difícil. Poucos anos antes da chegada de Enzo, o chamado Mufti de Jerusalém, Haj Amin El-Husseini, havia formado um bando de fedayn (terroristas) designados para amedrontar e matar os componentes do yshuv. Os ingleses fingiam defender a manutenção da ordem no território em seu mandato mas, na verdade, deixavam o Mufti agir como bem entendesse. A situação se tornou crítica quando milícias árabes vandalizaram as lojas de judeus e os agrediram em Jerusalém. Em 1924, o yshuv foi reforçado com a chegada de milhares de judeus poloneses, fazendo com que o Mufti retomasse suas investidas que, naquele ano, entretanto, esbarraram na ação da Haganah (exército clandestino judaico) que dispunha de bons armamentos e dominava estratégias militares. Houve distúrbios em Jerusalém que se prolongaram por seis dias e noites deixando um saldo de 133 judeus e 116 árabes mortos. Por causa da série contínua de tumultos e ataques sangrentos a situação econômica dos judeus da então Palestina se tornara desesperadora entre 1926 e 1928, gerando enorme desemprego, uma contingência que afetou sensivelmente o casal Sereni. O problema financeiro foi sendo
resolvido pela Agência Judaica que coletava fundos mundo afora, inclusive contando com doações de não judeus. Após uma breve incursão a Jerusalém, com a finalidade específica de encostar a fronte nas pedras do Muro Ocidental, Enzo conseguiu trabalho numa cooperativa agrícola em Rehovot, a 30 quilômetros de Tel Aviv. A cooperativa possuía extensos laranjais como principal fonte de
financeiras. Mesmo assim, não estava satisfeito. Sentia que seu ideal socialista podia estar se esmaecendo e começou a alimentar a ideia de fundar um kibutz. Em 1928, Enzo Sereni conseguiu junto ao Fundo Nacional Judaico, instituição que administrava e distribuía terras para os pioneiros, uma porção de terra a apenas dois quilômetros de Rehovot. Graças à sua atuação na cooperativa não lhe foi difícil reunir um grupo de
As duas imagens são do KIBBUTZ GIVAT BRENER, 1937
renda. Embora Ada viesse a dizer, anos mais tarde, que o tempo em Rehovot tinha sido o pior de sua vida, Enzo se dedicou ao trabalho. Verificou que tanto o plantio e a colheita das laranjas poderiam ser mais velozes e eficientes. Ele também se ocupou das embalagens e da logística na distribuição das laranjas de modo a modernizar todo o sistema. Foi nessa esteira que Enzo se tornou a pessoa mais importante da cooperativa e nada era feito sem sua aprovação, sobretudo no que dizia respeito às transações 36
pioneiros judeus da Alemanha, Lituânia e Polônia para acompanhálo na empreitada. Por consenso, o kibutz recebeu o nome de Guivat Brenner em homenagem ao escritor Yossef Chaim Brenner, assassinado pelos fedayn em Jaffa logo no primeiro morticínio comandado pelo Mufti. De acordo com um censo feito pelas autoridades britânicas em 1931, Guivat Brenner tinha 151 habitantes. Além das acomodações destinadas às famílias, havia no local, cinco construções maiores, não detalhadas no relatório. (No decorrer
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dos anos, Guivat Brenner tornou-se uma das colônias mais prósperas e bem-sucedidas de Israel. Em 2017, contava com 2.669 habitantes). Em 1930, a Agência Judaica convocou Enzo Sereni para uma árdua missão: partir para a Alemanha com a finalidade de ali organizar a juventude judaica visando à sua emigração para a Palestina britânica. Deveria também ajudar a comunidade judaica que começava a sofrer o rigor do antissemitismo. Sereni foi recebido com frieza pelos judeus de Berlim, Hamburgo, Frankfurt e Munique, cidades que abrigavam os maiores números de judeus. Os jovens com os quais fez contato viam Sereni com desconfiança. O que poderia lhes ensinar um trabalhador braçal vindo da remota Palestina? Eram rapazes sofisticados que falavam sobre Kafka, Proust e Thomas Mann, quando esses escritores ainda eram pouco conhecidos na Europa. No entanto, Sereni os impressionou com os conhecimentos que tinha de filosofia e literatura. Com os adultos as conversas eram bem mais complicadas. Eles diziam que se sentiam mais alemães do que judeus, que um país que produzira gênios como Goethe e Schiller não cederia ao obscurantismo, que Hitler e o nazismo eram apenas fenômenos passageiros que logo deixariam de existir. Mesmo assim, Sereni conseguiu convencer algumas dezenas de judeus a transferir seus ativos para o exterior caso se vissem obrigados, em algum momento, a deixar a Alemanha. Quanto aos mais moços, Sereni os conquistou de vez quando passou a discutir com eles as obras de Kant, Hegel e Schpenhauer. Enfatizou que
com grupos de rapazes na qualidade de professor de filosofia e como era um bom italiano também era um bom fascista e, portanto, grande admirador do nazismo. Foi liberado e nunca mais importunado. Nesse período germânico, escreveu um livro que até hoje é referência, As origens do fascismo.
ENZO SIRENI FOTOGRAFADO EM POTSDAM, ALEMANHA, 1934
o pioneirismo na então Palestina não significava um encolhimento cultural, muito pelo contrário. Falou-lhes sobre os debates filosóficos, políticos e literários que aconteciam em muitos kibutzim, inclusive em Guivat Brenner. As frequentes reuniões de Sereni com os jovens despertaram a atenção das autoridades e Enzo foi preso pela Gestapo. Disse que se encontrava
DURANTE A 2ª GUERRA MUNDIAL, EM INAQ
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O trabalho de persuasão de Sereni junto à comunidade judaica alemã foi tão bem- sucedido que em agosto de 1933 a Federação Sionista da Alemanha e o Banco AngloPalestino, pertencente à Agência Judaica, assinaram um acordo, aprovado pelas autoridades nazistas, que permitiu a transferência de grande quantidade de fundos para a Terra de Israel. Naquele ano, confiantes no acordo, cerca de 60 mil judeus alemães emigraram para a então Palestina, fortalecendo o desenvolvimento econômico e social do yshuve propiciando o surgimento de novas colônias agrícolas coletivas. Durante sua missão de quatro anos na Alemanha, Enzo fazia todos os anos duas viagens à Itália para rever a família, em Pessach e em Rosh Hashaná (Ano Novo judaico). Na viagem de 1932, encontrou a mansão da rua Cavour parcialmente demolida em virtude da construção de uma grande avenida que Mussolini mandara abrir, desde o Palácio Veneza, onde morava, até o Coliseu. Entretanto, sua decepção com o precário estado da casa onde tinha nascido foi compensada pela viagem que fez ao sul da Itália para conhecer a comunidade da pequena cidade de San Nicandro, onde todos os habitantes haviam se convertido ao judaísmo, constituindo um insólito capítulo da história judaica. No fim da 1ª Guerra Mundial, um camponês analfabeto de San setembro 2019
PERSONALIDADE
Nicando, chamado Donato Manduri voltou ferido para casa e como mal podia se locomover, aprendeu a ler e passava os dias lendo a Bíblia, algo que fazia pela primeira vez, notadamente o Velho Testamento. Concluiu que Jesus não tinha sido um profeta e nem o Messias porque a existência de tanta pobreza pelo mundo era sinal de que o Messias ainda não havia chegado. E mais: se D’us determinara o descanso para o sétimo dia, por que o catolicismo o havia transferido para o domingo? Refletiu que os mandamentos básicos do comportamento humano haviam sido dados por D’us a Moisés e, portanto, ao Povo Judeu. Manduzio fez sua própria conversão para o judaísmo e convenceu 19 vizinhos a segui-lo. Em pouco tempo, todos os demais 80 habitantes de San Nicandro fizeram a mesma opção e passaram a observar as datas sagradas do judaísmo. Enzo Sereni ficou emocionado quando conheceu Donato Manduzio e guardou para sempre em sua carteira uma
do kibutz, assim como havia feito na cooperativa de Rehovot. Porém ficou pouco tempo nessa função. Convocado pela Agência Judaica, recebeu a missão de partir para os Estados Unidos com a finalidade de ali incrementar as atividades sionistas que custavam a prosperar.
fotografia tirada com um grupo daqueles judeus de San Nicandro. (Em meio à 2ª Guerra Mundial, quando a Brigada Judaica entrou em San Nicandro, a população a saudou com bandeiras com a estrela de David. Era a primeira vez que viam judeus de origem, aos quais pediram para ser levados para a “terra prometida”, o que de fato acabou acontecendo em 1949). Em 1934, Enzo voltou para Guivat Brenner, onde assumiu a secretaria de relações externas e logo passou a cuidar de todos os aspectos da vida
Enzo e Ada e os filhos Hagar e Daniel. A mãe de Enzo e a irmã e sua família antes de ele embarcar em sua última missão
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Em janeiro de 1936, Sereni partiu sozinho, embarcando na Inglaterra rumo a Nova York. Deixou a família em Guivat Brenner, agora acrescida do filho Daniel, então com cinco anos de idade. Assim que chegou, começou a trabalhar com grande afinco e fez amizade com Stephen Wise, o mais importante líder sionista dos Estados Unidos. Com Wise, arrecadou fundos para o movimento sionista Hechalutz (O Pioneiro), transformou o modesto boletim do movimento numa publicação consistente e providenciou a tradução para o inglês das obras de Gordon e Borochov, enquanto ele mesmo escreveu o livro Judeus e Árabes na Palestina. Nesse trabalho sustentou a tese segundo a qual os dois povos poderiam viver em harmonia se tivessem interesses econômicos convergentes. Meses mais tarde a família veio a seu encontro. Enzo e Ada alugaram um apartamento em Nova York, nas margens do rio Hudson, no Riverside Drive. Era um apartamento que se assumia como um farol, irradiando uma forte luz sionista para os judeus americanos, além de ser um assíduo ponto de encontro para os ativistas. Na celebração de um Pessach, o casal Sereni teve como convidados o poeta Chain Grinberg, o rabino Joachim Prinz, da Alemanha, e Golda Meir. A Hagadá (narrativa do Êxodo) foi lida por Zalman Shazar que, em 1963, viria a ser presidente do Estado de Israel.
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Enzo Sereni regressou para Guivat Brenner em 1937, mas mal teve tempo para desfazer a bagagem. A Haganá o convocou para se engajar nas equipes encarregadas de levar imigrantes judeus clandestinos para a então Palestina, desafiando as autoridades britânicas. Nessa atividade, em março de 1939 viajou para a Holanda, onde acompanhou até Marselha um trem com refugiados judeus poloneses. Da França, talvez conseguissem chegar e desembarcar na Palestina no mandato britânico. Quando eclodiu a 2ª Guerra Mundial, em setembro de 1939, Enzo Sereni alistou-se na Brigada Judaica que, sob o comando britânico, participaria da luta armada contra o nazismo. Nos preparativos da Brigada, chamou a atenção dos oficiais ingleses que ordenaram sua imediata apresentação no Cairo. Na capital do Egito, confiaram-lhe a missão de viajar para o Iraque, onde deveria apurar a extensão da infiltração nazista no mundo árabe e avaliar como esse mesmo mundo se comportaria em face da guerra na Europa. Aceitou de pronto porque já tinha em mente uma segunda intenção: sabia da existência de uma comunidade judaica que era maioria na cidade iraquiana de Sandur, que praticamente vivia isolada do restante do mundo. Esses judeus ali viviam desde a segunda metade do século 19 e tinham seu sustento na produção de vinhos. Sereni ali encontrou 800 judeus entre homens, mulheres e crianças e o máximo que pode fazer foi prometer que a Agência Judaica encontraria um meio de levá-los para a Eretz Israel como de fato, anos depois, acabou acontecendo. Em Bagdá também entrou em contato com a comunidade judaica, com a qual estabeleceu um vínculo destinado a conduzir o maior número possível de
Enzo Sereni e sua família antes de partir para a Europa, 1944
famílias para a Terra de Israel. Em agosto de1942, Moshe Sharret, uma espécie de ministro das relações exteriores da Agência Judaica, fez uma reunião com o alto comando britânico em Londres numa atmosfera desagradável de desconfiança mútua. Sharret propôs que paraquedistas judeus saltassem atrás das linhas alemãs de onde poderiam dar informações aos aliados e também socorrer seus correligionários. Os ingleses afirmaram só confiar em espiões profissionais. Não queriam saber de idealistas, muito menos de judeus, e muito menos de sionistas. Apesar da indiferença britânica, o comando da Brigada Judaica e a Haganá decidiram criar um núcleo de paraquedistas que se juntariam de preferência aos guerrilheiros da Iugoslávia comandados por Tito. Somente em 1943, os ingleses concordaram com a iniciativa, mas era tarde demais para salvar os judeus do genocídio. Mesmo assim, os voluntários do yshuv saltariam na Europa e prestariam colaboração ao exército inglês. Na Palestina, os britânicos treinaram 110 volutuários, 39
mas apenas 37 acabaram lutando como paraquedistas, alguns deles bem-sucedidos em sua missão. Na Itália, quatro estabeleceram contato com Londres através de um canal de rádio. Outros cinco conseguiram entrar na Hungria, o que não aconteceu com a pioneira e poetisa húngara Hannah Szenesh que foi capturada, torturada e morta. A Agência Judaica tentou dissuadir Enzo de aderir aos paraquedistas. Mas ele não cedeu e saltou no dia 15 de novembro de 1944, pretendendo atingir a parte da Itália desocupada pela Alemanha. No entanto, foi parar no meio das linhas alemãs e levado para um campo de prisioneiros. No dia 18 de novembro, Enzo Chaim Sereni foi morto por um pelotão de fuzilamento no campo de concentração de Dachau. No 25º aniversário de sua morte, Golda Meir o definiu com um só adjetivo: “Foi um homem inigualável”. BIBLIOGRAFIA
Bondy, Ruth, The Emissary, Little Brown& Company, 1977, EUA. zevi ghivelder é escritor e jornalista
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arte
Festival Judaico de Cinema por joel rechtman
Assistir a um Festival Judaico de Cinema é uma aventura sem fim. Hoje podemos contar com diversos eventos desse tipo no mundo inteiro e, sem dúvida alguma, o da Hebraica de São Paulo atingiu, este ano, um de seus índices mais altos de excelência e bilheteria.
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A edição de 2019 contou com 33 filmes, divididos nas seguintes categorias: Ficção, Documentários, Curtas, Panorama Israel, além de uma sessão especial dedicada a Cristhian Petzold, com dois filmes.
A concorrida abertura aconteceu em um domingo à noite, com o Teatro d’A Hebraica de São Paulo, lotado para a exibição do premiadíssimo filme “Quem vai escrever nossa história?”. A trama cobre a história do grupo liderado pelo historiador Emanuel Ringelblum, codinome Oyneg Shabbes, responsável por esconder documentos e testemunhos das atrocidades nazistas nos guetos. Anos depois, esses documentos seriam encontrados e levados a público. Graças a esses heróis e a seu movimento de resistência, o mundo conhece a verdade sobre os horrores ocorridos.
“Quem vai escrever nossa história?”
nazismo. Seu exílio nos EUA cria um dos maiores fenômenos do jazz americano, a lendária gravadora Blue Note, em Nova York. Alfred Lion e Francis Wolf, seus fundadores, são retratados no sensível documentário, “It must schwing”, como empresários bem-sucedidos e amigos daqueles que levariam a grandes sucessos, como Miles Davis, John Coltrane e Quincy Jones, entre outros.
O universo cinematográfico da temática judaica é tão amplo como surpreendente. Cada edição do Festival depende de uma safra específica e, com o passar dos anos, os filmes estão cada vez melhores, assim como os vinhos do Golã.
O festival nos levou também a Israel. De lá veio um dos principais documentários sobre o Museu de Israel, em Jerusalém. Uma produção especial porque nos traz um filme anticonvencional, que mostra os bastidores, as pessoas que fazem com que este Museu seja um dos mais prestigiados do mundo. Com a genialidade do seu diretor Ran Tal, a obra revela a essência de um lugar, uma celebração poética da narrativa e da humanidade.
Imaginem a seguinte cena: uma jovem entra numa mansão na Alemanha, afirmando que seu carro havia quebrado. Na verdade, ela quer que o dono da casa, um ex-guarda de Auschwitz, confesse seus crimes. Os diálogos densos do filme “Caçada ao Inverno” levam o espectador a um final bastante surpreendente.
Uma das maiores surpresas foi o filme “Cadarços”, que conta a história de Reuven, um israelense que depois de divorciado há anos e separado do filho, vê sua ex-companheira falecer e enfrenta o desafio de cuidar
Essa mesma Alemanha faz dois jovens emigrarem um pouco antes da 2ª Guerra Mundial, perseguidos pelo 40
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de seu filho adulto, portador de necessidades especiais. Com humor e sensibilidade que emocionou sobremaneira o público, o filme do diretor Jacob Goldwasser se inspirou em sua própria experiência. “Black Honey” resgata a memória de um dos maiores poetas israelenses de língua iídishe, Abraam Sutkever, e as agruras sofridas pelos judeus de seu tempo. Participante do movimento clandestino Paper Brigade, que ajudou a salvar os manuscritos judaicos dos nazistas, Sutkever, curiosamente, sobreviveu à Shoá por ter sido resgatado por Stalin em um avião privado. O poeta foi testemunha dos soviéticos no Julgamento de Nuremberg. Não bastasse esse fenomenal currículo, Sutkever, em 1947, conseguiu emigrar para Israel, tornando-se um dos líderes da cultura iídishe no país, criando um dos principais jornais literários locais. Voltando à Europa, ambientado em Viena, o filme “A Tabacaria” conta a história de um jovem alemão que vem do interior da Áustria para trabalhar em um estabelecimento de um ex-namorado de sua mãe. O jovem testemunha a ascensão do nazismo e a resistência de parte da população contra essa barbárie. A grande curiosidade do filme é que Franz, esse rapaz de 17 anos, trava uma íntima amizade com Sigmund Freud, cliente da sua loja e testemunha a sua partida para Londres. Ainda na Áustria, uma das mais curiosas narrativas se passa no documentário “Você só morre duas vezes”, esta definitivamente uma não ficção apresentada pelo cineasta israelense Yair Lev, que veio especialmente ao Festival. Ele produz
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6 1. Projeto Samuel 2. Você só Morre Duas Vezes 3. Três Estranhos Idênticos 4. cadarços 5. O Museu 6. A Tabacaria
um filme que é uma história verídica, com ares de suspense, pois se trata da vida do próprio diretor que também é o ator do filme. O documentário começa quando sua mãe recebe uma herança e o filho, Lev, descobre que o falecido que deixara o testamento é um homônimo de seu avô, Ernst Brechinky, líder da comunidade judaica de Innsbruck, casado com uma mulher cuja família era de origem nazista. A saga não termina aí, trazendo ainda novas surpresas. Acima contamos apenas algumas resenhas dos filmes desse Festival, provenientes de vários países, entre os quais, Áustria, Brasil, Israel, República Checa, Hungria, Estados Unidos, França, Alemanha, Reino Unido e Portugal. Foi um trabalho dedicado de uma equipe de profissionais e voluntários ligados a diversos departamentos d’A Hebraica de São Paulo. Os números também impressionam. Com exibições em outras três salas 41
de cinema – MIS, Sesc Bom Retiro e Instituto Moreira Sales, cerca de 10 mil pessoas compraram ingressos para assistir a essa incrível seleção de filmes que não teriam como ser vistos em outros lugares.. Exemplos especiais foram o filme brasileiro “De volta ao Maracanã”, que conta a jornada de um avô, um pai e um filho que viajam de Israel para o Brasil - terra natal do avô para assistir aos jogos da Copa do Mundo; e do curta israelense, “Skin”, vencedor do Oscar de 2018, que deixa todos paralisados pelo seu final. A equipe que prepara o próximo Festival, em 2020, já cuida da seleção dos candidatos que participarão dessa incrível experiência que mescla cinema com muito judaísmo e cultura judaica. joel rechtman é Produtor Gráfico da Revista Morashá, Editor Executivo da Tribuna Judaica e diretor voluntário do departamento de cinema e biblioteca da A Hebraica de São Paulo
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Os judeus na Alemanha medieval A história da Alemanha é longa e turbulenta e a vida dos judeus que lá viviam, difícil. Eram discriminados, alvo de perseguições e massacres, acusados de assassinato ritual, de envenenamento dos poços e assim por diante. Chegaram ao auge de sua posição na sociedade durante a República de Weimar, no século 20, mas nesse mesmo século ainda teriam que enfrentar seu pior pesadelo. Atualmente, cerca de 200 mil judeus vivem na Alemanha.
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m sua longa história, os judeus alemães deram origem ao Judaísmo ashquenazita e ao reformismo judaico. São responsáveis, também, por uma parcela significativa da cultura alemã – na arte, na literatura, na música, na ciência, na filosofia. Centenas deles fizeram inúmeras descobertas científicas, outros tanto ganharam o Prêmio Nobel. Outros ainda, como Albert Einstein e Karl Marx, mudaram a história da humanidade.
que, apesar da terrível perseguição, os judeus alemães vivenciaram um renascimento religioso que os levou a serem os sucessores dos centros religiosos da Espanha e da Babilônia.
Período Romano São raras as informações sobre a chegada dos primeiros judeus na Alemanha, região denominada pelos romanos de “Germânia”. Sem limites bem definidos, a Germânia fazia parte do Império Romano e estendia-se desde a margem ocidental do Reno até as estepes da Rússia. A presença romana na região remonta ao século 1 Antes da Era Comum (AEC), quando Roma passa a subjugar tribos germânicas que viviam a oeste do Rio Reno e ao sul do Rio Meno (Main, em alemão). O Talmud e o Midrash utilizam o termo Germania ou Germamaia1 para indicar o norte da Europa, descrevendo as proezas militares dos povos que lá habitavam e o perigo que representavam para o Império Romano.
Nosso intuito é apresentar a história dos judeus desde o início de seu assentamento na Alemanha até hoje. Quando fazemos referência à história da Alemanha, estamos nos referindo a acontecimentos ocorridos nos territórios de língua alemã que correspondem aproximadamente ao Estado formado em 1871, quando foi constituído o Império Alemão. Seria impossível, ainda que resumindo, contar sua longa saga numa única matéria. Sendo assim, dividiremos o assunto em várias edições. Nesta edição, cobriremos as primeiras comunidades, a Idade Média – período em
Há, no entanto, informações de que no século 1 da Era Comum havia judeus acompanhando as legiões romanas deslocadas para a Germânia.
O nome Ashquenaz começa a ser usado apenas na Idade Média.
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A Cidade Velha, Worms
Eram artesãos, comerciantes e médicos que se foram estabelecendo nas cidades romanas. Muitos haviam sido trazidos para a Itália, após as Guerras Judaicas em Eretz Israel, como prisioneiros e, já libertos, procuravam um lugar para se assentar.
até então considerado por Roma uma religião “ilícita”. Legalizado pelo Édito de Constantino, em 313, e confirmado pelo Édito de Teodósio, em 380, o Cristianismo passa a ser considerado religião
Achados arqueológicos indicam que, no século 4, havia judeus vivendo em Augusta Raurica, às margens do rio Reno, e em Augusta Treverorum, na RenâniaPalatinado. Há também decretos imperiais datados de 321 e 331, sobre a presença de uma comunidade judaica em Colônia (Colonia Claudia Ara Agrippinensium), capital da Germânia Inferior. Nos séculos 4 e 5 muda o curso da história da Europa. Inicia-se o fortalecimento do Cristianismo,
NOIVA E NOIVO. MAHZOR DE WORMS, 1272
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oficial do Império Romano. Em paralelo, a religião judaica passa de “lícita” para “reconhecida” e, depois, para “tolerada” – até ser completamente odiada. Ainda no século 4, o Império Romano do Ocidente perde força militar e coesão política. As legiões romanas não conseguem impedir que tribos germânicas adentrem pelas fronteiras do Império, o que faz com que diferentes tribos se estabeleçam na Grã-Bretanha e na Europa Ocidental. Em 476, Odoacro, comandante germânico de legiões romanas, lidera uma revolta militar e depõe o então imperador. A coroação de Odoacro como primeiro rei da Itália marca o fim do Império Romano do Ocidente e o início da Idade Média. SETEMBRO 2019
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Alemanha Medieval Já no século 3, na região que hoje constitui a Alemanha, os Alemanni, tribos germânicas que viviam no Reno Superior, haviam rompido as linhas fortificadas romanas, estabelecendo-se ao longo do Rio Meno, expandindo seus domínios nos dois séculos seguintes. As tribos acabam unindo-se e criam uma confederação denominada Alamannia ou Alemannia. As primeiras fontes judaicas medievais usam o termo Allemania ou Lothir (Lotaríngia2) ao se referir à Alemanha. O termo bíblico Ashquenaz só passou a ser utilizado posteriormente. Apesar de haver comunidades judaicas nas províncias romanas da Germânia, não há evidências de que houvesse judeus vivendo de forma permanente no território da atual Alemanha – até a criação da Alamannia, no século 3. Os comerciantes judeus da Itália e da França eram bem recebidos e muitos se estabeleceram nas cidades ao longo dos grandes rios e rotas comerciais. Em 496, Clóvis I, rei dos francos, derrota a Alamannia e anexa seus territórios. Seu batismo, em 508, é um marco importante na história, pois, de acordo com o costume dos francos, a religião do líder devia ser adotada por todos sob seu comando e, ainda que relutassem, os francos acabam por se converter ao Catolicismo.
em pé de igualdade com os demais habitantes, com os quais mantinham relações amistosas. Podiam possuir propriedades, viver onde quisessem, seguir a ocupação que desejassem, inclusive na agricultura, e até mesmo ter cargos públicos.
Período Carolíngio Em 752, Pepino, o Breve, responsável por interromper o avanço muçulmano na Europa, foi proclamado rei dos francos, dando início à dinastia carolíngia. Com a morte de Pepino, sobe ao trono seu filho Carlos Magno (768812). O novo soberano expande seus domínios, conquistando, entre outros, todo o Reino Lombardo, e os domínios saxões e bávaros. Torna-se o mais poderoso monarca da Europa e o Papa Leão III procura sua proteção para a Igreja. A aliança entre o poder temporal – na pessoa de Carlos Magno – e o espiritual – na pessoa do Papa – é selada em Roma, no ano 800, quando Leão III coroa Carlos Magno Imperador do Sacro Império Romano. Apesar da estreita aliança com a Igreja, Carlos Magno manteve boas
relações com a população judaica. Suas campanhas de conversão forçada dos pagãos ao Catolicismo não incluía os judeus, a quem era permitido manter sua religião. Os favores e a proteção que o imperador estendeu aos judeus são cercados por lendas, mas o monarca estava ciente das vantagens trazidas a seu império pela presença dos judeus, poliglotas e com extensas conexões com outras comunidades judaicas da Diáspora. Em troca de sua promessa de aliança e lealdade, o imperador lhes assegura proteção e privilégios, bem como o direito de gerir sua vida, sua propriedade e a prática de sua religião. Deulhes liberdade em suas transações comerciais, apesar dos impostos que lhes eram cobrados serem mais elevados do que aos não-judeus. Ademais, continuavam a desfrutar o privilégio da autogestão de suas comunidades – mais uma vez, em troca de pagamento aos cofres reais. Entre as Capitulares, leis escritas que Carlos Magno aplicou a seus súditos, algumas tratam diretamente dos judeus. Determinou, entre outros, que um judeu poderia levantar uma acusação contra um cristão, CAIXA DE JÓIAS pertencente a uma familia judia. NUREMBERG, 1540. Museu de israel, Jerusalém
A princípio, a vida dos judeus não sofre sérias mudanças. Em termos jurídicos, permaneceram O nome Lorena advém do reino medieval da
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Lotaríngia.
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mas precisava apresentar de quatro a sete testemunhas, enquanto ao cristão bastavam três. Entre as várias disposições, estava a garantia de que seria punida qualquer violência contra eles. Um oficial imperial, denominado Magister Judaeorum ou Judenmeister, isto é, Mestre dos Judeus, era encarregado pela Coroa de proteger os direitos judaicos e supervisionar o cumprimento das determinações imperiais. Ao longo das margens do Reno floresciam comunidades judaicas. Os judeus participavam ativamente da vida econômica e podiam ser encontrados em todas as esferas governamentais, tanto em posições subordinadas, como cobradores de impostos, quanto nas altas esferas do poder. Tal foi o caso de Isaac, o Judeu, que Carlos Magno enviou como embaixador à corte do Califa abássida, Harun alRashid. Outros atuavam como fornecedores da Corte Imperial ou como administradores das finanças de instituições religiosas católicas. O médico pessoal do rei era um judeu chamado Ferragut. O status dos judeus permanece inalterado após a morte de Carlos Magno, quando, em 814, seu filho Luís, o Piedoso, sucede-o no trono. Na Idade Média, havia na Alemanha comunidades judaicas em Colônia, Mainz, Speyer, Worms, Tiers, Regensburg, Frankfurt e ao longo da margem ocidental do Reno, bem como na Lorena. O idioma diário usado pelos judeus era igual ao falado pelo restante da população: Ducados-troncos eram os ducados que formavam o reino. 4 Particularismo, em política, é o nome que se dá quando o povo de um lugar procura, dentro do Estado, conservar sua identidade, características e autonomia. 3
RECONSTRUÇÃO em 3D CAD DA SINAGOGA DE SPEYER, SÉCULO 14
o alto-alemão médio, ou algum dialeto germânico, ao passo que o hebraico era usado nas orações e nos estudos. A primeira menção a uma comunidade judaica em Mainz data do ano 900; em Worms, de 960; em Regensburg, de 981; e em Speyer, em 1084. Documentos do século 11 mencionam comunidades judaicas na região centro-sul da Alemanha – Bamberg, Wurzburg, Thuringia (Erfurt), Munique e Berlim. Essas datas, no entanto, não indicam necessariamente a seqüência na criação dessas comunidades. Há, também, registros sobre sinagogas inauguradas em Speyer, em 1104; em Worms, em 1174-5; em Regensburg, em 1210-20, e, em Nuremberg, em 1296.
Fragmentação do poder político Com a morte de Luís, em 840, seus filhos disputam a sucessão do império dando início a um período de guerras civis. Em 843, o Tratado de Verdun divide o Império 45
Carolíngio em três: a parte central e o título imperial couberam ao filho mais velho, Lotário; a ocidental a Carlos, o Calvo; e a oriental a Luís, o Germânico. Essa divisão estabeleceu as bases para o desenvolvimento das atuais França e Alemanha, e sua divisão cultural e linguística. A parte oriental do Império Carolíngio foi-se enfraquecendo ainda mais com a ascensão de ducados regionais, os chamados “ducados-troncos”3 (Francônia, Saxônia, Bavária, Suábia e Lorena), que adquiriram o status de pequenos reinos. Essa fragmentação territorial marcava o início do particularismo4 alemão, no qual os governantes de cada domínio promoviam seus interesses e autonomia. Mas, como veremos mais adiante, esse particularismo vai ser de grande importância quando, nas demais nações europeias, começam a expulsar os judeus locais. Com a extinção da linhagem carolíngia, em 911, a monarquia se torna eletiva. Os eleitores eram governantes dos “ducados-tronco” SETEMBRO 2019
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dessas cidades: Shin, de Speyer (em hebraico, Shpira); Vav, inicial de Worms (Varmasia); e Mem, de Mainz (Magentza). A relativa estabilidade política e econômica iniciada no século 9 atraiu um grande influxo de judeus na região do Reno. Havia entre eles grandes sábios e rabinos que se defrontaram com o desafio de adaptar as tradições dos judeus da Babilônia, Terra Santa e Mediterrâneo Ocidental às condições da vida judaica ao norte dos Alpes.
que formavam o reino. O primeiro imperador eleito é um alemão, Conrad I, duque da Francônia (reinou de 911- 918). Para muitos historiadores, sua eleição marca o início da história alemã. Quando, em 936, Otto, o Grande, sobe ao trono, começa subjugando os duques, expandindo os domínios da Coroa e se aliando à Igreja. Sai ainda mais fortalecido quando o Papa João XII, enfrentando tumultos políticos na Itália, pede sua ajuda. Em 962, o Papa o coroa Imperador do que passaria à história como o Sacro Império Romano-Germânico. A dinastia otoniana5 governou entre 919 e 1024. Durante esse período, a vida judaica não sofreu mudanças. Para entender a complexa história alemã é necessário abrir um parêntese e explicar brevemente o que era o Sacro Império RomanoGermânico, que duraria até 1806. Territorialmente extenso, era composto por reinos, principados, ducados e cidades imperiais livres, que, apesar de serem vassalos do Imperador, possuíam privilégios que, desde o ano de 1232, lhes conferiam independência de facto em seus domínios. O trono era frequentemente disputado e as dificuldades para eleger um imperador levaram ao surgimento de um colégio fixo de príncipeseleitores, o Kurfürsten. As lutas pelo poder tornavam praticamente impossível a formação de um governo central forte.
Judeu alemão minnesinger (trovador) Hugo Von Trimberg. O trabalho representa um judeu alemão que se apresenta perante o Bispo de Würzburg. C. 1300.
Kehilot ShUM – berço do Judaísmo ashquenazita As chamadas Kehilot ShUM – Speyer, Worms e Mainz – eram o centro da vida judaica medieval alemã, influenciando de forma significativa a cultura e as práticas religiosas dos judeus ashquenazim. O nome ShUM deriva das primeiras letras hebraicas que iniciam o nome Construção medieval, Worms
O maior território do Império após 962 era o Reino da Alemanha, localizado na atual República Federal Alemã. Esta dinastia também é conhecida como dinastia saxônica.
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Seus ensinamentos, decisões e influência foram fundamentais no desenvolvimento dos costumes e tradições do Judaísmo ashquenazita. As Takanot ShUm introduziram determinações que fortaleceram a vida comunitária e a autoridade de sua liderança. Quando, por exemplo, havia uma disputa entre judeus, estes não tinham permissão de apresentá-las aos tribunais não-judeus. E, suas ieshivot tornaram-se centros florescentes de estudos judaicos por mais de 500 anos. (Desde essa época o termo “ashquenazi” é aplicado não só aos
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judeus alemães, mas a todos os judeus da Europa, à exceção dos da Espanha e Portugal). As comunidades ShUM deixaramnos uma herança não apenas religiosa e cultural, mas também arquitetônica: sinagogas e mikvot (banhos rituais) em Speyer e Worms, em lindo estilo romanesco. O cemitério judaico de Mainz, com as lápides mais antigas ao norte dos Alpes, e a idade e o estado relativamente intacto do cemitério de Worms, estando em permanente uso há quase mil anos, tornam-no único no mundo. Mainz, a mais antiga das Kehilot ShUM, foi “a capital do Judaísmo europeu”, como a ela se refere o renomado historiador inglês, John Man. Até final do século 11, vivia nessa cidade a maior comunidade judaica do norte dos Alpes. No século 10, famosos rabinos lá se estabeleceram. Entre eles, membros da família Kalonymos, originária de Lucca, Itália, que durante várias gerações tiveram papel de liderança religiosa e comunitária. A família é tida como a base dos Sábios judeus da Provença e dos Hassidim ashquenazim, que eram um movimento judeu místico na parte alemã da Renânia nos séculos 12 e 13. Nesse mesmo século estabeleceuse em Mainz o Rabeinu Gershom Ben Yehudá (960-1028), conhecido como a “Luz do Exílio”. Rabeinu Gershom, “nosso Mestre”, era um modelo de sabedoria e humildade, e suas diretrizes ajudaram os judeus a adaptar seus costumes ao meio onde viviam. A Yeshivá fundada por ele atraía estudiosos de todo o continente. Ele é conhecido por suas Takanot (leis) sobre a vida em família e na sociedade, aceitas
Iluminura,MAHZOR DE LEIPZIG, SÉCULO 14, ALEMANHa
por todos os judeus da Europa. As mais conhecidas são a proibição da poligamia e o decreto contra a abertura de uma correspondência endereçada a outrem.
Idade de Ouro dos judeus alemães Na historiografia judaica o período que vai do século 9 até o final do século 11 é chamado de “Idade de Ouro dos judeus alemães”. Nesse período, a população judaica
e o número de comunidades cresceram. Além de prestamistas, os judeus alemães participavam ativamente no comércio internacional, tendo estabelecido extensas redes de comércio. Suas conexões eram mais abrangentes do que as dos mercadores não judeus, cuja influência mal ultrapassava os locais onde viviam. Eles também se haviam destacado em outras profissões, inclusive como viticultores e artesãos. No século 12, o viajante judeuespanhol Benjamin de Tudela escreveu que, nas comunidades “na terra da Alemania” havia muitos judeus sábios e ricos. Essa “Idade de Ouro”, no entanto, não foi um mar de rosas, havendo ataques esporádicos a judeus. No entanto, não foram, de forma alguma, comparáveis aos horrores que eles iriam enfrentar nos séculos seguintes, em consequência direta do fortalecimento da Igreja Católica. As incessantes lutas pelo poder, bem como a fragmentação do poder político central na Europa
O TESOURO DE ERFURT. PEDRAS PRECIOSAS, ORNAMENTOS EM PRATA E OURO, CORAIS E PÉROLAS. Alemanha, SÉCULO 14
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e na Alemanha, levaram ao fortalecimento da Igreja Católica que se tornou mais poderosa e duradoura do que todas as Coroas. Desde o século 4, a Igreja codificara grande parte de sua doutrina, incluindo os conceitos de que os judeus eram um “povo rejeitado” que devia ser separado econômica e socialmente dos cristãos. Entre outras características “maléficas”, a Igreja atribuía a todos os judeus, de todas as épocas, a suposta “culpa” pela morte de Jesus. Essa noção impregna o pensamento e o imaginário cristão, resultando em manifestações de desprezo, hostilidade e violência. Porém, apesar das pressões da Igreja, os judeus continuaram por vários séculos a desfrutar da proteção dos imperadores, príncipes e, ironicamente, das altas autoridades eclesiásticas que consideravam seus talentos e suas riquezas necessários. E, quando a Igreja proibiu os cristãos de emprestar dinheiro a juros, eles ficaram com o monopólio dos empréstimos – sempre pagando mais impostos que o restante da população. Sua relação com os governantes era, por assim dizer, simples. Eles recebiam cartas de privilégios e direitos de residência e, em troca, concediam empréstimos e, entre outros, eram incumbidos pelos governantes de coletar impostos. A população cristã os encarava com mais hostilidade ainda, fosse por motivos venais ou espirituais. Mas, em fins do século 11, a Igreja endurece suas exigências, fazendo com que os direitos civis dos judeus sofressem vários reveses. Em 1012, ocorreu a primeira expulsão de que temos conhecimento, quando foram banidos os 2 mil judeus que viam em Mainz.
PAPA URBANO II E PEDRO, O EREMITA, PROCLAMANDO A 1ª CRUZADA EM CLERMONT, FRANÇA
A 1ª Cruzada e suas consequências A 1ª Cruzada foi proclamada em 26 de novembro de 1095, pelo Papa Urbano II, em Clermont, França, com o objetivo de auxiliar os cristãos bizantinos e libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. Para os judeus, as consequências foram nefastas, dando início a uma tradição de extrema violência contra as populações judaicas.
A “verdadeira” 1ª Cruzada, conhecida como a “Cruzada dos Nobres”, seria iniciada em agosto de 1096; mas, meses antes, uma turba que incluía cavalheiros de baixa estirpe, inicia um movimento extraoficial, a chamada “Cruzada Popular” ou “dos Mendigos”. Muitos cristãos não viam razão para atravessar um continente para lutar contra os inimigos do Cristianismo, quando outros “infiéis”, os judeus, viviam em seu meio. Em abril de 1096, em Rouen e Normandia, mais de 10 mil cristãos iniciam sua própria guerra contra “os infiéis europeus”. Seguem em direção ao Norte (direção oposta a Jerusalém), saqueando e assassinando todos os judeus à sua frente. A lista de comunidades atacadas é longa. Ao chegarem a uma cidade, a eles se juntava um populacho pronto a matar e pilhar as riquezas da população judaica. Essa turba cristã não era levada apenas por motivos religiosos, muitos queriam enriquecer ou pôr um fim às dívidas que tinham com os judeus.
ANEL DE CASAMENTO. ALEMANHA, C. 1500
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Os massacres mais violentos ocorreram no vale do Reno, e são
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recordados nos anais judaicos como as Guezerot Tatnav (Desgraças do ano judaico de Tatnav, isto é, 48566). A frágil proteção dada aos judeus pelo Imperador e pelos bispos não evitou uma catástrofe de dimensões dantescas. Entre maio e julho de 1096, no vale do Reno, foram mortos mais de 12 mil judeus, suas comunidades e sinagogas totalmente arrasadas. Os relatos em hebraico narram como eles tentaram uma resistência armada, mas quando viram a desproporção em seus números e armas, optaram, com uma coragem indomável e extrema devoção religiosa, pela morte dos mártires (al Kidush Ha-Shem), ao invés do batismo. No dia 3 de maio de 1096, os cruzados chegaram em Speyer: 11 judeus foram mortos, o restante foi salvo pelo bispo da cidade. Worms foi atacada uma semana mais tarde. Famílias inteiras foram chacinadas. Ao perceber que não havia como escapar da fúria dos cruzados, os judeus refugiados no palácio do bispo optaram pela morte al Kidush Ha-Shem. “No dia 25 de Iyar (….) santificaram-se em Nome de D’us, (…) e entregaram suas almas ao Todo Poderoso, bradando, ‘Ouve Israel, o Eterno é Nosso D’us, o Eterno é Um’”. O saldo foi de mais de 800 judeus mortos. Em Mogúncia, mais de mil judeus se refugiaram no palácio episcopal. O cronista cristão Albert de Aix testemunhou o momento em que os cruzados adentraram o palácio: “Armados com picaretas e lanças, atacaram os judeus (..) matando 700 deles…”. Um dos poucos sobreviventes, Shlomo bar Shimon, relatou: “Quando os filhos da Aliança As letras em hebraico têm valor numérico.
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Sagrada … presenciaram a chegada dos cruzados, prepararam-se para o combate. Mas, ao perceber que seu destino estava selado, incentivaramse uns a outros dizendo: (..) os inimigos nos matarão, porém nada interessa mais do que nossas almas puras entrando na Luz Eterna ... Juntos, gritaram: ‘Bem-aventurados aqueles que sofrem em nome de um D’us Único’”. Mais de 1.300 corpos de judeus foram retirados do palácio episcopal.
É importante observar que apesar de ocasionalmente o Papa condenar tais ataques, a falta de veemência ou punição lhes dava uma aprovação implícita. Os ataques continuaram. Em 1144, quando é convocada uma nova Cruzada, apenas a intervenção do abade Bernard de Clairvaux conseguiu frear novos massacres. Durante as cruzadas seguintes, nos séculos 12 e 13, milhares de judeus foram repetidamente colocados
Judeus alemães, séc. 13
A comunidade de Colônia, porém, conseguiu salvar-se, pois quando os cruzados chegaram, em 1º de junho, os judeus já se haviam dispersado. Nenhum dos que participaram da “Cruzada dos Mendigos” chegou à Terra Santa. O cronista Albert d’ Aquisgran relata: “Depois das crueldades cometidas, carregando as riquezas roubadas aos judeus, …. a Cruzada continuou sua viagem rumo a Jerusalém, passando pela Hungria”. Lá foram aniquilados pelo rei húngaro, Koloman. 49
apesar das pressões da Igreja, os judeus continuaram por vários séculos a desfrutar da proteção dos imperadores, príncipes e, ironicamente, das altas autoridades eclesiásticas
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entre a cruz e a espada: a conversão ou a morte. A grande maioria optou, também, por morrer em Santificação do Nome Divino (Al Kidush HaShem).
A partir da 1ª Cruzada, os judeus vivem cada vez mais entre si, em bairros judaicos, o que lhes dava a possibilidade de manter uma vida social coesa, em maior segurança. Cada comunidade de tamanho médio tinha a sua sinagoga, uma mikvê, um local para suas cerimônias festivas e seu cemitério.
vida espiritual e comunitária A resposta judaica a tanto sofrimento foi um florescimento ainda maior da espiritualidade e devoção religiosa. Dedicavam-se ao estudo da Halachá7. Vários alunos do Rabi Guershom foram os mestres daqueles que, tempos depois, seriam os professores do Rashi, cujos comentários no Pentateuco e no Talmud abriram novos caminhos para o estudo. Os judeus alemães contribuíram para disseminar e completar esses comentários. A partir do século 12, trabalharam no campo da Hagadá e da Ética. A obra Yalkut, de Rabi Simon ha-Darshan (c. 1150); o Livro dos Piedosos, do Rabi Yehudá Halachá, o conjunto de leis e costumes que regem o judaísmo.
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Iluminura .Em letras hebraicas, Maharam, Rabino Meir.
ha-Hassid de Ratisbon (c. 1200); a obra do Rabi Eleazar de Worms (c. 1200); a coleção de Halachá, Or Zarua, do Rabi Itzhak de Viena (c. 1250); ou a responsa do Rabi Meïr de Rothenburg (falecido em 1293), são monumentos perenes da devoção judaico-alemã. Ainda nos séculos 12 e 13, os Hassidei Ashquenaz, homens devotos da Alemanha, formulam os princípios da devoção total. As gerações que se sucederam passaram a glorificar a morte al Kidush Ha-Shem ao invés da apostasia.
DOCUMENTO QUE READMITE os JUDEUS EM SPEYER, 1352.
É também nesse período que os judeus seguem o fluxo de imigração dos alemães cristãos, a caminho do Leste. Com a bem-sucedida colonização das terras eslavas, o império passa a incluir Pomerânia, Silésia, Boêmia e Morávia. O número de judeus a se estabelecer nessa região cresce em consequência da intensificação das perseguições.
Mudanças econômicosociais No início do século 13, o papado atingira o auge de seu poder. Em 1215, o Concílio Latrão IV, liderado pelo Papa Inocêncio III promulgou cânones antijudaicos visando “impedir a contaminação dos cristãos”. O Concílio “alertou” os monarcas da Europa no sentido de adotar uma legislação que obrigava toda a população judaica a viver em bairros separados e a portar em suas vestes o “distintivo judaico”, humilhante e discriminador. Eram, também, proibidos de exercer “profissões cristãs”, ocupar cargos públicos, sendo banidos da agricultura e das corporações. Além disso, o Concílio aprovou canonicamente a Inquisição, instituindo os tribunais do “Santo Ofício”. A condenação da usura, ainda mais severa, e o fato de as corporações das cidades já terem forçado os judeus a deixar suas diferentes atividades comerciais, fazem com que os empréstimos e as penhoras passem a ser a principal ocupação dos judeus
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da Alemanha. O ódio religioso das massas passa a ser alimentado ainda mais por motivos econômicos. A Coroa estava ciente de que precisava dar proteção legal aos judeus, pois seu valor econômico em muito superava qualquer sentimento antissemita. A primeira tentativa havia sido a emissão de cartas de residência e privilégios. Mas, após os ataques dos cruzados, ficou claro que os judeus necessitavam proteção contra o fanatismo das turbas cristãs – não como residentes, mas como súditos. Surge uma solução temporária com o tratado de Paz Geral, em 1103, que classifica os judeus, junto com as mulheres e os clérigos, como pessoas sujeitas à proteção pelo fato de não conseguirem se auto proteger.
os judeus são convidados a voltar aos locais de onde haviam sido expulsos. Contudo, dependendo dos interesses econômicos dos donos do poder, eram novamente expulsos. Era a chamada “política da esponja”, cujo modus operandi era simples: os judeus eram incentivados a emprestar dinheiro; em seguida, eram “espremidos”: tributação especial e outros artifícios escusos. E, como último recurso, eram expulsos e seus bens, confiscados. Decorrido algum tempo, eram convidados a retornar. E o ciclo se repetiu durante toda a Idade Média. Na Alemanha, cada nova expulsão
No final da Idade Média, eles se tornam os “responsáveis” por todas as desgraças que atingiam os cristãos. Para se entender a percepção do judeu no imaginário cristão, basta dar uma olhada na literatura e arte medieval – eles eram colocados no mesmo nível que os demônios. Com o tempo, foram alvo de mais acusações – assassinato ritual, profanação da hóstia, envenenamento dos poços d’ água, entre outras. Foram acusados de praticar assassinato ritual em Mainz (em 1281 e 1283), Munique (1285) e
Em 1236, muda mais uma vez a condição judaica. O imperador Frederico II declara todos os judeus como Kammerknechtschaft (em latim, Servi camerae regis, servos da Câmara Real). Isso significava que a receita gerada por eles era uma regalia do imperador e, portanto, pertencia ao tesouro imperial (“câmera”), e era obrigação do Imperador protegê-los. Do ponto de vista legal, a condição de Kammerknechtschaft significava que os judeus e suas posses eram “propriedade” dos imperadores. É bem verdade que os judeus passaram a ter um maior grau de proteção, mas os imperadores usavam suas prerrogativas mais com o propósito de cobrar mais impostos do que de protegê-los. Com o tempo, eles descobriram outras formas de tirar partido de “seus” judeus, vendendo, por alto preço, o direito de lhes cobrar impostos. Ademais, com a extrema necessidade de receita dos governantes, envolvidos em infindáveis guerras,
Iluminuras DO PENTATeUCO DE REGENBURG DATADO DE CERCA DE 1300, O SUMO SACERDOTe AARON APARECE ACENDENDO O CANDELABRO DE SETE BRAÇOS
enfraquecia as comunidades, ainda que posteriormente fossem convidadas a retornar.
Violência antijudaica nos séculos 13 e 14 No final do século 13 e na primeira metade do 14 a violência antijudaica aumentou em toda a Alemanha e, durante 50 anos, os judeus sofreram ataques devastadores. 51
Oberwesel (1287). Em 1241, 80 judeus foram mortos em Frankfurt durante um pogrom conhecido como Judenschlacht (Matança dos Judeus). A primeira perseguição em grande escala contra os judeus, desde a 1ª Cruzada, ocorreu em 1298. Quando uma guerra civil estourou na Alemanha do Sul e Central, um cavaleiro da Francônia de nome Rindfleisch, estando em dívida com banqueiros judeus, declara ter sido SETEMBRO 2019
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incumbido de uma “missão divina: exterminar os malditos judeus”. Os pogroms conduzidos por Rindfleisch começaram em abril de 1298, em Rottingen, quando 21 judeus acusados de “profanar a hóstia” são queimados na estaca. Rindfleisch liderava uma turba de cristãos que massacrou e pilhou comunidades judaicas em Francônia e na Bavária. O resultado foi a destruição de 146 comunidades judaicas, entre elas as de Rottenburg, Wüezburg, Nuremberg e Bamberg. Em muitos lugares, os judeus resistiram com armas em punho, mas mais de 100 mil perderam a vida, muitos escolhendo morrer al Kidush Hashem. O Imperador Albert I inutilmente advertiu a multidão desordenada contra outros ataques, mas os massacres continuaram em Gotha (1303), Renchen (1301) e Weissensee (1303). O período de 1336-37 foi marcado pelos catastróficos Pogroms dos Armleder8, que destruíram 110 comunidades judaicas da Bavária à Alsácia. Para os judeus, o sofrimento estava longe do fim. Outra série de massacres ocorreu na Alemanha durante a Peste Negra, a epidemia de peste bubônica que varreu a Europa e a Ásia (1346-1353). Chegando a seu auge na Europa de 1347 a 1351, a Peste Negra matou entre um terço e a metade da população do continente, estima-se cerca de 25 milhões de pessoas. Os judeus foram acusados de causar o flagelo. Na época não se conheciam as causas da peste; acreditava-se que fosse pestis manufacta, uma doença 8
prestamistas na sociedade, após o fim da epidemia os judeus tiveram permissão de voltar a residir em algumas cidades alemãs, mas sujeitos a severas restrições e inúmeros impostos. Entre 1352-1355 eles voltam a Erfurt, Nuremberg, Ulm, Speyer, Worms e Trier.
Antiga Torre, Worms
provocada por uma substância indutora secretamente produzida pelos inimigos do Cristianismo. Os supostos culpados eram os judeus, que teriam envenenado os poços. A Alemanha e todo o resto da Europa foram tomadas por uma gigantesca onda de antissemitismo. Milhares de judeus foram assassinados, suas propriedades destruídas. Na Alemanha apenas, mais de 300 comunidades judaicas desapareceram. Mas, como não houvesse mais ninguém para cumprir a função de Antigo cemitério judaico, Worms
Os Armleder eram marginais que usavam braçadeiras de couro e realizavam pogroms contra os judeus na Alemanha, no século 14.regem o judaísmo. 52
Houve, também, um aumento na exploração por parte do imperador que passa a exigir um imposto sobre “todo homem judeu e todas as viúvas, de 12 anos de idade para cima”. Declara, também, uma moratória das dívidas aos judeus, em 1385 e em 1390, o que resultou num severo golpe em sua situação econômica. Por conta dos ataques violentos e dos opressivos impostos, a vida judaica na Alemanha sofreu muitos golpes. Tudo isso não conseguiu destruir sua intensa atividade religiosa, ainda que o estudo profundo e abrangente tivesse se tornado mais raro após meados do século 14. Isso levou ao hábito de permitir que só se tornassem rabinos aqueles que pudessem apresentar uma autorização para ensinar (Hatarat hora’á), emitida por um dos mestres reconhecidos. Os costumes e os regulamentos relativos
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à forma do culto eram estudados em profundidade, e foram fixados, definitivamente, como o ritual das sinagogas da Alemanha.
O século 15 Não houve mudança, no século 15, quanto à precária situação dos judeus. Foram anos marcados por pogroms, libelos e expulsões. No sul e leste da Alemanha, com menos cidades e a economia mais atrasada, os judeus tiveram mais facilidade de ganhar seu sustento. Era também a rota para a Polônia, que, gradualmente se tornou seu refúgio. O que acontecera na 1a Cruzada voltou a suceder durante a chamada Guerra dos Hussitas (1419-1434), levando ao reinício das perseguições contra os judeus na Boêmia, Morávia e Silésia. Durante esse conflito armado, os partidários de João Hus, precursor do movimento protestante e considerado herege por Roma, tiveram que enfrentar a Igreja e Albert V, Imperador do Sacro Império. Uma crônica judaica da época, intitulada “Wiener Geserá” (Desgraça de Viena), relata os trágicos eventos. No outono de 1420, irrompe a perseguição; os judeus são presos, torturados e executados; as crianças são vendidas como escravas ou convertidas à força. Todos escolhem morrer Al Kidush HaShem antes que seus algozes os assassinassem. Logo a seguir, Albert V acusa os judeus de fornecer armas para os hussitas e, em março de 1421, mais de 200 morrem na fogueira. Em 1420, 1438, 1462 e1473 foram sucessivamente expulsos de Mainz, em 1424 de Colônia, em 1440 de Augsburg. Em 1475 outro libelo de sangue ocorre em Trent, provocando ataques contra os judeus
O Castelo de Nuremberg
em toda a Alemanha, bem como a sua expulsão do Tirol. Várias cidades os expulsaram. Na primeira década do século 16, dentre as mais importantes cidades da Alemanha, apenas Worms e Frankfurt ainda tinham grandes comunidades judaicas. Nessa última, a partir de 1458, a Câmara dos Vereadores começou a construir casas para os judeus fora dos muros da cidade. Após quatro anos, eles foram forçados a se mudar para essas casas. No século 16, a comunidade judaica de Frankfurt era uma das mais importantes da Alemanha. Nesse período a história da Alemanha foi marcada pela desunião do Império e o enfraquecimento do imperador, em favor dos príncipes. Isso evitou as expulsões, em larga escala e por todo o país, como ocorriam em outros países da Europa. Na Alemanha, quando os judeus eram expulsos de uma área, eles podiam viver temporariamente em um local vizinho, até que pudessem retornar a suas casas. Mas, a falta de uma autoridade central os deixou à mercê dos governantes locais. Em geral, o imperador, os príncipes e as cidades imperiais 53
lhes davam proteção. No entanto, um único pregador fanático tinha capacidade de inflamar as massas contra eles. Tornou-se constante seu fluxo das províncias do Reno e Danúbio para as terras polonesas. Essa imigração dificilmente teria tido a dimensão que teve não fossem as nefastas circunstâncias que forçaram um grande número de judeus a buscar refúgio na Polônia. O número cresceu em consequência das Cruzadas de 1146-1147 e de 1196, e da intensificação das perseguições durante os séculos 12 e 13. O final do século 15 é visto como a ponte entre o final da Idade Média e o início do Renascimento, uma nova época para o mundo cristão. Mas que não trouxe alívio nem sossego aos judeus…
BIBLIOGRAFIA
Gidal, Nachum Tim, Jews in Germany: From Roman Times to the Weimar Republic, 1998 Gay, Ruth, The Jews of Germany: A Historical Portrait, 1994 SETEMBRO 2019
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GYULA ZILZER, O ARTISTA por REUVEN FAINGOLD
Em 2002, a Biblioteca Nacional de Israel, em Jerusalém, recebeu valioso material iconográfico do acervo que pertenceu ao artista Gyula Zilzer, incluindo documentos pessoais, fotografias, correspondência, obras literárias, desenhos e litografias. A seguir, um retrato do perfil deste artista judeu húngaro, que, de certa forma, previu a catástrofe que iria se abater sobre os judeus da Europa.
G
yula Zilzer nasceu em Budapeste, em 1898. Filho de artistas talentosos, já na sua juventude demonstrara forte interesse por pintura além das máquinas, invenções e avanços tecnológicos.
deposta a coalizão governamental, assumindo, em seu lugar, a extrema esquerda comunista, liderada por Bela Kun. Entre as lideranças do movimento, figuravam inúmeros judeus, inclusive o próprio Kun. Desencadeia-se no país uma onda de “terror vermelho” e, após cinco meses de violência, o governo é derrubado por uma coalizão conservadora nacionalista.
Em 1917 deixa a Hungria para ir para a Rússia com dois amigos, Trotzer e Mintzoi. Sua ida foi possível uma vez que o governo húngaro mantinha relações diplomáticas amistosas com a nova nação, após a Revolução Bolchevique de 1917.
De imediato instala-se no país um regime autoritário, assumindo o governo o almirante Miklos Horthy, que ficaria 24 anos à frente do país. Comunistas e judeus se tornam alvo do “terror branco”. O antissemitismo que toma conta do país é acirrado pela crise econômica e o temor de uma revolução socialista.
Ao lá chegar, desenvolveu com os dois amigos um torpedo controlado por ondas de rádio ou por radiação eletromagnética, e os jovens inventores foram convidados a trabalhar em uma fábrica militar para construir esse torpedo em favor dos soviéticos. O projeto em questão não vingou e os três retornaram a Budapeste. O torpedo acabou sendo patenteado secretamente pelos alemães, servindo de base para inovações tecnológicas, como o discador de telefone e um inovador sistema de controle de mísseis.
De volta a Budapeste, Gyula Zilzer é impedido de continuar seus estudos acadêmicos em engenharia, pois, entre outras legislações antijudaicas havia sido aprovada uma lei, de aplicação do princípio de numerus clausus, que limitava o número de estudantes de origem judaica nas universidades húngaras. Em 1919, ele deixa a Hungria e vai para Trieste, na Itália. Lá funda uma fábrica com outros sócios, enquanto nas horas vagas começa a se dedicar à pintura.
Em novembro de 1918, a Hungria foi proclamada república independente. Meses depois, em 1919, era 54
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Gyula Zilzer EM SEU ATELIÊ
Em 1922, já exibindo o grande talento que o caracterizaria, Zilzer vai para Munique, onde fica um ano, estudando desenho na escola do renomado mestre alemão Hans Hoffman. Em 1924, de volta a Trieste, ele consegue adquirir um certificado que atesta “sua condição de cristão” e retorna à Hungria. Matriculase na Academia de Belas Artes de Budapeste, onde estuda com renomados mestres como Vaszary János e Csók István.
de belas litografias, intitulada Kaleidoskop (caleidoscópio). O sucesso desse trabalho lhe permitiu deixar definitivamente a Hungria. Paris foi a residência de Gyula Zilzer entre 1924-1932. Na França, trabalhou para a revista Clarté e no jornal L´Humanité, ambos
A partir de 1929, as matérias de Zilzer adquirem caráter antifascista, sendo os alvos preferidos Adolf Hitler e Benito Mussolini.
Quando os membros da Academia descobrem sua identidade judaica, Zilzer é imediatamente afastado da instituição, com a alegação de que lhe “faltava talento”. Mas, o “veredicto” dos membros da Academia não o desencoraja e continua a pintar uma coleção
instrumentos de comunicação do partido comunista, mobilizando intelectuais franceses contra a 1a Guerra Mundial. Essa revista, criada entre 1916 e 1917, provém do título do romance do escritor comunista, Henri Barbusse (1873-1935), publicado em 1919. Ele era um pacifista, e seus textos demonstravam um crescente ódio aos militares. Mais tarde, ele se torna comunista.
Gyula se casa com Mary Fuchs, uma judia húngara.
ÁLBUM “KALEIDOSCOP” (1924) Na década de 1920, a série de litografias “Kaleidoskop” registra
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a possibilidade concreta de uma nova guerra na Europa, inspirada em regimes nazistas e fascistas que agitavam o Velho Continente. Zilzer, com uma visão quase profética, desenha o que se poderia chamar de prenúncio das atrocidades que seriam cometidas a partir de meados da década de 1930 pelo “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”, em que opositores do regime de Adolf Hitler começam a ser deportados para campos de trabalho forçado e de concentração. Sabemos que os “lager” não foram invenção do Nazismo; houve campos de concentração e detenção em outros países. No entanto, nada se compara à crueldade criada pelos nazistas. Auschwitz, Treblinka, Majdanek, Sobibor, Chelmno ou Belzec são campos de extermínios, poder-se-ia dizer, um mundo à parte. Como dissemos acima, uma realidade que não pode ser comparada com os campos que
Schutzstaffel, as SS, temidas forças de choque do Terceiro Reich. Logo depois, serviu como modelo de organização para outros campos que seriam edificados.
GYULA ZILZER, AUTORRETRATO, 1924
existiram na África do Sul, durante as “Guerras dos Bôer”, ou na URSS dos extenuantes Gulags, presídios estruturados no regime de trabalho forçado. O primeiro campo de concentração em território alemão foi estabelecido em Dachau pouco depois de Hitler assumir o poder, em 31 de janeiro de 1933. Desde sua abertura, os nazistas outorgaram a esse campo um papel central, funcionando primeiramente como base de treinamento das
Os prisioneiros reclusos em Dachau, fosse para serem “reeducados”, fosse em prisão preventiva, eram principalmente membros de organizações antinazistas, grupos religiosos, movimentos de resistência ou indivíduos que criticavam abertamente o regime nacionalsocialista e Hitler. Até 1938, esse campo era composto exclusivamente por alemães, depois por austríacos e, gradualmente, foi ficando lotado de prisioneiros de várias nacionalidades. Lá esteve, também, o maior grupo de eclesiásticos presos, cerca de 3 mil padres, em sua maioria, poloneses. Milhares de judeus foram encarcerados em Dachau entre 1938-1939, quando a política do Terceiro Reich ainda era “acelerar” a saída em massa dos judeus como forma de resolver a “Questão Judaica” (Judefrage), na Alemanha. Gyula Zilzer se identificou com o movimento artístico expressionista, usando-o para denunciar, de forma contundente, os horrores da ideologia nazista nos primeiros anos de Hitler. Poucos meses após assumir, o Führer declarara o boicote ao comércio judaico. Em 10 de maio de 1933 foram queimadas em praça pública, em várias cidades da Alemanha, as obras de escritores alemães considerados “inconvenientes” ao regime. Mais tarde, havia banido os autores judeus (Einstein, Zweig, Freud e Spinoza). Como se via, Hitler e seus comparsas pretendiam fazer uma “limpeza” na literatura.
Desenhos de Zilzer representando os campos de concentração (1933).
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Em 1936, ano das Olimpíadas de Berlim, quando ninguém pensava
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IlustraçÕES “Ataque a Gás” – Paris, 1932
ou registrava em desenhos a existência de campos nazistas, os desenhos de Gyula Zilzer sobre os campos de concentração nazistas foram utilizados como capa na obra Women & Children under the Swastika (Mulheres e crianças sob a suástica), publicada em Nova York naquele ano. Era uma forte denúncia da opressão instituída no regime do Terceiro Reich. Por outro lado, em Paris, o artista judeu húngaro Zilzer é convidado para ilustrar trabalhos literários do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), publicados pela famosa editora Picart.
Nos desenhos do “Ataque a Gás” nos deparamos com uma realidade assustadora. A morte está presente em praticamente todos os cantos. Num deles é possível observar uma estação de trem ou de metrô, e nela um número incontável de civis e soldados atingidos por um gás venenoso. Todos usam suas máscaras com sistema de oxigênio, certamente tentando fugir de um ataque direcionado à população urbana. Suas cenas transmitem aflição e tristeza; há seres humanos agonizando, médicos usando
“ATAQUE A GÁS” Em 1932, Gyula Zizler apresentou em Amsterdã a exposição “Ataque a Gás”, um álbum de 24 litografias em que censurava o uso de gás venenoso como uma arma de combate, como foi feito na 1ª Guerra Mundial. O primoroso catálogo foi prefaciado pelo novelista, biógrafo e músico francês Romain Rolland. Nesse mesmo ano, devido ao enorme sucesso, a mostra segue para os Estados Unidos.
Litografia No 10: “Estação de trem com gases”
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máscaras tentando socorrer pessoas asfixiadas com dificuldade de respirar. Sente-se o pânico entre as pessoas, que são atendidas e evacuadas em macas provavelmente rumo aos hospitais. Na introdução ao portfólio “Gás”, o escritor Romain Rolland (18661944), Prêmio Nobel de Literatura em 1915, transmite um pouco de consolo aos amantes da paz mundial. Ele diz: “Os ataques químicos levarão à destruição, como o fez a Peste Negra, no século 14... Eles consumiram certas formas de civilização, na Europa, como também na civilização americana, fortemente urbana e cultural... Não há forma de escapar da guerra. Acredito que a insanidade humana seja [hoje] irremediável. Mas, isto não isenta os homens racionais de se manifestar, senão por segurança pelo menos que seja por respeito mútuo. Posso tranquilizar aqueles que temem o fim da raça humana. A vida da besta está ligada a seu corpo. Isso já foi [anunciado] e desperdiçado umas cem vezes. Ela sobreviverá a essa pestilência, uma vez que sobreviveu a outras, mas será subjugada e mais uma vez levada para longe, por séculos. Esta é sua maneira de progredir. SETEMBRO 2019
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aparece preparando a comida, o outro, um pouco mais atrás, toca calmamente sua flauta.
Sua tenacidade de viver novamente contrabalança seu frenesi de morrer”. Seguindo a linha crítica do pintor alemão Otto Dix, o pacifista Zilzer censura o uso de gases, reagindo duramente através de sua arte contra o surgimento do Nazismo e do Fascismo na Europa. Ele mesmo dá a impressão de ter sentido na carne a intolerância desses regimes totalitários, que inseriram o antissemitismo no centro de sua plataforma política. E foi esse antissemitismo o que o levou a deixar a “Academia de Belas Artes” de Budapeste e partir rumo aos Estados Unidos, em 1932.
“TWO HOBOS” A coleção do Smithsonian American Art Museum (SAAM), de Washington DC, possui uma obra importante do pintor Gyula Zilzer. Trata-se da tela “Two Hobos”.
ESTADOS UNIDOS Zilzer deixa a Europa e chega aos Estados Unidos exatamente um ano antes de Hitler tomar o poder, na Alemanha. Ficou um ano viajando pelo país, sempre desenhando e pintando.
“Two Hobos” de Gyula Zizler
As telas de algumas de suas coleções são fieis retratos dos horrores perpetrados pelo Terceiro Reich
O termo hobos, em língua inglesa, designa um trabalhador itinerante, sem teto, pobre, porém dono de uma curiosidade única. Ele costuma viajar sempre despreocupado, sem destino, como um passageiro clandestino de presença garantida nos trens de carga. Essa figura teria surgido ao noroeste dos EUA durante a última década do século 19. Nasceu talvez durante a crise econômica de 1893-1897, e sua imagem era ainda comum ao longo das primeiras décadas do século 20, sobretudo nos anos da Grande Depressão.
Durante o período da perseguição nazista aos judeus, destituindo-os de seu emprego e lhes cerceando os movimentos, este tipo de judeus era visto com frequência especialmente em zonas rurais do Leste Europeu. Ofereciam seus serviços nas ruas dos vilarejos (shtetls) cortando lenha, consertando objetos, afiando facas ou fazendo tarefas domésticas, enquanto outros mais abençoados tocavam instrumentos ou cantavam pelas aldeias.
A associação entre esses itinerantes e os judeus é obrigatória, pois estes últimos eram errantes como os desempregados e os sem rumo; vagavam pelo Leste Europeu vindos de famílias pobres, perambulavam pelas estradas sem destino fixo,
No caso específico da tela de Zilzer, os hobos são judeus lenhadores, que aparecem cercados por troncos de árvores, um amontoado de lenha, gravetos e até um machado com o qual realizam suas tarefas. Enquanto um deles, com uma perna amputada,
guiados somente por um inabalável espírito aventureiro.
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Durante sua estada nos EUA, ele fez parte da WPA (Works Progress Administration), a maior agência de trabalho do New Deal, a política econômica implementada, em 1933, pelo presidente americano Franklin D. Roosevelt, que oferecia empregos a milhões de desempregados, administrava projetos públicos e construía edifícios e estradas. No WPA havia um departamento denominado “Federal Project Number One”, totalmente dedicado a projetos artísticos, oferecendo trabalho a músicos, desenhistas, pintores, atores e escritores. Estes artistas produziam murais, esculturas, cartazes, posters, fotografias, catálogos de desenho e artesanato. Este projeto – idealizado em tempos de crise econômica – permaneceu ativo entre 1935 e 1943, gerando aproximadamente 200.000 trabalhos artísticos, considerados grandes obras de arte americana. Em 1939, Zilzer mudou-se para Hollywood e passa a atuar na indústria cinematográfica. Trabalhou como diretor de criação de filmes famosos. Além de sua ativa participação no cinema, o artista inventou patentes originais, como veículos de brinquedo com estacionamentos subterrâneos. Terminada a 2ª Guerra Mundial, Zilzer voltou à Europa, visitando
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Paris e Budapeste no início da década de 1950. Em 1954 mudase para o que seria sua residência definitiva, a cidade de Nova York, onde trabalhou para as redes de televisão NBC e Cinerama. Mas continua pintando e expondo até sua morte, em 1969. Apesar de viver uma vida tumultuada, Gyula Zilzer conheceu diversas personalidades da época, dentre elas o escritor e publicitário americano Upton Sinclair (1878 1968), o cineasta francês Jean Vigo (1905 - 1934) e o célebre pintor mexicano Diego Rivera (1886 1957), marido da pintora Frida Kahlo. Em seu restrito grupo de amigos figuram o ator americano Gregory Peck (1916-2003), o novelista francês Romain Rolland (18661944), o jornalista judeu ucraniano Ilya Grigoryevich Ehrenburg (18911967), o escultor romeno Constantin Brancusi (1876-1957), o poeta húngaro József Attila (1905-1937) e os escritores Henry Miller (18911980) e Elie Wiesel (1928-2016), o maior memorialista do Holocausto consagrado com o Prêmio Nobel da Paz em 1986.
BIBLIOGRAFIA
Feoli Fine Arts. Gyula Zilzer. www. feolifineart.net Gaz. 24 lithographies de G. Zilzer. Avantpropos de Romain Rolland. Editions du Phare. Grande Librairie Universelle, Paris 1932. Greenstein, Shaul, The artist who forewarned the dangers of the Nazis. The Librarians. April 9th, 2018. Versão em hebraico: Haoman haiehudi shechazá betziurav et zvaot hanatzim. Gyula Zilzer. King’s Gallery - July 22. 2016. Paramour Fine Arts. Gyula Zilzer http:// www.paramourfinearts.com
GYULA ZILZER, EM BUDAPESTE, EM 11 DE DEZEMBRO DE 1921
Gyula Zilzer manteve contatos com o cientista Albert Einstein, a quem ofereceu alguns de seus trabalhos. Existe inclusive uma correspondência do renomado físico, de 26 de março de 1933, agradecendo o presente recebido.
PALAVRAS FINAIS Felizmente, o artista Gyula Zilzer esteve longe do palco dos acontecimentos da 2ª Guerra Mundial e da tragédia do Holocausto. Antes de Hitler tomar o poder na Alemanha, já estava trabalhando nos Estados Unidos. Através de sua arte denunciou publicamente as atrocidades cometidas com seus semelhantes no período entre as duas guerras. Os numerosos desenhos desse grande representante do movimento expressionista europeu são parte inseparável de seu pensamento crítico. Sua obra nos traz um olhar visionário do que seria a década de 1940, período da maior expansão militar da Alemanha e das deportações de judeus a campos de concentração e extermínio que culminaram nos horrores da Shoá. 59
Suas delicadas litografias “Kaleidoskop”, “Gaz”, “Hitler gritando sobre a Guerra” e “Campos de Concentração” testemunham com força total a decadência humana em toda a sua extensão. As telas dessas coleções são fieis retratos dos horrores perpetrados pelo Terceiro Reich durante os anos 1933-1945. Atualmente, os trabalhos de Zilzer encontram-se dispersos pelo mundo, principalmente em museus da Europa e dos Estados Unidos. Há um grande empenho em resgatar a memória deste artista judeuhúngaro, organizado pela “Henry J. & Erna D. Leir Foundation”, entidade localizada em Connecticut. Sem sombra de dúvida, o valioso acervo iconográfico recebido recentemente pela Biblioteca Nacional de Israel, abrirá o caminho para novas pesquisas e outorgará ao artista uma maior visibilidade no mundo das artes.
Prof. Reuven Faingold é historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.
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ARQUEOLOGIA
Estrada da Peregrinação A cidade de David já ocasionou mudanças em Jerusalém. a recente descoberta da antiga estrada de peregrinação comprova, mais uma vez, o antiquíssimo vinculo dos judeus com Jerusalém . A cidade sagrada, capital de Eretz Yisrael, a Terra de Israel, constitui o ponto focal do Judaísmo, o local em que havia sido erguido o Grande Templo, destruído pelos romanos em 70 EC.
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as obras realizadas na cidade de Jerusalém e em suas redondezas é procedimentopadrão ter arqueólogos acompanhando os trabalhos. Nunca se sabe o que pode vir a ser descoberto de forma acidental, e, no campo da arqueologia, um pequeno achado pode vir a ser o primeiro passo para importantes descobertas.
a chamada Estrada da Peregrinação. De acordo com os arqueólogos, a Estrada é o caminho que milhões de judeus percorriam três vezes por ano para cumprir o mandamento de Aliyah L’regel – subir à cidade sagrada de Jerusalém durante as três festas judaicas de peregrinação – Pessach, Shavuot e Sucot. Havia um debate entre Hillel e Shammai – os renomados Sábios do século I que figuram com destaque na Mishná, em relação à idade com a qual o pai de uma criança era obrigado a incluí-la nas peregrinações. Shammai dizia que, desde o momento em que ela conseguisse se sentar no ombro de seu pai. Hillel, por sua vez, era da opinião de que ela deveria ser incluída quando conseguisse percorrer a estrada de 750 metros.
O rompimento de um cano de esgoto no bairro de Silwan, em Jerusalém, em 2004, foi o primeiro passo para incríveis descobertas. Entre outros, levou à descoberta da Piscina de Shiloá – o principal canal de drenagem que havia servido a antiga Jerusalém. Hoje, esse canal tornou-se o túnel que os visitantes da Cidade de David percorrem. A visita começa no fundo de Shiloá e termina 45 minutos depois, ao lado do Muro Ocidental.
Segundo Flavius Josephus, anualmente cerca de 2.7 milhões de pessoas costumavam visitar Jerusalém e ir ao Grande Templo para oferecer sacrifícios durante essas três festas.
Em junho último foi revelada mais uma importante descoberta: 60
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De acordo com Doron Spielman, vice-presidente da Fundação Ir David1, quase todos os peregrinos judeus entravam na cidade por essa Estrada que se estende da Piscina de Shiloá à área adjacente ao Muro Ocidental, conhecida como Arco de Robinson, onde ainda podem ser vistas partes da antiga escadaria que levava ao Templo. Hoje, andando pela Estrada da Peregrinação, da qual já foram escavados 250 metros, é possível imaginar multidões de judeus percorrendo-a antes da destruição de Jerusalém e do Grande Templo pelos romanos no ano 70 EC. Durante os trabalhos de escavação das ruínas foram encontradas algumas das lojas que margeavam o caminho. Perto de uma delas havia degraus que levam a uma plataforma. Arqueólogos acreditam que esta era usada para dar avisos e fazer discursos. A seu lado foram encontrados restos queimados de palmeiras, daquelas que não dão frutos, e que provavelmente haviam sido plantadas para proporcionar sombra. Ainda de acordo com Doron Spielman, “Para entender Jerusalém, é preciso estar aqui. Fomos exilados no ano 70 da EC, oramos três vezes ao dia e estabelecemos um Estado Judaico. O último suspiro dos judeus daquela época está aqui, abaixo de nós. A Cidade de David é o coração do Povo Judeu e é impossível arrancar um coração.”
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Estrada da Peregrinação
Spielman revela ainda que milhares de moedas foram encontradas nas quais foram cunhadas as palavras “Liberte Tzion”. “Esse foi o grito de guerra dos judeus de Eretz Israel durante sua luta contra os romanos. Os judeus cunharam as moedas sabendo que não poderiam derrotar Roma, mas queriam deixar algo tangível para os judeus que voltariam um dia.” Acrescenta, ainda: “A descoberta da Estrada de Peregrinação é fundamental para nossa compreensão da história. Uma coisa é ler na Mishná e imaginar ou visualizar como foi um dia a vida dos judeus. Outra é caminhar pela mesma estrada que percorriam”.
Durante os últimos meses, a Fundação, “Ir David” tem trabalhado dia e noite a fim de ligar a parte já escavada da estrada à Piscina de Shiloá. Tratase de um trabalho tedioso, que precisa ser feito vagarosamente. Cada centímetro escavado precisa ser reforçado com vigas de aço para preservar a moderna cidade acima. A Fundação espera que, quando a estrada fique pronta e seja oficialmente inaugurada, em alguns meses, receberá anualmente um milhão de visitantes. Considerando as constantes resoluções anti-Israel das Nações Unidas, entre as quais a da Unesco que nega a conexão dos judeus com Jerusalém, a Estrada da Peregrinação tem um importante significado para Israel, como explicou em entrevista Ze’ev Orenstein, diretor de Assuntos Internacionais para “Ir David”. É a prova da longa e histórica conexão dos judeus com Jerusalém, não apenas as áreas nas quais os judeus vivem atualmente, mas também por toda a cidade.
arco de Robinson
A Fundação “Ir David”, conhecida como Elad [El’ad] (um acrônimo em hebraico para “rumo à Cidade de David”) é uma associação israelense sediada em Jerusalém, que visa fortalecer a ligação judaica com Jerusalém.
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ISRAEL
Museu Amigos de Sion
No coração de Jerusalém, entre a modernidade e a antiguidade, foi inaugurado em 2015 um museu para homenagear não judeus que ao longo das décadas não só salvaram nossos irmãos, mas também tiveram participação importante na criação de um Lar Nacional Judaico em Eretz Israel.
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iz um provérbio judaico que quem salva uma vida, é como se tivesse salvado o mundo inteiro. Localizado no coração de Jerusalém, há um local especial que conta histórias do heroísmo de cristãos que arriscaram sua vida para ajudar judeus ao longo dos últimos dois séculos. Inaugurado em 2015, o Museu Amigos de Sion (Friends of Zion Museum - FOZ) é visita obrigatória para quem vai à cidade. Utilizando as mais avançadas tecnologias audiovisuais e de interatividade, leva os visitantes a uma viagem através do tempo que começa quando D’us disse a Abraham “Lech Lechá” – “Lech (vá) Lechá (ao seu interior) e lá você encontrará forças para superar (sair): Meartsechá (da tua terra - do que lhe é familiar), Mimoladtechá (do local onde nasceste – dos hábitos adquiridos em teu ambiente), Umibeit Avicha (da casa de teu pai – da educação que recebeste em casa)”.
Há mais de dois séculos os judeus podem contar com o apoio e a coragem dos chamados cristãos sionistas – cristãos que acreditavam no direito judaico a Eretz Israel –, as vezes com o sacrifício de sua vida. Em Israel há uma consciência cada vez maior desse apoio histórico; no entanto, muitos desses personagens ainda são desconhecidos. Assim, ao lado de nomes internacionalmente conhecidos por sua coragem e determinação, como Yrena Sendler e Oskar Schindler – que durante o período da Shoá correram sério perigo para ajudar judeus a escapar da máquina mortífera de Hitler –, surgem outras vozes. É esta história também que o Museu FOZ se propõe a contar. Tecnologias em 3D, recursos criativos de iluminação e trilha sonora especialmente desenvolvidos envolvem os visitantes durante o roteiro guiado de 60 minutos. Ao começar o passeio, os visitantes são recebidos por um vídeo com uma mensagem gravada pelo então presidente Shimon Peres, fundador do Museu, com o apoio internacional que ajudou a realizar o sonho preconizado por Theodor Herzl: “Se quiseres, não será uma lenda. O sonho de hoje um dia poderá tornar-se realidade”.
Durante séculos as profecias bíblicas apontavam para o retorno dos judeus à sua terra, mas parecia ser um sonho distante, mas um sonho que era lembrado ano após ano quando repetíamos “No próximo ano, em Jerusalém”. 62
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Painel homenageia personalidades que ajudaram na realização do sonho sionista
Organização sem fins lucrativos, o Museu FOZ tem-se caracterizado, também, como plataforma para combate do BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), uma campanha global que preconiza a prática de boicote econômico, acadêmico, cultural e político ao Estado de Israel. O Museu também se propõe a combater o antissemitismo, no mundo todo, pela divulgação contínua de informações corretas sobre o Sionismo e o Estado de Israel. Até sua morte, em 2016, Shimon Peres foi o presidente do Museu, de cujo Conselho fazem parte nomes como o ex-ministro Yossi Peled, o ex-chefe do Estado Maior Dan Halutz, o professor e exministro Yaakov Neeman e o major general Danny Yatom, entre outras inúmeras personalidades israelenses, o que demonstra o total apoio do governo ao projeto.
As exposições que contam a história do chamado Sionismo Cristão são permanentes e seguem um roteiro assim determinado: A Terra da Promessa, que inclui a apresentação de Shimon Peres; O Teatro dos Fundadores, um audiovisual que narra a trajetória de Abraham e
No número 20 da Rua Yosef Rivlin, a entrada do Museu Friends of Zion
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outras figuras bíblicas, mostrando a história da antiga Israel em uma tela de 24 metros de comprimento; Os Sonhadores, com a história daqueles que levantaram sua voz no início do século 19 em apoio ao direitos dos judeus de retornar à Terra de Israel; Os Visionários, um amplo mural digital com a trajetória daqueles que ajudaram no avanço da concretização do sonho sionista, no final do século 19 e início do 20; Luzes na Escuridão, ala dedicada aos Justos Entre as Nações, pessoas que arriscaram sua vida durante o Holocausto para ajudar judeus; Os Corajosos – Caminhos para a Soberania, destacando aqueles que lutaram ao lado do povo judeu para criar o Estado de Israel; e o Grande Final, uma panorâmica do conteúdo do Museu, em 3D, culminando com a Declaração da Independência de Israel. SETEMBRO 2019
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presidentes americanos George Bush e George W. Bush – , que escreveu: “Os dispersos e abatidos sobreviventes devem, um após o outro, voltar sua face para Sion ... encontrar seu caminho para a terra de seus pais ... Isto beneficiará não apenas os judeus, mas toda a Humanidade, formando um elo de comunicação entre a Humanidade e D’us”. Ele fez esta afirmação muito antes de Herzl e do surgimento do movimento sionista.
Elevador de Tempo Ao sair da galeria A Terra da Promessa, o visitante entra em um elevador do tempo que, por meio de um jogo de sons e luzes, leva-o ao ponto mais alto do museu e a uma viagem 4 mil anos atrás. Sentado no chamado Teatro dos Fundadores, diante de uma tela de 24 metros de largura – a maior em espaços internos em um museu israelense – encontra-se com a história do Povo Judeu desde a Aliança entre D’us e o Povo de Israel. Acompanha a escolha de Abram, seu nome na época, como mensageiro do D’us Único para o mundo e para ser o fundador de “uma grande nação”, passando a ser chamado de Abraham pelo Todo Poderoso. A trajetória dos Patriarcas, o exílio e a escravidão no Egito, o êxodo, a conquista da Terra Prometida, o domínio romano, a destruição do Segundo Grande Templo de Jerusalém e o início da Diáspora não afastaram o Povo de Israel de sua fé em um D’us Único.
Apesar das tragédias e dificuldades, o sonho do retorno nunca morreu em seu coração e mente, como foi previsto pelas palavras de muitos de nossos profetas.
Sonhadores e Visionários O Hall dos Sonhadores apresenta quatro histórias de indivíduos cuja atuação ajudou no renascimento do Estado Judeu: professor George Bush – ancestral distante dos
O prof. Bush começou sua carreira como ministro presbiteriano e, depois, tornou-se professor de Hebraico e Literatura Oriental na Universidade de Nova York. Sua formação bíblica fez com que acreditasse profundamente nas profecias que anunciavam o retorno do povo de Israel à sua terra. Em 1844 publicou suas opiniões em um livro intitulado “The Valley of Vision; or, The Dry Bones of Israel Revived”, baseado nas profecias de Ezequiel. A obra vendeu mais de um milhão de cópias e fez dele uma voz nos Estados Unidos da restauração do Povo Judeu na terra de seus
Esculturas aliadas a tecnologias de som levam os visitantes a momentos marcantes do sionismo
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ancestrais, um pensamento radical para a América daqueles dias. O suíço Henry Dunant (18281910), homem de fortes ideais humanitários, foi co-fundador da Cruz Vermelha Internacional em 1863 e inspirou os parâmetros das regras de guerra para a Primeira Convenção de Genebra menos de um ano depois. Calvinista protestante, foi escolhido como co-laureado do primeiro Nobel da Paz em 1901. Figura chave do chamado Sionismo Cristão, lutou pela implantação do Lar Nacional Judaico durante o Império Otomano na então Palestina. Foi chamado pelo próprio Herzl de sionista cristão durante o Primeiro Congresso Sionista, realizado na Basileia no final de agosto de 1897. Fez seu primeiro discurso em defesa da restauração de um lar judaico em Eretz Israel em Paris, em 1863. Três anos depois, escreveu um panfleto apelando pela fundação da Sociedade Internacional para a Renovação do Oriente, que poderia levar à criação de uma florescente Palestina judaica sob domínio francês. Em 1867 fundou a Sociedade Internacional para a Palestina, utilizando seus contatos para pressionar o sultão a permitir o reassentamento dos judeus na região. Seu nome foi dado a uma área da Floresta de Jerusalém, como forma de preservar sua memória e seu legado.
Avançados recursos tecnológicos recriam momentos e personalidades da história do sionismo
a região em 1889 e, em 1890, promoveu uma ampla conferência em Chicago intitulada “Passado, presente e futuro de Israel”, da qual participaram centenas de pessoas, inclusive rabinos americanos. Um dos resultados desse encontro foi a Petição Blackstone, entregue ao presidente Benjamin Harrison em março de 1891. Com mais de 400 assinaturas de importantes
industriais, políticos, religiosos, juízes, magnatas da imprensa, entre outros, visava persuadir o presidente a usar sua influência junto às nações europeias, ao Império Otomano e à Rússia para facilitar a libertação dos judeus russos para que pudessem estabelecer-se, novamente, na Terra de Israel. “Por que não deveriam os poderes que, sob o Tratado de Berlim em 1879, concederam a Bulgária para os búlgaros, e a Sérvia para os sérvios, devolver a Palestina para os judeus? Essas províncias, como Romênia, Montenegro e Grécia, foram tiradas dos turcos e dadas aos seus proprietários naturais. A Palestina não pertenceria por direito aos judeus? ”, afirmava a Petição. No Hall dos Visionários, o visitante defronta-se com um mural gigantesco que, com recursos tecnológicos, mescla citações bíblicas e outros textos que mencionam o retorno dos judeus à sua terra natal. Neste local, aparecem sucessivamente 11 personalidades que apoiaram convictamente essas profecias no
Outra personalidade presente na mesma ala é William Blackstone, nascido em 1841. Horrorizado pela perseguição dos judeus na Rússia decidiu dedicar-se à restauração de um Lar Judaico na então Palestina otomana. Empresário e membro ativo da comunidade americana Evangélica em Chicago, visitou 65
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MIKE EVANS, GERENTE DO Museu Friends of Zion
final do século 19 e início do 20. Entre estes, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill, a rainha Vitória, o secretário britânico de Relações Exteriores Arthur James Balfour, o presidente americano Woodrow Wilson, o chamado pai da geografia bíblica Edward Robinson e Walter Clay Lowdermilk, o perito americano que desenvolveu o projeto hídrico usado nos primeiros anos do Estado de Israel. No mesmo espaço, uma série de audiovisuais mostra imagens em preto e branco dos primeiros assentamentos implantados antes da criação do Estado de Israel.
noite emitindo vistos para judeus desesperados que tentavam fugir dos nazistas e seus colaboradores; os holandeses Casper, Betsie e Corrie ten Boom que esconderam judeus em suas casas; Miep e Jan Gies, que deram guarida e sustentaram a família Frank em Amsterdã e, posteriormente, resgataram o famoso Diário de Anne Frank; Raoul Wallenberg, diplomata sueco que salvou milhares de vidas judias na Hungria. Todos eles cristãos cujos valores não lhes permitiram simplesmente observar os judeus serem sacrificados no altar da desumanidade.
Luzes na Escuridão
Hall dos Bravos
Luzes na Escuridão é a ala dedicada aos Justos entre as Nações, aqueles cuja consciência levou-os a salvar judeus de todas as idades durante o Holocausto na Europa. O visitante vê passar diante de seus olhos o rosto desses personagens, alguns conhecidos, outros não. O alemão Oskar Schindler; a enfermeira polonesa Yrena Sendler; Chiune Sugihara, cônsul japonês na Lituânia que trabalhou dia e
No Hall dos Bravos, mais uma vez com avançados recursos tecnológicos, é possível ver e ouvir personalidades falando sobre sua trajetória e as razões pelas quais apoiaram a luta dos judeus por um Lar Nacional. Com a participação de atores, o visitante pode conhecer o coronel britânico John Patterson, comandante da Legião Judaica, que lutou com as forças inglesas durante a 2ª Guerra 66
Mundial; o general francês MariePierre Koenig, comandante das forças francesas livres no Norte da África, que reconhecia o valor dos soldados judeus vindos da Terra Santa; o presidente americano Harry Truman, que contrariando orientação do Departamento de Estado, decidiu que os Estados Unidos iriam votar a favor da Partilha da Palestina em dois estados – um árabe e um judeu. A estes personagens somam-se, ainda, o major britânico Orde Wingate, que treinou combatentes judeus durante a Guerra pela Independência de Israel. O maior instituto de educação física de Israel leva o seu nome. Na mesma ala, é possível ouvir uma gravação da votação da Partilha da Palestina na Assembleia das Nações Unidas, em 29 de novembro de 1947, quando a criação do Estado de Israel foi aprovada pela comunidade internacional. Na gravação, ouvemse um a um os votos de cada país enquanto sua identificação é feita em um grande mapa eletrônico ali exposto. Próximo a este Hall, em um espaço anexo, um vídeo mostra os depoimentos de judeus em Israel que foram salvos pelos cristãos. Ao término do tour guiado, uma mensagem em vídeo do primeiroministro Binyamin Netanyahu: “A Promessa de Israel não é apenas uma história antiga ... é a realização de uma nação moderna construída sobre fundamentos bíblicos. Eu não creio que o Estado Judeu teria sido possível sem o Sionismo Cristão. Ao logo dos anos muitos cristãos não apenas acreditaram nesta Promessa, mas desejaram dar sua vida por ela. Seu sacrifício contribuiu para quem e para o quê nós somos hoje como nação”.
HISTÓRIA
A imagem do “outro” no conflito judaico-árabe Por Nimrod Etsion Koren
No final do século 19, os intelectuais árabes na então Palestina otomana e no resto do Império Otomano viam o empreendimento sionista sob uma luz positiva e como um projeto regional desejável. Em seus artigos, eles chegam a mostrar admiração pelos pioneiros judeus. Mas a Revolução dos Jovens Turcos de Istambul, de 1908, criou uma série de eventos que mudaram, irrevogavelmente, essa imagem sobre os novos imigrantes judeus.
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a pesquisa acadêmica, é comum nos referirmos aos primórdios do conflito árabe-judaico, os dias da Primeira Aliá (1881-1904), destacando o lugar dos incidentes violentos que se desenvolveram entre os primeiros imigrantes e seus vizinhos árabes. Na historiografia sionista, as opiniões estão divididas quanto a se aquele foi um conflito local por terra, ou se o conflito lançou, já àquela época, as sementes do conflito nacional. O historiador Benny Morris parece estar certo em dizer que os primeiros colonos viam “os nativos árabes como parte da paisagem ou como encrenqueiros, mas certamente não como rivais nacionais”. A questão refere-se a como esses pioneiros judeus foram retratados por seus vizinhos locais. Como eles viram esse fenômeno de imigrantes judeus europeus estabelecendo colônias agrícolas na então Palestina.
segundo Rashid Rida, editor do ‘Al-Manar’,1 “não preocupou particularmente a imprensa árabe” (out. 1895). Assim como os líderes sionistas na Europa, a imprensa árabe também atribuiu maior importância às ações políticas dos judeus do que às suas atividades coloniais. Não surpreende, portanto, que o interesse pela questão tenha começado em 1898, poucos meses depois do Congresso Sionista da Basileia (1897), que ganhou manchetes na imprensa ocidental.
Reformismo islâmico e simpatia pelos sionistas: 1909-1898 O nacionalismo palestino na década de 1930 tornouse a ideologia dominante entre os árabes da Palestina otomana. Porém, no final do século 19, antes de sua formação e do surgimento de uma imprensa árabe na região, os pensadores comentaram sobre a questão do Sionismo, principalmente no Cairo, em Beirute e em Istambul. A maioria pertencia ao Reformismo Islâmico - uma corrente intelectual modernista que buscava libertar o Islamismo da estagnação e também daquilo que eles interpretavam como atrasado em relação ao Ocidente. Eles viam o colonialismo europeu -e não o movimento nacional judaico, como um inimigo para as
Como observa Eliezer Beary, há poucos documentos da década de 1880 que forneçam um testemunho direto das opiniões dos árabes sobre os judeus. O fenômeno,
Um jornal publicado no Cairo, com uma tendência islâmica e
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reformista, no qual, de 1935 a 1898, vários pensadores palestinos publicaram seus artigos.
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HISTÓRIA
Porto de Jaffa (1898), o primeiro ponto de encontro entre trabalhadores portuários árabes e imigrantes judeus europeus
sociedades muçulmanas. O Sionismo foi percebido como uma espécie de movimento “irmão oriental”, um parceiro na luta e – até mesmo – um modelo. Portanto, as realizações do sionismo Herzliano foram descritas como “ressuscitar uma nação após sua morte” (Al-Manar, 26.01.1902).
Deportados, deprimidos, miseráveis O historiador americano de origem palestina, Rashid Khalidi, afirma que os árabes não viam os imigrantes judeus como refugiados das perseguição, como eram percebidos no resto do mundo, mas sim como “invasores europeus que não aceitaram o fato de os palestinos serem uma nação com direitos nacionais”. Apesar de seu diagnóstico estar certo para períodos posteriores, mas, em relação ao período em questão, parecer
theodor herzl
contradizer os relatos de jornais árabes – estes descreveram os judeus como refugiados. De fato, uma das características recorrentes da descrição da 68
imigração judaica é a referência sensível às suas causas, a saber, o fato de que os judeus europeus enfrentam uma ameaça coletiva. Na primeira menção ao Sionismo, em Al-Muqtataf, revista publicada no Cairo, o editor responde à pergunta sobre “o exílio dos judeus dos reinos opressivos e sua emigração para a Palestina otomana” (abr. 1898) dizendo que os judeus eram de fato as “pessoas mais fracas, aquelas que todos os governos expulsam de seus países” e que “os judeus que estão sendo explorados em todo o mundo se esforçam para emigrar para os estados otomanos”. Uma voz ainda mais empática veio de Farid Kasab, um grego ortodoxo de Beirute, que argumentou que os judeus europeus emigravam “porque são perseguidos em um reino bárbaro, por povos antissemitas que os consideram estrangeiros” (1906).
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Essa característica dos primeiros imigrantes, exilados ou deportados, não só emergiu naqueles artigos que expressavam empatia pelo problema judaico, mas também no primeiro protesto contra o sionismo de 1891 (e o único ao longo da década). No protesto os dignitários de Jerusalém afirmavam ser preciso “reduzir os passos daqueles que são deportados de todos os lugares”. No entanto, enquanto alegavam que “os judeus russos trazem danos ao país e seus habitantes”, e acreditavam que “eles deveriam ser enviados para a América” (Ha-Zvi, out.1891), Rashid Rida, o reformador, escreveu que “Os judeus, que são assediados pela maioria dos povos, são recebidos pelos muçulmanos de braços abertos” (Al-Manar, 10.1903). De fato, ele usou o modelo sionista para aguçar suas mensagens patrióticas à população árabe. Descreveu a perseguição e exploração dos judeus no Ocidente, destacando as vantagens dos estados do Sultão, “onde os judeus vivem em plena igualdade, não os perturbam e não lhes proíbem qualquer atividade profissional”.
Solidariedade e unidade judaica A inspiração do modelo sionista também se referiu ao aspecto da solidariedade judaica. A fim de “inspirar o povo árabe, imerso em seu sono”, o egípcio Al-Manar chamou a atenção dos leitores para “os laços corajosos que unem os judeus e a forma como eles ajudam uns aos outros e ajudam seu povo”. Após o 5º Congresso Judaico, o jornal mais uma vez se destacou
Jornal publicado em Jerusalém de 1915
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a 1884, editado por Eliezer Ben Yehuda e seu filho Itamar Ben Avi
A colônia templária alemã em Haifa (fundada em 1869). O primeiro assentamento europeu na Palestina desde as Cruzadas
na questão, dessa vez falando do poder transformador do Sionismo, e, quando clamou pela abertura dos “corações dos muçulmanos enfraquecidos”, indicou a habilidade dos judeus sionistas de se adaptarem ao espírito da época como uma explicação para seu sucesso. Escreveu “Eu gostaria que pudéssemos aprender com as ações judaicas agora. Eles se destacaram entre os povos por estarem desempregados e dependerem apenas da bênção da Torá? Ou é porque se destacaram em todos os campos da ciência e da arte moderna e acumularam muito capital? ” (Al-Manar, 1902). Um componente significativo da percepção do Sionismo como um modelo está relacionado com as habilidades dos judeus. Em entrevista ao jornal Ha-Zvi2, o representante parlamentar de Jerusalém, Said al-Husseini, comentou que “os judeus têm muitas qualidades importantes. Eles são espertos, ágeis, trabalhadores e vigorosos” (01.11.1909). No entanto, afirmou que suas realizações não conferiam nenhum privilégio a eles na Terra de Israel. E, nesse contexto, é interessante examinar como os árabes viram a conexão histórica dos judeus com Eretz Israel. 69
Afinidade histórica com a Terra de Israel A famosa carta de Joseph al-Khalidi, ex-prefeito de Jerusalém, a Herzl, diz, entre outros: “Quem pode negar os direitos dos judeus na Palestina otomana? Historicamente, este é o seu país!” (março 1899). Essa afinidade entre os judeus e a Terra de Israel também surge das palavras de Farid Kassav, que rejeitou a ideia de que os imigrantes são invasores estrangeiros, dizendo que “Os judeus estão em casa (…). Aqui eles trazem uma bênção para todos. Transformaram terra seca e pântanos em hortas. Forneceram um tremendo serviço ao país”, e até vinculou o movimento deles a uma visão nacional multicultural e religiosa: “Eles querem criar uma nação, com o resto do povo da terra” (1906). Em outros trechos da carta de AlKhalidi a Herzl, ele revela uma visão religiosa sincrética: “Eu sempre me inspiro nas palavras sublimes de seu profeta Malaquias. ‘Não temos nós todos um mesmo Pai? Não nos criou um mesmo D’us’ [Malaquias 2:10]. Realmente vejo os judeus como nossos pais, nós, os árabes, já que nós também somos descendentes de Abraão”. SETEMBRO 2019
HISTÓRIA
A questão da ameaça Neste contexto, vale a pena tentar examinar todos os elementos da imagem do “outro” judeu, o sionista europeu, e analisar se, na visão dos árabes, os judeus orientais e os europeus se fundiram em uma figura ameaçadora. Segundo o historiador Muhammad Yizbak, os reformadores islâmicos, mesmo depois de compreender os objetivos publicamente divulgados do Sionismo, não viam o movimento como uma ameaça, mas continuaram a usá-lo como uma ferramenta para a autocrítica. Uma expressão dessa abordagem pode ser encontrada nas palavras do prefeito Salim al-Husseini (1882-1897), que afirmou que “não há perigo sionista - porque não é um movimento político, mas um movimento de assentamento, e tenho certeza de que nenhum sionista jamais conceberá a ideia de estabelecer um governo judeu na Palestina otomana”. Em retrospecto, isso pode parecer ingênuo, mas deve ser visto no contexto em que foi declarado - um período caracterizado por uma atitude positiva em relação ao empreendimento sionista. No entanto, no final do período, vozes mais céticas e críticas começaram a ser ouvidas. Um dos primeiros foi o representante parlamentar Ruchi al-Khalidi, filho de Joseph al-Khalidi. Refletindo sobre o passado judaico da Terra de Israel, ele expressou uma atitude diferente daquela expressa por seu pai, dez anos antes. Não negou o passado judaico, mas o cortou do presente muçulmano: “Conquistamos a terra não de vocês (judeus), a conquistamos dos bizantinos que então a governavam.
Wilhelmina, colônia templária, foi fundada em 1902 perto de Jaffa
Nós não devemos nada aos judeus. Os judeus não estavam aqui quando conquistamos a terra” (Ha-Zvi, 02.11.1909).
nacionalismo palestino e seu medo do Sionismo 1914-1909 Yosef Gorny, um dos principais pesquisadores do Movimento Nacional Árabe, identifica a Revolução dos Jovens Turcos, em 1908, como o momento da virada
Fundadores sionistas da colônia de Rehovot, década de 1880
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na história do movimento sionista, bem como na história do conflito árabe-israelense. Ele alega que, naquele ano, houve uma mudança na natureza do conflito, desde um “confronto natural”, desprovido de características nacionais entre indígenas e colonos, para um “confronto ideológico nacional”. De fato, para a saída do sultão, houve repercussões que atingiram a Palestina otomana e influenciaram a autodeterminação de seus árabes. A liberdade de organização e de imprensa, permitida pelo novo governo liberal otomano, marginalizou os reformadores islâmicos que simpatizavam com os sionistas e os incluíam em sua visão pan-islâmica, e levou à ascensão de uma ideologia menos tolerante, que via o sionismo como um rival e até um oponente do nacionalismo árabe. O desenvolvimento do “patriotismo local” e a mudança da autodeterminação dos “árabes otomanos” para os “árabes palestinos” estavam entre os principais fatores que levaram a uma mudança de atitude em relação aos judeus. Durante esse período, e após o golpe em Istambul, o foco de referência ao Sionismo mudou para a Terra de
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Desde as Cruzadas, os árabes foram assediados pelo desejo cristão europeu de libertar a Terra Santa do Islamismo. Tais apelos proliferaram durante o século 19, como o de Henri Diane, fundador da Cruz Vermelha, que sonhava “libertar a Terra Santa do cativeiro turco e da erradicação pacífica do Islã”.
Israel. Dois jornais que começaram a ser publicados no dia seguinte à remoção da censura, Al-Carmel (1908), em Haifa, e Palestina (1911), em Jaffa, ambos por cristãos ortodoxos, formaram a vanguarda da luta contra o Sionismo.
Sionismo: de modelo para sinal de aviso Como observado acima, o empreendimento sionista serviu, às vésperas da Revolução dos Jovens Turcos, como um modelo para os reformadores islâmicos e seus seguidores. Mesmo os precursores do nacionalismo árabe continuaram acompanhando de perto o movimento sionista e a inspiração que pode ser extraída dele. Por exemplo, o jornal Al-Mukthabs relatou, em 1910, os sucessos agrícolas dos colonos judeus, mas, na imagem utópica do projeto sionista, houve uma mudança, e, devido à deterioração da situação econômica, círculos críticos começaram a desafiar a visão que concebe o Sionismo como uma “bênção coletiva”: “Estúpidos e teimosos entre nós afirmam que os imigrantes judeus contribuíram para o avanço material do país”. O autor explicou que o trabalho dos imigrantes é realmente impressionante, mas não se destina a todos os residentes do país: “os sionistas só empregam agricultores judeus” (04.09.1910). De fato, o exemplo sionista começou a servir como um valor duplo, tanto como modelo quanto como sinal de advertência. Por exemplo, Najib Nasser, editor do Al-Carmel, pregou: “Aprenderão com a atividade dos sionistas, que estão trabalhando para estabelecer o país deles em seu próprio país e às suas próprias custas” (20.09.1912), enquanto, pela primeira vez, se atrelou às conquistas
Jornal da Palestina publicado pelos Irmãos Cristãos Ortodoxos, Issa al-Issa, Jaffa, 1936
dos pioneiros judeus um preço cujo futuro pagamento seria dos árabes.
De “nativo do Oriente” para “invasor e estrangeiro” De acordo com Beary, o trauma da escravização e humilhação árabe por estrangeiros tem sido um fator importante no “medo do estranho” que caracterizou sua atitude em relação aos outros.
Esses apelos reforçaram a hostilidade dos árabes em relação aos estrangeiros. Não apenas os imigrantes judeus sofreram, mas também outros colonos europeus, como os templários alemães. Estes migraram cerca de uma década antes da Primeira Aliá – compraram terras, estabeleceram assentamentos agrícolas e receberam tratamento hostil. Os Templários se estabeleceram na década de 1860, quando a “invasão” europeia do país estava em sua infância. No início do século 20, o país já estava conectado à Europa por uma variedade de canais – ferroviários, marítimos e telegráficos –, e a cada ano o país se tornava mais europeu, secular e sionista.
Cerimônia de abertura do Primeiro Parlamento Otomano no Palácio Dolmabahçe em 1876. A Primeira Era Constitucional durou apenas dois anos. A Constituição Otomana e o Parlamento foram restaurados com a Revolução dos Jovens Turcos em 1908
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HISTÓRIA
A imigração sionista e o empreendimento de assentamentos passaram a ser vistos como intimamente relacionados a essa mudança no caráter da Palestina otomana. Este é o momento em que muda a imagem dos imigrantes judeus – e eles deixaram de ser percebidos como exilados da Europa, e começaram a aparecer como parte do continente europeu. Não mais como irmãos da opressão cristã que se refugiaram na Palestina otomana, mas como aliados dos opressores coloniais. Além disso, a presença de judeus europeus começara a se tornar proeminente. Em parte, devido à chegada de uma onda de imigrantes da segunda Aliá, que eram mais vocais sobre a ideologia sionista na qual foram educados – caracterizada pelo trabalho, pela segurança judaica e pela língua hebraica.
do sultão, o Czar, ou à política conflituosa da Grã-Bretanha, que buscava desmantelar o Império Otomano. Além disso, devido ao fortalecimento dos laços locais, os próprios otomanos começaram a ser vistos como estrangeiros pela ótica dos árabes. Assim, como parte da tentativa de identificar os imigrantes judeus com várias tendências imperiais hostis, sua conexão com a administração de Istambul também foi enfatizada, pois o apoio a ela diminuiu. Moshe
elas, o caráter a origem estrangeira das colônias judaicas e o modo perverso de obter terras. Por exemplo, Abdullah Mukhalz, um estudioso de Haifa, criticou “aqueles que preferem os prazeres da vida aos sublimes princípios nacionais e permitem que os sionistas obtenham terras em toda a Palestina e estabeleçam aldeias chamadas colônias, como se fossem atividades coloniais na África” (Al-Carmel, 15.03.1910). Al-Carmel também criticou os efeitos ofensivos do processo sobre
Judeus como súditos e agentes estrangeiros A mudança no intender dos árabes dos judeus, de nativos para invasores, teve uma variedade de expressões e significados. Primeiro, a origem estrangeira dos sionistas foi atacada por motivos econômicos. Por exemplo, no primeiro jornal árabe a ser publicado na Palestina otomana, Al-Atsmaui, os imigrantes judeus eram descritos como “concorrentes injustos”. A explicação para a discriminação estava ligada ao seu status: “Como estrangeiros, eles gozam da proteção dos consulados e estão isentos de muitos impostos” (1909). Em segundo lugar, por motivos políticos, foram acusados de intenções contraditórias: instrumento das potências europeias, destinado a destruir os sultões, ou que servia ao principal rival
Pioneiras judias no final do século 19, em uma colônia na planície costeira
Smilansky reclamou dessas acusações contraditórias, escrevendo: “Primeiro nos dizem que somos emissários dos governos europeus; depois, que somos jovens emissários turcos - e a opinião pública acredita nisso”.
Os colonos sionistas Ao mesmo tempo, o colonialismo, um conceito europeu, começa a ser atribuídas aos sionistas e permeia o discurso local. Este conceito agregava uma variedade de acusações, entre 72
os árabes palestinos: “Qualquer pessoa que compare a Palestina atual à Palestina de uma década atrás verá uma mudança completa. Os moradores locais recuaram em todas as áreas. Eles são mais pobres hoje do que eram ontem” (14.05.1910). E, nesse ponto, o jornal começa a fazer uma conexão entre a ressurreição de um e o afundamento do outro. Abdullah Muhlatz adotou uma linha mais fatalista, argumentando que “o colonialismo sionista nos prepara para o exílio em massa [...], a Palestina está hoje à beira do perigo, se nada mudar,
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em algumas décadas, nosso país se tornará propriedade de estrangeiros”. (15.03.1910). Essa visão do “outro judeu” como aquele que pode conquistar a terra está ligada a uma outra transformação que ocorreu em sua imagem, passando de desgraçado e deportado, com poucas chances de sucesso em seu empreendimento, à imagem de um ser muito poderoso, cuja “ressurreição nacional” é assegurada.
A onda sionista - uma inversão das relações de poder Também nesse contexto, a visão do “outro” envolve a visão de “si” e está relacionada a uma mudança no conjunto de contra-forças. Essa inversão de poder surge do artigo de Bolus Shahada, um intelectual de Haifa que temia que “nossa nação fraca não seria capaz de resistir à enorme onda [sionista]” (AlMukatbs, 04.09.1910). Para destacar o poder dos sionistas, ele os compara aos cruzados. “Os cruzados não conseguiram dominar nosso país à força, mas os sionistas hoje conseguem dominá-lo através do dinheiro, sem espadas nem guerras”. À luz dessas preocupações, a inteligência árabe mudou sua visão também sobre o passado judaico na Terra de Israel.
reavivamento nacional judaico, sendo usada como evidência da ameaça sionista - prova de seu poderoso “super-plano”. O motivo está enraizado no famoso livro de Najib Azouri, O Despertar da Nação Árabe, publicado em Paris em 1905, no qual se afirmou, pela primeira vez, que os sionistas estavam ocupados “em um esforço secreto para restabelecer o Reino do Antigo Israel”. Inspirado pela ideologia antissemita predominante na França, o autor argumentou que o assentamento judaico estava ligado a um “plano de governo mundial”.
O surgimento da causa islâmica - Sionismo e Alcorão Os brotos do nacionalismo palestino são mais frequentemente associados às atividades das entidades cristãs ortodoxas, que trouxeram a ideia de nacionalismo da Europa para o Oriente Médio. Enquanto no início da década de 1930, a predominância da causa islâmica no movimento
Afinidade histórica - da justificação à ressurreição Se, no final do século 19, os judeus eram vistos como tendo sua casa no Oriente, até mesmo essa visão sofreu uma deterioração. Embora a afinidade por Sion não fosse negada, o passado bíblico, e especialmente “o antigo Reino de Israel”, deixou de servir como justificativa para o
A crise econômica na sociedade árabe no início do século 20, como refletido no mercado de Nazaré
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palestino é geralmente atribuída à ascensão do mufti de Jerusalém, Hajj Amin al-Husseini, protetor dos lugares sagrados, as raízes do processo parecem estar fincadas no período em questão. Rashid Rida, que, na época, intensificou sua atitude negativa em relação ao Sionismo, foi o primeiro a mobilizar o Alcorão para o denunciar, fazendo reivindicações em seus escritos que enfraqueciam o direito religioso dos judeus à Terra Santa. Ele reconhecia que, como descendentes de Abraão, eles tinham recebido a promessa divina de receber a Terra. Mas acreditava que, de acordo com a tradição muçulmana, Isaac não tinha o direito de herdá-la, mas sim Ismael, o primogênito de Abraão. Uma herança muçulmana medieval também foi mobilizada na época, a fim de enfraquecer a afinidade dos judeus à então Palestina e até mesmo retratá-los como infiéis. Esta imagem começou na época do estabelecimento do moshav Merhavia, em uma área que pertenceu ao legado das conquistas de Salaha-Din. A fundação do assentamento perto dessa área foi percebida como “um golpe na lápide do grande líder”, e todo o empreendimento sionista foi comparado ao Reino Cruzado de Jerusalém – uma analogia criada para destacar não apenas o fato de que o Sionismo era “estrangeiro”, mas também para destacar o esperado fim dessa moderna cruzada. Assim, o guerreiro muçulmano foi ilustrado com sua espada ameaçando Yehoshua Henkin: “Afaste-se desta fortaleza, pela qual os muçulmanos sacrificaram suas vidas”. Em resposta, Henkin respondeu: “Não me importo, desde que tenha um passaporte estrangeiro no meu SETEMBRO 2019
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bolso, e 15 milhões para saciar o estômago dos dignitários do país...” (Al-Chamra, 1911). Em outras palavras, de maneira caricatural foi apontada a origem estrangeira do empresário sionista, suas finanças e sua corrupção. Todas as três características negativas se juntavam para servir a um propósito sombrio – a destruição de lugares sagrados para o Islã.
Fim da era das possibilidades Em suas obras, Emmanuel Levinas, filósofo judeu francês, argumenta que o encontro com o “Outro” começou com hostilidade, devido ao medo da diferença, mas continua na proximidade criada com o conhecimento. No conflito judaico-árabe, o encontro entre as partes infelizmente levou ao processo oposto – primeiro, ocorre a proximidade e, mais tarde, com o conhecimento, nasce a hostilidade. Assim, devido a disparidades culturais, linguísticas e históricas e, principalmente, devido a transformações ideológicas intraárabes, houve uma mudança brusca na imagem dos judeus. Num curto período, de “nativo”, o judeu se torna europeu e estrangeiro. De perseguido e deportado, ele se torna colonialista e invasor. Daquele cujo dinheiro se destinava a ajudar os fracos, para aquele cujo capital é destinado a desalojar os outros. Daquele cujo passado justificava sua ressurreição nacional, para aquele cuja história testemunhava a destruição dos outros. Sob a influência do discurso antissemita europeu, a imagem do Sionismo também mudou – de um movimento marginal dos fracos, nos povos, para uma grande onda, mais forte do que as Cruzadas. E com a influência da ascensão da
A colônia judaica de Beer-Tuvia e os primeiros pioneiros, 1899.
causa religiosa, a imagem judaica também mudou de irmão para raça, e de descendente de Abraão para um herege e blasfemador do Islã.
receberam, por vezes, uma cobertura detalhada: “Nossos irmãos judeus celebraram o feriado das flores em Tel Aviv” (18.05.1912).
No entanto, o período em questão é justamente identificado como uma época em que o nacionalismo evidente ainda não havia entrado em erupção. E, assim, a atitude em relação aos judeus e suas tradições também recebeu uma expressão
Em outras palavras, mesmo quando, aos olhos dos árabes, a imagem dos sionistas ficou mais turva, ainda não se havia transformado na imagem de um “inimigo existencial”, como iria acontecer nas próximas décadas - uma imagem que se tornou um dos principais fatores para que fosse inevitável a colisão entre os dois movimentos nacionais. Às vésperas da 1ª Guerra Mundial isso ainda não tinha acontecido...
BIBLIOGRAFIA
Selo do início do século 20, cuja venda foi dedicada à proteção dos lugares sagrados muçulmanos, em Jerusalém
moderada e até positiva. O jornal Palestina, por exemplo, ao publicar a notícia de um casamento judaico, escreveu que um “casamento abençoado” foi realizado em Ness Ziona, e não se esqueceu de enviar sua bênção “aos recém-casados” (27.03.1912). Até mesmo os eventos mencionados nas colônias judaicas – 74
Klein, Menachem. Lives in Common: Arabs and Jews in Jerusalem, Jaffa and Hebron. Oxford University Press, 2014. Schölch, Alexander. Palestine in transformation, 1856-1882: studies in social, economic, and political development. Inst for Palestine Studies, 1993.
Kimmerling, Baruch e Migdal, Joel Samuel [hebraico], Palestinos: uma nação em sua formação, Jerusalém, 1999. Khalidi, Rashid. The iron cage: The story of the Palestinian struggle for statehood. Beacon Press, 2007.
Nimrod Etsion Koren é aluno de pós-graduação no Departamento de História, Filosofia e Estudos Judaicos na Universidade Aberta de Israel.
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É com grande alegria que recebemos a revista Morashá, sempre nos ensinando tanto em relação a fatos históricos relacionados ao nosso povo, quanto a atualidades onde os judeus estão sempre presentes. Bernardo e Sueli Lichewitz Nahariya - Israel
Fiquei emocionada quando, ao ver a capa da revista Morashá, me deparei com a foto interna do Tempio Maggiore. Estive lá nesse julho e participei de reunião na Fondazione Museo della Shoah que fica no antigo Gueto Judaico, em frente ao Tempio Maggiore. Tive a oportunidade de fazer uma visita mediada na Sinagoga e no Museu Hebraico. Ao visitar a Fondazione Museo della Shoah também aprendi muito sobre a presença judaica na Itália. Portanto, foi uma adorável surpresa deparar-me com a revista de junho ao retornar. Cada página lida das matérias “O Tempio Maggiore” e Judeus de Roma: tempos antigos até o Reino da Itália” tiveram um significado ainda maior para mim. Luzilete Falavinha Ramos Por e-mail
Cumprimento-os pela publicação. Durante o tempo em que fui editor do El Djudió – 8 anos – tive a oportunidade de conhecer e pesquisar revistas e periódicos judaicos de vários lugares do planeta e, segundo meu entendimento, a Morashá pode ser considerada uma das melhores – senão a melhor - revista do gênero. Vida longa à Morashá! Davi Castiel Menda Porto Alegre - RS
Meu registro de elogios à revista. A edição, o layout e conteúdo são impecáveis. Vocês estão de parabéns. Como jornalista e judia, tenho orgulho em receber uma revista de qualidade sobre a história e a cultura judaica. Flávia Cohen Rio de Janeiro - RJ
Agradeço mais uma vez por m enviarem esta maravilhosa revista: Morashá! Elaine Howe Balneário Camboriú - SC
O conteúdo da revista Morashá é de grande importância para a minha atualização sobre assuntos judaicos, já que moro numa cidade com uma comunidade ainda pequena quando comparada a outras capitais. Morris Kris Lichtman Florianópolis - SC
Tenho muito respeito pelas entidades judaicas e suas tradições, sou um leitor da Morashá de há muito tempo, gosto e admiro. Ludowico Pedro Janesch Água Clara - MS
Morashá, quando chega, avidamente folheio, depois com calma vou lendo, apreciando não só os artigos, mas também a beleza das fotos. Gostaria também de dizer, quanta força espiritual provém desta revista, como água para um deserto. Morashá é uma dádiva! E, não sei, mas ler, sentir o papel nas mãos é de suma importância, não só porque é uma sensação muito boa. Também penso, nas pessoas com mais idade que possuem dificuldades físicas. Parabéns! Nina Patrícia Silva Por e-mail
Agradeço pela qualidade dos artigos e das informações da Revista Morashá. Sergio Bradanini São Paulo - SP
Agradecemos o recebimento de exemplares da Revista Morashá, Edição 103 de Abril 2019 e Edição 104 de Junho 2019. Reconhecemos a importância dessa doação para a atualização e o enriquecimento do acervo da Biblioteca Pública do Espírito Santo. Ana Maria da Silva Gerente do Sistema Estadual de bibliotecas Públicas do Espírito Santo Vitória - ES
Estudioso das questões orientais, sou assinante da preciosa Morashá. Magnífica a Sinagoga de Roma, que a Edição número 104 traz na capa. Parabéns pela esplêndida Morashá! Tenho, com muito orgulho, a coleção completa da revista! Albino Castro São Paulo - SP
O artigo “Camp des Milles História e Memória”, da Edição 104 de Junho 2019 da Morashá me chamou a atenção pois mostra murais de pinturas feitos por prisioneiros artistas, no refeitório dos guardas do campo. Estes murais me trouxeram à lembrança a visita que fiz em 2018 ao campo de concentração Sachsenhausen. Antonio Manuel Pamplona Morais Por e-mail
Excelente o conteúdo editorial da revista Morashá. Daniel Alberto Bernard Curitiba - PR
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Recebo e coleciono a Morashá há vários anos. Rosa Guinsburg Rio de Janeiro – RJ
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