Revista Olhar nº10-11

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DOSSIÊ DOCUMENTÁRIO


CINEMA

CINEMA LA TINO -AMERICANO: O LATINO TINO-AMERICANO: ESPELHO FRAGMENT ADO FRAGMENTADO POR ALEXANDRE FIGUEIRÔA* Resumo: Na economia, a Argentina enfrentou momentos difíceis e ocupou com freqüência as manchetes da imprensa internacional, enquanto o Brasil, pelo menos até o momento, vai conseguindo escapar da crise. Nas telas de cinema pelo mundo afora, a produção brasileira, no entanto, com pouquíssimas exceções – Central do Brasil e Cidade de Deus, por exemplo, - conseguem ser notícia e atrair público para as salas. Os filmes argentinos, todavia, são mais vistos e elogiados. Esta pelo menos é a opinião do jornalista e pesquisador brasileiro Paulo Antonio Paranaguá, um dos mais conceituados estudiosos do cinema latino-americano. Paulo Paranaguá lançou em 2002, na França, pela Éditions L’Harmattan, Le cinéma en Amérique Latine: le miroir éclaté – historiographie et comparatisme, originário de sua tese de doutorado defendida na Université de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. Ele já foi crítico da revista Postitf e tem obras publicadas em diversos países, entre as quais a direção de Le Cinéma Brésilien, editada pelo Centre Georges Pompidou, Paris, na ocasião da grande retrospectiva do cinema brasileiro lá organizada em 1987. Nesta entrevista ao crítico e pesquisador Alexandre Figueirôa, Paranaguá analisa questões fundamentais para entender a produção cinematográfica dos países da América Latina. Ele recorda os principais momentos da filmografia de países como Brasil, México e Argentina; os gêneros e movimentos estéticos que marcaram essa trajetória e discute o panorama atual que se descortina para os produtores e realizadores do continente.

Central do Brasil

ENTREVISTA ALEXANDRE FIGUEIRÔA - O cinema brasileiro vive, nos últimos anos, uma fase de entusiasmo com a retomada da produção. Na América Latina ou pelo menos em alguns de seus países está ocorrendo algo semelhante? PAULO PARANAGUÁ - Na rede internacional dos realizadores independentes, que vai do Sundance Festival, nos Estados Unidos, a Rotterdam, na Holanda, passando por outros festivais e mecanismos de financiamento, a Argentina está suscitando as maiores expectativas. Conforme aconteceu na década de sessenta, o cinema brasileiro está novamente em concorrência com o argentino. Naquela época, o Cinema Novo ganhou a parada. No exterior, em termos de exibição, até o ano passado, a retomada resumiu-se a Central do Brasil. Apesar de todo o “blá-blá-blá” sobre o cinema independente, que mistura alhos e bugalhos, filiais das Majors de Hollywood e miúras da periferia, o espaço para o cinema de arte é reduzido. Em lugar da eclética abertura dos anos sessenta, há disponibilidade para pouquíssimas alternativas. Na França, a moda atual é a Ásia, conceito elástico que vai dos filmes produzidos na ditadura dos aiatolás às diversas Chinas, além de Takeshi Kitano e outros japoneses. Quem domina mesmo o mercado é o cinemão norte-americano, com uma parcela para o cinema francês e seus satélites europeus. Sobra uma minúscula frestinha para o resto do mundo.

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AF - O cinema argentino tem apresentado nos últimos anos uma produção significativa. O que caracteriza o cinema argentino contemporâneo? Seus filmes estão sendo bem recebidos na Europa? PP - Os filmes argentinos estão conquistando prêmios e sendo solicitados em festivais, inclusive nos grandes: em Berlim, La Ciénaga da Lucrecia Martel foi considerada a melhor obra prima; em Cannes 2001, os únicos longa-metragens latinoamericanos eram argentinos: Bolivia, de Adrián Caetano (Semana da Crítica) e La Libertad, de Lisandro Alonso (seção Um certo olhar). Em Biarritz e Toulouse, festivais especializados em cinema da América Latina, a preferência pela Argentina é evidente na seleção e na premiação, algo que mudou um pouco de 2002 para cá. Mas a recepção propriamente dita depende da distribuição e o circuito de cinemas de arte sofreu grandes transformações. Para encurtar a história, os filmes argentinos registram por enquanto apenas o que os franceses chamam de “um sucesso de estima”. Os filmes da nova geração formada nas escolas de cinema de Buenos Aires dificilmente podem atingir no exterior um público maior do que em casa. Por uma questão de produção, mas também de opção, muitos filmes foram feitos com poucos recursos e num estilo minimalista. Em certos casos, trata-se de um neo-maneirismo, uma impostação, como o Dogma dos dinamarqueses (pobres meninos ricos). Porém, a partir dessa renovação dos quadros do cinema argentino, estão aparecendo personalidades com maior sensibilidade social ou psicológica e melhores capacidades dramatúrgicas. Além do mencionado La Ciénaga, citaria Mundo grúa, de Pablo Trapero. AF - Além do Brasil e da Argentina, qual é a cinematografia de um país latino-americano que você apontaria hoje como sendo a mais criativa e original? PP - O México continua sendo um foco de produção importante, mesmo em crise, coisa aliás cíclica em toda a América Latina. Cuba teve uma produção minúscula, porém politicamente significativa no passado; hoje depende inteiramente de financiamento exterior. AF - Quais são os cineastas latino-americanos de maior destaque atualmente? Por quê? PP - Preferências são uma questão de subjetividade. Então, eu ficaria com dois nomes: o mexicano Arturo Ripstein e o nosso patrício Eduardo Coutinho, para não deixar de fora o documentário, o primo pobre. Ambos pelo mesmo motivo, porque procuram e inventam formas de expressão alternativa no que se refere ao modelo dominante, ou seja, à dramaturgia da televisão. Quem continua achando que Hollywood ocupa nosso mercado parou no tempo; no auge da hegemonia hollywoodiana, o público ia ao cinema em média uma vez por semana, ou seja, assistia a um programa de umas quatro horas de duração, desde que morasse numa zona urbanizada, num Brasil predominantemente rural muito diferente daquele de

Cidade de Deus

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hoje, com uma urbanização recorde. Em compensação, hoje, os brasileiros assistem a quatro horas de tevê por dia, sem ter que sair de casa, com uma nítida preeminência da novela, cujo estilo contamina até o noticiário. Isso, em todo o Brasil, integrado pela primeira vez de norte a sul. O universo audiovisual mudou: é a dramaturgia da televisão que domina as mentalidades, são suas normas as que influenciam as atitudes. Tanto Ripstein quanto Coutinho trabalham contra esse padrão, encaram de outra maneira suas personagens e suscitam uma relação diferente com o espectador.

PP - Percebo maiores convergências no passado remoto, nos primeiros cinqüenta anos da história do cinema, quando prevaleciam as normas de certos gêneros e a produção em estúdio. Apesar das infra-estruturas serem precárias, predominava um mesmo modelo de narração clássico. Ainda assim, existia naquela época uma divergência fundamental entre o Brasil e o resto da América Latina: nosso melodrama era minoritário em relação à comédia. Essa divergência é muito mais importante do que a língua ou os ritmos, que bem ou mal atravessavam as fronteiras. A chanchada e o filme carnavalesco dominaram a primeira metade do nosso século, com raras exceções (O ébrio). A Vera Cruz foi a primeira tentativa de diversificar os gêneros; em compensação, além de muita comédia populista feita com recursos de dar inveja aos nossos chanchadeiros, os mexicanos, os argentinos e seus imitadores em outros países privilegiaram o melodrama, tanto na sua versão mais popular quanto em realizações ambiciosas e mesmo primorosas. Ao lado do confor mismo predominante, haviam filmes que encarnavam as idéias progressistas da época, a esquerda. No entanto, a renovação generalizada a partir dos anos sessenta provocou uma implosão dos gêneros e normas até então apreciados em todos os países. Qualquer convergência, então, era de outra ordem, intelectual ou puramente ideológica. O que havia de comum era apenas a vontade de inovar, mas os caminhos abertos eram por isso mesmo diferentes. O Cinema Novo foi um movimento cultural capaz de reunir personalidades diversas, o mesmo não aconteceu na Argentina, onde a geração dos sessenta foi frustrada, e muito menos na América Latina como um todo. Talvez o único outro caso seja o da Cuba pós-revolucionária; mas um movimento artístico submetido a uma ditadura como a castrista colocou outros problemas.

“Estou aí?” (1947) - Musical da Chanchada

AF - Quais as principais convergências e divergências entre o cinema brasileiro e o cinema latino-americano em seus aspectos formais e de conteúdo, no passado e no presente?

AF - Nos anos 60, no período de profusão dos “novos cinemas” e na década de 70, auge do “cinema militante”, houve uma maior aproximação estética e ideológica entre os realizadores latino-americanos, inclusive com os brasileiros? A situação política difícil dos países sul-americanos, marcados por ditaduras sanguinárias, possibilitou um intercâmbio mais intenso e solidário entre os cineastas? PP - Estética não, conforme disse. Ideológica sim, apesar de que talvez fosse mais justo falar numa aliança. Mas os encontros de cineastas em festivais da Europa ou da América do Sul não tiveram desdobramentos em termos de produção ou pelo menos distribuição. Então fica difícil dar excessiva importância a um intercâmbio de idéias que deixa de fora os próprios filmes. A criação do festival de Havana, em 1979, trouxe um contato mais regular e uma série de articulações que desembocaram

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em co-produções com países da América Latina e principalmente com a Europa. Mas a essa altura as opções predominantes eram bem diferentes, nada militantes e, às vezes, até despolitizadas. A institucionalização do “novo cinema latino-americano” propiciada pelos cubanos, embora relativa, correspondeu a uma fase de heterogeneidade e atomização da produção, temperada pela volta ao classicismo e ao academicismo. AF - Quais são os grandes momentos do cinema latino-americano? PP - Na primeira metade do século, o cinema produzido nos estúdios do México; na segunda metade, o Cinema Novo. A Argentina ocupou o segundo lugar, tanto nas tentativas industriais, quanto na fase de renovação dos sessenta. Dos três grandes períodos da historia do cinema, a América Latina foi irrelevante apenas durante o cinema mudo, apesar de alguns filmes, ciclos ou surtos locais. Limite foi “cult” para um minúsculo círculo de entusiastas durante meio século, começou a ter uma existência social em meios igualmente reduzidos apenas de vinte anos para cá. Os filmes produzidos em Pernambuco na década de vinte não foram exibidos no resto do Brasil. Assim como futebol é bola na rede, cinema é filme na tela. Pelo menos até a hegemonia da televisão. AF - A pequena difusão do cinema latino-americano no Brasil dá-se por questões meramente econômicas ou existem barreiras culturais mais profundas? Existe o mesmo problema entre outros países - por exemplo, o cinema chileno é pouco visto na Argentina, no México e vice-versa? PP - O cinema produzido nos diferentes países da América Latina não circula no continente, com raríssimas exceções. A única empresa que disputou um lugar no mercado latino-americano junto às multinacionais foi a Pelmex, organizada no auge dos estúdios mexicanos. A Embrafilme foi criada para trabalhar os mercados externos, mas ficou na distribuição nacional, pois o pessoal descobriu que “o buraco era mais embaixo”. Quando falta tudo, fica difícil dizer que o problema é apenas econômico, a não ser que ampliemos o conceito e chamemos o obstáculo de empresarial. Por que a literatura de cordel não é vendida no resto da América Latina ? Será que a resposta não é a mesma para o cinema ? AF - Você tem acompanhado a produção latino-americana mais recente em festivais e mostras. É possível identificar nos filmes pontos em comum que possam sugerir a existência de tendências estéticas compartilhadas e temas recorrentes refletindo o momento histórico vivido pelos países latino-americanos?

Limite

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PP - Não. Afinal, não existe uma estrutura de produção única, nem um movimento cultural unificado, nem convergências maiores. Compartilhamos as mazelas, somos solidários no câncer... De qualquer jeito, o volume da produção é tão reduzido, que qualquer generalização resulta em algo ocioso ou, então, cai-se no chavão da “diversidade”. A variedade da retomada brasileira é um cacoete que vale para o nosso cinema mudo, para a Vera Cruz, para o Cinema Novo, para os anos Embrafilme e quem sabe até para a Atlântida, apesar de que a chanchada era fabricada em série, seguindo padrões de eficiência modesta, porém comprovada. Isso sem falar na Globo, rainha da diversidade. E daí ? AF - No Brasil, hoje, há um crescimento de interesse pelo cinema documentário, sobretudo pelo uso de equipamentos digitais que tornam mais baratos os custos de produção. Verifica-se o mesmo nos demais países latino-americanos? PP - Por enquanto, não. Mas a globalização chega lá daqui a pouco. Mercado não é cultura, mercado é mercado. E as mal chamadas “leis” do mercado são cegas...

______________________________________ * Alexandre Figueirôa é jornalista, crítico de cinema, professor da Universidade Católica de Pernambuco e Doutor em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Paris 3 – Sorbonne Nouvelle. Autor de La vague du Cinema Novo em France fut-elle une invention de la critique?, Éditions l’Harmattan e Cinema Pernambuco: uma história em ciclos, Fundação de Cultura, Cidade do Recife.

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CINEMA

A NARRA TIV A E A ESTÉTICA DO NARRATIV TIVA CINEMA DOCUMENT AL BRASILEIRO DOCUMENTAL CONTEMPORÂNEO NAS OBRAS DE EDUARDO COUTINHO POR HUDSON MOURA*

Resumo: O intuito deste trabalho é desvendar a estética do cinema brasileiro contemporâneo a partir do cinema documentário. O documentário é hoje um gênero que vem atraindo cada vez mais público e alcançado um reconhecimento cada vez maior da crítica principalmente por apresentar novas propostas estético-narrativas. Encabeçando este boom do documentário no Brasil está Eduardo Coutinho que não somente é hoje o cineasta mais influente, segundo documentaristas e críticos, como desenvolveu uma estética muito particular e peculiar na história do documentário brasileiro que considero revelador do cinema brasileiro dos últimos anos. No filme Edifício Master (2002), um dos últimos realizados por Coutinho, observa-se, por exemplo, menos a busca de uma narrativa linear e coesa, em se vê um certo desinteresse pela intriga ou por um só tema de investigação, e mais a construção de um mosaico narrativo de individualidades. Para desvendar tal particularidade, faço um contraponto entre o trabalho de Coutinho e outros documentaristas e cineastas contemporâneos como Walter Salles, Vladimir Carvalho, Hector Babenco e Andrucha Waddington. Eduardo Coutinho

1. Introdução Nos últimos anos, o cinema documentário brasileiro ganhou quase tanto destaque na mídia e no que se refere ao público quanto o cinema de ficção. Esta nova tendência do cinema nacional nasceu com o Cinema da Retomada. Este foi responsável por impulsionar a cinematografia nacional a partir de 1995 com filmes como Carlota Joaquina e Terra Estrangeira. Tais filmes realizaram a proeza de reconciliar o cinema brasileiro com seu público e esse novo cinema, em grande parte, optou por uma linha estética em que a qualidade de produção e o tratamento de imagens tornaramse prioridades, ou seja, ele preocupou-se mais em “como” mostrar do que exatamente “o que” narrar. O cinema documentário também se caracterizou no Cinema da Retomada por adotar um cuidado com a produção e um apuro estético, em que as histórias revelavam-se muito mais no seu potencial estilístico e narrativo do que exatamente em seu potencial informativo. A história central dos filmes não serve tanto como fio condutor da narrativa ou como eixo de investigação mas, sim, como pretexto, muitas vezes, para desvendar “individualidades”.

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Terra Estrangeira

Neste texto, destaco os trabalhos de dois dos nossos mais importantes e tradicionais documentaristas do cinema brasileiro há mais de trinta anos em atividade: Eduardo Coutinho e Vladimir Carvalho1. Ambos começaram a fazer cinema na mesma época e são oriundos da mesma escola: o Cinema Novo. Eles trabalharam juntos no longa metragem Cabra marcado para morrer (1964/ 84) produzido pela UNE (União Nacional dos Estudantes). No entanto, com o passar dos anos, os rumos diferenciaram-se e seus filmes distanciaram-se tanto no tratamento narrativo quanto no tratamento estético. Carvalho caracterizou-se pela fidelidade à questão política e aos homens que marcaram a nossa história oficial, haja vista filmes como O evangelho segundo Teotônio (1984), em que narra a trajetória política de Teotônio Vilela, e O homem de areia (1982) que conta a história de José Américo, escritor e figura polêmica do sertão nordestino. Coutinho desenvolveu uma outra narrativa: aquela das pequenas estórias que se formam à margem da História; as narrativas pessoais e particulares que não fazem “sombra” na terra a não ser em seus filmes. É o caso, por exemplo, do filme Dona Marta, duas semanas no morro, de 1987, no qual ele mostra o contato dos entrevistados com a câmera. Ele e sua equipe instalaram uma câmera em uma casa de uma favela carioca e convidaram os moradores para darem seus depoimentos sem prévia determinação do assunto ou pergunta. Assim, enquanto Carvalho prosseguia na mesma fórmula do documentário investigativo e engajado política e ideologicamente, Coutinho enveredava pelo mesmo caminho e quase na mesma direção do novo cinema brasileiro de ficção. A estética de Coutinho definiu-se e apurou-se ao longo dos anos nas particularidades e na construção de seus “personagens”, nos enquadramentos e nos enfoques do narrado. Ele construía e conduzia os depoimentos como se esmerilhasse e apurasse o quadro cinematográfico, a imagem; a história formava-se aos poucos e através desses quadros. A narrativa não existia senão na composição e articulação de/entre esses “pequenos e efêmeros” depoimentos. Estes não formavam um todo narrativo, ou seja, uma história a ser contada, mas um mosaico narrativo.

2. Documentário e ficção - uma relação imbricada entre a informação jornalística e a arte narrativa da representação. Quais são as características marcantes do documentário? Como distinguí-lo de uma reportagem ou de um filme ficcional? O documentarista percebe e vê a realidade ou constrói uma realidade? Essas questões norteiam o cinema desde seus primórdios, quando teve início a sua teorização, e permanecem até os dias atuais. Alguns definem o documentário como a construção de uma realidade, como registro, um arquivo da nossa memória - como testemunha ocular da história. “As imagens documentam uma época, um determinado acontecimento, uma pessoa ou um país e representam cada vez mais a ‘memória’ do século XX” (Langman, 1986:31). Memória

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1- Recentemente os críticos de São Paulo e do Rio de Janeiro elegeram os dez mais importantes filmes documentários realizados no Brasil. Dentre os escolhidos, Vladimir Carvalho participa na realização de três deles: Aruanda de 1959 como assistente de direção, O País de São Saruê de 1971 como diretor e roteirista e, no filme de Eduardo Coutinho Cabra marcado para morrer de 1964/84 como produtor. Este último foi considerado por muitos como o melhor do gênero.

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essa vista de muitos ângulos e de diversas maneiras. Para muitos, o documentário deve ter um compromisso social para com os outros e deve ser, sobretudo, isento de julgamento de valor ou de reducionismo. Mesmo com os diversos pontos de vista já revelados e lançados sobre o cinema documentário, ainda assim, ele tem sido pouco estudado, como salienta Godoy. Segundo este autor, “são poucas as escolas de comunicação que tratam do assunto. Os estudantes que terminam os poucos cursos de cinema que existem no Brasil preferem a produção de filmes de ficção. Os jornalistas desconhecem a tradição documentária e denominam ‘documentário’ a qualquer reportagem de mais de 5 minutos de duração”(Godoy, 2001:305). Contudo, é nesta linha tênue entre jornalismo e arte, entre informação e tratamento estético que se situa o documentário, assim como entre a ficção e a realidade.

Ônibus 174

Para o documentarista José Padilha, diretor do filme Ônibus 174 (2002), “os documentários são filmes que pretendem representar ocorrências do mundo objetivo através da linguagem cinematográfica e com verossimilhança. Muitas vezes, para isso, o documentarista precisa realizar pesquisas de forma a construir sua narração de acordo com os fatos que pretende representar. Ou seja, a palavra documentário já implica uma preocupação com a apuração da verdade”. 2 Ele rechaça a expressão documentário jornalístico por considerá-la redundante. Para o diretor de Futebol (1989) e Notícias de uma guerra particular (1999), João Moreira Salles3, “um documentário ou é autoral ou não é nada”, sendo a autoria “uma construção singular da realidade”. O documentarista é “uma testemunha do seu tempo”. “O documentário, basicamente, é um gênero que olha para aquilo que esta ao seu redor”. E o olhar não é tão menos uma construção daquilo que esta em torno. Mas, como olhar a nossa volta? Segundo Vladimir Carvalho4, “porque se diz ‘é só um documentário, é muito simples, é a realidade, é muito simples a feitura do documentário’. Agora, é preciso saber colocar-se diante da realidade. É simples a realidade, mas nem sempre se encontra a simplicidade para espelhá-la, para retratála”. “Eu vejo o documentário como uma possibilidade de conhecimento, como a arte, como uma forma de conhecimento não científica, mas metafísica... por ser uma coisa que lida, que esmiúça, que troca a realidade em miúdos”. As imagens completamse através dos quadros e traduzem-se por um olhar, mas um só, e não dois pontos de vista.

2- Jornal A Gazeta, pag. 23, 23/11/2002. 3- Ibidem. 4- Cinemais, no 16 março/abril de 1999, págs. 32-33.

Que todo documentário seja uma visão particular de seu autor, isto é inegável, como define Labaki : “O cinema não-ficcional é uma obra de arte que carrega a visão de mundo de seu criador, tanto quanto qualquer filme de ficção esteticamente engajado”(2001). Essa questão da representação já foi, de uma certa forma, resolvida nos documentários clássicos como os de Linduarte Noronha (Aruanda) ou se voltarmos aos primórdios do documentário, nos de Robert Flaherty (Nanook, O homem de Aran, Louisina Story). Os realizadores encenavam com os seus entrevistados situações que eles previamente estudavam e pesquisavam sobre os seus cotidianos. Neste momento da “encenação”, entretanto, coloca-se a questão da ética do documentarista e o seu compromisso com a verdade dos fatos narrados,

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principalmente no que se refere às informações dadas sobre determinado assunto ou fato, ou ainda com relação à “conscientização” dos espectadores. Quanto a esta vocação jornalística e objetiva do documentário, no entanto, Labaki é categórico: “Exige-se a busca de objetividade de uma reportagem da CNN ou de um especial da BBC, mas não de um documentário de Johan van der Keuken, de Frederick Wiseman ou de Geraldo Sarno. O compromisso aqui é com algo mais difuso e complexo do que a mera “objetividade”. O documentarista procura ser fiel a um só tempo à sua verdade e à verdade dos personagens e situações filmadas. E, como dizia Oscar Wilde, a verdade pura e simples raramente é pura e jamais simples. Não se busca um recorte pretensamente objetivo ou neutro do mundo. O documentário nos oferece, isso sim, um mundo novo, forjado no embate entre a realidade filmada e a sensibilidade de um cineasta. A vanguarda do documentário contemporâneo trabalha explicitamente esse enfrentamento” (2001). Diante disso, fica a questão: no jornalismo não haveria esta mesma relação entre o repórter e os fatos? O cinema ficcional, às vezes também, busca esta objetividade jornalística quando aborda assuntos polêmicos e de repercussão imediata com o público, tornando os filmes quase didáticos na sua forma e na sua urgência em passar a informação. Entretanto, existem outras ligações entre o jornalismo e o documentário além da apuração dos fatos, pois ambos baseiam-se em testemunhos e relatos dos entrevistados para narrar um fato ou acontecimento. Talvez os depoimentos, quando os entrevistados falam de si mesmos, consistam na característica mais distintiva do documentário com a ficção. Contudo, mesmo assim, nesses relatos, reside uma forte dose de representação por parte dos entrevistados. A câmera lhes dá, como bem mostrou o filósofo Gilles Deleuze em Cinema 2. Imagem-Tempo, a possibilidade de fabular e de inventar suas próprias histórias e tornarem-se outro, ou seja, de se tornarem eles mesmos “personagens” do filme. Estas características e peculiaridades do documentário estão presentes em toda a tradição ficcional do cinema. Podemos encontrar mesmo um sub-gênero com a denominação de docudrama, em que são encenados roteiros por pessoas da comunidade ou então roteiros baseados em histórias reais por atores profissionais. O limiar entre documentário e ficção atenua-se ainda mais neste sub-gênero, mas um dos exemplos mais significativos e bem sucedidos da história do cinema ficcional em mostrar a realidade (função básica do documentário) talvez seja o neo-realismo, quando o cinema italiano aproxima-se do povo e dá-lhe a oportunidade de contar as suas histórias, utilizando as pessoas como atores nos filmes. Segundo Deleuze (1990), é neste momento que nasce o cinema moderno da Imagem-tempo. Sobre este embate entre representação e realidade, cito meu trabalho precedente: “A imagem-tempo é a “possibilidade de ‘temporalizar’ a imagem”, ela contesta o encadeamento regulado e a ditadura da ação. O tempo vem a ser fluido e ele é mais apresentado que representado, ele produz uma pressão no plano cinematográfico. [...] O grande desafio de produzir imagens é justamente de saber em qual sentido é possível extrair imagens dos “clichês”, imagens que nos permitam crer no mundo no qual vivemos, diz Deleuze. Se tudo nos parece ser uma ficção, uma ficção da ficção, se tudo parece conspirar para uma desmaterialização do mundo, se nós temos dificuldades de viver uma história, é porque tudo parece já ter sido programado, estabelecido, construído, calculado de maneira a nos tirar o poder de fabulação” (2002:157). O que acontece no cinema narrativo é que a força da representação é tão grande que o cinema passou metade da sua história procurando distanciar o espectador

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do filme, procurando explicitar o fato de que suas imagens não constituiam uma realidade, mas sim, uma construção particular dos seus realizadores sobre a realidade. A contradição é que a tendência do cinema atual é de aproximar este mesmo espectador do que é filmado: o que se filma existe e faz parte da natureza, não é uma realidade tão somente construída. Um dos exemplos riquíssimos desta fase culmina com o Dogma-95, no qual seus realizadores procuram dar mais “realismo” às imagens. O cinema assim volta a sua atenção para o mundo real fora da ficção, da representação, para justamente dar maior força ao fictício através do “documentário” que se denomina aqui como realidade. A diferença entre ficção e documentário está na autoridade que o próprio filme se dá enquanto narrativa documentária ou ficcional... Hoje as instâncias narrativas documental e ficcional mesclam-se e misturam-se a tal ponto que se torna difícil sustentar que uma menos é representada que a outra.

3. Em busca da escadaria - O engajamento do Cinema Novo com a História brasileira.

Vladimir Carvalho na câmera

O Cinema Novo, o mais importante e polêmico movimento do cinema brasileiro, é peça chave para entender estas duas vertentes do cinema documentário atual, nas figuras emblemáticas dos documentaristas Vladimir Carvalho e Eduardo Coutinho, e, principalmente desta nova estética do cinema nacional. O que se constata, sobretudo, é que o movimento do Cinema Novo tornou-se uma referência “estético-narrativa” do cinema contemporâneo. Alguns podem perguntar-se ou questionar em quê o cinema novo influência o cinema atual brasileiro se a preocupação primordial do movimento nos anos 60 era conciliar a estética com a luta/consciência política. O cinema contemporâneo não estaria voltando às origens para retomar justamente a sua história a partir de um outro olhar? Ao início do movimento, em 1964, Vladimir Carvalho estava colaborando com Eduardo Coutinho como assistente de direção do semidocumentário, Cabra marcado para morrer. O filme era patrocinado pelo Centro Popular de Cultura da UNE e narraria a saga das ligas camponesas, através do episódio do assassinato de João Pedro Teixeira. Interrompido pela censura após dois meses de filmagens, alguns dos líderes camponeses, que participaram do filme e não conseguiram escapar ao cerco policial, foram presos e torturados. Cabra Marcado só pôde ser concluído em 1984, e teve seu roteiro modificado, intercalando as cenas que restaram da época com imagens atuais dos sobreviventes. Cabra marcado para morrer acabou narrando a sua própria história, ou seja, trata da tentativa frustrada de um grupo de jovens nos anos 60 de realizar um filme camponês sobre o sindicalismo rural. Coutinho, apesar de fazer um filme histórico, no qual refaz toda a trajetória, foge dessa idéia atualizando o acontecido de vinte anos atrás. Em vez de usar somente imagens de arquivo para narrar o fato, ele utiliza essas imagens para interagir com as suas “personagens”.

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Assim, Coutinho cria uma nova história, na qual a investigação e busca de informações, a imagem do documentarista como personagem da ação, envereda o espectador para um caminho sem volta do suspense sobre o desenrolar da história. Estão presentes em Cabra as duas tendências do cinema documental contemporâneo. De um lado, a história e a política e, de outro, a relação próxima e interativa do cineasta com os entrevistados. Enquanto, de um lado, tenta-se recuperar uma parte da história perdida no passado e verificar a sua pertinência no presente, do outro, verifica-se a preocupação com a individualidade e o espaço que o outro ocupa e em que se vê.

No entanto, enquanto isso, no cinema de Carvalho, as histórias formam-se em conjunto, narram uma história maior como a chegada do nordestino em Brasília, durante o período da construção da cidade, em Conterrâneos velhos de guerra (1971/91). Ou ainda, um fato histórico ainda mais particular, mas não menos importante: a invasão da Universidade de Brasília por forças militares durante o período da Ditadura narrado em Barra 68 (2000). No cinema de Coutinho, os depoimentos são únicos e singulares, no sentido de não terem como interesse primordial a narrativa um fato ou assunto central. Em Santo Forte (1999), a religião é mero pretexto para seus entrevistados descreverem seus cotidianos, amarguras e esperanças, assim como a passagem do Ano Novo em Babilônia 2000 (1999). Esta opção é ainda mais contundente em seu mais recente filme, Edifício Master (2002), em que o edifício em questão não é cenário e não guarda nenhuma intriga ou ainda não é responsável por nenhuma investigação por parte do documentarista, a não ser a de reunir um universo eclético de moradores de um bairro de classe média brasileira.

Conterrâneos velhos de Guerra

Todas as duas tendências têm uma característica em comum: elas baseiamse nas memórias e nas narrativas orais de seus entrevistados, muito mais do que em uma busca de documentos ou uma exploração descritiva do seu cotidiano. É a fala o elemento mais importante destes dois cinemas documentários.

4. Um mosaico de Individualidades - A estética do cinema brasileiro contemporâneo Será que no cinema documental contemporâneo brasileiro podemos dizer que o singular já é coletivo, como dizia Deleuze sobre o cinema do Terceiro Mundo dos anos 60? O que se verifica no filme de Coutinho, principalmente em Edifício Master e no recente Cinema da Retomada, é uma crise de histórias ou de enredos, ou simplesmente um desinteresse pela intriga. O mesmo pode-se dizer do mais recente filme de Hector Babenco, Carandiru (2003). As histórias individuais delineam o espaço narrativo mas não a intriga narrativa,

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pois esta, na verdade, não constitui o principal argumento do filme. O massacre dos presos, que seria o ponto alto na narrativa, representa um mero evento que culmina com a morte de alguns dos personagens. O massacre não é o clímax e nem o motivo pelo qual todas as “individualidades” formam-se: elas constroem-se e concluem-se por elas mesmas, sem a ameaça de algo que vai acontecer. Os personagens não reagem em função da iminência de algo ou são diretamente provocadores de uma catástrofe iminente.

Carandiru

Num paralelo com o filme Eu tu eles (1999), de Andrucha Waddington, em que a fotografia, como a de Carandiru, é extremamente bem “trabalhada”, os atores são carismáticos, mas a história do filme é também apenas “curiosa”, a qual o espectador aguarda seu desenrolar. O filme na verdade não cria nenhuma expectativa. Os personagens mostram-se e formam-se enquanto “indivíduos” na tela, mas não em função da história que contam mas sim, de como a vivem. Na estética do sertão nordestino, eleva-se o peso da dramaticidade narrativa através de uma fotografia de cores quentes e de alta qualidade técnica, mas que não é necessariamente dramática ou mesmo cômica. O sertão deste cinema é singular; devemos levar em consideração que talvez ele não nasça do sertão original, mas sim, do sertão midiatizado, justamente aquele que ficou muito conhecido no Cinema Novo. O sertão como experiência estética, um dos berços da história brasileira, é berço também do movimento cinematográfico mais contundente do Brasil. No entanto, o novo sertão é completamente “estético” e não tem nada do sociológico ou do ideológico dos anos 60, mesmo em filmes como Central do Brasil (1998), de Walter Salles. Glauber Rocha e seu grupo são muito mais uma referência que uma influência. O sertão representa este tipo de lugar que resiste à toda nova maquinaria do progresso e onde é possível encontrar uma certa tradição oral, uma certa palavra perdida no tempo, uma certa história que parece ser do passado, um certo povo, talvez “autêntico”, verdadeiro. A busca das origens para “preencher” uma ausência é o tema do filme Central do Brasil. Após o início no Rio, o filme continua no sertão, para reencontrar as raízes tanto de um povo quanto de um cinema. O filme coloca a nu um país difícil de mostrar e é exatamente isto o mais desconcertante e incômodo. Ele revela ao mesmo tempo uma ausência na cinematografia nacional: o País, ele mesmo, o rosto de seu povo, o engajamento de sua imagem. O filme tenta repertoriar incontáveis costumes, hábitos, gestos, palavras, histórias, que são difíceis hoje de serem encontrados na mídia ou nas artes brasileiras. A partir da história de um menino que procura seu pai, ele acaba perdendo a sua mãe - o filme narra a história do país. É essencial para o filme reencontrar esse Brasil “perdido”, esquecido, é sua tarefa de reconquistar uma tradição obsoleta, ultrapassada: aí reside o sentimento de saudade enraizado nas imagens do filme. São estes questionamentos atuais que o filme retoma através de histórias privadas; reencontra o coletivo em um estilo documental, realista, mas não sem ser sentimentalista, romântico e, sobretudo, humanista. Deleuze disse à propósito do cinema revolucionário de Glauber Rocha que se não existia um povo, seria necessário inventá-lo, dá-lo corpo, voz e alma. Assim, era a falta desse

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povo que o cinema glauberiano mostrava. Talvez o cineasta Salles tenta fazer parecido, evidentemente por escolhas estéticas e ideais diferentes. Melhor dizendo: encontrar este sujeito autêntico, essa cultura dinâmica que não seria ainda tocada pelos “maus” hábitos de um olhar muito midiatizado. O filme ousa operar um retorno às origens nacionais, mesmo se o tom parece ser sentimental em excesso e os ideais humanistas, demais para hoje. Mas, qual olhar o filme repousa sobre o país? O Brasil visto pelo filme é um país de contrastes, onde a fé é a única via de redenção. O movimento dos personagens na estação, na estrada, na procissão confundem-se com os seus próprios movimentos de identificação e de rejeição entre si. O tour-de-force entre a professora aposentada e sub-empregada e o menino sem mãe, aproxima-nos indiretamente de uma verdade que se encontra sempre no plano de fundo do imenso, extremamente bonito, bem fotografado e bastante colorido deserto do sertão nordestino. Uma realidade completamente diferente daquela do Cinema Novo, em que a beleza das imagens ficava justamente na força e na dureza de sua realidade árida, conseguida através de uma fotografia dura, superexposta em preto e branco. Em Central do Brasil, a dureza é muito mais expressa pela personalidade de Dora: ex-professora primária que escreve cartas para analfabetos em uma grande estação no Rio, onde a moral, a ética e os valores humanos parecem ter perdido sua importância. “A dura indiferença talvez não seja mais que o rosto confesso da nostalgia”5, esta frase de Kristeva poderia aproximar-nos um pouco mais da personagem de Dora. Ela rejeita aqueles que se parecem com ela - assim se explica seu rancor e seus atos mesquinhos. Ela também, como o menino Josué, não tem pai, e chegou em um momento de sua vida em que ela não espera mais nenhum gesto de humanidade da parte do outro. Seria esse o sinal de uma nostalgia, de uma angústia, de uma frustração do passado? Na cena final, Dora olha por um monóculo a foto que ela havia tirado com o menino diante da imagem de Padre Cícero, uma das figuras míticas da religião do povo sertanejo. Ao mesmo tempo, em montagem paralela, o menino olha a mesma foto também por um monóculo. Esse gesto está ligado ao passado por este dispositivo, o monóculo, que permite ver, no fundo de um recipiente plástico, o dispositivo da foto. As personagens são, assim, finalmente unidas neste momento único em que eles reencontram-se verdadeiramente e suas imagens são eternizadas. Neste instante, Dora acaba de escrever ao menino uma carta, na qual ela diz não ter saudade de seu pai, mas de tudo, de seu passado, de um tempo, talvez quando ela ainda acreditava na verdade humana. A verdade no filme, esta busca maior, não está no fim da história, nós não vamos desvendá-la, nós não aprenderemos nada, apesar do tom moralista do final do filme. Se existe uma verdade, ela esta mais presente nos vestígios do passado, e através deste encontramo-nos nas imagens, com todas as suas forças e contradições - momentos verdadeiros. Momentos mostrados pelos clientes de Dora, por exemplo, pelas suas simplicidades, pelos seus sotaques que retraçam contornos regionais do país ao citar os nomes de suas cidades. Não é uma coincidência que a primeira personagem do filme seja Maria, a mulher cuja história foi filmada por Walter Salles no documentário Socorro Nobre realizado três anos antes, e que serviu de inspiração para o roteiro de Central do Brasil. No filme, ela dita a Dora uma carta destinada ao seu companheiro que está na prisão, uma referência direta do cineasta à história pessoal desta mulher, revelando, assim, as origens documentárias do filme. A procissão religiosa é igualmente um desses momentos verdadeiros do filme. Assim como a profissão de Dora, escritora de cartas para analfabetos, os rituais religiosos estão também em vias de desaparecimento.

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5- « La dure indifférence n’est peut-être que le visage avouable de la nostalgie », 1988, p. 20.6-

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Nesses momentos verdadeiros, nostálgicos, sentimentais, saudosistas, o filme faz um trabalho “poderoso” de pesquisa de um povo e de um cinema perdido entre milhares de imagens-clichês que, aliás, ele não renega: esses momentos mal se parecem.

“Socorro Nobre”, curta-metragem de Walter Salles

O cinema contemporâneo não está preocupado em contar uma história maior e única, mas inúmeras histórias individuais... Sem intriga, no entanto? Para qual direção? Xavier (2000) trata da questão dos encontros: o que nos anos 60 era o “imediatamente” coletivo, neste novo cinema o trâmite é outro e as relações se individualizam:

Também nos documentários há o tema do inesperado encontro. Os diretores encontram-se com pessoas diferentes: aquelas que eles entrevistam e mostram nos seus filmes, como Ricardo Dias e Eduardo Coutinho o fizeram com religiosos. O exemplo paradigmático é o do inesperado encontro entre o diretor João Moreira Salles, filho de um banqueiro, e o traficante Marcinho VP [em Notícias de uma Guerra Particular (2000)]. Esses encontros inesperados ganham maior ressonância porque a época é de individualização dos gestos. O cineasta apresenta-se como indivíduo, como cidadão com uma história particular. Ele não reivindica o papel de representante, não se apresenta com um mandato. Assim, a discussão encaminha-se para o pessoal, para o individual e, novamente, não para as estruturas sociais. (Xavier, 2000, p. 97) No filme de Coutinho, o espectador testemunha tanto o encontro do realizador com o entrevistado, quanto ele mesmo que se encontra e identifica-se no “inesperado” do encontro: a riqueza da fala de cada um. Edifício Master é, assim, um enredo entremeado de vai-e-vens, mas sem nenhuma daquelas técnicas tradicionais do roteiro cinematográfico que mesmo o documentarista Flaherty dominava e utilizava tão bem. Neste novo cinema brasileiro, o filme não caminha para o desfecho de momentos de tensão ou de euforia, em que o todo se regenera ou chega-se a uma catarse ou redenção coletiva. Assim, não é de modo impensado que Coutinho conduziu a montagem dos depoimentos em ordem mais ou menos cronológica, em que não havia uma lógica interna na composição/elipse dos relatos; o filme se constrói e conclui-se a cada depoimento. São as individualidades mostradas e vividas na tela que marcam este momento de encontro nem tão “inesperado” do cinema brasileiro com o seu público. A preocupação do cinema documental contemporâneo brasileiro não está atualmente na busca de uma história para contar, mas sim, de individualidades, para serem mostradas por diversos ângulos e narradas por meio de muitas vozes.

Bibliografia DELEUZE, Gilles. Cinema 2. A imagem-tempo. Trad. bras. Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo, Brasiliense, 1990. “Estudos de cinema”. Socine II e III. São Paulo, Annablume, 2000. GAUTHIER, Guy. Le documentaire un autre cinéma. Paris, Nathan, 1995. GODOY, Hélio. Documentário, realidade e semiose: os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento. São Paulo, Annablume/Fapesp, 2001. GOMES, Paulo Emílio S. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. LABAKI, Amir. “3 questões sobre documentário”. In: Caderno Mais! Folha de São Paulo, 04/03/2001. LANGMAN, Ursula. “O manual de história idealizado”. In: O bestiário de Chris Marker. Lisboa, Horizonte, 1986.

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MATTOS, Carlos Alberto. “A câmera humana”. In: Críticos.com.br. 22/11/2002. Página web consultada em 13/12/2002. [http://criticos.com.br]. MOURA, Hudson. “L’image-exil”. Tese de doutorado em Cinema e Literatura. Université de Montréal, 2002. ______. “Memória & Exílio. O cinema de Vladimir Carvalho”. Dissertação de mestrado em Comunicação e Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1996. RAMOS, Fernão et al. (org.). Estudos de cinema 2000 – Socine. Porto Alegre, Sulina, 2001. XAVIER, Ismail. “O cinema brasileiro dos anos 90”. In: Praga - estudos marxistas. São Paulo, v.9, p.97 138, 2000. Filmografia Babilônia 2000 (1999) Direção e roteiro: Eduardo Coutinho. Barra 68 (2000) Direção e roteiro: Vladimir Carvalho. Boca do lixo (1992). 50 min. Direção e roteiro: Eduardo Coutinho. Cabra marcado para morrer (1964/84). Direção e roteiro: Eduardo Coutinho. Assistente de direção e produtor associado: Vladimir Carvalho Carandiru (2003) Direção: Hector Babenco. Roteiro: Hector Babenco, Victor Navas e Fernando Bonassi baseado no livro de Drauzio Varela. Com: Luiz Carlos Vasconcelos e Milton Gonçalves. Central do Brasil (1998) Direção: Walter Salles. Roteiro: João Emanuel Carneiro. Com Fernanda Montenegro e Vinicius Oliveira. Conterrâneos velhos de guerra (1991). Direção e roteiro: Vladimir Carvalho. Edifício Master (2002) 110 min. Direção e roteiro: Eduardo Coutinho. Eu tu eles (1999) Direção: Andrucha Waddington. Com Regina Casé e Lima Duarte Notícias de uma guerra particular. (2000) 57 min. Direção e roteiro: João Moreira Salles e Kátia Lund. Ônibus 174 (2001). Direção e roteiro: José Padilha O país de São Saruê (1971) Direção e roteiro: Vladimir Carvalho. O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas. (2000) 75 min. Direção e roteiro: Paulo Caldas e Marcelo Luna. Dona Marta: duas semanas no morro (1986) Direção e roteiro: Eduardo Coutinho. Santo Forte (1999) Direção e roteiro: Eduardo Coutinho.

______________________________________ * Hudson Moura é Ph.D. em Cinema e Literatura pela Universidade de Montreal, Canadá. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor de cinema e coordenador do curso de pós-graduação Especialização em Cinema e Intermídias da Faculdade de Educação e Comunicação Social - FAESA II - Vitória - ES.

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CINEMA

O FILME DOCUMENTÁRIO ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO: UMA PROPOST A DE PROPOSTA DESMISTIFICAÇÃO1 POR CÁSSIO DOS SANTOS TOMAIM* Resumo: O artigo propõe demonstrar que o filme documentário também está imerso na subjetividade, já que a experiência estética somente pode ocorrer sob a condição da ilusão da realidade, o que sugere aos historiadores, que enveredam pela relação cinema e história, a tentativa de se afastarem da condição de espectadores, ou seja, não tomar o filme como verdade, mas vê-lo como uma construção, uma interpretação que lhes é oferecida sobre o real.

Sobem os créditos, a sala escura começa a ser iluminada e rapidamente as pessoas deixam as poltronas, mas há tempo para que ouçamos um comentário baixinho de um casal: “É tudo tão real!” — deslumbrava a moça que ainda tinha a cabeça acomodada no ombro do namorado que concordava: “Os personagens parecem de verdade!” Não é incomum depois de uma sessão de cinema, depararmo-nos com enunciados desse tipo, o que comprova que, superados os temores advindos do surgimento do cinematógrafo no final do século XIX, ainda nos entregamos ao fascínio das imagens em movimento e pouco aprendemos sobre como lidar com essa experiência perceptiva. Alguns estudos “L’Arroseur Arrosé”, em 1896, no Cinematógrafo de Lumière já sinalizam para a necessidade de compreendermos como se dá este imperativo de uma nova experiência para o homem moderno, que implica em um saber pressuposto pela imagem, mais especificamente pelo audiovisual. Autores como Martín-Barbero e Rey (2001) apontam para a importância de instituir o ensino deste novo “modo de saber/ler” pautado pela heterogeneidade dos meios presentes na sociedade contemporânea. Ou seja, é incompreensível que o sistema educativo insista em disfarçar ou desconhecer que existe um desafio proposto pela hegemonia do audiovisual, que corresponde a encontrar maneiras de inserir no cotidiano das escolas e universidades o aprendizado destas novas linguagens, tão presentes na vivência dos alunos, ao invés de priorizar a 1 -Este artigo constitui parte dos argumentos vigência da cultura letrada como único reduto do saber. No entanto, para os autores, desenvolvidos em minha dissertação “Janela isto não significa a simples substituição de um “modo de ler” por outro, senão a da Alma”: cinejornal e Estado Novo articulação complexa de um e outro, já que a construção dos cidadãos se dá, hoje, fragmentos de um discurso totalitário.

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L’Arrivée d’un Train em Gare de la Ciotat

por meio de uma pluralidade de escritas; em outras palavras, é necessário que aprendamos a ler um jornal, um noticiário televisivo, um hipertexto e, porque não, um filme. Assim, compartilhando deste pensamento, vemos que as pesquisas no âmbito da relação cinema e história podem auxiliar na compreensão de como se dá a mediação entre a sociedade e o filme, mas, encontram barreiras principalmente na questão da metodologia. Para começarmos a superá-las, sugiro que, sempre que nos dirigirmos ao objeto fílmico, abandonemos a condição de espectadores, por mais difícil que isso seja, o que significa que nossas indagações não devem partir da busca da realidade, já que a própria função primária da arte é provocar uma percepção do real no espectador. Ou seja: não nos interessa o real “em si”, mas as interpretações, as proposições deste real, os efeitos perceptivos que nos são oferecidos deste real. O fato de pensarmos o cinema na condição de obra de arte, mais especificamente linguagem, abre-nos caminhos na relação cinema e história, ampliando uma discussão que aparentava estar encerrada na objetividade do filme documentário. O que pretendemos demonstrar é que a relação que se estabelece entre espectador e obra de arte já é algo que está dado, determinado pela própria experiência perceptiva que o objeto sugere, que o contato com a obra de arte sempre se dá no âmbito de um real construído e, que, portanto, o observador toma sistematicamente para si a imagem como realidade, verdade; o ilusionismo da arte é capaz de introduzir um véu sob o fazer artístico, escondendo as etapas de um processo que é, ao mesmo tempo, um executar e um inventar. Devemos lembrar que estamos falando de representações, que a credulidade da imagem está no fato de que, diante de nossos olhos, a realidade materializa-se nas diversas formas, aproxima-nos de um real, torna presente algo distante; é somente por meio das representações, por elas serem, ao mesmo tempo, um tornar presente e um projetar-se na obra, que podemos vivenciar novas realidades, aventurarmo-nos, tendo ainda o resguardo de que sairemos ilesos desta relação. Desta forma, compreender esta dúbia vocação da obra de arte, que muitas vezes é tida como ilusória, fantasiosa, outras vezes como testemunho, realidade, é um desafio que perpassa todos os trabalhos que enveredam pelos caminhos tortuosos de lidar com a obra de arte. Deixar de lado a dicotomia realidade/ficção é o mesmo que tomar o objeto sob um viés insuficiente para contemplá-lo, insistindo muitas vezes em um reducionismo que se divide ora em uma concepção de falsidade para com os ementos de caráter ficcional, ora exacerbando-os ao conceder a estes elementos de caráter documental uma fidelidade ao real. Assim, a nossa reflexão deve se dar no âmbito da busca do entendimento de como esta dicotomia efetiva-se, de como cada caráter se comporta e como ambos se entrecruzam na constituição de uma obra de arte. Se a imagem é ao mesmo tempo um revelar e um reformar do mundo, é imprescindível que atentemos para esta dualidade no cinema: que traços deste mundo reformado, reportado nos é revelado, como esta arte introduz na sua relação com o espectador um aspecto verossímil.

Entre a tela e o princípio só resta o espectador Sem insistirmos naquela repetida fábula do trem que invade a tela e provoca uma debandada do público apavorado, que presenciava pela primeira vez no Grand

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Café, na França do fim do século XIX, a invenção dos irmãos Auguste e Louis Lumière - o cinematógrafo - é importante compreendermos como se deram as primeiras impressões do cinema, ou melhor, os primórdios de uma arte que somente mais adiante seria concebida, como a conhecemos atualmente, pela sua narratividade. Na sua primeira sessão, em 28 de dezembro de 1895, o cinematógrafo não atraiu mais do que 33 espectadores, tendo sido desprezado pela própria imprensa parisiense que tinha sido convidada. Porém, durante alguns dias, o sucesso da propaganda boca-a-boca foi tremendo, e até a polícia teve de ser chamada para conter os mais de dois mil espectadores que se dirigiam ao salão onde estavam sendo exibidas as preciosidades dos Lumière. Dentre as primeiras impressões, a que mais chama a atenção é a de um jornalista que, dois dias após a inauguração do aparelho, escreveu no La Poste: Imaginem uma tela colocada no fundo de uma sala tão grande quanto se pode conceber. Essa tela é visível para uma multidão. Aparece nela uma projeção fotográfica. Até aqui, nada de novo [...] mas, de repente, a imagem de tamanho natural ou reduzido, conforme a dimensão da cena, se anima e se torna viva. É a porta de uma fábrica que se abre e deixa sair uma torrente de operários e operárias, com bicicletas, cachorros que correm, veículos; tudo isso se agita, formiga. É a própria vida, é o movimento ao vivo (TOULET, 2000, p. 134).

A saída dos operários das fábricas Lumière

Nesta descrição, notamos que o impacto do cinematógrafo na sociedade da época foi transformador, suscitando algo de novo, que escapava da projeção fixa do instantâneo fotográfico para ganhar movimento na tela, vida, além de dirigir-se a uma multidão. Se antes, com a fotografia, o espectador relacionava-se com a obra de arte individualmente e a imagem que nela se revelava era uma vida congelada, estática, com o surgimento do cinema viu-se a ressurreição da vida e uma nova experiência perceptiva que iria se configurar ao homem moderno: a percepção coletiva. Na tela, o movimento agregava um novo valor à imagem, satisfazia imediatamente um antigo anseio perceptivo do homem pela realidade de reconhecer na obra a vida, os objetos que seus olhos eram capazes de contemplar. Se a fotografia e a pintura já nos encantavam por capturar o movimento em um instante, o cinema fascinava-nos por ser capaz de oferecer ao delírio de nossa sensibilidade o balançar dos arbustos pelo vento de outono, em outras palavras, se a invenção dos Lumière trouxe-nos alguma novidade, esta foi o movimento das coisas, dos homens e mulheres que saíam da fábrica. Assim, o movimento do cinema foi o responsável por instaurar definitivamente a “impressão de realidade” que, diante da tela, ocorre por um fenômeno de participação, participação esta que é ao mesmo tempo afetiva e perceptiva. Por isso, somos levados constantemente a afirmar que um filme causa-nos uma maior impressão do real do que uma fotografia ou uma pintura; o movimento projeta-nos para a cena

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como se reconhecêssemos e desejássemos que, além dos arbustos, o vento chacoalhasse nossos cabelos e atingisse nossas faces com seu sopro frio e tênue. Segundo Metz, se existe algo no espetáculo cinematográfico que não passa de uma efígie, de uma representação, este é o movimento. A força do cinema não está em reconhecê-lo como um vestígio do passado, como um vestígio de um movimento passado, mas de ser percebido pelos espectadores sempre como um movimento atual. Enquanto os objetos e personagens no espetáculo cinematográfico surgem como uma imagem, o movimento que os anima aparece realmente. Portanto, em oposição ao teatro, os personagens do cinema só se tornam presentes mediante a necessidade que o espectador tem de investi-los de uma realidade que é oriunda da ficção (a função primária da arte), de se projetar e identificar-se neles. “Se o espetáculo cinematográfico dá uma forte impressão de realidade, é porque ele corresponde a ‘um vazio no qual o sonho imerge facilmente’” (METZ, 1972, p. 23). Entretanto, este sonho só é capaz de imergir devido à condição psíquica em que os espectadores se encontram diante do espetáculo. Dentro da sala escura, o espectador está anestesiado, relega seu estado de vigilância; sabendo que está diante de um espetáculo, suspende qualquer ação e sequer se preocupa com qualquer prova de realidade. Por outro lado, é constantemente bombardeado por uma seqüência de impressões visuais e sonoras que forçam sua capacidade perceptiva de associar um elemento ao outro. Em relação ao primeiro aspecto desta condição, Machado traça um interessante perfil do espectador: “anestesiamento do espírito vigilante, suspensão de todo interesse pelo ambiente circundante, projeção da personalidade num sujeito emprestado, adesão à impressão de realidade, desligamento, passividade, desejo de sonhar: eis algumas das disposições regressivas do espectador acorrentado à sua poltrona na gruta escura, simulação do ventre materno” (MACHADO, 1997, p. 5556). Assim, temos que o espectador não se dirige ao filme em um estado de contemplação; ao contrário, busca no cinema a distração, o divertimento, o preenchimento de seu tempo livre. Ou seja, o espectador não exige do espetáculo cinematográfico algo além do simples entretenimento, o fato de ir ao cinema requer dele uma única motivação: divertir-se. Segundo Machado, o desejo de ir ao cinema vai além de uma simples disponibilidade de se deixar sugestionar pela “impressão de realidade”: corresponde ao relacionamento que o espectador estabelece com a realidade construída, que pode ser definida como “voyeurista” e “narcisista”. Diante da tela, o espectador sempre se coloca na condição daquele que espia, bisbilhoteia a intimidade do outro, enquanto o seu corpo inerte é projetado imaginariamente na cena, onde ele se reconhece, identifica-se com os personagens da trama como se fosse ele mesmo o sujeito do filme (MACHADO, 1997, p. 47). Portanto, o cinema “é o espetáculo da idade industrial e sua vitalidade está garantida enquanto indústria do espetáculo” (COLI, 1985, p. 100), pelo menos no tocante à compreensão de que é o divertimento o primeiro impulso que conduz o espectador à sala de exibição. Já a respeito da alteração perceptiva que o frenesi cinematográfico provocou nos espectadores, os dois relatos de Balázs, um dos principais nomes da teoria formativa do cinema, — o primeiro de um inglês em uma colônia e o segundo de uma jovem siberiana — são fundamentais para que possamos compreender algo que, com o passar do tempo, foi esquecido ou negligenciado ao pensar esta arte: Um dos meus amigos moscovitas me contou o caso de sua nova empregada, que chegara à cidade pela primeira vez, vinda de um colcós siberiano. Era uma jovem inteligente, freqüentara a escola com proveito, mas — por uma série de estranhas circunstâncias — jamais vira um filme. Seus patrões mandaram-na ao cinema, onde se projetava uma comédia popular qualquer. Voltou para casa palidíssima e abatida. ‘Gostaste?’, perguntaram-lhe. Ela ainda estava emocionada e, por alguns minutos, não conseguiu emitir nem uma sílaba. ‘Horrível’, disse finalmente, indignada. ‘Não consigo compreender por que aqui em Moscou permitem que se assistam a tantas

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monstruosidades.’ ‘Mas o que viste?’, retrucaram os patrões. ‘Vi’ — respondeu a moça — ‘homens feitos de pedaços: a cabeça, os pés, as mãos, um pedaço aqui, um pedaço ali, em lugares diferentes (apud CANEVACCI, 1984, p. 38). Diante destes fatos que hoje nos surgem como anedotas, Canevacci ressalta que a nossa civilização não leva mais em conta o quanto foi penoso e complicado o processo de adaptação para que nos familiarizássemos com a sucessão visual, como tivemos que aprender a “ler” os filmes, além de que em pouco tempo, uma nova cultura visual instituía-se no cerne da sociedade moderna (1984, p. 39). Certamente, uma figura como a da jovem doméstica siberiana é, senão inexistente, no mínimo rara hoje em dia, já que por mais que atualmente leve-se, pela primeira vez, o cinema aos mais profundos rincões de um país como o Brasil, um outro meio chegou primeiro a estes confins e ensinou a população local a associar os diversos elementos visuais e sonoros: a televisão. No entanto, “a pequena janela para o mundo em sua casa” jamais será capaz de ocupar o espaço da arte cinematográfica no imaginário coletivo. Para as pessoas acostumadas a assistir aos programas televisivos, ir ao cinema pela primeira vez ainda resguarda um certo encantamento, um fascínio por poder participar de um ritual que se repete a cada sessão. O cinema ainda é capaz de permitir a estas pessoas a vivência de uma nova realidade, de se impressionar com o real e reconhecer-se de forma afetiva e perceptiva como o sujeito do filme. Um dos primeiros closes da história do cinema Assim, temos que a relação que a sociedade estabelece com a arte e vice-versa sempre se dá no âmbito da ficcionalidade, porém, uma ficcionalidade que constantemente responde ao social com um real atribuído. Ou seja, a sociedade tem a necessidade de vivenciar as ilusões como verdadeiras e clama pelo ilusionismo, fato que, para Stam, configura o ser humano como um “animal criador de fábulas que gosta de fingir que as ficções são verdadeiras, mesmo sabendo que não o são” (1981, p. 19). Está configurada a dicotomia: de um lado, a ficção é subentendida como verdade; do outro a realidade é construída socialmente. Cabe a nós desvendar o véu que a cobre no cinema. Parte deste desvendamento revela-nos uma preferência perceptiva do homem pela realidade. Segundo Schwartz (2001), antes da invenção do cinematógrafo, os espetáculos que se dirigiam ao público parisiense do século XIX já atendiam a uma exigência perceptiva do homem moderno: o gosto pela realidade. Dentre estes espetáculos, o necrotério era a principal atração popular de Paris; as pessoas não iam lá para reconhecer um cadáver, como se cumprissem um dever cívico, mas para exercerem uma atividade essencialmente voyeurista, ou seja, iam somente para olhar. O necrotério era incluído entre as curiosidades da cidade, era mais uma atração, mais uma coisa para se ver, assim como a Torre Eiffel. Um outro exemplo de popularidade na França era o museu de cera, o Museé Grévin, que diante do realismo das peças, muitas vezes associado à autenticidade dos acessórios e das réplicas, atraía visitantes tanto quanto o já instituído passeio pelo necrotério. Portanto, para a autora, o gosto dos habitantes da Paris fin-de-siècle pelo realismo podia ser explicado mediante o interesse que nutriam pelo modo como a realidade era transformada em espetáculo e, também, pela forma como os espetáculos eram obsessivamente realistas, o que equivale dizer que os espectadores levaram para a experiência cinematográfica os modos de ver cultivados em diversas atividades e práticas culturais. Ou seja, o cinema incorporou

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para si o anseio perceptivo do homem moderno, a busca íntima pela realidade. Ainda procurando revelar a fina transparência da ficção que recai sobre a arte cinematográfica, em que o espectador dirige-se ao filme na expectativa de vivenciar um real, já que o próprio elemento ficcional o autoriza, a interpretação de Kossoy (1999) a respeito da trama fotográfica pode nos auxiliar nesta tarefa. Para o autor, é possível pensarmos em quatro tipos de realidade que constituem a fotografia: a “Primeira Realidade” é definida como o passado em sua essência, ou seja, a própria dimensão da vida passada; a “Realidade Interior” é intrínseca a toda e qualquer imagem: é a história oculta e interna, uterina, invisível fotograficamente e inacessível fisicamente. Por se originar da “Primeira Realidade”, ambas se confundem. Já a “Segunda Realidade” refere-se ao assunto representado, isto é, consiste na referência sempre presente de um passado inacessível, é a própria representação. Assim, temos que a fotografia ou o cinema estarão sempre no âmbito da “Segunda Realidade”, que nada mais é do que o registro na chapa, a imagem gravada. Finalizando, a “Realidade Externa” é entendida como a face aparente e externa de uma micro-história do passado, ou seja, o aspecto visível, o assunto representado que configura o conteúdo explícito da linguagem fotográfica. A concepção destes quatro tipos de realidade contribui para que compreendamos o que já vínhamos dizendo anteriormente: a realidade é uma construção social. Desta forma, temos que o cinema, assim como a fotografia, é um processo construtivo em que selecionamos fragmentos da “Primeira Realidade”, portanto, do real “em si” que, por ventura, na película, se configura em um passado inacessível, oculto ao documento (a “Realidade Interior”). Neste instante de seleção, de registro, os fragmentos de um passado distante são transformados em imagens, em representações, ou seja, o que pertencia ao nível da “Primeira Realidade” agora responde a uma nova realidade, a uma “Segunda Realidade”. Assim, se o passado antes se encontrava ausente, é por meio de uma “Realidade Exterior”, da exterioridade da relação observador e imagem que ele se torna presente. Segundo Kossoy (1999 p. 38), “a realidade da fotografia [do cinema] não corresponde (necessariamente) à verdade histórica, apenas ao registro expressivo da aparência ... “. Portanto, a única realidade que pode ser apreendida pela experiência cinematográfica é aquela que se realiza no nível da percepção. Assim, temos que nossas investigações não partem do pressuposto de que o filme é o registro puro do real, como também não lhe atribuímos um juízo de valor que seja pautado por este suposto realismo. Dizer que um filme é mais realista do que um outro é o mesmo que tomar como verdade as proposições que ele determina, o que se decide que seja dito de um fato, de uma sociedade. Desta forma, o historiador não será capaz de superar, no momento da análise, sua condição de espectador; a busca por uma verdade no filme é um esforço em vão, já que o real é inacessível pela imagem. O que está ao nosso alcance não passa de um verossímil que o filme autoriza. No entanto, se a “realidade fílmica” só se realiza “através de associações e relações de diversos aspectos isolados da realidade”, para que possamos continuar desvendando este véu do cinema, chamado “impressão de real”, é imprescindível que compreendamos um dos fundamentais princípios da linguagem cinematográfica: a montagem. Segundo Aumont (1995, p. 62), “a montagem é o princípio que rege a organização de elementos fílmicos visuais e sonoros, ou de agrupamentos de tais elementos, justapondo-os, encadeando-os e/ou organizando sua duração”. Assim, temos que a montagem aproxima-nos da idéia de “construção fílmica”, em que a justaposição de fragmentos do real conduz ao surgimento de uma nova noção de tempo e espaço, que Pudovkin denominou de “tempo fílmico” e “espaço fílmico” respectivamente. Para o teórico russo, ao somarmos um plano a outro, como peças cinematográficas, obteríamos uma experiência temporal e espacial que difere do real. O “tempo fílmico” não equivale ao tempo real, pois não se desenrola diante da câmera; é uma temporalidade determinada pelo diretor que seleciona e monta os retalhos temporais. Da mesma maneira ocorre com o “espaço fílmico”: vários pontos

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do espaço real são filmados, captados pela objetiva e, em seguida, associados para que constituam um novo espaço. Portanto, com o auxílio da montagem, o cinema foi capaz de desenvolver seu caráter narrativo o qual foi o responsável para que o reconhecessem como arte, abandonando, assim, as feiras populares.

Fragmentos: Eisenstein x Bazin

Sergei Eisenstein

Como vimos, o princípio de montagem foi a mola propulsora da consolidação da arte cinematográfica, o que o coloca na condição de elemento catalisador de todo um debate teórico a respeito do cinema. Desde o início das teorias do cinema, duas tendências afirmam-se em torno de concepções distintas sobre o papel que a montagem ocupa no fazer cinematográfico: para uma primeira tendência, o princípio de montagem é o elemento dinâmico essencial do cinema, é aquele capaz de provocar a catarse dos sentimentos e das emoções mais sublimes dos espectadores; entretanto, em alguns casos extremos, chegam a ponto de exacerbar na avaliação de suas possibilidades. Ao contrário, uma segunda tendência desvaloriza a montagem submetendo-a, rigorosamente, à instância narrativa ou à representação realista do mundo, ou seja, quanto menor for a atuação deste princípio no fazer artístico, mais o cinema aproxima-se de sua essência: o real. Assim, para que possamos compreender melhor o cinema que se pauta ora por uma ora por outra corrente, escolhemos dois dos principais teóricos que tiveram a montagem como elemento central de seu sistema, mas que lhe reservaram sentidos opostos. Para tal, oporemos o formalismo de Sergei Eisenstein ao realismo de Andre Bazin. Entre os principais nomes da cinematografia soviética, destaca-se o teórico e cineasta Sergei Eisenstein que, nos anos 20, mostrou o caminho do cinema de propaganda totalitária: a montagem. Foi no seu cinema que este princípio cinematográfico tomou corpo, sendo às vezes levado ao extremo, como um instrumento ideal para conduzir os espectadores, por meio de suas emoções, à tomada de consciência, à proclamação da absoluta necessidade da revolução. Concebendo a atividade artística como uma atividade do fazer, ou melhor, do construir, Eisenstein via na montagem o poder criativo, o princípio vital do cinema, no qual as “células” (os planos) isoladas são justapostas e compõem um único elemento cinemático. Para o diretor a arte, era um eterno conflito e, portanto, seu cinema só poderia derivar de uma montagem de colisão de “células” independentes, em que a justaposição de fragmentos isolados do real ao invés de compor uma soma, como preferia acreditar Pudovkin, consistia em uma operação de produto de onde nasceria uma nova idéia, um novo conceito. Assim, Eisenstein concebia sua teoria da montagem de atrações em que procurava provocar o êxtase em sua platéia. Foi encontrando mecanismos perceptivos de se atingir o phatos — um sentimento que participa das nossas emoções mais profundas, mais primárias, porém, constituído de uma simplicidade que reside no fato de que ele toca as camadas essenciais da psique, como também de uma complexidade por não se limitar às nossas emoções “simples”, como o medo, a alegria, a ira, a satisfação, mas por se configurar na fusão de uma multiplicidade de diferentes emoções (SCHNAIDERMAN, 1979. p. 238) — que o cineasta pretendia levar o espectador a

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“pular em sua cadeira”, a “sair de si mesmo”, o que equivaleria dizer que diante dos filmes de Eisenstein os espectadores eram constantemente provocados a “saírem de sua condição ordinária” - a passividade. Segundo Andrew (1989, p. 72), o diretor acreditava que sem a participação ativa da platéia não poderia haver trabalho artístico, já que o filme só se realiza na mente humana, o destino da mensagem fílmica. Assim, para o cineasta Uma obra de arte, entendida dinamicamente, é apenas este processo de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador. É isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital e a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado processo de criação, em vez de ser absorvido no processo à medida que este se verifica (EISENSTEIN, 2002b, p. 21). Diante de um cinema conceitual ou intelectual, como concebido pelo diretor de Outubro e A greve, inspirado nos ideogramas orientais, o espectador é conduzido a percorrer o mesmo caminho criativo trilhado pelo autor para criar a imagem. Assim, em resposta às críticas que atribuem ao cinema soviético um uso da montagem como uma técnica de manipulação ou de dirigismo da consciência coletiva, Machado afirma que as articulações de imagens construídas pelo diretor não poderiam constituir uma escravização do espectador, pois a verdade do filme construía-se à vista do espectador, ou melhor, dependia exclusivamente de sua efetividade e de seu raciocínio. O que equivale dizer que “o espectador de Eisenstein não é receptáculo vazio de ideologias alheias, mas é sujeito ativo (se não for, não entenderá nada) e, por isso mesmo, intelectualmente livre para aceitar ou rejeitar qualquer mensagem” (MACHADO, 1982, p. 43). Neste sentido, Eisenstein, longe de aceitar a reprodução mecânica da natureza como princípio estético da arte, via no cinema a forma de preencher o mundo de sentido. Segundo Andrew (1989, p. 75), o cineasta defendia que o cinema só poderia capturar a realidade se fosse capaz de destruir o “realismo”, ou seja, decompor a aparência de um fenômeno a fim de recompô-lo de acordo com um “princípio de realidade”. Enfim, “desbastar um pedaço da realidade com o machado da lente” (EISENSTEIN, 2002a, p. 45). Em contrapartida às teorias eisensteinianas, Andre Bazin concebe um cinema capaz de captar o sentido da realidade, ao invés de atribuir-lhe um sentido. Para o autor a montagem, ao criar um sentido abstrato no filme, é a responsável por manter o espetáculo cinematográfico em sua irrealidade necessária. Assim, se para Eisenstein ela é a essência do cinema, para Bazin a montagem é “o procedimento literário e anticinematográfico por excelência” (1991, p. 59). Entretanto, para Andrew (1989, p. 166), ele jamais condenou francamente a montagem, apenas a reduziu a uma posição mais humilde na hierarquia das técnicas cinemáticas. O teórico concebia que, para o próprio dispositivo do cinema, era permitida e necessária a utilização da montagem, porém, com limitações: a justaposição de fragmentos de imagens não poderia escapar

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Outubro

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ao “princípio de realidade”. Encontrava no plano geral e na profundidade de campo os elementos essenciais para o desenvolvimento de uma arte cinematográfica realista, que viria substituir o tempo e o espaço abstratos — o que Pudovkin denominou de “tempo fílmico” e “espaço fílmico” — antes presentes no espetáculo e que procuravam criar uma continuidade mental à custa de uma capacidade perceptiva do espectador em associar os fragmentos descontínuos, por uma “realidade perceptiva” (espacial). Diante dos olhos dos espectadores, o cinema era capaz de mostrar um evento desenvolvendo-se em um espaço integral; o respeito à realidade implicava também em uma duração real. Ainda em relação a um cinema de “transparência”, em que o espectador em contato com o ilusionismo da arte é constantemente levado a acreditar que está diante de um evento real, por mais descontínuo que ele aparente ser na tela, Bazin dispara sua crítica: Qualquer que seja o filme, seu objetivo é dar-nos a ilusão de assistir a eventos reais que se desenvolvem diante de nós como na realidade cotidiana [grifo nosso]. Essa ilusão esconde, porém, uma fraude essencial, pois a realidade existe em um espaço contínuo, e a tela apresenta-nos de fato uma sucessão de pequenos fragmentos chamados “planos”, cuja escolha, cuja ordem e cuja duração constituem precisamente o que se chama “decupagem” de um filme. Se tentarmos, por um esforço de atenção voluntária, perceber as rupturas impostas pela câmera ao desenrolar contínuo do acontecimento representado e compreender bem por que eles nos são naturalmente insensíveis, vemos que os toleramos [grifo nosso] porque deixam substituir em nós, de algum modo, a impressão de uma realidade contínua e homogênea (BAZIN apud. AUMONT, 1995, p. 74). Assim, para o referido teórico, a concepção de montagem de Eisenstein não era capaz de mostrar os acontecimentos, somente podia fazer alusão a eles. Bazin não negava que o cineasta russo retirava da realidade a maioria dos elementos visuais e sonoros que iriam compor seus filmes; entretanto, a significação final destes filmes derivava da organização dos elementos ao invés do conteúdo objetivo deles. Na verdade, a convenção deste princípio negava a natureza da arte cinematográfica. Para Bazin, o cinema veio satisfazer definitivamente a obsessão do homem pelo realismo, portanto, a imagem cinematográfica valeria não pelo que acrescenta, mas pelo que revela da realidade. Segundo Xavier, para que possamos compreender as idéias que circulam em torno da teoria do realismo de Bazin, temos que admitir que o cinema não é responsável apenas por fornecer uma “aparência” do real, mas capaz de constituir um mundo “à imagem do real”. Desta forma, podemos falar em um realismo estético que se apresenta menos como a expressão de um pensamento do que como um exercício do olhar. Para o autor, o que realmente importa nesta concepção, e que devemos atentar, é “a manifestação de um estilo de câmera, de uma nova narração, que não se apresenta como discurso construído, ‘tijolo por tijolo’ (Kulechov), mas como descoberta de uma realidade virgem, que o olhar vai encontrando e explorando” (1977, p. 74). Portanto, para Bazin, o fato de a postura dos cineastas em relação à montagem vir sendo alterada com o passar do tempo foi imprescindível para o avanço estético do cinema. Em um momento, superou-se a fase do cinema mudo em que a montagem evocava o que o realizador queria dizer por uma decupagem que descrevia a mensagem fílmica, para enfim, depararmo-nos, realismo, com uma escrita diretamente em cinema. Definitivamente, “a imagem [...] apoiando-se num maior realismo, dispõe assim de muito mais meios para infletir, modificar de dentro a realidade”, o que equivale dizer que, para o autor, hoje “o cineasta não é somente o concorrente do pintor e do dramaturgo, mas se iguala enfim ao romancista” (BAZIN, 1991, p. 81). Compreendido o embate entre estas duas correntes teóricas, não cabe ao

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historiador escolher uma em detrimento da outra; isto somente limitaria sua análise, pois dirigiria-se-ia ao filme com uma visão particularizada, como faz Eisenstein e Bazin, por mais fecundos que sejam. Se o historiador procura desvendar o véu do cinema, tem que entender que esta é uma busca estética, ao invés de poética, como desejam alguns. Guiar suas análises por um juízo de valor, procurando determinar o que é realidade ou ficção em um documento fílmico faz dele um mero crítico de arte, que lida com o cinema em uma condição de recolhimento. Em contrapartida, devemos perceber que esta busca estética compreende que, para o cinema, todos os “ismos” (formalismo, realismo, expressionismo etc.) são válidos, que todas as dicotomias são aceitas, seja espetáculo ou alta cultura, seja arte ou indústria, seja diversão ou cult, o sentido do filme já está dado: a percepção. Entretanto, é Eisenstein que nos apresenta uma definição do que implica a experiência perceptiva do cinema, em que “ver um filme é como ser sacudido por uma cadeia contínua de choques vindos de cada um dos vários elementos do espetáculo cinematográfico, não apenas do enredo” (ANDREW, 1989, p. 57), o que mais tarde encontrará respaldo na teoria estética de Walter Benjamin, que estava interessado em refletir a respeito do impacto perceptivo da reprodução técnica na obra de arte, a partir do século XIX. Para o autor, a arte oriunda dos mecanismos técnicos abandona o invólucro da magia, do místico, para se aproximar do espectador; o autêntico dá lugar ao reproduzível, enquanto o culto é substituído pela exposição. A era da reprodutibilidade técnica é o fim da “aura”, como sentenciou o filósofo alemão, é a época em que a obra de arte se emancipa do ritual, rompe com a dicotomia distância/proximidade que lhe regia na antiga tradição, em que a própria obra está presente ao mesmo tempo que ausente: “o que importa, nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas” (BENJAMIN, 1985, p. 173). O que está em questão para o autor acima é a relação do público com a obra de arte, como isso se dá diante das novas técnicas. A preocupação filosófica de Benjamin é procurar responder à seguinte pergunta: que arte é esta que surge para satisfazer as multidões que se formam nas metrópoles modernas? Em resposta a esta inquietação, o autor justifica que “a forma da percepção da coletividade humana transforma-se ao mesmo tempo que seu modo de existência” (1985, p. 169), ou seja, aos passos da evolução tecnológica o caráter perceptivo da sociedade vem sofrendo constantes alterações. Com a sociedade, avançam também as formas de reprodução técnica, xilogravura, litografia, a imprensa de Gutenberg, até chegarmos à fotografia, o último aceno da “aura”, que ainda podia ser encontrada nos retratos, o último refúgio, segundo Benjamin, do valor de culto — nos retratos residia o culto à saudade, saudade dos amores ausentes. Se a fotografia ainda acenava para a obra de arte aurática, é o cinema que vem definitivamente fechar as velhas janelas para a cultura tradicional. O cinema é a resposta às questões do autor, ele inaugura uma nova relação da arte com as multidões. Segundo o autor, o que define o cinema é o seu caráter coletivo; o filme é uma criação coletiva e para a coletividade, e, como veremos mais adiante, responde aos anseios perceptivos do homem moderno, do homem-massa. Na teoria estética de Walter Benjamin, a arte pós-aurática está vinculada à atrofia da experiência, a reprodutibilidade técnica não permite ao espectador captar qualquer vestígio do fazer artístico. Assim, a esta nova relação público e obra de arte, pautada por uma obra destinada ao consumo das massas, à percepção coletiva, resta somente a vivência. Vivência que, na modernidade, segundo o autor, corresponde a um constante exercício de interceptação dos choques, ou seja, o homem moderno está sujeito a situações cotidianas que o levam a proteger-se dos choques, como o simples caminhar entre as multidões das metrópoles ou o operar uma máquina. Walter Benjamin encontra na cultura do choque as respostas para suas inquietações. Se na esfera da vida cotidiana do homem moderno o choque impôs-se como uma realidade onipresente, não cabe às artes negá-lo; ao contrário, se ela pretende dirigir-

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Auguste e Louis, os irmãos Lumière

se a um público moderno, é necessário que ofereça ao homem a “experiência do choque”. Portanto, ao oferecer a esta nova sensibilidade, que se configura no mundo moderno, uma arte que tem por essência a sucessão brusca e rápida de imagens, fragmentos que se impõem ao espectador como uma seqüência de choques, o cinema é, como afirma o autor, o instrumento que efetiva a estética do choque. Para Benjamin, o princípio formal que se impõe ao cinema é a percepção sob a forma de choque, o que equivale a dizer que “aquilo que determina o ritmo da produção na esteira rolante está subjacente ao ritmo da receptividade, no filme” (BENJAMIN, 1989, p. 125). Assim, a arte cinematográfica corresponde à própria vida moderna, às sucessivas reestruturações da percepção humana, motivadas pelo ritmo da modernidade, ditada pelos avanços tecnológicos e pelo homem mergulhado nas multidões concentradas nas grandes metrópoles. O homem moderno é um indivíduo que compreendeu que perceber o mundo ao seu redor significa ter os choques como rotina, experimentá-los, e foi o cinema seu verdadeiro educador. O espectador cinematográfico aprendeu que a “vivência da modernidade” é um constante viver em descontinuidade. Segundo Bolz (1992, p. 95), “para Benjamin, o cinema não é nada mais nada menos do que a escola de uma forma de percepção do tempo, a saber, uma percepção do tempo para a qual não há mais continuidade, para a qual não há nenhum valor no sentido clássico do termo”. Retomando a questão de que o historiador deve se dirigir ao cinema em busca de seu caráter estético, vemos que tudo o que foi discutido até o momento é norteador do caminho que percorreremos mais adiante. Diante da concepção estética de Walter Benjamin, que privilegia a forma, [o que não se refere a uma particularização nossa de uma teoria formalista do cinema], nem mesmo do filósofo; pelo contrário, o que nos interessa é compreender como o cinema, um meio em si, relaciona-se com os espectadores, quais são os seus mecanismos perceptivos. Para tal, é necessário que diferenciemos dois conceitos: poética e estética. É Pareyson que, ao procurar desvendar os problemas da estética, concebe esta distinção. Segundo o autor, a poética está diretamente relacionada com o gosto do artista ou de uma época, é um programa de arte, ou seja, é o que se resolveu determinar enquanto ideal de arte, o que se acredita ser arte. Já a estética refere-se a um “fazer artístico”, a uma formatividade, um fazer que é ao mesmo tempo executar, realizar, produzir, mas também consiste em um criar, inventar, descobrir. Para Pareyson, a arte é “um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer [grifo do autor]”

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(1997, p. 26), ou seja, é uma prática em que a execução e a invenção são simultâneas e inseparáveis. À estética não cabe estabelecer o que deve ser a arte ou o belo, somente preocupar-se em dar conta dos elementos que compreendem a experiência estética, o que equivale dizer que se dirigir a um objeto artístico com reflexão é uma atividade filosófica e, por isso mesmo, uma reflexão sobre a experiência, conclui o autor. Neste sentido, todas as poéticas (programas de arte) são igualmente legítimas para a estética. Assim, um estudo estético esforça-se ao máximo para que não faça intervir um gosto, uma tarefa árdua já que o mesmo é histórico e determinado. Entretanto, deve-se ressaltar que a formatividade não é uma teoria que privilegia a forma em detrimento do conteúdo; pelo contrário, para Pareyson, o “fazer artístico” depende de uma inseparabilidade da forma e do conteúdo, uma vez que ambas coexistem no processo. ... qualquer coisa, em arte, está prenhe de conteúdo, carregada de significado, densa de espiritualidade, embebida de atividades, aspirações, idéias e convicções humanas. Precisamente porque o artista resolveu toda vontade expressiva, significativa e comunicativa no fazer, no gesto formativo, na atividade operativa, precisamente por isso tudo, em arte, até a coisa aparentemente mais irrelevante diz, significa, comunica alguma coisa [grifos do autor] (PAREYSON, 1997, p. 68). Portanto, é partindo desta concepção estética que pretendemos nos dirigir ao cinema, ou seja, interessa-nos saber como se deu a formatividade de um filme, qual a experiência estética que nos oferece, que elementos compõem o seu “fazer artístico” os quais podem contribuir para uma melhor compreensão de quais proposições são apresentadas para a sociedade que o autorizou. Entretanto, para isto, ainda é necessário que tratemos de desmistificar a objetividade que acompanha o filme documentário.

Desmistificando a objetividade do gênero Como podemos notar, a relação do público com a obra de arte ocorre sob uma linha tênue entre a realidade e a ficção, em que esta última sempre se apresenta mais real do que a própria realidade enquanto que o real, muitas vezes, é mais ficcional do que aquilo que se propõe como ficção. De um lado temos uma ficção que somente se efetiva por meio de uma relação com o observador que se dá pelo “efeito do real” e do outro uma realidade que é socialmente construída. Assim, temos que a experiência estética somente pode ocorrer sob a condição da ilusão da realidade. E no cinema isto não é diferente. Tanto o filme de ficção quanto o filme documentário apresentam-se sob a égide do real; porém, se o primeiro autoriza um efeito de “impressão do real”, o segundo convencionalmente se configurou como a própria realidade impressa na película, vale por aquilo que (re)apresenta, pela imagem que menos interferência sofreu no momento do registro, por uma imagem “pura”. O filme documentário afirmou-se, por excelência, como um “filme verídico” que é realizado objetivamente com fins científicos, culturais, informativos ou até mesmo didáticos. Foi este caráter objetivo que levou os historiadores a preferirem em seus estudos este gênero em detrimento da ficção - procurava-se, em suas imagens, um correlato da realidade; um equívoco, no entanto, quando se pensa o cinema como linguagem, um discurso articulado. Se existe uma singularidade entre os dois gêneros, esta é a subjetividade e é somente por meio desta que a experiência perceptiva (estética) pode se realizar, não se esquecendo de que o filme documentário ainda é um fazer cinematográfico, requer tanto um executar quanto um inventar. Segundo Penafria (1999, p. 25), uma vertente do documentarismo distingue

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os dois gêneros da seguinte maneira: o documentário oferece o acesso “ao mundo” (a realidade) ao passo que a ficção o faz “a um mundo” (imaginário). Porém, esta diferença não nos parece ser tão fácil de ser resolvida. O documentário também não nos proporciona conhecer um mundo construído? Neste caso, a definição de documentário é dada pela sua relação com o “mundo histórico”, compreendido aqui como aquilo que não imaginamos, o real “em si”, o solo firme em que pisamos. Assim, temos que a discussão está posta sob o domínio do imaginário. Enquanto que o filme de ficção não passa de um enredo sobre um mundo imaginário, o filme documentário é a história sobre o mundo real, é um argumento. Aqui somente a ficção é compreendida como resultado do imaginário do diretor. A partir deste ponto, surge-nos uma indagação: não seria o argumento permeado por uma subjetividade do cineasta? Mais adiante, Penafria nos dá indícios de uma resposta: “a característica do documentário é apresentar-nos um argumento sobre o mundo histórico ou, dito de outro modo, é uma representação no sentido em que coloca perante nós uma evidência de onde constrói um determinado ponto de vista [grifo nosso]” (1999, p. 26). Se assim é definido o caráter deste gênero cinematográfico, é possível pensarmos que, por mais que o documentarista mostre imagens de um mundo que transcenda a película, o que configura uma credulidade às imagens, estas não deixam de ser representações; a natureza “em si” captada pela câmera nunca será a mesma, o real foi apropriado, deixou de ser imaculado. A câmera retira a realidade de sua redoma e a montagem a oferece sob um véu: a condição de que estamos diante da verdade. Este é o pacto do espectador com a obra de arte. Assim, o ponto de vista, no filme documentário, é a marca da subjetividade ou do imaginário do cineasta. A autora vê como legítima a intersecção entre os dois gêneros, em que os elementos da não-ficção auxiliam a tornar mais verossímeis os filmes de ficção, ao passo que os elementos da ficção em documentários contribuem para uma renovação e uma atualização do gênero. Entretanto, esta questão não se resume a uma mera evolução técnica, pelo contrário, devemos compreender que a objetividade e a subjetividade são coincidentes na sistemática do fazer cinematográfico, não se anulam e nem descaracterizam a identidade ou de outra. O simples gesto do posicionamento da câmera diante do fato, para não dizermos do impulso da escolha do tema do filme, já caracteriza uma certa intencionalidade do documentarista em dizer algo. Isto não desmerece o gênero, mas demonstra-nos que ele aproxima-se da ficção muito mais do que imaginamos, pois, antes de tudo, o cinema é arte. O cineasta já se dirige à obra com a necessidade de exteriorizar, de transformar um ideal em matéria sensível, ou seja, “a operação artística é, de fato, antes de tudo, construção de um objeto e formação de uma matéria, e é arte quando tal produção é, ela própria [grifos do autor], expressão” (PAREYSON, 1997, p. 65). O entendimento de que o filme é, antes de tudo, a formação de uma sensibilidade, e que, por isso, somente se dirige ao espectador pela percepção, auxilia-nos a ampliar os olhares sobre o documentário, que deixa de se apresentar como o reservatório dos vestígios do real, para se caracterizar como uma inter pr etação de uma realidade. O documentarismo, como prática cinematográfica, também nos dá acesso a “um mundo” que, por mais que tenha referência direta ao “mundo histórico”, não deixa de ser uma visão do diretor a respeito deste mesmo “mundo”. Porém, assim como a ficção, o filme documentário não deve ser reduzido à

“Os dois lados da janela”, curta-metragem de André Brandão

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mera falsidade, inverdade, mas posto no sentido de uma construção, de um fazer artístico que é, concomitantemente, um executar e um inventar, o que equivale dizer que compreende uma objetividade e uma subjetividade intrínsecas ao processo. O fato de que ainda ocorre uma certa aceitação da linguagem documental como registro dos fatos, como índice primário do processo histórico, por parte dos historiadores, enquanto que a ficção encontra obstáculos para se determinar como documento, é a evidência de que ainda nos dirigimos ao filme como se ele fosse uma fonte qualquer, que não fosse necessário conhecer os elementos que compõem sua linguagem. Buscar uma realidade “pura” nos documentários é uma atividade em vão, o que desfila diante de nossos olhos também é um novo mundo, pois a realidade que o cinema oferece à nossa percepção é descontínua, fragmentada, diferente do real que se apresenta contínuo. Portanto, o filme documentário também é uma ficção, ou melhor, como afirmou Lebel (1975, p. 21), “a ficção é a realidade específica do cinema.” Para Lebel (1975, p. 100), que concebe a “impressão do real” como um falso problema, é fundamental que o caráter mistificador dos signos que compõem o filme seja denunciado, que se tenha a compreensão de que a realidade, uma vez projetada na tela dirigida à experiência perceptiva da multidão de espectadores que se sentem acolhidos pelo “ventre materno” da sala escura, não passa de uma correspondência com o real, ao invés de uma equivalência. Assim, seguindo as reflexões do autor, podemos dizer que a realidade que o filme documentário nos apresenta é um signo importado do real, ou seja, uma imagem de um real socializado, mas que somente adquirirá seu valor ideológico e significante ao ser combinado com outros signos deste mesmo real. O que equivale dizer que o fato de nos dirigirmos ao documento fílmico não corresponde a uma busca do real “em si”, mas sim, como ele foi apropriado e oferecido como uma realidade socialmente construída, ou como Lebel ressaltou: Não se trata de julgar a maneira como um filme se refere ao real induzido por ele, visto que, de facto [sic], o filme não induz nenhuma realidade. O que interessa não é que um filme seja a imagem de qualquer coisa (que exista realmente), mas que seja simplesmente uma imagem. O que está em discussão, não é esta realidade da qual o filme não é senão a imagem, visto que esta realidade não existe, ou melhor visto que só existe no universo de ficção do filme, ou seja esta realidade não é literalmente outra coisa senão imaginária [grifo do autor] (1975, p. 97). Segundo Aumont, o documentário não escapa totalmente da ficção, tendo em vista que qualquer objeto já é um signo de outra coisa e, portanto, já está preso em um imaginário social. Além disso, pode-se dizer que o espectador permanece o mesmo: ele suspende qualquer atividade quando diante da tela e, portanto, está sujeito ao mesmo fascínio da imagem em movimento, também integra o espetáculo, o que equivale dizer que o filme documentário também se inscreve como a “porta aberta” para os devaneios do espectador. Entretanto, se existe um ponto que mais nos interessa, quando se trata de discutir a objetividade deste gênero cinematográfico, é o fato de que no documentário, assim como no filme de ficção, também há uma preocupação estética que “tende sempre a transformar o objeto bruto [o real] em objeto de contemplação [o filme], em ‘visão’ que o aproxima mais do imaginário” (1995, p. 101). Por objeto de contemplação não está compreendido apenas o filme que se dirige ao espectador, mas também o papel intervencionista do cineasta nesta contemplação, neste exercício prazeroso de consumo da imagem. Assim, por mais que o documentário esteja preso à tarefa de mostrar o mundo como ele é, ele também participa da criação e do prazer da invenção, é capaz de proporcionar uma experiência estética que, ao mesmo tempo, se dirige tanto ao espectador quanto ao realizador do filme. Ou seja, a feitura fílmica está imbuída de um prazer de dizer algo, por mais

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“Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore

“realista” que se proponha o filme. Pode o documentarista propor-se a mostrar o mundo, porém, ele não escapa de revelar um mundo, pois “por qualquer ângulo que seja considerado, o prazer da imagem é sempre, em última instância, o prazer de ter acrescentado um objeto aos objetos do mundo” (AUMONT, 1993, p. 313). Não se trata aqui de um esforço em transformar o documentário em ficção. É óbvio que estes gêneros já se encontram culturalmente deter minados, e não cabe a nós propor mos definições, mas compreender que a dualidade desta relação sonho/realidade ainda é uma questão em aberto e que dificilmente será resolvida. E, provavelmente, qualquer tentativa nesta direção tenderá a beneficiar um gênero em detrimento do outro, como se o cinema se resumisse ora à reprodução do real, ora à falsidade deste mesmo real e, ora a uma excêntrica objetividade, ora a uma imitadora subjetividade. Como vimos, as marcas da ficcionalidade estão presentes no documentário, fato que constantemente é negado em nome de um cientificismo atribuído ao gênero, mas que se apresenta como uma armadilha ao historiador. Transformar o caráter objetivo do filme documentário em um respaldo que possa identificá-lo a um documento, em que o investigador consiga manter uma certa distância do objeto para que possa observar, é um engano já que ele não permanece inerte. O que se despreza aqui é a compreensão de que o documentário, mesmo submetido à observação, ainda se dirige àquele que o aborda, ou seja, transfere a investigação ao domínio da experiência cinematográfica, em que o historiador é levado a participar do filme, em que seus desejos, anseios tendem a configurar o que o filme deveria dizer, ao invés do que ele realmente autoriza que seja dito. Recordamos que a participação do espectador no cinema é um misto de afetividade e percepção. Desta forma, enaltecida a objetividade do filme documentário, a análise não ultrapassa as fronteiras da “verdade”, já que se reafirma a crença de que as imagens que se apresentam diante dos olhos do historiador são reproduções fiéis do real. Os elementos diegéticos que compõem o filme documentário contribuem para que se faça o jogo do “efeito de verdade” e, por isso, faz-se necessário que continuemos desmistificando a objetividade deste gênero. A investigação não deve sucumbir ao espetáculo cinematográfico, não que seja algo temeroso, mas que o historiador seja capaz, assim como na ficção, de romper com o efeito ilusionista do real, pois, tomar as imagens como “a realidade”, ao invés de “uma realidade”, um mundo construído, é o prenúncio de que não fomos capazes de superar a condição de espectador, em que, diante de nós, temos sempre a impressão de que os eventos que ocorrem na tela são verídicos, fato que é reforçado no filme documentário devido ao fato de que ele se pauta pelos fragmentos recolhidos no local dos acontecimentos, como se fossem vestígios de um tempo passado, do qual temos ou não saudades. As imagens preenchem os nossos vazios. O que propomos aqui é que não é preciso negar a subjetividade do cinema para que se possa introduzi-lo como uma fonte para os estudos científicos; pelo contrário, é este o elemento do filme que mais nos interessa - na verdade, aquele que nos impulsiona dia a dia a descobrir novos métodos de lidar com o meio. Antes de mais nada, devemos lembrar que é o nosso fascínio pela arte cinematográfica ou, porque não dizer, pela capacidade dela ressuscitar a vida que antes se encontrava congelada na fotografia, que nos faz enveredar por este percurso tortuoso e movediço da relação ficção e realidade. Por isto, pensamos o cinema como um objeto artístico, tendo que a compreensão de sua linguagem é imprescindível para que não se cometa o reducionismo que acompanha o campo da relação cinema-história desde o seu

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primórdio, ou seja, dirigir-se ao filme em busca da veracidade das fontes, para determinar o que é verdade ou não no documento fílmico. Então, a desmistificação trata de retirar, em um processo cuidadoso, o véu que cobre o cinema e revelar as suas implicações enquanto discurso. Como o filme de ficção, o documentário não é uma mera “reprodução do real”, mas a sua representação, recortes que serão montados para compor uma idéia fílmica, no final, um simulacro; não uma simulação revestida de um sentido de falsificação do real, mas uma mostra do que se determina que seja o real. Os filmes nada mais são que proposições sobre uma sociedade. Motivados pelo princípio de montagem, que aqui está longe de assumir um caráter de manipulação ou transparência, mas configurando-se como a estruturação orgânica dos elementos fílmicos, ou seja, como a peça elementar de toda a “construção fílmica”, não acreditamos que seja incorreto considerarmos o filme documentário como uma possível inter pretação de um determinado fato histórico, um discurso que nos é oferecido sobre a história, já que a própria história não é uma ciência estática e concluída. Aqui, o documentário tem a sua objetividade desmistificada ao compreendê-lo como “um filme que se assume como uma leitura sobre este ou aquele tema do mundo, que nos faz pensar sobre o mesmo, em suma, que é, apenas, uma de entre muitas leituras possíveis” (PENAFRIA, 1999, p. 71). Bibliografia ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. AUMONT, Jacques. et al. A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, 1995. ______. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 1993. BAZIN, Andre. O cinema, ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. tradução e org. de Paulo Sérgio Rouanet. v.1. São Paulo: Brasiliense, 1985. ______. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. tradução e org. de Paulo Sérgio Rouanet. v.3. São Paulo: Brasiliense, 1989. BOLZ, Norbert W. “Onde encontrar a diferença entre uma obra de arte e uma mercadoria?” In: Revista USP. Dossiê Walter Benjamin. São Paulo, Universidade de São Paulo, n.15, p. 91-98. set.out.nov. de 1992. CANEVACCI, Massimo. Antropologia do cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984. COLI, Jorge. O que é arte? São Paulo: Brasiliense, 1985. EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. _______. O sentido do filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. KOSSOY, Boris. Realidade e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 1999. LEBEL, Jean-Patrick. Cinema e Ideologia. Lisboa, Portugal: Editorial Estampa, 1975. MACHADO, Arlindo. Serguei M. Eisenstein: geometria do êxtase. São Paulo: Brasiliense, 1982. _______. Pré-cinemas & Pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997. MARTÍN-BARBERO, Jesús. REY, German. tradução de Jacob Gorender. Os exercícios do ver : hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São Paulo: Senac, 2001. METZ, Christian. Significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes, 1997. PENAFRIA, Manuela. O filme documentário - história, identidade, tecnologia. Lisboa, Portugal: Edições Cosmos, 1999. SCHNAIDERMAN, Bóris. Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva, 1979. SCHWARTZ, Vanessa R. “O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século”. In: CHARNEY, Leo. SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 411-440. STAM, Robert. O espetáculo interrompido: literatura e cinema de desmistificação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. TOULET, Emmanuelle. O cinema, invenção do século. São Paulo: Objetiva, 2000. p. 134. XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

______________________________________ * Cássio dos Santos Tomaim é mestre em História pela Unesp/Franca sob a orientação da Profa. Dr. Márcia Regina Capelari Naxara. Bolsista Capes.

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CINEMA

AS REPRESENT AÇÕES DO POPULAR REPRESENTAÇÕES NOS DOIS MOMENTOS DE CABRA MARCADO P ARA MORRER PARA Cena do filme Cabra Marcado Para Morrer

POR ANNE LEE FARES

DE

QUEIROZ*

Resumo: O presente texto tem como objetivo fornecer uma visão do filme Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho, enquanto trajetória percorrida de um projeto do Centro Popular de Cultura, até sua finalização, como projeto pessoal do cineasta, vinte anos após ser iniciado, em 1964. O eixo do texto será dado pela questão da representação do popular em ambos os momentos abordados, entendidos também como dois momentos distintos da realidade nacional – já que a história e as pessoas apresentadas no filme (assim como suas respectivas vidas) estão intimamente relacionadas com a história brasileira, que se desenrola do fim da década de 50, até a primeira metade dos anos 80, com a conclusão de Cabra Marcado Para Morrer, em 1984. O popular será trabalhado aqui como a expressão cultural de setores excluídos da população, como o outro representado a partir da visão do intelectual classe média. Isso porque, no cinema brasileiro, e certamente também em muitas outras cinematografias, questões econômicas relativas à produção dos filmes dificultam que a representação do popular seja feita pelo próprio povo. A voz do povo passa a ser a voz do outro, mediada pelo intelectual ou artista de outra classe, e sujeita às interpretações daí advindas.

CPC, arte revolucionária para o povo

1 - Chauí, M. Seminários. 2 - Anteprojeto do Manifesto do CPC.

O Centro Popular de Cultura (CPC) foi organizado oficialmente em 1961, e era formado por um grupo de dissidentes do Teatro de Arena, entre outros, Oduvaldo Viana Filho e Carlos Estevam Martins o qual, na época, trabalhava no ISEB, juntamente com o professor Álvaro Vieira Pinto. O CPC, desde o início marcado pela “polêmica auto-justificadora” (nas palavras de Marilena Chauí1), organizou-se com o objetivo de consolidar Centros de Cultura que fizessem a “arte do povo, pelo povo e para o povo”2. De caráter abertamente revolucionário, o CPC teve seus objetivos e características explicitados

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no texto de Carlos Estevam, Anteprojeto do Manifesto do CPC, peça importante para que se compreenda a idéia de povo alienado e intelectual missionário, presente na produção do Centro, seja na literatura, no teatro ou no cinema. A questão do popular e sua representação no Manifesto são de bastante interesse porque trazem uma contradição importante para se pensar a produção da “arte do povo, pelo povo e para o povo”. Das três artes comentadas no texto, só a revolucionária, feita pelo CPC, é tida como merecedora da designação de arte popular, única saída apontada para o artista que quisesse “ficar ao lado do povo”. As outras duas, concernentes aos aspectos folclóricos (candomblé, futebol) e aos meios de comunicação de massa, são consideradas alienadas e, por isso, vistas de modo negativo pelos intelectuais e artistas do CPC. A arte popular revolucionária feita pelos artistas que “optaram ser povo”, numa tentativa de desvencilhamento de valores e noções da burguesia de classe média, em direção a uma tomada de partido na luta pelos menos favorecidos e a um despertar da consciência nesta população. O Manifesto, entretanto, não se destina ao povo3. Seu destinatário é o artista e o intelectual alienados, despolitizados e ideologicamente despreparados. Para Carlos Estevam, “o que distingue os artistas e intelectuais do CPC dos demais grupos e movimentos existentes no país é a clara compreensão de que toda e qualquer manifestação cultural só pode ser adequadamente compreendida quando colocada sob a luz de suas relações com a base material sobre a qual se erigem os processos culturais de superestrutura.” Assim, os participantes do CPC têm o conhecimento de que a superestrutura impede que a classe explorada tome consciência de seu papel na sociedade. Para eles, manifestações populares como o Carnaval, fazem que o povo dê vazão a seus sentimentos de insatisfação, mas não vá além disso. Elas esgotam-se em si mesmas sem possibilitar ao povo a vivência de uma práxis social. Daí a necessidade de uma arte política, que não seja uma manifestação espontânea do povo. A contradição existente justamente neste ponto diz respeito à representação do povo encontrada no Manifesto, que pode assumir várias formas, de acordo com a noção que se pretende trabalhar. O povo é “o novo na história”, força incorruptível e propulsora do desenvolvimento nacional, ao mesmo tempo em que é a “massa inculta”, povo fenomênico, alienado e rude. Por outro lado, há ainda o artista de classe média que escolhe ser povo, o revolucionário propagador da arte consciente e da liberdade. “Assim, através da representação triplamente fantástica – do artista alienado, do artista do povo e do artista popular revolucionário em missão – é constituída a única imagem que interessa, pois é ela que se manifesta no Manifesto: o jovem herói do CPC.”4 Com isso, também se percebe a visão dicotômica, e até um pouco maniqueísta, que permeia todo o Manifesto. Com oposições do tipo artista das minorias x artista popular das massas, arte alienada x arte consciente, expressão x comunicação, e qualidade estética x popularidade revolucionária, o CPC termina por opor também forma x conteúdo, aspecto central para a compreensão dos desafetos nutridos mutuamente entre Cinema Novo e CPC, principalmente no que diz respeito à linguagem adotada por um grupo e por outro. Para Carlos Estevam, a questão era que o Cinema Novo tinha que entender a necessidade de se falar ao povo usando a linguagem que este entendesse. Mais tarde, o próprio Carlos Estevam reconheceu: “As pessoas faziam parte do CPC porque achavam que era possível ser artista e ao mesmo tempo fazer arte para o povo. As pessoas que não tinham pretensões artísticas, como era o meu caso, perceberam rapidamente que isso era um barco furado. (...) O Glauber Rocha, que sonhava ser um grande artista, não podia aceitar aquela camisa de força, uma atividade que, se tivesse algum mérito, seria educacional e nunca artístico.” 5 Já para o grupo do Cinema Novo, a pesquisa formal era de extrema importância e aliar uma forma nova a um conteúdo novo era sua principal meta. Na época de sua criação, o CPC vinculou-se à UNE a fim de adquirir maior força econômica e era, portanto, sintomático dessa força a produção de Cinco Vezes Favela, já que a viabilização de recursos para a realização de quatro curtas com uma equipe de pouca ou nenhuma experiência com cinema não deve ter sido tarefa fácil.

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3 - Chauí, M. idem. 4 - Chauí, M. , idem, p. 92. 5 - Depoimento para Arte em Revista. Citado por Bernardet e Galvão, p. 159.

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Eduardo Coutinho, diretor de produção do filme, lembra algumas dificuldades encontradas, por exemplo, no curta dirigido por Miguel Borges (Zé da Cachorra): “Imagine, o primeiro filme, pouco dinheiro, aquela coisa: diretores sem nenhuma experiência, equipe sem experiência prática também... Não tínhamos quase nada...”6 Foi ainda com Cinco Vezes Favela que Coutinho teve o primeiro contato com o CPC, a partir de um convite do amigo Leon Hirszman para integrar a equipe do filme. Após o término do projeto, Coutinho partiu com a UNE-Volante pelo Nordeste, com a finalidade de documentar a viagem. O material filmado não chegou a ser montado, porém, Glauber Rocha em set de filmagem de Barravento (1962) foi a oportunidade que o cineasta teve de conhecer Elizabeth Teixeira, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, e filmar algumas imagens dela em comício pela morte do marido. Assim, nasceu em 1962 a idéia de um filme, um docudrama, que contasse a história e o assassinato de João Pedro, e no qual os parentes e amigos do camponês fariam seus próprios papéis. Dificuldades com a viabilização do projeto fizeram que as filmagens de Cabra Marcado Para Morrer fossem iniciadas só um ano depois e com mais dificuldades por causa de atritos entre a polícia e camponeses locais. As filmagens foram bruscamente interrompidas em abril de 1964, com o Golpe Militar. Membros da equipe e camponeses foram presos, latas de negativos foram confiscadas, juntamente com o restante dos equipamentos de filmagem. Mas, boa parte dos negativos impressos, que já havia sido enviada ao laboratório, foi salva. Porque o Cabra de 1964 nunca chegou a ser terminado, não há como saber de fato qual teria sido o produto final. Apesar disso, algumas idéias, baseadas no pensamento predominante no meio em que o filme foi gerado, diga-se CPC, podem ser trabalhadas. Em primeiro lugar, era um filme que se propunha a mostrar a população camponesa que despertava para a luta política no interior do Nordeste, numa tentativa de afirmação de seus direitos e numa atitude de revolta contra os altos impostos cobrados pelos senhores de terras. Os camponeses, fazendo no filme seus próprios papéis da vida real, transformaram-se em matéria-prima da narrativa, além de destinatários dela – uma das premissas do CPC. Com isso, a arte popular revolucionária possibilitou à classe trabalhadora explorada que tomasse consciência de seu papel na sociedade, operando a transformação de povo fenomênico (alienado) para povo essencial (consciente e ativo). O povo essencial, seguindo o raciocínio, era aquele que traria o desenvolvimento nacional, e a partir daí, mais uma idéia presente no pensamento cepecista se verifica: a idéia de que povo e nação caminham juntos7. Assim, só o bom povo, o povo verdadeiro e ativo poderia trazer a prosperidade da nação, ao mesmo tempo que a verdadeira nação compor-se-ia daquela parcela da população que era consciente e vanguardista: o povo como o novo na história. Raciocínio completado, fechava-se o círculo. Mas a junção do nacional com o popular trouxe ainda outra questão relevante e que se apresentava através da ingerência que a esfera pública operava sobre a esfera privada. Ter suas vidas retratadas por um filme que fazia parte de um projeto para a transformação do país era sujeitá-las às interferências que daí poderiam resultar. No caso de Cabra Marcado Para Morrer, tais interferências realmente ocorreram, o que fica 6 - Entrevista com Eduardo Coutinho, bastante claro com a retomada do projeto, em 1981, após a abertura política do Revista Cinemais, p. 41. presidente Figueiredo. Vários camponeses perseguidos ou presos tiveram suas falas 7 - Nelson Werneck Sodré era um dos intelectuais que afirmava abertamente, na marcadas por mágoa e medo, como atestaram não contra o filme, mas em relação à época, não existir nacional sem popular, e própria história do país, os depoimentos de Elizabeth Teixeira e João Virgínio, vice-versa.

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camponês que foi um dos fundadores das primeiras Ligas Camponesas do Nordeste. Cabra Marcado Para Morrer foi finalmente terminado três anos após sua retomada e lançado em 1984, vinte anos após a realização das primeiras filmagens sobre a luta camponesa no interior do Nordeste.

Má-consciência de classe no percurso entre os dois Cabras Entre o filme Cabra Marcado Para Morrer, de 1964, e sua finalização em 1984, um longo caminho de má-consciência foi percorrido. O termo, desenvolvido a partir de Nietszche, é empregado para explicar a transformação no pensamento da classe média intelectualizada a partir da década de 60, no Brasil, quando as idéias de autores do pós-estruturalismo francês começaram a ser adotadas por aqui. Dois autores são essenciais para o estudo que está sendo proposto. O primeiro deles, Jean-Claude Bernardet, trabalha com a representação do popular no cinema nacional em dois livros, Brasil em Tempo de Cinema e Cineastas e Imagens do Povo. Já Marilena Chauí, em seus Seminários, dispõe-se a analisar o Manifesto do CPC juntamente com a noção do popular que permeia a cultura e a nação brasileiras. Em relação ao Cabra, é importante entender o que se passou nos dezessete anos entre seu início e sua retomada para que se possa compreender a transformação e a consolidação de uma postura que o cineasta Eduardo Coutinho mantém até hoje (considerando-se seu último filme lançado, Edifício Master). Apesar de nunca ter feito realmente parte da ideologia missionária do CPC, ou de ter militado nas frentes do Partido Comunista como alguns de seus amigos fizeram nos anos 50, 60 e 70, é sintomático o significado que tem a finalização de Cabra Marcado Para Mor rer como um projeto pessoal do cineasta, desvencilhado do pensamento organizado de instituições ou grupos, e bastante voltado para o modo reflexivo, no qual a preocupação ética é elemento gerador na constituição do processo de realização e também no próprio produto, além, é claro, da mudança do filme para um documentário, abraçando todas as implicações daí decorrentes e que, consideradas de um ponto de vista epistemológico, são várias. Nas análises propostas por Marilena Chauí e Jean-Claude Bernardet, a representação do popular nas produções do CPC falha sob muitos aspectos. Mais especificamente falando do Manifesto e de Cinco Vezes Favela, o povo está ausente deles, e não é o destinatário nem de um e nem de outro. Pior ainda, a primeira produção cinematográfica do CPC não conseguiu tratar verdadeiramente dos problemas da população nas favelas, sendo que a visão predominante ao longo do filme foi esquematizada demais e viciada pela leitura de livros de sociologia servindo apenas para “ilustrar idéias preconcebidas sobre a realidade, que ficou assim escravizada, esmagada por esquemas abstratos”8. Deste modo, o espectador, o qual se pretende que seja o povo, não toma parte nem da história e nem do filme, não é o destinatário do produto. “O filme fecha-se sobre si próprio, e o espectador, limitando sua participação a aceitar ou recusar, fica de fora.”9 A questão da representação do povo no cinema brasileiro é de extrema urgência porque, para Bernardet, ela é determinante para a conquista do público. A identificação é apresentada como uma das formas de se alcançar essa conquista.

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Eduardo Coutinho

8 - Bernardet, Brasil em Tempo de Cinema, p. 30. 9 - Idem, p.30

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Desse modo, constata-se o quanto o autor persegue sistematicamente o povo nas telas da cinematografia brasileira, inclusive fora da produção cepecista, ou seja, no seio do Cinema Novo. O resultado dessa busca é categórico: o povo não participa nunca da ação, configura-se somente como o assunto de um diálogo travado entre a classe média e a classe alta, dirigente do país. A explicação dada para isso é que “se os filmes não conseguem esse diálogo é porque não apresentavam realmente o povo e seus problemas, mas antes encarnações da situação social, das dificuldades e hesitações da pequena burguesia, e também porque os filmes se dirigiam, de fato, aos dirigentes do país10.” Se, na política do país, poder-se-ia ver o proletariado e a pequena burguesia entregar-se, [por falta de força própria], a um líder que fizesse o papel de condutor da ordem e do progresso, na análise de Bernardet, há a constatação de que, para o CPC, o povo deveria submeter-se também a uma espécie de populismo da arte revolucionária. “Paternalisticamente, artistas, estudantes, cepecistas vão fazer cultura para o povo.”11 Esta é também a constatação de Marilena Chauí quando classifica a intelectualidade segundo as dimensões religiosa, educadora e ideadora. O artista e intelectual do CPC, encarregado de uma missão cultural e de um espírito pedagógico – expressões usadas por Chauí em seus textos – devem fornecer ao povo e à nação uma imagem com a qual eles se identifiquem. No entanto, não conseguindo desvencilhar-se de sua classe na abordagem e nas representações que faz, o artista do CPC falhava na tarefa de fazer a arte do povo para o povo. No filme Cinco Vezes Favela, a romantização excessiva dos personagens de esquerda e a apresentação caricata da elite, abriram espaço apenas para a representação de um povo alienado, que necessitava ser guiado e esclarecido pelo artista de classe média do CPC, que optou por ser revolucionário. É assim que, para Bernardet, a produção do CPC – e o restante do cinema brasileiro do mesmo período –, embora aspirando a ser popular, conseguiu sê-lo somente no que diz respeito aos problemas e às formas populares, caracterizando-se, na verdade, por um cinema que só expressava as aspirações e a problemática “de uma classe média que procura seu caminho político, social, cultural e cinematográfico”12. Esse deslocamento do pensamento do intelectual classe média acarretou transformações na maneira de representar o outro, a partir do final da década de 60. Para o campo do documentário tal questão é central, já que é a base sobre a qual ele se sustenta. O documentário, encarado como um instrumento da classe média para conhecer e compreender o outro, revelou-se de grande importância para a representação do povo já que o povo e o outro aqui se misturam e confundem-se. Assim, o que mudou com a nova maneira de pensar e explicar o mundo da intelectualidade brasileira nos anos 60 e 70 foi justamente a representação que artistas e cineastas fariam do povo. Se a revelação do saber sobre o outro é tida como arrogante por uns, e até ingênua por outros, como, então, o povo (o outro) deve ser mostrado nas telas? O abandono da postura cepecista, do caráter missionário e pedagógico das obras artísticas, e da figura romântica do artista engajado conduziu, num primeiro momento, a uma negação do saber sobre o outro, a um recuo do artista, a quem cabe registrar objetivamente, sem interferir ou conduzir, o trabalho do povo. Mas, pouco tempo depois, o reconhecimento da impossibilidade de transposição da distância entre o artista e o povo, para alguns artistas e cineastas, levou à recusa até mesmo do recuo da objetividade. Assim, a saída apontada por eles, dentre os quais o próprio Coutinho, como eticamente viável para a difícil e problematizada tarefa de representar o outro foi a reflexividade.

A ética do modo reflexivo 10 - Idem, p. 51. 11 - Idem, p. 37. 12 - Idem, p. 157.

No campo do documentário, a reflexividade surgiu, principalmente, como

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João Virgínio, em Cabra Marcado Para Morrer

uma contribuição de trabalhos de antropólogos, como Jean Rouch, já que a antropologia é a ciência, por excelência, que lida com a alteridade. A reflexividade está ligada a aspectos formais, com a finalidade de clarear o caminho feito pelo cineasta e deixar o público saber o porquê das escolhas feitas durante a atividade de reconstituir simbolicamente o outro e o mundo ao redor. Para Jay Ruby, antropólogo e pesquisador, ser reflexivo é ser “suficientemente auto-consciente para saber quais aspectos do eu são necessários revelar de modo que o público esteja apto a compreender tanto o processo empregado como o produto resultante e saber que a revelação em si mesma é proposital, intencional, e não meramente narcisística ou acidentalmente reveladora.” A reflexividade, seguindo esse raciocínio, é, portanto, essencial para mostrar que tanto o realizador do filme como o outro que é filmado ocupam entre si lugares diferentes no mundo em que habitam. Elementos reflexivos fazem parte de toda a obra documentária de Eduardo Coutinho. Nela, pode-se encontrar, sem muito esforço, a preocupação do cineasta com o desvendar do processo de fabricação, que explica o tempo todo ao público: o que se vê na tela é um filme. Cabra Marcado Para Morrer é um exemplo disso. Apesar de inicialmente pensado para ser um docudrama, circunstâncias da história política do país interromperam o projeto – como deve ter acontecido com muitos outros projetos artísticos e culturais naquele momento – dispersando toda a equipe de filmagem. Dezessete anos depois, se o filme fosse retomado como uma continuação do que fora começado, o significado da produção poderia ter sido completamente esvaziado. Ao invés disso, o cineasta decidiu realizar um documentário, “do modo que fosse possível”, retornando ao local das filmagens para saber o que havia sido feito daquelas pessoas. É essa a intenção do filme que se debruça sobre si mesmo, sendo a própria história de sua produção, por si mesma, auto-reflexiva. Como filme documentário, Cabra Marcado Para Morrer é também o relato de como a vida de todas aquelas pessoas foram profundamente marcadas pelo momento histórico do país. Voltando ao que já foi apontado antes, a sobreposição da esfera pública sobre a privada é uma questão que pode ser transposta para o próprio corpo do documentário, de como o realizador pode justificar sua intromissão na vida das pessoas que estavam sendo filmadas. Mais uma vez, o trabalho de Rouch, desenvolvido a partir do aproveitamento de características e da tecnologia do cinema verdade, possibilitou a alguns documentaristas que encarassem, de outra forma, tais questões moralmente relevantes. A obra de Rouch, seguida por muitos outros na esteira do pós-estruturalismo, de certa forma, apontou na reflexividade uma saída ética para todos esses problemas. Se o saber sobre o outro não é mais possível, se o recuo objetivo não é mais possível, o único procedimento válido então é apresentar de modo claro ao espectador essas impossibilidades e mostrar qual foi o trajeto percorrido pelo realizador e pelo filme até chegar ao produto final. Para Bill Nichols, a reflexividade é uma questão de processo histórico.” Aqueles que conferem significados (indivíduos, classes sociais, a mídia, e

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outras instituições) existem dentro da própria história antes de existirem na periferia olhando para dentro como deuses. Portanto, paradoxalmente, a auto-referencialidade é uma categoria comunicacional inevitável. (...) Aqueles que conferem significados são, eles mesmos, membros de uma classe de significados conferidos (história).”13 Assim, no filme Cabra Marcado Para Morrer, a visão do popular é dada a partir de transformações no modo de representar o outro, problematizando-se questões morais e epistemológicas do próprio ato de se fazer documentários. Estas questões inserem-se no seio da cultura que partilhamos e devem ser encaradas segundo o contexto dominante em vigor até os dias atuais. Como lembra Jay Ruby num texto intitulado “The Ethics of Imagemaking”, “Sistemas de conhecimento e epistemologias estão ligados a sistemas morais. Como antropólogo, eu diria que a moral e a ética apenas são compreensíveis em relação a outras facetas de uma cultura.”14

Bibliografia BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em Tempo de Cinema. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1976. ______. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985. ______. “The Voice of the Other: Brazilian Documentary in the 1970’s”. In: The Social Documentary in Latin America. Pittsburg: University of Pittsburg Press, 1990. BURTON, Julianne. “Transitional States: creative complicities with the real in Man Marked To Die: Twenty Years Later and Patriamada”. In: The Social Documentary of Latin America. Pittsburg: University of Pittsburg Press, 1990. CHAUÍ, Marilena. O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. Seminários. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984. COUTINHO, Eduardo. “A palavra que provoca a imagem e o vazio no quintal”. Revista Cinemais. Rio de Janeiro, n.22, p.31-72, março/abril 2000. ______. “Fé na Lucidez”. Revista Sinopse. São Paulo, n.3, dez. 1999. ______. “O Cinema Documentário e a Escuta Sensível da Alteridade”. Ética e História Oral. Revista de Estudos da Pós-Graduação em História, PUC/SP. São Paulo: PUC, 1981. DA-RIN, Sílvio. “Auto-Reflexividade no Documentário”. Revista Cinemais. Rio de Janeiro, n. 7, p. 7192, set./out. 1997. GALVÃO, M. R., e BERNARDET, J-C. O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. Cinema. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de Viagem. CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/1970. Rio de Janeiro: Rocco Editora, 1992. NICHOLS, Bill. “The Voice of Documentary”. In: New Challenges for Documentary. Berkeley/Los Angeles/ London: University of California Press, 1998. ______. Representing Reality. Issues and Concepts in Documentary. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1991. PEIXOTO, Floriano. O Melhor Teatro do CPC da UNE. Rio de Janeiro: Global Editora, 1989. RENOV, Michael. (org) Theorizing Documentary. New York and London: Routledge, 1991. RUBY, Jay. “The Image Mirrored: reflexivity and the documentary film”. In: New Challenges for Documentary. Berkeley/Los Angeles/ London: University of California Press, 1998. ________. “The Ethics of Imagemaking”. In: New Challenges for Documentary. Berkeley/Los Angeles/ London: University of California Press, 1998. SCHWARZ, Roberto. “O fio da meada”. In: Que Horas São? – Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

13 - Bill Nichols, The Voice of Documentary, p. 52. 14 - Jay Ruby, The Ethics of Imagemaking, p. 31.

______________________________________ * Anne Lee Fares de Queiroz é Mestranda em cinema pelo Departamento de Multimeios da Unicamp.

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CINEMA

CINE-BIONARRA TIV AS: CINE-BIONARRATIV TIVAS: ESQUECIMENTO E MEMÓRIA POLÍTICA POR EDSON LUIS

DE

ALMEIDA TELES*

Resumo: Por meio da análise de filmes documentários, Que bom te ver viva e 15 filhos, temos por objetivo refletir sobre a reconstrução democrática no Brasil por meio da narrativa das testemunhas do regime militar. O artigo trata da experiência do que é avesso ao entendimento: a tortura e os desaparecimentos e assassinatos ocorridos durante a ditadura. Utilizando os conceitos de história em Walter Benjamin - fragmentada e em ruínas - e de compreensão e narrativa em Hannah Arendt, o artigo aponta para um desacerto entre o esquecimento imposto pela política da transição e a memória traumática daqueles tempos. Consideramos que este conflito abala a confiança da sociedade nas instituições políticas. As questões aqui levantadas visam contribuir com uma ação política inovadora, dentro de um agir democrático.

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Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Esta tempestade é o que chamamos progresso1.

1 - Walter Benjamin. In: Sobre o conceito de história (Tese 9). 2 - Filme dirigido por Lúcia Murat, militante nos anos 60-70 e ex-presa política que passou pela experiência da tortura, com o depoimento de oito ex-presas políticas: Maria do Carmo Brito, Estrela Abohadana, Maria Luiza G. Rosa, Rosalinda Santa Cruz, Criméia Alice S. de Almeida, Regina Toscano, Jessie Jane e depoimento anônimo. 3 - Sob a direção de Maria de Oliveira Soares (presa juntamente com sua mãe, Eleonora Menicucci de Oliveira) e Marta Nehring (filha do desaparecido político Norberto Nehring), este vídeo traz o depoimento de 15 filhos de vítimas da ditadura, são eles: as duas diretoras, Ernesto José de Carvalho, Janaína de Almeida Teles, Edson Luis de Almeida Teles (autor deste artigo), João Carlos S. de Almeida, Vladimir Gomes da Silva, Gregório Gomes da Silva, Tessa Lacerda, Telma Lucena, Denise Lucena, Ivan Seixas, Priscila Arantes, André Herzog e Chico Guariba. 4 - Relato de Estrela Abohadana. Doravante, seu relato e o de outras pessoas, dos dois filmes, serão indicados por (Estrela. In: Murat); que se refere ao depoimento de Estrela, contido no filme Que bom te ver viva, dirigido por Lúcia Murat. 5 - Marilena Chauí, ao conceituar a tortura como a impossibilidade da política, explicanos que “o que a tortura cria é a situaçãolimite (...) na qual se destrói a humanidade de alguém para que esse mesmo alguém atue como humano, isto é, estabeleça com o algoz uma relação intersubjetiva, sem a qual o torturador perde a função e perde o sentido” (Chauí 1987: 34).

O filme Que bom te ver viva2 e o vídeo Os 15 filhos3 buscam colaborar com o desafio proposto pela reconstrução democrática no Brasil, após o regime militar. São trabalhos que trazem a reflexão da memória política de um período recente, segundo a narrativa das testemunhas, acerca daquilo que é avesso à compreensão: a tortura e o desaparecimento político durante a ditadura. A idéia envolvida nestes filmes é a de que as emoções expostas por meio dos relatos, se devidamente interrogadas, podem indicar um sentido para o inexplicável da repressão. Os sentimentos, compostos por sobras, fragmentos, interditos e despojos, mobilizam as marcas de uma experiência na qual “o equilíbrio é impossível, de modo que o sofrimento é garantido para o resto da vida” (Estrela. In: Murat)4. A insistência sobre os restos do vivido sob a ditadura tem o objetivo de extrair uma arqueologia fúnebre, que nos possibilite construir explicações para a materialidade remanescente dos porões de tortura. Em Que bom te ver viva, filme longa-metragem, intercalam-se os desejos e traumas de uma personagem anônima, interpretada pela atriz Irene Ravache, com os depoimentos de oito ex-presas políticas brasileiras que viveram situações-limite: a tortura e a prisão5. Mais de vinte anos depois, como vivem essas mulheres? Em sua resposta, mais do que descrever e enumerar sevícias, o filme mostra os sentimentos que elas viveram, e ainda vivem, por terem sobrevivido àquelas experiências. Diante de uma sociedade omissa, seus relatos resistem à idéia do esquecimento, não por serem uma plataforma política, mas por constituírem a única forma de dar continuidade às suas existências. “Detesto fazer as denúncias, mas não posso viver sem fazê-las”, é a fala da personagem central do filme (Irene Ravache. In: Murat). Os 15 filhos, vídeo curta-metragem, reúne depoimentos de filhos de militantes políticos de esquerda que nasceram ou viveram sua infância no período da ditadura militar. No Brasil tem-se, de certa forma, pouco conhecimento dos crimes cometidos durante aquele período, porém menos ainda se ouviu sobre o que ocorreu com os filhos dos que lutaram contra o regime. Os bebês, as crianças, os adolescentes de então, hoje carregam dentro de si os traumas da violência política; e são eles que narram suas memórias neste vídeo. O filme e o curta documental, com suas propostas cinebiografemáticas, fazem transparecer que apesar do (re)conhecimento público e notório das violações aos direitos humanos, ainda não nos inteiramos o suficiente para compreendermos este passado recente. Hannah Arendt, ao tratar da ruptura entre passado e futuro causada pelo impacto do totalitarismo, aponta para o empobrecimento da experiência e a debilidade da memória em uma sociedade herdeira de regimes de exceção:

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Estamos ameaçados de esquecimento, e um tal olvido – pondo inteiramente de parte os conteúdos que se poderiam perder – significaria que, humanamente falando, nos teríamos privado de uma dimensão, a dimensão de profundidade na existência humana. Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação (Arendt 1997: 131). Para evitar a falta de significações do passado na reconstrução de democracias nascentes, Arendt propõe o recurso à modalidade do pensamento que permite o desvelamento das experiências vividas, ou seja, a compreensão. O sofrimento pelo qual passamos em nossa existência somente pode ser absorvido e transformado em experiência se pudermos conceder-lhe publicidade, o que nos vídeos traduz-se com a narrativa em condições de liberdade, com a possibilidade das vítimas e testemunhas serem ouvidas e vistas pelos outros. A compreensão é uma “atividade interminável, a maneira especificamente humana de estar vivo” (Arendt 1993: 39). É por isto que nos causa grande impacto o testemunho dos sobreviventes nestes filmes. No caso dos relatos sobre os desaparecimentos forçados, a situação fica ainda mais aguda, pois é “difícil aceitar uma morte que não é material; e mais difícil ainda é a imaterialidade da vida” (Tessa. In: Soares et Nehring), diz Tessa Lacerda sobre o pai que nunca conheceu. A ausência do corpo é a constituição do vazio na história – “os desaparecidos são um hiato em minha vida, um período entre parênteses” (Criméia. In: Murat). Apesar de, em vários momentos, as narrativas constituírem-se por meio de detalhes aparentemente triviais (a lagartixa na parede da cela, o olhar de um desconhecido no assalto ao banco, uma fotografia antiga do pai com três anos de idade, a bandeira vermelha no quarto da mãe etc.), são estas minúcias dos relatos que permitem a inserção do espectador na história política da época e a compreensão dos sentimentos envolvidos. A importância das particularidades está em não permitir que se transforme algo real em mitológico, inversão ocorrida em muitos trabalhos de historiadores, na abordagem da história oficial, e mesmo na visão de boa parte da esquerda. Tomamos o termo mito como “a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade (...), que cria um bloqueio à percepção da realidade e impede lidar com ela” (Chauí 2000: 9). O uso do mito encontra-se tanto na história que se procura impor, para que se esqueça aqueles tempos e não se construam as narrativas – “contra a ficção do Gênio maligno oficial se impõe o minucioso relato histórico e é de boa mira neste alvo que depende o rigor do discurso” (Fortes: 29) –, quanto no imaginário que criamos para nós mesmos a fim de suportar o inexplicável da tortura – “para mim, meu pai era como um herói de gibi” (Gregório. In: Soares et Nehring). Isto porque a tortura instaura entre dois seres humanos uma relação desumana, ou seja, o torturador é colocado em posição divina, acima dos direitos e da condição humana e o torturado é condenado à posição desumana da criatura indefesa e sem razão própria (Chauí 1987: 33-4). Não se trata, é claro, de desmerecer as ações de grande coragem daqueles jovens que se propuseram, em situação de extrema inferioridade, a enfrentar a repressão movidos por ideais. No entanto, tratá-los hoje como parte de um mito somente contribui para nos afastar da possibilidade de compreensão de suas lutas. “Esse negócio de guerrilha e tortura, hoje, parece um conto de fadas. E isso nos distancia da realidade. Para meus sobrinhos, filho e amigos deles, eu sou uma espécie de contadora de estórias” (Criméia. In: Murat). Há ainda o risco do constrangimento, como assinalado em um dos depoimentos de uma filha que não conheceu o pai, desaparecido, de se criar “uma imagem gigantesca que até oprime” (Tessa. In: Soares et Nehring). A identificação entre a sociedade atual e os eventos passados e a produção de significados para o tempo presente e futuro depende do conhecimento dos sentimentos, desejos e aspirações dos seres humanos envolvidos. Sejam eles as vítimas, presentes nos filmes,

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sejam os carrascos, que no processo de transformação da história em mito aparecem em confortável situação de monstros. Eram homens. Tinham endereços, uma vida cotidiana, viviam em famílias e, principalmente, sabem de parte da história que as vítimas e a maior parte da sociedade desconhecem. Nos filmes, podemos ainda, observar que o uso de imagens de arquivo, tais como fotos de pessoas mortas ou torturadas, salas de tortura etc, praticamente Cena do filme “Que bom te ver viva” não são utilizadas. É como se estes documentos não tivessem o que dizer, pois já foram usados várias vezes em outros momentos e, por outro lado, parecem ter sido banalizados pelas imagens semelhantes das delegacias e sistema penitenciário atuais. Será que eles não perderam sua importância enquanto verdade documental e habituaram-se aos seus horrores? O que vemos, fora o depoimento das personagens, são fotos dos locais por onde as pessoas envolvidas passavam, tais como o estacionamento do DOI-CODI6, em São Paulo; ou então, os caminhos atuais que os sobreviventes dos filmes percorrem em seu cotidiano: sindicato, hospital, moradia, cinema, restaurante etc. Por outro lado, a publicidade criada - o espaço e o tempo público - objetivada pelas narrativas, mostra que a relação entre memória e esquecimento demanda a existência do documento como auxílio à narrativa. Desempenha a função de fornecer vitalidade ao se contrapor às imposições do esquecimento. Esse tipo de documento distingue-se do documento histórico tradicional precisamente por trazer as histórias pelo relato direto de quem as viveu. A memória das violações aos direitos humanos, formatada por aspectos degenerativos – passagem do tempo, ideologias, o cansaço do ressentimento – vê-se reduzida às políticas de Estado, aos livros, arquivos e placas comemorativas, desprovidas dos recursos que dispõem os relatos e narrativas de recombinar finais e começos, alterar pausas, rebobinar, sem qualquer subordinação a ordens pré-concebidas. Esses entrecruzamentos da narrativa capacitam a memória como o (re)colher e o (re)criar de reflexões críticas alternativas à continuidade temporal programada das instituições. Estes aspectos subjetivos indicam não a preparação para a montagem de um filme sobre histórias individuais, mas um cuidado para apresentar a experiência histórica remontada a partir da perspectiva da emoção e do sentimento. Claudine Haroche, pesquisadora francesa do conceito de ressentimento, observa a relevância da abordagem existencial para a análise política: O ritmo, o tempo dos sentimentos individuais, a maneira de sentir, de reconhecer os próprios sentimentos, de manifestá-los e, talvez ainda mais, de sufocá-los, negá-los, calá-los e recalcá-los são essenciais para a elucidação dos mecanismos políticos (Haroche: 344-5). 6 - Sigla que designou o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, órgão repressivo do regime ditatorial brasileiro. Talvez o mais curioso, sarcástico mesmo, foi os militares adotarem como sigla de um órgão de tortura as letras DOI, como se anunciassem nela a idéia de machucar seus opositores. 7 - Filme sobre o testemunho dos sobreviventes do holocausto, com 10 horas de duração, dirigido por Claude Lanzmann e produzido em 1985.

Talvez uma das questões que percorre o filme seja: o que resta desse passado no presente? Ou ainda o que dele se mantém como herança no espaço público atual? O que esta memória mobiliza? O fato é - e os filmes mostram-nos isso - que, mesmo diante do horror, a vida continua e isto é expresso por meio da existência cotidiana. Aquilo que menos conhecemos dos tempos de repressão, os detalhes e sentimentos, aparecem em primeiro plano nestes filmes; é o plano do trivial, das pessoas comuns, que nos aproxima, via humanização das personagens envolvidas, do incompreensível. Beatriz Sarlo, pensadora argentina, ao fazer uma analogia dos eventos do nazismo com a ditadura militar argentina, mediante a análise do filme Shoah7, define este processo de relacionamento dos tempos, entre memória e esquecimento:

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(...) Justamente por poder restituir uma noção concreta de tempo que o esquecimento oblitera num fluxo de desastres cuja repetição os condena a perderem seu caráter individual e, portanto, a se integrarem num relato convencional, repetitivo, hipercodificado: uma narração cuja letra conhecida destrói o estranhamento e a distância (Sarlo: 41). Podemos retomar a idéia de arqueologia, já suscitada no início deste texto: ela encaixa-se nos trabalhos em questão por sua prática de reconstruir o ser a partir do osso ou, neste caso, de compreender os eventos históricos por meio dos fragmentos narrados pelas testemunhas e sobreviventes. Os filmes em questão não se propõem a finalizar os relatos com alguma espécie de proposição conclusiva ou instrução para a ação; antes, eles mantêm seu caráter narrativo e impulsionam no espectador um processo reflexivo, uma abertura sobre como podemos ressignificar o horror da tortura e do desaparecimento e assassinato políticos em um sistema democrático. Diz um dos relatos: “a sociedade me deve alguma coisa, pois se não tivesse deixado o golpe acontecer, eu não teria sofrido isso” (Janaína. In: Soares et Nehring). Observa-se que o relato de como os sobreviventes das violações aos direitos humanos é recebido nos tempos atuais difere em cada indivíduo mas, em geral, sofre uma recepção constrangedora. Nas palavras da ex-presa política Estrela Abohadana,

Parece haver duas reações básicas aos relatos sobre a tortura e a violência política: por um lado, com mais freqüência por parte de pessoas menos esclarecidas politicamente - mas não somente estas - considera-se a retomada dos fatos do passado como um ato de revanchismo ou ressentimento “quando a gente fala dessas coisas parece que somos rancorosos: ‘não consegue esquecer’, ‘já vem falar de novo neste assunto’ “ (Rosalina. In: Murat); por outro lado- e aqui se incluem principalmente as pessoas que se solidarizam com as vítimas - ocorre um sentimento de compaixão tão forte que chega a constranger a pessoa que faz o relato: “ninguém quer ouvir, ou aqueles que escutam se mobilizam tanto que gera um constrangimento. De modo que você se pergunta: qual o direito que você tem de mobilizar tanto uma pessoa?” (Estrela. In Murat). Dessa for ma, as memórias doloridas daqueles tempos são reduzidas à dor, apenas emoções sem expressão pública no novo espaço institucional de retomada democrática, construído justamente sobre a denegação delas. Se durante a ditadura o embate político de resistência ocorreu necessariamente por meios clandestinos, se privando da cena pública, hoje, a memória daqueles que sofreram com a repressão, que procuravam transformar o público, vê-se reduzida à cena privada das lembranças dos sobreviventes, testemunhas e seus familiares. Como afirma uma sobrevivente, “a tortura não é uma questão épica, é feia e, portanto, as pessoas têm medo de pegar

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Cena do filme “Triunfo da vontade”

Existe um grande silêncio quanto à tortura. Não sobre o relato de como se faz uma tortura, isso me parece que foi muito explorado. Há um silêncio de como as pessoas que foram torturadas vivem isso internamente. Então, as pessoas até suportam saber que você foi torturada e até sabem o que é uma tortura. Mas o que elas não suportam ouvir é como que você se sente e qual foi sua experiência emocional interna diante da tortura (Estrela. In: Murat).

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essa bandeira, que ficou então com os familiares, o que deixa a coisa com um jeito de caça às bruxas, meio isolado, tipo aqueles caçadores de nazistas” (Rosalina. In: Murat). Quando se trata do conhecimento, essencialmente subjetivo, produzido pela memória de passado doloroso, nunca se pode dizer que já se sabe de tudo, nem mesmo pode-se resignar a ter um conhecimento parcial que, ao mesmo tempo, é inimigo da memória. Aceitando-se o saber em partes, como se fosse um todo completo, aceita-se o esquecimento forçoso, gerador de recalque e ressentimento. E o consentimento do esquecimento leva ao passo seguinte, que não é necessariamente o da repetição (um novo golpe militar, outro regime de exceção, a tortura etc.), mas a renúncia de valores que a repressão esforçou-se por destruir (Sarlo: 42). Juntamente com o esquecimento, que desloca problemas públicos para a esfera dos assuntos privados, ocorre o esfriamento das relações democráticas e o investimento na política sofre considerável redução. Portanto, a volta às questões do passado autoritário não é uma mera ação de reconstrução de memória factual ou de repressão às vítimas, em uma simples presentificação do passado. Quando os filmes mencionados tentam responder à pergunta sobre o que resta do passado no presente, eles realizam um trabalho prospectivo. A partir do relato sobre o que foi feito, é possível a reflexão do pensamento e, consequentemente, a novidade da ação criativa. Trata-se de realçar a “pulsão que se dirige ao que fomos e ao como fomos e ao que deixamos de ser e ao que e como seremos daqui em diante” (Sosnowski: 15). Há um paradoxo no testemunho dos sobreviventes: se por um lado é imperativo narrar, por outro, há a percepção angustiante dos narradores de que a fala não pode expressar completamente a experiência vivida. O interlocutor parece não estar preparado para ouvir aqueles assuntos ou para capturar toda a dimensão do real, alguns sequer podem ouvir os relatos com atenção suficiente. Se é verdade que o luto da experiência somente pode ocorrer por meio da narrativa, o dilema do sobrevivente ainda persiste no caráter irreconciliável da mediação entre a experiência e a narrativa. O trabalho de luto realizado pelos relatos públicos funcionam pela troca do objeto perdido por um outro substituto que, de certa forma, é indiferente ao processo desencadeado. Nestes termos, parece que chegamos a uma aporia: a narrativa propicia o luto, mas não resolve o sentimento de perda dos que sofreram com a violência política. Para o real do corpo torturado - memória física - não há deslocamento. O real do corpo torturado é para sempre, como cicatriz. No entanto, nutrindo-se de uma recordação enlutada que tenta superar os traumas da ditadura, a prática da narrativa dos sobreviventes leva consigo a semente de uma energia restauradora de uma alegria passada, hoje impossível. Tal como o anjo benjaminiano da história, que olha para o passado a partir da imagem dos escombros e ruínas, num esforço para redimí-los, enquanto é empurrado para frente pelos ventos dos novos tempos, há, nos sobreviventes em questão, uma relação com o objeto perdido, um olhar retroativo necessário para que estas pessoas possam aferir o momento vivido como tempos passados, distantes e mortos, como se fornecessem uma materialidade ao objeto perdido para, então, daí realizar o luto e colocar-se diante das novas implicações do tempo presente. Assim, a aporia da substituição da perda, em que se troca um objeto perdido por outro sem sentido, indica que o luto inclui um certo apego aos traços do passado, uma esperança de salvá-lo, a partir da qual se realoca, a cada momento da narrativa, um lugar para o que se perdeu e outros lugares para o que se tem agora e o que se pode ter no futuro. Enfrentar o luto pode abrir um espaço para a produção de desejos que não sejam apenas sintomas de perda. A possibilidade de não repetição eterna dos sentimentos de horror social da tortura política é a própria apresentação pública daqueles horrores. O desejo pelo luto, dependente do passado, torna-se um luto pelo desejo do que se vive e viverá (Avelar: 258-9). A importância da compreensão do horror da ditadura está no fato de que tais eventos deixam marcas não somente nas vítimas, mas em toda a sociedade, na medida que postergam os traumas e abalam nossa confiança nas instituições políticas,

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do mesmo modo que criam a dúvida com relação aos valores democráticos, prejudicando nossa capacidade de agir. Nas sociedades com herança autoritária, a democracia é ameaçada pelo fato de eliminar a elaboração do passado e pelo conseqüente medo das incertezas do presente. O que procuramos demonstrar neste artigo é que a opção da narrativa, ao re-significar os conflitos do passado com as experiências do presente, torna público aquilo que corrói a sociedade por dentro, abrindo a possibilidade de uma ação política inovadora e criativa, dentro de um agir democrático.

Bibliografia ARENDT, Hannah. “Compreensão e política”. In: A dignidade da política. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993, pp. 39-54. ______. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997. AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota. A ficção pós-ditatorial e o trabalho de luto na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2003. CHAUÍ, Marilena. “A tortura como impossibilidade da política”. In: I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais. Branca Eloysa (org.). Petrópolis: Vozes, 1987, pp. 28-37. ______. Brasil. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. HAROCHE, Claudine. “Elementos para uma antropologia política do ressentimento: laços emocionais e processos políticos”. In: Memória e ressentimento: indagações sobre uma questão sensível. Stella Bresciani e Márcia Naxara (orgs.). Campinas: Unicamp, 2001, pp. 333-50. SARLO, Beatriz. “A história contra o esquecimento”. In: Paisagens imaginárias. São Paulo: Edusp, 1997, pp. 35-42. SOSNOWSKI, Saúl e SCHWARTZ, Jorge (orgs.). Brasil: o trânsito da memória. São Paulo: Edusp, 1994. FORTES, Luiz Roberto Salinas. Retrato calado. São Paulo: Marco Zero, 1988. SPINA, Rose. “Filhos da resistência”. In: Revista Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, no. 33, janeiro de 1997. Filmografia MURAT, Lúcia. Que bom te ver viva. Duração 100 minutos. Rio de Janeiro: 1989. SOARES, Maria de Oliveira et NEHRING, Marta. Os 15 filhos. Duração 20 minutos. São Paulo: 1996.

______________________________________ * Edson Luis de Almeida Teles é Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Renato Janine Ribeiro, com apoio da FAPESP.

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EM CARNE VIVA

áspero meio-dia árido terraço um cacto ( palma doce ) goza a melodia do sol em carne viva

guilherme mansur *

______________________________________ * Guilherme Mansur é autor, entre outros livros, de Gatimanhas e Felinuras, com Haroldo de Campos. Ouro Preto: Fundo de Ouro Preto.


ABCDEFG HIJKLMN OPQRSTU WXYZ ALFABETO “CABEÇAS CORTADAS” POR GUILHERME MANSUR FONTE: GROTESCA

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IDÉIAS

O TEMPO POR GEY ESPINHEIRA* (Para o filósofo Romélio Aquino – senhor do tempo)

Resumo: Neste artigo, o autor parte de algumas noções de o Tempo, de autores como T.S. Eliot, Jorge Luís Borges, Shakespeare, Lewis Carroll, além de muitos outros que interpretam a cultura a partir da idéia de que o tempo constituiu-se em substância para a formação das pessoas e das sociedades - o tempo pessoal e o tempo histórico, interior e exterior. O tempo revisitado como o fluir da existência no labirinto do tempo, memória e projeção, sonho e devaneio diante da realidade que é apenas uma das dimensões do real, pois o tempo formula outras e é, ele próprio, uma realidade inelutável, absolutamente presente: “e tudo é sempre agora” (Eliot). O autor procura combinar ficção e realidade para dar sentido à realidade no contraponto que faz com Aldous Huxley, o qual concebe a realidade como “um infernal emaranhado de coisas”. Uma perspectiva multidisciplinar, mas a partir do olhar de um sociólogo não-ortodoxo que procura interpretar a existência a partir da idéia de que somos feitos de tempo, e do ditado do povo-de-santo da Bahia: “o Tempo não gosta do que se faz sem ele”. Uma extraordinária dimensão da cultura está no tempo; é ele o ambiente em que a cultura se desenvolve e a história se faz, é ele quem tece a rede relacional da vida.

“O tempo presente e o tempo passado Estão ambos talvez presentes no tempo futuro E o tempo futuro contido no tempo passado. Se todo tempo é eternamente presente Todo tempo é irredimível” T.S. Eliot (Quatro quartetos)

“La eternidad es una imagen hecha con sustancia de tiempo” Jorge Luis Borges (Historia de la eternidad)

“Mas o pensamento é escravo da vida, e a vida, um joguete do tempo E o tempo, que tem a visão do mundo inteiro Tem que parar” Shakespeare

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O tempo talvez seja o elo mais poderoso entre as pessoas, entre as gerações. Uma extraordinária dimensão da cultura está no tempo, ele é o ambiente em que a cultura se desenvolve, é ele quem tece a rede relacional da vida. Para o antropólogo Edward Hall (1983:11), o tempo deve ser concebido como um sistema cultural e expressa-se do seguinte modo: O tempo é tratado como uma linguagem, como princípio organizador de toda atividade; e, por sua vez, fator de síntese e de integração, meio de estabelecer prioridades e de ordenar o material que nos fornece a experiência; como mecanismo de controle retroativo sobre o curso dos acontecimentos que se são produzidos... enfim, como um sistema de mensagens particulares revelando a maneira como os indivíduos percebem-se mutuamente, indicando se eles podem entrar em acordo. O tempo parece pairar acima de todas as coisas como algo que coordena ou que, no mínimo, esgota as possibilidades de todo e de tudo que o contraria. Talvez seja esse sentido que o provérbio ioruba (Verger, 1981:34) expressa: “O Tempo não gosta do que se faz sem ele”. O tempo apresenta-se para nós como um grande enigma, pois são muitas coisas feitas simultaneamente. Mas o que importa mais é a sua característica de trajetória, de proposição de uma continuidade mutante, o que é uma forma de descontinuidade ou até mesmo de desconstrução, ao tempo em que é aperfeiçoamento. Assim, retomando Hall, o tempo é um sistema fundamental da vida cultural, social e pessoal dos indivíduos. Não se pode estar fora do tempo; ele é realidade absoluta, indissolúvel. O tempo regula todas as dimensões da vida: individual, social e cultural. A única possibilidade de estar fora dele é quando se está em plena eternidade, e esta é difícil de ser concebida quando se sabe, como nos diz Borges, que a eternidade “é uma imagem feita da substância do tempo”. Qual a nossa reação diante da tão assustadora declaração de Reeves? (1988:179): “Somos filhos de um cosmo que nos deu à luz após uma gravidez de quinze bilhões de anos. Como diz a tradição hindu: as pedras e as estrelas são nossas irmãs”. O Tempo parece ter uma natureza térmica. São o calor e o frio os fatores físicos que desencadeiam as mudanças, que aceleram ou retardam as transformações, mas é o tempo que mede a velocidade: rapidez ou lentidão; é, então, como se ele preexistisse para estar tudo nele, senhor absoluto de todos os acontecimentos. Vamos seguir os passos de Reeves, quando este nos explica a tendência do Universo à organização: Quando a temperatura cósmica baixou o suficiente, as forças começaram a agir e produziram, cada uma a seu tempo, as estrelas, os átomos, os núcleos, as moléculas. Esses sistemas podem (geralmente) unir-se mais uma vez, formando novos sistemas mais estáveis, mais fortemente ligados pela força correspondente. Os reagrupamentos podem continuar até atingirem o estado mais estável aquele que esgota as possibilidades de ligação da referida força.” (ibid: 91). Vemos, assim, que é a temperatura o fator desencadeador de possibilidades da matéria, a causa das transformações que produzem o desequilíbrio e que instaura o caos, movimento contraditório que impede que o sonho da força nuclear atinja o equilíbrio absoluto, que seria, certamente, o fim do Tempo. Para Reeves, “o sonho (para usar um termo antropomórfico) da força nuclear seria transformar toda e qualquer matéria em núcleos de ferro. Este sonho poderia se realizar se lhe fosse

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dada carta branca, isto é, se lhe fossem oferecidas as condições adequadas” (ibid.:92). O ferro aqui aparece como o redutor de tudo, metal que é também Thanatos, a morte da matéria que em suas combinações ao longo do tempo produziu a vida, e em todas as vidas os erros experimentados e repetidos que as garantem, mas que também nelas inseminam a morte como algo imanente. Fala o autor na tendência da fusão nuclear que seria atingida se forças opostas, ou colaterais, não agissem simultaneamente impedindo que este fim fosse alcançado. É a partir dessa situação que o autor indaga: Por que as forças, depois de terem começado a agir, não concluem seu trabalho? Por que elas não esgotam suas possibilidades de ligação? Por que deixam o campo livre para a emergência da variedade, sem depois reduzi-la à monotonia?. Todas essas contradições dão-se no tempo como ambiente. É no tempo, e através dele que essas forças combinam-se, desencontram-se ou apoiam-se no processo contínuo e variado das transformações. É assim que Reeves reconhece que O tempo desenrola-se de baixo para cima. No passado distante, um calor intenso inibe totalmente a ação da força nuclear. Como consequência de sua inatividade, os núcleons (prótons, nêutrons) são livres. A matéria nuclear está em seu estado de estabilidade mínima. Não existe núcleo algum na natureza”. O tempo passa; a temperatura diminui e, devido especialmente à atividade das estrelas, a força nuclear entra em ação. As fases de fusões termonucleares nas estrelas produzem uma grande variedade de núcleos de todos os tipos. O Tempo está sempre presente, é nele que as coisas acontecem e é através dele que elas são compreendidas. Seria exagero, portanto, dizer que não só a eternidade, mas todas as coisas e todos os seres são feitos de tempo? Tempo não como matéria, mas como ambiência fluida na qual a matéria desliza, mais veloz ou mais lenta, em suas combinações que partem da simplicidade para a complexidade. Assim o tempo regula a vida. Depois de quinze bilhões de anos, lentamente, séculos após séculos formando milênios, bilhões de seres orgânicos organizam-se como vida e, através do tempo, adaptam-se a um processo contínuo de aperfeiçoamento, de complexificação adaptativa ao ambiente e de adaptação de seu entorno a si mesmo. O ser orgânico cresce e desenvolve-se a partir de forças que lhe são internas. Já não importa o exterior, pois ele apenas precisa do ambiente. Quando tratamos do ser humano, sem desprezar quaisquer outros, uma unidade se processa no desdobramento de contradições que são existenciais por excelência. Assim como nos afirma Simmel, na análise que Jankélévitch (1988:12) faz a seu respeito, “o animal vive, mas ele não vive a sua vida; o homem vive, e, além disso, ele vive sua própria vida, ele vive seus estados de consciência e a sua duração espiritual”. A vida, como nos diz Simmel (1988:180), contém a morte, ela lhe é imanente. O ser vivente transcende o seu momento, o seu vivendo, para incorporar o passado e o futuro: “Todos os movimentos da ânima - volições, obrigações, vocações, esperanças, são os prolongamentos espirituais dessa destinação fundamental da vida: em seu

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presente, ela contém o seu vir a ser sob uma forma particular que não existe senão no processo de vida”. Essa percepção é totalmente diferente daquela que avalia a morte como algo externo, como na fábula do soldado que foge para Samarkande e que, ao encontrar a morte no mercado da capital do reino, foge para longe e decifra nela a intenção de ceifar a sua vida. Neste caso, surpresa ficou a morte ao encontrar ali, naquele dia, o soldado, pois tinha um encontro marcado com ele, no dia seguinte, em Samarkande. Esta morte externa, também predita em Édipo, como ilustra Simmel, não é a mesma que habita a vida, não como algo transcendental, mas imanente, próprio da vida e ao mesmo tempo a sua antítese, como se quiséssemos compará-la à estabilidade máxima da fusão nuclear, o núcleo de ferro, do qual nos falou Reeves. A morte, que é para o poeta Manuel Bandeira “o fim de todos os milagres”, é a vida tornada nada, mas não a existência perdurada no tempo em for ma de memória; contradição extrema, pois é ela, a morte, a medida da vida, que está no tempo, assim como ela é, inexoravelmente, tempo. O tempo é cíclico, assim o quiseram os estóicos e também Nietzsche. O tempo regula os momentos e estes são acontecimentos que são referidos no calendário: os aniversários, as comemorações anuais, bienais etc. Viajamos em nós mesmos em nossa substância feita de tempo, marcando-nos como calendário por meio de cicatrizes que fazemos no tronco de uma árvore ou riscos numa parede, para sabermos de algo que nos foi ou pareceu-nos ser relevante e para que soubéssemos quando isso se deu. A perda da noção do tempo é simplesmente intolerável. A moda, por exemplo, é uma forma de expressão do tempo representado na imediatez. É a tradução de um espírito de época, que pode ser efêmero, ou mais duradouro, porém inelutavelmente passageiro; por isso a moda passa, marca a característica de um tempo e sai de moda. Eis o fato intrigante quando deparamo-nos com a presença de objetos, e até mesmo de pessoas fora de moda; somos atraídos por esses acontecimentos estranhos e nostálgicos, e logo tomamos consciência de que eles são de uma realidade surpreendente, por serem em si mesmos julgados pelo tempo. Eis aí a importância da antiguidade, tempo condensado em um objeto que fala por si mesmo, pois nada é tão feito de tempo como algo que não pertence à nossa época, mas que nela sobrevive com dignidade. Somos, todos, armários e caixas de lembranças miúdas. Cada peça guardada nos traz um tempo, um significado de um tempo próprio; apropriamo-nos dele e fazemos uma coisa nossa. Por outro lado, também o guardamos para o tempo futuro, para sermos lembrados naquele tempo em que ainda era para nós o presente contínuo. Este gesto só é possível porque temos consciência de que o tempo passa e que nós passamos com ele, prova de que dele somos feitos, como as partículas de gelo dos cometas que percorrem o universo. Lutar contra o tempo: eis uma expressão tão comum quanto tantas outras que apregoam a voracidade do tempo; o tempo urge, ou como naquela história maravilhosa em que o Coelho Branco anuncia que tem pressa, muita pressa e passa por um buraco na cerca. Nesta mesma história, o tempo revolta-se e é interessante revêla, como um ilusório retorno ao tempo quando a lemos pela primeira vez: - Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço – disse o Chapeleiro – não falaria em gastá-lo como se fosse ele uma coisa. Ele é alguém.

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- Não sei o que você quer dizer – respondeu Alice. - Claro que não sabe! – disse o Chapeleiro, inclinando a cabeça para trás com desdém. – Diria mesmo que você jamais falou com o Tempo! - Talvez não - replicou Alice cautelosamente – mas sei que tenho de marcar o tempo quando estudo música. - Ah! Olhe aí o motivo! – disse o Chapeleiro. – O Tempo não suporta ser marcado como se fosse gado. Mas se você vivesse com ele em boas pazes, ele faria qualquer coisa que você quisesse com o relógio. Por exemplo: vamos dizer que fossem nove horas da manhã, que é a hora de estudar. Você teria apenas que insinuar alguma coisa no ouvido do Tempo, e o ponteiro correria num piscar de olhos: uma hora e meia, hora do almoço. ... A revolta do Tempo contra os que queriam matar o tempo. O passa tempo, os que não se ambientam no tempo que escorre inelutável, tempo líquido e tempo gasoso. As coisas impregnam-se de tempo, mas não as pessoas, porque elas são feitas de tempo. Tudo mais a nossa volta é expressão do tempo. A coquetterie, por exemplo, é uma outra forma de resistência, confronta-se com a moda, que é o tempo no presente, como nos fala N’Diaye (1989:32): A coquetterie, ao contrário da moda, que é o próprio movimento de um perpétuo exceder-se, é sempre um pouco lenta, defasada. Poderíamos ir a ponto de dizer que a coquetterie se liga apenas a um efeito fora de moda, e só fora de moda, daquilo que ainda não tem um caráter histórico, ou que não dormiu o suficiente para ser apanhado pelo eterno retorno do rétro e nunca o será porque a afeição e a sentimentalidade que o fizeram sair da moda não podem fazê-lo encontrá-la de novo. A sentimentalidade não pode viver o tempo todo na moda. O tempo não tolera o que não o acompanha, o que se faz sem ele. Ora, ele impregna-se em algo, mas jamais em uma pessoa, em que pese o mito de Ansverus, o Judeu Errante (Appolinaire, 1967), porém, por mais denso que ele seja, um dia dissipar-se-á fazendo daquela coisa algo que não mais é o que antes significava. O tempo voa, o tempo passa por nós, descarta-nos, mas simultaneamente nos interpreta e nos representa. A autora acima faz referência a Proust; ninguém como ele buscou o tempo perdido: Toda a coquetterie, em Proust, é atrasada, como as roupas déshabillés de Odete, essas roupas que fazem dizer aos jovens que com ela se cruzam os Campos Elíseos: “A senhora de Swann é uma época, não é verdade?”, quando ela está mais bela do que nunca. O fora da moda – só fora de moda – traz a obsessão do tempo que passa, a nostalgia mais querida. (Ibid.: 32) Resistimos ao tempo com a matéria do próprio tempo, quando nos impregnamos dele. Usamos o tempo contra o tempo, no jogo de palavras, para ganhar tempo, mas sabemos que ele é transcendente enquanto em nós a morte é imanente. O resultado é inelutável: morremos. De nossa morte, outro esforço para permanecermos na memória: o epitáfio, que fora da memória dos outros, para quem fomos significativos – em alguns casos ou acontecimento – perdura, pois todos passarão para o lugar sem tempo quando se transformarem em nada, porque da existência só o vivido tem realmente significado. Para Huxley (1995:79), “o tempo destrói tudo que cria, e o fim de toda seqüência temporal é, para os envolvidos nela, alguma forma de

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morte”. É importante reconhecer que para o homem a morte é apenas uma possibilidade, jamais uma certeza racionalizada. A morte não pode ser racionalmente compreendida senão pelo outro - jamais pelo eu. O eu sabe da morte com paixão, com dor, ou mesmo com uma estranha alegria ou melancolia; mas, repetimos, jamais com a razão. Para Simmel, em sua Métaphysique de la mort (1988: 171): ... A morte pode habitar a vida, súbito, sem que ela seja a cada instante constatada, ela ou uma mínima partícula dela, enquanto realidade. Mas a cada instante da vida nós somos os seres que irão morrer. Isso porque a morte é substância da vida e vida para o ser humano é existência, e sempre diante da morte. Retornemos a Borges (1994: 365): La eternidad es una más copiosa invención. Es verdad que no es concebible, pero el humilde tiempo sucesivo tampoco lo es. Negar la eternidad, suponer la vasta aniquilación de los años cargados de ciudades, de ríos, y de júbilos, no es menos increíble que imaginar su total salvamento. Em El Aleph (ob. cit.: 541), Borges fala da Cidade dos Imortais, e diz-nos que ser imortal é de pouco valor; menos o homem, todas as criaturas ignoram a morte. O divino, o terrível, o incompreensível é saber que se é imortal. O espantoso é saber que um só homem imortal é ser todos os homens. Ali, sem a substância da morte as coisas não fazem sentido, a cultura, ela própria, deixa de ser a razão da existência – a sua produção e o seu consumo, a ambiência por excelência. Na cidade dos imortais, a própria cidade não faz mais sentido para aqueles que não mais dependem do tempo ou que dele estão dissociados: Um homem despencou em uma fenda abaixo; não podia gritar, lastimarse e nem morrer, porém lhe abrasava a sede; antes que lhe jogassem uma corda passaram-se setenta anos. Tampouco lhe interessava o seu próprio destino. O corpo era um submisso animal doméstico e lhe bastava, a cada mês, a migalha de umas poucas horas de sono, de um pouco de água e de nacos de carne... . De um ponto de vista metafísico, o reconhecimento da imortalidade é também o da finitude divina. Estar além do tempo é um privilégio dos deuses, os únicos “seres” que poderiam habitar o vazio cósmico a priori. Ao entrar no campo temporal da criação, os próprios deuses condenam-se à finitude do julgamento implacável do Tempo. Os deuses diante do tempo mudam, pois as suas criaturas não os reconheceriam se assim não o fizessem, mas, por estranha ironia, quando mudam, perdem suas características criadoras e empalidecem, como se esfumassassem na névoa do tempo, nos confins do universo. O tempo condena os deuses e propõe ao homem a auto-divinização. Nesta posição, o homem transforma o tempo em dinheiro, em produto, em uma mercadoria como outra qualquer - talvez a mais valiosa. A resistência ao tempo é a condensação do tempo no fruir da vida, no viver

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intensamente uma simultaneidade de acontecimentos. Não mais os tempos fragmentados para isso ou aquilo, ou para cada coisa a seu tempo; não mais os tempos das estações do ano, do desabrochar das flores e da maturação dos frutos, mas o tempo contínuo, gerundial, do presente contínuo, como a esperança do poeta Geir Campos: Não faz mal que amanheça devagar, /as flores não têm pressa nem os frutos: /sabem que a vagareza dos minutos/ adoça mais o outono por chegar. / Portanto não faz mal que devagar/ o dia vença a noite em seus redutos/ de leste – o que nos cabe é ter enxutos/ os olhos e a intenção de madrugar. (1981: 22) Outro poeta nos diz, com a ênfase na decisão divina do destino, o mais significativo de todos, porque dali sairia a criação: “Não há nada como o tempo para passar...”. Assim registra o poeta Vinícios de Moraes, ao fixar o sábado, um marco no tempo semanal: “E para não ficar com as vastas mãos abanando/ Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança/ Possivelmente, isto é, muito provavelmente/ Porque era Sábado”. Outro poeta, ao lembrar-se de que: No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/ eu era feliz e ninguém estava morto./ Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,/ e a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião/ qualquer... Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!.../ O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... (1965: 379) E um outro que também reconhece o tempo: “Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus./ Tempo de absoluta depuração./ Tempo em que não se diz mais: meu amor...” (Drummond de Andrade). O Tempo está em toda parte e é pura ironia desdenhar dele. Transgredí-lo: eis o nosso desafio, pois somos matéria de memória e produtores de memória, e tudo isso é tempo. Para fecharmos, vale a pena, mais uma vez, recorrer ao Senhor do Tempo, Borges: É sabido que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação dessa faculdade comporta a estupidez. Cabe pensar o mesmo do universo. Sem uma eternidade, sem um espelho delicado e secreto do que se passou pelas almas, a história universal é tempo perdido, e nela nossa história pessoal – que nos torna fantasmagóricos incomodamente.

1 - Alusão ao poema “Cão sem pluma”, do poeta João Cabral de Mello Neto.

Seguimos o tempo, a estética do Tempo. A morte nos dá essa certeza, cruel, por vezes, de que o tempo conspira contra nós. Voltamos uma vez mais à morte como intrínseca e assim compreendemos todos os suicidas, estes sim, donos de um tempo enorme que nos lembra um romance de Catherine Anne Porter: “Só os mortos permanecem jovens”. Enfim, com o velho e bom Manuel Bandeira, o último verso de seu poema “Preparação para a morte”: “Bendita seja a morte, que é o fim de todos os milagres”. Aqui o tempo pára, só para quem morre. O tempo desse alguém é agora memória de outros, pois o tempo não morre, perpassa-nos a todos como sutil florete, ou rio, espada ou como uma “rua é passada por um cachorro”1 – tempo através de nós, implacavelmente tempo, feito de tudo aquilo que nos foge e é essa nossa capacidade de pegar o fugidio, o que desliza entre os dedos da mão, como a água da fonte, como a tênue matéria dos fantasmas, como o brilho que nos cega o olhar, como o que escapa de nosso sorriso ou de nossos suspiros, como tudo o que se vai sem adeuses... Só a poesia capta o tempo, a poética do tempo, como em Anísio Melhor (1998:59):

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Amor, você em nada mudou e os sinos muito longe confirmando o imóvel ritmo do mar das palavras do tempo. O tempo passa e vai-se e urge, sempre! “Tenho pressa, pressa, pressa, pressa....” e lá se vai o Coelho Branco apressado para o meu próprio julgamento....

Bibliografia APOLLINEIRE, Guillaume . Le Passant de Prague. In L’hérésiarque et Cie. Paris: Éditions Stock, 1967. BORGES, Jorge Luis. “Historia de la eternidad”. In Obras completas, vol. 1. Buenos Aires : Emecé Editores, 20ª ed., 1994. CAMPOS, Geir. Tarefa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas, através do espelho e o Alice encontrou lá. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Fontana/Summus, 1977. HALL, Edward T. La danse de la vie – temps culturel, temp vécu. Traduit de l´Anglais par Anne-Lise Hacker. Paris: Édition du Seuil, 1983. HUXLEY, Aldous. “Algumas reflexões sobre o tempo”. In Huxley e Deus. Trad. Murilo Nunes de Azevedo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. N’DIAYE, Catherine. A Coquetterie ou a paixão do pormenor. Trad. Artur Lopes Cardoso. Lousã, Portugal : Edições 70, 1989. PESSOA, Fernando. “Aniversário”. Poesia de Álvaro de Campos. In Fernando Pessoa/Ficções do Interlúdio. Obra Poética: Rio de Janeiro: Aguilar, 1965. REEVES, Hubert. A hora do deslumbramento: o universo tem um sentido? Trad. Rosemary Coasthek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. SIMMEL, Georg. La Tragédie de la culture. Introduction de Vladimir Jankélévitch; traduit de l’ Allemand par Sabine Cornille et Philippe Ivernel. Paris : Rivage poche, 1988. VERGER, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 1981, p. 34.

______________________________________ * Carlos Geraldo D’Andrea Espinheira (Gey Espinheira) é Doutor em Sociologia pela USP, Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UfBa.

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IDÉIAS

A ESCRITURA SILENCIOSA : UMA ANÁLISE FIL OSÓFICA DO DISCURSO FILOSÓFICA MÍSTICO POR SILVIA PIMENTA VELLOSO ROCHA*

Resumo: Qual é o estatuto do discurso místico, se a experiência que o inspira é por definição indizível? O silêncio não é conseqüência da experiência mística, mas sua causa: o êxtase é a experiência de uma exterioridade radical da linguagem, e para dizer o silêncio, qualquer palavra é excessiva. Ora, o paradoxo é uma estrutura que produz o efeito aparentemente impossível de dizer sem dizer. O discurso místico seria, então, a escrita paradoxal que busca produzir silêncio a partir da linguagem.

“As palavras da verdade parecem paradoxais” Lao-Tse A experiência mística tem sido descrita como aquilo que recusa toda linguagem, como aquilo que é impossível de ser expresso ou comunicado. Assim, a idéia de um discurso místico parece constituir, senão uma impossibilidade, ao menos um paradoxo: como falar de alguma coisa que, por definição, está além da linguagem? Este paradoxo é apontado por Bataille: A experiência1 é o colocar em jogo (à prova), na febre e na angústia, aquilo que um homem sabe pelo fato de ser. Caso, nesta febre, ele tenha qualquer apreensão que seja, não pode dizer: ‘eu vi isto, o que vi é tal’; não pode dizer: ‘eu vi Deus, o absoluto ou o fundo dos mundos’,ele só pode dizer ‘o que vi escapa ao entendimento’, e Deus, o absoluto, o fundo dos mundos não são nada se não forem categorias do entendimento. 2

1 - Embora, nessa passagem, o autor não empregue o adjetivo “místico,” a experiência interior que é objeto dessa análise tem todas as características que procuramos indicar aqui: o caráter extático, a impossibilidade de representação, sua proximidade com uma revelação. 2 - Bataille, G. pg 12. 3 - Watts, A. - pg 13 e seguintes

Não apenas aquilo que é visto escapa às categorias do entendimento: a experiência mística é um êxtase, ou seja, uma saída de si, um aniquilamento do eu, em que a própria noção de um sujeito que está no centro da experiência deixa de ter sentido. Destituindo o lugar do eu, a experiência mística destitui simultaneamente o ato que faria a mediação entre o eu e um isto, e o próprio termo visão torna-se excessivo. Já não há propriamente um sujeito e um objeto, mas uma fusão entre estas duas instâncias da experiência. Nesse sentido, o discurso místico é por definição negativo, já que consiste em afirmar que aquilo de que se pretende falar está além de toda possibilidade de discurso. É por isso que, no limite, todo discurso místico pode ser reduzido à fórmula “isto é isto”3 : pura tautologia, pura insistência da linguagem que, impossibilitada de dizer seu objeto, volta-se sobre si mesma. Com efeito, em muitas tradições, a

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experiência mística não dá lugar apenas à beatitude: é também uma experiência de falência da razão, de desconhecimento radical e de incompreensão. Desse ponto de vista, a incompreensão não se define negativamente como uma deficiência do pensamento, mas indica uma apreensão de outra ordem que não a racional. A possibilidade de compreensão é questionada não na sua extensão ou eficácia, mas em seus próprios princípios - a ponto de que, no limite, conhecer não mais significa conhecer, como afirma o Tao Te King: “Conhecer não é conhecer; eis a excelência. Não conhecer é conhecer: eis o erro”. 4 Esse encontro com o inefável não remete necessariamente a uma instância transcendente ou supra-sensível. Nesse sentido, Bataille chama a atenção para um ponto fundamental: o problema que a descrição do êxtase místico levanta não é, em última instância, diferente do que se coloca para qualquer outro objeto do mundo; a diferença é que para estes últimos, dispomos de representações já cristalizadas que possibilitam a comunicação: Do êxtase, é fácil dizer que não se pode falar. Há nele um elemento que não se pode reduzir, que permanece ‘inefável’, mas o êxtase, nisso, não difere de outras formas: tanto dele - ou mais - quanto do riso, do amor físico - ou das coisas - posso ter, comunicar o sentimento preciso; a dificuldade, todavia, é que sendo menos comumente sentido do que o riso ou as coisas, o que digo disso não pode ser familiar, facilmente reconhecível.5 A rigor, a dificuldade encontrada para descrever o êxtase místico é a mesma com que nos deparamos ao tentar dar conta de qualquer objeto do qual não se tenha uma representação prévia. Poderíamos, portanto, levantar a hipótese de que a visão extática não é apenas a experiência de alguma coisa que não se pode representar, mas a percepção da impossibilidade de se representar todas as coisas. Assim, o que caracteriza o êxtase não é a contemplação de um objeto mais inefável do que qualquer outro (como Deus, o ser, o absoluto), mas a percepção do caráter “inefável” - ou seja, singular e inapreensível - de todo e qualquer objeto. O que é experimentado como fonte do êxtase não é uma instância transcendente, mas a própria existência sensível, percebida subitamente como intensamente desejável e, sobretudo, como intensamente real. 6 Esta concepção está presente em diversas tradições místicas em que a visão extática dá lugar a uma revelação, mas o que caracteriza tal revelação é a descoberta de que nada há a ser revelado; este é, por exemplo, o sentido do satori, a experiência de iluminação do zen budismo: “Quando se tem o satori, pode-se compreender que não existe o satori” 7. “Nada há a ser encontrado no mundo do satori; não há nem homem nem sequer o Buda”. 8 Desta perspectiva, o que distingue o êxtase místico da experiência cotidiana não é um acréscimo, mas uma diminuição: não há aí a intervenção de qualquer instância transcendente ao real, mas apenas a dissipação temporária das representações que mediam nossa percepção cotidiana do mundo. O que torna essa experiência inefável não é a intervenção de qualquer instância transcendente ou supra-sensível, mas a ausência temporária daquilo que habitualmente media e estrutura nossa percepção do real: a linguagem. O que se revela a partir desta experiência é o próprio real, despojado da camada de linguagem e de sentido que habitualmente o recobre. O que essa experiência revela não é um além do mundo, mas o próprio mundo percebido subitamente como insignificante e impossível de ser apreendido pelo

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4 - Tao Te King, pg 146 5 - Bataille, G - pg 132 6 - Notemos aqui que esta visão se aproxima muito daquela defendida por Clément Rosset. Partindo de uma concepção materialista, Rosset concebe a experiência do real como a quebra das representações que habitualmente mediam nossa apreensão do mundo; dando a ver o mundo em sua singularidade e insignificância. Essa interpretação permite compreender a experiência mística como inteiramente imanente. 7 - Daishi, Y. 8 - Daishi, Y. - pg 252

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pensamento. A partir daí, podemos dizer que o silêncio não é uma conseqüência da experiência mística, mas sua causa: o êxtase místico é uma experiência do silêncio, de uma exterioridade radical - embora temporária - da linguagem. Ora, para dizer o silêncio, qualquer palavra é, por definição, excessiva. A própria palavra silêncio testemunha esta contradição, como aponta Bataille: “Tal é, em nós, o trabalho do discurso. Esta dificuldade se exprime assim: a palavra silêncio é ainda um ruído, falar é, em si mesmo, imaginar conhecer, e para não mais conhecer necessitaria não mais falar”.9 Esta afirmação de Bataille parece ratificar a conhecida fórmula de Wittgenstein: aquilo que não se pode falar, deve-se calar. Mas ocorre que “não mais falar” é insuficiente para garantir o silêncio. A linguagem não é apenas fala, ou seja, não ocorre somente na sua atualização; existe também em estado virtual, projetada sobre o mundo, estruturando e ordenando a nossa percepção. O próprio sujeito, aliás, é por ela constituído; aquilo que se chama comumente de silêncio não equivale a uma ausência de língua, mas apenas a uma ausência de fala. O silêncio que a experiência mística põe em cena é de outra ordem, já não consiste numa simples ausência de fala: pressupõe a desconstrução do mundo tal como o percebemos habitualmente, isto é, um mundo submetido ao trabalho de estruturação e ordenação da língua. Pressupõe, ainda, o aniquilamento do sujeito, entendido como o centro que opera os mecanismos de codificação e de representação do mundo. Ora, este silêncio não pode ser restituído pela simples ausência de verbalização. O discurso místico teria então a função aparentemente impossível de for mular, pela linguagem, a experiência de uma ausência radical da linguagem. Desta perspectiva, a questão que se coloca é outra: trata-se não mais de saber se a linguagem pode falar de um além da linguagem, mas se a linguagem pode não falar. Em outras palavras, tratase de saber se a linguagem pode ser usada para produzir silêncio.

* * *

9 - Bataille, G. - pg 21 10 - Blanchot, M. - pg 152 11 - Deleuze, G - pg 1 12 - Tao Te King, pg 33

Ora, o paradoxo consiste precisamente em um uso da linguagem que obtém o efeito aparentemente impossível (ao menos do ponto de vista da doxa) de dizer sem dizer. Paradoxo não é sinônimo de ambigüidade. Como aponta Blanchot, na verdade, estes termos são opostos: a ambigüidade caracteriza-se pela presença de dois significados diferentes e pela impossibilidade de nos decidirmos por um em detrimento do outro; assim, implica em imprecisão e indefinição. O paradoxo, ao contrário, consiste na proposição clara e definida de dois sentidos contraditórios, e desta forma, pressupõe “a maior claridade na maior contrariedade”.10 Na definição proposta por Deleuze, “o bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo”.11 O discurso místico é um discurso paradoxal na medida em que faz convergir numa mesma proposição sentidos que o senso comum postula como antagônicos ou excludentes - como ilustra exemplarmente este verso do Tao Te King:

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Pois o ser e o nada se engendram mutuamente O fácil e o difícil se completam O curto e o comprido se formam um pelo outro O alto e o baixo se tocam A voz e o som se harmonizam Sucedem-se o antes e o depois.12 De acordo com Deleuze, o paradoxo leva ao absurdo, que significa não exatamente uma ausência de sentido, mas uma impossibilidade da significação. Na ordem da doxa, a linguagem produz um sentido único, na medida em que associa um significante a determinado significado; ao enunciar dois sentidos contraditórios numa mesma proposição, o paradoxo provoca um curto-circuito nos mecanismos de significação. Assim, na medida em que designa um absurdo ou um objeto impossível, a proposição paradoxal enuncia algo que só é possível na linguagem. De forma análoga, os koans que caracterizam a tradição zen-budista têm o efeito de formular uma proposição insustentável ou absurda do ponto de vista da significação. É por isso que quando o discípulo faz ao mestre uma pergunta da ordem da significação, o mestre responde com um puro ato - por exemplo, batendo no discípulo com um bastão. Esta atitude visa quebrar os mecanismos de significação que caracterizam a doxa, e assim provocar a iluminação. 13 Postular o caráter paradoxal do discurso místico significa dizer que ele põe em cena uma escritura negativa - no mesmo sentido em que se pode falar numa teologia negativa. E aqui é preciso esclarecer: se o paradoxo não equivale à ambigüidade, tampouco se identifica com a negação. A negação ainda é da ordem da doxa, ainda é a proposição de um único sentido. Manter-se na paradoxalidade significa impedir o sentido de se fixar, quer como afirmação, quer como negação. Nesse sentido, um dos textos fundamentais do zen-budismo recomenda: “O que se deve temer é que a nossa prática não degenere nos dois extremos da negação e da afirmação”.14 Se se pode dizer que o discurso místico constitui uma escritura negativa não é porque proceda por negações, mas porque nega aquilo que, do ponto de vista da doxa, caracteriza toda escritura: a produção de significação. Portanto, em última análise, além de paradoxal e negativo, o discurso místico é ainda insignificante. Mas essa idéia de um discurso insignificante, tal como apresentada aqui, distingue-se e mesmo opõe-se à pretensão de insignificância que, de acordo com Barthes, caracteriza os discursos realistas. Com efeito, como aponta o autor, a marca do realismo - presente por exemplo numa certa literatura, no discurso da história e do jornalismo - é a crença em uma linguagem transparente, invisível ou silenciosa, que em lugar de significar o real fosse capaz de apenas indicá-lo. 15 Sua ilusão fundamental reside no pressuposto de um real impregnado de sentido - ou seja, de um real em si mesmo significante, que a suposta transparência da linguagem permitiria revelar. O escritor realista pretende ignorar que a linguagem é um instrumento produtor de significação e, assim, põe em cena aquilo que Barthes denominou de efeito de real, em que a linguagem desaparece como trabalho e surge confundida com as coisas: é o próprio real que parece “falar” no texto.

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13 - Deleuze, G. - pg 139 14 - Daishi, Y - pg 214 15 - Barthes, R. (1988) - pgs 158 a 164 16 - Deleuze, G. - pgs 47 a 52

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Nada disso ocorre no discurso místico. Aqui, a falência da significação ocorre não para revelar um real impregnado de sentido, mas para revelar, precisamente, que aquilo de que se fala está privado de qualquer significado. É por isso que os discursos místicos lançam mão daquilo que Deleuze denomina de palavras em branco as quais, por sua vez, evocam a idéia de significante flutuante proposta por Lévi-Strauss: trata-se de termos que, em lugar de promover a relação entre a série de significantes e a de significados, promovendo o efeito de significação, permanecem flutuantes, vazios de qualquer significado.16 As palavras em branco são em si mesmas - se podemos dizer -termos paradoxais: não vêm designar um objeto ou evocar um significado, mas ocupar o lugar de alguma coisa que, precisamente, não pode ser nomeada ou designada, justamente porque está privada de todo significado. São exemplos de palavras em branco o mana das religiões polinésias; o brahman hindu, do qual se diz que é “nirguna”, além da qualidade; o ku no zen budismo, “muito vasto para ser definido por categorias”; o Tao, que é aquilo que, “embora eterno, não é possível nomear”; mas também o Deus da teologia negativa e da tradição mística cristã - um Deus privado de todos os atributos que o caracterizam no discurso metafísico, do qual nem por negação se pode falar, como na (anti-)definição de Dionísio o Areopagita: “Nem a razão pode atingi-lo, nem nomeá-lo, nem conhecêlo; não é nem a escuridão nem a luz, nem o falso nem o verdadeiro; nem pode qualquer afirmação ou negação ser-lhe aplicada”.17 Da mesma forma, este discurso paradoxal tampouco se identifica com a utopia de um grau zero da escritura apontada por Barthes 18: trata-se não mais de buscar um impossível silêncio da escritura (uma ausência de estilo), mas de atualizar uma escritura do silêncio. Trata-se, portanto, de duas acepções diferentes e mesmo opostas de uma linguagem insignificante: no primeiro caso - que caracteriza a hipótese metafísica de um mundo em si mesmo dotado de significação - a suposta transparência da linguagem dá a ver o sentido do real; no segundo caso - hipótese materialista - o silêncio da linguagem (da fala, do pensamento, da significação) dá a ver um real destituído de sentido. Dito de outra forma: no discurso realista, o que se busca é um silêncio da linguagem e uma fala do real; no discurso místico, o que ocorre é um silêncio do real e uma fala da linguagem. Finalmente, podemos dizer que a possibilidade de uma escritura silenciosa depende da acepção em que se toma o termo silêncio. Se este é definido como uma ausência de fala, um tal projeto está condenado ao fracasso: diante dele todo discurso será necessariamente traição. Se, ao contrário, o silêncio é uma ausência de linguagem, calar-se é insuficiente, uma vez que a linguagem aí permanece em estado virtual, projetada sobre o mundo e confundida com as coisas. Este silêncio deve ser induzido, produzido, provocado: deve ser criado com e pela linguagem. O discurso místico seria, então, esta escrita paradoxal que busca produzir silêncio a partir da linguagem.

17 - Happold, F.C. - pg 196 18 - Barthes, R. (1974) - pgs 159 e seguintes

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Bibliografia BARTHES, Roland. “A escritura e o silêncio”, In O Grau Zero da Escritura. São Paulo, Cultrix, 1974 ______. O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988 BATAILLE, Georges. A experiência interior. São Paulo, Atica, 1992 BLANCHOT, Maurice. L’Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969 DAISHI, Y.- Shodoka. O canto do satori imediato. São Paulo: Pensamento, s/d DELEUZE, Gilles. A Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva, 1988 HAPPOLLD, F.C. Dionysius the Areopagita. New York: Penguin, 1963 HINNELS, J.R. Dicionário das religiões. São Paulo: Ed. Cultrix, s/d LAO-TSE. Tao Te King. Brasilia: Ed. Coordenada, s/d ROSSET, Clément. Le démon de la tautologie. Paris: Minuit ______. L’Objet Singulier. Paris, Minuit, 1979 WATTS, Allan. O zen e a experiência mística. São Paulo: Cultrix, s/d

______________________________________ * Silvia Pimenta Velloso Rocha graduou-se em Ciências Sociais pela PUC-RJ e fez o Mestrado em Comunicação e Cultura da UFRJ. Sob a orientação de Clément Rosset, realizou uma pesquisa na Universidade de Nice que lhe conferiu o DEA em Filosofia e História das Idéias. Doutorou-se em Filosofia pela PUC-RJ. Publicou artigos em revistas especializadas no Brasil e no exterior (inclusive na publicação canadense De Philosophia). É autora de Os abismos da suspeita: Nietzsche e o perspectivismo (Relume Dumará, 2003). Lecionou em diversas universidades e atualmente é Professora Ajunta da UERJ.

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POÉTICA

LANCHE POR LÉA SALES*

Café com sonho é do que preciso agora. Implorar de um algum fio esquecedouro e, do outro, o açúcar: que me distraia mais uma vez. Ora, que tolice! - diz-me a manchete do jornal com letras grossas, grandes e negras Então achas que nesta xícara encontrarás algum poder que faça da vida, não-vida; da tua história, uma outra? Ou que sobre este prato haverá algum átomo ou quantum que reduza a parênteses o quanto de medo te contém? Não. Só o surto. Pois o corpo é este, a vida é esta. O medo, também.

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EFICÁCIA

O passado, esse que não é, te fez chorar. Não existe. Mas molda teus órgãos e teu jeito de andar. Segue uma quase não-lógica de uma quase-lembrança do que quase não foi. Memória é mesmo difícil de pensar.


LER KANT NO INVERNO

Era matéria de pensamento aquele frio transcendental que eu enxergava através da janela. Condição a priori da sensibilidade. Antes do que era anterior dizia tudo o que podia se passar entre a última margem da pele e o oco do estômago.

Desenhos de Paola Mazzinari

Fazer crítica: os limites de ser um corpo numa cidade enevoada.


DIÁL OGO ENTRE O DIÁLOGO CA TATÔNICO E O PROFES SOR CAT PROFESSOR DE FIL OSOFIA FILOSOFIA

- Mas eu ‘tava no limite do mundo, professor. E vi isso daí que o filósofo diz que não pode ser dito. - Impossível! Lá não podia ser. Ou bem se está no mundo ou bem se está morto. No limite, só o sujeito transcendental. - Bem, se era Sujeito Transcendental, Zé Ninguém, Fulano ou Benedito, eu não sei. Só sei que a matéria do limite é a angústia. E ela não pode mesmo ser dita.

______________________________________ * Léa Silveira Sales é doutoranda em filosofia no DFMC, UFSCar.

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IDÉIAS

UMA ANÁLISE DA TÉCNICA NA CONCEPÇÃO DE HERBERT MARCUSE POR PAULO SÉRGIO GOMES SOARES*

Herbert Marcuse

Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir o papel da técnica nas sociedades capitalistas na visão de Herbert Marcuse. Para ele, a técnica é neutra e tem como função emancipar gradualmente as forças produtivas do trabalho abstrato, mas nas sociedades capitalistas, devido à racionalidade tecnológica (um tipo de racionalidade perversa) originada com a Revolução Industrial, ela tem servido para a dominação da natureza e, por conseguinte, do próprio homem ao provocar uma mudança de valores que o conduz a uma servidão voluntária.

1 - Adiante, veremos que quando Marcuse fala de técnica está se referindo à maquinaria de maneira geral e quando fala de tecnologia refere-se a um sistema de dominação no qual ela está inserida.

O mundo, após a revolução industrial, enriqueceu-se de possibilidades materiais para os homens, os quais poderiam explorá-las ao máximo. Muitos viram na máquina uma possibilidade de enriquecer, outros viram uma maneira de eliminar o trabalho árduo, uma grande maioria queria apenas um emprego e somente alguns notaram o seu potencial de exploração. Embora as pessoas tivessem maneiras diferentes de perceber a realidade, todas se viram diante de um mundo que sofria profundas mudanças econômicas e sociais às quais teriam de se adaptar. O homem adaptou-se e o mundo não parou de produzir grandes mudanças devido à evolução da ciência em suas várias esferas, lançando o ser humano numa era em que a tecnologia ocupa todos os espaços da vida, no trabalho, no lazer, na qualidade de vida, na alimentação, etc. Contudo, uma sociedade completamente adaptada aos valores capitalistas e cientificistas confia nesses valores sem refletir sobre as suas conseqüências. Nesse aspecto, a máquina veio não somente demonstrar a capacidade humana de controlar a natureza, mas também melhorar ou piorar o mundo, dependendo do uso que se faz da técnica. O fato de poder ser usada tanto para o bem quanto para o mal produz a neutralidade da técnica1. Herbert Marcuse (1967), ao analisar a função da técnica, observou que ela poderia ser somente um meio para se atingir um fim, mas com um grande potencial de condenar os homens a uma servidão voluntária por fazer parte de uma racionalidade perversa nas sociedades capitalistas. Por esse motivo, ele não vê neutralidade alguma na técnica, embora acredite que ela possa ser neutra e servir

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Engrenagem (Modificado)

como instrumento fundamental para a emancipação das forças produtivas. Marcuse argumenta que para isso ocorrer é preciso eliminar os valores capitalistas do mundo e sobre eles fundar um tipo de racionalidade diferente da racionalidade tecnológica, que possa servir a todos os homens. O atual estágio de evolução material em que se encontra a humanidade é fruto da crescente transformação e controle da natureza, almejados desde Bacon, e perfaz a maior conquista da sociedade ocidental. E no entanto, o controle da natureza facilitou e permitiu a exploração dos homens, pois estes tornaram-se força produtiva disponível e pronta para gerar capital e não somente para transformar a natureza. Diversos pensadores, como Marx e Engels, no século XIX, denunciaram este fato e vislumbraram uma saída para um mundo mais justo a partir da conscientização dos trabalhadores, que seriam os agentes de possíveis mudanças na estrutura social e na organização do trabalho. Contudo, mais do que a exploração das forças produtivas, o capitalismo trouxe consigo uma mudança de mentalidade que só pôde ser sentida e analisada posteriormente, com a perfeita adaptação dos indivíduos às condições de vida que lhes foram impostas. Nesse aspecto, Herbert Marcuse, mais de um século depois, percebeu que o capitalismo não produziu apenas mudanças econômicas e sociais, mas também lançou as bases para mudanças de valores nos indivíduos. Os indivíduos passaram a reproduzir os valores do capitalismo que pregavam acima de tudo o lucro, o conforto e melhorias substanciais na qualidade de vida. Mas isso era ilusório, porque não era para todos, embora a possibilidade fosse lançada para todos. Esses valores, uma vez introjetados e reproduzidos sem o devido questionamento, formaram os pilares de um novo tipo de racionalidade que Marcuse descreve como perversa, pois “forçou” os indivíduos a concorrerem entre si na busca de algo ilusório e condenou-os a uma servidão voluntária da qual não se sai quando se quer. A explicação do autor para esse problema recai sobre a técnica. Ela é essencial para o domínio da natureza, mas não pode ter esse mesmo propósito quando se volta para os homens. Desse modo, Marcuse tornou-se um crítico da técnica e da tecnologia por perceber que nelas não existe neutralidade e que o seu fim último favorece a dominação do homem pelo homem. A saída, para o referido autor, depende de uma mudança de racionalidade através de uma nova forma de utilização da técnica. Em sua concepção, a técnica deve manter a sua neutralidade e servir aos indivíduos da melhor maneira com a finalidade de livrá-los dos trabalhos penosos e dar-lhes tempo para as atividades prazerosas. Isso parece contraditório, mas o autor aceita perfeitamente o fato de que a investigação e a aplicação não se dissociam e é justamente por isso que a forma como a técnica é utilizada merece tanta atenção, pois dela depende a emancipação do homem. Sendo assim, ela não pode ser a base da servidão humana. Marcuse talvez tenha esbarrado nessa questão da neutralidade da técnica, pois não é possível influenciar na sua aplicação (mesmo que para o bem) e ao mesmo tempo mantê-la neutra. Por essa razão, não fica muito clara a forma como a técnica deve-se desenvolver, mas apenas que deve servir às forças produtivas para produzir a sua emancipação. Essa emancipação ocorreria quando houvesse um equilíbrio com a natureza dado pela utilização racional dos recursos naturais disponíveis e que os

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2 - Marcuse parece afirmar que esse conceito de revolução descarta o conceito de revolução do século XIX, que preconiza a tomada do poder pela classe trabalhadora e posterior instauração de uma nova forma de poder. O seu conceito de revolução envolve não uma tomada de poder, mas sim, tomada de consciência – uma mudança de mentalidade. Porém, essa revolução preconiza reações contra a sociedade vigente devido a insatisfações com os rumos do capitalismo mundial (guerras, miséria, preconceito, exploração, desperdício etc) e a percepção de que pode haver mudanças. Um exemplo disso foi a revolução estudantil de 1968. 3 - O livro, que possui esse título, é uma coletânea de textos, alguns inéditos até recentemente, escritos nos anos 40, nos EUA. Em particular, esse texto foi escrito em 1941.

benefícios servissem a toda humanidade. Para tanto, Marcuse (1977) diz ser necessário uma revolução2, que ocorreria gradualmente conforme se enfraquecesse a economia capitalista mundial. Ora, a racionalidade tecnológica é a pedra que obstrui o caminho dos homens para um mundo com uma organização social melhor estruturada. Ela produz nos homens um tipo de repressão mental que impede o projeto de uma sociedade emancipada e com valores diferentes dos capitalistas. Contudo, esse tipo de racionalidade que surgiu no seio do capitalismo ocidental pode ser eliminado se a técnica servir aos âmbitos sociais. Marcuse (1999) constatou que a racionalidade tecnológica teve início com a Revolução Industrial que, por sua vez, produziu novas maneiras do homem ver o mundo e de se adaptar a ele, absorvendo o seu tipo de racionalidade, mas não deixou de acreditar que existem alternativas que podem gerar mudanças. Em um de seus trabalhos, intitulado Tecnologia, guerra e fascismo3, Marcuse (1999) afirma que a passagem do capitalismo industrial para o capitalismo monopolista permitiu o surgimento de um novo tipo de racionalidade que afetou completamente as relações sociais ao produzir um novo tipo de indivíduo com uma mentalidade diferente da tradicional. A racionalidade tradicional e os padrões de individualidade nos séculos XVI e XVII moldaram os indivíduos com valores e padrões que lhes conferiam raciocínio e liberdade de pensamento (liberalismo burguês), cabendo à sociedade eliminar as restrições à ação racional. Nesse tipo de racionalidade, o interesse próprio muitas vezes não coincidia com o interesse racional propagados pela ordem social dominante, o que poderia provocar a crítica ou a busca de novos valores que pudessem ajustarse ao seu interesse ou ainda poderia provocar a subversão dos indivíduos. Para evitar os conflitos, a sociedade adotou um estilo liberal, com um ambiente social e econômico favorável à racionalidade individualista. Contudo, o poder tecnológico expandiu-se e criou novas maneiras de produção as quais, por sua vez, conduziram a um novo padrão de vida. Surgiu então, uma nova racionalidade, que Marcuse chama de racionalidade tecnológica, originada com o capitalismo monopolista e que propiciou a formação de novos padrões de individualidade à medida que o indivíduo econômico, livre, burguês, assentado sobre o capitalismo industrial foi suplantado por um indivíduo adaptado à máquina, eficiente e submisso. A mecanização e a racionalização das grandes indústrias estabeleceram o domínio da sociedade sobre a natureza, mas aboliram o indivíduo econômico livre. Na sociedade industrial, o indivíduo econômico, livre, burguês exercia a sua liberdade e a sua individualidade. Já no capitalismo monopolista, cabia ao indivíduo adaptar-se às novas condições e às exigências do mercado. Contudo, Marcuse diz que esse novo indivíduo eficiente fundiu-se à sociedade de massas adaptando-se a ela e tornando-se submisso ao aparato industrial. “A individualidade, no entanto, não desapareceu. O sujeito econômico livre, em vez disso, tornou-se objeto de organização e coordenação em larga escala, e o avanço individual se transformou em eficiência padronizada” (Marcuse, 1999: 78). A sua liberdade ficou restrita aos meios que escolheu para atingir as suas metas dentro das possibilidades oferecidas pelo capitalismo monopolista. A submissão ao aparato não foi sentida pelos indivíduos, mesmo porque o processo de instrumentalização já era uma característica da sociedade capitalista industrial que os forçava a concorrer. Em suma, ali já estava sendo gestado o indivíduo concorrencial do capitalismo monopolista, um indivíduo que não se preocuparia

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mais com os outros e nem com o todo e que se fecharia na vida privada, encerrado em si mesmo. Como conseqüência disso, a vida política foi negligenciada e colocou um ponto final na vida do homem público preocupado com os problemas sociais. O mundo racionalizou-se a tal ponto que o indivíduo não poderia fazer nada melhor do que se adaptar a ele sem reservas. Para que se chegasse a esse estado de coisas, a tecnologia foi um fator determinante, pois, na era da máquina, ela vincula-se ao mundo da produção capitalista, sendo a personificação da racionalidade e da eficiência, além de se constituir em instrumento de controle e dominação. Por isso, Marcuse define a tecnologia como sendo um sistema de dominação ideológica. No entanto, é preciso salientar que não existe uma coerção externa, oriunda da máquina, tolhendo a individualidade, mas uma racionalidade introjetada que se faz sentir em todas as esferas da vida, aproveitando-se do fato de que as reações humanas possuem padrões confiáveis, isto é, hábitos emocionais fixos. “É precisamente a excessiva adaptabilidade do organismo humano que permite alargar e perpetuar os controles sociais sobre os modos de comportamento e de satisfação” (Marcuse, 1977: 32). Marcuse explica que as organizações dominantes mantêm seu poder identificando-se com as crenças e os desejos dos indivíduos, os quais são “treinados” para identificar suas crenças com a das organizações. Enfim, “tudo contribui para transformar os instintos, os desejos e pensamentos humanos em canais que alimentam o aparato” (Marcuse, 1999: 8l). Até mesmo as relações humanas passam a ser intermediadas pela máquina, que absorve a libido dos indivíduos, reduzindo, assim, os vínculos de solidariedade. A racionalidade da máquina apresenta um conteúdo social que gera padrões de comportamento que promovem a competitividade, uma vez que aqueles que se mostram mais eficientes no trabalho podem ser melhor remunerados ou ainda ascender na escala hierárquica. Desse modo, pode-se dizer que o aparato industrial, isto é, a racionalidade do processo de trabalho na empresa privada, em sua eficiência, passou a atuar como uma forma de controle e dominação (por intermédio da tecnologia) nas várias esferas da vida e a razão tornou-se uma forma de atividade que apenas perpetua esses valores em busca do “sucesso” e do bem-estar. Isso leva Marcuse (1967) a pensar, em A ideologia da sociedade industrial, numa sociedade unidimensional, cuja racionalidade fundamenta-se na conveniência e eficiência, cobrando do indivíduo apenas a submissão e dando-lhe em troca o conforto. Dessa forma, a dominação aparece como a sujeição dos indivíduos ao aparato técnico que, por conseguinte, ou pelo menos em tese, oferece-lhes uma “melhoria” de vida. Os indivíduos servem e têm a possibilidade de conseguir o que querem em troca, embora a maioria nada consiga. Segundo Marcuse (1967), no pós-guerra4, tanto os países socialistas quanto os capitalistas organizaram-se de forma errada e o problema gerado pela racionalidade tecnológica parece ter se agravado, pois a crescente industrialização gerou uma nova estrutura social ainda mais coesa, de cunho científico e racional, que conduziu a uma dominação crescente da natureza e do próprio homem. Atingiu-se uma forma de racionalização que ao mesmo tempo libertou e escravizou os homens, já que fez o padrão de vida aumentar sem eliminar as características de opressão do sistema. Em tudo parece haver um esforço científico de controle para eliminar o desperdício, padronizar e intensificar a produção, exigindo do trabalhador uma

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4 - Marcuse se refere à Segunda Guerra Mundial.

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eficiência lucrativa, cuja realização final é um individualismo que tende a se espalhar por toda a massa de trabalhadores. Parece que todos os indivíduos agora concorrem pelo conforto, indiferentes e insensíveis ao “impacto do pensamento crítico” (Marcuse, 1999: 86). Este último, o pensamento crítico, enfraqueceu-se com o crescimento do aparato industrial à medida que houve uma introjeção dos valores da racionalidade tecnológica pelos indivíduos. Em resumo, os indivíduos foram

5 - Pelo menos de um ponto de vista teórico.

incorporados ao aparato. Marcuse (1967), nesse ponto, teoriza sobre uma sociedade fordista que prega o bem-estar social e na qual tudo funciona da melhor maneira - uma sociedade aparentemente sem problemas, pois domina a natureza e controla os homens. A essa sociedade ele dá o nome de unidimensional, por ser acrítica, sem espírito coletivo, sem oposição... Em princípio, Marcuse parece não oferecer alternativas de mudança, já que “a razão encontrou o seu túmulo no sistema de controle, produção e consumo padronizados” (1999: 84). Contudo, o próprio autor diz que o homem unidimensional que vive numa sociedade unidimensional pode oscilar entre duas alternativas, a saber, que a sociedade é coesa e capaz de evitar qualquer transformação, cabendo a ele aceitá-la tal como é ou acreditar que há forças que podem romper essa coesão5. Parece que o homem, pela forma como as relações sociais ocorrem nas sociedades ocidentais, aceita as condições que lhe são dadas e abre mão de sua liberdade em função das possibilidades de conforto oferecidas pela sociedade unidimensional, fator que sugere a ausência de alternativa. O fato é que a ciência, que vigora nas sociedades capitalistas, tornou o mundo destituído de qualidades, restando somente os conceitos quantitativos e mensuráveis matematicamente. Por isso, ela mostra-se tão eficiente e coesa e, ao mesmo tempo, promissora para aqueles cujo êxito material e o lucro estão acima da humanização. O que impulsiona a idéia de eficiência é a libertação da natureza pela técnica, que a fez perder suas qualidades de matéria para ser quantificada e ao mesmo tempo “(...) a sociedade livrou os homens da hierarquia ‘natural’ da dependência pessoal, relacionando-os entre si de acordo com qualidades quantificáveis – a saber, como unidades de força de trabalho abstratas, calculáveis em unidades de tempo” (Marcuse, 1967: 152/153). Essa racionalidade abstrata é destituída de valores, fator que a torna neutra, mesmo estando a serviço de uma razão prática que se perpetua pela dominação tecnológica nas sociedades capitalistas. Esse caráter instrumental da razão prática oferece uma interpretação inadequada e, devido isso, Marcuse rejeita tanto a neutralidade quanto a técnica vigente. Ele explica, em Um ensaio para a libertação (1977), que o tipo de racionalidade que os indivíduos reproduzem é determinado, acima de tudo, pela preservação de uma estrutura de classes camuflada pelos bens de consumo, tecnologias, etc., que sustentam a dominação e, ao mesmo tempo, geram a satisfação e o conforto. Os aparelhos tecnológicos em si não são repressivos, mas geram lucros e o consumo

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de todos os tipos de produtos é parte da própria existência e traduzem-se como parte de uma vida melhor. Porém, as pessoas não se dão conta de que esses empreendimentos justificam o sistema de dominação e que os seus valores não são espontâneos, mas adaptados e destituídos de autonomia. Assim, uma simples “escolha entre as necessidades sociais toma o vulto da liberdade” (idem: 26), escondendo a exploração atrás das novidades tecnológicas. Marcuse (1999) diz que toda essa dominação começou com o controle dentro das próprias indústrias, as quais passaram a garantir o controle por uma forma de “gerenciamento científico”6 que prima pela disciplina e por uma lei que pune as arbitrariedades, transformando a “força crítica” em “força de ajuste e submissão”. Dessa forma, as normas a serem seguidas tornaram-se mecânicas e preconizavam “(...) a máxima eficiência com a máxima conveniência, economizando tempo e energia, eliminando o desperdício, adaptando todos os meios a um fim, antecipando as conseqüências, sustentando a calculabilidade e a segurança” (idem: 80). Seguir as normas significa ser bem sucedido. Em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985), em confluência com Marcuse, afirmam que a técnica pode esclarecer e emancipar o homem, mas também pode subjugá-lo. Dela pode surgir, como “resultado, o mais elevado padrão de vida” (Marcuse, 1967: 144) que carrega consigo formas de controle social e que, por conseguinte, produzem um padrão de comportamento a ser seguido pelos homens. A partir de então, esse padrão de comportamento faz-se sentir nas forças produtivas, nas indústrias e também fora delas. No entanto, a técnica introduziu maneiras de melhorar a produtividade, embora pareça não poupar os homens da dominação e, justamente por isso, Marcuse diz que há algo de falso na racionalidade que foi produzida por esse sistema, oriundo da “forma pela qual os homens organizaram o trabalho social” (idem: 142). Ora, isso não representa problema para Marcuse, a ponto de querer eliminar a técnica do uso social como alguns comentadores, como Gérard Lebrun7, por exemplo, querem fazer entender, taxando-o de “tecnófobo”. Mas é isso um fato: a maneira como está organizada a produção tecnológica propicia não apenas a dominação da natureza, mas também a dos homens. Aliás, esse é o papel da racionalidade tecnológica. Assim sendo, a dominação parece inerente à sociedade unidimensional. Por isso, Marcuse define-a como sendo destituída de crítica, sem espírito coletivo e povoada de indivíduos passivos e conformados com a submissão. Contudo, é possível uma mudança, uma vez que as forças produtivas estão a serviço da produção tecnológica, sendo preciso mudar a concepção de técnica, que não é neutra, para que se elimine a dominação - embora somente uma mudança na concepção de técnica não baste. É preciso também uma revolução estrutural que acabe com o capitalismo e mude radicalmente a visão de mundo produtivista da civilização ocidental responsável pela depredação da natureza. Pode-se dizer que a dominação e a emancipação caminham juntas, sendo o uso da técnica um fator determinante para que uma ou outra prevaleça. Marcuse oscila entre dizer que as forças produtivas são neutras e dizer que não são, mesmo porque elas estão inseridas num todo social que reproduz a racionalidade tecnológica. A neutralidade da técnica, nesse caso, poderia ser resguardada. A mudança aponta para a criação de uma nova forma de racionalidade que, por conseguinte, conduza a uma nova técnica. Marcuse pretende mostrar que é possível recuperar novamente as qualidades que o mundo perdeu criando uma nova ciência embasada numa racionalidade diferente da instrumental. Mas não é só isso: ele propõe também uma mudança nos conceitos de civilização. Em Tecnologia, guerra e fascismo, Marcuse (1999) define e diferencia os conceitos de tecnologia e técnica nas sociedades industrializadas a fim de mostrar que uma apropriou-se da outra e que ambas tornaram-se parte de uma racionalidade perversa.

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6 - Marcuse faz alusão ao taylorismo. 7 - LEBRUN, G. “Sobre a tecnofobia”. In: NOVAES, A. A crise da razão. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

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Viaduto/ São Paulo

8 - Marcuse se refere ao nazismo, que com a racionalidade tecnológica levada às últimas conseqüências conduziu o mundo à barbárie e à destruição na Segunda Guerra Mundial.

A tecnologia apresenta-se como um sistema social, econômico e político que perfaz um sistema de dominação ideológica. Mas é preciso salientar que, em princípio, ela representava o estudo da técnica, perdendo essa conotação na fusão entre técnica e ciência – a tecnociência - expressa em última instância no que convém chamar tecnologia. Cabe somente frisar que não utilizaremos o termo tecnociência ao trabalharmos a teoria de Marcuse. A técnica, que engloba instrumentos e máquinas em geral, por sua vez, é neutra e apenas faz parte desse sistema ideológico e pode ser usada para o bem ou para o mal, sendo comum em todas as culturas, enquanto instrumento, enquanto um meio para atingir um fim. Aliás, para Marcuse a técnica é emancipadora e pode permitir que o homem resgate a sua “individualidade natural”, porque a sua função é melhorar a vida dos homens, livrando-os das tarefas árduas e proporcionando mais tempo para as atividades prazerosas. Porém, “a técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo8 quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo”(Marcuse, 1999: 74). Então, o autor parece admitir que há neutralidade na técnica, embora reconheça que é em nome dela (que se diz neutra) que se perpetua a dominação das forças produtivas. Em outras palavras, a técnica tal qual Marcuse nos descreve, não está livre de contexto. Eis o problema que não é da técnica, mas da racionalidade que a utiliza. O conceito de racionalidade do qual Marcuse apropria-se, o filósofo Jurgen Habermas explica, em Técnica e ciência como ‘ideologia’, que é parte das idéias de Max Weber e faz menção a uma forma de dominação oculta extraída “(...) da ação racional do empresário capitalista e do trabalhador industrial (...)” (1997: 46), que gera uma instrumentalização técnica. Essa “dominação oculta” (que é a dominação capitalista) propiciou o que Marcuse chama de racionalidade tecnológica, que incide diretamente sobre as forças produtivas. O termo instrumental advém da concepção de natureza como instrumento que pode ser usado com eficiência e utilitarismo, além de demonstrar o funcionalismo da ciência. Daí o termo racionalidade instrumental. Marcuse (1967) ressalta que, com ela, os objetos perdem o seu caráter de substância independente e podem ser usados para qualquer fim, uma vez que foram reduzidos a instrumentos. Dessa forma, a natureza fica indefesa perante a razão instrumental, mas não somente ela, já que a dominação do homem pelo homem ocorre através da dominação da natureza. Depois disso, “será ainda necessário afirmar que não são a tecnologia, a técnica, os aparelhos a máquina de repressão, mas sim a presença neles dos patrões que determinam o seu número, o seu momento de existência, o seu poder, o seu lugar na vida, e a necessidade deles?”(Marcuse, 1977: 25). Nesse contexto, fica esclarecido porque o autor diz que a maquinaria é neutra: porque está dentro de uma totalidade tecnológica; o que a faz ruim é a forma como a técnica é utilizada, inserida num todo que envolve diversas relações, principalmente capitalistas. “(...) A maquinaria do universo tecnológico é, ‘como tal’, indiferente aos fins políticos – pode revolucionar ou retardar uma sociedade” (Marcuse, 1967: 150). Por isso, a ciência e a técnica, da forma como são conduzidas, são ideológicas e promovem tanto a dominação da natureza quanto a do homem. Essa visão permitiu a Gérard Lebrun (1999) afirmar que Marcuse descreve uma técnica que caminha por si mesma, à medida que ela reproduz uma ideologia,

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Herbert Marcuse

uma lógica da dominação. O que precisa ficar claro, no entanto, é que a técnica, para Marcuse, apenas serve para mobilizar as forças produtivas que estão a serviço de uma racionalidade dominante, ou seja, do capitalismo. Nas palavras do referido autor: “(...) acredito que os benefícios da técnica e da industrialização só podem se tornar evidentes e reais quando forem removidas a industrialização e a técnica do tipo capitalista” (1969: 21). Por outro aldo, Lebrun diz que a pretensão de Marcuse é restituir a ingenuidade à técnica e ironiza: “Sim, a técnica deve ser mais inocente ainda do que dizem. Quem sabe?” (1999: 490). Em suma, o problema, para Marcuse, não é em si da técnica, mas da racionalidade que a conduz, como já frisamos. Aliás, em sua concepção “(...) o processo de racionalidade tecnológica é um processo político” (1967: 162), embora a técnica seja indiferente a isso – ela é neutra, mas ao mesmo tempo é preciso dizer que, no capitalismo, o “vírus” da acumulação do capital foi inoculado nela, até nas mais inocentes. Isto quer dizer que a técnica está inserida num contexto social, econômico e político (num contexto tecnológico) que retira dela a neutralidade. Nesse aspecto, torna-se relevante ressaltar novamente que um objeto é indiferente ao uso que se faz dele, sendo importante saber apenas as possibilidades de uso que lhe serão dadas. A relação existente entre o pensamento científico e a utilização das técnicas segue a racionalidade tecnológica e a lógica da dominação. Eis o problema. Marcuse quer apenas o uso correto da técnica, um uso que não condene os homens à escravidão voluntária. Para fundamentar suas idéias, principalmente aquelas sobre uma nova ciência, ele diz ser necessário manter a neutralidade da técnica, mas ao mesmo tempo é preciso ajustá-la para servir às forças produtivas até, gradualmente, emancipá-las, reforçando a idéia de que com isso o tipo de racionalidade adotado pelas sociedades capitalistas pode mudar. Contudo, cabe ressaltar que a racionalidade tecnológica surgiu de um processo de reorganização das forças produtivas durante a passagem do capitalismo industrial para o monopolista, fator que nos sugere as seguintes perguntas: será que Marcuse pretende esperar que haja uma nova mudança estrutural das forças produtivas, originadas dentro do próprio sistema dominante, para que se forme uma nova racionalidade, diferente da instrumental? Será que ele espera que haja uma virada no capitalismo que possa propiciar mudanças, reafirmando a necessidade de um processo político que faça prevalecer a idéia marxista de que o apogeu do capitalismo alimente o gérmen da nova racionalidade? Isso só pode consistir em verdade até certo ponto, porque Marcuse ressalta que “procurar agentes históricos específicos de transformação revolucionária nos países capitalistas desenvolvidos é naturalmente uma coisa sem sentido” (Marcuse, 1977: 107). Em Um ensaio para a libertação (1977), o autor aponta alguns meios “possíveis” para que as forças produtivas neguem o potencial explorador do capitalismo e procedam na construção de uma sociedade livre. Em sua explanação, ele esclarece que através da utilização racional, em escala global, das forças tecnológicas do capitalismo e também do socialismo avançado poder-se-ia pôr fim à pobreza e à

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9 - Voltamos a ressaltar que o conceito de revolução de Marcuse não é o mesmo do século XIX, que preconiza a tomada do poder pela classe trabalhadora e posterior instauração de uma nova forma de poder, já que isto não eliminaria a repressão mental.

escassez futura, embora isso não eliminaria nem a dominação e nem a repressão. Mesmo na “segunda fase do socialismo”, a repressão prevaleceria. Então, o que está em jogo para Marcuse (1977) não é a prosperidade de qualquer estado burocrático, mas a satisfação dos indivíduos sem que haja com isso a reprodução de um aparato explorador que perpetue a servidão. A forma como as sociedades estão estruturadas não a eliminam (a servidão). “Assim o mundo da liberdade humana não pode ser construído pelas sociedades estabelecidas, por muito que elas possam modernizar e racionalizar o seu domínio.” (Marcuse, 1977: 16). A revolução9, para o autor, teria início com um enfraquecimento da economia global do capitalismo e com a intensificação de atividades políticas que conduziriam a um esclarecimento, emergindo daí, um processo de transformação em suas palavras: “O desenvolvimento de uma consciência política radical entre as massas só é concebível se e quando a estabilidade econômica e a coesão social do sistema começarem a enfraquecer.” (idem: 77). Um enfraquecimento global do capitalismo desembocaria, por sua vez, numa crise que poderia ativar a resistência contra a repressão política e mental. Os contrastes e contradições que existem entre a disponibilidade de recursos e o seu uso para perpetuar a servidão minariam as bases do sistema e extirpariam o conformismo racional que se exige dos indivíduos, fundamental para o funcionamento do aparato. E mais, ele explica que a fase em que se encontra o progresso técnico não exige que a vida social defina-se pela competição, porque a própria capacidade técnica está ultrapassando os limites da exploração, eliminando gradualmente as funções agressivas de “ganhar a vida”. A técnica, nesse sentido, é fundamental para produzir um desenvolvimento tecnológico avançado que eliminaria gradualmente o trabalho abstrato e, por conseguinte, deixaria um tempo livre para as atividades prazerosas sem que o homem abstenha-se de questões administrativas de âmbito coletivo. Esse é o projeto para uma sociedade emancipada. Nesse aspecto, a teoria crítica teria o papel fundamental de “produzir homens livres e conscientes”. Para Marcuse (1977), esta teoria possui como função determinar as mudanças institucionais que possam ocasionar uma transição para um desenvolvimento social mais elevado, que aproveite melhor os recursos, minimize os conflitos e alargue o “reino da liberdade”. No entanto, tal teoria crítica não vai além disso “com receio de perder o seu carácter científico”(Marcuse, 1977: 13), com medo de tornar a teoria utópica. Na definição, a utopia caracteriza-se como algo que não pode ocorrer. Porém, em termos de mudanças sociais históricas ela não ocorre porque as sociedades estabelecidas impedem que ela ocorra. Por isso, Marcuse afirma que a teoria crítica, que deve guiar a prática política, está atrasada, já que se abstém de tratar de idéias ligadas à liberdade numa sociedade socialista, por serem questões tidas como utópicas. No entanto, o homem deve estar preparado para ser livre, para quando as capacidades técnicas ultrapassarem os limites da exploração capitalista. Em O fim da utopia, Marcuse (1969) afirma que o que impede a transformação da sociedade é a repressão que se faz sentir nos trabalhadores que não representam uma negação das necessidades das sociedades capitalistas, porque eles simplesmente reproduzem-na. Em outras palavras, as possibilidades de transformação da sociedade atual em uma sociedade livre são restritas pela forma como ela se organiza. A necessidade de liberdade está além de uma base material, situando-se numa “dimensão biológica da vida” (Marcuse, 1977: 17). Essa necessidade de liberdade só pode ser expressa pela capacidade de desenvolvimento das necessidades humanas num sentido biológico, em termos qualitativos. Segundo Marcuse (1969), o fim da repressão e da servidão à mercadoria advém de uma mudança qualitativa nas necessidades humanas, diferentes das que prevalecem nas sociedades exploradoras. A liberdade oriunda dessa mudança qualitativa seria “(...) o ambiente de um organismo que já não é capaz de se adaptar às funções competitivas requeridas para o bem-estar

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sob a opressão, já não é capaz de tolerar a brutal agressividade e a fealdade da maneira tradicional de viver” (idem: 15). Nesse caso, a liberdade só poderia tornar-se concreta a partir de uma mudança biológica nos indivíduos que pudesse novamente transformar os seus valores.

Bibliografia ADORNO, T., HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1997. LEBRUN, G. A crise da razão. São Paulo: Cia das letras, 1999. MARCUSE, H. A grande recusa hoje. Isabel Loureiro (organizadora); Tradução de Isabel Loureiro e Robespierre de Oliveira. Petrópolis: Vozes, 1999. ______. A ideologia da sociedade industrial – o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. ______. Cultura e sociedade, v.1. São Paulo: Paz e terra, 1997. ______. O fim da utopia. Tradução de Carlos N. Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1969. ______. Um ensaio para a libertação. Tradução de Maria O. Braga. Lisboa: Bertrand, 1977.

______________________________________ * Paulo Sérgio Gomes Soares é formado em Filosofia pela UNESP/Marília e mestrando no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Filosofia na mesma unidade, UNESP – Faculdade de Filosofia e Ciências/Marília.

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IDÉIAS

A QUESTÃO DO TEMPO EM AGOSTINHO POR FRED CARLOS TREVISAN*

Resumo: Este artigo busca discutir de que maneira, segundo Agostinho, o tempo apresentase no livro XI das Confissões, sem, no entanto, ter a pretensão de esgotar as possibilidades de análise deste tema. A análise da questão do tempo em Agostinho segue a reflexão que Paul Ricoeur faz em seu livro Tempo e Narrativa (Tomo I) sobre o assunto, por ser esta análise muito fecunda. Assim, o texto seguirá a mesma estrutura que o texto de Ricoeur apresenta. Deste modo, o texto estrutura-se em quatro partes fundamentais. A primeira diz respeito à questão do ser e do não-ser do tempo; a segunda parte trará a aporia acerca da medida do tempo, após as aporias do ser e do não-ser do tempo e da medida do tempo; na terceira parte discute-se a questão dos conceitos de Intentio e Distentio, fundamentais, segundo Ricoeur, para o pleno entendimento acerca da questão do tempo e, por fim, uma quarta parte fará o contraste entre o tempo e a eternidade dando, assim, o contorno final à interpretação da questão do tempo em Agostinho.

Introdução O trabalho que se segue é uma tentativa de compreensão e possível análise acerca de um tema muito consagrado em Agostinho, a saber, a questão do tempo. A partir de uma pergunta sobre o tempo “Quid est enim tempus?”(XI, 14, 17), Agostinho começa uma série de argumentações que culminará na celebre definição do tempo, como sendo uma certa distensão da alma. Para tanto, o referido autor procede sempre de aporias, as quais, ao serem resolvidas, apresentam novas dificuldades, lançando, assim, a pesquisa sempre à frente. O que fará que Ricoeur afirme que o que se denomina tese agostiniana sobre o tempo, a qual é qualificada como sendo uma tese psicológica, é mais aporética que o próprio Agostinho admitiria.

1 Sobre O Ser E O Não-Ser Do Tempo 1 - O texto utilizado de Santo Agostinho encontra-se em: Obras de San Agustín, texto bilingüe, tomo II. “Las Confesiones”. Tradução e comentários de P. Angel Custodio Veja, O. S. A. Biblioteca de Autores Cristianos: Madris, 1951.

No centro do capítulo catorze do livro XI das confissões, Agostinho abre com uma interrogação - “Que é, com efeito, o tempo?” (XI, 14, 17)1 - o problema do ser e do não-ser do tempo. Os céticos argumentam, de forma já bastante conhecida, que o tempo não possui ser. Visto que o passado não é mais e o futuro ainda não é e que o presente não perdura, ou nos dizeres do próprio Agostinho “Como pode ser, se o passado já

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não é e o futuro todavia não é? E quanto ao presente, se fosse sempre presente e não passasse a ser passado, já não seria tempo, mas eternidade. Pois, para que seja tempo é necessário que passe a ser passado” (14, 17)2. Conclui Agostinho com uma pergunta: “Como dizemos que existe este, cuja causa ou razão de ser estão em deixar de ser, de tal modo que não podemos dizer, com verdade, que existe o tempo, senão enquanto tende a não-ser?” (14, 17). No entanto, dizemos, com efeito, que as coisas por acontecer serão, que o presente é fugaz e que os acontecimentos do passado foram. É este dizer o tempo em termos positivos que primeiramente vai embasar a asserção sobre o ser do tempo: “Que coisa mais familiar e conhecida mencionamos em nossas conversações que o tempo? E quando falamos dele, sabemos sem dúvidas o que é, como sabemos ou entendemos o que é quando o ouvimos pronunciar o outro” (14, 17). Contudo, Ricoeur chama a atenção de que se por um lado é o uso da linguagem que, provisoriamente, sustenta a resistência contra a tese do ser do tempo, por outro lado, “a própria linguagem é posta em questão pela separação entre o “que” e o “como” ” (Ricoeur: 1994, p. 23), e conclui afirmando não só a oposição da linguagem ao argumento cético, mas a oposição a si mesma: “O paradoxo ontológico opõe não só a linguagem ao argumento cético, mas a linguagem a si mesma: com conciliar a positividade dos verbos “ter passado”, “advir”, “ser” e a negatividade dos advérbios “não...mais”, “ainda não...”, “nem sempre” ”(Ricoeur: 1994, p. 23). Com uma outra interrogação “como pode ser longo ou breve o que não é?” (15, 18), Agostinho lança o paradoxo central do qual sairá o tema da distensão. O paradoxo da medida do tempo é arquitetado pelo paradoxo do ser e do não-ser do tempo. Sobre isto, Ricoeur afirma que a linguagem é, relativamente, um guia seguro. No entanto, ela atesta a medida do tempo e não o como. Agostinho começa uma argumentação acerca da extensão do tempo do seguinte modo: “Cem anos presentes são por um acaso um tempo longo? Primeiro, devemos ver se é possível estar presente cem anos. Porque se tratar-se do primeiro ano, é presente; os outros noventa e nove são futuros, e, por tanto ainda não existem; mas se estamos no segundo, já teremos um passado, um presente e os outros futuros” (15, 19). Ele conclui que o presente além de não permanecer, também não tem extensão “Se, há algo do tempo que se possa conceber com indivisível em partes, por pequeníssimas que estas sejam, só esse momento é o que se deve chamar de presente, o qual todavia voa tão rápido do futuro para o passado, que não se detem um instante se quer. Porque se se detivesse, poderia ser dividido em passado e futuro, e o presente não possui espaço algum” (15, 20). Mesmo assim, nossas atividades sensoriais, intelectuais e práticas fazem-nos perceber, comparar e medir o tempo; “sentimos os intervalos dos tempos e os comparamos entre si, e dizemos que uns são mais longos e outros mais breves. Também, medimos quanto seja mais cumprido ou mais curto aquele tempo que outro” (16, 21). Mas se os medimos, certamente os medimos enquanto passam: “Certamente que nós medimos os tempos que passam, quando sentindo os medimos” (16, 21). Ora, se o passado não é mais e o futuro ainda não é, o que passa só pode ser o presente. De acordo com Ricoeur, a substituição da noção de presente pela de passagem constitui-se em um passo decisivo em direção à noção de distentio: “Acreditamos dar um passo decisivo substituindo a noção de presente pela de passagem, de transição, na esteira da asserção anterior” (Ricoeur: 1994, p. 25). Não é, pois, nesta idéia de passagem que Agostinho detém-se, mas antes, na idéia de que tanto o passado quanto o futuro de algum modo são. Acontece que se o presente é passageiro, transitório, se não possui extensão, o que medimos só pode ser o passado e o futuro, ou nos dizeres de Ricoeur, “para abrir caminho à idéia de que o que medimos é, de fato, o futuro compreendido mais tarde como espera e o passado compreendido como memória, é preciso pleitear pelo ser do passado e do futuro” (Ricoeur: 1994, p. 25).

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2 - Doravante sempre citaremos desta forma quando se tratar do livro XI das Confissões.

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E, contra o argumento cético de que o tempo não tem ser, posto que o passado não é, e o futuro ainda não é, e o presente é transitório, Agostinho declara: “logo, existem coisas futuras e coisas passadas”(17, 22) e, desta forma, afirma que, de algum modo as coisas passadas e as coisas futuras existem. Ricoeur chama a atenção para os termos utilizados por Agostinho para definir o futuro (futura) e o passado (praeterita), que agora aparecem como adjetivos, e é esta mudança que, segundo Ricoeur, abre o caminho para o desvendar do paradoxo inicial sobre o ser e o não-ser do tempo. E assim, “estamos, com efeito, prontos a considerar como seres não o passado e o futuro como tais, mas qualidades temporais que podem existir no presente sem que as coisas de que falamos quando as narramos ou as predizemos ainda existam ou já existam” (Ricoeur: 1994, p. 26). Se no capitulo 17 Agostinho declara que tanto o futuro quanto o passado de alguma forma são, no capitulo 18, a partir de uma interrogação - “Porque, se são as coisas futuras e passadas, quero saber onde são?”(18, 23) -, inicia-se uma seqüência de argumentação que concluirá por situar na alma, e não em outro lugar, as qualidades temporais implicadas na memória (praeteritum) e na espera (futurum). Segundo Ricoeur, o presente também muda e passa a ter outra significação, “mas é de um presente inteiramente diverso que se trata, também ele tornado adjetivo plural (praesentia), alinhado com praeterita e futura, e pronto para acolher uma multiplicidade interna” (Ricoeur: 1994, p. 27). O destino das coisas passadas, de acordo com Agostinho, é a memória, e das coisas futuras, é a espera. E quando nos referimos às coisas passadas, referimosnos a uma impressão deixada pelos acontecimentos que, ao passar pelos sentidos, imprimiram-se na alma: “quando se referem aos acontecimentos verídicos já passados, a memória se refere não aos acontecimentos mesmos, que já ocorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais ao passarem pelos sentidos, imprimem na alma uma espécie de vestígios” (18, 23), bem como, é por meio da espera que as coisas futuras estão presentes em nós “certamente que nós premeditamos muitas vezes nossas futuras ações, e que esta premeditação é presente, não obstante que a ação que premeditamos ainda não exista, porque é futura” (18, 23). Dessa forma, ao conferir as coisas passadas à memória e as coisas futuras à espera, Agostinho inclui a memória e a espera no âmbito do presente (praesens), um presente dialetizado e, nesse sentido, “não existe nem o passado, nem o futuro, nem se pode dizer com propriedade que os tempos são três: passado, presente e futuro; contudo, o mais propício é dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das coisas presentes e presente das futuras” (20, 26). O tríplice presente existe de algum modo na alma e não fora dela “porque estas são três coisas que existem de algum modo na alma, e fora dela não vejo que existam: presente das coisas passadas (memória), presente das coisas presentes (atenção), presente das coisas futuras (espera)”(20, 26). Mais adiante, sobre esta tríplice equivalência, Agostinho confessa que “se me é permitido dizer assim, vejo já os três tempos e confesso que os três existem”(20, 26). Segundo Ricoeur, esta visão e esta confissão “constituem realmente um núcleo fenomenológico para toda a análise; mas o fateor, unido ao vídeo, testemunha de qual debate essa visão é a conclusão” (Ricoeur: 1994, p. 28).

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2 A Medida Do Tempo Agostinho afirma que medimos o tempo enquanto passa: “certamente que nós medimos os tempos que passam, quando sentindo os medimos” (16, 21), pois o passado não é mais e o futuro ainda não é, e assim não podemos medir o que não existe. Mas, com relação ao presente, ele não tem extensão. E deste modo afirma Ricoeur que “só a dialética do tríplice presente, interpretado como distensão, poderá salvar uma asserção que, primeiro, deve se perder no labirinto da aporia” (Ricoeur: 1994, p. 30). Se passar é transitar, Agostinho então pergunta “de donde, por onde e para onde passa quando o medimos?”(21, 27). Se seguirmos à inclinação desta expressão figurada, como o quer Ricoeur, “é preciso dizer que passar é ir do (ex) pelo (per) presente, ao (in) passado. Esse trânsito confirma, assim, que a medida do tempo faz-se “num certo espaço” e que todas as relações entre intervalos de tempo concernem a “espaços de tempo” (Ricoeur: 1994, p. 31). No entanto, já vimos Agostinho afirmar que o tempo não tem espaço. E desta forma, como medilo?. Agostinho faz uma pausa e busca em Deus a solução deste enigma: “Inflame está minha alma em desejo de conhecer este enredadíssimo enigma. Não queiras ocultar, Senhor Deus meu, Pai bondoso, eu te suplico por Cristo, não fecheis ao meu desejo estes problemas comuns e ao mesmo tempo misteriosos”(22, 28). Primeiramente é descartada a solução cosmológica para, então, buscá-la só na alma, na estrutura múltipla do tríplice presente, o fundamento da extensão e da medida. Para Ricoeur, a visão de Agostinho não é independente da polêmica que se estende desde Platão a Plotino e, por conseguinte conclui que “a distentio animi é duramente conquistada ao longo e no termo de um argumentação rigorosa que põe em jogo a áspera retórica da reductio ad absurdum” (Ricoeur: 1994, p. 31). É no final do argumento no qual dissocia a noção de movimento das esferas celestes da noção de dia, que se introduziu a noção de distentio: “Vejo, pois, que o tempo é uma certa distensão” (23, 30). Contudo, Ricoeur lembra-nos que “quando ele (Agostinho) diz que o tempo é, antes, a medida do movimento do que o próprio movimento, não é num movimento regular dos corpos celestes que ele está pensando, mas na medida do movimento da alma humana” (Ricoeur: 1994, p. 33). Se Agostinho afirma que a medição do tempo dá-se por comparação entre um tempo longo e um tempo curto, faz-se necessário ter um termo fixo de comparação. Este termo não pode ser o movimento circular dos astros, pois Agostinho admite que este pode variar; mesmo que o sol pare, o tempo continuará: “Ninguém, pois, me diga que o tempo é o movimento dos corpos celestes; porque quando se deteve o sol por desejo de um individuo para dar fim a uma batalha vitoriosa, estava parado o sol e caminhava o tempo”(23, 30). Assim, mais adiante, afirma Agostinho que “daqui me parece que o tempo não é outra coisa que uma distensão”(26, 33). Mais uma vez, segundo Ricoeur, se há um núcleo fenomenológico nessa asserção, esse núcleo é inseparável da Reductio ad Absurdum, que aboliu todas as demais hipóteses “posto que meço o movimento de um corpo pelo tempo e não o inverso, posto que só se pode medir um tempo longo por um tempo curto e posto que nenhum movimento físico oferece uma medida fixa de comparação, supondo-se variável o movimento dos astros, permanece que a extensão do tempo é uma distensão da alma” (Ricoeur: 1994, p. 34).

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3 Acerca Dos Conceitos De Intentio E Distentio Os três exemplos acerca do som que está em vias de ressoar, que acaba de ressoar e dos dois sons que ressoam um depois do outro têm como função fazer aparecer o dilaceramento do presente, como o do tríplice presente. Assim, é na própria passagem que se deve buscar a multiplicidade do presente e seu dilaceramento. Novamente, Ricoeur enfatiza, pois “esses exemplos exigem uma grande atenção, porque a variação de um a outro é sutil” (Ricoeur: 1994. p. 35). O primeiro deles “Suponhamos, por exemplo, uma voz corporal que começa a ressoar e ressoa, e ressoa, e logo cessa e se faz silencio, e passa a ser passado aquela voz e assim deixa de existir” (27, 34). Este som só podia ser medido enquanto ressoava, posto que, havia o que se medir; “antes que ressoasse era futura e não podia ser medida, por ainda não ser; mas, tampouco agora o pode ser, por não mais existir” (27, 34). A solução deste enigma deve ser entendido ao lado daquilo que passa, como algo distinto do presente pontual “porque passando se estendia em certo espaço de tempo em que podia ser medido”(27, 34). No segundo exemplo, Agostinho fala em medir enquanto o som ressoa: “Meçamo-la enquanto ressoa, porque quando cessar de ressoar, já será passado e não poderemos medir”(27, 34). Este exemplo não fala de passagem ao passado, mas antes, ao presente. É no presente que se situa a questão da medição ou como quer Ricoeur, do “quanto tempo”. Contudo, enquanto o som não cessar, não pode ser dito que é longo ou breve, pois, está no seu ainda: “Todavia ressoa, e não pode ser medido senão desde seu começo, desde que começou a ressoar, até o fim, no qual cessou. Posto que o que medimos é mesmo um intervalo de um princípio até um fim. Por esta razão, a voz que ainda não terminou não pode ser medida” (27, 34). Se faz necessário que o som cesse para que tenha um começo e um fim, ou seja, um intervalo mensurável. Para Ricoeur, a segurança de que medimos um intervalo de tempo se encontra no terceiro exemplo de Agostinho, o de recitação de cor de um verso. O verso de Santo Ambrósio, mencionado por Agostinho: “Deus creator omnium. Este verso consta de oito silabas, alternando as breves e as longas. As quatro breves – primeira, terceira, quinta e sétima – são simples no que diz respeito às quatro longas – segunda, quarta, sexta e oitava”, é mais complexo que os outros, pois a alternância de quatro silabas longas e quatro sílabas breves no interior de uma única expressão, a saber, o verso. É somente aqui, no terceiro exemplo que se opera o acordo entre a questão da medida e a do tríplice presente. Ricoeur afirma que “a alternância das quatro breves e das quatro longas introduz, com efeito, um elemento de comparação que imediatamente apela ao sentimento” (Ricoeur: 1994, p. 36). A aporia resolve-se quando se fala não das silabas que já não são mais, mas sim, de suas impressões na memória: “logo, não são aquela (sílabas), que já não existem, as que meço, mas sim, meço algo em minha memória e que permanece fixo nela”(27, 35). Sabemos agora que a medida do tempo não deve nada à do exterior. E ademais, Ricoeur afirma que “encontramos no próprio espírito, o elemento fixo que permite comparar os tempos longos e os tempos breves: com a imagemimpressão, o verbo importante não é mais passar (transire), mas permanecer (Manet)” (Ricoeur: 1994, p. 37). Assim, os enigmas do ser e do não-ser e o da medida do tempo que não possui extensão são resolvidos ao mesmo tempo

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na medida que “em ti, alma minha, meço os tempos”(27, 35). Medimos os tempos na alma, na medida em que nela permanece a impressão produzida pelas coisas na alma; enquanto passam, “meço a impressão que as coisas gravam em ti à sua passagem, impressão que permanece, ainda depois de elas terem passado. Meço-a a ela enquanto é presente, e não aquelas coisas que se sucederam para a impressão ser produzida”(27, 36). Ricoeur ressalta que esse recurso, para a impressão, não termina a investigação. O que ele quer dizer é que “a noção de distentio animi não recebeu o que merece enquanto não se contrastou a passividade da impressão com a atividade de um espírito estendido em direções opostas, entre a espera, a memória e a atenção. Só um espírito assim diversamente estendido pode ser distendido” (Ricoeur: 1994, p. 38). Retomando o exemplo anterior, o da recitação do verso de Santo Ambrósio, contudo em seu dinamismo “compor antecipadamente, confiar na memória, começar, percorrer, e outras tantas operações ativas que as imagens-signos e as imagensimpressões duplicam na sua passividade” (Ricoeur: 1994, p. 38). Recitar é um ato que procede da espera voltada para o poema inteiro e logo depois para o que restou dele até o findar da operação. Por conseguinte, “nessa nova descrição do ato de receber, o presente muda de sentido: não é mais um ponto, sequer um ponto de passagem, é uma “intenção presente” (praesens intentio)” (Ricoeur: 1994, p. 38). E Ricoeur continua, afirmando que se a atenção deve ser chamada de intenção “é na medida que o trânsito pelo presente tornou-se uma transição ativa” (Ricoeur: 1994, p. 38). O presente tornou-se, por conseguinte, em uma transição ativa “porque o que se realizou dela (a voz que passou), ressoou certamente; mas o que resta, ressonará, e desta maneira, chegará a seu fim, enquanto a atenção presente translada o futuro em passado, diminuindo o futuro e crescendo o passado até que, consumido o futuro, seja todo passado”(27, 36). Não existiria um futuro que diminui e tão pouco um passado que aumenta sem um espírito que faça esta ação: “Como diminui ou se consome o futuro, que ainda não existe? Ou como cresce o passado, que já não é, se não for porque a alma, que é quem o realiza, existem as três coisas?”(28, 37). E, assim, “porque o que ela (a alma) espera, passa pelo domínio da atenção para o domínio da memória”(28, 37). Ricoeur lembra que o contraste situa-se no presente. Se por um lado, enquanto passa, reduz-se a um ponto, esta é a expressão extrema da ausência de extensão do presente segundo Ricoeur; de outro lado, enquanto a atenção volta-se para à ausência daquilo que será presente, diz-se então que a atenção tem uma direção contínua. A distensão consiste, de acordo com Ricoeur, no contraste entre três tensões. O exemplo do canto, acerca do som que ressoa e cessa e o das quatro sílabas breves e das quatro sílabas longas marca o ponto de articulação da teoria da distentio com a do tríplice presente. Esta teoria “do tríplice presente, reformulada em termos de tríplice intenção, faz jorrar a distentio da intentio eclodida” (Ricoeur: 1994, p. 39). O parágrafo 28, 38 é descrito por Ricoeur como sendo a “jóia” do livro XI, e para uma melhor análise da distentio e da intentio, torna-se necessário, segundo o próprio Ricoeur, citá-lo inteiro, o que faremos a seguir: Vou recitar um canto sabido de cor. Antes de começar, a minha expectativa estende-se a todo o canto. Contudo ao começar, na medida em que os elementos antecipados de minha expectativa tornam-se passados, minha memória estende-se, por sua vez, em direção a eles. As forças vivas desta minha atividade são distendidas em direção à memória, por causa do que já recitei, e em expectativa por causa do que vou recitar. Contudo minha atenção é presente, e por ela passa o que era futuro para se fazer passado. O qual, quanto mais esta ação avança, tanto mais, se abrevia a espera e alonga-se a memória, até que fique totalmente consumida a espera, quando a ação inteira acabou e passou para a memória (28, 38)

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Neste parágrafo, as dialéticas da memória, da atenção e da espera são consideradas em interação e não como antes, isoladamente. Trata-se de uma ação que abrevia a expectativa e alonga a memória. De acordo com Ricoeur, o termo latino actio e a expressão verbal agitur traduzem o impulso que rege o conjunto. A expectativa e a memória são elas “ditas ambas “estendidas”, a primeira, em direção ao conjunto do poema, antes do começo do canto, a segunda, em direção à parte já transcorrida do canto; quanto à atenção, sua tensão consiste por inteiro no “transito” ativo do que era futuro em direção ao que se torna passado” (Ricoeur: 1994, p. 40). E Ricoeur completa dizendo que “a distentio não é senão a falha, a não-coincidência entre as três modalidades da ação” (Ricoeur: 1994, p. 40). Para Ricoeur, a distentio tem a ver com a passividade da affectio da impressão e faz-se necessário dizer que os três desígnios “temporais dissociam-se na medida em que a atividade intencional tem como contrapartida a passividade engendrada por essa própria atividade e que, na falta de termo melhor, designa-se como imagemimpressão ou imagem-signo” (Ricoeur: 1994, p. 40). E não são apenas três atos que não se recobrem, mas antes é a atividade e a passividade que se contrariam “para não dizer nada da discordância entre as duas passividades, vinculadas uma à expectativa, a outra à memória” (Ricoeur: 1994, p. 40). Assim, o espírito faz-se intentio, contudo sobre a distentio.

4 O Contraste Entre O Tempo E A Eternidade. Para Ricoeur, falta algo ao sentido pleno da distentio animi que só o contraste com a eternidade pode trazer e, assim, ele distingue três incidências principais na meditação sobre a eternidade que diz respeito à especulação concernente ao tempo. A primeira função é pôr toda especulação sobre o tempo no horizonte de

uma idéia limite que força a pensar o tempo e o diverso do tempo ao mesmo tempo. A segunda função é intensificar a experiência da distentio animi no plano existencial. E por fim, a terceira função é convocar esta experiência a superar-se em direção à eternidade e a hierarquizar-se interiormente contra a representação do tempo retilíneo. A função da asserção da eternidade em relação à do tempo é a função da idéia-limite. Esta primeira função é resultado do encadeamento entre confissão e

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questionamento de Agostinho durante os 14 primeiros capítulos do livro XI das confissões. Agostinho começa perguntando: “Como fez o céu e a terra e qual foi a máquina de tão grande obra tua?” (5, 7) e, logo em seguida, no final do mesmo parágrafo, ele mesmo, Agostinho, responde a pergunta “Tu falaste e as coisas foram feitas e com tua palavra as fizeste”(5, 7). No parágrafo seguinte, Agostinho volta a interrogar: “como o falasse?”(6, 8). Ele abre a discussão acerca da eternidade com uma pergunta acerca de como as coisas foram feitas e conclui por dizer que foram feitas pela palavra. Ao afirmar que as coisas foram feitas no verbo, está negando que Deus, como um artesão, as fez a partir de algo. E segundo Ricoeur esta “Criação ex nihilo é aqui antecipada, esse nada de origem acusa a partir de agora o tempo de deficiência ontológica” (Ricoeur: 1994, p. 45). O contraste decisivo, entretanto, o que é gerador do novas negações e embaraços, é o que opõe o verbo divino à voz humana. Esta última tem um iníAio e um fim enquanto o verbo divino permanece. A eternidade é descrita por Agostinho como sendo estável em contraste com as coisas que nunca são estáveis: “na eternidade, ao contrário, nada passa; tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente”(11, 13). Para se pensar a distentio animi até o fim, ou seja a falha do tríplice presente, é preciso poder comparála a um presente sem futuro ou sem passado. E assim, “é essa extrema negação que embasa a resposta ao argumento de aparência frívola” (Ricoeur: 1994, p. 46). Mas no capitulo 10, as objeções tomaram a forma de questionamento: “Que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? Se estava ocioso, por que não ficou sempre assim no decurso dos séculos, abstendo-se, como antes, de toda ação?”. E mais: no final do parágrafo, ele formula mais uma questão: “Mas, se desde toda a eternidade é vontade de Deus que existam criaturas, por que razão não são as criaturas eternas?”(10, 12). Este questionamento pode ser dividido em três partes. Na primeira parte do questionamento, a resposta é direta: “antes de fazer o céu e a terra, Deus não fazia nada”(12, 14). É certo que a resposta ainda deixa intacta a suposição do “antes”; contudo, “o importante é que esse antes seja marcado pelo nada: o “nada” do “não fazer nada” é o antes da criação. É preciso, pois, pensar o “nada” para pensar o tempo como começando e terminado. Assim, o tempo é como que circundado pelo nada” (Ricoeur: 1994, p. 47). A resposta da segunda parte do questionamento esclarece que não há um antes em relação à criação porque quando Deus criou o mundo, também criou o tempo: “Vós, o obreiro de todos os tempos – se é que existiu algum tempo antes da criação do céu e da terra – , por que razão se diz que Vos abstínheis de toda a obra? Efetivamente fostes Vós que criastes esse mesmo tempo, nem ele podia decorrer antes de o criardes!”(13, 15). E Ricoeur explica que este “não-então” é do mesmo “grau negativo que o nada do não fazer nada. É pois dado ao pensamento formar a idéia da ausência de tempo para pensar até o fim o tempo como passagem. O tempo deve ser pensado como transitório para ser plenamente vivido como transição” (Ricoeur: 1994, p. 47). A fim de evitar o argumento que havia um tempo anterior ao da criação, Agostinho esclarece que este tempo seria uma criatura, sendo Deus o criador de tudo e de todos os tempos. Logo, um tempo antes de toda criação é impossível. Respondendo à terceira parte do questionamento, Agostinho dá o último acerto à oposição entre a eternidade e o tempo. É necessário afastar qualquer “novidade” da vontade de Deus; segundo Ricoeur, “é preciso dar à idéia de um antes da criação um significado que elimine deste toda a temporalidade. É preciso pensar a antecedência como superioridade, como excelência, como altura” (Ricoeur: 1994, p. 48). E é justamente o que faz Agostinho no início da parágrafo 16: “Precedeis, porém, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com vossa eternidade sempre presente”(13,16). E, por fim, chega a negar a passagem dos anos de Deus: “Os vossos anos não vão nem vem. Porém os nossos vão e vem, para que todos venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os

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anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam”(13, 16). Para Ricoeur, podemos falar, com certas reservas, em uma experiência da eternidade em Agostinho que é, segundo ele, mais precisamente essa “experiência da eternidade que reveste a função de idéia-limite, a partir do momento em que a inteligência “compara” o tempo com a eternidade.” E assim, “é a repercussão desta “comparação” sobre a experiência viva da distentio animi que faz do pensamento da eternidade a idéia –limite sob o horizonte da qual a experiência da distentio animi é afetada, no plano ontológico, pelo índice negativo da carência ou da deficiência de ser” (Ricoeur: 1994, p. 49). A segunda função, o contraste entre a eternidade e o tempo, transpassa de ponta a ponta a experiência do tempo, com a negatividade, e não se limita conjugando o pensamento do tempo com o pensamento do diverso do tempo, em cercá-la de negatividade. Desta forma, “intensificada no plano existencial, a experiência da distensão é elevada ao nível da queixa” (Ricoeur: 1994, p. 49). Contudo, se a discriminação entre o que é semelhante e o que é dessemelhante concerne à inteligência que compara sua ressonância, abala o sentir em sua extensão e profundidade. Nos capítulos finais, na meditação sobre as relações entre a eternidade e o tempo propõe, ainda, uma interpretação da distentio animi: “Mas “porque a vossa misericórdia é superior às vidas” confesso-Vos que a minha vida é uma distensão”(29, 39). Posto isso, a distentio animi, de acordo com Ricoeur, não designa mais somente a “solução “ das aporias de medida do tempo, como “exprime doravante o dilaceramento da alma privada da estabilidade do eterno presente” (Ricoeur: 1994, p. 50). Sob o signo do contraste entre tempo e eternidade encontra-se, de forma retomada, toda a dialética interna do tempo da intentio-distentio. “Enquanto a distentio torna-se sinônimo da dispersão na multiplicidade e da errança do velho homem, a intentio tende a se identificar com a unificação com o homem novo”, e desta forma “A intentio não é mais então a antecipação do poema inteiro antes da recitação, que faz transitar do futuro ao passado, mas a esperança das coisas últimas, na própria medida em que o passado a esquecer não é mais a coletânea da memória, mas o emblema do velho homem” (Ricoeur: 1994, p. 51). A terceira função da dialética do tempo e da eternidade acerca da interpretação da distentio animi suscita uma hierarquia de níveis de temporalização, no centro da experiência temporal e, segundo esta mesma experiência, afasta-se ou aproxima-se de seu pólo de eternidade. No entender de Ricoeur, a ênfase aqui é posta “menos sobre a dessemelhança que sobre a semelhança entre a eternidade e o tempo na “comparação” que a inteligência faz de uma com a outra” (Ricoeur: 1994, p. 52). A semelhança, para Ricoeur, exprimese na capacidade de aproximação da eternidade e, assim, “entre o Verbum eterno e a vox humana não há somente diferença e distância, mas instrução e comunicação: o Verbo é o mestre interior buscado e ouvido no interior (intus)” (Ricoeur: 1994, p. 52). Desta forma, nossa primeira relação não é falarmos, mas antes, escutarmos: “Senhor, ouço aí a vossa voz a dizer-me que só nos fala verdadeiramente aquela que nos ensina”(8, 10). Segundo Ricoeur, além de ouvirmos os verba exteriores, ouvimos também o Verbum interior, e o retorno não é outra coisa que essa escuta. Mas o Verbum não só fala como também nos instrui, e assim “encadeiam-se instrução, reconhecimento e retorno. A instrução, poder-se-ia dizer, transpõe o abismo que se abre entre o Verbum eterno e a vox temporal. Ela eleva o tempo em direção à eternidade” (Ricoeur: 1994, p. 53).

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Deste modo, Ricoeur afirma que, sem que se perca a autonomia que lhe é conferida pelas aporias anteriores sobre o tempo, “o tema da distentio e da intentio recebe de sua inserção na meditação sobre a eternidade e o tempo uma intensidade de que toda a seqüência da presente obra far-se-á eco” (Ricoeur: 1994, p. 54). E esta intensificação não só advém de que o tempo é pensado como abolido no horizonte da idéia-limite da eternidade que o atinge com o nada. E também não se reduz a transferir ao registro da queixa, do gemido, o que será um argumento especulativo. E conclui Ricoeur dizendo que “ela visa fundamentalmente extrair da própria experiência do tempo recursos de hierarquização interna cujo benefício não é abolir a temporalidade, mas aprofundá-la” (Ricoeur: 1994, p. 54).

Conclusão Agostinho, no capítulo 23, afirma que o tempo é uma certa distensão; por sua vez, Ricoeur diz que a extensão do tempo é uma certa extensão da alma (Ricoeur: 1994, p.34). Contudo, a teoria da distentio animi só adquiri seu sentido último em contraste com a eternidade. Ricoeur diz que é precisamente a experiência da eternidade que reveste a função de idéia-limite, quando a inteligência contrasta o tempo com a eternidade e “é a repercussão dessa “comparação” sobre a experiência viva da distentio animi que faz do pensamento da eternidade a idéia-limite sob o horizonte da qual a experiência da distentio animi é afetada, no plano ontológico, pelo índice negativo da carência ou da deficiência de ser” (Ricoeur: 1994, p. 49). Esta dialética entre tempo e eternidade corresponde à dialética entre a distentio e a intentio. Esse contraste entre tempo e eternidade, no âmbito da experiência humana acerca do tempo, introduz uma diferenciação qualitativa acerca do tempo como nos mostra Gagnebin, em seu texto intitulado Dizer o Tempo. Esta diferenciação permite um certo aprofundamento da temporalidade humana contra a de um tempo cronológico e, assim, permite-nos interpretar o tempo, não só como sendo linear, mas também, como sendo uma teoria das várias intensidades temporais.

Bibliografia AGUSTÍN, San. Las Confesiones. texto bilíngüe, tomo II. Tradução e comentários de P. Angel Custodio Veja, O. S. A. Biblioteca de Autores Cristianos: Madris, 1951. FRECHEIRA, M. L. O. e PAIXÃO, M. de T. Em torno da Metafísica. “Capitulo II, A questão do “tempo” no livro XI das confissões de Agostinho de Hipona”. Bento Silva Santos. Rio de Janeiro: Viveiro de Castro, 2001. GAGNEBIN, J. M. “Dizer o Tempo” in Revista de Psicologia. NUNES, B. Hermenêutica e poesia. Belo Horizonte: UFMG, 1999. RICOEUR, P. Tempo e Narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus,1994.

______________________________________ * Fred Carlos Trevisan é mestrando do Curso de Filosofia da PUC-SP e professor da FAPI e dos cursos de pós-graduação das faculdades Bagozzi.

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IDÉIAS

FIL OSOFIA E PROSTITUIÇÃO: FILOSOFIA O PENSAR COMO IDIOS SINCRASIA, EXPERIMENT ALISMO IDIOSSINCRASIA EXPERIMENTALISMO E RISCO*

POR PAULO JONAS

DE

LIMA PIVA*

Resumo: Como pensar sem dogmatizar? Como fazer metafísica sem ser oracular? Como elaborar uma filosofia sem transcendência? Em suma, como curar a razão especulativa da pretensão da Verdade e da obsessão pelo absoluto e pela objetividade? Com base na aproximação entre filosofia e literatura, e nas idéias de idiossincrasia e de experimentalismo, este artigo, de inspiração cética e diderotiana, é uma sugestão singela e despretensiosa de resposta a tais indagações: fazer dos pensamentos, putas.

“Meus pensamentos são minhas rameiras” Denis Diderot, O sobrinho de Rameau. À Gotinha, minha gatinha.

* Versão modificada da comunicação apresentada no VI Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea realizado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), na cidade de Toledo-PR, no período de 22 a 26 de outubro de 2001. 1 - Cf. “Oswaldo Porchat, o comum dos homens” (entrevista). In: Livro Aberto, nº 5. São Paulo, Cone Sul, agosto de 1997, p. 12. 2 - Porchat, O. “Prefácio a uma filosofia”. In: Vida comum e ceticismo. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 33. 3 - Smith, P. “Do começo da filosofia”. In: O que nos faz pensar, nº 12. Rio de Janeiro, PUC-RJ, setembro de 1997, p. 15. 4 - Montaigne, M. Os Ensaios (Livro II). Trad. Rosemary C. Abílio. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 306. 5 - Idem, p. 335.

Num tom sarcástico e fulminante, o romancista e poeta argentino Jorge Luis Borges definiu a filosofia certa vez como um ramo da literatura fantástica1. Nesta mesma direção, Oswaldo Porchat Pereira, o nosso filósofo cético mais importante, descreve a filosofia como um “admirável romance de idéias”2. O mesmo encontramos em outro cético brasileiro não menos importante, Plínio Junqueira Smith, para o qual a filosofia parece ser uma ficção, um gênero literário próximo à poesia e também à literatura fantástica3. Tais concepções parecem derivar diretamente de Montaigne. Em sua célebre “Apologia de Raymond Sebond”, o autor do século XVI assevera que a filosofia “é tão-somente uma poesia sofisticada” 4 . Mais: escreve que “os mistérios da filosofia têm muitas estranhezas em comum com os da poesia”5. Em face dessa perspectiva literaturizante da filosofia, o que podemos inferir de início? Endossar tal concepção implica entender as categorias, os conceitos, os sistemas e as verdades filosóficas como meros personagens

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Montaigne

I


literários tais como os demais personagens literários da literatura propriamente dita6. Em outras palavras, Deus e o cogito cartesiano, por exemplo, seriam tão personagens quanto a Capitu de Dom Casmurro ou Gregor Samsa de A Metamorfose; do mesmo modo, o topos uranos, a mônada, a dialética, a vontade de potência, o dasein e outros. Eles seriam tão personagens quanto o Pã de As Sete Faces do Dr. Lao, de Charles G. Finney, ou quanto Kírilov, o protagonista de Os Possessos. Mas com uma diferença fundamental: enquanto na literatura propriamente dita Capitu, Kirílov ou Prometeu são aceitos consensualmente como ficções e irrealidades, Deus, a imortalidade da alma, a dialética, o conatus e até a vontade de potência tentam impor-se como a decifração da realidade em meio a uma diafonia insolúvel. Se a filosofia, porém, é um ramo da literatura fantástica, se a filosofia é um gênero específico de literatura, se ela é uma forma particular de poesia, em que consiste então a razão especulativa? O que podemos esperar dela? Para resolvermos essa questão, evoquemos aqui o procedimento reflexivo sugerido por Denis Diderot na abertura da sua obra-prima, O Sobrinho de Rameau, de 1761: “Faça bom ou mau tempo, tenho o hábito de ir passear no Palais-Royal, às cinco horas da tarde. Sempre solitário, sou visto sonhando no banco de Argenson. Entretenho-me comigo mesmo divagando sobre política, amor, gosto ou filosofia. Abandono meu espírito à mais completa libertinagem. Deixo-o senhor de seguir a primeira idéia, sábia ou louca, que se apresenta, como, nas alamedas de Foy, nossos jovens dissolutos seguem uma cortesã de ar estouvado, fisionomia risonha, olho vivo, nariz arrebitado, deixando esta por outra, assediando todas e não se prendendo a nenhuma. Meus pensamentos são minhas rameiras”7. Tal passagem ficou conhecida como a “metáfora das rameiras”. E o que nela se percebe de imediato é a ocorrência dos gerúndios “sonhando” e “divagando”, respectivamente. Eles antecedem as frases “Abandono o meu espírito à mais completa libertinagem” e “Meus pensamentos são minhas rameiras”. Curiosamente, em Jóias Indiscretas, romance libertino de Diderot publicado em 17488, problemas estritamente filosóficos são expostos por meio de visões, alucinações e de sonhos. Num capítulo intitulado “Os sonhos”, por exemplo, um certo personagem refere-se à filosofia como um sonho e diz que não há nada mais filosófico, nem mais exato, do que a expressão “está sonhando”9; que não há nada mais comum do que homens que imaginam estar raciocinando quando, na verdade, estão sonhando de olhos abertos10. Em outra passagem marcante do romance, no capítulo “Visão de Mangogul”, Diderot ridiculariza as polêmicas metafísicas e teológicas da história da filosofia. Trata-se de uma visão na qual dois homens, tomados por suas imaginações, digladiam-se numa discussão absurda: um dos contendores acreditava ter dois narizes; o outro acreditava ter dois ânus. Aquele que acreditava ter dois narizes zombava do outro que acreditava ter dois ânus, e vice-versa, cada um tentando persuadir o seu interlocutor do contrário11. Tal episódio ilustra perfeitamente o que diz o holandês Franz Hemsterhuis acerca da relação entre a imaginação e a filosofia: “O que muitas vezes se apresenta sob a denominação de filosofia é, propriamente falando, apenas o excremento que resta após a efervescência da imaginação”12. Nota-se claramente nessas passagens bem-humoradas e mordazes que Diderot tinha repulsa pela metafísica. Eric-Emmanuel Schmitt, por exemplo, chega a denominar Diderot o “coveiro da metafísica”13. Em outro texto, mais exatamente no Diálogo entre d’Alembert e Diderot, o filósofo usa a expressão “galimatias metafísicoteológico” ao fazer alusão às encarniçadas polêmicas metafísicas14. Para ele, a dedicação à especulação metafísica é inteiramente vã na medida em que ela extrapola os fenômenos, ou seja, na medida em que ela força a razão especulativa, com os seus limites e falhas, a ir além da natureza em busca de uma transcendência, em última instância, em busca de fantasmagorias. O resultado de investigações desse tipo, no seu entender, é a mais pura garrulice, a mais extravagante vaniloqüência, o mais perturbador blablablá15.

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6 - Cf. Porchat, O. “Porchat, o comum dos homens” (entrevista), op. cit., p. 12. 7 - Diderot, D. “O Sobrinho de Rameau”. In: Textos Escolhidos. Trad. Marilena Chauí e J. Guinsburg. São Paulo, Abril Cultural, 1979, Col. “Os Pensadores”, p. 41. 8 - Um sultão é presenteado por um gênio com um anel mágico capaz de fazer as vaginas das mulheres do seu reino falarem, arrancando de suas donas os mais escandalosos segredos de alcova. Este é em suma o trama de Les Bijoux Indiscrets ou, numa tradução mais explícita, “As Vaginas Indiscretas”. 9 - Diderot, D. Jóias Indiscretas. Trad. Eduardo Brandão. Rio de Janeiro, Global, 1986, p. 225. 10 - Idem, Ibidem. 11 - Cf. Idem, p. 71 12 - Hemsterhuis, F. “Carta sobre o homem e suas relações”. In: Sobre o homem e suas relações. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo, Iluminuras, 2000, p. 49. 13 - Schmitt, E.E. Diderot ou la philosophie de la seduction. Paris, Albin Michel, 1997, p. 17. 14 - Diderot, D. “Diálogo entre D’Alembert e Diderot”. In: Textos Escolhidos, op. cit., p. 90. 15 - A metafísica como garrulice e palavrório é um dos assuntos centrais de Roberto Romano em Silêncio e Ruído: a sátira em Denis Diderot, Campinas-SP, Ed. Unicamp, 1996.

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G. W. F. Hegel

16 - Cf. Schmitt, E.E. op. cit., p. 199. 17 - Cf. Diderot, D. “Lettre a Sophie Volland du 31 août 1769”. In: Correspondance. Éd. Laurent Versini. Paris, Robert Laffont, t. V, 1997, p. 969. 18 - Cf. Schmitt, E.E. op. cit., p. 192. 19 - Há um capítulo no livro de Schmitt com um título bastante sugestivo sobre essa questão: “O mundo não é senão um sonho”. Cf. Schmitt, E.E. op. cit., p. 129. 20 - Cf. Diderot, D. Jacques, o Fatalista, e seu Amo. Trad. Antônio Bulhões e Miécio Tati. São Paulo, Difel, 1962, p. 207.

É importante ressaltar que, no Século das Luzes, período em que Diderot viveu e pensou, o conceito de metafísica ganha um novo significado. Metafísica passa a ter duas acepções, uma negativa e outra positiva. Quando empregada como sinônimo de ontologia, ela é considerada má metafísica; em contrapartida, quando a palavra metafísica é empregada como sinônimo de epistemologia, ela é considerada positiva16. E Diderot falou do ser na medida em que desenvolveu uma doutrina ateísta e materialista. Portanto, quando o filósofo citado refere-se ao ser, isto é, quando ele faz má metafísica, ele o faz consciente de que as teses expostas pelo seu discurso podem ser uma extravagante fábula. Dito de outro modo, ao tratar do ser em sua obra, Diderot fala hipoteticamente, baseado na experiência e nas descobertas científicas da sua época. O Sonho de d’Alembert é um outro caso na obra diderotiana em que filosofia — entendida como má metafísica — e sonho se confundem. Mais do que isso: nesse diálogo, a filosofia é o próprio delírio, pois as teses principais da doutrina materialista de Diderot são explanadas por um personagem que, além de estar dormindo, também delira de febre. Em uma carta dirigida a sua amante, Sophie Volland, Diderot declara que colocou as suas idéias na boca de um homem que sonha e que delira de febre porque é preciso dar à sabedoria o ar da loucura17. Fazendo isso, Diderot liberta a imaginação do controle da razão, que é sempre rígido, e abre o caminho para que novas reflexões, hipóteses e analogias sejam feitas18. Contudo, não é apenas com o sonho, com a vertigem, com o delírio ou até com a loucura que o referido autor identifica a filosofia19. Em Jacques, o fatalista, e seu amo, um determinado hábito de Jacques, o protagonista, desperta a atenção por ser muito sugestivo. Antes de dar início a qualquer reflexão, a qualquer divagação metafísica, Jacques sempre toma um gole de vinho do seu inseparável garrafão20. E quanto mais bêbado ele fica, mais filosofante ele se torna. Ora, não haveria nesse procedimento do personagem uma intenção implícita de Diderot de levar o seu leitor a aproximar a filosofia também da embriaguez? Mas qual é a finalidade de Diderot com tudo isso? O que ele pretende demonstrar? Ao tratar a filosofia como sonho, divagação, visão, delírio, loucura e até mesmo como embriaguez, Diderot parece alertar-nos para a sutil e, às vezes, imperceptível fronteira que há entre a imaginação e a racionalidade pretensamente objetiva quando nos entregamos ao filosofar, em particular, quando fazemos metafísica. Ele procura mostrar o quanto a razão especulativa é imaginativa e criadora de irrealidades, situação essa, ao que parece, irremediável. Esta, talvez, seja também a intenção de Borges ao definir a filosofia como literatura fantástica, a de Porchat ao compará-la ao romance, e a de Montaigne e de Plínio Smith ao fazerem dela um estilo poético. Então quer dizer que não há como filosofar sem delirar, sem ser dominado pela imaginação? O problema, ao que parece, não está no fato da imaginação ser a força condutora das nossas reflexões metafísicas. O problema mesmo é o estatuto que se dá a essas ficções da metafísica. Dito de outro modo, o problema não está no devaneio filosófico em si, mas na pretensão de objetividade e de universalidade dos responsáveis por esses devaneios. Sendo mais claro ainda, o problema disso tudo é o dogmatismo, a crença de que essas construções discursivas são portadoras de verdades, de coisasem-si, portadoras de essências e de realidades. E aqui invoquemos não mais Diderot, mas a tradição do ceticismo pirrônico. Em linhas muito gerais, o cético pirrônico é aquele que tem uma experiência diafônica e aporética da filosofia e que, por isso, suspende o seu juízo, retém a sua crença e a sua escolha em relação às inúmeras e discordantes teses filosóficas, permanecendo, portanto, na indeterminação metafísica. E por que ele suspende o

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Aristóteles

seu juízo em relação às teses e aos argumentos filosóficos? Simplesmente porque ele não encontra razões suficientes para achar que uma tese é melhor, mais convincente ou mais dissuasiva do que outra21. Ele se confessa incapaz de afirmar, por exemplo, que Hegel seja mais racional ou mais verossímil do que Aristóteles, ou que Nietzsche seja mais lúcido do que Kant, ou que Kant seja mais verdadeiro ou razoável do que Descartes, ou que Santo Agostinho traduza melhor a realidade do que Derrida. Diante dessa controvérsia indecidível, dessa enorme divergência sobre o que possa estar além, aquém ou na própria essência do que vemos, sentimos e cogitamos, o cético volta-se apenas ao que lhe aparece, ou seja, ele adere ao fenômeno sem se preocupar com o que possa estar além, aquém ou no próprio aparecer. E por fenômeno (tò phainómenon) entendamos tudo aquilo que se impõe a nós de modo irrecusável, ou seja, as impressões, os desejos, as paixões, as emoções, os costumes e as instituições, por exemplo. Em outras palavras, o fenômeno pode ser entendido como tudo aquilo que resta quando suspendemos o nosso julgamento sobre as contendas filosóficas. E a relação desse cético com o fenômeno será a de um cronista a simplesmente descrever aquilo que a ele se impõe22. Seu discurso, portanto, será um mero relato pessoal do que lhe aparece num determinado hic et nunc, um relato autobiográfico, confessional; enfim, um discurso idiossincrático23. E se é um discurso que se assume como idiossincrático, não há da parte dele nenhuma pretensão de objetividade, de universalidade, de absoluto ou de verdade no que se diz. É apenas um pathos muito particular que se anuncia. Um discurso assim será sempre provisório, para não dizer descartável. Um discurso assim se vê, no limite, como uma simples articulação de palavras, e a filosofia, por conseguinte, como uma coleção embevecedora de jogos de linguagem que procuram verbalizar maneiras muito particulares e datadas de apreciar os fenômenos24. A história da filosofia nessa perspectiva passa a ser vista como a história das idiossincrasias25. Contudo, idiossincrasia soa como um eufemismo de algo ainda mais radical, como eufemismo de “achismo”: “Platão achava que...”, “Aristóteles achava que...”, “Nietzsche e Marx não achavam que...”, “Eu acho que...”26. Indubitavelmente, trata-se de uma conclusão no mínimo profana, de um posicionamento em face da “natureza” da filosofia que causa um enorme mal-estar entre nós filósofos. Em última instância, tal redução provoca uma enorme indignação corporativa, de certo modo, uma crise existencial, pois coloca em xeque 25 séculos de pensamento e de buscas obsessivas por desvelamentos e verdades. Mais: põe abaixo a presunção histórica dos filósofos de que a filosofia é um saber privilegiado e superior em relação a um assim chamado “senso comum”, que de comum não tem nada, uma vez que é extremamente heterogêneo. “Mas como ‘achismo’?!”, pergunta com efeito o acadêmico atingido em seu orgulho. “E o rigor?! E o método?! E a lógica?! E a concatenação precisa dos argumentos?!”. Ora, colegas, o que não faltam às filosofias são método, lógica, complexidade argumentativa e, sobretudo, rigor ou pretensão a ele! E o que vemos? Vemos que nenhuma delas, com tudo isso, consegue obter consenso em torno de suas teses, que nenhuma consegue impôr-se como a expressão única, inquestionável e verdadeira da realidade. Quando adentramos o universo leibniziano ou o universo hegeliano, por exemplo, tudo se encaixa perfeitamente do ponto de vista racional. Entretanto, qual é o critério que devemos estabelecer para demonstrar que essa ou aquela filosofia é mais racional ou mais verdadeira do que a outra? Não podemos esquecer que a diafonia também ocorre no momento em que

21 - Cf. Porchat, O. “O conflito das filosofias”. In: Vida Comum e Ceticismo, op. cit., p.p. 5-21. 22 - Cf. Sexto Empírico. “Hipotiposes Pirrônicas” (Livro I). Trad. Danilo Marcondes. In: O que nos faz pensar, nº12, op. cit., p. 115. 23 - Cf. Smith, P. “Terapia e Vida Comum”. In: Discurso, nº 25. São Paulo, São Paulo, USP, 1995, p. 92. 24 - Cf. Idem, p. 81. 25 - Cf. Piva, P.J. “Filosofia como idiossincrasia, ética como fenômeno: sobre o ceticismo de Plínio Smith”. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política, nº 3. São Paulo, Humanitas, 2001, p. 99. 26 - Cf. Idem, Ibidem.

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estabelecemos critérios. Assim sendo, nessa perspectiva, poderíamos falar, por exemplo, de uma idiossincrasia platônica, de uma confissão cartesiana, de uma crônica foucaultiana e até mesmo de um “achismo” cético27. Em suma, a máxima do chamado “senso comum” de que cada um tem a sua opinião parece ter razão. Qual seria, então, a diferença crucial entre um discurso dogmático e um discurso cético? Pois bem. O dogmático diria: “Eu nunca acho sobre aquilo que sei”. O cético, por sua vez, diria: “Eu nunca sei sobre aquilo que acho”28.

Descartes

II

Qual seria a conseqüência efetiva de tamanha radicalidade? Seria obviamente uma proposta de filosofar muito diferente da praticada pela tradição. Talvez muitos a pratiquem, e não há aqui nenhuma pretensão de originalidade. E, mais uma vez, remetamo-nos ao ceticismo pirrônico. Além do fenômeno, outras referências fundamentais desta corrente são as noções de empeiria e de tekhné, isto é, as idéias de experiência e de arte ou técnica. O cético pauta o seu viver fundamentalmente pelo fenômeno e pela experiência, ou melhor, pela experiência do fenômeno, ou melhor ainda, pelo fenômeno da experiência do fenômeno. E a técnica ou instrução das artes surge para aprimorar esse viver29. A título de ilustração, a agricultura e a medicina seriam uma dessas tékhne. Nesse sentido, voltemos a Diderot e a sua metáfora das rameiras. Fazer dos pensamentos putas e da reflexão uma libertinagem do espírito parece ser um procedimento que se enquadra perfeitamente na noção de tékhne, pois são eufemismos poéticos de experimentalismo - a metáfora das rameiras como tékhne, como procedimento experimental, a metáfora das rameiras como método antidogmático A contribuição insólita de Diderot com a metáfora das rameiras encontrou eco no século XX30. Curiosamente, o filósofo romeno Emil Cioran relacionou-se com as suas idéias quase do mesmo modo que o pensador iluminista. Em um aforismo intitulado “Filosofia e prostituição”, do Breviário de Decomposição, Cioran declara o seguinte: 27 - Cf. Idem, Ibidem. 28 - Essas duas frases colhi no filme Os filhos da natureza, exibido na TV Cultura em setembro de 2001, e adaptei-as as minhas necessidades filosóficas... 29 - Cf. Sexto Empírico. Hipotiposes Pirrônicas (Livro I), op. cit., p. 120. 30 - Em se tratando de libertinagem no século XVIII francês, não poderíamos deixar de mencionar a figura do marquês de Sade, o qual também parece relacionar a filosofia com a prostituição, na medida em que considerava as putas “as únicas filósofas de verdade!”. Cf. Sade, Marquês. A Filosofia na Alcova. Trad. Augusto C. Borges. São Paulo, Iluminuras, 1999, p. 37. 31 - Cioran, E. Breviário de Decomposição. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1989, p. 86.

“O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mas ainda perseverante nos caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta. Desprendida de tudo e aberta a tudo; esposando o humor e as idéias do cliente; mudando de tom e de rosto em cada ocasião; disposta a ser triste ou alegre, permanecendo indiferente; prodigando os suspiros por interesse comercial; lançando sobre os esforços de seu vizinho sobreposto e sincero um olhar lúcido e falso, ela propõe ao espírito um modelo de comportamento que rivaliza com o dos sábios. Não ter convicções a respeito dos homens e de si mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia. ‘Tudo o que sei aprendi na escola das putas’, deveria exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo, quando, a exemplo delas, especializouse no sorriso cansado, quando os homens são, para ele, apenas clientes, e as calçadas do mundo o mercado onde vende a sua amargura, como suas companheiras seu corpo”31. A comparação entre filosofia e prostituição é feita por Cioran em outros momentos de sua obra, em particular do Breviário. Em “Invocação à insônia”, lemos: “Eu tinha dezessete anos e acreditava na filosofia. O que não se referia a ela parecia-

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Diderot

me pecado ou lixo (...) Só a abstração parecia-me palpitar: entregava-me a façanhas ancilares por medo de que um objeto mais nobre me fizesse infringir meus princípios e me entregasse às degradações do coração. Repetia-me: só o bordel é compatível com a metafísica; e espiava — para fugir da poesia — os olhos das criadinhas e os suspiros das putas”32. Mas, enfim, em que consiste essa libertinagem do espírito? Além de enaltecer a liberdade de pensar, a libertinagem do espírito é um convite ao experimentalismo filosófico, ao pensar anti-sistemático33 e, sobretudo, antidogmático, uma vez que, quando filosofamos, ficamos sujeitos à imaginação e ao devaneio. Por conseguinte, o filósofo libertino seria um espírito aberto a todas as interpretações e perspectivas, um espírito que se alimenta de tudo o que se apresenta ao seu entendimento34. Para que isso ocorra, não haver regras austeras e padrões literários fixos para a expressão dos pensamentos é fundamental35; a racionalidade, então, deixa de ser linear e unívoca. Com a sua metáfora libidinosa, Diderot seduznos a entregarmo-nos sem reservas a um pensamento qualquer, deixar se aliciar por ele, meditar como se passeia, escrever como se fala, falar como se faz sexo36. No fundo, ele faz do espírito uma mulher depravada, que não dá à luz como uma mulher respeitada; um espírito libertino não engravida como uma mulher virgem inseminada por uma transcendência; um espírito libertino engravida como uma moça fogosa que se deita não importa com quem, onde, quando e como37. A propósito, Sainte Beuve declara que o espírito de Diderot “era uma espécie de lugar público, de mercado persa: era em demasia o boteco da esquina onde todos entram e acendem um charuto”38. Outro aspecto importante da libertinagem filosófica é o seu caráter autoreflexivo e até autofágico, uma espécie de “pensar contra si próprio”39. Ela apresentase, antes de tudo, como uma investigação que a razão faz de si mesma, como uma reflexão que faz da própria filosofia, a principal dificuldade do filosofar40. Ou seja, Diderot pensa e se pensa pensando41. Sua concepção da razão, portanto, além de delirante, destaca limites, aponta falhas e fragilidades estruturais na racionalidade. Tendo isso em vista, Diderot sugere hipóteses provisórias e flexíveis mediadas pela experiência no lugar de convicções e certezas42. A hipótese ou conjectura é consagrada como o momento teórico por excelência43. E mais: graças a Diderot, a imaginação, a qual sempre foi subestimada e desprezada pela epistemologia, ganha valor cognitivo44; doravante, sua função será elaborar hipóteses. A filosofia torna-se, então, uma fundição de hipóteses, um ateliê de conjecturas. Desse modo, toda investigação filosófica deverá ser entendida literalmente como uma viagem sem paradeiro conhecido45, todo discurso passará a ser compreendido como um simples ponto de vista46, bem ao modo cético. Isso exigirá do filósofo um outro comportamento: o filósofo deverá ser, sobretudo, um ator. Do mesmo modo que o ator interpreta no palco vários personagens consciente de que tudo o que ele desempenha não passa de uma ilusão, o filósofo deverá interpretar os fenômenos por vários prismas, também com a consciência de que cada olhar pode equivaler também a uma ilusão. Assim como o ator desempenha, troca e abandona vários papéis, o filósofo deverá encarnar, trocar e abandonar as inúmeras hipóteses que invadirem o seu espírito47. Mas afinal, o que podemos esperar desse tipo de filosofar cético e libertino? O mínimo ou o máximo possível, diríamos, pois ele aceita a dimensão da contingência e do imprevisível, além de ser extremamente maleável e consciente da sua precariedade. Por ter inspiração no ceticismo, essa filosofia libertina não é em hipótese alguma uma espécie de negativismo metafísico ou de dogmatismo às avessas. Pela necessidade de coerência, ela admite que uma verdade absoluta e universal possa

32 - Cf. Idem, p. 163. 33 - Junto com d’Alembert, Diderot foi um dos principais responsáveis pela Enciclopédia, a suma filosófica da da Ilustração francesa, movimento do qual este, ao lado de Voltaire e Rousseau, foi um dos seus maiores expoentes. Nela encontramos o verbete “Filosofia”, de autoria desconhecida, o qual elege o espírito sistemático como um dos maiores obstáculos ao progresso da filosofia. Cf. Salinas Fortes, L.R. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo, Brasiliense, Col. “Tudo é História”, 1991, p. 50. 34 - Coulet, H. “Introduction a Le Neveu de Rameau”. In: Diderot, D. Oeuvres Complètes. Paris, Hermann, t. XII, 1989, p. 37. 35 - Versini, L. “Introduction a Le Neveu de Rameau”. In: Diderot, D. Oeuvres. Paris, Robert Laffont, t. II, 1994, p. 618. 36 - Fontenay, E. Diderot ou le matérialisme enchanté. Paris. Éd. Grasset et Fasquelle,1981, p. 228. 37 - Cf. Idem, Ibidem. 38 - Citado por Roberto Romano em Silêncio e Ruído: a sátira em Denis Diderot, op. cit., p. 135. 39 - É assim que Susan Sontag define o pensamento de Emil Cioran. Cf. Sontag, S. “‘Pensar contra si próprio’: reflexões sobre Cioran”. In: A vontade Radical. Trad. João Roberto M. Filho. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 77-96. 40 - Cf. Schmitt, E.E. op.cit., p. 296. 41 - Cf. Idem, p. 14. 42 - Cf. Idem, pp. 167 e 223. 43 - Cf. Idem, p. 165 44 - Cf. Idem, pp. 182 a 184. 45 - Cf. Idem, p. 296. 46 - Cf. Idem, p. 206. 47 - Cf. Idem, p. 296.

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existir e revelar-se a qualquer momento, como também acha plausível o contrário. Longe de ser um dogmatismo absolutista, ela é tampouco uma forma de relativismo dogmático48; admite, entretanto, que no relativismo há a vantagem da tolerância49. Uma filosofia cética, de natureza idiossincrática e libertina, que se constitui como um discurso fenomênico e que concebe a verdade como “uma questão idiótica”50, também deve ser lúdica e até bufônica. Brincar com as idéias, rir da razão, desconfiar dos discursos obscuros e excessivamente complexos, duvidar da legitimidade, da validade e da efetiva significatividade dos problemas filosóficos51, zombar das pretensões da filosofia, da arrogância dos filósofos e das próprias ousadias são posturas extremamente férteis e necessárias. Mas o mais importante de tudo é arriscar-se. Isso significa suscitar hipóteses, poetizar teorias, propor ficções que auxiliem a sobrevivência e que engendrem sentido à existência. Em suma, para a razão libertina é vital que as orgias do espírito permaneçam sempre efusivas e abertas a todas as idéias. Nesse sentido, as tolices também deverão ser bem-vindas, visto que, como assevera Montaigne, ninguém está isento de dizê-las52. Nem mesmo Sócrates, Descartes, Diderot ou os próprios céticos, acrescentaríamos. Contudo, é evidente que aos olhos da sacrossanta e burocrática filosofia universitária, com as suas inseparáveis notas de rodapé e suas sisudas referências bibliográficas53, tais idéias são consideradas, além de indecentes, extravagantes e insensatas. Em face disso, cabe ao filósofo libertino a seguinte frase de Montaigne: “se faço papel de louco, é a minha custa e sem prejuízo de ninguém”54.

Bibliografia

48 - Cf. Lessa, R. “Os céticos e o pósrelativismo”. In: Veneno Pirrônico: ensaios sobre ceticismo. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1997, p. 237. 49 - Cf. Idem, p. 238. 50 - Cf. Idem, Ibidem. 51 - Cf. Porchat, O. “O ceticismo pirrônico e os problemas filosóficos”. In: Cadernos de história e filosofia da ciência, Campinas-SP, Unicamp, jan.-dez. 1996, p. 97-157. 52 - Montaigne, M. Os Ensaios (Livro III). Trad. Rosemary C. Abílio. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 4. 53 - Vale a pena ler a bem-humorada crítica de Fernando Savater à filosofia universitária no prólogo da sua tese sobre Cioran intitulada Ensayo sobre Cioran, Madrid, Espasa-Calpe, 1992, p. 9-15. 54 - Montaigne, M. Os Ensaios (Livro II), op. cit., p. 70.

1. CIORAN, E. Breviário de Decomposição. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro, Rocco, 1989. 2. COULET, H. “Introduction a Le Neveu de Rameau”. In: Diderot, D. Oeuvres Complètes. Paris, Hermann, t. XII, 1989. 3. DIDEROT, D. “O Sobrinho de Rameau”, “Diálogo entre D’Alembert e Diderot”, “O Sonho de D’Alembert”. In: Textos Escolhidos. Trad. Marilena Chauí e J. Guinsburg. São Paulo, Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”, 1979. 4. ______. Jóias Indiscretas. Trad. Eduardo Brandão. Rio de Janeiro, Global, 1986. 5. ______. Jacques, o Fatalista, e seu Amo. Trad. Antônio Bulhões e Miécio Tati. São Paulo, Difel, 1962. 6. ______. “Lettre a Sophie Volland du 31 août 1769”. In: Correspondance. Éd. Laurent Versini. Paris, Robert Laffont, t. V, 1997. 7. FONTENAY, E. Diderot ou le matérialisme enchanté. Paris. Éd. Grasset et Fasquelle,1981. 8. HEMSTERHUIS, F. “Carta sobre o homem e suas relações”. In: Sobre o homem e suas relações. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo, Iluminuras, 2000. 9. LESSA, R. “Os céticos e o pós-relativismo”. In: Veneno Pirrônico: ensaios sobre ceticismo. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1997. 10. MONTAIGNE, M. Os Ensaios (Livros II e III). Trad. Rosemary C. Abílio. São Paulo, Martins Fontes, 2000/1. 11. PIVA, P.J.L. “Filosofia como idiossincrasia, ética como fenômeno: sobre o ceticismo de Plínio Smith”. In: Cadernos de Ética e Filosofia Política, nº 3, São Paulo, Humanitas, 2001. 12. PORCHAT, O. Vida Comum e Ceticismo. São Paulo, Brasiliense, 1994. 13. ______. “Oswaldo Porchat, o comum dos homens” (entrevista). In: Livro Aberto, nº 5. São Paulo, Cone Sul, agosto de 1997. 14. ______. “O ceticismo pirrônico e os problemas filosóficos”. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas-SP, Unicamp, jan.-dez. 1996. 15. ROMANO, R. Silêncio e Ruído: a sátira em Denis Diderot. Campinas-SP, Ed. Unicamp, 1996. 16. SADE, M. A Filosofia na Alcova. Trad. Augusto C. Borges. São Paulo, Iluminuras, 1999. 17. SALINAS FORTES, L.R. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo, Brasiliense, Col. “Tudo é História”, 1991. 18. SAVATER, F. Ensayo sobre Cioran. Madrid, Espasa-Calpe, 1992. 19. SCHMITT, E.E. Diderot ou la philosophie de la seduction. Paris, Albin Michel, 1997. 20. SEXTO EMPÍRICO. “Hipotiposes Pirrônicas” (Livro I). Trad. Danilo Marcondes. In: O que nos faz pensar, nº12. Rio de Janeiro, PUC-RJ, setembro de 1997.

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21. SMITH, P. “Do começo da filosofia”. In: O que nos faz pensar, nº 12. Rio de Janeiro, PUC-RJ, setembro de 1997. 22. SMITH, P. “Terapia e Vida Comum”. In: Discurso, nº 25. São Paulo, USP, 1995. 23. SONTAG, S. A Vontade Radical. Trad. João Roberto M. Filho. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. 24. VERSINI, L. “Introduction a Le Neveu de Rameau”. In: Diderot, D. Oeuvres. Paris, Robert Laffont, t. II, 1994.

______________________________________ * Paulo Jonas de Lima Piva é doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo e bolsista da FAPESP.

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IDÉIAS

PEQUENA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA IMEDIA TA: RUMO IMEDIAT A UMA INVESTIGAÇÃO NEUROCOGNITIV A NEUROCOGNITIVA RONALDO BISPO

DOS

SANTOS*

Resumo: O objetivo deste artigo é indicar um modo específico de conceber a natureza da experiência estética de modo a poder começar a responder experimental (ou à maneira da neurociência cognitiva) e parcialmente perguntas como: o que é o sentimento estético, como e por que um corpo o constrói para si, por que gostamos tanto de certos objetos, por que a percepção desses objetos queridos cria em nós uma sensação forte, especial, que alterações orgânicas (emoções) estão envolvidas etc. Para tanto, estabelecemos duas frentes de batalha. A primeira foi recuperar parte da tradição filosófica envolvendo o tema, relacionando as diferentes expressões dadas ao fenômeno e suas respectivas caracterizações. A segunda, mais curta neste contexto, foi apontar em linhas gerais como o fenômeno visado pode ser objeto de uma investigação científica, particularmente com o instrumental teóricoprático fornecido pela neurociência cognitiva.

X estava organizando arquivos de música em mp3 no computador pessoal em seu quarto de trabalho quando voltou o olhar na direção da janela e viu o céu com nuvens encobrindo os prédios, ruas e árvores do bairro onde mora. Ficou ‘impressionado’ com as cores e formas ao seu lado. Algo ‘especial’ aconteceu com ele, pois não conseguia tirar os olhos da janela e, ‘empolgado’ deve ter dito algo como “nossa”, e correu para pegar a máquina fotográfica e registrar aquele estado atmosférico. X voltava a pé da academia onde “malha” ouvindo um cd em seu mp3 player portátil quando ouviu os primeiros acordes da faixa “Tom The Model” de Beth Gibbons e Rustin Man. À medida que a música avançava, seu corpo foi tomado por um longo arrepio e um largo sorriso era visível em seu rosto. Ele parecia levitar e cantava, mesmo não entendendo a letra da canção. X acabara de ligar a TV e alternava os canais em busca de algo interessante quando se deparou com uma sequência rápida de imagens em tom sépia e de baixa definição. Imediatamente largou o controle remoto. Tinha sido fisgado por mais uma das criações bizarras de Lars von Trier, “The Kingdom”. X passeava por um Shopping Center e resolveu dar uma olhada na nova coleção outono-inverno de uma de suas lojas preferidas. Fitou, então, uma calça e acho-a diferente, “nova”; gostou e foi provar. X estava sentado no banco central do fundo do ônibus 875H – Lapa / Vila Mariana, sentido av. Paulista, lendo “A Gaia Ciência”, de Nietzsche, quando ouviu o barulho da catraca/roleta e levantou a cabeça. Viu então uma mulher esguia de pele branca e cabelos longos cacheados e negros. Não conseguiu mais tirar os olhos dela e todo o resto do percurso pareceu ser embalado pela intensidade daquela percepção. (...) O que teria acontecido nas situações descritas acima? Seriam todas elas

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Capela em Monte Santo - Bahia

variações de um mesmo fenômeno? Como e por que o corpo de X reagiu àqueles estímulos do modo como o fez? Uma das intuições ou hipóteses apresentadas é a de que todas as situações vividas por X inserem-se, são exemplos ou variações do fenômeno que a tradição filosófico-científica vem chamando, dentre outros modos, de experiência estética, prazer estético, juízo estético, experiência ou sentimento do belo, emoção, sensação ou sentimento estético. O objetivo deste texto é indicar um modo específico de investigar e conceber a natureza desse fenômeno, diferente dos habitualmente avançados até o momento, seja no âmbito filosófico, seja no científico. Esse modo ou modelo deverá ser capaz de indicar caminhos de solução, não só para as perguntas acima citadas, mas também para várias outras, como por exemplo, o que é o sentimento estético, como e por que um corpo o constrói para si, por que gostamos tanto de certos objetos, por que a percepção desses objetos querida cria em nós uma sensação forte, especial, que alterações orgânicas (emoções) experimentamos quando percebemos algo e dizemos: “Que lindo!”, “Ótimo!”, “Incrível!”, “Nossa!”. As hipóteses e intuições sugeridas aqui compreendem uma aposta ousada. Pretende-se elucidar os fenômenos experimentados por X, e suas variações, endereçando perguntas ao corpo biológico. Não desprezando ou esquecendo os aspectos psicológicos e culturais envolvidos, é no corpo do indivíduo que buscaremos respostas para suas preferências perceptivas, para seu gosto, para suas reações de prazer e desprazer. Para tanto, estabeleceremos duas frentes de batalha. A primeira será recuperar parte da tradição filosófica envolvendo o tema, relacionando as diferentes expressões dadas ao fenômeno e suas respectivas caracterizações. A segunda, mais curta neste contexto, será apontar em linhas gerais como o fenômeno visado pode ser objeto de uma investigação científica, particularmente com o instrumental teórico-experimental fornecido pela neurociência cognitiva. Dito mais uma vez, agora de outro modo, o presente texto visa caracterizar e nomear o que há em comum nas situações (e similares) vividas por X, ao mesmo tempo em que revisa as concepções com elas relacionadas, indicando em que cada uma delas contribui com o modelo aqui elaborado ou como se afastam dele. * O fenômeno sob investigação aqui é provavelmente tão antigo quanto o próprio ser humano e, quiçá, até mesmo anterior a este em sua manifestação rudimentar. Antes mesmo de começar a registrar suas primeiras representações artísticas nas paredes das cavernas e na fabricação de utensílios, o ser humano primitivo já devia ser tomado por sensações especialmente intensas diante das formas naturais ao seu redor. A evolução das formas artísticas deve apenas ter contribuído para variar esse efeito. Como fenômeno intelectual, foi “Estética” a expressão pela qual se passou, pelo menos desde o século XVIII, a referir-se à percepção sensível das formas do

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mundo e suas conseqüências. Desconsiderando, pelo menos explicitamente, séculos de elaboração filosófica sobre o tema, iniciamos nosso diálogo com a tradição, na busca de um modelo próprio de abordagem, com a invenção deste vocábulo por Baumgarten. Em 1750, Alexander Gottlieb Baumgarten (1993), em um livro homônimo, cunhou a expressão Aesthetica, derivando-a do grego aisthanomai, que quer dizer percepção por meio dos sentidos. Por aesthetica ou aesthetics, o autor compreendia a ciência ou doutrina do conhecimento sensível. Desse modo, em sua formulação inicial, estética referia-se antes de tudo a um programa de investigação e menos a uma propriedade dos objetos estudados ou a um tipo de emoção ou sentimento experimentado pelo ser humano. Para Baumgarten, enquanto a lógica ocupava-se das coisas inteligíveis, do conhecimento superior e racional, a estética ocupar-se-ia das coisas sensíveis e perfeitas, confusas, porém claras. “O fim visado pela Estética é a perfeição do conhecimento sensitivo enquanto tal. Esta perfeição, todavia, é a beleza. A imperfeição do conhecimento sensitivo, contudo, é o disforme, e como tal deve ser evitado” (Baumgarten 1993: 99). Desse modo, à estética caberia estabelecer as condições do conhecimento sensível e este seria obtido através da beleza representada nas artes estética como teoria do belo. Um pouco antes - afinal toda história tem sua pré-história -, no século XVII, uma outra expressão começava a ganhar espaço nos discursos sobre a arte e o belo. Era o nascimento da idéia de Gosto tal como a compreendemos até hoje. Foi por volta de meados do século XVII – inicialmente na Itália e na Espanha, depois na França e na Inglaterra, e mais tardiamente na Alemanha – onde houve até mesmo uma certa dificuldade de encontrar uma tradução adequada para a palavra Geschmack – que o termo adquiriu pertinência na designação de uma nova faculdade, capaz de distinguir entre o belo e o feio e de apreender, pelo sentimento (aisthêsis) imediato as regras de uma tal separação (Ferry 1994: 31). O surgimento do conceito de estética está também, portanto, intimamente ligado a essa concepção do gosto em circulação nos meios acadêmicos da época. A partir dela, o belo passa a ser pensado em termos de gosto, e não segundo critérios objetivos ou metafísicos. (ver sobre isso Bispo 1999 e Hofstader and Khuns 1976). “Com o conceito de gosto, efetivamente, o belo é ligado tão intimamente à subjetividade humana, que se define, no limite, pelo prazer que proporciona, pelas sensações ou sentimentos que suscita em nós” (Ferry 1994: 36). Poucos anos depois, em 1793, Immanuel Kant em sua Crítica da Faculdade do Juízo (1995), ignorando quase completamente o nome de Baumgarten, mas mantendo sua expressão e o então novo debate em torno do gosto, sugeria a concepção de Juízo Estético. Estética passa, então, a significar crítica do gosto. A estética deixa de ser parte de uma explicação do juízo teórico determinante, mas é aceita para exemplificar uma outra forma de juízo – o ‘juízo reflexivo’. O juízo determinante possui seu conceito e enfrenta a dificuldade de aplicá-lo apropriadamente à multiplicidade de aparências espaço-temporais, enquanto o juízo reflexivo está em busca de seu conceito através dessa multiplicidade; obedece a um princípio peculiar – relacionado com o sentimento de prazer e desprazer (Caygill 2000: 130). No entanto, o juízo reflexivo estético do gosto coloca para Kant uma dificuldade particular. Não admitindo regras ou princípios objetivos para a constituição dos objetos que consideramos belos, como seria possível afirmar a universalidade de nossos juízos sobre os mesmos? A solução de Kant para o problema normativo, em essência, é muito simples,

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Praia de Corumbau

embora sua apresentação seja bastante intrincada. Suponha-se que, ao emitir um juízo estético, façamos abstração de tudo que possa pertencer às nossas constituições contingentes, naturais, individualmente variáveis, e baseemos nossos juízos unicamente nas condições que sejam estritamente universais, no sentido de serem disponíveis e comuns a todos os seres humanos. Ou seja, suponha-se que baseemos nosso juízo estético na mera forma do objeto e em sua interação com nossas faculdades mentais básicas, universais de percepção e compreensão. Kant assegura que esse ponto de vista ‘universal’ pode ser alcançado se libertarmos nossa apreensão do objeto do desejo, da preocupação prática e de nossa compreensão conceitual a seu respeito. Quando essas severas condições são atendidas, o juízo que efetuamos é válido para todos. Temos, então, o que Kant chama de ‘puro juízo do gosto’, que possui ‘validade universal’ (Bunnin e Tsui-James 2002: 233). Evidentemente, essa solução foi duramente criticada em sua época e até hoje é alvo de enormes controvérsias. Com ela, o juízo estético perde boa parte de sua riqueza e limita-se a mera apreciação de forma. E mesmo a universalidade desta só está garantida se admitirmos uma forma a priori de percepção comum a todos os seres humanos. A contribuição de Kant na história da compreensão do fenômeno aqui estudado tem também outros aspectos. Ao colocar o sujeito no centro de sua concepção do fenômeno estético, Kant consolida definitivamente um novo vocabulário para a discussão. Estética deixa, então, de ser apenas uma doutrina ou teoria e torna-se um adjetivo, um qualificativo de uma experiência humana. O juízo é dito estético quando é a manifestação de um gosto que envolve um sentimento, prazer ou desprazer diante de determinado estímulo sensível. Excetuando a insistência de Kant no caráter universal, normativo, dos juízos estéticos, sua caracterização geral do fenômeno, e sobretudo seu vocabulário, devidamente redefinido, serão em parte utilizados, reaproveitados no modelo aqui proposto. Sem a menor pretensão de ter oferecido um apanhado mesmo que superficial da concepção kantiana do fenômeno estético – evitamos explicitamente embrenharmo-nos em seu texto complexo e por vezes impreciso – deixamo-la para trás e avançamos na direção da caracterização do que agora será chamado de experiência estética. Acompanhando a evolução de sua nomeação, o fenômeno aqui perseguido, que começa, então, como teoria do belo, forjada pela percepção sensível, encontra o problema do gosto e sua relação com prazer e desprazer e torna-se uma faculdade do sentimento capaz de um juízo em Kant. Intimamente a esta relacionado, o conceito de ‘experiência’, polissêmico assim como quase tudo em filosofia, associado ao estético, reforça a tendência, privilegiada aqui, de pensar este (estético) como um tipo particular de vivência ou cognição processada por um indivíduo. A expressão ‘experiência estética’, não localizada como verbete independente em nenhum dos dicionários de filosofia consultados (Abbagnano 2000, Mora 2001, Blackburn 1997), ganhou, possivelmente, sua primeira grande caracterização através de John Dewey e seu livro Art as Experience (Dewey 1980). Aproveitando a leitura de sua obra feita por Richard Shusterman (1998), podemos resumir a concepção de experiência estética em Dewey tal como segue.

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“A noção de experiência estética cobre inúmeros objetos que não temos o hábito de ver como artísticos (por exemplo, a arrumação de uma sala ou a atividade esportiva)” (Dewey apud Shusterman 1998: 21); “a integração dos meios e dos fins é característica da experiência estética e esta pode ser encontrada tanto no útil como nas belas-artes” (ibid.: 41-2); “a experiência estética é um prazer totalmente corporal, envolvendo ‘a criatura inteira na sua vitalidade unificada’ e rica em satisfações sensoriais e emocionais, desafiando a redução espiritual que faz do prazer estético um mero deleite intelectual” (ibid.: 46); “a experiência estética envolve todo o ser, integrando o diverso numa unidade, tanto em si como em conexão com o resto da experiência; de uma intensidade relativamente elevada, ela possui uma qualidade de envolvimento que lhe permite juntar partes num todo distinto; ativa e dinâmica, ela se desenvolve segundo um processo rítmico que inclui momentos de relativa pausa; é formada através de obstáculos e resistência que possibilitam que ela seja esteticamente expressiva, e não simplesmente emotiva; constitui uma experiência da forma satisfatória, em que meios e fins, sujeito e objeto, ação e submissão são integrados numa unidade; é sobretudo, uma ‘experiência imediata’ , cujo valor é ‘diretamente atingido’ e não adiado para algum outro fim ou experiência” (ibid: 48-9); “acumulação, tensão, conservação, antecipação, realização e completitude, somadas à intensidade emocional, constituem as qualidades marcantes de uma experiência estética” (ibid.: 234); “a experiência estética é diferenciada não pela posse única de um elemento particular, mas pela possível e excitante integração de todos os elementos da experiência ordinária, ‘formando um todo particular a partir de sua variedade’, o que dá ao sujeito da experiência um forte sentimento de totalidade e ordem do mundo” (ibid.: 245-6); “não pode haver experiência estética separada de um objeto, e para que um objeto seja o conteúdo de uma apreciação estética, ele deve satisfazer condições objetivas, sem as quais as condições necessárias para a experiência estética não podem ser alcançadas” (ibid.: 259); “a experiência estética é um episódio marcante, que acaba por se revelar agradável e que se distancia do fluxo monótono da vida, uma concentração ‘de significações e energias que resultam numa qualidade de satisfação emocional particular’; a experiência estética existe somente quando os elementos e as qualidades inerentes a ‘uma experiência são elevadas muito acima do limiar da percepção’ e apreciadas ‘por si mesmas’” (ibid.: 261); “a unidade da experiência estética não constitui um abrigo estável e fechado, no qual poderíamos repousar longamente numa contemplação satisfeita. É antes a unidade de evento móvel, frágil e evanescente, brevemente experimentado num fluxo atravessado de tensões contraditórias e desordenadas, momentaneamente dominadas. É um processo em desenvolvimento que, ao atingir seu ponto culminante, dissolve-se na corrente da experiência seguinte. Ela nos impulsiona ao desconhecido e nos convida a construir uma nova experiência estética, a recriar uma unidade efêmera a partir dos vestígios das experiências passadas e dos recursos do presente” (ibid.: 267). Essa longa caracterização evidencia que, se por um lado, Dewey teve o mérito de expandir as fontes de experiência estética para além dos limites das artes tradicionais e das paisagens naturais, incluindo lá os inúmeros aspectos da vida cotidiana, por outro, tornou o fenômeno excessivamente abrangente e vago. As situações vividas por X, descritas no início desse texto, não corresponderiam completamente à descrição de experiência estética proposta por Dewey. Apesar disso, como mostraremos adiante, Dewey parece ter avançado, o que será fundamental na estrutura de nosso modelo explicativo, vale dizer, os aspectos corporais e mentais, emocionais e sentimentais envolvidos no processo. Antes de apresentarmos nosso próprio conceito de experiência estética e seu modelo explicativo, cabe registrar, ainda, alguns outros desenvolvimentos sobre o tema. Pesquisa realizada em bibliotecas e livrarias da cidade de São Paulo, bem como através do buscador Google na internet, revelou que é relativamente reduzido

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o número de publicações que abordam especificamente o fenômeno da experiência estética ao qual estamos filiando as vivências de X. Além dos já citados Dewey e seu recente comentador Shusterman, não encontramos o tema no título de obras significativas1. Avaliamos que isso se deve em parte ao predomínio da postura analítica em filosofia e a resistência à expansão do reconhecimento do estético para além das obras de arte tradicionais. O conceito desenvolvido por Dewey ampliou e biologizou de tal modo o fenômeno da experiência estética que ele deixou de ser passível de análise lógico-lingüística e avançou sobre os mais variados momentos da vida cotidiana. A extensão e vagueza dada na definição de Dewey permitiu que alguns autores incluíssem, entre as experiências estéticas, um conjunto bastante heterogêneo de fenômenos. Em busca de um denominador comum na definição de experiência estética, destacamos, em cada texto lido sobre o assunto, dois aspectos: como cada autor caracteriza o fenômeno e que objetos ou situações o suscitam. Paul Edmonston, em seu texto Some Characteristcs of The Aesthetic Experience, é um desses autores que extrapola a caracterização que queremos reter do fenômeno e aproxima-o da experiência religiosa. Como características da experiência estética Edmonston refere: é pessoal, solitária e intransferível; sensação de estar destacado e envolvido ao mesmo tempo com o objeto da EE; sensação de atemporalidade comprimida ou dissolvida; sensação de unidade e identificação com o objeto; sensação de intensificação peculiar de maravilha, de exaltação, de reverência acompanhada por um fresco despertar para a sensação da própria insignificância em face da vastidão, da infinitude, da grandeza do outro seja este designado por natureza, Deus ou alguma força indefinível; deleite, calma, terror sem ameaça real; clarificar e intensificar, aprofundar e estender e redefinir o que pode de outro modo ser descrito como os acontecimentos da vida cotidiana; o ordinário toma o caráter do extraordinário, o normal torna-se sobrenatural, o usual torna-se incomum, tomando o caráter inefável do mistério e enquanto lembrado e mesmo revivido mais tarde em reflexão ou tranqüilidade, ele permanece único como na primeira ocasião na qual tornou-se conhecido; não usualmente reproduzido pelo ato de vontade, embora uma atitude de abertura e receptividade para sua aparição potencial pode ser cultivada e desejada. Entre os objetos e situações que disparam essa avalanche de sensações, Edmonston destaca: abertura das ocupações ordinárias para contato com a natureza ou com a música; ouvindo música ou poesia, refletindo sobre a natureza da existência engendrada pelas qualidades especiais ou influências sutis de seu pensamento; o monumental na natureza; relâmpago, tempestade, terremoto, enchente, incêndio. Na trilha de Dewey, o pragmatista George Herbert Mead em um texto intitulado La Natureza de la Experiencia Estetica estabelece como principal característica desta, a aproximação ou indiferenciação entre os meios e os fins de uma atividade qualquer. Mead, assim como Dewey, vê no distanciamento (também chamado de alienação) entre o fazer prático e o desfrute de seus resultados a maior fonte de infelicidade no mundo moderno. A experiência estética trataria, portanto, de unir o técnico e o final com o intento de captar a culminação dos esforços do homem em sociedade ao infundir significado aos pequenos detalhes de sua existência. “Sua principal característica é seu poder para capturar o prazer que corresponde à culminação, ao resultado, de uma iniciativa; e para imprimir aos instrumentos e aos atos que a compõem algo do êxtase e da satisfação que sucede o êxito”. Entre as situações e objetos que suscitam EEs, Mead sugere uma catedral, pela beatitude que permeia o esforço cotidiano dos homens atrás da salvação divina; uma paisagem natural, pelo deleite que se segue à adequação do próprio corpo as suas reações aos elementos da paisagem; a escultura, pelo prazer que envolve nossa reação corpórea e social à forma humana; a dança, pela felicidade que anima os movimentos harmoniosos; as obras de arte em geral, o trabalho coletivo que leva o outro em conta, esforços de intermediação, reflexão, pensamentos elevados, festivais e ocasiões solenes. Caracterizando-as adicionalmente, Mead afirma que as EEs são meios

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1- Exceções: Dufrenne, Mikel. Phenomenologie de la Percepcion Esthetique. Paris: Presses Universitaires de France, 1967 e Maquet, Jacques. Aesthetic Experience. Yale University Press. (Livros não consultados).

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coerentes com os fins, acarretam a satisfação que pertence aos desenlaces, envolve emoções, afecções, prazer e dor, satisfação e insatisfação; aproxima fazer e desfrutar, evidenciando este último. O ânimo estético é mais de apreciação do que de ação. Menos atenção aos meios, às funções, ao emprego de algo, e mais ao desfrute, às conseqüências, à contemplação; o ganho futuro de um padrão bem-sucedido. Envolve e exige tarefas gratificantes. O desfrute de seu uso final deve vir sugerido em cada passo intermediário de sua produção e deve fluir com naturalidade no ofício que o produz. Na criação, o deleite estético normal é a recuperação do sentido da meta final no ganho parcial que assegura o interesse da tarefa. O efeito genuinamente estético ocorre quando o prazer serve para manifestar os valores sob os quais se vive. O efeito estético envolve uma resposta imediata. Em uma abordagem muito semelhante a que será sugerida aqui, Pierre Weil (1969), no artigo intitulado “Experiência Sublime e Experiência Estética”, estabelece como objetivo responder: “em que consiste a emoção estética? Como se manifesta? Que critérios permitem afirmar que a estejamos sentindo?” (ibid.: 89). Por emoção, Weil entende “toda modificação muscular ou neuro-vegetativa acompanhada da percepção completa ou não dessas modificações, seja provocada por estímulos sensoriais ou representativos” (ibid.: 88). Retomando a definição de Baumgarten de estética como ciência do belo, Weil define a “Emoção Estética como a emoção (no sentido antes definido), despertada por estímulos belos” (ibid.: 89). O que, na verdade, não explica muita coisa. Em seguida, Weil apresenta como a psiquiatria, a psicologia fisiológica e a psicologia experimental e geral podem contribuir para a compreensão do fenômeno. Segundo ele, dados da psiquiatria demonstram que, “sob o efeito do LSD, conseguese provocar experimentalmente emoções estéticas. Essas se caracterizariam por euforia ligada a percepções mais agudas de cores, formas e símbolos” (ibid.: 89). Da psicologia fisiológica, o autor retira um método experimental: “Em psicologia experimental, medem-se as reações emocionais: é perfeitamente possível registrar as reações respiratórias, circulatórias, musculares, eletrocutâneas, eletroencefalográficas, por exemplo” (ibid.: 89). O problema é saber se as modificações constatadas são devidas ao estético, ou a uma experiência de outro tipo qualquer. Uma das conclusões provisórias a que ele chega é a de que estímulos visuais complexos aumentam a reação emocional. Weil não estabelece que objetos ou situações dariam lugar a experiências sublimes e emoções estéticas, mas ao relatar a experiência de Abraham Maslow com 190 universitários, o qual solicitou desses alunos a descrição da mais maravilhosa experiência de suas vidas, os exemplos sugeridos são a “experiência provocada pelo

Flora do Estado da Bahia

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amor ao ouvir uma música, ou de ter uma impressão na leitura de um livro, ou ao ver uma pintura, ou no momento de criar algo...” (ibid.: 91). Maslow solicitou, ainda, que cada um dos entrevistados descrevesse o que sentiu em cada uma dessas experiências maravilhosas. Entre as respostas mais freqüentes, encontramos: 1. Percepção de uma totalidade, de uma unidade completa, desligada de relações, ou da idéia de utilidade, de conveniência ou de algum propósito; 2. desaparecimento da relação figura / fundo; a atenção é total; não há avaliação, julgamento, comparação; 3. percepção da natureza como algo na qual o homem tenha pequena importância; (...) desaparece a tendência antropocêntrica; 5. a repetição da experiência sublime enriquece sua percepção; 6. a experiência sublime basta-se a si mesma; 7. em todas as experiências sublimes há uma desorientação no tempo e no espaço; 8. a experiência sublime é sempre vista como sendo algo de bom e desejável, nunca como algo indesejável ou prejudicial. A experiência perfeita em si, não precisa de mais nada; (...) 11. a reação emocional da experiência sublime é descrita como tendo um sabor de maravilhoso, de reverência, de admiração, de humildade, de rendição ante algo de grande; 12. o universo é percebido como um todo (...) (ibid.: 91-2). A lista vai até o item 19 e é concluída com a admissão, por parte de Weil, de que a experiência sublime e a emoção estética constituem o mesmo fenômeno. Um último aspecto que convém ressaltar da caracterização da EE feita por Weil é a de que grande parte dos valores ressaltados nessas experiências – totalidade, perfeição, beleza, vitalidade, verdade etc – são valores que Maslow chamou de valores B (de Being / Ser) ou intrínsecos, que se opõem aos chamados valores D (de deficiência de necessidades básicas) – metabolismo, reprodução, conforto, segurança, saúde etc – e que é bem possível que a emoção estética seja a expressão do alívio da tensão criada pela existência de metamotivos, ou das necessidades B. Maslow afirma que há a possibilidade de demonstrar que os valore B (de Being, isto é, Ser, valores intrínsecos) correspondem, na realidade, a necessidades instintivas, especificamente humanas; que a curiosidade, isto é, a procura da verdade, por exemplo, é um instinto ao mesmo título que a necessidade de vitaminas ou o instinto sexual (idem: 96). Um último exemplo selecionado de caracterização do fenômeno é o encontrado no livro de Rosário Fusco (1952), “Introdução à Experiência Estética”. Nele, o autor restringe a fonte de EEs a uma qualidade percebida por nós apenas nas obras de arte. Para Fusco, a EE é resultado do encontro de um sujeito e de um belo artístico elaborado por outro sujeito. O que caracteriza a obra de arte é o que adicionamos de subjetivo, de particular, de nosso àquilo que o objeto já trazia, por aquisição direta, do criador. De um modo ou de outro, deduz-se que arte é coisa fabricada, humana. Não posso, senão por extensão, dizer que há estética na natureza, se o belo artístico não existe ali. Estética, para o nosso caso, é expressão só aplicável às artes (às belas-artes, direi melhor), porque é conceito decorrente de uma especial ‘comunicação’ entre sujeito e objeto (Fusco 1952: 8). Desenvolvendo seu argumento, Fusco afirma que sentir é sentir algo e que o que sentimos são sensações e estas estão sempre acompanhadas de inteligência. Sentir é perceber. Ao sentir e perceber, duas outras coisas podem apressar a tomada de consciência: o julgamento (atribuição de valor) e a vontade (esforço da atenção). Nessa direção, o autor sugere que “sensações estéticas são aquelas capazes de determinar associações de idéias, ou associações de sensações de certo tipo que, além de isolar-

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nos da esfera real, ‘criam’, para nós, uma ‘realidade’ nova” (ibid.: 11). Avançando algo que só desenvolveremos mais adiante, uma pista do porquê determinado estímulo conduz a uma sensação estética, Fusco afirma que a memória tem um papel fundamental na retomada das sensações adquiridas (passadas) com vistas à valorização da sensação estética atual (presente). A simples ‘lembrança’ da sensação já é uma afetação ponderável no meu julgamento, pois dela depende o valor que darei a obra de arte considerada. E a minha consciência artística formar-se-á, justamente, desse acervo de elementos aferidores da (minha) beleza. Ora, o simples conceito popular de valor prevê, por si mesmo, um conhecimento anterior de algo (ibid.: 13). Apesar da referida pequena quantidade de textos relacionados especificamente com a problemática em debate, certamente a seleção aqui mostrada representa apenas um recorte ainda menor daquela. Seu objetivo foi desenvolver o que tradicionalmente tem-se chamado de experiência estética e explicitar as diferentes concepções sobre a mesma. Passamos, agora, a comentá-las, no momento em que nelas reconhecemos ou não as características apresentadas nas situações vividas por X, bem como ressaltamos de que modo essas diferentes concepções contribuem para o estabelecimento de nossa própria concepção de EE e seu modo de investigação. * Pois bem. Do sentido original de “estética” em Baumgarten, retemos a idéia da percepção por meio dos sentidos, porém não mais como uma doutrina ou ciência, mas, sim, como uma propriedade de um sentimento, formando uma classe ou espécie de sentimento. “Estética” torna-se para nós “estética(o)” e é essencialmente um adjetivo a modificar o substantivo experiência. Certamente, a beleza segue como sendo a mais importante qualidade a disparar EEs, mas não esperamos encontrá-la apenas em obras de arte. De Kant registramos, sobretudo, a aproximação realizada por ele entre o juízo estético e a questão do gosto, particularmente a ênfase no sentimento de prazer e desprazer. A concepção de experiência estética defendida aqui é intimamente dependente do gosto individual. Gostar ou não gostar, sentir prazer ou desprazer determinarão a instauração ou não de uma EE. Nem todo prazer é prazer estético, mas toda experiência estética é prazerosa em algum grau. Como evidenciaremos mais adiante, a identificação do estético é uma forma de conhecimento e, portanto, de permanência. Evolutivamente, estratégias bem-sucedidas de permanência, em geral, foram acompanhadas de recompensa na forma de prazer. Este, inclusive, pode ser pensado como um índice de sucesso perceptivo. Só em casos anômalos poderíamos conceber uma experiência estética desprazerosa. Ainda sobre Kant, convém ressaltar aqui nossa rejeição a qualquer possibilidade de afirmação de uma universalidade do juízo do gosto. Não apenas os objetos e situações que disparam EEs variam de pessoa para pessoa, vale dizer, de corpo para corpo, como também a especificidade de cada experiência, sua natureza e intensidade são igualmente variáveis. Por fim, vale frisar também que mesmo sabendo que a EE envolve um juízo perceptivo e racional, este não necessariamente se expressa em palavras. O aspecto da EE que estamos ressaltando aqui dispensa, em grande medida, a linguagem verbal e é sobretudo da ordem da percepção e da sensação. Percepção sensível de objetos e situações, sensação interna do corpo reagindo ao percebido externamente, percepção simultânea do objeto e do corpo por ele modificado (ver mais adiante os três momentos da EE). Dewey, por sua vez, expande consideravelmente o alcance da estética ao

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associá-la à noção de experiência. Se um por um lado essa atitude inclui um número excessivo e impreciso de situações, por outro, sua caracterização, acima exposta, não deixa dúvida de que as situações vividas por X são exemplos de EEs. Na concepção defendida aqui, explicitada logo adiante, distanciamo-nos de Dewey apenas parcialmente. Se assim o fazemos, é menos por considerá-la equivocada e imprecisa e muito mais como função de uma escolha prática, metodológica. Entre nossos objetivos, está a fundamentação teórica da possibilidade de observação empírica, experimental do acontecimento de uma experiência estética. Características como “integração dos meios e dos fins” ou “acumulação, tensão, conservação, antecipação, realização e completude” ou ainda “forte sentimento de totalidade e ordem do mundo”, referidas por Dewey, dificilmente ganhariam a tradução neurofisiológica pretendida aqui. Exceto por isso, nossa definição de EE compartilha, endossa e beneficia-se largamente da caracterização deweyana. Acompanhamo-la na promoção dos objetos e situações “não-artísticos” como possíveis fontes de EES, na afirmação do prazer corporal e das satisfações sensoriais e emocionais, na identificação do caráter imediato de sua instauração (ainda que o próprio Dewey afirme a presença de um processo rítmico com momentos de pausa), na importância dada a presença de um objeto satisfazendo condições objetivas para o surgimento de uma EE; no destaque da qualidade marcante, agradável que a distancia do fluxo monótono da vida; e, finalmente, em sua ressalva da necessária fugacidade do fenômeno. Entre todos os autores comentados, Edmonston é certamente o que mais se distancia da proposta desenvolvida neste contexto. Sua visão da experiência estética parece estar mais próxima ao que normalmente associamos à experiência mística e religiosa ou mesmo ao sublime kantiano. Evidentemente, não é que as sensações descritas por ele não existam ou que não possam fazer parte de um conceito de experiência estética ampliado; apenas não é desse modo que a concebemos aqui. Mead, por sua vez, ressalta o aspecto particularmente interessante e profundo da aproximação entre meios e fins em uma atividade qualquer, já por nós descartado. Seu foco parece estar mais voltado ao aspecto social e político da experiência estética. Ou, dito de outro modo, sua ênfase parece politizar e sociologizar a EE. Tal preocupação, nem precisamos dizer, é absolutamente pertinente mas, do mesmo modo, afasta-se de nossos objetivos. A EE na visão de Mead é, sobretudo, uma experiência de partilha, de inclusão e de sentido. É muito provável que essas sensações estejam presentes de algum modo nos fenômenos que estamos privilegiando, fazem parte da resposta ao por quê sentimos prazer e alegria ao percebermos certos objetos, mas são menos contingenciáveis e mais complexas em vista do tratamento que queremos dar à questão. No que se refere às perguntas e ao programa de investigação, Pierre Weil é certamente o autor que mais se aproxima de nosso enfoque. Apesar de não apresentar soluções para os problemas apresentados, suas questões são bastante semelhantes as nossas, exceto por não incluírem o aporte neurofisiológico, talvez por seu desenvolvimento limitado na época de publicação do texto. Sua definição de emoção é praticamente idêntica a que estaremos utilizando, embora sua definição de emoção estética pareça-nos excessivamente limitada e redundante. Acompanhamo-lo igualmente na intenção experimental como método de identificação da emergência da experiência estética em um indivíduo. Por outro lado, tal como acontece na caracterização de Edmonston, de Mead e do próprio Dewey, as respostas ao experimento de Maslow, relatadas por Weil, apontam para o que podemos, enfim, sugerir, aqui chamar de “grande experiência estética” ou “experiência estética ampliada”. O referido desaparecimento do Eu e sua dissolução no todo da natureza, a exigência de nexo e gozo significativo entre as etapas e conclusão de uma ação prática ou as idéias de perfeição e maravilhamento, aproximam a grande experiência estética da experiência do sublime, da experiência religiosa, mística e do acionamento de um conjunto possivelmente mais amplo, ou

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no mínimo diverso, de circuitos e sistemas orgânicos. Em contrapartida, nosso objetivo é compreender e delimitar o que sugerimos chamar “pequena experiência estética” ou “experiência estética restrita” tal como a definiremos logo adiante. Por fim, Rosário Fusco, seguindo o caminho inverso, limita a EE à percepção de obras de arte. Não cabe aqui entrar em detalhes mas, mais uma vez, vale a afirmação de que dentro do cenário montado por ele, sua concepção é perfeitamente coerente e válida. Além disso, Fusco, entre todos os autores citados, é aquele que mais parece aproximar-se de uma compreensão científica do fenômeno em discussão. Sua definição de sensação estética e sua inclusão no debate das idéias de memória, atenção e valor parecem-nos perfeitamente traduzíveis para uma abordagem experimental. Dadas as situações vividas por X, claro está que não acompanharemos o autor em sua restrição dos objetos passíveis de darem lugar a EEs.

Nossa Senhora das Dores, imagem do século XVIII

* Cabe agora, sem mais delongas, apresentar o que consideramos ter acontecido nas situações vividas por X e, dito de outro modo, nossa própria concepção de experiência estética e seu modo de investigação. Antes de mais nada, é preciso dizer que qualquer que seja a descrição do fenômeno da experiência estética sugerida aqui, esta será necessariamente provisória e incompleta. Isso por várias razões. Em primeiro lugar, avaliamos que a experiência estética é uma experiência subjetiva, um estado mental consciente, e como tal, é de uma natureza ainda não completamente compreendida. Ninguém sabe afirmar ao certo o que é um sentimento ou o que é consciência; nesta área, trabalha-se sempre com aproximações e uma boa dose de intuição. Em segundo lugar, mesmo se soubéssemos definir perfeitamente a ontologia da experiência consciente do tipo estética, ainda assim esta não seria a recorrência monolítica resultante do disparo de um único e idêntico conjunto de processos, circuitos e sistemas orgânicomentais. Em boa medida, cada experiência estética é absolutamente única em sua manifestação atual. O conjunto de propriedades que cada ocorrência envolve pode ser bastante variável; inútil seria tentar esgotar todas as suas características ou a série de coisas que nunca deveríamos esperar encontrar. Por último, nossa própria concepção de EE constitui um work-in-progress, sendo retocada, remodelada à medida que novas informações teóricas e sensações pessoais pareçam exigir tal trabalho. Pois bem, do surgimento da expressão “Estética” ao desenvolvimento do conceito de EE, muitos fenômenos parecem ter sido incorporados no mesmo campo semântico. Não desprezando ou negando a existência dos fenômenos mais profundos e possivelmente mais intensos incorporados ao conceito, gostaríamos aqui de restringir seu alcance e definir experiência estética como toda percepção sensível de um objeto ou situação que provoca uma alteração orgânica imediata tal que induz a alguma(s) das seguintes sensações e/ou reações: alegria, prazer, interesse, vontade de vida, beleza, atenção, lágrima nos olhos, sorriso no rosto, dilatação do órgão envolvido na percepção, rápida associação de idéias e sentimentos, vontade de permanecer sob o efeito do objeto etc. Sugerimos nomear

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adicionalmente esse fenômeno, que supomos encobrir as situações vividas por X, como “pequena experiência estética imediata”, cabendo agora compreender como e por que emerge no corpo-mente de um indivíduo2. Antes um parênteses. O leitor poderá estar se perguntando: com que direito e pertinência o autor ousa introduzir um novo significado para uma expressão tão antiga e utilizada? Ou ainda, por que o autor não evitou essa expressão cheia de implicações filosófico-existenciais e utilizou mais simplesmente algo como prazer estético ou sensação de beleza, perguntando então: como um corpo constrói para si um prazer estético ou uma sensação de beleza? Nossas respostas para essas objeções serão apresentadas a seguir: Como foi demonstrado na apresentação das diferentes concepções de EE, não existe consenso em torno da demarcação do fenômeno; não fosse isso, certamente teríamos evitado a referida expressão. A diversidade de pontos de vista sobre o tema deixou-nos à vontade para uma reapropriação que correspondesse melhor aos nossos objetivos, observando-se, é claro, uma considerável afinidade com seu sentido original. A segunda questão é bem mais embaraçosa e até esse momento não estamos certos de que as situações vividas por X não possam ser chamadas simplesmente de prazer estético (o que evitaria todo o palavrório das últimas paginas). Do mesmo modo, a sensação de beleza está presente em todas elas, de tal modo que podemos dizer belo céu, bela música, bela imagem, bela calça, bela mulher. Poderíamos argumentar que o prazer está presente em várias outras experiências humanas e que, então, caberia investigar se o prazer estético é diferente do prazer sexual, do prazer de comer, do prazer de se aquecer, etc. Do ponto de vista neuroquímico, talvez o prazer seja o mesmo e o que mudaria em cada caso seriam as outras sensações associadas. Deste modo, caberia, sim, a utilização da expressão experiência estética; seria o conceito mais amplo de experiência que ajudaria a especificar o prazer envolvido3. Outro argumento podemos retirar da própria objeção. O fenômeno que estamos investigando não é apenas o prazer estético e nem apenas a sensação de beleza, mas principalmente ambos e é exatamente o conceito de experiência estética que permite reuni-los. Por fim, quanto a isso, parece-nos que, mesmo dado o recorte apresentado, que privilegia os aspectos do prazer e da beleza, o objeto em estudo não se resume a estes. Quando X ouve a música de Beth Gibbons certamente sente uma sensação agradável e é capaz de dizer dela que é bela, mas o que o faz chorar e ficar arrepiado dos pés a cabeça? Quando X solta o controle remoto e começa a acompanhar o

Rio São Francisco, Juazeiro.

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2 - Cremos que apesar da frágil definição – a lista de sensações e reações apresentada pode ser maior ou menor em cada ocorrência do fenômeno –, esta constitua uma hipótese de trabalho razoável com a qual podemos avançar temporariamente. É certo que nem todas as EEs envolvem todas essas reações, assim como é certo que podem envolver muitos outros sentimentos e pensamentos além dos citados, mas é no aspecto indicado que queremos nos concentrar. 3 - Não que a questão desapareça nesse novo nível. O que distingue – tanto do ponto de vista da experiência subjetiva, quanto da observação neurofisiológica objetiva – uma experiência estética de uma experiência amorosa, sexual, gastronômica, de realização etc? Este, certamente, é um dos problemas mais interessantes com o qual permanecemos em diálogo no curso dessa investigação, mas que evitaremos no contexto atual.

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filme de von Trier, o interesse gerado por sua obscuridade e estranheza apenas tangencialmente pode ser associado a prazer e beleza. Medo e espanto parecem proeminentes. *

4 - Não pretendemos exatamente encontrar respostas exaustivas para perguntas tão complexas. Nossa intenção é reunir evidências e avançar possíveis caminhos de solução. Isso quanto ao como. Quanto ao porquê, nem isso. As sugestões apresentadas aqui são parte de uma pesquisa de doutorado em andamento. Nesta oscilamos intermitentemente entre a postura científica e a filosófica. A ciência aproxima-se de desvendar o como, a filosofia não pode provar, mas podemos concordar ou não com suas afirmações quanto ao por quê.

Superado o problema da caracterização geral do fenômeno, nossa questão agora é: como e por que um corpo cria para si sensações tais como as experimentadas por X?4 Para começar a responder essa questão, é necessário, primeiramente, contextualizar algumas premissas. Desde meados do século passado, avanços nas ciências da mente, acelerados por sua vez por descobertas em biologia molecular e em neurofisiologia e pelas invenções em tecnologia de neuroimagem, evidenciaram cada vez mais que nossas funções mentais - pensar, lembrar, falar, sentir emoções etc - são indissociáveis e intimamente relacionadas ao corpo e em particular ao cérebro e ao sistema nervoso. Essas descobertas permitiram que reorientássemos nossas perguntas em filosofia e nas humanidades em geral. Nossas características humanas mais distintivas como amar, pensar, falar, ter sentimentos começam a ser explicadas através da genética e da neurofisiologia. Alma, espírito, mente e todos os seus modos estão definitivamente encarnados nos corpos que as produzem, são emergências destes. Por toda parte busca-se os correlatos ou substratos neurofisiológicos de nossas funções mentais superiores. Entre estas, destacase a consciência. De difícil definição e investigação, a consciência é ainda um mistério para a ciência - O que é a consciência? Como se manifesta? Será possível simular a consciência no laboratório? Estas são algumas perguntas em aberto. Apesar disso, alguns autores, filósofos, cientistas cognitivos, neurocientistas arriscam os primeiros passos na direção de respostas para estas perguntas, como António Damásio. Em seu livro intitulado originalmente The Feeling of What Happens – body and emotion in the making of consciouness (Damásio 2000), Damásio apresenta sua própria concepção de consciência. Muito resumidamente, para o autor, consciência é um sentimento de si gerado pelo relato não-verbal resultante da percepção concomitante das alterações orgânicas e do objeto que as provoca. Para compreender esta definição, é preciso esclarecer o modo particular como Damásio entende as idéias de emoção e sentimento. Como neurologista e neurocientista que é, para ele todas as nossas funções mentais, bem como a consciência, são resultantes de diferentes acionamentos da matéria orgânica que constitui o corpo, como sinapses, diferenças de potencial, neurotransmissores, circuitos e sistemas neurais em incessante atividade. Sempre de acordo com Damásio, nosso cérebro mapeia o estado de nosso corpo ininterruptamente graças às informações que lhe são enviadas do conjunto que compreende pele, órgãos vitais, vísceras e meio interno através das interconexões do sistema nervoso central. Algumas modificações particularmente importantes e sensíveis desses sistemas corporais são sinalizadas mais intensamente no cérebro. A essas modificações Damásio dá o nome de emoção. Emoção é, portanto, o conjunto de estados do corpo – órgãos, vísceras, meio interno – em um determinado momento. Em outras palavras, emoção é o conjunto de reações orgânicas, a maior parte delas publicamente observáveis, ou o conjunto complexo de reações químicas e neurais em face da percepção de um objeto externo ou interno. Emoções são observáveis do ponto de visa de uma terceira pessoa (expressão facial, ritmo dos movimentos do corpo) e são quantificáveis (batimento cardíaco, sudorese etc). Até aí pouca novidade. Essa é a mesma concepção de emoção apresentada por Weil (ver acima) e desenvolvida no início do século por William James (ver Damásio 1996: 158-9). Damásio inova mesmo é na compreensão da idéia de sentimento. Para ele, sentimento é precisamente o mapeamento que o cérebro realiza das modificações corporais. Vale dizer, um sentimento é a percepção de uma emoção. Ao contrário da emoção que pode ser observada por uma terceira pessoa, os sentimentos são experiências subjetivas acessíveis apenas na perspectiva de primeira

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pessoa. Sentir uma emoção consiste em ter imagens mentais originadas em padrões neurais representativos das mudanças no corpo e no cérebro que compõem uma emoção. Isto explicitado, Damásio parte então para apresentação de sua concepção de consciência. Para ele, consciência é sinônimo do sentido de self5. É um pulso neuroquímico que acompanha nossas percepções internas e externas, responsável pela sensação de que estas têm um dono que é o próprio self, que pertencem a ele e a mais ninguém. Em termos mais objetivos, a consciência surgiria como um sentimento do sentimento. A seqüência, então, seria: um objeto é percebido pelo organismo; esta percepção ativa circuitos cerebrais e estes estimulam mudanças no funcionamento do corpo (emoção); esta ativação e estas mudanças são percebidas por outros circuitos cerebrais (sentimento); um padrão neuronal de segunda ordem tem lugar reunindo a percepção do objeto percebido inicialmente e a percepção das mudanças na paisagem corporal (consciência). Em seu livro, Damásio esmiúça detalhadamente vários outros aspectos dessa concepção de consciência, mas para nosso objetivo, podemos ficar por aqui. Isto exposto, voltemos à questão: como e por que um corpo constrói para si uma experiência estética? Propomos compreender e investigar a experiência estética como o conjunto de processos que inclui emoção, sentimento e consciência no sentido aqui apresentado. Assim, a emoção estética consistiria nas mudanças orgânicas causadas pela percepção de um objeto, o sentimento estético, o mapeamento cerebral dessas mudanças com a conseqüente emergência de sensações e reações já referidas; por fim, a consciência estética seria um modo transitório do sentido do self alcançado pela percepção concomitante do objeto e das alterações orgânicas provocadas pelo mesmo. Em outras palavras, um corpo constrói para si uma EE através da ativação de circuitos e sistemas específicos do corpo e do cérebro e, assim, o faz função de determinada predisposição neurofisiológica inata e adquirida. Nossa hipótese principal é a de que certos objetos e situações ativam registros dispositivos cerebrais associados a sistemas de gratificação e/ou recompensa. Não é caso agora de entrar nos detalhes dessa proposição. O objetivo desse texto é apenas introduzir uma concepção e uma estratégia de investigação da EE. O aprofundamento da argumentação ainda está em curso na redação de nossa tese de doutoramento. Para concluir, apenas indicaremos alguns passos necessários para o desenvolvimento da hipótese. A concepção de EE apresentada aqui permite torná-la, em boa medida, objeto de pesquisa experimental, laboratorial, empírica e, portanto, propriamente científica. Integra, assim, a reunião de esforços representado pelas ciências cognitivas que pretende desvendar a natureza e o funcionamento de todos os aspectos da mente humana. Mais particularmente integra e, de certo modo, amplia uma linha de pesquisa que podemos denominar Arte e Cérebro ou neurofisiologia do estético que tem por objetivo investigar a produção e recepção de obras de arte através da compreensão do funcionamento e organização do cérebro, dos órgãos sensíveis e do sistema nervoso que os reúne. Os avanços nessa área de pesquisa específica podem ser conhecidos particularmente em duas edições do periódico Journal of Consciousness Studies (1999, 2000) e na obra de Semir Zeki (1999). A linha ascendente dessa investigação pode ir ainda mais longe e encontrar em Nietzsche (1992) um primeiro precursor. Em O Nascimento da Tragédia, o filósofo alemão fala explicitamente em uma fisiologia da estética indicando que as raízes de nosso gosto deveriam ser pesquisadas no corpo e em suas predisposições. Mais recentemente, a psicologia cognitiva e a psicanálise desenvolveram a mesma linha de investigação e vêm buscando encontrar as bases objetivas da apreciação estética (Berlyne 1974), (Baars 1986), (Ehrenzweig 1975). É, porém, do casamento entre a neurociência e a filosofia da mente que acreditamos poder esperar os melhores resultados. Uma lista de discussão na internet, intitulada “Art with Brain in Mind”, dedica-se especificamente ao assunto: http://kh.bu.edu/awbim/ . A investigação

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5 - A expressão self foi mantida na tradução brasileira por não corresponder integralmente a nenhum de nossos correlatos – eu, mim etc.

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biológica e cognitiva da EE, portanto, deverá absorver as descobertas da psicologia, da fenomenologia, da psicanálise, das teorias da percepção, etc e integrá-las com os avanços das neurociências, da biologia evolucionista e dos estudos da consciência. Outro aspecto que precisaremos aprofundar no curso dessa pesquisa é o das razões por que certos objetos e situações, e não outros, são detonadores de EEs. Para além da definição específica de EE apresentada aqui e de sua caracterização triádica (emoção, sentimento e consciência), cabe desenvolver o que existe no corpo de um indivíduo e o que constitui determinado objeto ou situação de tal modo que o encontro dos dois pela percepção gere, no último, uma EE. A hipótese principal como apresentada anteriormente é a de que certos objetos e situações ativam padrões neurais dispositivos associados a sistemas de gratificação e/ou recompensa e que, portanto, um corpo constrói para si uma EE através da ativação de circuitos e sistemas específicos do corpo e do cérebro e assim o faz função de determinada predisposição neurofisiológica inata e adquirida. O caráter imediato da EE, apontado em sua caracterização, seria, em parte, devido a isso. A percepção de determinado objeto ativa instantaneamente certo padrão neural dispositivo e este, do mesmo modo, dispara processos em variados circuitos e núcleos neurais. Outra questão é saber por que a imagem mental de determinado objeto percebido foi de algum modo associada a sistemas de gratificação e/ou recompensa. Vantagens evolutivas parecem estar na base dessa estratégia cognitiva. Por fim, caberá indicar mais precisamente como a EE poderá ser investigada no laboratório de neurociências e o que efetivamente podemos esperar encontrar por meio dessa abordagem. Parte do trabalho será identificar regiões ou núcleos neurais específicos responsáveis pela emergência de EEs, observar a ativação ou não de estruturas específicas como a amídala, o hipotálamo e dos quatro lobos cerebrais. Outra será listar as emoções mais comuns associadas a EEs: condutância da pele, batimento cardíaco, arrepios, expressões faciais etc. Estamos cientes das atuais limitações do aporte empírico da experiência subjetiva, mas acreditamos que avanços nesse campo poderão ajudar a entender um pouco melhor a natureza humana e a constituir a moderna ciência do humano.

Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BAARS, Bernard J. The Cognitive Revolution in Psychology. New York: Guilford Press, 1986. BAUMGARTEN, A. G. Estética: a lógica do arte e do poema. Petrópolis, Vozes, 1993. BERLYNE, D.E. Studies in the New Experimental Aesthetics: Steps Toward an Objective Psychology of Aesthetic Appreciation. London: Wiley, 1974. BISPO, Ronaldo. Processos e Estados Estéticos em Sistemas Complexos Naturais. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999. BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. BUNNIN, Nicholas e TSUI-JAMES, Eric (Orgs.). Compêndio de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2002. CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. DAMÁSIO, António R.(2000). O Mistério da Consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DEWEY, John. Art as Experience. New York: Berkley Publishing Group, 1980. EDMONSTON, Paul. Some characteristics of the aesthetic experience. <http://www.collaboration.org/98/ spring/text/08.aesthetic.html>. Acessado em 02 de setembro de 2003. EHRENZWEIG, Anton. Psychoanalysis of Artistic Vision and Hearing: An Introduction to a Theory of Unconscious Perception. London: Sheldon Press, 1975. FERRY, Luc. Homo Aestheticus: a invenção do gosto na era democrática. São Paulo: Ensaio, 1994. FUSCO, Rosario. Introdução à Experiência Estética. Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional, 1952. GOGUEN, Joseph A. (ed.). “Art and the Brain II: investigations Into the Science of Art”. Journal of Consciousness Studies, 7, No. 8-9, august/september, 2000. GOGUEN, Joseph A. (ed.). “Art and the Brain”. Journal of Consciousness Studies: controversies in science & the humanities. Vol. 6, No. 6-7, 1999.

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______________________________________ * Ronaldo Bispo dos Santos é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Alagoas e doutorando do PEPG em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

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HISTÓRIA

ALGUNAS CONSIDERACIONES EN TORNO A LA POLÍTICA COMO DIMENSIÓN DE LA MEMORIA

Resumen: La experiencia histórica de las pasadas dictaduras militares ha influido para que una buena parte de los trabajos académicos producidos en el Cono Sur hayan centrado su atención en las memorias de esa experiencia represiva. Sin embargo, no es sólo esas las memorias de situaciones límite o casos de violencia política donde los discursos de la memoria se entrecruzan con los de la política. Más bien esa presencia, no siempre explicitada, se repite en otros estudios que buscan reconstruir la memoria de experiencias no necesariamente “traumáticas”. En este sentido, el presente artículo busca llamar la atención sobre la política como dimensión central de la memoria, analizando las diversas formas en que esa dimensión aparece en algunos estudios sobre construcción, representación o utilizaciones de los discursos de memoria, haciendo hincapié en la variabilidad de los vínculos entre memoria y política que esos estudios suponen y destacando la naturaleza heterogénea tanto de los objetos de estudio, como de las tradiciones disciplinares o marcos conceptuales desde los cuales los investigadores interrogan esos objetos.

Avenida Paulista -SP

IRENE DEPETRIS CHAUVIN *

I. Introducción. El campo de la memoria ha ocupado un lugar privilegiado en los grupos humanos a lo largo del tiempo. De diferentes maneras, distintas sociedades buscaron reconstruir per manentemente sus recuerdos a través de conversaciones, rememoraciones, efemérides, conservación de objetos, usos y costumbres porque la memoria parecía constituirse en garantía de que el grupo seguía siendo el mismo, en medio de un mundo en perpetuo movimiento1. Esa vinculación explícita con la construcción de formas identitarias que dan cohesión a diversos grupos humanos otorgó centralidad a la memoria ya en las sociedades antiguas. Por otro lado, la enorme multiplicación, en nuestras sociedades de principios de milenio, de prácticas y discursos de la memoria (experiencias que van desde la construcción de museos, recolección de objetos antiguos y memorias personales hasta el auge de la moda retro) parece comunicar que la centralidad devino en “obsesión”. Algunos autores han intentado explicar esta “obsesión cultural por la memoria” en conexión más estrecha con los fenómenos de cambio propios de la postmodernidad. Pierre Nora definió a la aceleración de los procesos históricos de las últimas décadas

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1 - Le Goff, Jacques. El orden de la memoria. El tiempo como imaginario, Barcelona, Paidós, 1991, p. 135.

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2 - Pierre Nora, Les Lieux de Mémorie, Paris, Ed. Gallimard, 1997, T. I, “Introducción”. 3 - Oscar Terán, “Tiempos de memoria”, en Punto de vista, No. 68, 2000, Buenos Aires. 4 - Andreas Huyssen, En busca del futuro perdido, Cultura y memoria en tiempos de globalización, Buenos Aires, Goethe-FCE, 2002, pp. 13-24. 5 - Nora, P., Les Lieux de Mémorie, Ed. Gallimard, 1997; Baczko, Bronislaw: Los imaginarios sociales, memorias y esperanzas colectivas, Buenos Aires, Nueva Visión, 1991. 6 - Middleton, D. y Edwards, D.: Memoria compartida. La naturaleza social del recuerdo y del olvido, Paidós, Buenos Aires, 1990., Huyssen Andreas: En busca del futuro perdido, Cultura y memoria en tiempos de globalización, Buenos Aires, Goethe-FCE, 2002; Yerushalmi y otros: Usos del Olvido, Buenos Aires, Nueva Visión, 1989; Groppo, Bruno y Flier, Patricia (comp.): La imposibilidad del olvido. Recorridos de la memoria en Argentina, Chile y Uruguay, La Plata, Editorial Al Margen / BDIC, 2001; Herschberg, E. y Jelin, E.: Memoria colectiva y represión: una perspectiva comparativa en los países del Cono Sur, Social Science Research Council, Fundación Ford, Nueva York.

en términos de “recalentamiento del presente”: frente a los vertiginosos cambios que impone un mundo globalizado, ante la constante pérdida de los sentidos tradicionales de pertenencia, diversos grupos contrarrestan el temor ante un pasado que parece desvanecerse en el instante del presente y un futuro que se presenta como incierto mediante la estrategia de la conmemoración y de la “vuelta al pasado” permanente2. Al mismo tiempo, para Oscar Terán esta situación de incertidumbre habilita a caracterizar nuestro presente en términos de una “crisis de futuro”3. Finalmente, también en relación con estos temas, el teórico alemán Andreas Huyssen ha trabajado las contradicciones que encierra el “boom de la memoria” a partir de sus resultados: la “musealización del presente” genera una “cultura de la amnesia4. Más allá de que la cultura de la memoria parece ser mundial, el fenómeno encuentra características particulares en relación con distintos contextos nacionales. En un abanico que va desde, por ejemplo, la eclosión de los estudios sobre la memoria histórica previa a la sovietización en los países del Este de Europa, luego de la caída del Muro de Berlín, hasta los discursos de la memoria ligados al trauma o la fractura producto de las experiencias pasadas de represión política en las sociedades latinoamericanas, los casos de fuertes crisis culturales y políticas enmarcan diferentes operaciones de rescate del pasado más estrechamente relacionadas con ciertas renegociaciones políticas en el presente. En el seno de la historiografía, se ha dado una paralela proliferación de ensayos sobre la temática. Desde el campo de los llamados “estudios culturales”, algunos autores han trabajado las diversas formas en que se constituyen los espacios, imágenes, discursos y artefactos de la memoria5. Otro conjunto de bibliografía ha abordado los diversos problemas filosóficos que rodean al fenómeno de la memoria colectiva: su rol en la construcción de identidades colectivas; la convulsión memorialística y conmemorativa de la contemporaneidad, los riesgos y usos del olvido y las políticas de la memoria en los casos de situaciones traumáticas6. Tanto desde la filosofía como desde la historia, se ha hecho un gran hincapié en el análisis de los efectos problemáticos de las distintas representaciones de la memoria colectiva, así como también de la dimensión política que se encuentra implícita en las diversas utilizaciones de esos discursos de la memoria en el presente. Dentro de este marco, el objetivo del presente trabajo será tratar de aportar algunas reflexiones sobre las posibles relaciones entre memoria y política. En primer lugar, quisiera abordar algunas preguntas que me parecen básicas en torno a la política como dimensión, central de la memoria, incluso en los casos de memorias no ligadas a las experiencias de violencia política. En el caso argentino, debido a la experiencia histórica de la pasada dictadura militar, una gran parte de los trabajos académicos se han centrado en las memorias de la experiencia represiva. Sin embargo, no es sólo en las memorias de situaciones límite o casos de violencia política donde se hace presente el entrecruzamiento con la política. Más bien, esta presencia -no explicitada, en la mayoría de los casos- se repite en otros estudios que buscan reconstruir la memoria de experiencias no necesariamente “traumáticas”. A nivel empírico, la dimensión de lo político se hace visible en “estudios de caso” sobre construcción, representación o utilizaciones de los discursos de memoria, en donde el discurso de la memoria aparece vinculado a términos tales como “nostalgia”, “tradición”, “identidad” o “multiculturalismo”. Finalmente, la variable combinación de conceptos alude, no sólo a la diferente naturaleza de los objetos estudiados, sino también a las distintas tradiciones disciplinares o marcos conceptuales desde los cuales los investigadores interrogan esos objetos. En este nivel, muchas veces se hace un uso acrítico e indistinto de categorías tales como “memoria colectiva”, “memoria social” o “memorias sociales”, lo que nos lleva a preguntarnos ¿hasta qué punto tiene sentido hablar de una comunidad de memoria?, ¿en qué medidas las construcciones de memoria son prácticas políticas?

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En su libro Les Cadres Sociaux de la Mémoire7, Maurice Halbwachs ofreció un primer esquema para pensar como las sociedades recuerdan. Amparado en el dispositivo durkheimiano, la teoría sobre la memoria colectiva de Halbwachs se opuso a la de Henri Bergson, quien entendía la memoria fundamentalmente como una experiencia personal y subjetiva, una capacidad y un recurso de la psicología individual. Reconociendo la naturaleza individual de todo acto de recordación, Halbwachs insistió en la falta de atención prestada al contexto social en el que todo acto de recordación ocurre. En efecto, para Halbwachs lo que denominamos memoria tiene siempre un carácter social ya que “cualquier recuerdo, aunque sea muy personal, existe en relación con un conjunto de nociones que nos dominan más que otras, con personas, grupos, lugares, fechas, palabras y formas de lenguaje, incluso con razonamientos e ideas, es decir, con la vida material y moral de las sociedades de las que hemos formado parte”8 La investigación de los elementos que, en los diversos ámbitos sociales, permiten la construcción de la memoria, tanto individual como colectiva, abocó a Halbwachs a establecer la existencia de unos “marcos sociales de la memoria”. Alguno de esos ámbitos colectivos implicados en la construcción de memoria son la familia, la religión y la clase social; mientras que otros marcos de carácter más general – también implicados en esa construcciónson el espacio, el tiempo y el lenguaje. Es decir, para este autor, cuando se recuerda, se recuerda por medio de las claves específicas que se corresponden a los grupos en los que o sobre los que se esté recordando, pero también los individuos articulan su memoria a partir de la aceptación implícita de marcos más amplios que prescriben determinadas configuraciones básicas sobre el espacio, el tiempo y el lenguaje. La influencia del marco conceptual halbwachsiano ha sido de gran importancia en la Antropología, disciplina en la cual el problema de la memoria ha ocupado un lugar destacado en los estudios etnográficos sobre sociedades “tradicionales”. En estos estudios, la importancia de la “memoria colectiva” se vincula directamente con la cuestión de la “identidad” y la “tradición”. Por otro lado, el privilegio hacia el estudio de sociedades o culturas menos “complejas” habilitaba en estos trabajos un análisis de los discursos de la memoria muy vinculado a la nostalgia que evoca comunidades sociales en vía de disolución. En este contexto, el discurso de “la” memoria tiene un carácter político fuertemente afirmativo. La memoria singular y colectiva recogería y daría sentido a la experiencia pasada y a las perspectivas futuras de sociedades que son descriptas como homogéneas. Así conceptuadas, estas sociedades no estarían cruzadas por diferencias o conflictos y esta ausencia de problematicidad al interior del grupo se traslada al nivel de los discursos sobre la memoria9, en tanto esta aparece como un resultado “natural” de la experiencia de esos sujetos. Aunque con distinto uso, la categoría “memoria colectiva” sigue teniendo nuevos impulsos a partir de los trabajos de reflexión más teórica. Pensando en las sociedades modernas, recientemente, el filósofo francés Paul Ricouer10 retomó algunas de estas cuestiones al abordar la difícil conciliación que ofrece el tratamiento de la memoria como una experiencia individual, privada e interna con su caracterización como fenómeno social, colectivo, y público. En su estudio, en un primer movimiento,

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Sebastião Salgado

II. DE LA MEMORIA INDIVIDUAL A LA “MEMORIA COLECTIVA”.

7 - Maurice Halbwachs, Les Cadres Sociaux de la Mémoire, Paris, Ed. Albin Michel, 1994. 8 - Ibídem, p.38. 9 - Roberto Da Matta “Antropologia da saudade”. Conta de mentiroso. Sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco. 1993. 10 - Paul Ricoeur, La lectura del Tiempo Pasado: Memoria y Olvido, Madrid, Arrecife, 1999.

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el autor toma distancia de las consideraciones provenientes de la “fenomenología de la intersubjetividad”, particularmente de Husserl, quien sostuvo que la memoria era un proceso subjetivo individual y la posibilidad de constitución de una memoria colectiva estaba condicionada, precisamente, por la formación de ese espacio intersubjetivo. En esta toma de distancia, Ricouer rescata ciertos elementos de la conceptualización de Halbwachs en tanto “... nuestros recuerdos se encuentran inscriptos en relatos colectivos que, a su vez, son reforzados mediante conmemoraciones y celebraciones públicas de los acontecimientos destacados de los que dependió el curso de la historia de los grupos a los que pertenecemos”11 En un siguiente paso, Ricouer insiste en la necesidad de recuperar la noción de “memoria colectiva” en tanto concepto operativo pese a ciertos problemas del planteo de Halbwachs. Este autor presupone la existencia de un sujeto colectivo de la memoria que cumpliría las mismas funciones de conservación, organización y de rememoración que las atribuidas a la memoria individual. Por el contrario, para Ricoeur si bien ambas memorias en su constitución son interdependientes, funcionan y se manifiestan de manera distinta. En este sentido, el análisis de las figuras de la rememoración y la conmemoración le ayudan a marcar esas diferenciaciones y, es en este punto que la perspectiva de Ricouer brinda ciertas claves para comprender las condiciones mismas de efectivización de la memoria colectiva. Intentando establecer cierta entidad tanto a la memoria individual como a la colectiva, Ricoeur señala a las experiencias traumáticas como sus momentos axiales. Apela aquí a los escritos de Sigmund Freud y las prácticas psicoanalíticas propuestas por el austriaco en torno a las patologías de la memoria, que devienen del abuso o la insuficiencia de la misma. Es de la mano de Freud que Ricouer focaliza más intensamente en la idea de un trabajo. La memoria o la “memoria sana” no es un proceso automático sino que requiere para su construcción de un accionar preciso y de una situación comunicacional adecuada. Esta noción de trabajo implica considerar a la memoria colectiva, -incluso en los casos de memoria de fenómenos no traumáticoscomo algo “no dado”, postura que habilita la reflexión sobre las prácticas y estrategias implicadas en la formación de las diversas memorias colectivas.

III. CONSTRUCCIONES DE MEMORIAS: ESPACIOS Y DISCURSOS.

11 - Ibidem. p.17. 12 - Raphael Samuel, Theatres of Memory, vol. 1. Past & Present y Contemporary Culture, London, Verso, 1996, pp. Ix y ss y también capítulo V, “Old Photographs” y VI “Costume Drama”.

La noción de memoria como trabajo abre el campo hacia el análisis de las modalidades específicas que encuentran los distintos procesos de formación de memoria entendida ésta como “colectiva”. Incluso, dentro de la historiografía inglesa, Raphael Samuel propone superar la dicotomía entre memoria como acercamiento sin mediaciones al pasado e Historia como conocimiento formalizado del mismo. Samuel señala que la separación tajante entre Historia y memoria es deudora de una idea romántica en torno a la segunda, que la consideraba precisamente como un “movimiento automático”. Por el contrario, así como la Historia en tanto disciplina se constituye en la búsqueda de documentos, la memoria en su construcción necesita de soportes para la evocación o la rememoración, ya sean estos lugares, imágenes o discursos12. En este sentido, en las últimas décadas, han proliferado trabajos que desde los “estudios culturales” analizan los espacios, artefactos, prácticas conmemorativas y diversos soportes que estructuran las memorias colectivas. Puntualmente, esta bibliografía ha privilegiado el estudio de dos tipos de objetos. Por un lado, el análisis de los sitios históricos –monumentos, ruinas- o espacios sociales de la memoria – museos, juicios-. Por otro lado, el estudio de las formas de representación y los lenguajes de la remembranza, desde las narrativas del trauma, la ficción, las memorias personales, la literatura testimonial, la fotografía y el cine. En los análisis sobre construcción de memorias colectivas, distintas tradiciones

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han privilegiado diferente tipo de fenómenos. Por un lado, la tradición francesa y todos los desarrollos de la historiografía iniciados por Pierre Nora destacan las formas públicas de la memoria, por lo cual estos estudios intentarán identificar y analizar los “lugares de la memoria” que han sido investidos de símbolos públicos y significativos del pasado colectivo13. En términos de “políticas de la memoria” este tipo de trabajos privilegia nociones tales como las de “memoria histórica de la sociedad”, “memoria oficial pública” y “políticas conmemorativas” y encuentran un amplio desarrollo en los estudios sobre la construcción de identidades nacionales y en los análisis de la propaganda y/o política cultural ligada a la acción de los gobiernos14. En sus “Reflexiones sobre el olvido” Yosef Yerushalmi sostiene que la memoria colectiva se construye rescatando aquellos hechos que se consideran ejemplares para dar sentido a la identidad y el destino de un grupo dado. Esta “recuperación” de la memoria se funda sobre ciertos valores y se establece a través de mecanismos de ritualización que constituyen una operación cultural y política. El poder de ritualizar situaciones, hechos, personajes y fechas representa un dispositivo generador de consenso, al apelar a un sentimiento de pertenencia a una clase o a un colectivo determinado por parte de sus integrantes. En este sentido, en el amplio espectro del campo de lo político, ritualizar es recrear simbólicamente fuentes de legitimidad en torno de un acontecimiento específico. Los estudios sobre los mecanismos de construcción de memorias sociales han encontrado amplios desarrollos también en la tradición inglesa. En sus “Theatres of Memory”, Raphael Samuel destaca la necesidad de recuperar no los lugares oficiales de la historia pública, sino más bien concentrarse en las percepciones que del pasado tiene la gente común en la vida cotidiana, tratando de rescatar la multiplicidad de memorias que habitan en una sociedad15. El privilegio de estas zonas de las discursividades sociales encuentra también un sentido político hecho explícito por el autor en tanto representa un intento de “democratizar la práctica historiográfica”. Dentro de la historiografía argentina, en su análisis de las memorias sobre la dictadura militar, el reciente libro de Hugo Vezetti 16 apunta a explorar las representaciones, imágenes, ideas y discursos que son la materia de la memoria o mejor dicho de los estados de memoria. Para este autor, nunca nos encontramos con una memoria única sino que estamos siempre ante un juego múltiple entre diversos estados de la memoria; estas se conforman a partir de relatos que hilvanan escenas con un fuerte carácter mitológico -y por ende político- que establecen los marcos de lo que puede ser enunciado. Al mismo tiempo, estas memorias colectivas no son un resultado inmediato sino que son producto de un trabajo, de una práctica social formadora que se apropia del pasado, una práctica que requiere no sólo de materiales, instrumentos y soportes, sino también de actores y marcos institucionales.

IV. usos: musealización, amnesia y políticas de la memoria. Tanto desde la filosofía como desde la historia, otro conjunto de autores ha hecho mayor hincapié en el análisis de los efectos problemáticos de las distintas representaciones de la memoria colectiva, así como también de la dimensión política que se encuentra implícita en las diversas utilizaciones de esos discursos de la memoria en el presente. De alguna manera, este tipo de trabajos refuerza la ubicación de los discursos de memoria colectiva en una dimensión política ya implícita en los análisis sobre las estrategias de construcción de memoria colectiva. Muchos autores han trabajado con un sentido clásico de política de la memoria. En este sentido, ya el estudio de Jacques Le Goff analizaba cómo el dar un contenido a la memoria colectiva, apoderarse de los olvidos y los silencios ha sido siempre un factor importante en la lucha de poder entre los diversos grupos, quienes optan por conmemorar distintas cosas y construyen significados diversos de las memorias, complejizandose aún más el proceso de construcción de una memoria

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13 - Pierre Nora, Les Lieux de Mémorie, Paris, Ed. Gallimard, 1997. 14 - Algunos ejemplos se encuentran en los artículos compilados en Eric Hobsbawm and Terence Ranger, eds., The Invention of Tradition, Cambridge University Press 1992. 15 - Raphael Samuel, Theatres of Memory, Verso, London, 1996. 16 - Hugo Vezzetti, Pasado y presente. Guerra, dictadura y sociedad en la Argentina. Buenos Aires, Siglo XXI, 2001.

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Sebastião Salgado

17 - Jacques Le Goff, El orden de la memoria. El tiempo como imaginario, Barcelona, Paidos, 1991, p. 134. 18 - Véase la introducción “Entre mémoire et histoire” en Pierre Nora (dir.), Les lieux de mémoire. I. La République, Paris, Galimard, 1984. 19 - María Sonderéguer, “Los relatos sobre le pasado reciente en Argentina: una política de la memoria” en Iberoamericana, Madrid, volumen 1, No. 1, 2001. 20 - Nelly Richard, “Políticas de la memoria y técnicas del olvido” en Residuos y metáforas, pp. 77-127, Cuarto Propio, Santiago de Chile, 1998. 21 - Tzvetan Todorov, Los abusos de la memoria, Paidos, Buenos Aires, 2000.

pública17. Incluso el desarrollo de la historiografía, iniciada por Pierre Nora18, sobre los lugares de memoria, se encuentra estrechamente asociada a la noción de memoria histórica de la sociedad pero también a la noción de memoria oficial y a la de política de la memoria en el sentido de disputas por las conmemoraciones. En relación con estas acepciones, un problema que puede plantearse es la delimitación conceptual entre memoria histórica colectiva y la memoria pública que resulta de una operación de política de la memoria o, en otros términos, de los injertos de memoria conmemorativos. Es decir se trataría de averiguar hasta qué punto la memoria histórica colectiva tiene su principal basamento en la propaganda conmemorativa o es algo relativamente independiente de la misma. En muchos casos, al margen de los injertos de memoria oficial coexisten diversas memorias históricas “colectivas” y, por tanto, culturas políticas. Para ello resulta decisivo el concepto de memoria dominante y memoria hegemónica. Además, el estudio de la política de la memoria de las conmemoraciones, puede darnos pistas sobre la existencia de una determinada memoria dominante en el seno de una sociedad o como parte de la política de un Estado pero puede que no nos desvele cómo los diversos grupos sociales viven ese injerto de memoria histórica, ni tampoco da cuenta de la existencia de otros discursos sobre la memoria en el seno de la sociedad que no sean retomados en el nivel del discurso oficial. Donde la multiplicidad de discursos sobre la memoria aparece quizás de manera un poco más clara es en cierta bibliografía dedicada a las memorias de las dictaduras latinoamericanas. Allí la dimensión de poder aparece reforzada a partir de la inclusión de la idea de existencia de memorias encontradas o en conflicto. En este sentido, por ejemplo, un trabajo como el de María Sonderéguer se centra en el análisis de las distintas estrategias que se ponen en juego en la elaboración de las memorias colectivas sobre el pasado reciente teniendo en cuenta que estas “...son el resultado de pactos ideológicopolíticos y en consecuencia expresan las luchas, victorias o derrotas que se suscitan en el presente”19. Por otro lado, algunos trabajos introducen aún más abiertamente la noción de conflicto al analizar las políticas de la memoria en términos de la existencia de memorias dominantes o hegemónicas y memorias reprimidas, desactivadas o enmudecidas20. Situado en un nivel un tanto más teórico, “Los abusos de la memoria” de Todorov21 aborda la problemática de la utilización de la memoria a través de una reflexión sobre sus buenos o malos usos y distinguiendo diversas formas de reminiscencia. Para este autor, los acontecimientos recuperados pueden ser leídos de manera literal o de manera ejemplar. La memoria literal se refiere a la recuperación de acontecimientos en tanto fenómenos singulares que mantienen una continuidad y una permanencia en su impacto en el presente. Llevada a sus extremos, para Todorov, la memoria literal redundaría en trauma, mientras que, por el contrario, la memoria ejemplar sería potencialmente liberadora. Este tipo de memoria se sitúa en un nivel por encima del acontecimiento. No niega su singularidad pero, abriendo el recuerdo a la analogía y a la generalización, permite construir un exemplum y extraer de eso una lección que se convierte en un principio de acción para el presente.

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Entonces, para Todorov, es esta dimensión ejemplar la que habilita una dimensión pública de la memoria que permite convertir el pasado en una lección para accionar en el presente. Analizando las políticas de la memoria del Holocausto, el autor expresa que no se puede sostener que un hecho traumático del pasado como este sea singular e incomparable porque esto coarta la posibilidad de hacer justicia ya que “es imposible afirmar a la vez que el pasado ha de servir de lección y que es incomparable con el presente: aquello que es singular no nos enseña nada para el porvenir”22. En última instancia, para Todorov, el uso de una memoria ejemplar en el presente está guiado por criterios de valor. En el caso argentino, la inclusión de criterios de índole moral y político en las problemáticas de la memoria social tuvo características particulares. En un primer lugar, los discursos sobre la memoria en nuestro país surgen con fuerza a partir de la experiencia de represión de la pasada dictadura y de los reclamos particulares de justicia de los familiares de las victimas. Por otro lado, la vinculación entre memoria y justicia terminó de anudarse, a nivel más general, partir de la experiencia del Juicio a las Juntas y del informe del “Nunca Más”. Estas instancias institucionales estructuraron una primera memoria “ejemplar” de la dictadura que quedó asociada fuertemente a la idea de instalación del imperio de la ley y la defensa de los derechos humanos23. De esta manera, en el caso argentino esa primera vinculación de las demandas de no-olvido basadas en valores éticos de verdad y justicia configuró cierto campo de la discusión en la que las problemáticas de la memoria quedaron fuertemente unidas a la defensa del Estado de Derecho y el sistema democrático. Durante las últimas dos décadas, los estudios académicos sobre las memorias de la dictadura inscribieron esos discursos en la dimensión de la acción pública, reforzaron su utilización en las tareas del presente y su responsabilidad hacia el futuro. En otroas palábras, la gran mayoría de autores caracterizaron a los trabajos de la memoria en su contenido de valor, abriendo la discusión hacia las posibles relaciones entre Historia y Memoria y el rol de los historiadores en la elaboración social del pasado. Desde la filosofía, Paul Ricoeur reintroduce el problema de los usos y trabaja las relaciones entre la memoria y la constitución de identidades colectiva centrándose en sus problemas: el exceso o la insuficiencia de memoria y la existencia de memorias heridas. Estas dos patologías de la memoria –el exceso o la insuficiencia- comparten una igual problemática de adhesión del pasado al presente. Se trataría de un “pasado que no quiere pasar”, un pasado que habita todavía el presente y lo asedia sin tomar distancia. Explorando los recursos que la propia memoria puede ofrecer a una ética y una política de la memoria justa, Ricoeur traspone al plano de la memoria colectiva, las categorías patológicas propuestas por Freud en relación al “trabajo del recuerdo” y el “trabajo del duelo” que ayudarían a lograr esa distancia con respecto al pasado a través de la figura de la “pérdida”. Una objeción que encuentra esta propuesta es la dificultad que encierra el encontrar al “terapeuta” adecuado para los problemas de la memoria colectiva, ¿puede ser este la esfera pública? ¿puede existir una memoria “no herida”?. Siguiendo con esta discusión, Paul Ricoeur problematiza sobre los diversos aspectos del vínculo entre la memoria y la reconstrucción histórica como una tensión

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22 - Tzvetan Todorov, Los abusos de la memoria, Buenos Aires, Paidos, 2000, p. 37. 23 - Hugo Vezzetti, Pasado y presente. Guerra, dictadura y sociedad en la Argentina. Buenos Aires, Siglo XXI, 2001, p 23.

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24 - Paul Ricoeur, La lectura del Tiempo Pasado: Memoria y Olvido, Madrid, Arrecife, 1999, pp. 21-23.

inherente a la elaboración social del pasado. Para este autor, si bien Historia y memoria comparten un mismo referente, -el pasado o espacio de la experiencia-, la primera, en su calidad de disciplina institucionalizada de conocimiento de las sociedades del pasado, rompe con la segunda en, al menos, dos sentidos. En primer lugar, porque se construye sobre la base de “huellas” o testimonios; en segundo lugar, porque busca la explicación e interpretación de esas experiencias pasadas. Aunque la ruptura de la historia con respecto al discurso de la memoria la constituye en una postura crítica que puede servir para corregir la memoria colectiva; el autor, lejos de establecer una jerarquía de la historia por sobre la memoria, entiende que la memoria también puede “enseñarle” a la historia. En este punto, el planteo de Ricouer hace propias algunas consideraciones de Reinhardt Koselleck acerca del tiempo histórico y la conciencia histórica. Para este autor, el pasado no se define, por un punto en una cadena cronológica de hechos, acontecimientos y procesos sino más bien se instituye en un “espacio de la experiencia” relacionado dialécticamente con un “horizonte de espera”, que aseguran la dinámica de la “conciencia histórica”24. Es en relación con esto que la memoria conserva un privilegio con respecto a la historia. En tanto la historia se define por su vocación por la retrospección y por su abstracción del pasado como entidad separada de las otras dimensiones temporales, la memoria se inserta más cómodamente en la dialéctica entre “espacio de experiencia” y “horizonte de espera” y, por tanto, contribuye a erigir una “conciencia histórica”. En otras palabras, Ricouer establece la necesaria vinculación del presente con el futuro como rasgo constitutivo de nuestra conciencia histórica. El dinamismo de esa conciencia histórica es fruto de la sensación de orientarse a lo largo del tiempo y esta encuentra su impulso en el horizonte de espera que confiere de sentido a la experiencia del presente. En su propuesta de “técnicas terapéuticas” respecto a las “patologías de la conciencia” histórica de muchos pueblos, Ricoeur ofrece un modelo de relación entre historia y memoria sobre la base de “una interacción mutuamente cuestionadora”. En este sentido, el uso de la crítica histórica debe permitir desdoblar el fenómeno de la tradición del de la memoria (aunque ambos compartan una misma estructura narrativa) así como se también oponer una “memoria-repetición” de una “memoriareconstrucción”. De esta manera se podrían generar ciertos olvidos que permitan a una comunidad despegarse de alguno de los elementos de su pasado y reforzar sus proyecciones a futuro. Por otro lado, la dialéctica propuesta entre historia y memoria también sopesa la virtud de la verdad y la fidelidad en tanto la historia debería ser reintroducida por la memoria en el movimiento de la dialéctica de la retrospección y el proyecto para unir a la virtud de la verdad, la de la fidelidad. La terapéutica que propone Ricoeur para construir una “memoria sana” se refiere sobre todo al uso que los pueblos hace de sus tradiciones. Para esto, implementa el precepto de “aprender a contar de otra manera y dejarse contar por otros” ya que una política de intercambio de memorias y de relatos históricos provenientes de distintas culturas ayuda a las sociedades a replantearse el buen uso de sus propias tradiciones. La utilización de la categoría de “trauma” o la idea de “memoria sana” contrapone este abordaje de Ricoeur a otros estudios en los que la existencia de una “memoria fracturada” no es entendida como una patología sino como manifestación de la naturaleza eminentemente conflictiva de toda memoria. Los recuerdos de unos pueden ser diferentes –cuando no inconciliables- con los recuerdos de otros y la sustancia de la política resulta ser, muchas veces, una confrontación, en ocasiones violenta e irresoluble, de memorias. Para Martín Barbero, muchas veces ciertos actores sociales, culturales o políticos buscan una memoria del consenso, que suprima el conflicto, que no perturbe, que apacigüe. Esta búsqueda de cerrar la herida no es más que una cicatrización en falso, en tanto toda memoria sería simpre una memoria fracturada e, incluso, nunca se podría dar una memoria “colectiva”. Por último, otro conjunto de reflexiones sobre la presente explosión de discursos de la memoria introduce ciertas problemáticas de índole político, aunque

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V. ALGUNAS CONCLUSIONES.

El breve recorrido que realizamos por un conjunto -limitado pero heterogéneo- de textos que abordan diversas cuestiones en torno a la temática de la memoria da cuenta, en primer lugar, que definir con precisión en qué consiste una memoria no individual lleva consigo una cantidad de problemas considerables. La misma multiplicidad de los términos –memoria colectiva, memoria social, memoria

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en un sentido menos clásico. El teórico alemán Andreas Huyssen25 realiza un análisis sobre los cambios propios de la postmodernidad y los efectos que la aceleración de nuestra época imprimen en las coordenadas de tiempo y espacio que estructuran nuestras vidas. Dentro de este marco, la hipótesis de Huyssen es que el auge de los discursos de la memoria es uno de los modos en que las sociedades luchan e intentan frenar esa aceleración, ampliando las extensiones de tiempo y espacio. No obstante, el autor verfica que esta obsesión contemporánea por el pasado, evidenciada en la enorme proliferación de discursos memorialísticos, encuentra un resultado contradictorio en la aparente debilidad de esos mismos discursos para constituirse en verdaderos acontecimientos de memoria. He aquí la paradoja: nos encontramos inmersos en una “cultura de la memoria” cuyo resultado es la “amnesia histórica”. Huyssen encuentra las razones de esta paradoja, analizando como la “cultura de la memoria” es en verdad producto de una “industria de la memoria”. En este sentido, la dinámica capitalista postmoderna impone una fabricación “industrial” de la memoria que es enemiga de la permanencia. A veces la obsesión por la memoria produce sólo olvido, o nostalgia, o distancia: la moda del revival, por ejemplo, nos hace recordar el pasado reciente como algo ya clausurado, cuando acaso aún está vivo en nosotros. Al mismo tiempo, bajo la lógica de mercado los medios de masas sobreofertan discurso memorialístico y generan un efecto de borramiento por sobreabundancia o banalización. Reconociendo, que en nuestras sociedades los discursos de memoria están inscriptos en esta lógica mediática, Huyssen trata de encontrar salidas a partir del análisis de ciertos “actos de memoria” que incluyan una dimensión crítica o incluso logren trabar relaciones interesantes con las estéticas de los medios masivos26. El autor guarda la esperanza de que, aún cuando esos objetos pertenezcan a esa cultura del consumo, alguno de ellos puedan convocar un relato del pasado genuino y crítico. A nuestro entender, señalando las dificultades de construcción de una memoria social en la contemporaneidad que van más allá de los hechos traumáticos o las patologías asociadas a los mismos, el estudio de Huyssen inscribe los discursos de la memoria en una dimensión política que remarca la importancia de la intervención en la dimensión cultural o simbólica. En este sentido, para Huyssen, el auge de la memoria es un modo de luchar contra la aceleración que se impone al hombre en la contemporaneidad, en tanto esos discursos pueden ayudar a frenar dicha aceleración, ampliando las extensiones de tiempo y espacio.

25 - Andreas, Huyssen En busca del futuro perdido, Cultura y memoria en tiempos de globalización, Buenos Aires, Goethe-FCE, 2002. 26 - Ver en el mismo libro el capítulo dedicado a analizar una historieta sobre el holocausto “Una lectura de ‘Maus’ de Spiegelman”.

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27 - En realidad, la homogeneidad otorgada a las sociedades de tipo “tradicional” en algunos abordajes antropológicos “clásicos” parece ser más un supuesto a discutir que una verificación empírica. 28 - Esta temática si es central en la agenda de los estudios culturales estructurada por la corriente radical de la academia norteamericana.

grupal, entre otros- establece la necesariedad de un debate teórico serio acerca de la temática. A nuestro entender, este debate no debe apuntar, a establecer o cerrar un sentido único, pero si a clarificar cómo la diversidad de definiciones, que no llegan a ser únicas ni finales, suponen concepciones diferentes acerca de los procesos de construcción de lo simbólico y las formas de relación o imbricación de las dimensiones culturales, sociales y políticas en una sociedad o grupo dado. En segundo lugar, pudimos verificar que uno de los ejes de importancia, en torno de los cuales se estructura el conjunto de textos, apunta a la reflexión sobre los vínculos entre memoria y política. Los lazos que se establecen, y la misma constitución de esas dos dimensiones, no son unívocos. Algunos autores parecen limitar esa memoria a meros actos conmemorativos más o menos rituales y la conectan con la construcción de identidades más o menos colectivas. En otros textos, la política comprometida en el proceso de construcción de una memoria comunitaria no aparece detenida, sino abierta a nuevos registros. Más aún, la memoria no se reduce a conservar la experiencia y el pasado mediante las tradiciones, sino que adquiere la dimensión de un territorio de pugnas y conflictos permanentes que en algunos casos no parece vislumbrar un horizonte de “resolución”. En términos generales, se debería reflexionar sobre la memoria y la identidad como cuestiones problemáticas, es decir cuestiones que no admiten una respuesta definitiva y perentoria; donde el resultado final activa y promueve una serie de interrogantes abiertos más que certezas. Si entendemos por memoria pública, muy asépticamente, el conjunto de discursos acerca del pasado que circulan en el espacio público y de los actos más o menos rituales que tienen lugar en ese espacio, rápidamente podemos vislumbrar que esta dimensión no contiene la multiplicidad de discursos sobre el pasado. Esta cuestión parece adquirir mayor relevancia hoy en día en que las sociedades no son tan homogéneas como las de la antigüedad27 y dónde coexisten multiplicidad de grupos definidos en términos culturales, étnicos o generacionales. Al mismo tiempo, aunque la cuestión del llamado multiculturalismo pertenece a la clase de problemas que estoy planteando, no es exclusiva ni parece central en el campo de discusiones en los países del cono sur que experimentaron dictaduras28. Hay confrontaciones de memorias que no son multiculturales -la guerra civil española, la represión durante las dictaduras latinoamericanas, por ejemplo-. En todo caso, lo que todo esto expone es que una heterogeneidad de la memoria hace cuestionable cualquier identificación rápida de identidad y memoria. La situación particular en un país como la Argentina abrió para los los estudios sobre la memoria otros carriles. Por un lado, la búsqueda de establecer un significado sobre el pasado traumático vinculó ciertos discursos sobre la memoria con la defensa de valores como los derechos humanos, el Estado de Derecho y el sistema democrático e introdujo cuestiones tales como la definición de culpas y responsabilidades. Por otro lado, el nivel de conflictividad que implica una memoria de hechos traumáticos reforzó la dimensión múltiple de cualquier construcción social de discursos sobre el pasado. En este tipo de contextos, algunos discursos sobre el pasado pueden quedar silenciados y, por las razones que sea, -aunque, en general, razones que obedecen a una situación política desfavorable para ello- no llegan a ser públicos y permanecen en el ámbito de lo privado. Esto plantea un desafío teórico y metodológico, en tanto se entrecruzan varios niveles –público, privado- de la memoria. Al mismo tiempo, puede haber memorias que se vinculen directamente con la definición de una identidad política. En este sentido, el establecer cómo las subjetividades políticas se constituyen en un trabajo de la memoria, sería un capítulo importante de estas reflexiones en torno a las funciones de esos discursos en la esfera privada y pública. Finalmente, un último conjunto de cuestiones se relaciona con la particularidad de la postmodernidad que agrega otros problemas a la conformación de memorias sociales. Nos referimos a la pérdida de historicidad, a las dificultades de construcción de una memoria social en la contemporaneidad que van más allá de los hechos traumáticos o las patologías asociadas a los mismos. En las sociedades de principios

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de milenio, esa cadena temporal garantizada por la conciencia histórica, parece haberse cortado en alguno de sus eslabones, en beneficio de la inmediatez del presente constante. En este contexto, los trabajos de la memoria y los “combates por la historia” han de volverse más arduos y, en el ámbito de la discusión teórico metodológica, los estudios que analicen las formas específicas de representación-construcción de discursividades y significaciones sobre el pasado deben tener un lugar privilegiado en la agenda de problemas.

Bibliografía BACZKO, Bronislaw: Los imaginarios sociales, memorias y esperanzas colectivas, Buenos Aires, Nueva Visión, 1991. CONNERTON, P.: How Societies Remember, Cambridge University Press, Australia, 1989. DA MATTA, Roberto, “Antropologia da saudade”. Conta de mentiroso. Sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de Janeiro: Rocco. 1993. FINLEY, M.: Uso y abuso de la Historia, Crítica, Barcelona, 1984. GROPPO, Bruno y Flier, Patricia (comp.): La imposibilidad del olvido. Recorridos de la memoria en Argentina, Chile y Uruguay, La Plata, Editorial Al Margen / BDIC, 2001. HABERMAS, J: “Concerning the Public Use of History” en New German Critique, No. 44, 1988. HALBWACHS, Maurice, Les Cadres Sociaux de la Mémoire, Paris, Ed. Albin Michel, 1994. HERSCHBERG, E. y Jelin, E.: Memoria colectiva y represión: una perspectiva comparativa en los países del Cono Sur, Social Science Research Council, Fundación Ford, Nueva York. HOBSBAWM, Eric and Terence Ranger, eds., The Invention of Tradition, Cambridge University Press 1992.

_________________________________________ * Irene Depetris Chauvin é professora da Universidad de Buenos Aires: Universidad Nacional de La Plata, Argentina.

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IDÉIAS

O CÉREBRO CÉREBRO,, A MENTE E A FÍSICA QUÂNTICA

ADALBERTO TRIPICCHIO* ANA CECÍLIA TRIPICCHIO**

Resumo: Segundo o ponto de vista convencional, deve-se entender a atividade cerebral em termos de física essencialmente clássica. Os sinais nervosos são considerados como fenômenos “sim ou não”, igual às correntes nos circuitos de um computador, sem nenhuma das misteriosas superpo-sições de alternativas, características da ação quântica. Ainda que se aceite, em níveis subjacentes, os efeitos quânticos desempenhando algum papel, os neurobiólogos, em geral, opinam que não haveria necessidade de sairmos do marco clássico da física newtoniana. As forças químicas que controlam interações de átomos e mo-léculas têm, de fato, uma origem mecânico-quântica, e é fundamentalmente a ação química quem governa o comportamento dos neuro-transmissores sinápticos.

Analogamente, os potenciais de ação que controlam fisicamente a transmissão do sinal nervoso têm uma origem certamente mecânico-quântica. Mas, em geral, supõe-se que é perfeitamente adequado modelar o comportamento do neurônio, e de suas relações mútuas, de uma forma clássica. Como conseqüência, o funcionamento físico do cérebro, como um todo, modelar-se-á tal um sistema clássico, em cuja descrição não intervenham significativamente os as-pectos mais sutis da física quântica. Isso implicaria em que não desempenham papel relevante as superposições da teoria quântica, que permitiriam a ocorrência e a não-ocorrência simultâneas de eventos. Assim, considerar-se-ia adequado tratar tais superposições como efeitos virtuais estatísticos, e a modelização clássica da atividade cerebral continuaria perfeitamente satisfatória. Contudo, existem opiniões que diferem desta, defendendo a importância dos efeitos quânticos, por exemplo, nas sinapses (Beck & Eccles, 1992; Eccles, 1994). Eccles assinala o retículo vesicular pré-sináptico - uma rede hexagonal paracristalina nas células piramidais do cérebro - como um locus quântico apropriado. Com a possibilidade de que efeitos quânticos iniciem atividades maiores no cérebro, manifestase, na atualidade, a esperança de que a indeterminação quântica possa ser quem proporciona a ponte para a mente influir no cérebro físico – a causação descendente mental. Aqui teremos de adotar, provavelmente, alguma visão dualista; talvez o livre arbítrio de uma mente externa possa ser capaz de intervir nas eleições quânticas que surgem de tais processos não-deterministas. Onde iríamos buscar o ponto de intersecção entre os níveis quântico e clássico? Se a mente fosse algo com-pletamente externo ao corpo físico, tornar-se-ia difícil entender como tantos de seus atributos associam-se estreitamente com propriedades do cérebro físico. Nossa opinião é a de que devemos buscá-lo mais profundamente nas estruturas materiais físicas e reais que constituem o cére-bro, ou melhor, na questão mesma do que vem a ser real-mente uma estrutura material em nível quântico das

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Os críticos materialistas argumentam que há dificuldades insuperáveis na hipótese de acontecimentos imateriais, como o pensamento, poderem atuar de uma alguma forma sobre estruturas materiais, como os neurônios do córtex cerebral, hipótese esta que, como já vimos, se conhece com o nome de causação mental. Uma suposta ação desse tipo é considerada incompatível com as leis da conservação de energia da física, em particular com a primeira lei da termodinâmica. Esta objeção seria decerto apoiada pelos físicos do século XIX, e pelos neurocientistas e filósofos que se situam, ainda ideologicamente, na física do século XIX, não reconhecendo a evolução produzida pelos físicos quânticos dos séculos XX e XXI. É raro, infelizmente, que um físico quântico ouse uma intromissão na questão cérebro/mente, mas o físico quântico Margenau1, em 1984, deu-nos uma contribuição fundamental: “[saber] que alguns campos, como o campo de probabilidade da mecânica quântica, não transportam energia e nem matéria” (p. 22), significa uma transformação notável para a física atual. Margenau continua: “Em sistemas físicos muito complicados como o cérebro, os neurônios e os órgãos dos sentidos, cujos constituintes são suficientemente pequenos para poderem ser governados pelas leis quânticas da probabilidade, o órgão físico está sempre posicionado para uma quantidade de possíveis modificações, cada uma com uma probabilidade definida; se ocorrer uma modificação que requeira energia, ou mais ou menos energia do que uma outra, o intrincado organismo fornece-a automaticamente. A mente não seria chamada a fornecer energia” (p. 96). Em resumo, o referido físico afirma que “a mente não pode ser vista como um campo no sentido físico aceito do termo. Mas como um campo não material, cuja analogia mais próxima seja, talvez, um campo de probabilidade” (p. 97). A hipótese é a de que entre os fenômenos cerebrais e mentais haveria uma interação, análoga a um campo probabilístico da mecânica quântica, campo este sem massa e nem energia, podendo contudo, provocar ação efetiva em microssítios de operação. Aos dualistas interacionistas, esta hipótese lhes é mui cara, e dentre estes estão, nada mais nada menos que Eccles e Popper. Como diz Eccles2: “Para uma formulação mais precisa da hipótese dualista da interação cérebro/ mente, a afirmação inicial é que o mundo dos acontecimentos mentais tem uma existência tão autônoma como a do mundo da matéria/energia. Ainda que, a hipótese interacionista atual relacione-se, não com estes problemas ontológicos, mas simplesmente com o modo de ação dos acontecimentos mentais sobre os acontecimentos neuronais. Propõe-se, mais especificamente, que a concentração mental envolvida em intenções ou o pensamento planejado possa provocar acontecimentos neuronais por meio de um processo análogo aos campos de probabilidade da mecânica quântica” (p. 288). Que estruturas neuronais poderiam ser recipientes apropriados de acontecimentos mentais? Roger Penrose3, em seu livro “Shadows of the Mind”, afirma que no nível dos microtúbulos cerebrais, descobertos pelo anestesiologista Hameroff4, da Universidade do Arizona, ocorreriam “fenômenos quânticos que seriam responsáveis por estados mentais conscientes”, o que nos autoriza a supor que os microssítios propostos acima, poderiam, muito bem, ser regiões destes microtúbulos. Outra resposta estaria nas descobertas sobre a natureza do mecanismo sináptico. Valemo-nos da obra “Física Quântica” de Eisberg & Resnick5 a fim de situarmos a indagação que se segue. A questão que se levanta diz respeito à magnitude do fenômeno que poderia ser produzido por um campo de probabilidade quântica. Assim, a massa de uma vesícula sináptica teria um valor de magnitude que pudesse estar situada no âmbito do Princípio de Incerteza de Werner Heisenberg? Vejamos: para se instituir uma exocitose – esvaziamento extra-celular de

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- Margenau, H. (1984). - Eccles, J.C. (1989 orig.; 1995). - Penrose, R. (1993). - Hameroff, S.R. (1994), v.1, pp.91-118. - Eisberg, R. & Resnick, R. (1988).

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Cérebro

6 - Eccles, J.C. (1986). 7 - Jack, J.J.B. & cols. (1981a, 1981b). 8 - Korn, H. & Faber, D.S. (1987). 9 - Szentágothai, J. (1978). 10 - ____. (1983).

uma vesícula citoplasmática – é apenas necessário deslocar uma pequena área de membrana dupla da célula, que pode ter uma espessura não superior a 10 nm, e se tiver uma área de 10 nm por 10 nm, seria uma partícula com massa de apenas 10 – 18 g, o que a traria, facilmente, para o âmbito da física quântica e do Princípio de Incerteza de Heisenberg (Eccles6). [lembremos: 1 µm = 10 – 6 m; 1 nanômetro = 10 – 9 m; 1 picômetro = 10 – 12 m] Efetivamente, biofísicos que trabalhavam com a retina humana descobriram que suas células são suficientemente sensíveis para registrar a absorção de um único fóton! Esta descoberta aconteceu há quase cinqüenta anos atrás. Ali já estava sendo aberto um canal de comunicação entre o mundo elementar da física e nossa percepção da realidade cotidiana. Isto é assim, particularmente na medida em que as vesículas estão já em posição na malha vesicular pré-sináptica, de forma que a exocitose não depende do movimento através de um meio viscoso. Dizem os dualistas que a influência mental proposta não faria mais do que selecionar para a exocitose uma vesícula já em aposição à membrana. A probabilidade da exocitose é muito inferior à unidade para o conjunto de vesículas da malha vesicular pré-sináptica (Jack & cols.7; Korn & Faber8). Pode-se concluir que o cálculo na base do Princípio de Incerteza de Heisenberg mostra que uma vesícula da malha vesicular pré-sináptica poderia ser selecionada de modo concebível para a exocitose por uma intenção mental atuando de forma análoga a um campo de probabilidade quântica. A energia necessária para iniciar a exocitose poderia ser reposta ao mesmo tempo e no mesmo lugar pelas moléculas transmissoras, escapando de uma elevada concentração para uma baixa concentração. Na física quântica, retirar energia dos microssítios é uma operação legal, desde que seja reposta de imediato. Esta transação da exocitose poderia, assim, não envolver qualquer violação das leis de conservação da energia da física geral. Quanto à ordem de magnitude do fenômeno, é simplesmente a da emissão de uma única vesícula, a qual é pequena demais para modificar os padrões da atividade neuronal, mesmo em pequenas áreas do cérebro. Há, porém, muitos milhares de botões semelhantes numa célula piramidal do córtex cerebral. De acordo com a hipótese dos microssítios, a malha vesicular pré-sináptica fornece à intenção mental a oportunidade para selecionar, por opção, a exocitose de uma única vesícula proveniente de um botão. Isto aconteceria em todo o conjunto de espinhas sinápticas que são ativadas nesse momento, provavelmente milhares, uma vez que há cerca de 10.000 numa única célula piramidal cortical (Szentágothai9,10).

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Tentemos descobrir a estrutura do acontecimento microneural proposto. Uma característica estrutural assinalável do córtex cerebral do mamífero é a organização dos dendritos apicais das células piramidais das camadas V, III e II em feixes ou grupos à medida que ascendem à camada I (Fleischhauer11; Feldman12; Peters & Kara13). O agrupamento dendrítico é uma característica de todas as áreas do córtex cerebral na camada IV. Em média, um grupo inclui dendritos de cerca de 30 células piramidais da camada V com um diâmetro transversal de cerca de 50 µm e um espaçamento semelhante. Para as células piramidais das camadas III e II, o número vai crescendo para atingir quase 100 na superfície cortical. De acordo com Peters & Kara13, propõese que o grupo dendrítico constitui uma microunidade estrutural do córtex cerebral que se pode apropriadamente denominar um dendron. Propõe-se igualmente que o grupo dendrítico é a estrutura cortical dos acontecimentos microneurais na sua interação com acontecimentos mentais unitários. A quantidade desses dendrons no córtex cerebral humano é enorme, cerca de 40 milhões. Uma hipótese unitária foi desenvolvida a partir da hipótese dos microssítios. Há, por exemplo, X dendrons (unidades neuronais), penetrados cada um deles por uma unidade mental ou psychon. Há fortes indícios para esta relação unitária (Eccles14), que tem uma grande simplicidade e poder explicativo. Uma intenção mental, agindo através de um psychon, tem no seu dendron dezenas de milhares de malhas vesiculares pré-sinápticas ativadas, com as suas vesículas aguardando seleção. Na operação inversa, do cérebro para a mente, é necessário desenvolver a hipótese de que cada vez que um psychon seleciona com sucesso uma vesícula para a exocitose (de acordo com o campo de probabilidade quântica), o microssucesso é registrado no psychon para transmissão através do mundo mental. A percepção depende de uma atenção dirigida que ativa uma área cortical específica. Haveria evidentemente uma grande ampliação quando o psychon selecionasse com sucesso, por essa mesma altura, grandes quantidades de vesículas a partir das dezenas de milhares de malhas vesiculares pré-sinápticas do seu dendron. O sinal de sucesso do psychon transportaria decerto ao mundo mental a característica vivencial especial dessa unidade. Quando alguma informação sensorial provoca uma forte excitação das malhas vesiculares pré-sinápticas de um dendron, o psychon associado terá maiores oportunidades para selecionar vesículas para a exocitose de acordo com o campo de probabilidade quântica. O sucesso é registrado pelo psychon e pode ser transmitido com a sua característica vivencial por meio do mundo mental. A interface cérebro/mente parece que, assim, teria sido atravessada. Pode-se fornecer uma explicação para o fato correntemente observado de que a entrada de uma informação no sistema nervoso sensorial pode dar origem a uma experiência sensorial. Um dendron unitário da área V4, por exemplo, agiria através da interface para o seu psychon associado para provocar uma sensação vermelha de acordo com a ligação unitária fixa. Devido a nossa atenção, há, em cada momento, uma integração dos milhões de percepções mentais unitárias (psychons) nas vivências globais que fruímos. Para quem aceitar o mundo dos fenômenos mentais e o dos fenômenos cerebrais justapostos, como o fazem os dualistas interacionistas, nesse contexto, podemos considerar que essas hipóteses descrevem uma tentativa no sentido de mostrar como os microssítios no cérebro poderiam ter propriedades transcendentais, de consistirem em canais de comunicação entre estas duas entidades completamente díspares. Se o fato de que os acontecimentos mentais possam agir efetivamente sobre o cérebro for aceito, as implicações filosóficas que daí se extrairiam seriam de grande alcance. Todos nós pensamos e agimos como se tivéssemos pelo menos algum controle sobre a responsabilidade pelas nossas ações, especialmente o nosso desempenho lingüístico, mas alguns críticos reducionistas têm afirmado com insistência que isto deve ser uma ilusão, uma vez que é contrário às leis de conservação da física. Estamos, agora, livres para rejeitar estas críticas. De acordo com a hipótese dos microssítios, a interação cérebro/mente está

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Fleischhauer, K. (1974). Feldman, M.L. (1984). Peters, A. & Kara, D.A. (1987). Eccles, J.C. (1989).

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Corpo - Modificado

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- Akert, K. & cols. (1975). - Triller, A. & Korn, H. (1982). - Kandel, E.R. & cols. (1987). - Hubbard, J.I. (1973). - Popper, K.R. (1977).

intimamente dependente de duas características assinaláveis das sinapses excitatórias do cérebro: primeiro, há a estrutura da malha vesicular pré-sináptica e a organização pela qual há apenas uma única malha vesicular pré-sináptica para cada botão (Akert & cols.)15; segundo, há a função de probabilidade da emissão de vesículas sinápticas provenientes da malha vesicular pré-sináptica, que é inferior à unidade, freqüentemente bastante inferior, e capaz de ser modificada para mais ou para menos (Jack & cols.7; Korn & Faber)8. É surpreendente que se tenham identificado sinapses com estas propriedades em situações em que não poderia haver qualquer função na interação cérebro/mente. As sinapses inibitórias nas células Mauthner da medula espinal de um peixe-dourado, por exemplo, são dos principais sítios na investigação da probabilidade de emissão vesicular. Histologicamente (Triller & Korn)16, há uma malha vesicular pré-sináptica semelhante à que foi descrita por Akert. O outro sítio principal para a investigação da probabilidade de emissão vesicular consiste nas sinapses feitas por impulsos aferentes (Ia) nos motoneurônios onde, uma vez mais, não poderia existir qualquer relação funcional na transmissão de acontecimentos mentais para acontecimentos neuronais. Ainda mais surpreendente é a descoberta de malhas vesiculares pré-sinápticas nas sinapses do molusco Aplysia (Kandel & cols.)17. Um mecanismo para controlar a emissão vesicular foi desenvolvido muito cedo na evolução da transmissão sináptica química. A concepção funcional da malha vesicular pré-sináptica seria o molde a preservar vesículas sinápticas limitando a exocitose a uma taxa bastante inferior a uma por impulso; caso contrário, a ativação de sinapses a uma freqüência elevada poderia esgotar perigosamente as reservas vesiculares do botão. De interesse nesse contexto é o fato de, na sinapse neuromuscular massiva, existir uma tendência, segundo Akert, para a exocitose de mais de 100 vesículas sinápticas por impulso (Hubbard)18. Um tão grande efluxo do transmissor sináptico (acetilcolina) é necessário para a efetiva despolarização da placa motora. Podemos voltar aos acontecimentos evolutivos que levaram os animais superiores a serem conscientes. Como Popper19 afirma, “a emergência da consciência plena... é decerto um dos maiores milagres (p. 129). Podemos, no entanto, apontar pelo menos uma condição propícia: a malha vesicular pré-sináptica com a sua baixa probabilidade de emissão vesicular controlada. Poderia agir como um microssítio para acontecimentos mentais agindo de forma análoga aos campos de probabilidade da mecânica quântica, qualificando-se, deste modo, como um exemplo de evolução antecipatória. Evoluiu no sentido de uma transmissão efetiva em sinapses químicas e, após um período de tempo evolutivo extraordinariamente longo, foi utilizada, de acordo com a hipótese dos microssítios, na interação cérebro/mente, pela qual os animais tornaram-se conscientes. Para os progressos posteriores da evolução hominídea pelos quais se tornaram autoconscientes, propor-se-á que não houve qualquer modificação fundamental no modo pelo qual os acontecimentos mentais controlaram os acontecimentos neuronais. A hipótese de microssítios seria utilizada pela mente autoconsciente que se desenvolveu

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Cérebro - modificado

durante a evolução hominídea, chegando ao surgimento de áreas cerebrais especializadas, associadas à consciência do eu (Creutzfeldt)20, 21. Marshall22, num trabalho sobre memória, em 1960, elaborou pela primeira vez, com detalhes, a necessidade de uma abordagem mecânico-quântica da consciência. Dizia ele que as leis da física clássica não davam lugar ao livre jogo dos processos de pensamento - liberdade de escolhas e intenções - enfim, ao “livre arbítrio”, considerado característica da consciência humana. Mais recentemente, o físico russo Orlov23 elaborou argumento semelhante: em qualquer tipo de resolução de problema ou pensamento criativo, a indeterminação quântica e os estados de probabilidades sobrepostos (estados virtuais) devem desempenhar papel fundamental, no cérebro, para todas as potencialidades latentes na consciência. Se como sugerem Penrose24 e, segundo Zohar25, também Marshall26 e Orlov, a base física da consciência for um fenômeno mecânico-quântico: Como será este processo e que propriedades deverá encontrar no cérebro? Em acréscimo a todas as hipóteses levantadas na questão dos microssítios, temos que apresentar, primeiramente, um “estado imutável” - na linguagem da física agindo como pano-de-fundo de toda a unidade contínua da mente, mantendo-a coesa e uniformemente fixa no espaço e persistente no tempo, qualidades necessárias para o bom desempenho de seus processos dinâmicos. Esta uniformidade pode ocorrer em materiais que existem em “fase condensada”. A fase de condensação refere-se à quantidade de ordem existente num dado sistema, a entropia. Por exemplo, as fases da água, do estado de vapor, passando pelo líquido e, atingindo o de gelo, ocorre uma ordenação cada vez maior de suas moléculas. Assim, a fase sólida, o cristal de gelo, é um exemplo de uma fase condensada, como também acontece com os cristais de sal e de açúcar, embora, nestes três casos, estruturada de modo um tanto impreciso. Outros exemplos são os imãs comuns, os superfluidos, os supercondutores, a luz laser, as correntes elétricas nos metais e as ondas sonoras nos cristais. Todos têm em comum um certo grau de coerência que faz seus átomos ou moléculas comportarem-se como uma unidade. Já se sugeriu que a mente dependa do fato de o cérebro assumir as características de um superfluido ou um supercondutor. Entretanto, esta sugestão esbarrava numa grave questão básica: esses estados somente existem em temperaturas extremamente baixas e isso, evidentemente, seria impossível em nosso cérebro, que está na temperatura corporal normal. Aqui foi lembrada a descoberta, de cerca de vinte anos antes, do professor 27 Fröhlich , da Liverpool University, na Inglaterra: o seu “sistema bombado” - sabidamente encontrado em tecidos biológicos - descrito como sendo constituído por moléculas eletricamente carregadas: os dipolos, positivos numa extremidade e negativos na outra. Estes dipolos localizados nas membranas celulares emitem vibrações eletromagnéticas (fótons virtuais). O físico alemão Popp28 descobriu a leve fosforescência por eles emitida, aos quais chamou de biofótons coerentes, de importância vital na ordenação celular. Fröhlich29 demonstrou que além de um certo limite, qualquer energia introduzida a mais no sistema bombado referido, faz que as moléculas dipolares vibrem em uníssono. No limite máximo de ordenação possível, este sistema entra em fase condensada – um “Condensado de Bose-Einstein” (BEC), conforme

20 - Creutzfeldt, O.D. (1979). 21 - ____. (1987). 22 - Marshall, I.N. (1960), n.10, p.40. 23 - Orlov, Y. (1982), n.21, p.45. 24 - Penrose, R. (1993). 25 - Zohar, D. (1990). 26 - Marshall, I.N. (1995), n.5, pp.609-620 27 - Fröhlich, H. (1968), n.2, pp. 641-649. 28 - Popp, F.A. (1988), n.44, pp. 576-585. 29 - Fröhlich, H. (1993). Em: Gutman F.

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artigo de Marshall30. O BEC tem como característica fundamentalmente singular tornar as inúmeras partes constituintes de um sistema ordenado, não só comportando-se como um todo, mas também, tornar-se um todo. Suas identidades fundem-se ou sobrepõem-se de tal forma que perdem a própria individualidade. Esta seria a forma mais coerente possível de ordem existente na natureza, a ordem de uma inteirezanão-dividida. No ano de 2001, o Prêmio Nobel de Física, da Academia Sueca, foi dado aos americanos Eric Cornell e Carl Wieman, pesquisadores da Universidade do Colorado, e ao alemão Wolfgang Ketterle, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Foi uma premiação clássica a cientistas experimentais, que demonstraram a existência real do “Condensado de Bose-Einstein” (BEC), um novo estado da matéria proposto como teoria nos anos 20 por Albert Einstein e pelo indiano Satyendra Bose: o gás ultracongelado, cujo estado não é gasoso, nem líquido e nem sólido. O gás ultracongelado faz os átomos, que normalmente vibram desordenadamente, terem um comportamento como se fossem um conjunto harmônico, afinado e bem direcionado. Esta descoberta terá aplicações práticas quando a sua técnica de obtenção estiver plenamente dominada. Será possível, por exemplo, fabricar componentes eletrônicos mais eficientes e a um custo bem menor que o atual. Assim, os chips de computador poderão tornar-se cem vezes mais rápidos, sendo sua fabricação feita com o BEC, por meio de nanotecnologia. Este estado da matéria poderia ser o mecanismo que permite à vida violar a segunda lei da termodinâmica, promovendo, assim, uma entropia negativa. Aliás, este fato é ratificado na obra de Prigogine31 sobre “sistemas abertos”, ou “dissipativos”, nos quais se enquadram os sistemas vivos. A criatividade destes – ao menos aquela cujas raízes estão em sua coerência quântica – surge de sua habilidade em criar a sua própria lei, o tipo de ordem que daria origem à inteireza relacional, isto é, criar um novo sistema que é maior que a simples soma de suas partes constituintes, e fazê-lo espontaneamente cada vez que um nível crítico de complexidade seja alcançado. A isso Prigogine chamou de Sistemas Auto-Organizados.

Bibliografia

30 - Marshall, I.N. (1989), v.7, n.1, pp.7383. 31 - Prigogine, I. (1993). Em: Pessis-Pasternak, G., pp.35-49.

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______________________________________ * Adalberto Tripicchio é médico psiquiatra e biólogo. Doutor em Filosofia da Mente pela UFSCar. Professor de Filosofia, Psicologia e Psicopatologia da Universidade Anhembi Morumbi-SP. ** Ana Cecília Tripicchio é biomédica e filósofa. Pós-graduanda pela UNICAMP. Professora de Filosofia da Universidade Anhembi Morumbi e da Faculdade São Camilo.

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LITERATURA

AA VENTURA DE GEORGES AVENTURA MÉLIÈS DANS LA L UNE LUNE

ALICE FÁTIMA MARTINS*

Resumo: Le Voyage dans la Lune, de Georges Méliès, é um marco na história do cinema, dando visibilidade, pela primeira vez, às representações do imaginário sobre o firmamento e seus corpos celestes. Constituiu o ponto de partida para a instalação da indústria cinematográfica, fonte fomentadora de imagens e significados que fazem parte do modus como o homem contemporâneo organiza sua linguagem e institui sua visão de mundo.

CYRANO – Le Bret, je vais monter dans la lune opaline,Sans qu’il faille inventer, aujourd’hui, de machine...1

1 - “CYRANO - Le Bret, eu vou subir à lua opalescente. Mas sem necessitar que máquinas invente.” Rostand: 1897 (1976, p. 327).

Em 1902, Méliès conduzia, pela primeira vez, homens e mulheres do século XX recém inaugurado, numa possível viagem que os levaria a desembarcar em solo lunar. Além da aventura, o autor dessa incrível proeza garantia, ainda, aos viajantes, ao final dos breve dezesseis minutos de projeção do filme, seu retorno seguro ao solo do planeta Terra e aos seus afazeres cotidianos. No entanto, as imagens de tal fantástica viagem já não mais os deixariam: juntando-se a todas as outras que viriam a ser produzidas desde então, desdobramentos desse feito, tais imagens passaram a integrar suas memórias e imaginação a respeito do seu universo, onde existimos e buscamos produzir sentido para nossas vidas. O firmamento, com seus astros brilhantes, exerce fascínio sobre a imaginação humana desde tempos imemoriais, expresso em lendas, histórias fantásticas, sonhos coletivos. De todos os corpos que reluzem no firmamento, sem dúvida, a Lua tem sido a fonte mais rica a fomentar histórias, simpatias, desejos, encantamentos, poesias, fantasias que povoam o imaginário humano... A Lua, essa nossa vizinha. Assim, ao apresentar o seu filme Le Voyage dans la Lune, no início do século XX, Georges Méliès, de fato, realiza o feito de dar visibilidade às imagens que habitam a fantasia humana desde sempre. Anteriormente a ele e ao advento do cinema, muitos escritores já se tinham aventurado a tecer, em palavras, tais imagens, ocupando, definitivamente, seu lugar na constituição dinâmica do imaginário coletivo em relação ao assunto, a possível viagem à Lua. Numa breve contextualização, lembramos que, no Ocidente, dentre os escritores mais conhecidos que deixaram sua imaginação nos conduzir em direção à Lua, encontramos Cyrano de Bergerac, figura legendária, que inspirou Edmond

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Georges Méliès

Rostand a escrever a famosa peça teatral que leva seu nome, apresentada ao público, pela primeira vez, em Paris, em 28 de dezembro de 1897 (Rostand, 1976). No entanto, Savinien Cyrano de Bergerac, esse o seu nome, muito antes de habitar os versos de Rostand, viveu na Paris do século XVII, entre os anos de 1619 e 1655. Exímio esgrimista, protagonista de duelos sangrentos, foi também escritor, poeta, teatrólogo, filósofo, ensaísta, comediante e boêmio, além de ser famoso pelo seu avantajado nariz, motivador de muitas brincadeiras maldosas que, quase sempre, resultaram em desavenças e escaramuças violentas. Dentre a sua produção literária, destacamos as obras Voyage dans na Lune et aux États du Soleil (1657) e Histoire comique des états et empires du Soleil (1662)2. Em suas aventuras imaginárias à Lua, Cyrano entra em contato com uma civilização que, a exemplo dos terráqueos, ignora a existência de outros mundos e não admite a existência de vida inteligente fora dos seus domínios, ou dos domínios de sua própria espécie. Invertendo as condições, para ressaltar equívocos, preconceitos e potencialidades da visão de mundo dos habitantes da Lua, o autor formula questões de cunho científico e filosófico, por meio das quais enaltece pensadores considerados dignos de sua admiração e, ao mesmo tempo, tece severas críticas a contemporâneos seus em geral, à nobreza, à Igreja Católica, em especial à instituição da Santa Inquisição, sua arrogância e pretensão, mergulhada em ignorância. “Sou-venez-vous donc, ô de tous les animaux le plus superbe! (...)”3 (Bergerac, s.d. pp 95-6), homem, de todos os animais, o mais soberbo, adverte o autor, nas palavras de uma das personagens com quem estabelece intenso diálogo na Lua, a qual defende a idéia de que todos os seres vivos sentem e pensam, até mesmo um pé de couve, ainda que não disponham dos recursos humanos para falar e defender seus pontos de vista; pretende questionar, assim, a concepção antropocêntrica sobre o universo e os seres nele viventes. No entanto, os diferentes modos de vida e costumes sociais, bem como valores e condutas morais citados pelo autor encontram, de fato, referência no próprio tempo e ambiente em que ele viveu. Vale ressaltar que a descoberta e a conquista do Novo Mundo, naquele tempo, representou grande desafio às muitas verdades constituídas no velho mundo europeu; afinal, tratava-se de reconhecer a existência de outros modos de organização social, com base em valores e códigos diversos dos conhecidos e ali legitimados até então. E, durante séculos, foi posta em questão a possível natureza humana dos habitantes do Novo Mundo – este, uma espécie de Lua para a Europa de então. Assim, em última instância, a crítica proposta por Cyrano de Bergerac ao antropocentrismo apóia-se numa visão eurocêntrica – o que dificilmente poderia ocorrer de outra forma, em se tratando do século XVII, quando o Iluminismo, então em plena eclosão, passou a reivindicar a razão humana enquanto unidade maior de medida do universo. Sua viagem à Lua, antes de voltar-se para projeções de futuro, aventuras e conquistas científicas, a despeito de toda a curiosidade do autor sobre as questões da ciência, vem a ser, de fato, uma metáfora por meio da qual Cyrano de Bergerac coloca em pauta, para discussão, as possíveis verdades de seu próprio tempo. Cerca de dois séculos mais tarde, podemos constatar que o tema Viagem à Lua é, também, recorrente na obra de um outro francês, o escritor Jules Verne,

2 - Essas duas obras foram editadas e publicadas após a sua morte. 3 - “Lembra-te, pois, homem, tu que és o mais soberbo dos animais, (...)” (Bergerac, 1939, p. 89).

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4 - A denominação ficção científica (inicialmente scientifiction, depois science fiction) não era adotada na época de Jules Verne, tampouco no tempo da realização de Voyage dans la Lune. Ela foi empregada, primeiramente, no campo da literatura, na década de 20, pelo americano Hugo Gernsback, editor da revista Amazing Stories, que tem sido apontada como a primeira revista de ficção científica. (Cf. http:// www.twd.net/ird/forecast/).

como por exemplo, em De la Terra à la Lune, escrita em 1865. A partir de sua reconhecida capacidade para compor múltiplos ambientes complexos, dos quais fazem parte máquinas e recursos tecnológicos ainda não existentes em seu tempo, nessa obra, Jules Verne embarca três homens a bordo de uma cápsula resistente, que é lançada, por um canhão gigantesco, em direção à Lua. A preparação da viagem, os cálculos, os problemas enfrentados no percurso, os desvios de curso são detalhadamente narrados, de modo a ambientar a aventura num contexto de discussões científicas, no âmbito da Física e da Astrofísica, sobre força gravitacional, corpos celestes, entre outras, em que informações comprovadas, na época, misturam-se a projeções e especulações ficcionais do autor. Nesse tempo, o desenvolvimento da ciência moderna, com reflexos sobre os avanços tecnológicos que anunciavam conquistas cada vez mais audaciosas, apontava para a ampliação dos limites da dominação humana na direção de fronteiras não imaginadas até então. O otimismo que impregnava tal convicção formava o pano de fundo sobre o qual, com base no já conquistado, era possível traçar conjecturas sobre o futuro. O que significava, por um lado, que tal futuro estava assegurado por todo o desenvolvimento vivenciado, e, por outro, que era preciso projetar o futuro, como forma de assegurar a existência de futuro, e de que grandes aventuras poderiam ser vividas, sim, nesse futuro por ele desenhado. Alguns críticos da obra de Jules Verne apontam erros em suas projeções. Mesmo na obra De la Terra à la Lune há aspectos relacionados às dificuldades impostas, pela gravidade, ou pela falta da mesma, a qualquer corpo que cumpra o percurso entre a Terra e seu satélite que teriam sido erroneamente considerados pelo autor. Deve ser ressaltado o fato de que não fazem parte da discussão aqui proposta os acertos e os erros nas previsões de autores e cineastas que produzam ou tenham produzido no campo da ficção científica, mas o modo como as suas projeções dão visibilidade ao imaginário social sobre o futuro e sobre o desconhecido, realimentando e modificando esse mesmo imaginário por meio da proposição de novos elementos. Além disso, faz-se necessário notar que todas as projeções, ainda que imaginárias, desse autor, e dos outros que produziram nesse assunto, bem como as do próprio cineasta Georges Méliès, não dispunham de informações cientificamente comprovadas sobre as quais apoiarem-se, tampouco de recursos técnicos, ferramentas necessárias para, a partir das quais, alçarem seus vôos. Ou seja, suas construções embasaram-se, essencialmente, nas possibilidades oferecidas pela própria imaginação criadora, ou imaginário radical, conforme propõe Castoriadis (1982), instância que institui a teia social, a qual é fonte contínua de (re)criação do novo, e cujo fluxo contínuo de produção de representações e significações não comporta binômios tais como falso/ verdadeiro, certo/errado, do mesmo modo que o inconsciente, como apresentado por Freud (2000). Com base nessa linha de reflexão, podemos observar que a produção no campo da ficção científica4, na literatura ou no cinema, apóia-se tanto em informações que podem ser confirmadas pela racionalidade científica quanto nas múltiplas possibilidades geradas desde a indeterminação não-racional do imaginário. É irrefutável que as imagens tecidas, no âmbito da literatura, por Jules Verne sobre a Lua e as possibilidades e dificuldades para que os homens viessem a alcançála, por um lado, deram forma expressiva às possibilidades apontadas pela ciência moderna ao homem ocidental, quanto às conquistas que lhe aguardavam no futuro, um futuro prometido por tal modelo científico; por outro, passaram a fazer parte do próprio imaginário sobre esse futuro projetivo, no campo do mágico, do onírico. Tais imagens inspiraram, em parte, esse que, na história do cinema, pode ser considerado o primeiro filme de ficção científica: Le Voyage dans la Lune, realizado por Georges Méliès em 1902. Outro autor que transitou entre os séculos XIX e XX a pintar, com as palavras, imagens sobre o futuro, como forma de questionar as condições sociais de seu tempo, foi Herbert George Wells, com seus romances científicos. O autor da obra referencial The Time Machine (1895), dentre tantas outras produções, escreveu, também, na aurora do

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século XX, The First Men in the Moon (1901), história na qual, engenhosamente, descreve as aventuras de dois homens que chegam à Lua a bordo de uma esfera feita de metal extremamente resistente, seu encontro com os selenitas, habitantes da Lua, e o seu retorno à Terra. As imagens ali criadas por H. G. Wells também constituíram fonte de inspiração para a obra cinematográfica de Georges Méliès, Le Voyage dans la Lune, na qual encontramos um tema desde muito tempo pulsante no imaginário da humanidade: o vôo do homem, a conquista do espaço infinito, a viagem à Lua. É por essa razão que Georges Méliès pode ser considerado, segundo as palavras de Edgar Morin (1959), o inventor do cinema enquanto linguagem artística: a produção de imagens que transcendem o mero registro de recortes de realidades, na direção da (re)criação da fantasia, do sonho, do imaginário. Isso possibilitou, à nova arte, a conquista do lugar, na contemporaneidade, do qual ela viria a tornar-se uma das principais fontes de entretenimento da sociedade do século XX, um dos esteios fortes da indústria cultural. A posição adotada por Morin é ratificada por outros pensadores e críticos de cinema, a exemplo do brasileiro Rubens Ewald Filho (2001). As obras literárias de Jules Verne, H. G. Wells, assim como a de Cyrano de Bergerac, dentre tantos outros escritores visionários, constituiu fonte de inspiração não apenas para Le Voyage dans la Lune, mas para muitos outros filmes identificados como de ficção científica, até os dias de hoje. Mas Le Voyage dans la Lune representa um marco referencial. Ao realizá-lo e projetá-lo, Georges Méliès transformou a própria sala escura do cinema numa cápsula, a bordo da qual lançaria seu público, juntamente com aqueles intrépidos astronautas, numa viagem que, para além da Lua, os levaria em direção ao universo todo e seus mistérios, cujas fronteiras espaciais e temporais seriam estabelecidas pela própria imaginação. Imaginação esta que, ao longo do século XX, foi balizada, evidentemente, de acordo com os códigos estabelecidos pela própria indústria cultural e, em particular, pela indústria do cinema e pelos recursos tecnológicos disponibilizados. Vale ressaltar que tais recursos, na época de Méliès, não representavam muito mais do que a possibilidade de montagem de cenários em papelão, ou do que o uso de truques de ilusionismo, migrados do circo e do teatro para o cinema, além da própria câmera fixa para filmar imagens mudas, em preto e branco, alinhavadas com muita imaginação e criatividade. Notamos que a linguagem cinematográfica só voltou a registrar novo salto de tal magnitude, em ambiente de criação igualmente artesanal, na década de 70, quando George Lucas e sua equipe realizaram o episódio inaugural da série Star Wars, Uma Nova Esperança, episódio IV, fazendo uso de meiasarrastão, ferros de passar roupas, embalagens de remédios, dentre outros (Sadovski, 2002), na produção de efeitos especiais e na montagem da cenografia que ambientaria as aventuras espaciais da Princesa Leia, dos bravos Luke Skywalker e Han Solo, protagonistas primeiros dessa obra que instituiu, no cinema, uma nova maneira de contar histórias fantásticas, aventuras intergaláticas. Retomando nossa viagem à Lua, as primeiras imagens indicam que a ambientação e a instalação da história que o filme conta foi buscada na obra de Jules Verne: o presidente do Instituto de Astronomia Incoerente (entidade que, na obra de Jules Verne, tem por denominação Clube do Canhão), interpretado pelo próprio Méliès,

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apresenta aos colegas seu projeto para a realização de uma viagem à Lua. A reunião é tumultuada mas, finalmente, os planos são aprovados e quatro dos homens presentes, liderados pelo mentor da idéia, organizam-se para realizar a viagem. Eles acompanham a fabricação da cápsula, na qual embarcariam, e do grande canhão que a projetaria em destino à Lua. O ambiente industrial, espírito que entusiasma os homens daquele início de século, é intenso: chaminés, fumaças, grandes construções, movimento de operários. Imagens que se apoiam na convicção de que o desenvolvimento tecnológico e industrial, orientado pela razão positivista, asseguraria à humanidade conquistas ainda insuspeitadas para aquele tempo. Em seguida, os intrépidos viajantes embarcam em ambiente de grande festa. O lançamento da cápsula lembra o tradicional quadro circense no qual o homem-bala é projetado de dentro de um canhão. Na obra de Jules Verne, os astronautas não conseguem pousar em solo lunar. Após terem permanecido em órbita em torno do nosso satélite, retornam à Terra, a salvo, gloriosos, com muitas histórias para contar. Por sua vez, Méliès, na pele do mestre de cerimônias do evento histórico, e seus companheiros, não encontram obstáculos ao longo do percurso: aproximam-se rapidamente da face da Lua, cuja fisionomia mostra-se perplexa com a chegada dos visitantes inesperados, que lhe entram pelo olho. A partir desse momento, o tom fantástico do filme encontra inspiração no texto de H. G. Wells, dando continuidade ao espírito circense no que diz respeito ao ambiente cênico. Méliès “funde” as duas ficções para dar forma a sua própria. Recém-chegados à Lua, os viajantes do espaço são presenteados com a surpreendente visão da Terra que surge no horizonte. Então, cansados e assustados com uma explosão violenta que os sacudiu, decidem dormir, acomodando-se numa cratera. Enquanto nossos homens dormem, a boca da cratera transforma-se em palco de um curioso desfile, imagens de sonho dos desbravadores lunares: são estrelas, cometas e outros corpos celestes. Por ali também transitam Phebus sentado em uma inesperada “lua crescente”, Saturno em seu globo cercado por um anel e duas jovens encantadoras levantando uma estrela. A presença dos aventureiros parece não os agradar. Phebus, então, ordena que caia uma nevasca, e eles despertam com muito frio. Em busca de abrigo, descem por uma entrada existente na cratera, alcançando o interior do corpo lunar, onde encontram cogumelos gigantes e os selenitas, os verdadeiros habitantes daquele mundo fantástico. Vale lembrar que as mulheres que dão feição às estrelas e outros corpos celestes são interpretadas por coristas do Vaudeville de Chatelet, e os selenitas são interpretados por atores acrobatas do Folies Bergère de Paris (Catalão, 2002). Os selenitas são seres estranhos: com grande mobilidade, ao atacarem os terráqueos, são facilmente “explodidos” com o simples toque de um guarda-chuva ou com qualquer outro impacto, como “bolhas de sabão”. Assim, quando nossos viajantes são capturados e levados ao monarca selenita, o líder dos astronautas suspende-o no ar, jogando-o ao chão, o que resulta na sua explosão. Em fuga, seguidos por uma multidão de selenitas, os quatro primeiros astronautas entram na cápsula, enquanto o quinto a empurra de um precipício onde se equilibra precariamente, de modo que ela “cai” da Lua em direção à Terra. O nosso quinto astronauta retorna dependurado por uma corda amarrada à parte externa da cápsula. De quebra, um selenita agarra-se a esse bizarro veículo espacial, somando-se à intrépida trupe-tripulação, de volta à Terra. A cápsula cai no mar, como também nos conta Jules Verne em sua história. A câmera de Méliès submerge, juntamente com a cápsula, (re)criando imagens do ambiente submarino, de onde todos são resgatados por um navio, recebidos como heróis. Como não poderia deixar de ser, o selenita que veio de carona torna-se atração circense, na entusiasmada Paris de então. Ao longo do filme, a câmera fixa registra, uma após outra, as seqüências da história, organizadas na grande caixa de um palco de teatro. Assim, todas as cenas são emolduradas pela boca de cena e, a cada seqüência, é montado um novo cenário,

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fazendo-se uso das trucagens disponíveis e dos recortes possíveis. A câmera é estática, mas, eventualmente, alguns elementos cênicos são sutilmente deslocados, para criar a ilusão de que o ângulo de visão do espectador desloca-se no espaço. As personagens entram e saem de cena pelas laterais ou, ainda, por algum acesso aberto no chão do próprio palco. Méliès trabalha com elementos rudimentares de animação de imagem na seqüência das imagens submarinas e do navio de resgate. No tocante ao perfil de algumas personagens, um detalhe chama a atenção: trata-se da presença feminina que, embora representando papéis masculinos (serviçais, soldados, etc.) utilizam trajes provocantes para a época. Elas estão presentes em algumas cenas, particularmente nas da reunião dos astronautas, do lançamento da cápsula, além daquela em que mulheres bonitas apresentam, ao público (tratar-se-ia do público da história, que corria para ver o espetáculo do lançamento, ou do público presente à sessão de cinema?...) a cápsula dos astronautas, em atitude sensualmente provocante que veio a ser incorporada, posteriormente, nas imagens produzidas, sobretudo pela televisão, até os dias de hoje, nas quais modelos, que incorporam/estabelecem os padrões de beleza feminina vigente, fazem a propaganda de mercadorias-símbolo do capitalismo industrial, tais como carros, eletrodomésticos e outros produtos, objetos de desejo do público - este, sem dúvida, integrado pela massa de espectadores ávidos por consumo. Vários autores referem-se à expansão sem precedentes da produção de imagens na sociedade contemporânea, e até mesmo à formação de uma “civilização da imagem” (Durand, 1998) ao longo do século XX, diretamente relacionada com o desenvolvimento da tecnologia que permitiu o registro e a projeção de imagens em movimento: o cinema. Marco fundamental desse processo, o cinematógrafo, inventado pelos irmãos Lumière, nas mãos de Georges Méliès ganhou, de fato, o sentido de ferramenta a serviço da produção de linguagem. Méliès foi esse artesão visionário, cujo trabalho consistiu em dar forma às imagens registradas e projetadas, sua matériaprima - a mesma forma que faz que a escultura de mármore não seja apenas a pedra de mármore, e um conjunto de palavras possam ter o sentido da poesia. E o resultado do processo de criação de Méliès, com sua ferramenta, foi o ponto de partida para a instalação, na contemporaneidade, de uma das indústrias mais criativas e mais lucrativas, a cinematográfica, fonte fomentadora de imagens e significados que fazem parte do modus como o homem contemporâneo organiza sua linguagem e institui sua visão de mundo. Nesse sentido, pode-se afirmar que Méliès instituiu o novo na ordem social de seu tempo, ao criar os meios que possibilitariam a migração das imagens que habitavam o universo da literatura e da tradição oral para a dança das luzes no écran, das imagens que, mais do que se mover na tela, projetam e incorporam-se ao próprio imaginário dos muitos homens e mulheres que as vislumbrem, num processo de projeção-identificação (Morin, 1959). Ressalte-se que, quando nos referimos ao conceito de imaginário, mais do que um determinado conjunto de imagens ou pensamento que se organiza em torno de imagens, temos em vista a capacidade da sociedade em instituir-se com um conjunto de significados, de sentidos, capacidade de se criar e recriar-se, de organizar e reorganizar, continuamente, a visão do mundo que lhe é própria, e de si mesma nesse mundo, capacidade cuja raiz está no simbólico, no alógico, no não racional (Castoriadis, 1982 & Durand, 1998), para além das representações e estruturas racionais da própria sociedade. O feito histórico desse artista francês, pioneiro no âmbito da linguagem

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cinematográfica, foi materializado numa obra que, aos nossos olhos, passado um século, se mostra, sobretudo, singela, tanto do ponto de vista da realização técnica quanto da história que nos conta, por meio de imagens que traduzem as tantas histórias que ouvimos e (re)contamos, desde sempre, sobre a Lua e quantos outros astros que povoam o espaço infinito. É uma obra impregnada, sobretudo, pela singeleza dos mitos que, desde tempos antanhos, habitam nossa imaginação, apaziguando nossas inquietações, fazendo-nos mais humanos e mais confiantes na saga humana, desde quando, não sabemos ao certo, mas, por certo, até o futuro, algum futuro, situado sempre além dos limites que possam ser medidos por equipamentos cada vez mais precisos e tecnologias mais racionais-racionalizantes - o devir ou devires, fermentados na imaginação radical humana, em toda sua capacidade de (re)criar, incessantemente, a si mesma e aos tantos modos de formular, representar e estar no mundo.

Bibliografia BERGERAC, Cyrano de (s.d.). Voyage dans la Lune et aux États du Soleil. 1ª edição 1657. Paris, Editions Nilsson. ______. Histoire comique des etats et empires du soleil. 1º edição 1662. Disponível em: <http:// www.levity.com/alchemy/french.html>. Acesso: 5 abr. 2002. ______. Viagem Cômica na Lua (1939). Tradução de Álvaro Guimarães. Rio de Janeiro, Companhia Brasil Editora. CATALÃO, TT (2002). A Magia Liberada. Disponível em: <http://colunistas.correioweb.com.br/ tt.htm?codcol=52> Acesso: 7 jun. 2002. CASTORIADIS, Cornelius (1982). A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra. DURAND, Gilbert (1998). O Imaginário: Ensaio Acerca das Ciências e da Filosofia da Imagem. Rio de Janeiro, DIFEL. EWALD FILHO, Rubens (2001). Os 100 Maiores Cineastas. São Paulo, Vimarc Editora. FREUD, S. (2000). A Interpretação dos Sonhos. 1ª edição 1900. Rio de Janeiro, Imago. MORIN, Edgar (1995). Le Cinéma ou l’Homme Imaginaire. 1ª edição 1959. Paris, Les Éditions de Minuit. ROSTAND, Edmond (1926). Cyrano de Bergerac – Comedie Héroïque en Cinq Actes en Vers. 1ª edição 1897. Paris, Librairie Charpentier et Fasquelle. ______. (1976). Cyrano de Bergerac. São Paulo, Abril Cultural. SADOVSKI, Roberto (2002). “Star Wars especial”. Revista Set, São Paulo, 11(57): 22-35, julho. VERNE, Jules (1865). De la Terra à la Lune. Disponível em: <http://www.webvilles.org/seysses>. Acesso: 21 mar. 2002. ______. Da Terra à Lua. Disponível em: <http://www.virtualbooks.com.br>. Acesso: 13 mar. 2002. WELLS, H. G (1966). The Time Machine: an Invention. 1ª edição 1895. London, Heinemann Educational Books LTD. ______. (1960). First Men to the Moon. 1ª edição 1901. New York, Holt, Rinehart and Winston.

______________________________________ * Alice Fátima Martins é doutoranda em Sociologia (UnB), Mestre em Educação (UnB) e ArteEducadora.

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LITERATURA

POR MARCUS VINCIUS

DE

SOUZA*

Resumo: Este trabalho consiste em uma análise da relação intersemiótica existente entre música e poesia na obra de Murilo Mendes. Dentro dessa interface, evidenciar a grande importância de Mozart e da música para Murilo Mendes e sua poesia, fazendo uma observação sobre o espectro divinizado de Mozart, os temas e inúmeros elementos de afinidade com a música usados pelo poeta em certos poemas e textos em prosa.

Procuraremos fazer, a seguir, uma análise de três poemas de Murilo Mendes que se referem a Mozart: “Mozart”, do livro Os quatro elementos, “Exegese (Divertimento em Ré Maior, K 334)”, de Parábola, e “W. A. M.”, de Conversa portátil, cada um com características distintas. A análise dos poemas também tentará seguir esse esquema, a fim de ressaltar diferentes manifestações e nuances da poética de Murilo Mendes e a maneira com que o poeta faz referência a esse compositor. Mozart Manhã da vida Asas no céu translúcido Jardins de nuvens Movidos pelo som 5 Mozart aero-amigo! Poeta sem véspera Sem remorso Nem sombra do crime O mundo lavado 10 Se levanta com quatro anos cantando Ó piano violino viola nuvem azul Ó flauta e paz.1 Esse poema é o nosso ponto de partida para percebermos as relações entre Murilo Mendes e a música de Mozart. Esse pensamento é reforçado pela afirmação de Guilherme Trielli em seu trabalho, intitulado O ouvido armado Murilo Mendes: poesia e música, referindo-se ao poema “Mozart” : o poema dedicado a Mozart inaugura uma longa série de textos e imagens geradas pelo convívio íntimo com sua música2. 1- Poesia completa e prosa, p. 267-268. 2 - O ouvido armado, p. 56

Há apenas dois sinais de pontuação no conjunto de doze versos do poema.

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Há apenas dois sinais de pontuação no conjunto de doze versos do poema. Os versos são livres e não respeitam uma rima fixa, tornando-se bem flexíveis. Essa flexibilidade abre campo para um ritmo móvel e, junto com as diferentes oscilações melódicas, vai-se desenhando entre acentos e sons. Podemos observar também a maneira como os versos são dispostos: não se prendem a um estilo fixo de poesia. Esses aspectos são traços característicos da poesia modernista, que é a de Murilo. Vamos, na análise, fragmentar esse texto em três partes, a fim de buscar uma melhor observação dos seus diferentes momentos. A primeira corresponde aos quatro primeiros versos: Manhã da vida Asas no céu translúcido Jardins de nuvens Movidos pelo som Levamos, inicialmente, a nossa atenção às palavras grifadas acima. Elas remetem-nos ao espaço relacionado ao ar, ao que está livre, fora do plano terrestre. As asas fazem ligação com a capacidade de voar; céu e nuvens estão no plano aéreo, ambos se relacionam com o som que, apesar de ser matéria, está desapegado do chão, possui esse poder de liberdade. Tais são considerações, apenas, sobre a afinidade entre os substantivos. No primeiro verso, a “manhã da vida” refere-se ao início do dia, pois a manhã é o começo, e o começo da vida é a infância, tudo isso em meio a um céu translúcido. O som que move as nuvens vem da influência de Mozart, através da melodia que soa de suas músicas. Música e Mozart não se encontram na superfície mas, sim, no plano aéreo, superior. No que foi proposto a respeito da divisão do poema de Murilo, segue abaixo a segunda parte: 5

Mozart aero-amigo! Poeta sem véspera Sem remorso Nem sombra do crime O mundo lavado

Aparece já no primeiro verso desse fragmento e quinto do poema, a questão sobre a confidência e amizade dita anteriormente, como dão essa mesma impressão os versos que seguem. Parece que o eu conhece pessoalmente Mozart. No sexto verso, Mozart é colocado como poeta, um poeta sem espera, sem ser atrelado ao futuro. Poderíamos dizer que ele é um poeta sem vir-a-ser. Também não está preso ao passado, já que se encontra livre de circunstâncias que causariam um comprometimento com ações já realizadas. Não carrega dentro de si qualquer forma de arrependimento e, assim, está livre de marcas, reminiscências. Ele é pleno no aspecto temporal: Poeta sem véspera/ Sem remorso/ Nem sombra do crime. E na continuação, através dos versos, o estado do menino de Salzburg estende-se ao mundo: “o mundo lavado” pelas músicas do aero-amigo. A partir do verso dez, inicia-se a terceira parte do poema:

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10 Se levanta com quatro anos cantando Ó piano violino viola nuvem azul Ó flauta e paz. Nessa parte, podemos verificar o foco voltado ao aspecto da infância. Comentando tal aspecto, um livro de Murilo Mendes, A idade do serrote, pode ser aproximado, já que se trata de uma obra que também encena a infância. O tema principal é a sua infância, narrada através de acontecimentos e pessoas que, de alguma forma, marcaram o menino. No decorrer desse livro é bem clara a importância da música e dos sons em geral: a mãe pianista, Isidoro da flauta, um negro que possuía um timbre muito pessoal nesse instrumento (dizia-se que devido ao timbre tão especial, que nome e instrumento não se podiam separar), e muitas outras pessoas que participaram de sua vida no aspecto musical, como professoras de música, mulheres instrumentistas que ele admirava (não só como musicistas), etc. Nasci coisando, nasci com a música. Recordo-me perfeitamente de ouvir o nosso Orfeu nº 1, flauteando na casa de meu pai, de Titia e de Sinhá Leonor, tendo eu três anos de idade; Mamãe Zezé pianolando e cantando, mais tarde soube, árias de Porpora e Caldara.3 Nesse livro de Murilo Mendes, escrito em prosa, é interessante dizer que, mesmo sendo escrito nessa modalidade, é de uma linguagem bem poética, dado que se torna também outra característica do poeta Murilo, como poderemos verificar na passagem a seguir escrita por Antônio Candido, fragmento extraído do livro A educação pela noite & outros estudos quando faz referência ao livro citado de Murilo: A esse propósito, diga-se que talvez Murilo Mendes seja o poeta mais radicalmente poeta da literatura brasileira, na medida em que praticamente nunca escreveu senão poesia, mesmo quando escrevia sob a aparência de prosa.4 Depois dessa digressão, voltemos ao poema. No décimo verso, cria-se uma relação da infância de Murilo Mendes com a de Mozart, pois foi nessa época que teve o primeiro contato com a música do gênio. Gênio, pois desde criança já tinha um talento impressionante para tocar instrumentos e até mesmo compor músicas. Aos quatro anos, Mozart aprendeu “oito minuetos precedentes do livro de música de Nannerl”.5

3 - Poesia completa e prosa, p. 900. 4 - A educação pela noite e outros estudos, p.57. 5 - Wolfgang Amadeus Mozart, p. 17.

Mozart tocava violino e cravo muito bem. Tais instrumentos serão citados no poema (v. 12), fazendo referência aos meios pelos quais ele produziu e interpretou suas bonitas peças musicais, tudo isso misturado a uma atmosfera de tranqüilidade em que as nuvens são azuis. No último verso, “flauta e paz”, há referência a uma produção musical de Mozart, Flauta Mágica, em que este instrumento voa pelas harmonias das seções da peça, produzindo momentos bem sensoriais: alegria e também “paz”, o que retorna às abstrações aéreas presentes nas outras partes analisadas do poema, apresentadas anteriormente. Os fragmentos do poema serão reunidos para uma análise geral de “Mozart”,

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num movimento de espalhar os naipes e juntar tudo o que foi citado para formar um conjunto. Há expressões que mostram um traço marcante na poética muriliana: dar significados diferentes da qualidade original dos objetos, fazendo que um exerça influência sobre o outro, permeando um mundo real cercado por uma atmosfera onírica criando, dessa forma, um afastamento do normal tendendo a um surrealismo em sua poesia. Encontramos também nesse poema muitas abstrações que resultarão na imersão no etéreo. Na passagem do décimo primeiro verso, “Ó piano violino viola nuvem azul”, podemos verificar esses aspectos. A conjugação de nuvem com a cor azul mostra um esvaziamento do substantivo nuvem, já que, os atributos que se dão a uma nuvem, no que se refere à cor, geralmente é branca ou escura, podendo até ser avermelhada. Contudo, azul causa uma divergência na natureza do objeto nuvem. A outra passagem que evidencia esses fatos pode ser observada no terceiro verso, “jardins de nuvens”. Jardim é uma palavra que remete à terra, superfície, não sendo, portanto, um lugar onde se tenha nuvens. Essas passagens causam uma certa estranheza se o foco é direcionado ao significado das palavras e suas relações sígnicas 6 , mas, durante a leitura, elas passam e são processadas sem causar choques. Está aí um outro aspecto da poesia de Murilo: estabelecer relações e conciliações de contrários sem causar desarmonias e desafinações.

Murilo Mendes

Esse azul também nos remete a uma situação muito importante que aconteceu na vida de Murilo: sua visão do anjo Mozart que trajava um “fraque azul”, segundo o que o poeta conta em reportagens e em carta escrita a Laís Corrêa de Araújo7. Enveredando-nos pelas facetas musicais, é possível observar uma musicalidade no poema. Os versos, em sua maioria, são bem curtos, o que faz explorar ainda mais o som que emana de cada palavra. Os acentos são alternados e isso contribui para uma musicalidade intrínseca. Afinal, está-se falando de um dos mais “musicais” compositores clássicos. Reparemos na acentuação de alguns versos: Jar – dins - de – nu – vens O mun – do – la – va - do

/

A - sas – no - céu – trans – lú – ci – do

Os sons das acentuações são mesclados, de acordo com a pronúncia da palavra, fechada como “mun”, ou aberta como “va” (terceiro exemplo). Também em relação ao ritmo observemos, em forma de notação musical, em compassos binários, os seguintes versos:

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x xl q x x e l x Se le-van-ta com qua-tro a-nos can-tan-do

eo

x

x x l e x x x e. l x x e x Ó pi-a-no vi-o-li-no vi-o-la nu-vem a-zul x l q x e. Ó Flau-ta e paz

e

x l x

x

xl e e.

x

6 - Sígnicas, aqui, refere-se à relação entre os signos dos trechos analisados: “nuvem” e “azul”, “jardins” e “nuvens”. 7 - Murilo Mendes, p.55.

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Podemos observar o seguinte: no primeiro e no segundo exemplos, os versos, quanto a tonicidade, são chamados anapésticos, pois a sílaba tônica está na terceira sílaba de cada “célula métrica”8: Se-le-van e Ó-pi-a. O esquema dos versos seria assim: _ _ _/ átona, átona, tônica. E agora o verso inteiro: _ _ _/_ _ _/_ _/_ _ _/ Se-le-van-ta-com-qua-tro-a-nos -can-tan-do _ _ _/_ _ _ _/_ _ _/ _ _/ _ _ _/ Ó-pi-a-no-vi-o-li-no-vi-o-la-nu-vem-a-zul O último exemplo difere do dois anteriores. O verso é jâmbico, ou seja, a tonicidade está na segunda sílaba - Ó-flau -, podendo ser representado pelo esquema: _ _/

átona, tônica.

Com todo o verso: _ _/_ _/ Ó-Flau-tae-paz. Percebemos como a alternância do ritmo é escrita na forma musical e na posição das sílabas tônicas, provocando um andamento bem marcado, mas ao mesmo tempo suave. No último exemplo citado, é muito interessante que as consoantes que iniciam as palavras piano violino viola parecem exercer uma relação com os objetos descritos: o /p/ do piano é um som oclusivo bilabial. Esse som possui um traço percussivo ao ser pronunciado, como é o impacto dos dedos sobre as teclas de um piano. E o /v/, de violino e de viola, é classificado como consoante fricativa labiodental e que ilustra bem o som que se produz ao passar o arco nas cordas desses instrumentos. No último verso, a consoante também fricativa labiodental /f/, de flauta, elucida claramente o som do ar ao passar pelo corpo roliço desse instrumento e sair como melódicas notas musicais.O que importa aqui, neste momento, é não deixarmos passar sem serem comentadas a beleza, a plasticidade e, principalmente, a musicalidade provocada por esses fatores na profunda relação entre Murilo Mendes, a música em si e seu amigo Wolfgang Amadeus Mozart. Por meio dos estudos realizados, das teorias sobre música e poesia, pudemos verificar que há um percurso a ser traçado para estabelecer relações entre essas duas linguagens. Usar a notação musical para dar valores de tempo aos pés de determinado verso, às vezes, torna-se mais difícil, pois, se levarmos em conta o tempo da leitura de cada som, os versos poderão ser escritos em forma de notação musical em diferentes articulações e durações rítmicas também: e

8 - Ritmo e poesia, p. 16.

e q e l q q q ä l x x q Jar-dins de nu-vens Jar-dins de nu-vens e

e

e

e l

e

e.

e

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e

e

e

e

l

e

Jar-dins de nu-vens e

eäl e

e

q

e

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e

e äl x x e Mo-vi-dos pe-lo som Mo-vi-dos pe-lo som Mo-vi-dos pe-lo som

Se estabelecermos uma escrita rítmica única para determinado verso, como um prosodista poderia fazer, estaremos excluindo outras possibilidades de se ler ou recitar as linhas de um poema. e e. x e l q Jar-dins de nu-vens e e q Mo-vi-dos pe-lo som

l x

x

q

Essa última possibilidade referida de se aproximar a notação musical da poesia foi o nosso método e critério para escrever musicalmente os versos finais de Mozart. Os aspectos que foram apresentá-los anteriormente trabalham com a aproximação da poesia e a música no aspecto rítmico. No que se refere à melodia, dentro de um poema, encontra-se um efeito sempre muito comentado e, às vezes, equivocado chamado musicalidade. Muito se comenta, pouco se explica. Como obter melodia e musicalidade em um verso? A musicalidade é percebida quando uma certa conjugação de sons e ritmos produzem um efeito sonoro que muitos classificam como musicalidade. Tal efeito não é percebido apenas no aspecto melódico, mas também pelo ritmo e harmonia intrínseca ao verso.

Murilo Mendes

Ou então, podemos representar um verso levando em consideração a tonicidade das sílabas. Esta é a representação que mais nos convence, pois a atenção estará na duração de sílabas átonas, tônicas e também nas sub-tônicas, aquelas que possuem uma leve acentuação, ou acentuação secundária em uma palavra, como por exemplo, se-cun-dá-rio, a-ten-tar, co-ra-ção, ca-pa-ci-tor. Podemos observar que a maioria dos exemplos são oxítonos, trissílabos ou polissílabos. Há também, o exemplo de um polissílabo paroxítono. Não é a razão desse estudo pesquisar a tonicidade nas palavras, porém, perceberemos que há uma tonicidade secundária. Além do seu acento na sílaba dá, a sílaba cun tem uma acentuação maior que as demais sílabas átonas dessa palavra consistindo, portanto, em uma sílaba de tonicidade secundária ou sub-tônica. Nos outros exemplos também acontece esse fenômeno sonoro: a-ten-tar , co-ra-ção, ca-pa-ci-tor.

A melodia do verso é responsável por essa nuance sonora, pois a mescla de sons da mesma ou diferente natureza, mais a tonicidade e a atonicidade dos sons produzem uma cadeia sonora que, ao ouvirmos, chega-nos como uma melodia, uma melodia contida em cada verso de um certo poema. As aliterações, assonâncias, onomatopéias, etc. ajudam a produzir esse canto natural. O outro componente da tríade formadora da música já é mais difícil de ser percebida em um poema ou em um verso. A harmonia poderia ser representada como a colocação estratégica, em certos versos, de sons e tonicidades com características afins. Verificamos, por exemplo, um poema escrito com a posição de sons oclusivos, bilabiais e labiodentais da forma como se mostra a seguir:

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Paralelas buscam tecer Pairando bem longe tabulações Distantes a granar no vasto território Pendulares bestas tecem Perseguem boas ondas tibiezas Distrações a gritar na vasta turba Portas com benemerências traçam Dádivas às gentes turvas Postulantes ao bem, não a tolos. Paralelas grafias, tecem. Nos estudos pesquisados sobre música e poesia, percebemos, até o momento, um avanço ainda muito pequeno nessa intersemiose; são muitos os comentários, mas não as teorias aprofundadas. Essas linguagens são gêmeas, mas seu estudo é muito delicado; consiste em pisar em solo ainda não conhecido; é estar em uma costa e visualizar uma outra no final do horizonte, ambas separadas por águas turbulentas, mas possíveis de serem navegadas.

Quatro movimentos de uma justaposição polifônica Nesse segundo estudo dos poemas dedicados a Mozart, buscaremos perceber em quatro movimentos crescentes como o poeta articula certas relações contrárias, mas, ao mesmo tempo, faremos contrapontos que irão compor os elementos necessários para a exegese da suíte: Exegese (Mozart, Divertimento em Ré Maior, K 334) A trágica tessitura da música, Ó música! determina uma luta Entre a beleza e a morte. A substância da beleza 5 É alimentada pelo prazer, Feita de tecidos que se corrompem Insinuando a morte nas suas dobras. A substância da morte Abre as asas para a transcendência, 10 Futuro pássaro que aprendeu com o céu. A substância da morte abandona o tempo E sobrevoa a angústia, a história, a idéia amarga. Entre a beleza e a morte, Entre a vacuidade e a subsistência 15 A sinfonia matemática se balança, Levando-me sagrado e comovido Às duas antigas praias que se defrontam,

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Melodia e harmonia.9 Primeiramente, comentaremos algumas informações que dizem respeito ao Divertimento K334 citado no título do poema. Foi uma peça composta em 1779-80 com quatro movimentos: Allegro, Andante, Adagio e Allegro feito para duas trompas e cordas. Essa modalidade de composição tem geralmente uma caracterização recreativa com andamentos ligeiros, como se pode observar em dois movimentos de Allegro na sua composição. É uma peça no estilo de música de câmara. Provavelmente foi composta para uma pessoa de uma família de Salzburg, amiga dos Mozart. 10 Vamos, então, ao primeiro movimento do poema: A trágica tessitura da música, Ó música! determina uma luta Entre a beleza e a morte. Nesses três versos, o poeta introduz o assunto por meio de dois substantivos que serão importantes até o final do poema: “beleza” – “morte”. Eles expressam algum tipo de relação devido à presença da preposição “entre”. Há um outro que será o pano de fundo desses dois: “música”. Será a “tessitura da música” que envolverá a beleza e a morte para fazer uma possível relação entre esses signos? A partir do segundo movimento, o poema entra num processo de espalhamento. Neste movimento será a beleza e no próximo, a morte. Veremos esses e outros aspectos a seguir no estudo do segundo movimento da Suíte, como a primeira variação da temática principal: A substância da beleza É alimentada pelo prazer, Feita de tecidos que se corrompem Insinuando a morte nas suas dobras. 5

Vemos já no primeiro verso que esse movimento vai tratar de um dos componentes do tema principal: beleza. Há uma relação desse trecho com o aspecto temporal que parece estar ligado a um tempo cronológico. Prestar a atenção ao verbo “corrompem”, no sexto verso. Corromper, aqui, está ligado ao passar do tempo, às coisas que se desgastam, que se afastam de sua forma original devido ao desdobramento dos fatos, já que a continuidade é a razão do tempo. No terceiro movimento poderemos observar que a relação com o tempo não se dá dessa forma. É uma forma de tempo transcendido que não estabelece relação com a cronologia. É o tempo do não-tempo. Vejamos:

10

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A substância da morte Abre as asas para a transcendência, Futuro pássaro que aprendeu com o céu. A substância da morte abandona o tempo E sobrevoa a angústia, a história, a idéia amarga.

9 - Poesia completa e prosa, p. 549-550. 10 - Mozart, Um compêndio, p. 237 e 318.

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Reparemos no segmento que “a substância da morte abandona o tempo” e “abre a asas para a transcendência”, como em um movimento inicial de um pássaro que iniciará seu vôo, para sobrevoar a história e sensações negativas que estão acerca da vida do ser humano. A morte, no texto, não é encarada pelo seu lado de tristeza e, sim, como uma forma de elevação para um estado metafísico. Chegando até esse ponto, perguntamo-nos qual será a relação existente no poema. Uma possível dualidade de beleza e morte, uma que se corrompe e outra que transcende... Essas duas idéias vão se encontrar num processo de ajuntamento que é iniciado no quarto e último movimento. Cada uma foi colocada separadamente representando dois movimentos distintos dessa peça. Agora, volta-se ao tema e depois com uma coda para os versos finais:

15

Entre a beleza e a morte, Entre a vacuidade e a subsistência A sinfonia matemática se balança, Levando-me sagrado e comovido Às duas antigas praias que se defrontam, Melodia e harmonia.

A coda a que nos referimos está situada no primeiro verso desse movimento. Observemos que ele traz a repetição do terceiro verso do tema principal do poema (primeiro movimento) para fazer a transposição ao final dessa suíte. É interessante observar que as estrofes aumentam gradativamente em número de versos, cada uma com um verso a mais que a anterior, produzindo um efeito de crescendo poco a poco ao longo da sua forma até chegar à estrofe quatro que é o tema final. O que poderíamos chamar “tema final” englobará os cinco últimos versos do poema. Nessa parte, o jogo de dualidades é bem notado, já que se inicia a partir da extensão da idéia que o verso de repetição “Entre beleza e a morte”, contém. “Entre a vacuidade e a subsistência” é essa extensão, e que vai atracar no último verso: “Melodia e harmonia”.Esse verso é a saída das dualidades que existe como uma justaposição polifônica do plano cartesiano musical do poema. A relação beleza - morte, melodia - harmonia é a relação da beleza com prazer, e a morte com o metafísico e com a própria música. A melodia é a música horizontal, da sucessão de sons; já a harmonia é a música vertical, da simultaneidade dos sons. Com a junção dessas duas linhas, forma-se o que já chamamos plano cartesiano, pois há uma relação matemática das notas que são emitidas na linha horizontal com a vertical. Qualquer nota melódica terá uma representação harmônica. A questão entre melodia e harmonia é ilustrada no poema como a imagem de duas praias que se defrontam, no sentido de estar em frente, já que, é uma tarefa bastante inútil fazer uma disputa entre elas. Melodia e harmonia são elementos que se juntam com o ritmo para formar a música, ou seja, elas complementam a paisagem litorânea onde o mar, que é a música, na sua correnteza rítmica, é envolvido pelas “duas antigas praias”. Envolto por essa sinfonia matemática, o poeta é levado a fazer parte dessa imagem paradisíaca com um ar “sagrado e comovido”. É característica de Murilo

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Mendes uma certa comoção para buscar perceber a complexidade, a dualidade dos fatos do cotidiano, misturando seu microcosmo ao macrocosmo do universo que aqui é representado pela música, buscando, assim, através da admiração e compreensão profunda, seu sonho de felicidade. ...As portas da percepção abriram-se no momento-luz inicial dos tempos; talvez nunca se fechem. O minús culo animal que sou acha-se inserido no corpo enorme Animal que é o universo. Excitante, a minha fraqueza: alimenta-se dum foco de energia em contínua expansão. 11

A chama e o cristal Prosseguindo nas observações sobre a poesia de Murilo Mendes, analisaremos o último estudo que concerne e homenageia Mozart, que se encontra no livro intitulando Conversa Portátil. Este poema é a celebração e a sublimização de Wolfgang Amadeus em meio a um palco ocupado por antíteses e dualidades, como poderemos observar a seguir: W. A. M. Sentado à sombra do teu monumento aéreo venho conversar contigo, ó Wolfgang Amadeus.

5

A noite enrola as montanhas de Salzburg. As espadas dos ditadores confabulam no escuro. Recolhem as flautas, os címbalos, os violinos e barram o horizonte com tanques, canhões, pára-quedas.

Destroem a caixinha de música que alimentou nossa infância põem abaixo os teatros de marionetes 10 e erguem gigantes de chumbo. Ó Wolfgang Amadeus, conspiram contra o ritmo, Constroem as falsas pátrias e mutilam a unidade. O coração do universo estala, não pode mais, 15 o peso do Minotauro esmaga a asa da música. Sufocam a dança da manhã primeira da criação. Sufocam a liberdade de dançar e de errar. Fascinado pelo teu cristal 20 que permanece altivo e simples acima do massacre, venho te confessar minha fidelidade enquanto os raios dos ditadores desabam sobre a Europa. É de ti que o mundo precisa, 11 - Poesia completa e prosa, p.46.

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ó dominador dos elementos, dos instintos. 25 acima das baionetas e dos tanques dos tiranos canta, pura chama, dança, Wolfgang Amadeus para que o homem retorne ao paraíso. Teu canto é liberdade, teu nome: vitória. Dezembro de 1941, 150º aniversário da morte de Mozart.12 Já de início, percebemos um contraponto importante desse poema com o primeiro que analisamos, “Mozart”. Observemos que no primeiro verso aparece uma palavra já comentada que é “aéreo” e assim, ao longo do poema, outras palavras que dizem respeito à dimensão não terrestre: “asa”, (v.16), “acima”, (v. 20-25), palavras estas que vêm mais uma vez reafirmar o plano superior em que Mozart encontra-se no universo muriliano. Na abertura do poema, podemos observar que a sua armadura (informações iniciais do pentagrama) é apresentada, fazendo-nos perceber o tema dessa peça e as notas principais que dançarão ao longo das frases que podem ser sentidas já neste prelúdio: Sentado à sombra do teu monumento aéreo venho conversar contigo, ó Wolfgang Amadeus (v. 1-2). Logo após, o tema começa a ser desenrolado com passagens bem tensionadas e pesarosas. Para causar estas sensações, o poeta trabalha muito com antíteses e um dualismo muito forte, que é uma característica da obra de Murilo Mendes. Ele busca com elementos contrários estabelecer uma tensão entre os versos e causar um certo estranhamento nas idéias que são apresentadas em seus poemas. Eis algumas das tensões: 5 Recolhem as flautas, os címbalos, os violinos e barram o horizonte com tanques, canhões, páraquedas

Murilo Mendes - modificado

põem abaixo os teatros de marionetes 10 e erguem gigantes de chumbo.

12 - Poesia completa e prosa, p.1489-1490.

Esses dois trechos servem muito bem para explicar os comentários anteriores. Vemos que, na primeira passagem, os instrumentos musicais contrapõem-se com os instrumentos de guerra. Há uma antítese nessas idéias: o sublime representado pelas flautas, címbalos e violinos e a rudeza dos veículos de guerra. O pára-quedas não é um veículo em sua natureza, mas em uma guerra torna-se um, já que faz o transporte de homens armados com metralhadoras, do ar para lugares estratégicos na terra. No segundo trecho a antítese está em “teatros de marionete e gigantes de chumbo”. Os títeres são leves e delicados, seus movimentos são suaves, em contrapartida os gigantes de chumbo, referência aos tanques, canhões aviões, etc., são pesados, brutos e de movimentos rudes.

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Há também verbos antagônicos que compõem esse cenário antitético, como por exemplo, no verso sete: “destroem a caixinha de música” e no verso doze: “Constroem as falsas pátrias e mutilam a unidade”. É importante notar também que o significado do verbo construir foi invertido na dualidade polar com que o poema trabalha bem e mal, positivo e negativo. “Construir”, que geralmente se refere a algo de bom que será realizado, aqui está para o mal. A representação do que é mais puro, “a caixinha de música”, é destruída para dar lugar às “falsas pátrias” e à mutilação da unidade, que seria a mutilação do divino, do próprio Mozart. O espaço do poema é bem voltado à guerra e há muitos signos que comprovam isso, como “espadas, ditadores, canhões, tanques, falsas pátrias, baionetas, tiranos”, bem como os verbais “esmaga, mutilam, sufocam, confabulam, barram, destroem”. Todos eles reforçam, no poema, a questão bélica que é apresentada. O dualismo que o poema apresenta é bem marcado no trecho que abarca os versos três ao dezessete, que é a segunda parte do poema. Cada pólo é bem descrito e os prejuízos que sofre a música estão baseados nos signos: “Wolfgang Amadeus, flautas, címbalos, violinos, caixinha de música, ritmo, asa da música, dança, liberdade” com os artefatos da guerra.

Depois da apresentação do tema e das seqüências de passagens e tensões, passemos à última parte dessa peça, do verso dezoito ao verso vinte nove, o momento de deixar as tensões e caminhar para o allegro que marca a transição das dualidades para a unidade de Mozart com a música, situada no plano superior. No trecho citado acima, vemos mais uma vez evidenciada a posição superior de Mozart: ele está além do bem e do mal. Embora o cenário da guerra seja muito forte, como vimos, ela perde espaço para a presença de um ser divino que é Wolfgang Amadeus. Já no primeiro verso desse trecho, percebemos a presença do cristal, que é uma pedra muito forte, transparente e clara. O mineral representa a pureza da música de Mozart, uma pureza que está acima de qualquer mazela humana. O poeta reconhece e confessa fidelidade a tal manifestação e manifestador transcendente da arte, pois ambos estão em uma superfície supra-dimensional e perfeita.

Murilo Mendes - modificado

Algo muito interessante no referido trecho é uma passagem do verso oito: “que alimentou nossa infância”. Podemos observar que, aqui, há uma certa cumplicidade entre o poeta e o compositor, e por que não dizer entre Murilo e Mozart, pois Murilo sempre tratava Mozart como um amigo, como foi comentado e analisado no primeiro poema deste trabalho e o mesmo traço é reafirmado neste último.

Percebemos que, neste momento, Mozart torna-se um ser sublime, capaz de vencer forças antagônicas e de regenerar a existência do caos que habita o interior do homem, já que assumi um poder de Salvador.

25

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É de ti que o mundo precisa, ó dominador dos elementos, dos instintos. acima das baionetas e dos tanques

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dos tiranos canta, pura chama, dança, Wolfgang Amadeus para que o homem retorne ao paraíso. Teu canto é liberdade, teu nome: vitória. No fragmento acima, podemos observar signos que estão ligados ao aspecto da religião, no que se refere à etimologia da palavra que veio do latim, religare, ‘ligar o homem a Deus’. São eles: “pura chama, paraíso, liberdade e vitória”. O aspecto religioso é muito importante na vida de Murilo Mendes, estendendo-se, é claro, a sua produção poética. A religião será um meio de resolução das suas inquietações e ascensão do sentimento do seu mundo. O poema é um Réquiem em memória dos cento e cinqüenta anos da morte de Mozart. É a elegia que se torna evidenciada pela data do poema e o título que sugere um monograma de uma lápide tumular, além de, no primeiro verso, aparecer a palavra “monumento”. É, também, uma celebração da própria música como essência, pois rompe fronteiras e coloca o homem em contato com dimensões maiores e sentimentos puros. Todos esses signos são como sintagmas no meio dos versos que habitam o mundo substantivo de Murilo. Tudo para fazer a convergência das antíteses para a síntese chamada Wolfgang Amadeus Mozart, ser divino que canta com seu cristal a liberdade acima de qualquer coisa, para que a pura chama da vitória, que é sagrada, esteja sempre acesa.

Bibliografia ANDRADE, Mario. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, 1967. P. 27-44: A poesia em 1930. ANDRADE, Mario. Pequena História da música. 9 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1972. BAKER, Richard. Wolfgang Amadeus Mozart. Trad. Marcos Antônio da Rocha. 2 ed. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1988. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira: poesias reunidas. Rio de janeiro: José Olympio, 1966. BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. P. 65-75: Murilo e o mundo substantivo. P. 283-288: Poesia e música.. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987. P. 51-69: Poesia e ficção na autobiografia. CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. 5 ed. São Paulo: Ática, 1995. P. 81-95: Pastor pianista/pianista pastor. DUARTE, Rodrigo. “Música e Literatura: Murilo Mendes”. In: Ipotesi. Revista de estudos literários da Universidade Federal de Juiz de Fora. V.6, n.1, Jan/Jun 2002. Ed. UFJF, Juiz de Fora, 2002. P. 67-79. DUFRENNE, Mikel. O poético. Trad. Luiz Artur Nunes e Reasylvia Kroeff de Souza. Porto Alegre: Globo, 1969. P. 45-77: Linguagem e poesia e Poesia e música. ELIOT, T. S. De poesia e poetas. Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Brasiliense, 1991. P. 25-55: A função social da poesia / A música da poesia. KENNEDY, Michael. Dicionário Oxford de música. Trad. Gabriela Gomes da Cruz e Ruía Vieira Nery. Lisboa: Dom Quixote, 1994. LANDON, H.C. Mozart, um compêndio: guia completo da música de Wolfgang Amadeus Mozart. Trad. Mauro Gama, Cláudia Martinelli Gama. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1996. LEITÃO, Cláudio. “As primeiras inesquecíveis vezes: hábitos e ritmos na formação de Manuel bandeira”. Vertentes. São João Del Rei, n. 6 – Jul/dez 1995. P. 31-34.

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_________________________________________ * Marcus Vincius de Souza é aluno do curso de Letras da UFSJ e bolsista PIBIC/CNPq.

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EDUCAÇÃO

ENSINO E APRENDIZAGEM EM ARTE COMO CRÍTICA DO CONHECIMENTO E DA SOCIEDADE: UMA CONTRIBUIÇÃO DA

TEORIA CRÍTICA POR SUELI SOARES

DOS

SANTOS BATISTA*

Resumo Resumo: Explicitar o entrelaçamento entre arte, filosofia e história como crítica do conhecimento e da sociedade, realizar uma crítica incansável à concepção tradicional de história enquanto progresso linear, refletir sobre a relação entre arte e ciência e mostrar as ambigüidades da utilização da arte com fins socialmente determinados são objetivos importantes no ensino e aprendizagem em arte e educação ora apresentados neste artigo, concebido à luz da Teoria Crítica da Sociedade. ***

A arte tem o momento de separação do existente, mas também sempre esteve ligada ao processo real de vida da sociedade, da produção material, da exploração do trabalho alheio. Ou seja, a arte pode ser promessa de felicidade e de liberdade, o que não quer dizer que esteja separada das condições objetivas. Também é relevante que, quanto mais o artista e a obra inserem-se num contexto de negação da realidade, mais encontram entraves para a sua existência.

1 - Vidal, Lairtes Julia M. T. Música tonal versus música atonal: um estudo de preferência em bebês humanos. São Paulo, Dissertação de mestrado apresentada ao IPUSP, 1997. Nesse trabalho, a pesquisadora conclui que a preferência dos bebês por Mozart e não por Schoenberg se deve à tonalidade presente na linguagem mãe-bebê e aborda rapidamente a adaptação que o bebê já tem na vida uterina devido sua sensibilidade auditiva permitir que ele perceba a tonalidade dos sons do ambiente em que a mãe vive.

A hostilidade em relação à arte é similar àquela frente à teoria e ao pensamento que não se agarram aos fatos. É exemplar que, ao se afastar do realismo figurativo, a arte moderna mereceu a hostilidade tanto de fascistas quanto daqueles que defendiam uma arte revolucionária. Por isso, a dialética negativa solicita a experiência estética, como forma de trazer à luz o não conceitual por meio do conceito. Adorno, ao longo de sua vida, procurou na arte a fisionomia da sociedade e revelou nas obras de arte que analisou (principalmente musicais) o conformismo ou a crítica do existente. São conhecidos seus textos sobre o jazz e o atonalismo; na filosofia, procurou ele mesmo aproximar sua reflexão filosófica da experiência estética. Assim é que Adorno pôde perceber que a música de Schoenberg, ao exigir que o ouvinte componha espontaneamente seu movimento interno, incita-o à práxis em lugar da mera contemplação. Denunciava, também, o conformismo que se apropria da música reservando a ela o espaço de comportamentos infantis que se referem à cota controlada de felicidade infantil cedida pela sociedade aos indivíduos (1998, p. 146). A atualidade dessas considerações são impressionantes : a rejeição ao atonalismo verificada até em bebês1 e a avalanche de produções musicais para crianças, ou que seduzem adultos e crianças ao mesmo tempo, são reveladoras.

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Filosofia e arte, no pensamento de Adorno, convergem não em uma assimilação de seus procedimentos e formas de atuar, mas, sim, em seus esforços por dar expressão sem recortes ao sofrimento e à negatividade. Como filósofo e músico, Adorno não pretendeu fazer uma filosofia da arte; antes, criticou-a mostrando o quanto a arte possui determinações essenciais que contradizem o caráter definitivo do seu conceito estabelecido pelos filósofos da arte. Ele expressa essa crítica na epígrafe da Teoria Estética: “Normalmente falta àquilo a que se dá o nome de filosofia da arte, uma coisa: a filosofia ou a arte”. Pode-se ler a Teoria Estética como uma resposta de Adorno à sociologia, à história, à filosofia, à psicanálise e à educação voltadas para a arte. Na análise de Buck-Morss, da qual partilhamos nesse aspecto, Benjamin e Adorno consideravam a arte como uma forma de conhecimento e não apenas objeto de conhecimento a ser investigado pelos diversos campos de pesquisa (1981,p. 17). Deram à estética um lugar central, insistiram na convergência entre experiência estética e científica, opondo a separação entre arte como “ilusão” e “verdade” científica, o que não significa dizer que arte e ciência são equivalentes. Se a música de Schoenberg pode ser considerada expressão de uma teoria social progressista, é possível afirmar que Adorno desenvolve suas idéias filosóficas à maneira que Schoenberg desenvolvia suas idéias musicais. Sua “filosofia atonal” é perceptível em cada um de seus ensaios, que se constituía no princípio de desmontar a separação entre pólos opostos e manter a contradição das identidades. Schoenberg expressara com a música o que Adorno entendera como “dialética negativa”, o princípio da não-identidade. A Teoria Estética faz inúmeras referências às similitudes entre a arte e a teoria. A Dialética Negativa, sua obra filosófica madura, aponta explicitamente, em muitas passagens, as analogias entre pensamento crítico e composição musical. Mas, apesar da afinidade conceitual, Adorno e Schoenberg não foram amigos. Este sequer concordou com as reflexões filosóficas de Adorno sobre a sua música. Esse detalhe histórico, que não é mero anedotário, tem o mérito de revelar que o encontro feliz entre arte e filosofia não pôde ser concebido ingenuamente, de maneira não-problemática. A polêmica estéril sobre em quais textos Adorno seria um filósofo- pedagogo ou um pedagogo-filósofo é semelhante àquela que separa radicalmente o Adornomúsico, do Adorno-filósofo e que procura demarcar território entre sua filosofia e sua teoria estética. Dividir o pensamento de Adorno em especializações, embora ele, obviamente, tenha se servido de disciplinas especializadas, é perder de vista que a Teoria Crítica é a que busca a crítica da sociedade como um todo. Citar Adorno (e acreditamos que isso também vale para Benjamin) como filósofo, sociólogo, musicólogo, pedagogo, crítico da cultura serve para citá-lo como mais um item da bibliografia dos trabalhos especializados nessas disciplinas. Adorno certamente estabeleceu correspondências entre dialética negativa e experiência estética, mas isso não significa dizer que, para ele, teoria e arte coincidiam. Adorno é bastante claro quando afirma que “uma filosofia que imitasse a arte, que aspirasse a definir-se como obra de arte, se eliminaria a si mesma” (1975, p. 23). Para ele (1993, p. 195), “a tarefa atual da arte é introduzir o caos na ordem”, mas a arte

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não pode pensar a si mesma se não tiver como contraponto a filosofia. A arte não se limitando à lógica da ciência, também não tem uma ligação imediata com a sua prática. Na arte, a insuficiência do conceito é evidente, colocando-se frente a ele como instância inatingível, em que regras e paradigmas pouco auxiliam; ou seja, a arte e a razão instrumental não coincidem. Para Adorno, a racionalidade instrumental compactua com o poder organizado que rege a sociedade, em que saber é poder. A verdade da arte é a presentificação, o lugar da reconciliação entre intelecto e natureza, espírito e matéria, racionalidade e mímesis, em que uma nova racionalidade possa se constituir. Esse seu aspecto reconciliador não é isolado de crítica; sua verdade também é poder dizer que o existente engana. A experiência estética é crítica frente à totalidade como categoria afirmativa por não eliminar o particular, mas a linguagem da arte é a do silêncio na perspectiva da racionalidade discursiva, sendo mais que um mero acesso ao conhecimento; é, em si mesma, conhecimento. Nesse sentido, a decifração filosófica da obra de arte adquire importância crucial. Para que essa linguagem possa ser assimilável, “a arte necessita da filosofia que a interpreta, para dizer o que essa não pode dizer, enquanto somente através da arte pode ser dito, ao não dizê-lo”(Adorno, 1970, p. 113). Uma combinação dialética de experiência estética e filosofia crítica pode revelar o que Adorno chama de conteúdo de verdade de uma obra de arte. A experiência estética ajuda a filosofia a fazer sua crítica do conhecimento porque permite pensar e avaliar, empiricamente, a dialética entre mímesis e racionalidade. A irracionalidade do mundo administrado, legitimado pelo discurso da racionalidade, levou os frankfurtianos a irem além da crítica da ideologia que escamoteia a irracionalidade em que ele apresenta-se de forma mais racional. A questão não é apenas ideológica, ou seja, de circunstâncias econômicas, históricas que para se apresentarem como verdade precisam de uma justificativa plausível. A ambigüidade, não mera falsidade, está no âmago da razão, da dialética do esclarecimento: uma razão, um esclarecimento que os homens construíram em grande parte tendo como ponto de partida o medo, a situação de desamparo perante a natureza. Como segunda natureza, a racionalidade tornou-se instrumental, separando formalmente âmbitos imbricados: o espírito e o corpo, palavra e coisa, fantasia e conhecimento. A dialética do esclarecimento visa trazer à luz os limites dessa racionalidade persecutória de tudo que lembre natureza: o corpo, a imaginação, a mímesis, a arte - reino proscrito da sensibilidade que caminha junto da razão que nega sua origem, sua substância. Tal qual o joio que cresce com o trigo, a possibilidade de um conhecimento sem violência, uma rememoração da natureza no sujeito são negados, recalcados no processo civilizatório em que a mímesis é silenciada, mas não abolida. O recalcado ressurge revelando a irracionalidade do mundo racional administrado. A dominação inflexível sobre todos produz a consciência conformista que não admite forças idênticas atuando em esferas não-idênticas (Adorno, 1970, p. 260). O irmão bastardo da razão, o mito, ressurge na ciência dominadora. A vida, e por conseguinte, a ciência e a arte, limitadas à autoconservação, levam à perda da experiência substituída pelo sempre igual, reduz-nos em nome de uma pretensa segurança a uma vida repetitiva. Repetição do trabalho mecânico na fábrica, no escritório, repetição da cultura essandardizada, repetição do conhecimento fragmentado e reduzido à tautologia: o desencantamento dessa história petrificada

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é tarefa das mais complexas a que a arte como conhecimento pode se propor. Adorno e Horkheimer não fazem a oposição simples entre racionalidade e irracionalidade. Afirmar que a arte é refúgio do comportamento mimético não é a busca de uma nova racionalidade inspirada pela irracionalidade. Podemos dizer que há, na verdade, um projeto racionalista na Dialética do Esclarecimento e também na Teoria Estética. Reconhecemos nessas obras a tentativa desesperada de salvar a razão da desrazão nela implícita, denunciando a cegueira da racionalidade que até hoje construímos. A razão, a partir da negação do que seria supostamente seu outro, afastouse do seu próprio objetivo: a verdade e a emancipação dos homens: Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade (Horkheimer e Adorno, 1985, p. 13). Acolher dentro de si a não-identidade, a natureza não totalmente conformada quer pelo processo de produção, quer pelas teorias do conhecimento não é, de modo algum, um apelo irracionalista. A reflexão conceitual da dialética negativa visa penetrar com conceitos o que não é conceitual, o que escapa ao conceito. Se a vontade de potência é maior que qualquer teoria, a arte, em seu momento mimético, proporciona ao pensamento a perspectiva de um conhecimento sem dominação. A dimensão mimética da arte evita que esta exerça sobre a natureza uma coação semelhan te àquela exercida pela definição de conceitos: “A sobrevivência da mímesis, a afinidade não conceitual do produto subjetivo com o seu outro, com o não-estabelecido, define a arte como uma forma de conhecimento” (Adorno, 1970, p. 69). A mímesis na arte, ao não subordinar a natureza ao pensamento, nem a matéria ao espírito, traz a promessa de uma relação não desfigurada com o não-idêntico. A beleza natural representaria, para Adorno, ...a dependência do homem frente a um objeto que não foi criado por ele; é, por conseguinte, um paradigma da não-identidade, que tem como base uma relação terna e respeitosa entre o homem e a natureza. Adorno, contudo, não equacionava a arte à mímese da natureza per se, mas à mímese da beleza natural, que requer uma capacidade humana de responder afirmativamente à forma. Portanto, sendo a beleza função da forma, a arte também é uma construção organizada, a objetificação da subjetividade, vinculada à racionalização do mundo social. Aquilo que Adorno gostava de denominar caráter “enigmático” da arte é produzido pela mescla incômoda de momentos miméticos e construtivos, sensuais e racionais. (Jay, 1984, p. 140) Portanto, para entender a experiência estética e a arte como forma de reconhecimento, é necessário reconstituir a dialética entre mímesis e racionalidade. A intuição, que não existe purificada da racionalidade, é sempre mediatizada, o que faz que mesmo as obras mais sensuais, em virtude da sua relação com o espírito das obras, continuam a ser não intuitivas (Adorno, 1970).

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Sem técnica, os materiais que constituem a obra de arte não passariam de coisas desarticuladas, pois apenas aquela “faz que a obra de arte seja mais do que um aglomerado do facticamente existente” (Adorno, 1970, p. 244). A arte aproxima-se do objetivo da racionalidade devido a sua própria estrutura material, sendo “alérgica à recaída na magia”: a arte constitui um momento no processo do desencantamento do mundo, da racionalização. Como produtos do trabalho social, renegam e comunicam-se reciprocamente com a empiria. O próprio momento mimético, afinidade não conceitual do produto subjetivo com o não estabelecido, torna a arte uma forma de conhecimento e, por isso, racional. Nessa perspectiva, a unilateralidade das teorias racionalista e irracionalista da arte são fadadas ao fracasso: acusar de irracionalidade a arte irracional, que despista as regras da razão orientada para a práxis, não é, a seu modo, menos ideológico do que a irracionalidade da crença oficial na arte (1970, p. 70). A obra de arte não é manifestação imediata da intuição, mas é a expressão indireta dela: “a arte é a intuição de algo não-intuitivo, é semelhante ao conceito sem conceito. É nos conceitos, porém, que ela liberta o seu estrato mimético, inconceitual” (idem, p. 115) A mímesis seria, portanto, a intuição de algo que não é simplesmente intuitivo, ou seja, a mímesis já é conhecimento, mas conhecimento sem violência. Para Adorno, “intuição” e “conceito” não existem na obra de arte como elementos independentes mas, sim, numa relação de mediação que, conferindo unidade a materiais diversos articulando-os entre si, constitui-se na forma. Esta é determinante em qualquer objeto artístico, cuja constituição nunca é da ordem da criação espontânea nem da apresentação imediata de um conteúdo, mas exige uma determinada técnica. A arte é o refúgio do comportamento mimético expulso pela razão instrumental, mas isso não quer dizer que dispense a técnica, vista por Adorno, nesse caso, como “nome estético para o domínio do material”. (id., p. 240). Se a racionalidade dominadora proscreveu a mímesis e perseguiu, e ainda persegue, os espaços e sujeitos que tendenciam perigosamente a ela, é possível afirmar que o conceito de mímesis articulado à falsa projeção (“os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem, são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial”) na Dialética do Esclarecimento não serve apenas para explicar o comportamento perverso do anti-semita. Adorno não pensou no caráter crítico da mímesis apenas na Dialética Negativa e na Teoria Estética. A mímesis na Dialética do Esclarecimento não é só falsa projeção, associada à magia e à regressão. Junto a Horkheimer, em 1947, Adorno já pensava na constituição do sujeito absoluto do conhecimento como inerente à proscrição da mímesis, reveladora do não-idêntico, da fragilidade do conhecimento conceitual como reflexo da razão subjetiva: O rigor com que os dominadores impediram no curso dos séculos a seus próprios descendentes, bem como às massas dominadas, a recaída em modos de vida miméticos - começando pela proibição de imagens na religião, passando pela proscrição social dos atores dos ciganos e chegando, enfim, a uma pedagogia que desacostuma as crianças de serem infantis – é a própria condição da civilização. A educação social e individual reforça nos homens seu comportamento objetivamente enquanto trabalhadores e impede-os de se perderem nas flutuações da natureza ambiente. Toda diversão, todo abandono tem algo de mimetismo. Foi se enrijecendo contra isso que o ego se forjou. É através de sua constituição que se realiza a passagem da mímese refletora para a reflexão controlada(Horkheimer e Adorno, 1985, p. 169). Se “a aproximação do outro que consiga compreendê-lo sem prendê-lo e oprimi-lo, que consiga dizê-lo sem desfigurá-lo” é a idéia reguladora que orientava a Dialética do Esclarecimento (Gagnebin, 1997, p. 103), não é somente na Teoria Estética que a mímesis como potencialidade crítica é vislumbrada por Adorno. Alves Jr. (1999)

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pôde abordar interessantemente este aspecto: Se a questão da mímese na Dialética do Esclarecimento tem sido abordada predominantemente através da consideração do seu aspecto regressivo, como mímese do morto, há um outro aspecto, também presente na obra, que não tem sido suficientemente ressaltado. Refiro-me ao potencial emancipatório de uma mímese que denuncia, através da obra de arte, o estado de coisas opressivo do presente e que aponta, em negativo, para sua superação. Se uma elaboração filosófica mais extensa desse tópico só seria desenvolvida na Teoria Estética, ele já se encontra explicitamente tematizado na Dialética do Esclarecimento. (...) É a mímese da arte que é preservada por Adorno e Horkheimer como uma maneira não violenta de conhecimento, vale dizer, de expressão(P. 474/475) Concordamos com Gagnebin (1997), no entanto, quando afirma que o acento que Adorno dá à dialética entre racionalidade e mímesis em seus últimos textos revela sua dívida com Benjamin. A teoria da mímesis em Benjamin encontra-se na sua filosofia da linguagem. Esses estudos podem ser observados nos textos Da linguagem em geral e da linguagem do homem (1916), A tarefa do tradutor (1921), além de A doutrina das semelhanças e Sobre a capacidade mimética, escritos na década de 30. Nossas considerações iniciais sobre mímesis no pensamento de Benjamin restringem-se ao texto sobre a capacidade mimética. (Benjamin, 1970. - p. 47 a 52). Benjamin diagnostica um crescente enfraquecimento da capacidade mimética. O mundo perceptivo do homem moderno a exclui, ou tenta excluíla. Subjacente a essa consideração está justamente a oposição que a ciência moderna supôs realizar entre razão e mito. Benjamin questiona se teria havido uma decadência da capacidade mimética ou sua transformação; deixa claro que não houve decadência, idéia essa que talvez pudesse ser formulada no sentido de afirmar que a razão teria, ao longo da história, se libertado das analogias, mágicas, imagens desterradas para o irracional, finalmente eliminadas. Porém, sabemos que na própria concepção de Benjamin houve antes um sufocamento desse “irracional” convocado agora para iluminar a racionalidade científica. Isso permite ao referido autor (1970, P. 47-52) tentar “capturar” na arte e na literatura os resíduos das mais antigas forças de produção e recepção miméticas. A importância do resgate da empiria pela Teoria Crítica, concretizando, assim, uma filosofia histórica, é o fundamento que legitima a nós outros, não-filósofos, não-alemães, não-contemporâneos desses autores a lançar-lhes nossas preocupações. No pensamento de T.W. Adorno e Walter Benjamin, a experiência estética, aliada à reflexão filosófica, faz a crítica do conhecimento porque permite, entre outras coisas, pensar e avaliar empiricamente a dialética entre mímesis e racionalidade, que pressupõe uma aproximação não violenta no que se refere ao objeto. Entendemos que uma arte e educação que levasse em conta os pressupostos da Teoria Crítica traria como elementos de reflexão o entrelaçamento entre arte, filosofia e história como crítica do conhecimento e da sociedade; faria uma crítica

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incansável à concepção tradicional de história enquanto progresso linear e uma reflexão constante sobre a relação entre arte e ciência, mostrando as ambigüidades da utilização da arte com objetivos socialmente determinados. Esta é uma importante abordagem a ser considerada na produção teóricoprática em arte e educação. Em recente trabalho de pesquisa, observamos como nas iniciativas de aproximação pedagógica entre arte e educação há um profundo silêncio sobre a imanência da história e da sociedade na obra de arte. Tudo se passa como se a arte e a escola fossem autônomas frente ao processo histórico e social, bastando apenas um conjunto de informações e esclarecimentos sobre ele para que as duas, juntas, possam cumprir sua missão. No corpo dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o Caderno de Arte apresenta a preocupação de ser um quadro de referências para o ensino e aprendizagem nessa área. Diante desse quadro de falta de referências, qual é o lugar a ser ocupado pela Teoria Crítica?

Arte na educação conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais É importante deixar claro que não há uma total falta de referências. Existe, efetivamente, um movimento teórico-prático chamado arte-educação, que tem como um de seus expoentes a professora Ana Mae Barbosa. Não é à toa que a Escola de Comunicação e Arte da USP vem liderando a produção de teses sobre o assunto. A sua militância é de relevância tal que, podemos afirmar, com certeza, que sua experiência acadêmica dentro e fora do país condiciona boa parte do que foi escrito no Caderno de Arte dos PCNs. Se isso, por um lado, mostra a centralidade do seu pensamento, por outro, revela a exigüidade de produção teórica na área, já que a herança que Ana Mae Barbosa deixa para a arte-educação é, simplesmente, uma proposta metodológica, e não propriamente uma reflexão sobre os fundamentos da educação estética. Podemos dizer que nos PCNs o tempo homogêneo e vazio é erigido em critério, tomando a arte como “natural”, “essencial”, “fundamental”. Desde quando? Desde sempre. É o que tentaremos mostrar a seguir, reproduzindo alguns trechos do Caderno de Arte em que esse problema apresenta-se peremptoriamente2: A educação em arte propicia o desenvolvimento do pensamento artístico e da percepção estética, que caracterizam um modo próprio de ordenar e dar sentido à experiência humana (Item 1.1. Introdução). O ser humano que não conhece arte tem uma experiência de aprendizagem limitada, escapa-lhe a dimensão do sonho, da força comunicativa dos objetos à sua volta, da sonoridade instigante da poesia, das criações musicais, das cores e formas, dos gestos e luzes que buscam o sentido da vida. (Idem) O universo da arte caracteriza um tipo particular de conhecimento que o ser humano produz a partir das perguntas fundamentais que desde sempre se fez com relação ao seu lugar no mundo.(Item 1.5. A arte como objeto de conhecimento)

2 - Grifo nosso.

O ser humano sempre organizou e classificou os fenômenos da natureza, o ciclo das estações, os astros no céu, as diferentes plantas e animais, as relações sociais, políticas e econômicas, para compreender seu lugar no universo, buscando a significação da vida.

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(Idem) Em outras palavras, o texto literário, a canção e a imagem trarão mais conhecimentos ao aluno e serão mais eficazes como portadores de informação e sentido (Item 2.1. Aprender ensinar Arte) A arte da dança faz parte das culturas humanas e sempre integrou o trabalho, as religiões e as atividades de lazer. Os povos sempre privilegiaram a dança, sendo essa um bem cultural e uma atividade inerente à natureza do homem. (Item 2.3.3.2. Dança) As justificativas para o ensino de arte e a relevância da sua presença na escola são apresentadas ontologicamente: o ser e sua essência em busca de um sentido. O depauperamento dessas categorias e da crença nelas não foi inventada pela Teoria Crítica: é um fato analisado por aqueles autores. A crença de que, desde sempre, a arte é eficaz na produção de objetos carregados de sentido, o que significa dizer que ainda o é, não consiste apenas em algo facilmente refutável a partir da Teoria Crítica. A arte moderna e contemporânea são documentos indiscutíveis dessa impossibilidade objetiva. Ter claro qual é o sentido da arte hoje significa ter claro o significado da própria vida. A arte não pode orientar-nos a respeito do nosso lugar no mundo porque ambos, nós e ela, nunca tivemos esse lugar tão ameaçado. A arte pode, se for crítica, perguntar, qual é o meu lugar no mundo, qual é o seu lugar no mundo? Este não parece ser um problema na feitura do Caderno de Arte, talvez, justamente por ter seu objeto bem ao longe, tomando-o como imutável “desde sempre”. Os “seres humanos” (expressão que também remete a uma história naturalizada) têm tido “uma experiência de aprendizagem limitada”, escapando-lhes “a dimensão do sonho, da força comunicativa dos objetos a sua volta, da sonoridade instigante da poesia, das criações musicais, das cores e formas, dos gestos e luzes”, não porque não conheçam arte mas, justamente, por conhecer arte na forma de mercadorias e experimentar tudo e todos como mercadoria. A existência e a função da arte consideradas “desde sempre” como “isto” ou “aquilo”, ou “para isso” ou “para aquilo” não devem paralisar-nos na crítica a uma apreensão ingênua da arte e da história, o que significaria dizer que é necessário um aprofundamento teórico para os arte-educadores. A questão não é tão simples, embora só essa falta de base teórica já se configure num problema de grandes proporções. A arte concebida em sua existência e função como imutável ao longo da história, já que nada teria mudado, fala-nos do que se espera da arte hoje: ordenação, compreensão e sentido da experiência, da vida, da identidade conquistadas pelo aprimoramento da percepção estética. Podemos afirmar seguramente que o conceito de arte e ensino e aprendizagem em arte possível de ser lidos no Caderno de Arte dos PCNs é um desdobramento dessa concepção identitária. Portanto, o foco da discussão, como já citamos anteriormente, é a arte voltada para uma educação supostamente inclusiva: A aprendizagem em arte acompanha o processo de desenvolvimento geral da criança e do jovem desse período (do ensino fundamental), que observa que sua

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participação nas atividades do cotidiano social estão envoltas nas regularidades, acordos, construções e leis que reconhece na dinâmica social da comunidade à qual pertence, pelo fato de se perceber como parte constitutiva desta. (Caderno de Arte, Item 2.1. Aprender e ensinar Arte) O contrário dessa concepção identitária seria considerar que a aprendizagem em arte pode ajudar o aluno a observar que a sua não-participação social está envolta nas regularidades, acordos, contruções e leis que impedem que ele se reconheça não como “parte constitutiva”, mas como parte excluída. A relação entre arte e educação tem de ser pensada a partir de um campo de forças – mediado socialmente – em que se articulem crítica do conhecimento, experiência estética e educação para a emancipação. Portanto, essa relação só faz sentido se tiver como perspectiva incansável a mudança das condições objetivas em uma sociedade que, estando consciente da importância da arte e da educação, sentese - quer por ingenuidade, quer por astúcia - “livre para sonhar”. Portanto, apelos subjetivos deslocados de uma análise da mediação social devem ser vistos com restrições. O mundo anímico, espiritual, subjetivo pairando sobre o mundo objetivo, como considerou Marcuse sempre foi e, no nosso entender, continua sendo utilizado para “desculpar miséria, martírio e servidão” (1997 , P. 108). A sofisticação crescente dos mecanismos de dominação faz que o capitalismo dispense a cultura, ameaçando a sua existência como referencial normativo e índice de humanidade.

Bibliografia Adorno, T. W. Teoria Estética. Lisboa, Edições 70, 1970 ______. Ästhetische Theorie. Gesammelte Schriften 7. Frankfurt (Main), Suhrkamp, 1970(a). ______. Dialéctica Negativa .Trad.. José Maria Ripalda. Madri, Taurus Rd., 1975. ______. Minima Moralia (trad. Luiz Eduardo Bicca). 2ª edição. São Paulo. Ed. Ática, 1993 ______. Prismas (trad. Augustin Wernet e Jorge M.B. Almeida). São Paulo, Ed. Ática, p. 117-130, 1998 Alves Jr., Douglas G. O anti-semitismo como fenômeno estético na Dialética do Esclarecimento. As luzes da arte. Colóquio internacional de Filosofia Estética da FAFICH-UFMG. Belo Horizonte, Ed. Opera prima, 1999 Barbosa, Ana Mae. (org.). Arte-educação: leitura no subsolo. São Paulo, Cortez Editora, 1997 Benjamin, W. A capacidade mimética. Humanismo e comunicação de massas. (Axelos, Kostas et alli) . Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, p. 47 a 52, 1970 Buck-Morss, Susan. Origen de la dialética negativa: Theodor Adorno, Walter Benjamin y el Instituto de Frankfurt (trad. Nora Rabotnikok Maskivker). México, Siglo Vieintiuno, 1981. Gagnebin, J.M. Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin. Sete aulas sobre Linguagem, Memória e História. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1997. Horkheimer,M. e Adorno,T. W. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985. Jay, Martin. As idéias de Adorno. São Paulo, Cultrix, 1984. Marcuse, Herbert. Sobre o caráter afirmativo da cultura. Cultura e Sociedade. Volume I. (trad. Wolfgang Leo Maar, Isabel Maria Loureiro, Robespierre de Oliveira). São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1997. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Caderno de Arte. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1997.

_________________________________________ * Sueli Soares dos Santos Batista é doutoranda em Psicologia Escolar no Instituto de Psicologia da USP.

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ALFABETO “DE OLHOS BEM FECHADOS” POR GUILHERME MANSUR FONTE: AMERICAN TYPEWRITER BOLD


CINEMA

O OLHAR VORAZ DA CÂMERAPERSONAGEM NO FILME DE SAMUEL BECKET T BECKETT POR GABRIELA BORGES *

Resumo: Em 1964, o dramaturgo Samuel Beckett fez um roteiro do seu único filme, que foi dirigido por Alan Schneider, cujo título é Film. Film é baseado no princípio Esse est percipi do filósofo irlandês Berkeley e conta com um personagem dividido em dois: O, o objeto representado por Buster Keaton e E, a própria câmera. Este artigo analisa a relação que o filme estabelece entre o sujeito e o objeto do olhar e o meio cinematográfico.

Apresentação O dramaturgo Samuel Beckett possui uma vasta produção audiovisual que ainda é pouco conhecida no Brasil. Entre os anos cinqüenta e oitenta, o autor escreveu e produziu peças de rádio e televisão para a rede britânica BBC, além de dirigir suas criações para a rede pública de televisão alemã Suddeüstcher Rundfunk. Em 1963, Beckett escreveu um curta-metragem em preto e branco intitulado Film, que tinha sido encomendado pelo Evergreen Theatre, de Nova York. O projeto incluía três curtas que seriam escritos pelo referido autor, por Harold Pinter e Eugéne Ionesco, porém somente Beckett finalizou o seu filme, que foi exibido tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Na estréia, o filme não foi muito bem acolhido pela crítica - foi considerado obscuro e sem propósito -, mas posteriormente acabou sendo reconhecido, principalmente por artistas e intelectuais, e ganhou vários prêmios, como o Prêmio da Crítica do Festival de Veneza (1965), o Prêmio Especial do Júri do Festival Internacional de Curtas de Tours (1966) e o Prêmio Especial do Festival de Oberhausen (1966). Beckett tinha muito interesse pelo cinema, tanto é que em 1936, antes de emigrar para a França, enviou uma carta para Eisenstein pedindo para ser admitido na Escola Pública de Cinematografia de Moscou (Knowlson, 1996:226). Waugh & Daly (1995:24) afirmam que a carta de Beckett provavelmente se perdeu, pois aquele foi um período bastante confuso para Eisenstein. Ele teve que ficar de quarentena devido a uma epidemia de varíola que assolou o país e parar a produção do filme Bezhin Meadow, o que o levou a duvidar da qualidade do roteiro original e tentar desesperadamente reescrevê-lo. Apesar de Beckett ter lido os livros de Pudovkin e Arhneim, a experiência

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com o cinema era nova tanto para ele quanto para Alan Schneider, que dirigiu o filme e tentou transpor para a tela a visão criativa e estética do autor. Numa época em que a Nouvelle Vague estava começando a dar seus frutos e a questão da autoria era muito discutida no meio artístico, Schneider (1994-5:33-5) afirmou que não ficou surpreendido com o fato de Beckett ter se transformado no diretor propriamente dito do filme. Como Beckett era muito minucioso nas suas criações, ele fez questão de participar das filmagens e foi modificando o roteiro à medida que algumas cenas tornavam-se impossíveis de serem realizadas. Alguns críticos como Peter Brook (apud Schneider,1986) argumentam que uma metade do filme é um sucesso e a outra um fracasso devido aos seus problemas técnicos, mas outros como Gontarski (1985), por exemplo, preferem priorizar a importância da discussão sobre o meio fílmico proposta pelo autor. O filme é baseado no princípio “Ser é ser percebido”, do filósofo irlandês Berkeley. O enredo gira em torno de O, o objeto, representado por Buster Keaton, que foge da percepção do olhar de E, a câmera-personagem, mas não consegue fugir da percepção de si mesmo. Ao ser perseguido, O é protegido pelo ângulo de imunidade de 45°, mas quando este é ultrapassado, O entra na zona da agonia da percepção. Nestes momentos, O passa a ser percebido não somente pelo outro, mas também toma consciência de si mesmo. Na verdade, Beckett (Harmon,1999:167) explica que não ficará explícito até o final do filme que o perseguidor, metaforizado pela câmera, não é alguém alheio, mas o próprio eu.

A produção Film, assim como outras peças de teatro e televisão do autor, é dividido em três partes que se interrelacionam. A primeira e a segunda parte ocorrem, respectivamente, na rua e na escada e mostram o ponto de vista de E, enquanto a última parte acontece no quarto e intercala a percepção de E com a percepção de O. O filme, com duração de vinte e dois minutos, não tem áudio, somente o som “sssh!” na primeira parte. O protagonista é dividido em dois: O, o objeto Buster Keaton, e E, a câmera-olho. Originalmente, o título do filme era The Eye. Coincidência ou não, o diretor de fotografia de Film foi Boris Kauffman, que tinha trabalhado com Jean Vigo em L’Atalante (1934) e ganhou o Oscar de Melhor Fotografia com o filme Sindicato de Ladrões (1954) de Elia Kazan e nada mais é do que o irmão mais novo do cineasta Dziga Vertov, criador do cine-olho. De acordo com o roteiro, a abertura do filme seria feita com um planoseqüência de oito minutos em que seria usada a profundidade de campo, como no filme Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Este plano-seqüência serviria para situar o filme no tempo e no espaço, mas foi cortado devido aos problemas técnicos oriundos da falta de experiência do diretor, Alan Schneider. Houve problemas com o dolly, que estava sendo usado numa superfície irregular e também com os efeitos de luz na câmera, que deixaram a imagem tremida. Por isso, Beckett o substituiu pela imagem de um olho, que pode ser interpretada como uma referência à seqüência de abertura de Um Cão Andaluz, de Luís Buñuel e Salvador Dali e dá uma estrutura circular ao filme que termina com o close-up de Buster Keaton com um tapa-olho. Aliás, esta não é a única referência aos diretores espanhóis: Film é ambientado por

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volta de 1929, que é o ano em que Um Cão Andaluz foi realizado. Enoch Brater (apud Bignell,1999:40) afirma que o tempo de duração do filme e a justaposição de perspectivas inusitadas relembra os filmes dada-surrealista dos anos vinte.1 Schneider (1994-5:33-5) conta que a escolha do ator protagonista e os primeiros dias de filmagem foram um pesadelo. Os atores cotados para o papel principal eram Charles Chaplin, Zero Mostel e Jack McGowran, ator irlandês que já tinha atuado em várias peças de Beckett, mas nenhum deles estava disponível nas datas da filmagem. Na falta de outro ator, Beckett sugeriu o nome de Buster Keaton, pois o filme teria uma atmosfera cômica e irreal, que de uma certa forma remeteria ao cinema mudo. Após ler o roteiro, Buster Keaton não via como o filme poderia durar mais do que quatro minutos e acabou sugerindo algumas alterações para que ele ficasse mais cômico. Beckett, porém, que sempre foi famoso por não aceitar nenhuma modificação nos seus roteiros, não quis nem tomar conhecimento das idéias de Keaton, que acabou aceitando fazer o filme sem entender do que se tratava. Bignell (1999:39) explica que, apesar da escolha de Buster Keaton remeter às comédias de vaudeville e slapstick do cinema mudo, Film não apresenta as convenções deste gênero cinematográfico. Enquanto estas comédias usam muitos planos gerais e uma câmera fixa, diante da qual os atores fazem suas performances gestuais, Film prima tanto pela falta de planos gerais, de música ou intertítulos quanto de uma performance gestual do ator, usando, ao invés disso, a câmera-olho como personagem. Da mesma maneira, o famoso rosto de Buster Keaton só aparece no close-up final, e as suas gags são praticamente inexistentes, com exceção de uma que acontece na última parte do filme.

A agonia da percepção

1 - Aliás, em 1932, Samuel Beckett traduziu para o inglês os poemas de André Breton, Paul Eluard e René Crevel que foram publicados na revista This Quarter juntamente com o roteiro de Um cão andaluz. (Feshbach, 1999:346) 2 - O autor explica que estas observações não precisavam ficar explícitas no filme. Ele somente acrescentou-as para facilitar o entendimento do roteiro pela equipe técnica. (Harmon,1999:175)

Beckett explica, nas notas para a equipe de produção,2 que O está procurando a casa de sua mãe onde vai cuidar dos animais e provavelmente passar alguns dias enquanto ela está no hospital. Na primeira parte do filme, a câmera E persegue O que, ao tentar fugir, colide com um casal que se assusta. O homem prepara-se para insultá-lo, mas a mulher não deixa e diz apenas “sssh!”, o único som de todo o filme. A mulher percebe o olhar da câmera e mostra ao homem que eles estão sendo vistos/ vigiados. Ambos olham para E e ficam horrorizados. Neste momento, o ponto de vista de O é revelado e percebe-se que E ultrapassou o ângulo de imunidade, provocando a agonia da percepção. Este ângulo de imunidade é um ângulo de 45° que deve ser respeitado por E. Quando ele é ultrapassado, O sente-se ameaçado e tenta esconder-se, agachando-se e cobrindo o rosto para não ser visto. A imposição de zonas que não devem ser ultrapassadas ou cruzadas é comum na obra do autor. Na telepeça Quad (1982), quatro personagens movem-se ao redor de um tablado quadrado, repetindo o mesmo movimento, cada um no seu próprio curso e ritmo, mas evitando sempre cruzar o centro, que é chamado de E, a zona de perigo. O ângulo de imunidade é ultrapassado novamente na segunda parte do filme. Quando O encontra a casa e começa a subir as escadas, percebe o olhar de E e se esconde; E então volta para a sua posição fora do ângulo. Quando O começa a subir novamente, ele escuta passos e esconde-se ao lado das escadas, pois não quer ser visto nem pela câmera, que o está perseguindo, nem por mais ninguém. E dirige-se para a escada e vê uma senhora descendo com um buquê de flores nas mãos. Como estava descendo com dificuldade, a senhora não viu a câmera, mas quando chega ao pé da escada, depara-se frontalmente com E e apavora-se. Neste instante, assim como aconteceu com o casal

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na rua, a senhora se assusta e olha para E com a mesma expressão de pânico. O casal e a mulher olham horrorizados quando se encontram com E porque eles tomam consciência tanto do olhar do outro quanto de si mesmos. E é, ao mesmo tempo, a câmera e o eu (self). Todas as vezes que E ultrapassa o ângulo de imunidade, o ponto de vista de O é revelado. Este ponto de vista, em termos cinematográficos, é diferente do ponto de vista de E, que prevalece nas duas primeiras partes do filme. Beckett não tinha muito conhecimento sobre os recursos técnicos, mas ele queria que um outro tipo de imagem fosse usado para representar o olhar de O. Porém, recusavase a usar recursos como imagens compostas, planos duplos, sobreposição de imagens, pois não queria muita sofisticação técnica, preferia que a técnica fosse usada a favor do tema, característica que continuou presente nos seus trabalhos para a televisão alguns anos mais tarde. A solução final para o olhar de O foi conseguida através do uso de um filtro que deixou a imagem ligeiramente desfocada, sem muita nitidez. Beckett explica que: “There can’t be any normal vision in the picture. The norm is in the spectator’s personal experience, with which will necessarily compare E’s experience. (...) The spectator will never have seen as E sees, and never have seen as O sees. There will be two deviations from normal perception. (...) A reluctant, a disgusted vision, and a ferociously voracious one.” (Gontarski, 1985:191-2)3 Sem dúvida que a realização técnica destas idéias não seria fácil, mas tanto Beckett quanto Schneider acreditavam que seria possível. Porém, numa pesquisa realizada em 1970 durante a exibição do filme em Nova York, os espectadores confir maram que não entenderam a diferença dos pontos de vista a partir do uso da imagem desfocada, nem a dinâmica do ângulo de imunidade de 45° (Ziliacus, 1976:186). A terceira parte do filme ocorre no quarto e explicita, de certa forma, a questão da percepção como um duplo. O quarto fechado, como espaço cênico, foi usado pela primeira vez em Film e tornou-se um recurso muito explorado nas telepeças produzidas posteriormente. As ações do quarto, por sua vez, são subdividas em três etapas: a preparação do quarto, o período na cadeira de balanço (destruição das fotos) e o “investimento” final (desenlace). Ao entrar no recinto, O vê todos os animais e objetos olhando para ele e sente-se incomodado. Ele cobre o espelho, dispositivo de reflexo de si mesmo, e livra-se dos olhares do gato e do cachorro, iniciando uma gag própria das comédias do cinema mudo, que era a especialidade de Keaton. Ele coloca o gato do lado de fora do quarto e, quando vai colocar o cachorro, o gato entra novamente e assim sucessivamente. Durante esta gag há uma outra referência ao filme Um Cão Andaluz, que é um plano detalhe da mão de O fechando a porta, que remete a um plano similar do filme surrealista. Ao sentar-se na cadeira de balanço com um apoio para a cabeça e dois furos no meio que parecem dois olhos, O descobre a imagem de uma escultura sumeriana de Deus pendurada na parede, cujos olhos também estão olhando para ele, a qual ele simplesmente rasga e pisoteia. Isto pode ser interpretado como uma destruição do olhar de Deus que, segundo Berkeley, é o único capaz de perceber tudo. Mesmo depois de cancelar estes olhares que o perturbam, o peixe e o papagaio ainda estão olhando para O, os quais ele cobre com um paletó. Depois de se livrar de todos os olhares, O começa a ver uma seqüência de fotos que vão desde a sua infância até a idade adulta. Ele se sente ameaçado pelo seu passado e pelo reconhecimento de si mesmo revelado nas fotos que, de uma certa forma, atestam a sua identidade e decidi rasgá-las e jogá-las no chão. Todos os olhares exteriores perturbam O, que tenta vendá-los, expulsá-los do quarto ou destruí-los. Entretanto, E continua a olhar para ele sempre na mesma posição, por trás de sua cabeça. O quarto é visto graças à percepção de O, que por sua vez é visto graças à percepção de E. O ponto de vista de O, mostrado através de uma imagem mais desfocada no encontro com o casal e com

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3 - “Não pode haver nenhuma visão normal na imagem. A norma está na experiência pessoal do espectador, que será necessariamente comparada com a experiência de E. (...) O espectador nunca verá como E vê e nunca verá como O vê. Haverá dois desvios da percepção normal. (...) Uma visão relutante e repulsiva e outra ferozmente voraz.”

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4 - A imagem especular foi usada mais tarde na tele-peça Ghost trio em que aparece um close-up do personagem F, que Deleuze (1995:9) afirma ser “a imagem”, pois para ele Beckett conseguiu condensar sua forma e sua tensão interna no vazio espacial do silêncio dos planos. 5 - “Será que eu existo – Será que eu existo porque... estou sendo visto?” 6 - “... Ninguém pode ver você agora... Ninguém pode achar você agora...”

a mulher, agora prevalece e torna-se necessário para o espectador distinguir os dois pontos de vista. O “investimento” de E começa quando O cochila, isto é, ele vai tentar ultrapassar o ângulo de imunidade para ver O frontalmente. E não conseguiu ver o rosto de O em nenhuma das vezes que ultrapassou o ângulo de imunidade; este só é visto no final, como uma espécie de epifania. No “investimento”, o ponto de vista reveza entre O e E. Em todo o filme, E esteve na mesma posição plongée atrás de O, como no momento em que O está sentado na cadeira de balanço. Os olhares podem ser distingüidos graças ao uso de dois recursos: a diferença na qualidade da imagem, pois o olhar de O é desfocado; e a angulação da câmera, uma vez que o ponto de vista de E é mostrado em plongée e o de O em contra-plongée. Durante o processo de criação, a idéia de Beckett era fazer que, no final, o olhar de O fosse igual ao olhar de E. Em outras palavras, ele queria expressar metaforicamente que todo olhar tem sempre embutido em si o olhar do outro. Para isso, esta imagem de “reconhecimento” seria uma imagem especular4 mas, no roteiro final, ela é um close-up de O com um tapa-olho e com uma expressão atenta que realça a expressão de horror do casal e da senhora, as outras duas vezes em que o ponto de vista de O apareceu no filme. O close-up de O foi muito esperado, pois tanto a equipe técnica quanto o próprio Buster Keaton não entendiam como Beckett podia fazer um filme com um ator tão famoso por sua face e suas caracterizações, e somente mostrá-lo em close-up no final do filme. Na verdade, Beckett não estava interessado na fama do ator; muito pelo contrário, os atores para ele só eram importantes enquanto elementos expressivos. Aliás, esta é uma das questões principais do filme. Beckett (apud Gontarski, 1985:1901) explica nas notas para a equipe de produção que todos os elementos de cena deveriam ser reduzidos as suas funções essenciais, isto é, aos objetivos metafóricos pelos quais estavam sendo usados, como, por exemplo, as formas minimalistas dos objetos presentes no quarto que funcionam como uma espécie de suporte abstrato para proporcionar uma atmosfera irreal ao filme. De um modo geral, o autor procura fazer que um mínimo de elementos apresentem uma “espécie de integridade formal.” VoigtsVirchow (1998:226) argumenta que, na busca deste mínimo expressivo, Beckett foi diminuindo os espaços de ação de seus trabalhos de tal forma que a última peça para a televisão, Was Wo (1986), mostra apenas cabeças falantes iluminadas num fundo negro. Film termina como começou, com um enquadramento do olhar, porém o olhar de O é parcial, uma vez que um de seus olhos está coberto com o tapa-olho - da mesma forma que a consciência que o homem tem de si mesmo nunca é completa, mas sempre parcial e fragmentada. O ato de ver e ser visto é um tema recorrente na obra do autor, pois os personagens estão sempre lidando com a percepção do outro e a “insuportável” percepção de si mesmo. Como na peça Play (1962-3), por exemplo, em que a personagem M pergunta: “Am I as much - Am I as much as ... being seing?”5 (Beckett, 1990:317) Na tele-peça Eh Joe (1966), a personagem Voice fala para Joe quando ele se sente seguro no seu quarto: “...No one can see you now... no one can get at you now...” (Beckett, 1990:362)6 e na tele-peça ...but the clouds... (1976) o personagem M esconde-se na escuridão de seu santuário, onde não será visto por ninguém, para relembrar as aparições de sua amada. Da mesma maneira, O foge de toda percepção, seja do casal na rua, da senhora na escada, dos animais e até mesmo das suas próprias fotografias. Na sua fuga, O fecha-se no quarto; no entanto, a tragicidade de tal ato é que ele perceberá somente no final do filme que não poderá fugir de si mesmo. Segundo Henning (apud Levy,1994-5:70), a autoconsciência torna-se tanto o sujeito quanto o objeto do ato de conhecer. Ao bloquear a sua visão com o tapa-olho, O gostaria de escapar do olhar de E, e conseqüentemente da percepção de si mesmo, mas ele não consegue. À medida que foge, a sua autoconsciência só aumenta, ao ponto de explicitar a sua duplicidade no momento em que O percebe-se em E.

A voracidade da câmera-olho Beckett cita o princípio Esse est percipi (Ser é ser percebido) de Berkeley para explicar o filme. Apesar desta citação não aparecer de forma explícita, ela serve de referência para a criação do personagem, que é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto

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da percepção. A percepção ocorre na relação entre o ver e o ser visto, pois o sujeito só existe porque é visto pelo objeto e o objeto só existe porque está sendo visto pelo sujeito; portanto, ela não está em nenhuma das duas instâncias, mas entre elas. De acordo com Bignell (1999:35), Berkeley explica que somente a percepção de Deus mantém os seres vivos no estado de existência. Deus seria, então, o autor da existência e a autoridade universal - neste sentido, seria impossível não ser percebido por ele. Beckett, porém, subverte este ponto de vista transcendente e que tudo percebe em Film ao dividir o personagem em dois e usar a própria câmera como sujeito e objeto da percepção. Sob esta perspectiva, não existe um terceiro ponto de vista, que seria o ponto de vista do autor que controla a visão e que seria identificado como o olhar do espectador, que tudo vê e tudo entende. Ao contrário, o filme divide o ponto de vista do espectador em dois, recusando-lhe a autoridade da síntese visual dos pontos de vista da câmera. A questão da percepção é intrínseca ao meio cinematográfico, mas poucos realizadores conseguiram trabalhar com ela de forma tão apurada quanto Samuel Beckett. Enquanto em peças teatrais como Play (1962-3) um dos personagens acredita que existe somente porque está sendo visto, em Film, O acredita ser capaz de escapar sem que seja percebido. Entretanto, como salienta Levy (1994-5:69), o medo de ser percebido representa uma contradição num meio cuja “pura existência” significa ser visto. O paradoxo está no fato de que O existe como personagem de uma imagem na tela que, por pressuposto, já está sendo vista. Sem dúvida nenhuma, o autor estava interessado em discutir as especificidades de cada um dos meios em que trabalhou, fosse teatro, rádio, televisão ou cinema. No caso do cinema, o autor queria questionar o papel realista do meio, que sempre esteve preocupado em mostrar uma certa realidade, ou imagens que fossem verossímeis ao ponto de proporcionar a identificação do espectador. Gontarski (1985:104) afirma que, além da luta própria de Beckett contra os enredos piegas, realistas e psicológicos não só no teatro como também no cinema, a sua verdadeira luta era contra um meio essencialmente realista, capaz de registrar cada detalhe minuciosamente. O cinema comercial, principalmente o hollywoodiano, procura esconder ou fazer passar despercebido o ponto de vista da câmera a fim de que a história seja contada da forma mais realista possível. No entanto, Beckett questiona justamente isso ao nomear a própria câmera (o olho) como personagem. O espectador identificar-se-á inevitavelmente com E, pela sua atitude perseguidora, mas será surpreendido no final quando se deparar com o close-up de O, sentindo-se parte tanto do ato de perseguir quanto de ser perseguido, isto é, do confronto entre perseguidor e perseguido proposto pelo filme. Neste sentido, Beckett desloca o olhar do espectador, impedindo que ele identifique-se com as imagens e entre passivamente na viagem imaginária da obra audiovisual, causando com isso um certo desconforto que somente a arte consegue provocar. O autor estimula este deslocamento do olhar e questiona o papel do meio ao evitar o uso das convenções cinematográficas como os planos gerais que identificam o espaço e o tempo e o plano/contra-plano que define o ponto de vista dos personagens. O uso da regra que impede a ultrapassagem do ângulo de 45° também não pertence às convenções da narrativa cinematográfica. Ela pode ser interpretada

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como uma referência à impossibilidade de que uma pessoa veja-se no espelho ao posicionar-se num ângulo superior a 45° que, por sua vez, pode ser relacionada à fuga da percepção por parte de O. Se a câmera cinematográfica é o dispositivo do olhar que descortina um mundo novo e diferente, Beckett usa-a metaforicamente para descortinar e elucidar o mundo do próprio ser humano e de suas dualidades e inseguranças. A câmera em Beckett é usada para questionar a existência humana. O é o objeto que foge da percepção, ele não quer ser visto pelos outros mas, ao mesmo tempo, descobre-se no final do filme e percebe que está fugindo de si mesmo e de sua autoconsciência. E, a “câmera-sujeito”, atua para mostrar que é possível fugir do olhar dos outros mas não é possível fugir do seu próprio olhar interior. O homem sempre viverá com este dilema, este não-ser que, mesmo que seja evitado, é parte do ser e terá que ser sempre tolerado. Neste sentido é que E=O, pois E nada mais é que o outro de O, sujeito e objeto são parte de um mesmo ser. Beckett, em sua obra como um todo, questiona e subverte a dicotomia cartesiana entre sujeito e objeto e, no caso do cinema, a sua tecnologia proporcionoulhe a possibilidade de discutí-la em termos expressivos. Porém, o autor deixa claro que o paradoxo filosófico serve apenas como metáfora e é usado por conveniência dramática para que a sua criação artística seja possível, não apresentando nenhum valor como verdade. O olho é a janela do mundo e da alma, abre-se para o exterior e o interior. Ao mesmo tempo em que busca outros mundos, dá acesso aos sentimentos da alma. Mas a visão nunca é uma percepção do mundo independente de alguém que perceba, pois não é possível ver-se vendo, a não ser com a intermediação do espelho, que resulta em um reflexo e faz que o sujeito do olhar transforme-se em objeto. Esta é a idéia do duplo, do Outro, que Lacan afirma estar sempre presente no eu, independente de qualquer vontade e que Beckett metaforiza tão bem não somente em Film, mas em outras obras audiovisuais como a tele-peça Eh Joe (1966), em que o personagem Joe é sufocado pelo close-up da câmera. E persegue O de tal forma que fica impossível fugir. No final, ele teve que olhar para si mesmo, para aquele olhar voraz que o procurava insaciavelmente até o momento em que o encontrou e fez que tivesse consciência da sua própria fragilidade e insignificância.

Ficha técnica Direção: Alan Schneider Casting: Buster Keaton Roteiro: Samuel Beckett Câmera: Joe Coffey Fotografia: Boris Kaufman Montagem: Sidney Meyers Duração: 22 minutos Cor: preto e branco Captação: 35mm Distribuição: 35mm e 16mm Produção: Evergreen Theatre Inc.

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Bibliografia BIGNELL, J. “Questions of authorship: Samuel Beckett and Film”. In Writing and cinema. Londres, Pearson Education Limited, 1999. BRATER, E. Beyond minimalism. Beckett’s late style in the theatre. Oxford e Nova York. Oxford University Press, 1987. BECKETT, S. The complete dramatic works. 2ªed. Londres, Faber and Faber Limited, 1990. DELEUZE, Giles. “The Exhausted”. In Substance. A Review of Theory and Literary Criticism. 1995, n°24, 3-28. FESHBACH, Sidney. Unswamping a Backwater: on Samuel Beckett’s Film. In Samuel Beckett and the arts: Music, Visual Arts and Non-Print media. Lois Oppenheim (ed.) Nova York. Garland Publishing, 1999, 333-363. GONTARSKI, S.E. “Appendix A: Beckett on Film” In The intent of “Undoing” Beckett´s Dramatic Texts. Bloomington, Indiana University Press, 1985, 187-192. ______. “Film and Formal Integrity” In The intent of “Undoing” Beckett´s Dramatic Texts. Bloomington, Indiana University Press, 1985, 101-111. HARMON, Maurice (ed). No author better served. The correspondence of Samuel Beckett and Alan Schneider. Cambridge & Londres. Harvard University Press, 1999. LEVY, S. “Spirit made Light: Eyes and other I’s in Beckett TV plays.” In Samuel Beckett Today/Aujourd’Hui. The savage eye. Amsterdam & Atlanta, Editiones Rodopi, 1994-5, n°4, 65-82. KNOWLSON, J. Damned to fame. The life of Samuel Beckett. Londres. Bloomsbury Publishing, 1996. SCHNEIDER. A. “On directing Beckett”. In Samuel Beckett Today/Aujourd’Hui. The savage eye. Amsterdam & Atlanta, Editiones Rodopi, 1994-5, n°4, 29-40. ______. Entrances. An American Director’s Journey. Viking Penguin Inc. Nova York, 1986. VOIGTS-VIRCHOW, E. “Exhausted Cameras: Beckett in the TV-Zoo”. In Samuel Beckett. A Casebook. Jennifer M. Jeffers (org.). Nova York e Londres. Garland Publishing Inc, 1998, 225-49. WAUGH, K. & DALY, F. “Film by Samuel Beckett”. In Film West. Dublin, 1995, n°20, 22-4. ZILIACUS, C. Beckett and Broadcasting. A study of the works of Samuel Beckett for and in radio and television. Abo, Abo Akademi, 1976.

_________________________________________ * Gabriela Borges é Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Sua tese analisa a poética televisual de Samuel Beckett.

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BECKET T REVISIT ADO ECKETT REVISITADO POR CARLOS ROSA *

já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... A abertura. Dublin incendiada em olhos inertes no terror. A morte. Mortes. O fracasso como nação. Insurreição de Páscoa. Única cidade possível. Não há sentido. Este é o rosto. já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... Joyce em algum lugar. Ainda não conhecido. O trágico. O desamparo. A impotência. Corpo separado da consciência. Tudo plantado em chamas. Dissimulado. Tragi-comédia. Aparência. Rosto suspenso no abismo. Cômico. já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... Bernard Shaw, Wilde, protestante, classe média. Dante, oras; Pirandello, oras; Descartes, oras; Racine, oras... Bares, teatro, católicos, nacionalistas... Expor. Revelar. Paris. Simultas, o rosto. já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... Agora sim... Joyce, Ulisses, Finnegan’s Wake, filologia, Joyce é Dante, megalomaníaco, inventar uma língua nova a partir de uma morta, novas correntes da arte... Sem pátria. Poesia Vertical, o espaço interior. Não ao realismo. Proust e sua idéia do tempo...Rosto apropriado. já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... Arte? Fracasso. Ignorância. Impotência. Retorno. Em Dublin. Medíocre vida acadêmica. Censura. Hipocrisia social. Paris. Breton. Traduzir é fazer uma outra obra. Aqui a escritura. Morte. A mãe. Londres. Três longos anos. Paris. O rosto é a linguagem. já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... Fidelidade ao fracasso. A utopia: nada que dizer. Beckett: dizê-lo todo. A estranha tentativa. Apunhalado. Morrer. Viver. Qual o motivo: não tenho idéia. Gratuito o ato. Aí estava o programa; o azar, a insignificância dos atos, impossibilidade de dizer algo. A idéia em Esperando Godot. A própria impropriedade do rosto. já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... Não há nada que se pode compreender. A resistência. Joyce destrói a língua do amo. Beckett escreve em francês. Guerra. Impossibilidade. As massas. Os partidos. Cultura sem sentido. O limite. Direito à não existência da arte. Surdez. Perda de memória. Das capacidades motrizes. Da potência. Perda do todo. Paradoxo. Do rosto. já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... Não há personagens. Continuar. A impossibilidade. Não há tramas. Continuar. A impossibilidade. A voz impessoal. Única possibilidade. Este é o rosto. já não há nada que dizer, mas é preciso seguir falando... Francês. O novo. A língua da escritura. Literatura? De espera. Esvaziamento. Impossibilidade. Mutilação. Debate arte & cultura. Gratuidade dos atos. Arte e Cultura. A falta de sentido. Sem filologia. Sem rainha. Rosto aparência. já não há nada que dizer... Não procurar sentido que não seja a falta de sentido. mas é preciso seguir falando... Rosto suspenso no abismo. Abismamento. Cômica dissimulação. Do rosto, lembram-se? Este sonho que perscrutou o tempo e apropriou-se da linguagem. Depois, retornou ao sem-sentido.

______________________________ * Carlos Rosa é médico e poeta, autor, entre outros livros, de A cor e a textura de uma folha de papel em branco. Recife: CEPE, 1998.

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Florilégio de Back POR SYLVIO BACK *

décor e salteado hera como irrompíamos pelas nossas cavernas

Mari Silva Carvalho

Kama Sutra por causa do teu alaúde (escaravelho ígneo) quase fui decapitado

(O Caderno Erótico de Sylvio Back, Tipografia do Fundo de Ouro Preto, MG, 1986)


da minha cápsula

Mari Silva Carvalho

desmoronando (igual) a terra cai sobre você

terceira visão apesar do fôlego e do dardejar mecânicos e os dedos em forma de cone (invertido) a tez reverbera venenos havidos vis-à-vis um fogo-fátuo o holograma do começo

(Moedas de Luz, Editora Max Limonad, São Paulo, 1988)


tolo Sísifo a mulher e seus fogos de afago o homem e seu pássaro falaz a mulher e seus gargalos letais o homem e seus solitários ais a mulher e seus mil orgasmos o homem e seu unívoco ocaso a mulher e seus líquidos infinitos o homem e seu fatídico fastio a mulher toda em si o homem tolo Sísifo

Cisma vinhei como se fora o sanguinho do nosso ninho

Gustave Flaubert - 1889

(boudoir, Editora Sette Letras, Rio de Janeiro, 1999)


eurus

Mari Silva Carvalho

sopre este poema da página enxote pro nume que dá a lume sopre aqu eloutro suma com todos e deixe o tí tulo sumo do que um dia ex íncubo do verbo fora po esia viés que ag ora seria não és

os eugenios da paisagem são cinqüenta séculos (ternos) são você a vida exposta a resposta de bosta e meiasverdades cáusticas são os eugenios ingênuos a ver navios e derramar guaraná com soda na memória é o rabo da taínha na bicicleta alemã zunindo adeuses e beijos escandidos da corada mãe-ímã moldura carunchada espectral gigante de pira olímpica uma porção se vingou a outra virou poção de estupor dormente para minha mãe Else

(Eurus, 7Letras, Rio de Janeiro, 2004)


haikku fio-terra grelo aríete fio-terra dátilos bacantes

Aglaê Magalhães Daniel - Modificado

fio-terra súcubo suculento


freguês de caderno sovaco cá sovaco lá chumaço ácido à língua caço sovaco lá sovaco cá lago cavo à língua enxáguo sovaco cá sovaco lá imberbe túnel à língua lambuzo sovaco lá sovaco cá arco farto à língua míngua sovaco cá sovaco lá maresia do amor à lingua de cor


escola de sereias Elizabeth Taylor pentelhos sépia beijo convexo Roberta Close doces pregas crica suiça Marilyn Monroe coxas suntuosas a foda póstuma Rita Cadilac cálido calipígio língua em riste Esther Williams siririca vítrea placenta de cinema

Woman in Profile - 1910


halos carne ei-la arqui liquescente gesto ignaro a contrapelo tudo na superfície do corpo insuficiente e infindável silhueta derruída à espreita fugazes êxtases em riste entreatos ígneos dissimulam algo imemorial deve ficar até o desejo azado é adiado pouco ou nada tende a vir por onde escorrer o silêncio trevas ardosas se aviam o que já foi inteiro vez a vez não estilhaça assim de vez

(Inéditos do livro As mulheres gozam pelo ouvido, 2004) _________________________________________ * Sylvio Back é cineasta, poeta e escritor. Autor de trinta e seis filmes (dez longas-metragens, o mais recente: Lost Zweig, em lançamento), em 1986 teve publicado o seu primeiro livro de poemas, O caderno erótico de Sylvio Back (Tipografia do Fundo de Ouro Preto-MG). Depois vieram Moedas de Luz (Max Limonad, 1988); A Vinha do Desejo (Geração Editorial, 1994); Yndio do Brasil (Poemas de Filme) (Nonada, 1995); boudoir (Sete Letras, 1999) e Eurus (7 Letras, 2004). Back tem igualmente editados ensaios, contos e dez roteiros de seus filmes.


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