Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 11. Número 21 (Ago-Dez/2009). São Carlos: UFSCar, 2009. Semestral ISSN 1517-0845 1. Humanidades - Periódicos. 2. Artes - Periódicos. I. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. CDU 168.522 (05)
ANO 11 - NÚMERO 21 – AGO-DEZ/2009 CECH - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
Revista Olhar Ano 11 - Número 21 - Ago-Dez/2009
Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Administração Superior Prof. Dr. Targino de Araújo Filho Reitor Prof. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior Vice-Reitor Profa. Dra. Wanda Hoffmann Diretora do CECH Prof. Dr. Eduardo Baioni Vice-Diretor do CECH Coordenação Editorial Editores Bento Prado Jr. (in memoriam) Josette Monzani Conselho Editorial: Conselho Executivo Antônio Zuim – DEd (UFSCar) Cibele Rizek – EESC (USP) Fernão Ramos – Multimeios (Unicamp) João Roberto Martins Filho – DCSo (UFSCar) Júlio César Coelho De Rose – Departamento de Psicologia (UFSCar) Luiz R. Monzani – Filosofia (Unicamp) Manoel Dias Martins (UNESP – Araraquara) Maria Ribeiro do Valle (UNESP – Araraquara) Marina Cardoso – DA (UFSCar) Nádea R. Gaspar – DCI (UFSCar) Richard Simanke – DFMC (UFSCar) Samuel Paiva – DAC (UFSCar) Sidney Barbosa (UNESP – Araraquara) Tânia Pellegrini – DL (UFSCar) Wolfgang Leo Maar – DFMC (UFSCar) Marcius Freire – Multimeios (Unicamp) Conselho Consultivo Alexandre Figuerôa (UC – PE) Arley Moreno (Unicamp) Arlindo Machado (PUC/USP) Arthur Autran – DAC (UFSCar) Benedito Nunes (UFPa) Bóris Schnaiderman (USP) Bruno Pucci (UNIMEP) Carlos Alberto Ribeiro de Moura (USP) Cecília Almeida Salles (PUC) Celso Castro (CPDOC/FGV) Débora M. Pinto (UFSCar)
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Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es). Permitida a reprodução parcial ou integral dos textos, desde que mencionada a fonte.
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EDITORIAL Editorial Nesta edição novamente a filosofia, o cinema, a literatura, a música e a educação encontram-se acoplados, em leituras multidisciplinares ou pela união ‘territorial’ estabelecida por sua publicação conjunta, a ressaltar, ainda – no caso específico dos textos aqui reunidos - a reflexão que se faz obrigatória sobre o caráter intercultural da sociedade em que vivemos hoje. Também, para que não se diga que neste espaço domina ou predomina a palavra, chamamos atenção para as ilustrações das capas, as inseridas e as entre textos: vozes outras, silenciosas, porém, significantes. Em especial, note-se a “velhíssima” Senhora e a câmera, nos dois pontos-de-vista escolhidos. Ela vê o que (quem) a vê, e ambos se modificam ante essa presença especular. O mesmo sucedeu com o cineasta Sylvio Back e a História. Quarenta anos depois, em novo olhar, ambos são outros. Back refilma sua visão da Guerra do Contestado: A guerra dos pelados, rodado em 1969/1970, que ora estréia como O Contestado: restos mortais. Filmes / autor dão-se a conhecer. Resta-nos agora nos colocarmos do outro lado, tão corajosamente quanto. Bento Prado Jr. (in memoriam) Josette Monzani
Capa: foto de Claudio Silva (Sarará), divulgação do doc. O Contestado - Restos Mortais.
Sumário O CONTESTADO, UMA GUERRA INSEPULTA Sylvio Back Una aproximación deleuziana a “Japón” y “Batalla en el cielo” de Carlos Reygadas Cynthia Tompkins
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Conversación con Warren Buckland Lauro Zavala
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DOIS PERSONAGENS DE JOSÉ MOJICA MARINS Marco Aurélio Lucchetti
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Isto não é um sonho - a transfiguração do comum no cinema de Michel Gondry Cid José Machado dos Santos Junior
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Dois artigos de Luchino Visconti Alex Calheiros
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Cadáveres Luchino Visconti
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Tradição e invenção Luchino Visconti
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Delphine Seyrig em “O Ano passado em Marienbad” Sônia Maria Oliveira da Silva
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Análisis crítico del discurso político de la UNESCO sobre la educación intercultural Aleksandra Jablonska
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O “OCASO” DO HERÓI TRÁGICO E O ANÚNCIO DO “ETERNO RETORNO” Tereza Cristina B. Calomeni
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Breves considerações sobre o signo lingüístico e sua relação com a teoria lacaniana Sergio Augusto Franco Fernandes
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Idealismo e libertação em Marcel Proust Ulisses Razzante Vaccari
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A Consciência da essencialidade e a inessencialidade do homem em relação ao mundo através da literatura Aline Maria Ferreira de Souza dos Reis e Paul Albert Simon
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Individualismo e Ética: da violência ontológica à moral da responsabilidade 203 Carlos Eduardo de Moura PRAZER E DESEJO NO “ENSAIO” DE LOCKE Magdalena Mendonça
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O olhar de Apolo Ezequiel Ipar
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A MÚSICA NA MODERNIDADE: Uma reflexao sobre as ideias de Nietzsche, Weber e Rousseau 273 Luciana Cristina de Souza
O CONTESTADO, UMA GUERRA INSEPULTA
Sylvio Back*
Por ser um cineasta cuja obra é seduzida pela ânsia de reverter as falácias e o esquecimento da história oficial, a obsessão reside em responder qual a diferença entre realidade bruta, memória e encenação (territórios minados por onde trafego impunemente), quando convertidos em celulóide e/ou digital? Desmobilizando essa ilusória noção, resta a única certeza de que entre elas a ficção tem que fazer sentido! Depois, é sabido, o passado como o presente, não permanece estático, está em permanente movimento e mutação. É “outro” toda vez que retornamos a ele. Foi o que me aconteceu ao revisitar a Guerra do Contestado quarenta anos depois (o filme anterior, A Guerra dos Pelados, uma ficção, foi escrito e rodado entre 1969/1970, estreando no ano seguinte): ambos mudamos a ponto de não nos reconhecerGrupo de “vaqueanos”, asseclas de “coronéis” da região contestada, contratados como tropa auxiliar pelo exército Foto: Claro Jansson/Divulgação
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mos mais! Isso é o mais fascinante na formatação de uma narrativa moral que mexe com a história sem procurar atropelá-la nem lhe impor viseiras. Nessa hora sempre me ocorre, como se um chamamento à lucidez fora, frase de um dos personagens de O mensageiro (1970), brilhante filme de Joseph Losey: o passado é um país estrangeiro, lá tudo é diferente. Ou seja, é preciso estar sempre com o passaporte em dia!
Drama fundador
Se o Brasil é, muitas vezes, refém ora de explicações apocalípticas ora utópicas (o que nos remete aos fanáticos do Contestado), a começar por esse seu drama fundador, a questão da terra, o epílogo da trágica Guerra do Contestado supera a metáfora, desmonta o mero simbolismo. Tudo fica menor diante do genocídio que a repressão protagonizou nos últimos meses da refrega, e mesmo depois de assinada a paz e refeitas as fronteiras entre Paraná e Santa Catarina. A história do Brasil, tão a gosto de quem se mira no obscurantismo, é um túmulo quanto a esses eventos únicos em território nacional. Justamente por abrir um libelo acusatório em que ninguém é inocente. Afinal, no Contestado vingaram as primeiras idéias de que o exército não poderia continuar “força tarefa” de “coronéis”. Dali saiu uma jovem oficialidade, alguns ferrenhos inimigos da liberdade e com um olhar preconceituoso em relação ao brasileiro inculto dos sertões e das cidades. Carregados desse ideário e de fuzis e baionetas, protagonizaram as subversões da década de ’20 (Forte de Copacabana, tenentismo, Coluna Prestes e a dita ‘Revolução de 30’), estendendo-se à ditadura Vargas e, ao seu derradeiro vagido, o golpe de 64, tornando o século XX e a cúspide do atual numa permanente ameaça à nossa frágil democracia. Por tudo isso, com uma iniludível modernidade, a Guerra do Contestado, que seria mero levante de fanáticos, mas que além da terra, almejavam o poder, confrontando o nascente capitalismo no interior do Brasil, desvela uma água forte de arrepiar, cujo desfile de algozes é magistral: crimes & impunidade, politicalha,
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corrupção, desmandos e o famoso “deixa estar pra ver como fica” – aliás, a melhor definição que encontro para definir o Brasil de hoje.
Elenco plasmAtico
Monges, pitonisas, fanáticos, messias, curandeiros, farsantes, cristãos & mouros, desterrados, kardecistas, mártires, salvacionistas, beatos, joanas d’arc, místicos, santarrões, prestidigitadores, assassinos, grileiros, mães-de-santo & babalorixás, mitômanos, videntes, mandões, sebastianistas, conselheiros, virgens-santas – um elenco plasmático que ronda e enreda a nação há quinhentos e dez anos, desde quando Cabral deixou aqui os primeiros “neobrasileiros”. Dois grumetes desertores e dois degredados: como o país tem sobrevivido a um carma maldito desses, a impressão digital da bandidagem na sua origem telúrica, é algo que até hoje me comove e fascina. Motor, aliás, anedótico, poético e estético de toda a minha filmografia, francamente, na contramão da história oficial, seja para que lado e viés ela se manifeste. Foi quando, confrontado com esse panteão místico que contamina do início ao fim, ambos trágicos, a submersa, mal conhecida, quando não, ignorada pelos historiadores, Guerra do Contestado (1912-1916), violento conflito armado sobre posse e usurpação da terra que ensangüentou o centro-oeste de Santa Catarina, que o ex-agrimensor (testemunha de relatos dos sobreviventes que transformou em livro), Euclides Felippe, ele próprio cultor das ciências ocultas, perguntou, olhinhos azuis de 90 anos: – O senhor é espírita? Surpreso, mas deu tempo de responder sem titubear: – Sou cineasta! Ele sorriu, mas logo fechando a cara, confidenciou. – Pois é, senhor Back, há mais de quarenta anos, no nosso centro espírita, aqui em Curitibanos (SC), uma mulher foi “tomada” pelo espírito do Adeodato, o líder dos caboclos revoltosos do Contestado. Foram precisos quatro homens para OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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dominá-la, pois ela, com uma espada imaginária à mão, pôs-se a agredir as pessoas, soltando frases desconexas, mas que nos remetiam ao evento. Impossível remontar e freqüentar personagens e acontecimentos do Contestado sem recorrer às forças do invisível – sentenciou.
Primeiros influxos
Imediatamente, lembrei do poeta Friedrich Novalis (1772-1801), cuja sentença, “Todo visível adere ao invisível” já havia me inspirado há quarenta anos na escritura do roteiro e nas filmagens de A Guerra dos Pelados, em 1970. Numa cena de incorporação fake do espírito do monge José Maria, “santo guerreiro” inspirador do Contestado, a atriz do filme, Dorothée Marie-Bouvier, no papel de uma das “virgenssantas” e “comandante de fé” dos fanáticos, não conseguia passar a “verdade” da encenação. Então, recorri a um ator que, descobri médium, pois a cada manhã me dizia: “Você tá carregado hoje” e projetava passes exorcizantes sobre o meu corpo! Não deu outra: segurando a mão da atriz fora da cena enquanto filmávamos, ele provocou, eu diria, uma espécie de para-transe nela. A cena ficou soberba. Depois, Dorothée ainda permaneceu minutos intermináveis mediunizada, e eu tendo que ouvir a mãe, francesa, em pânico, me xingando e ameaçando de morte, a propósito, na língua de Allan Kardec (1804-1869), o que não deixou de ser um luxo! Felizmente, o cinema nos salvou: impresso tudo em celulóide, ela está lá, até hoje, em cores, maravilhosa! Portanto, quando retornei ao tema, há quatro/cinco anos, assoberbado por uma centena de livros, tudo voltou à tona como um cadáver perdido no mar. Algo estranho e horrível que já vem me perturbando nas últimas décadas. Apesar de inúmeros estudos recentes, profundos, consistentes e originais, no meio acadêmico, inclusive nos Estados Unidos, a Guerra do Contestado vem sumindo, o Contestado está se tornando invisível, seus personagens mortos e o imaginário esmaecendo, ainda que um manto de silêncio, compromisso e medo, insista em corroer o que sobra incólume e acusador. Como se uma sensação de lesa-pátria catarinense (se isso
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existir!, originário que sou do Estado) me empurrasse para não deixar, sim, insepulto os milhares de corpos mortos de fome, massacrados e torturados clamando por alguns átimos de resgate de uma história madrasta como a do Brasil.
Docudrama
Talvez eu seja, com este docudrama (mix de doc & fic), O Contestado – Restos Mortais, o primeiro cineasta brasileiro a fazer um novo filme sobre o mesmo tema (com pegada para-documental, digamos assim, e não ficção pura como em A Guerra dos Pelados) desfazendo equívocos pessoais e alumiando novos meandros históricos sobre e em torno da Guerra do Contestado. E isso só foi possível sobrevoando e dando vôos rasantes não apenas literalmente de helicóptero aos principais redutos da resistência cabocla (Taquaruçu, Caraguatá, Calmon, Mattos Costa (ex-São João dos Pobres), Perdizinhas, Santa Maria etc.), mas
arriscando
entendê-lo
na-
quilo que hoje são apenas sombras,
esquivas
lembranças e um imemorial mítico. Soldados feridos do exército em vagão-ambulância Foto: Autor não nominado
Uma memória mítica absolutamente viva no éter, mas inapreensível a olhos e ouvidos nus. Claro, nessa hora remontaram indeléveis à minha mente aquelas inusitadas filmagens de Dorothée Marie-Bouvier “falsamente” em transe, pois repetia os diálogos que eu havia escrito: agora, o Contestado vem à luz dos refletores e das câmaras através de uma autêntica, ainda que soe polêmica, instância do inOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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consciente coletivo da história do homem, da própria história: o transe mediúnico. No caso, o chamado “homem do Contestado”, civis e militares, pelados & peludos (os caboclos rapavam a cabeça a zero para se diferenciar dos peludos, militares e mercenários que portavam longas melenas), adolescentes e mulheres guerreiras, crianças, todos estropiados em quatro anos de guerra civil num território do tamanho do Estado de Alagoas. Uma revolta só debelada com a entrada de quase a metade do efetivo do exército brasileiro, equipado com moderno armamento depois usado na I Guerra Mundial. Inclusive, o uso de aviões para observação e que, por conta de acidente com um deles, teve a missão de jogar bombas sobre os caboclos abortada. Mas era, sim, o objetivo almejado pelo general Setembrino de Carvalho, comandante das tropas no Contestado, que vinha do Ceará onde, como interventor nomeado pelo presidente Hermes da Fonseca, havia esmagado sedição armada pelo padre Cícero.
Capitalismo nascente
Abertamente contrastando com Canudos (1896-1897), mesmo que em comum surjam aqui e acolá pontos de similitude, como o messianismo, a luta pela terra, um sonho de socialismo rupestre virando pesadelo, e o enfrentamento desigual e a repressão assustadora do exército da recém-criada República, os quatro anos do Contestado foram tudo isso, mas abrigando uma complexidade político-ideológica nunca antes vista no campo brasileiro (até a sua destruição foi mais traumática, quando não, de uma expertise cirúrgica inédita). Complexidade essa, aliás, que permite se afirme que o capitalismo tal qual o conhecemos hoje no Brasil nasceu no Contestado. Mesmo quanto ao ideário utópico que sedimentou a revolta dos jagunços catarinenses, ali vicejou um “romântico” igualitarismo semelhante ao dos catecúmenos da nascente Cristandade, sem direito à propriedade privada, como em Canudos. A par de um conflito histórico de fronteiras entre Paraná e Santa Catarina, a modernidade da chegada ao hinterland
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catarinense de capitais forâneos construindo a estrada de ferro São Paulo-Rio Grande, a Brazil Railway Company (que levou à região milhares de trabalhadores de outros estados) e instalando a maior serraria da América Latina, a Lumber Colonization, todas empresas do magnata norte-americano, Percival Farqhuar, foi um dos pivôs que detonaram e alimentaram o conflito. De papel passado, fajuto ou não, das terras recebidas do Governo próximas ao trajeto da ferrovia, e em conluio com os “coronéis” e grandes fazendeiros do Paraná e de Santa Catarina, uma milícia particular provocou a maior matança e êxodo de caboclos, posseiros, pequenos proprietários de que se tem notícia na história recente do Brasil. Nem por isso a reação dos jagunços, adverte o brazilianista, Todd Diacon, da Universidade do Tennessee, doutorado no tema, configura uma luta antiimperialista no Contestado. Simplesmente, ele reitera, porque para os rebeldes, que nem conheciam o pavilhão nacional, o “império” era o Brasil, os coronéis mancomunados com o capital estrangeiro, os militares que foram reprimi-los para proteger suas propriedades e investimentos.
Estopim da guerra
Por um instinto de sobrevivência, ao primeiro chamamento para se reunirem em torno de mitos, não demorou a surgirem na região magotes ensandecidos, desafiando a “desordem” institucional existente! Esse choque de “desordem” contra “desordem” frutificou numa inédita sangria de homens e mulheres (em torno de quinze mil civis e militares), cujas “almas sofridas e perdidas” vieram pedir socorro ao nosso filme! Com tudo isso em ebulição, dá para fabular que, para que houvesse um estopim, bastava que a fronteira contestada entre Santa Catarina e Paraná, úbere em erva mate e madeira, fosse rompida por alguém. E em 1912, um monge de nome José Maria, vendendo terras devolutas do Paraná (Irani) para duas dezenas de caboclos catarinenses, instalou-se em cima do fio da navalha. Nem será preciso contabiOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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lizar quantos soldados e fanáticos ficaram sem sepultura após uma horrenda refrega que conflagrou não só Curitiba (PR) e Florianópolis (SC), mas o próprio presidente, marechal Hermes da Fonseca e, logicamente, o exército, que logo enxergou ali um novo Canudos. Tanto é que a repressão militar não tardou a se mobilizar e se fazer sentir com metralhadoras e canhões. Na mesma intensidade que dentro das dezenas de cidadelas, os caboclos, antes simples crentes e pacíficos, para sobreviver, passaram a praticar apropriações de alimentos e animália, que diziam “débitas”, de comerciantes e fazendeiros da região. Ao mesmo tempo, constrangidos por chefetes fanatizados, como o já citado, “comandante” Adeodato (que, entre o exército teve o seu equivalente no capitão Potiguar, uma versão sulina do famoso coronel Moreira César, de Canudos),
instalou-se O grande ator, Jofre Soares, como “Pai Velho”,agarrado a São Sebastião, o padroeiro dos fanáticos do Contestado no filme A Guerra dos Pelados. Foto de Jairo Ferreira, crítico, fotógrafo, ator, diretor e ensaísta paulista, já falecido, que fez as belas fotos de cena do filme Foto: Jairo Ferreira
um regime de terror nunca antes visto no Brasil. Um terrorismo, por sua vez, igualmente agenciado pelos chamados “vaqueanos”, asseclas do coronelato e tropa assalariada pelo exército, que não só ameaçava os seguidores que fraquejassem, como espalhou um imaginário fantasmagórico sobre seu poder de persuasão e violência que sobrevive até hoje, com os contornos tão assustadores e impensados que tivessem ocorrido entre nós.
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Transe É poesia
Por aí, sem muita nitidez e tateando pelas veredas que a história oficial do Contestado escamoteia, desvirtua e se cala, arregimentei trinta médiuns ao longo de meses de contatos presenciais em sessões espíritas no teatro de operações do conflito e em Florianópolis (SC), e os transformei em “influxos condutores da linguagem” (se a expressão couber, e cabe!) do filme. Dessa forma, O Contestado – Restos Mortais é agora a formalização concreta em fotogramas do que apenas ensaiei em A Guerra dos Pelados: o contundente poder narrativo da mediunidade, um discurso sempre cifrado, poético e atemporal, quando menos, profético e dispersivo, a assumir a condição de ogro cinematográfico introduzindo o espectador à invisibilidade da Guerra do Contestado. Para atingir essa, digamos, intimidade com os médiuns, fizemos questão (o cineasta Zeca Pires, meu diretor assistente, e eu) de jamais industriá-los sobre o que queríamos saber ou ouvir na hora da filmagem e da gravação. Foi o suficiente para, mais uma vez, tomarmos consciência o quanto o Contestado vem sumindo na memória das pessoas, reforçado pelo fato de que nos livros didáticos, essa verdadeira guerra civil nos sertões do sul brasileiro é citada com meia dúzia de palavras, quando não inteiramente omitida sobre os grandes perrengues sociais e políticos que tumultuaram a chamada Primeira República (18891930). Temíamos, inclusive, que na efetivação das filmagens nossos “desejos” fossem telepaticamente “lidos” pelos médiuns, por isso nada foi pedido ou insinuado previamente. Ficamos todos, equipe e médiuns submetidos ao território do desconhecido, do mistério. E isso transparece nas quase dezessete horas de captação de imagens & sons de médiuns em transe: o inesperado, o susto, a coincidência, a descontinuidade do espaço e do tempo, a pertinência de vozes, testemunhos, grunhidos, dores, berros, risos e gargalhadas, a mais intrigante e desconcertante poesia. Cada transe, uma estrofe, um poema épico, estranha ária de uma ópera mental. Bela e, também, assustadora catarse exalando amperagem dramática e “verdade” míticas que foram OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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conflagrando a todos, crentes e descrentes.
Segunda pele
Nessa ânsia de chegar ao âmago da invisibilidade do Contestado, foi surpreendente sentir como ela vem atracada ao real como uma segunda pele, a que está fora dos livros, dos relatos oficiais, da memória viciada tanto pelo que disseminou o vencedor quanto ao que escapou da crônica do vencido. Aliás, trata-se de um incontornável truísmo, mais uma vez comprovado: ambos mentem, vencedor e vencido, como descobri estudando o arcabouço castrense da Guerra do Paraguai (1864-1870) para o doc, Guerra do Brasil nos anos setenta: onde refulgia que os aliados (Brasil, Uruguai e Argentina) inflavam suas vitórias, os paraguaios descontavam, contando o mesmo enredo, jamais reconhecendo a debâcle. Como se a guerra, o “nosso” Vietnã avant la lettre do século XIX, tivesse terminado empatada! Diriam os chineses: a verdade está mesmo no fundo do poço. Assim, para o bem e para o mal, A Guerra dos Pelados, de há quatro décadas, e o inédito O Contestado – Restos Mortais, recém-concluído, com a inusitada duração de 157 minutos e lançamento nacional no primeiro semestre de 2010 – ambos os filmes parece que foram feitos por dois cineastas diametralmente opostos. Não apenas quanto à narrativa e realização cinemáticas, mas em todos os sentidos: da apreensão crítica da linguagem, digamos, “imaterial” da mediunidade, que ensejou uma estética supra-real, ao sentido político-ideológico do tema; do questionamento existencial às mais pertinentes incursões filosóficas e morais. Com “O Contestado – Restos Mortais” acabo de concluir o meu melhor filme: não existe maior alegria do que esta!
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Back entrevista médium em transe Foto: Cláudio Silva/Divulgação
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Transe em grupo Foto: Cláudio Silva/Divulgação
Sylvio Back e equipe Foto: Cláudio Silva/Divulgação
* Sylvio Back, cineasta, poeta, roteirista e escritor, autor de 37 filmes (11 longas-metragens) e de 21 livros (entre roteiros, poesia e ensaios);em preparo: o documentário O Universo Graciliano, e a ficção, A Angústia, baseado no romance de Graciliano Ramos. A sair (Topbooks, Rio de Janeiro), Guerra do Brasil, coletânea de contos sobre a Guerra do Paraguai.
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Una aproximación deleuziana a “Japón” y “Batalla en el cielo” de Carlos Reygadas Cynthia Tompkins*
RESUMO: Al analizar las diferencias entre Japón (2002) y Batalla en el cielo (2005) de Carlos Reygadas y la tradición fílmica mexicana, incluyendo películas contemporáneas nominadas al Oscar, se descubre que la actitud iconoclasta de Reygadas se asemeja a la del nuevo cine latinoamericano. Entonces, el trabajo examina las cintas a partir de los paradigmas que según Gilles Deleuze definen al neorealismo, los cuales refuerzan la conexión entre la estética de Reygadas y la del nuevo cine latinoamericano. PALAVRAS-CHAVE: CARLOS REYGADAS, DELEUZE, CINEMA MEXICANO Japón (2002) y Batalla en el cielo (2005) de Carlos Reygadas difieren significativamente de películas producidas por directores mexicanos contemporáneos tales como El laberinto del Fauno (2006) de Guillermo del Toro y Babel (2006) de Alejandro González Iñárritu, que les valieran sus respectivas nominaciones al Oscar.1 Efectivamente, una visión panorámica de la tradición fílmica mexicana identifica diferencias ideológicas y sugiere que la actitud iconoclasta de Reygadas se asemeja más a la del nuevo cine latinoamericano. Asimismo, la interpretación de Gilles Deleuze sobre las circunstancias que llevaron a la crítica neorrealista del modelo Hollywoodense nos permite discernir los rasgos sobresalientes de la práctica cinemática de Reygadas a la vez que inferir su conexión con el nuevo cine latinoamericano. Desde la época de oro del cine mexicano entre finales de la década de los años treinta y comienzos de los cuarenta, el cine mexicano “se desarrolló de manera intermitente. A partir de la década de los cincuenta, en cada sexenio [presidencial] se dictarían medidas [que oscilaban entre el monopolio estatal y el liberalismo], para ‘salvaguardar’ la industria del cine, las cuales sólo tendrían el efecto de profundizar la crisis de la industria” (King, López, Alvarado: 222) Por ejemplo, para contrarrestar la pérdida 1 El laberinto del fauno recibió un Oscar en la categoría de cinematografía, otro por dirección artística y un tercero por maquillaje. Babel ganó un Oscar por la mejor composición musical original. Esta es una traducción del artículo publicado en inglés como A Deleuzian approach to Carlos Reygadas: Japón and Battle of Heaven, en Hispanic Journal. 29-1 (Spring 2008): 155-69. Todas las traducciones son mías.
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de confianza resultante de la masacre de Tlatelolco, el presidente Luis Echeverría Álvarez (1970-76) envió a su hermano Rodolfo al frente del Banco Cinematográfico. Éste, a su vez, “fundó la cinemateca mexicana, estableció el Centro de Capacitación Cinematográfica—y gradualmente incrementó el papel del estado en las esferas de producción y exhibición”. (King: 504) Sin embargo, estas medidas fueron discontinuadas en el sexenio de José López Portillo (1976-82). Además, “el comercialismo rampante y la negligencia estatal” continuaron durante el gobierno de Miguel de Lamadrid (1982-88). (King: 505) Finalmente bajo presión, es decir siendo consciente “de la necesidad de privatizar las empresas estatales como precondición para participar en TLCAM (NAFTA),” el presidente Salinas de Gortari (1988-94) conminó a Ignacio Durán, director de IMCINE, a asegurar el financiamiento estatal mediante la inversión del sector privado. (King: 516) El renacimiento del cine mexicano comenzó con el impresionante éxito de Como agua para chocolate (1991) de Alfonso Arau. Sin embargo en comparación con el “cine argentino posterior a 1983 . . . el cine mexicano es netamente comercial . . . es liviano, . . . un cine de conflictos privados y de esperanza, exceptuando, claro está su inevitable contribución a la controversia de 1492”. (Torrents: 225)2 Los directores mexicanos que debutaron a principios de la década de los noventa fueron ampliamente reconocidos tanto a nivel nacional como internacional. Dicho éxito puede ser atribuido a su capacitación (o bien en el Centro de Capacitación Cinematográfica ó en el Centro de Estudios Cinematográficos, instituciones que fomentaban la colaboración con directores experimentados) y a las condiciones materiales que los forzaron a optar por co-producciones internacionales. (Maciel: 34-35) En efecto, Sólo con tu pareja (1991) e Y tu mamá también (2001) de Alfonso Cuarón llevaron a producciones hollywoodenses tales como Harry Potter y el misterio del príncipe de Azkaban (2004) e Hijos del hombre (2006). Asimismo, Cronos (1993) y El espinazo del diablo (2001), de Guillermo del Toro preanunciaron las nominaciones al Oscar que 2 Torrents nota que “muchos de los nuevos directores, tales como Carrera, Novaro, Sistach y Athié egresaron de escuelas de cine estatales, mientras que otros—por ejemplo, Cuarón, Lubesku ó Buihl proceden de la industria del cine o de la TV. Doehener y Echeverría—han dedicado muchos años al cine documental sobre temas indígenas para la agencia estatal INI (Instituto Nacional para los Pueblos Indígenas)”. (225-26)
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obtendría por El laberinto del Fauno (2006). De manera semejante, el éxito sin precedentes de Amores perros (2000), le permitió a Alejandro González Iñárritu dirigir 21 Gramos (2003) y Babel (2006) en los Estados Unidos. Tal como me lo recordó David W. Foster, y aunque Reygadas haya visto estas cintas o no, Narda o el verano (1970) de Juan Guerrero y Mil nubes de paz cercan el cielo, amor, jamás acabarás de ser amor (2003) de Julián Hernández, prefiguran su implacable enfoque en la superficie del cuerpo. Sin embargo, a pesar de las semejanzas en cuanto al estilo, hay muchas diferencias entre estas películas. Narda es una especie de bildungsroman centrado en el desarrollo de dos personajes de clase media alta (Max—Enrique Álvarez Félix y Jorge—Héctor Bonilla) que intentan compartir una mujer (Narda/Elise—Amadee Chabot) mientras pasan el verano en Acapulco. Aunque los celos de Max rompen el vínculo homosocial, Narda está completamente a favor de la revolución sexual. Su decadencia europea incluye un romance con un “salvaje”, el príncipe africano Chomba (Lázaro Paterson). Como fotógrafo, Jorge representa la cámara y el voyeurismo del espectador. A pesar de que la lente se detenga en el cuerpo femenino para sugerir
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lujuria, el pacto se rompe cuando Jorge le toma una foto desnuda. Siendo un espíritu libre, Narda desaparece tan inesperadamente como llegó. En Mil nubes la cámara sigue a Gerardo (Juan Carlos Ortuño), un joven que trata de independizarse de su madre proletaria. Tiene encuentros con hombres que conoce en el salón de billar en que trabaja, o los seduce en la carretera. Sin embargo en el contexto conservador mexicano es difícil ser homosexual y ocasionalmente lo golpean. La lente se enfoca en su cuerpo desnudo para sugerir deseo durante los encuentros y a la vez el proceso de desengaño de un amor no correspondido. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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A partir de la década de los años cincuenta los directores latinoamericanos “buscaron la manera de demostrar su compromiso utilizando el cine como instrumento de concientización”. (Pick: 1) Sin embargo la divergencia entre las distintas teorías—la estética del hambre de Glauber Rocha; el cine revolucionario de Jorge Sanjinés; el cine imperfecto de Julio García Espinosa; la dialéctica del espectador de Tomás Gutiérrez Alea; el cine nacionalista, realista, crítico y popular de Fernando Birri; y el tercer cine de Octavio Getino—demuestra que el nuevo cine latinoamericano está lejos de ser un “proyecto espontáneo, autónomo, unificado y monolítico”. (Martin: 16) Al contrario, se trata más bien de “una práctica cinemática marginal, politizada, y a menudo clandestina que ha logrado dar expresión a nuevas formas y contenidos; ha creado modos alternativos de producción, consumo, y recepción; ha producido películas fenomenalmente taquilleras y a la vez otras totalmente clandestinas; y, en resumen, ha cambiado la función social del cine latinoamericano”. (López: 136-37) Durante más de tres décadas el nuevo cine latinoamericano “intentó oponerse a la hegemonía de los modelos de producción y recepción hollywoodenses. (Pick: 4) Pero para entonces, “los mercados locales [ya] no pudieron crear la inversión requerida por los presupuestos de fines de la década de los años ochenta, [cuando se requerían] estrellas internacionales y co-producciones para que los proyectos se materializaran, [y además] se estaban cerrando cientos de salas de cine [debido a] que la combinación de la distribución de videos y los costos operativos ocasionó pérdidas”. (Rich: 292) Las reflexiones de Gilles Deleuze sobre el cine surgen de las tesis sobre el movimiento que propusiera Henry Bergson y mayormente, de la primera, de acuerdo a la cual, “el movimiento difiere del espacio que recorre. El espacio recorrido es el pasado, el movimiento es el presente, el acto de recorrerlo. El espacio recorrido es divisible, sin duda, infinitamente divisible, mientras que el movimiento es indivisible, o no puede ser dividido sin cambiar cualitativamente cada vez que es dividido.” Deleuze mantiene que la premisa se basa en dos suposiciones. En primer lugar, “los espacios recorridos pertenecen a un solo espacio, idéntico y homogéneo, mientras que los movimientos son heterogéneos, irreducibles entre sí.” En segundo lugar el movimiento
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sólo puede ser reconstituido mediante la noción de un tiempo “mecánico, homogéneo, universal, copiado del espacio [e] idéntico para todos los movimientos.” Sin embargo, Deleuze prueba el error de estas premisas: “Se pueden llevar dos instantes o dos posiciones hasta el infinito; pero siempre habrá un movimiento en el intervalo” y “a pesar de cuanto se divida y subdivida el tiempo, siempre habrá un movimiento en la duración concreta; de modo que cada movimiento tendrá su propia duración cualitativa.” A pesar de dicha clarificación, a Deleuze lo intrigó la semejanza que Bergson identificó entre dicha tesis y la “ilusión cinematográfica”. El impacto de Bergson sobre Deleuze puede inferirse por el hecho que la aproximación al cine del filósofo francés se base en las categorías fundamentales del tiempo, el movimiento y el intervalo. Pero la conceptualización del cine también cambió de acuerdo a la época en que vivió cada uno de estos filósofos. Inicialmente, requería “secciones instantáneas . . . denominadas imágenes [y un movimiento o un tiempo] impersonal, uniforme, abstracto, invisible, ó imperceptible, ‘dentro’ del aparato, y ‘con’ el cual las imágenes pasan consecutivamente”. (Deleuze, Cinema 1: 1) Sin embargo, se desarrolló mediante “el montaje, la cámara móvil y la emancipación del punto de vista [de la] proyección. [Por lo tanto,] la toma deja de ser una categoría espacial y se torna temporal, y la sección se vuelve móvil en lugar de ser inmóvil . . .”. (Deleuze, Cinema 1: 3) Asimismo, también cambió la naturaleza del cine. La imagen-movimiento se subdivide en imagen-percepción, imagen-acción, e imagen-afecto, las cuales aparecen en el cine mediante el montaje. Mientras que ninguna película está compuesta enteramente de uno de estos elementos, siempre hay uno que predomina. (Deleuze, Cinema 1, 66: 70) Sin embargo, después de la guerra, la noción de la imagen-acción entró en crisis. Deleuze lo atribuyó a varios factores tales como: “la inestabilidad del ‘sueño americano’, la nueva conciencia de las minorías, la creciente importancia (la inflación) de las imágenes tanto en el mundo exterior como en la conciencia humana, la influencia del cine sobre los nuevos modos de narrar [y] la crisis de los géneros clásicos de Hollywood”. (Cinema 1: 206) El fin de las metanarrativas que auspiciara la postmodernidad parece estar en el centro del cambio de OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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paradigmas, “ya casi no se cree que una situación global puede originar una acción que sea capaz de ser modificada—de la misma manera que no se cree que una acción pueda lograr que se revele una situación, aunque sea parcialmente”. (Deleuze, Cinema 1: 206) Las cinco características aparentes de la nueva imagen de posguerra, “la situación dispersa, los vínculos deliberadamente débiles, el formato del viaje, la conciencia de los clichés, [y] la condena del argumento” surgieron en el neo-realismo italiano, (Itálicas en el original—Cinema 1, 210; 212)el cual tendría un fuerte impacto en el nuevo cine latinoamericano, considerando que Fernando Birri, Tomás Gutiérrez Alea y Julio García Espinosa estudiaron en el Centro Sperimentale di Roma. (Burton: 22, Hess: 105, López: 140, Rich: 274) En vez de estar impulsadas por la acción, Japón and Batalla en el cielo se estructuran paratácticamente—como una yuxtaposición de escenas—suturadas por la presencia del protagonista. Japón comienza con imágenes de autos atravesando un túnel, seguidas por otras de una zona Batalla en el Cielo
boscosa y una visión panorámica de un paisaje montañoso semidesértico. Mientras que un hombre extremadamente delgado y desconocido (Alejandro Ferretis) atraviesa una zona plantada de agave irrumpe en una partida de caza, pidendo que lo lleven al descender de la meseta.3 Después de hablar con las autoridades comunales, logra albergarse en el granero de Ascen[ción] (Magdalena Flores). El hombre pinta, escucha música y fuma mariguana. Provisto de bastón, asciende a la meseta a fin de suicidarse, pero allí descubre el cadáver de un caballo castrado. Después de un desmayo, el hombre despierta bañado por la lluvia. Al descubrir que el sobrino de Ascen 3 Para información sobre la cinta, véase imdb en: http://www.imdb.com/title/tt0322824/. Para imágenes véase, http://ar.geocities.com/pampacine_2003e/japon/galeria.htm. Hay una breve aparición de Reygadas en la escena de caza. Asimismo, el degollamiento de la paloma puede ser visto como una alusión intertextual a Un Chien Andalou (1929) de Buñuel.
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reclama las piedras que anclan los cimientos del granero, el hombre intenta defenderla. Mientras que el interés en Ascen se ve prefigurado por un sueño, una toma de su trasero y momentos incómodos en que se toman las manos, el apareamiento de caballos se hace eco del pedido del hombre acerca de tener relaciones sexuales. El fútil intento es interrumpido por la llegada de los pobladores, quienes intentan demoler el granero. Una vez cargadas las pesadas piedras rectangulares sobre dos vagones tirados por un tractor, Ascen pide acompañarlos en el descenso. A la mañana siguiente Sabina sube para decirle que todos han perecido. La lente sutura al protagonista a los diferentes escenarios y también ofrece su punto de vista. Posicionada enfrente del vehículo pasa por el túnel y registra su periplo por la zona boscosa. Una vez en la meseta, el punto de vista de la cámara se independiza. Una toma de 360 grados de la zona montañosa permite seguir el movimiento descendente del vehículo mediante el movimiento de las luces delanteras. La alternancia entre el punto de vista del hombre y el de un observador distante refuerzan la belleza del paisaje, la luz cambiante y la formación de nubes. La niebla que envuelve la pantalla cuando el hombre se dispara sugiere su muerte. La presunta muerte del hombre, que se torna renacimiento, se acentúa mediante la filmación. Aparentemente montada en un helicóptero, la cámara traza círculos cada vez más amplios y ascendentes alrededor del hombre que yace de espadas sobre la meseta con el telón de fondo de la belleza del barranco y el acompañamiento musical de un coro, a manera de sugerir lo sublime, que por definición se resiste a ser descrito.4 Mientras que la lente se enfoca en Ascen sentada como una reina sobre el vagón, la última toma zigzaguea entre ambos lados de las vías mostrando los cuerpos yacentes a su alrededor. Finalmente, la cámara recorre las vías y se enfoca en el rostro de Ascen, mirando hacia delante con rastros de sangre surcándole el rostro como encaje. En resumidas cuentas: Japón fue filmada con un proceso inusual de superCinemascope . 4 Sheila McLaughlin sugiere la belleza indescriptible de ciertas pinturas mediante el recurso de una luz cegadora.
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. . con una cámara de 16mm y luego revelada en 35mm . . . Reygadas usa el marco para maximizar el efecto de los paisajes. . . Pero la relativa movilidad de la cámara de 16mm le permite llevar a cabo varias tomas experimentales. La audaz toma circular de siete minutos conque culmina la película, atando los hilos de la diégesis mientras zigzaguea sobre el destino de los personajes, es hipnótica. (Havis)
En Japón se acentúa el intervalo entre las escenas. Por ejemplo, el ruido del puerco al ser degollado despierta al protagonista y nos permite inferir que ha pernoctado en una carnicería. Asimismo, el zoom inicial sobre una superficie cuadrada negra y brillante tachada en rojo produce una sensación de extrañamiento hasta que descubrimos que es una pintura, lo cual nos brinda información sobre el personaje, sus sentimientos y hábitos, tales como la atención con que registra las variaciones del paisaje. El intervalo también aparece en el desmayo con que culmina el intento de suicidio. El traveling de la última toma también sugiere una alusión a la escuela francesa del sublime, en tanto que, el intervalo se ha convertido en una unidad variable numérica y sucesiva, que se interrelaciona métricamente con los demás factores, y en que cada caso define la mayor cantidad de movimiento relativo al contenido y para la imaginación; [Y] el todo se ha transformado en lo simultáneo, inconmensurable, inmenso, que reduce a la imaginación a la impotencia al enfrentarla ante su límite. (Deleuze, Cinema 1: 48)
Las imágenes sexuales son ambiguas. Como los caballos connotan la sexualidad masculina, la imagen de un caballo castrado en la cima de la meseta puede ser interpretada como una prefiguración o un indicio sobre la motivación del protagonista. Una vez que ha decidido no suicidarse, el acoplamiento de caballos se hace eco de su pedido, que a su vez se constituye en tabú por la diferencia de edad.5 Sin embargo, los espectadores jamás descubren qué llevó al protagonista al pueblo para suicidarse; ni por qué desistió. Tal vez, de acuerdo con el cliché, como artista se sintió 5 La representación de cuerpo en descomposición genera abyección porque “el cadáver representa la contaminación fundamental”. (Kristeva: 109) El pedido reinserta al protagonista en la construcción hegemónica de la masculinidad. Así es como, desde un punto de vista hegemónico, es una ventaja que no ya esté siendo llevado por sus instintos.
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redimido por la espectacular belleza del paisaje. Tal vez se haya salvado por la generosidad de Ascen y su buena disposición para explorar lo desconocido. Reygadas se vale de un coro para sugerir que el protagonista se encuentra en un elevado estado espiritual en distintos momentos de la cinta. De esta manera, Japón ilustra la teoría de Deleuze: “el personaje se ha convertido en una especie de espectador . . . Registra en lugar de reaccionar. Es víctima de una visión, o la persigue o es perseguido por ella, en vez de estar sumergido en la acción” (Cinema 2, 3). Irónicamente, la búsqueda existencial se yuxtapone a la vida diaria de los campesinos. Ascen, por ejemplo, se ha pasado la vida dependiendo de una mula para buscar agua y ha trabajado incesantemente para sobrevivir.6 A pesar de sus rasgos indígenas se ha asimilado y siguiendo la máxima de Marx sobre la religión como el opio de los pueblos, reza. A pesar de los clichés, su trágica situación está clara y los espectadores sienten su pena. Sabe que los cimientos del granero anclan su casa, que sin las piedras no podría resistir las inclemencias del tiempo. Al dejar que se las lleven firma su sentencia de muerte. Su aquiescencia puede ser atribuida al ideal de autosacrificio que el catolicismo impone a la mujer. El que sea traicionada por el sobrino a quien visitara en prisión hace que su situación sea más desgarradora. La implícita traición de la comunidad, al condonar la acción, es sugerente. A pesar de la ambigüedad respecto a la motivación que lleva a Ascen a subirse al vagón, el final se lee como la justicia poética de una tragedia griega. Tal como lo sugiere su intención de embriagar a los hombres que se llevan los cimientos, escoge morir. Es decir que aunque el hombre no admite su motivación, Ascen parece haberla inferido y como partícipe de un pacto secreto, se inmola en una perfecta instancia del suplemento derrideano.7 La ambigüedad permite una lectura alegórica 6 Ascen es una anciana muy religiosa, cuyas reservas sobre tener un huésped surgen de su avanzada edad “es demasiado vieja para cuidarlo” y de la falta de agua corriente. Paul Clarke nota, “Se sugiere que el protagonista es un hombre culto de clase media urbana, pero que sin embargo encuentra dicha existencia hueca. Por otra parte, con su vida sencilla, su fervor religioso y su buena disposición para probar lo nuevo (discernir sobre arte y mariguana), es claramente atractiva para un hombre que desde hace mucho no disfruta de los placeres de la vida.” Mariana Carreño King aduce que “el título proviene del sol naciente, asociado con Japón”. 7 Derrida ofrece varias aproximaciones: ‘el suplemento se agrega, es algo sobrante, una plenitud que enriquece a otra plenitud, la medida más llena de la presencia . . . Pero el suplemento. . . añade sólo para reemplazar. Interviene o se insinúa en-lugar-de. (De la gramatología: 144-45)
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de la cinta, esta sensación se refuerza por la práctica del director. Es decir, a pesar que “el reparto conste enteramente de actores no profesionales y que muchas de las escenas (incluida la sexual) se rodaron improvisándolas”, (Clarke) Reygadas opta por la opacidad respecto a la motivación. Batalla en el cielo (2005) es más perturbadora y provocativa por el énfasis en los desnudos y la sexualidad; sin embargo, a pesar de optar por un escenario urbano en lugar de uno rural, el director mexicano sigue comprometido con su estilo heterodoxo.8 Nuevamente seguimos al protagonista mientras el foco alterna entre su punto de vista y el de quienes lo rodean. El conflicto entre los representantes de las distintas regiones, es decir entre los del D. F. (Distrito Federal) y los campesinos de Hidalgo, reaparece en términos de clase en Batalla en el cielo. Finalmente como en Japón, a pesar de comprender en líneas generales el dilema del protagonista, los espectadores no tienen (acceso al flujo de sus pensamientos ni) certeza alguna respecto a su motivación. Por ende, el recurso de la elipsis permite una lectura alegórica de la cinta. Batalla en el cielo abre con una felación. Abrumado por la culpa debido a la inesperada muerte del bebé que su esposa (Bertha Ruiz) y él (Marcos Hernández) secuestraran, Marcos comparte su pesar con Ana (Anapola Mushkadiz), para quien ha trabajado de chofer por más de quince años. Ana sugiere que se consuele con sus amigas en el burdel en el que trabaja a espaldas de sus padres. Debido a su disfunción Ana presume que Marcos quiere acostarse con ella y accede. A pesar de que Berta sugiera pagar por sus pecados haciendo una manda en (peregrinando hacia) la Basílica de la Virgen de Guadalupe, Marcos parece recurrir a intensas actividades físicas tales como subir hasta la cima de una montaña coronada de cruces para purgar su culpa. Marcos apuñala a Ana, presumiblemente porque no lo quiere. Después de hacer penitencia, muere en la basílica. La cinta termina con otra escena de felación. La ambigüedad surge de la deliberada fragilidad entre los vínculos entre las escenas. A pesar de estar suturadas por la aparición del protagonista, los abruptos cambios de locación refuerzan la noción del intervalo. Mientras que el anclaje espacial 8 Para información e imágenes de Batalla en el cielo véase <http://www.imdb.com/title/ tt0387055/>.
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de la felación queda indeterminado, la escena siguiente toma lugar en la madrugada en el Zócalo. Luego vemos a Marcos parado contra la pared metálica celeste del metro. Otro corte nos lleva a un Marcos desnudo contra la pared celeste del burdel. La escena siguiente toma lugar de noche, en una estación de gasolina aséptica y desierta. A continuación vemos una toma a lo Botero de Berta, sentada junto a su hijo dormido en un sofá amarillo. De madrugada Marcos reaparece en el Zócalo. Otro corte nos lleva a la así llamada boutique. Entonces la cámara se dirige al apartamento de Jaime, el novio de Ana. De madrugada, Marcos vuelve al Zócalo. Nuevamente, se dirige al apartamento de Jaime. Luego del crimen la información sobre Marcos y los agentes que lo siguen se presenta mediante un montaje alternado y paralelo hasta que las dos líneas argumentales confluyen en la Basílica. Mientras que la lluvia connota un renacer, las campanas de la iglesia nos recuerdan a los muertos. Horas después, como si recordara los planes de Berta, la cámara regresa al Zócalo. La cinta culmina haciéndose eco de la felación del principio.9 Sin embargo, en este caso los personajes parecen más felices. Sonriendo, Marcos dice, “te quiero mucho Ana” y ella replica “yo también te quiero, Marcos.” Tal como en Japón, Reygadas sigue el punto de vista del protagonista. En el esfuerzo por tomar el tren atestado Marcos pierde sus lentes. En el aeropuerto vemos a Ana a través de su mirada, es decir, fuera de foco. El punto de vista de la cámara parece independizarse durante el coito, ya que se enfoca en el ventanal, y comienza un paneo de trescientos sesenta grados que incluye a dos trabajadores instalando una antena transmisora de cable, circula alrededor de los edificios adyacentes, sigue una larga grieta en la pared y toma cuenta de una canilla que gotea. Entonces, el paneo continúa registrando sus cuerpos, el miembro erecto de Marcos y el pubis de Ana. Acostada a su lado, Ana concluye, “Vas a tener que entregarte, Marcos.” La música de Tavener sugiere una marcha fúnebre y preanuncia un pacto mortal.10 La toma evidencia el interés de Reygadas en las superficies (cuerpos, paredes), pero también apunta a la función del close-up (incluyendo los objetos), que es justamente atraer al espectador, ya que a pesar de sus 9 Reygadas sostiene que esta escena sugiere, “que deseamos bienes materiales y esperanza. La esperanza es el sentimiento más importante”. (The Guardian) 10 El comentario sobre la marcha fúnebre y el pacto mortal aparece en la entrevista que incluye el DVD.
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variaciones, “el close-up logra apartar la imagen de las coordinadas témporo-espaciales a fin de concretarse en la expresión de la afectividad”. (Deleuze, Cinema 1: 96) La complejidad de la cinta surge del uso constante de la ironía y de las alusiones intertextuales. Por ejemplo, cuando Berta le dice a Marcos cómo falleció el bebé, sus gestos mecánicos nos recuerdan los muñequitos de madera que dan la hora en relojes cucú. En otras palabras, se presenta un mise-en-abîme entre la pareja y los relojes que tienen a la venta. Asimismo, mientras Marcos está ensimismado en la estación de servicio, aparece un sedán de la década de los años setenta. El humor nace de su sorprendente capacidad, ya que once personas salen de su interior. Además, en un guiño intertextual la protagonista de Japón pregunta, “¿Qué música es ésta, hijo?” Cuando Marcos va a buscar a Ana, Jaime lo recibe bromeando al preguntarle si despertó encima o abajo y procede a cortar un una sandía—símbolo de lo femenino a partir de Frida Khalo. Marcos espera contemplando un cuadro que representa a un vigoroso corcel—otro símbolo obvio—colgado sobre una pared roja. Finalmente, mientras Marcos se dirige a la Basílica, un predicador le asegura que ha sido salvado y le pone un bonete triangular—una alusión a la Inquisición—sobre la cabeza. Su arenga se vuelve graciosa cuando el mensaje, “no más mujeres, no más tetas” se yuxtapone a una toma de dos mujeres agentes de policía disfrutando de un helado mientras Marcos pasa de rodillas, con el rostro tapado por el bonete. Tal como lo sugieren estas imágenes, el cine de posguerra acentúa el cliché. (Deleuze, Cinema 1: 210) La deliberada fragilidad del enlace entre las escenas genera indeterminación. La ambigüedad rodea el deceso de Marcos. Mientras avanza de rodillas, cae de cabeza contra el pavimento al cruzar la calle y notamos que la sangre comienza a manchar el bonete. Ya en la basílica, sangrando profusamente, se arrodilla en un banco. Horas después, cuando la basílica se encuentra libre, entra su mujer, se sienta a su lado y lo toca. El cadáver de Marcos cae de costado. Como en ocasiones anteriores, la mujer enfrenta la cámara con una expresión pétrea, semejante a la de un ídolo Olmeca, sin embargo, sus lágrimas establecen un paralelo con las de Ana en la escena de felación inicial. A pesar del efecto anticipador de la música de Tavener, las intenciones de
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Marcos permanecen sumidas en el misterio.11 La culpa lo abruma e intenta purgar sus pecados. Las imágenes religiosas de su dormitorio refuerzan esta ideología, ya que la cámara sigue el recorrido de la sangre que gotea del costado de Cristo hacia su vestimenta, sugiriendo jouissance, es decir la expresión de su rostro indicaría éxtasis ante el dolor.12 Aunque Ana parece ser amoral, se asemeja a Marcos en la traición. Ana le miente tanto a sus padres como a Jaime. De manera similar, tanto en el ejército como en la policía la corrupción es generalizada, pero MarBatalla en el Cielo
cos traiciona el código de honor al optar por el crimen. Asimismo, al secuestrar al bebé de Viky, la pareja traiciona a una amiga. La iteración refuerza la articulación paratáctica.13 Por ejemplo, Marcos le asegura a su mujer, “vamos a estar separados pero te llevaré ahí dentro.” Asimismo, al asegurarle a Ana que se va a entregar le dice, “¿No te importa que quedemos separados?” En otras palabras, repite la pregunta que Berta le hiciera, e irónicamente Ana repite la suya, “No, . . . te voy a llevar ahí dentro.” La iterabilidad sugiere el desplazamiento del afecto y estructura la película como repetición con variantes. La elipsis en cuanto a la motivación surge del secuestro, del asesinato de Ana y de la causa de la muerte de Marcos. Sin embargo, en lugar de ser “un modo de la narración [récit], una manera en la que se va de una acción a una situación parcialmente develada: es parte de la situación misma, [porque] pese a que disperse, la realidad presenta lagunas”. (Deleuze, Cinema 1: 207) Pero también puede ser un efecto del método de Reygadas. El director mexicano tiene “ensayos ténicos in situ, para la mecánica de la escena” pero aclara, “saben lo que tienen que hacer, pero. . . no saben nada psicológico, porque 11 En cuanto a la motivación para el secuestro del bebé, Reygadas mantiene, “es sólo un hecho. No quiero hablar sobre el secuestro. Quiero hablar a sobre la lucha interna de un hombre.” 12 Sobre el estilo de Reygadas en esta escena en términos de Ticiano y Tintoretto véase The Guardian. 13 “La iterabilidad también fundamenta la intertextualidad y la diseminación. ‘Todo signo, lingüístico o no, hablado o escrito (en el sentido común de esta oposición), como una unidad grande o pequeña, puede ser citada, puesta entre comillas; por lo tanto, puede romper con todo contexto y engendrar nuevos contextos infinitamente de una manera absolutamente no saturable’”. (Derrida, Márgenes: 320)
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no quiero que piensen acerca de la representación”. (Razor)14 Además, como Reygadas trabaja con actores no profesionales, el casting depende de sus personalidad. Hay una cierta citación del documental en tanto y en cuanto no les dice cómo vestir. El sentido del documental también surge de la sensación de tiempo real que brindan ciertas escenas. El escándalo de un affaire que descalabra el rígido sistema de clase (racial - y tal vez étnico) en México contribuyó al éxito de la cinta. Articulado como variaciones en capital cultural, Ana representa un presente amoral y Marcos un pasado pecador pero lleno de arrepentimiento. El grado al que peca cada personaje es un enigma; sin embargo la alegoría moral resulta de los intersticios, precisamente debido a la ambigüedad de la cinta. En otras palabras, haciéndose eco de la condena al cine de acción promulgada por Deleuze, a pesar de que los respectivos protagonistas se embarquen en un viaje, Japón y Batalla en el cielo son pasibles de lecturas alegóricas porque la situación dispersiva que cada cinta presenta se ve reforzada por los vínculos deliberadamente débiles, resultantes de la condena del argumento de parte de Reygadas. Además al valerse del recurso, ambas cintas demuestran una conciencia del cliché. Por lo tanto la presencia de las cinco características que Deleuze atribuyera a la nueva imagen de posguerra establece una conexión entre la obra de Reygadas tanto con el neorrealismo como con el nuevo cine latinoamericano. Las alusiones a estos movimientos proveen continuidad mientras le aseguran al iconoclástico director un lugar significativo en el panorama del (novísimo) cine contemporáneo, tema para otro trabajo.
referencias filmo-BIBLIOGRAFIcas
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* Cynthia Margarita Tompkins, traductora de inglés y profesora de lengua y literatura inglesa, graduada de la Escuela Superior de Lenguas y Licenciada en Letras Modernas de la Universidad Nacional de Córdoba, llegó a los EEUU con una beca Fulbright para estudiar Literatura Comparada en Pennsylvania State University (M.A., Ph.D). Se desempeña como catedrática en literatura y producción cultural latinoamericana en Arizona State University. Sus artículos se encuentran en Studies in Latin American Popular Culture, Revista Hispánica Moderna, Nuevo Texto Crítico, Hispanófila, Hispamérica, Confluencia, Chasqui, Hispanic Journal y Hispanic Issues Online. Además de su libro Latin American Postmodernisms: Women Writers and Experimentation, ha coeditado Teen Life in Latin America and the Caribbean; Notable Twentieth-Century Latin American Women y Utopías, ojos azules, bocas suicidas: La narrativa de Alina Diaconú. Ha co-traducido No Apocalypse, No Integration: Modernism and Postmodernism y se encuentra escribiendo un libro sobre la estética del novísimo cine latinoamericano.
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Conversación con Warren Buckland1 Lauro Zavala*
El Dr. Warren Buckland es uno de los investigadores más destacados de la teoría cinematográfica contemporánea. Actualmente trabaja en la Universidad de Oxford y es director de la Revista de Estudios sobre Cine y Televisión (New Review of Film and Television Studies), en Inglaterra. La conversación que sigue se realizó durante la visita que hizo al Instituto Tecnológico Superior de Monterrey, Campus Toluca, para presentar la conferencia inaugural del Cuarto Congreso Internacional de Análisis Cinematográfico, en octubre de 2008, donde fue invitado por el Seminario Permanente de Análisis Cinematográfico (SEPANCINE) y la Universidad Autónoma Metropolitana de Cuajimalpa (UAMC), de la Ciudad de México. Lauro Zavala: Doctor Warren Buckland, nos da mucho gusto que esté con nosotros.En Estudios sobre el cine estadounidense contemporáneo 2 usted estableció una relación entre varias teorías del cine y métodos específicos de análisis, un enfoque general que puede aplicarse a cualquier teoría. ¿Considera que esta relación es aplicable también a los primeros teóricos, como Rudolph Arnheim, Béla Bálasz y posteriormente André Bazin? ¿Cuál es su punto de vista en general? Warren Buckland: Considero que la teoría ha sido autónoma respecto del análisis. No hay necesariamente una relación entre la teoría y el análisis. Creo que algunas teorías se enfocan en el cine, el fenómeno del cine. En Estudios sobre el cine estadounidense contemporáneo sentí la necesidad de extraer métodos de análisis de estas teorías, pero las teorías por sí mismas no brindan métodos de análisis, porque en cierto sentido ése no es el propósito de las teorías del cine. La teoría del apa1 Traducción del inglés por Alfredo Gurza. 2 Thomas Elsaesser & Warren Buckland: Studying Contemporary American Film. A Guide to Movie Analysis. London, Arnold / New York: Oxford University Press, 2002, 310 p.
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rato cinematográfico de Jean-Louis Baudry, por ejemplo, se refiere al cine en general, no aborda el análisis de películas individuales. Podemos mencionar otras teorías, en particular la de Christian Metz que habla del fenómeno del cine. Lo que yo intento es extraer métodos de estas teorías, aunque no las brinden por sí mismas. Creo que esto se aplica a todas las teorías. El propósito de las teorías del cine no es simplemente brindar un método para analizar películas individuales; eso es un propósito adicional que podemos atribuir a las teorías y a mí me parece un atributo muyproductivo de una teoría. Cuando escribí el libro fui muy criticado por extraer métodos de estas teorías porque a algunas personas les pareció reduccionista valerse de las teorías para la actividad banal y mundana de analizar películas. Creo que ahí surge la tensión al usar teorías para analizar películas. El análisis de películas tiene que justificar todo el tiempo su recurso a las teorías. LZ: En sus participaciones de ayer y esta mañana usted dijo que pertenece a una tradición general en el Reino Unido. ¿Hay un conflicto entre la llamada tradición analítica y la teoría continental? WB: Creo que eso quedó en evidencia en los años 80 del siglo pasado, cuando algunos estudiosos del cine estadounidenses y algunos británicos decidieron no desarrollar las teorías continentales del cine que recurren a la semiótica, el psicoanálisis, etcétera. Esa tensión resultó patente en los años 80, cuando filósofos de la escuela analítica ingresaron a los estudios de cine y comenzaron a analizar los enunciados de las teorías continentales sobre el cine y a descontruirlos. Cuando digo teorías continentales incluyo las de algunos académicos estadounidenses influenciados por las teorías continentales, así como académicos británicos agrupados en torno a la revista Screen, como Stephen Heath y Laura Mulvey, fuertemente influenciados por las posiciones continentales. Cuando académicos como David Bordwell y Noëll Carroll desarrollaron sus teorías, rechazaron de manera tajante las actividades basadas en las teorías continentales. El momento clave, me parece, fue una reseña que escribió Noël Carroll en 1982, una reseña de cien páginas sobre el libro de Stephen
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Heath, Cuestiones del cine.3 Cuestiones del cine debía ser el punto culminante de las teorías continentales, una conjunción de todos sus elementos para demostrar lo que eran capaces de hacer esas teorías. Pero lo que ocurrió, por el contrario, fue que un filósofo de la escuela analítica, Noëll Carroll, escribió una reseña de cien páginas, desmontando el libro línea por línea y demostrando que sus enunciados carecen de sentido, son puras analogías, es puramente metafórico, y que esa tradición no tiene ningún contenido. A partir de los 80 se desarrolló la escuela analítica, en particular alrededor de Noël Carroll y David Bordwell, y culminó con su libro de 1996, Post Teoría, cuyo título quería decir “post teoría continental” y en el que tratan de establecer una teoría más analítica y cognitiva del cine.4 LZ: Esta mañana usted planteó interesantes críticas a las afirmaciones de David Bordwell sobre el cine clásico y post clásico. ¿Podría resumir sus planteamientos? WB: David Bordwell trabaja desde una perspectiva más inductiva. Su principal crítica a la teoría continental es que le parece deductiva, por cuanto aplica enunciados muy abstractos al cine en su conjunto, de modo que esa teoría resulta inflexible. La principal crítica de David Bordwell a la teoría continental es, entonces, que impone al cine un marco preestablecido. En el artículo de David Bordwell “Film Features” identifiqué que él hace lo mismo: tiene la idea de que todo el cine es clásico, así que incluso al abordar una cinta tan radicalmente post clásica como Memento,5 trata de hacerla encajar en su marco deductivo preestablecido, para decir: “Esta película sigue siendo clásica si la vemos de esta manera”. Al hacer eso, Bordwell ignora los elementos clave de una película como Memento, como por ejemplo el hecho de que la narración de la cinta va al revés. Él afirma que la estructura de la película es clásica, y quizá lo sea, pero el hecho es que la narración distorsiona ese clasicismo en la manera de presentar la trama. Me parece que Bordwell cae en el mismo problema 3 Stephen Heath: Questions of Cinema. London: Macmillan, 1981. 4 David Bordwell & Noël Carroll, eds.: Post-Theory. Reconstructing Film Studies. Madison: The University of Wisconsin Press, 1996, 564 p. 5 Christopher Nolan: Memento. Estados Unidos, 2000. (En México, como en el Brasil, se conoce como Amnesia).
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que él detecta en la teoría continental, es decir que es demasiado deductiva, demasiado vertical. Ésa es mi principal crítica al artículo de Bordwell. LZ: En su libro Teach Yourself Film Studies, de 1998,6 usted señala cinco elementos para el análisis cinematográfico: imagen, sonido, edición, puesta en escena y narración, aparte del género y la ideología. ¿Considera que estos elementos son siempre necesarios en cualquier tipo de análisis? WB: No querría sugerir que cualquier analista de películas tenga que emplear esos conceptos. Sería más pragmático y diría que el analista de películas debe considerarse lo que los franceses llaman un “bricoleur”: simplemente tomas la teoría que necesites para explicar y analizar la secuencia de tomas que esté a discusión. Algo que detesto es ver títulos de artículos del tipo de “Un análisis ideológico de...” o “Un análisis psicoanalítico de...”. Lo que importa es privilegiar la película, y emplear cualquier concepto que juzgues útil para decir algo más acerca de la secuencia en cuestión. No es necesario prepararse durante años como psicoanalista para poder hacer una lectura psicoanalítica de una película; basta con entender los conceptos básicos y aplicarlos después a una película, en el momento apropiado. Lo que importa no es ser un ideólogo y colocarte en un campo determinado. Creo que siempre debemos privilegiar la película, no la teoría, y tomar los conceptos teóricos que nos parezcan de provecho. Si la lista que usted mencionó es útil para analizar una película en particular, entonces úsela por supuesto, pero no se limite diciendo, “Tengo que usar estos conceptos para hacer la crítica de esta secuencia”. Dicho de otro modo, me parece que la película misma le dirá qué conceptos son necesarios. Como analistas, debemos ser sensibles a la película y emplear la teoría de manera sensible; en vez de hacer afirmaciones huecas acerca de la secuencia que analizamos, debe permitirnos comprender esa secuencia con mayor detalle. Para mí, la teoría es un medio para un fin, está ahí para ayudarme a decir algo más sobre la película y comprenderla. En mi
6 Warren Buckland: Teach Yourself Film Studies. London: Hodder & Staughton. Teach Yourself Books, 1998. (2a. ed., 2003; 3a. ed, 2008, 200 p.)
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análisis de Inland Empire,7 por ejemplo, echo mano de la teoría cognitiva y la teoría psicoanalítica, están una al lado de la otra en mi análisis; uso la teoría psicoanalítica en ciertas secuencias porque es relevante y la teoría cognitiva en otras secuencias porque en ellas es relevante. La destreza del análisis cinematográfico radica en saber cuándo aplicar el concepto atinado en el momento apropiado. LZ: El título de su libro Semiótica cognitiva del cine es muy interesante.8 Parece ofrecer la posibilidad de una síntesis de estas teorías. ¿Puede hablarnos del título y del libro? WB: Sí, creo que suele considerarse a la teoría cognitiva y la semiótica como contradictorias, dos paradigmas que operan uno contra el otro. Para mí lo importante es que la semiótica del cine, como paradigma, nunca llegó a su fin. La gente la abandonó debido a la política académica, cuando los nuevos académicos quisieron desplazarse a teorías más radicales y no querían identificarse con la semiótica. En Semiótica cognitiva del cine intento ampliar el trabajo de la semiótica el cine. La semiótica del cine tiene su propia agenda y creo que es posible ampliarla, combinándola con la teoría cognitiva. La semiótica cognitiva, si bien suena conflictiva, es de hecho un desarrollo natural de la semiótica. Desarrollar la noción de los códigos y decir que éstos están en la mente es una progresión de la teoría misma. La semiótica tradicional dice que los códigos existen en el texto; la semiótica cognitiva del cine dice que los códigos están ubicados ahora en la mente del espectador, en la mente del cineasta. Me parece una progresión natural, no veo un conflicto en combinar la semiótica y la teoría cognitiva. LZ: En su reciente libro sobre Steven Spielberg9 usted se refiere al punto de vista del espectador en general. ¿Cómo se relaciona esto con el punto de vista del cineasta? 7 David Lynch: Inland Empire. Estados Unidos, 2006. (En México se conoce como Imperio; no Brasil, como Império dos Sonhos). 8 Warren Buckland: The Cognitive Semiotics of Film. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, 174 p. 9 Warren Buckland: Directed by Steven Spielberg. Poetics of the Contemporary Hollywood Blockbuster. New York, London: Continuum, 2006, 242 p.
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WB: En mi libro sobre Spielberg sentí la necesidad de que el analista de películas piense como un director de cine. Para entender cómo se hace una película, es necesario asimilar el conocimiento técnico del director. El analista ideal debe pensar como un director de cine, porque el director de cine sabe cuándo mover la cámara, cuándo cortar la toma, cómo editar una secuencia para crear un flujo específico de imágenes, y creo que un analista cinematográfico puede beneficiarse de esa manera de pensar; una vez que sabe cómo piensa un director, puede aplicarlo a sus películas. Yo lo apliqué a las películas de Steven Spielberg. Vi cómo toma decisiones al dirigir sus películas tan taquilleras y expliqué en parte el gran éxito de sus cintas a partir de ese proceso de toma de decisiones. LZ: Por último, cuál es su opinión sobre la relevancia de los estudios sobre cine en la actualidad. WB: Sí, terminemos con una fácil. Vivimos en una sociedad saturada de medios. Creo que beneficiamos mucho a los estudiantes con esta “alfabetización mediática”, porque si no, todos acabaremos siendo consumidores de esa cultura del video. Considero que los estudios sobre cine pueden volvernos más críticos como consumidores y permitirnos distanciarnos de esa sociedad saturada de medios. LZ: Gracias.
* Lauro Zavala - Profesor de teoría literaria, semiótica y cine e Coordinador da Área de Concentración en Semiótica Intertextual en la Universidad Autónoma Metropolitana de Xochimilco, México; presidente de la Asociación Mexicana de Teoría y Análisis Cinematográfico (SEPANCINE); autor, entre otros, de Elementos del discurso cinematográfico (UAMX, 2005). Traducción del inglés por Alfredo Gurza.
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DOIS PERSONAGENS DE JOSÉ MOJICA MARINS Marco Aurélio Lucchetti*
Resumo: Este artigo discute se o cineasta e ator José Mojica Marins encarna em sua obra apenas um personagem, o Zé do Caixão, ou se este subdivide-se em duas personae: Zé do Caixão e Josefel Zanatas. Palavras-Chave: José Mojica Marins, Cinema Brasileiro de Horror, Zé do Caixão
1 - JOSEFEL ZANATAS
Figura principal dos filmes À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, Josefel Zanatas foge à regra de tudo o que existe em matéria de personagem de Horror/Terror, pois não é nenhum lobisomem, nem um monstro criado em laboratório, nem uma múmia revivida após permanecer fechada numa catacumba por mais de trinta séculos, nem um vampiro que se alimenta do sangue de belas jovens. Ele é apenas aquele a quem, no interior do Brasil, se dá o nome de papa-defunto. E justamente por ser um papa-defunto, um agente funerário, Josefel Zanatas recebeu da população do lugarejo onde vive o apelido de Zé do Caixão. Abre um parêntese. Em 12 de dezembro de 1992, numa entrevista dada ao autor deste artigo, o cineasta José Mojica Marins declarou o seguinte: (...) com referência ao nome do personagem Zé do Caixão, devo esclarecer que ele surgiu espontaneamente e devo confessar que não poderia ter encontrado outro melhor. Zé é um nome bem característico do Brasil. Há inúmeros Zés espalhados por todo o país: o Zé da padaria, o Zé do açougue, o Zé da banca de jornal... Há também o Zé-ninguém. E o ‘do Caixão’ é em virtude de ele ser um papa-defunto.
Fecha o parêntese. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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Nos dois filmes, Josefel Zanatas é mostrado como um homem perverso, sanguinário, vil, violento, destituído do menor traço de compaixão e acostumado a praticar os atos mais bárbaros, cruéis e selvagens. É um sádico – seu maior prazer é ver os outros sofrerem. E por falar em sádico, algumas das frases ditas por Josefel Zanatas remetem de imediato às idéias e teorias daquele que deu origem a esse termo, o escritor francês Marquês de Sade. Um exemplo disso está nesta fala do papadefunto para Márcia, uma das muitas mulheres a quem seduziu: Amas-me. Amas-me. O amor, este estado de pré-imbecilidade, arruína o homem. Os que amam são espezinhados e incompreendidos. Logo, este sentimento é negativo. Lamentável tê-lo visto em teus olhos. Lamentável; não fosse essa fraqueza, serias a mulher perfeita.1
Ela tem certa similaridade com estes conselhos dados pelo devasso Dolmancé à aprendiz de libertina e voluptuosa Eugénie de Mistival, na peça La Philosophie dans le Boudoir (A Filosofia na Alcova, 1795): Falais dos laços do amor, Eugénie; que não venhais a conhecê-los! Ah! Pela felicidade que para vós almejo, jamais penetre tal sentimento em vosso coração! O que é o amor? Não podemos considerá-lo senão como o efeito, sobre nós, de um objeto belo; estes efeitos nos arrebatam; inflamam-nos; se possuímos o objeto, estaremos contentes; se nos é impossível tê-lo, eis-nos em desespero. Mas qual é a base de tal sentimento?... o desejo. E em que resulta?... na loucura. Atenhamo-nos ao motivo, e preservemo-nos dos seus efeitos.2
Algo que não pode deixar de ser dito, ou melhor dizendo, algo que não pode deixar de ser ressaltado é que Josefel Zanatas é um ser desprezível. É um bruto. É um debochado, que desdenha de tudo e de todos. É um sujeito que não respeita ninguém, não respeita coisa alguma. Não respeita os vivos... nem os mortos. É também um incrédulo, que não acredita em nada... aliás, acredita apenas numa coisa: na perpetuação do sangue. 1 Aldenoura de Sá Porto, roteiro de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, p. 37. 2 Marquês de Sade, A Filosofia na Alcova, trad. Martha A. Haecker, Rio de Janeiro, JCM, 1968, p. 110.
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Nas adaptações literárias de À Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver – essas adaptações literárias foram escritas por Rubens Francisco Lucchetti, que se baseou nos roteiros dos filmes, e publicadas em dois livros de bolso3 – Josefel Zanatas é assim descrito: Era alto, magro, feições quase cadavéricas, longas unhas e espessa barba negra a cobrir-lhe o rosto, olhos brilhantes e profundos. Enfim, uma estranha e apavorante figura que provocava calafrios em qualquer pessoa que a visse.4(...) o agente funerário Josefel Zanatas, (...) com sua capa preta, sua cartola, suas unhas compridas anunciando a tragédia, suas roupas escuras, seus olhos negros e tenebrosos, seus modos estranhos, sua vida enigmática... 5
Ela ficara perturbada pela forte personalidade daquele homem estranho, que se trajava completamente diferente dos demais naquela cidade: longa capa preta sobre um terno da mesma cor, e cartola. Em qualquer outro homem, esta indumentária seria ridícula; mas nele inspirava personalidade e segurança. 6
EM BUSCA DA MULHER SUPERIOR Cada um de nós não passa de uma metade de ser humano. De um foram feito dois; nós fomos cortados ao meio como linguado! E cada um busca incessantemente sua metade correspondente.7
As palavras acima fazem parte de O Banquete, de Platão, e foram atribuídas ao poeta cômico grego Aristófanes, que apregoava que, nos primórdios da 3 Por ser muito longa, a história de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver acabou originando dois livros de bolso: Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver e O Vale dos Mortos. 4 Rubens Francisco Lucchetti, À meia-noite levarei sua alma, Rio de Janeiro, Cedibra, 1974, pp. 5-6. 5 Rubens Francisco Lucchetti, Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver, Rio de Janeiro, Cedibra, 1974, p. 5. 6 Francisco Lucchetti, O Vale dos Mortos, Rio de Janeiro, Cedibra, 1974, p. 19 7 Citado em Amor e Sexualidade no Ocidente (edição especial da revista L’Histoire/Seuil), trad. Anna Maria Capovilla, Horácio Goulart & Suely Bastos, Porto Alegre, L&PM, inverno de 1992, p. 131.
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existência humana na Terra, o homem e a mulher formavam um único ser. De acordo com Aristófanes, esse ser era por demais poderoso – tinha quatro braços, quatro pernas, dois rostos rigorosamente semelhantes e voltados em direções opostas, quatro orelhas, órgãos sexuais duplos etc. – e representava uma ameaça aos deuses, com quem queria igualar-se e a quem, em certas ocasiões, desafiava e enfrentava. Ainda segundo Esta noite encarnarei no seu cadáver
Aristófanes, após muito refletir a respeito de como tornar mais dócil os seres dessa ousada e poderosa raça de humanóides, Zeus, o deus supremo do Olimpo, decidiu dividir cada um deles em duas metades. Quando dividiu em dois o ser humano, Zeus deixou-o menos forte e capaz, fazendo-o esquecer-se de parte de sua intrepidez e tornando-o completamente subserviente aos deuses do Olimpo. Foram, assim, criados o homem e a mulher. E, desde então, o homem busca sua metade feminina e vice-versa, a fim de completarem-se. Como outros homens, Josefel Zanatas também busca incessantemente sua metade feminina. Mas busca um tipo especial de mulher: a mulher superior, em cujo ventre quer gerar um filho, o filho perfeito, por meio do qual pretende imortalizar-se. E no afã de encontrar a mulher superior, que precisa ser destituída do sentimento do medo, ele não sente o menor constrangimento ou a menor piedade em matar todas aquelas que não servem para o seu propósito. Primeiro, elimina sua esposa, Lenita, que não pode ter filhos; em seguida, estupra e provoca o suicídio de Tereza, a noiva de seu único amigo, Antônio Siqueira de Araújo, a quem assassinara alguns dias antes; e, depois, causa a morte de cinco jovens – Jandira, Lídia, Vilma e as irmãs Dirce e Marina – que demonstraram fraqueza e não passaram no teste da coragem. Em sua longa busca pela mulher superior, Josefel Zanatas encontrou 46
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algumas mulheres que podiam ser classificadas como tal. Uma delas é Laura, que conseguiu ser engravidada por ele. Infelizmente, antes que a criança nascesse, Laura faleceu e, com isso, Josefel Zanatas teve interrompido – pelo menos temporariamente – o sonho de imortalizar-se por intermédio do filho perfeito. Resta dizer que em A Encarnação do Demônio Mojica demorou quase 40 anos para conseguir produzir esse filme –, Josefel Zanatas talvez veja finalmente o nascimento de seu filho.
2 - O Ze DO CAIXaO
Em 2002, o pesquisador e crítico Carlos Primati, um grande conhecedor de filmes de Horror/Terror, e o diretor e produtor Paulo Duarte estiveram em nossa casa, para entrevistar meu pai. Foi uma entrevista longa,8 na qual meu pai falou principalmente sobre seu trabalho com José Mojica Marins. Recordo-me de que em, determinado momento da entrevista, o Primati disse o seguinte: No À Meia-Noite, Josefel Zanatas sai em busca da mulher superior e não consegue encontrá-la. No Esta Noite, acontece a mesma coisa. Caso seja feito um terceiro filme em que ele apareça como protagonista, só há duas possibilidades: Josefel pode, enfim, encontrar a tal mulher... ou pode, mais uma vez, não encontrá-la. Portanto, na minha opinião, Josefel Zanatas é um personagem para apenas três filmes, justifica tão-somente uma trilogia. Trilogia essa iniciada com o À Meia-Noite Levarei Sua Alma, que prossegue com o Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver e que se encerrará com a fita em que ele encontrará ou não a mulher perfeita, a mulher superior, a mulher que gerará o filho tão desejado. Caso fosse realizado um quarto filme, o personagem cairia no ridículo. Além do mais, para mim, Josefel Zanatas não tem relação alguma com o Zé do Caixão, que surgiu a partir de O Estranho Mundo. Os dois são bem distintos entre si, apesar de quase todas as pessoas acharem que são um só personagem. A confusão começou porque ambos foram interpretados pelo mesmo ator: o Mojica.
8 Parte dessa entrevista, que foi gravada e filmada, está reproduzida, na forma de depoimento nos seis DVDs que integram a Coleção Zé do Caixão (coleção essa organizada por Carlos Primati & Paulo Duarte e lançada no final de 2002 pela Cinemagia).
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Nunca tinha ouvido alguém dizer isso. Então, nos dias seguintes, assisti atentamente aos quatro principais filmes de José Mojica Marins, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, O Estranho Mundo de Zé do Caixão e Ritual dos Sádicos / O Despertar da Besta, e também cheguei à conclusão que, com exceção de terem sido interpretados pelo mesmo ator e usarem trajes semelhantes, Zé do Caixão e Josefel Zanatas são personagens totalmente distintos. Como já foi dito, Josefel Zanatas é um agente funerário. É irascível, violento. É também um frio assassino. Não parece ter muita instrução. Acredita apenas em si mesmo e na perpetuação do sangue. Vive num lugarejo próximo de São Paulo. Quanto a Zé do Caixão... Bem, na verdade, pouco sabemos a respeito de Zé do Caixão. Para ser mais exato, sabemos apenas uma coisa a respeito dele: é um profundo conhecedor de casos estranhos, casos sobrenaturais, que apresentou não somente no filme O Estranho Mundo, mas também em três séries produzidas para a televisão – Além, Muito Além do Além (Rede Bandeirantes de Televisão, canal 13, setembro de 1967 - julho de 1968, 34 episódios), O Estranho Mundo de Zé do Caixão (Rede Tupi de Televisão, canal 4, julho de 1968 - novembro de 1968, 13 episódios) e Um Show do Outro Mundo (Rede Record de Televisão, canal 7 agosto de 1981 - outubro de 1981, 12 episódios) – fotonovelas e histórias em quadrinhos publicadas nas revistas O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1969, seis números), Impacto (1970, um único número) e Zé do Caixão no Reino do Terror (1970, dois números).
Mas quem e o Ze do Caixao?
Segundo o cineasta Ivan Cardoso, que realizou O Universo de Mojica Marins (1978), um documentário sobre a vida e a obra de José Mojica Marins, Zé do Caixão é um personagem “supermisterioso”.9 E o mistério do personagem aumenta ainda mais por desconhecermos por completo o local onde ele vive. Temos somente 9 Ivan Cardoso, Um Dark Muito Antes dos Darks, in O Estranho Mundo de Zé do Caixão, Porto Alegre, L&PM, verão de 1987, p. 3.
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a certeza, de acordo com suas próprias palavras no prólogo de Ritual dos Sádicos / O Despertar da Besta, de que habita um “mundo estranho”. Porém, que mundo é esse? É o nosso? É um universo paralelo? É um mundo além, muito além do além? Quem sabe...? Por outro lado, Zé do Caixão está vivo? Está morto? Ou, a exemplo do Conde Drácula e outros vampiros, nem vivo nem morto; mas VIVENDO NA MORTE? Então, retornemos à pergunta: “Quem é o Zé do Caixão?” Talvez Zé do Caixão seja um feiticeiro, um bruxo (chega-se a essa conclusão, levando-se em consideração o final de cada episódio de Além, Muito Além do Além, em que o personagem lançava uma maldição aos telespectadores); ou talvez seja um ocultista (daí conhecer tantos casos sobrenaturais); ou talvez possa ser um íncubo10 (o cartaz do filme O Estranho Mundo, que mostra Zé do Caixão e um grupo de cerca de quinze mulheres trajando calcinha e sutiã,11 leva-nos a pensar isso); ou talvez, ainda, seja uma entidade e, como toda entidade, passível de devoção, admiração, veneração... E novamente perguntamos: “Quem é o Zé do Caixão?” Agora, é o próprio Zé do Caixão quem nos dá a resposta: Quem sou não interessa, como também não interessa (...) quem somos. (...) Não se dê ao trabalho de pensar porque a conclusão seria: a loucura. O final de tudo, para o início do nada.12
10 Íncubo é um demônio masculino que, de acordo com crendices muito antigas, vem à noite copular com uma mulher, perturbando-lhe o sono e provocando-lhe pesadelos. 11 O cartaz de O Estranho Mundo de Zé do Caixão foi realizado a partir de um pôster criado pelo pesquisador de fotografia e fotógrafo Boris Kossoy. 12 A Filosofia do Zé do Caixão – Quem Sou Eu, in O Estranho Mundo de Zé do Caixão, n. 1, São Paulo, Prelúdio, janeiro de 1969, p. 2.
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À Meia-Noite Levarei Sua Alma
* Marco Aurélio Lucchetti – Filho do roteirista Rubens Francisco Lucchetti, é doutor pela USP, professor e pesquisador de Cinema e Quadrinhos.
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Isto não é um sonho a transfiguração do comum no cinema de Michel Gondry Cid José Machado dos Santos Junior*
RESUMO: O objetivo do presente artigo é o de relacionar as obras cinematográficas do diretor Michel Gondry às vanguardas artísticas, principalmente em relação aos ready mades de Marcel Duchamp e à Pop Art de Andy Warhol. Como ferramentas teóricas principais serão utilizados os conceitos apresentados por Arthur C. Danto em sua obra A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. PALAVRAS-CHAVE: Cinema contemporâneo, vanguardas artísticas, experimentalismo uma fileira de cabos de vassoura postos na vertical, a intervalos regulares, ao redor da sala bem poderia imitar – ou “espelhar” – o peristilo de Karnac: sem necessidade alguma de colunas. (Arthur C. Danto)
Ao observarmos o panorama atual da produção de longas-metragens de Hollywood nos deparamos com obras que tendem a abordar o universo do fantástico através de adaptações sombrias de histórias em quadrinhos, graphic novels e bestsellers caracterizadas por efeitos especiais ultra-realistas. Desde o lançamento do filme Exterminador do Futuro II, de James Cameron, em 1992, as imagens geradas por computador têm se integrado cada vez mais às imagens filmadas, tornando indissociável o material captado da realidade e o que pertence exclusivamente ao universo digital. Até os desenhos animados deixaram de ser criados no papel e ganharam um acabamento tridimensional com texturas e iluminação capazes de rivalizar - e em alguns casos ultrapassar – a qualidade das mais caras superproduções com as grandes estrelas do momento.
Eis que em meio a essa homogeneização da sensibilidade do especta-
dor, ao excesso de realismo e temas pessimistas um diretor se destaca ao propor um OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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cinema cotidiano, onírico, mágico e melodramático com efeitos e trucagens artesanais que remetem aos pioneiros da história desta atividade. Esse diretor é o francês Michel Gondry. Neto do criador do Clavioline, um dos primeiros modelos de sintetizadores, filho de um programador de computadores e de uma pianista, Gondry é considerado um dos artistas mais criativos de seu tempo. Formado em artes gráficas em Paris, experimentou os mais diversos meios de expressão como o desenho, a música, o videoclipe, a publicidade e, por último, o cinema. Com essa perspectiva ampla, ele foi capaz de renovar a estética do cinema norte-americano contemporâneo, tendo como principal parceiro o até então roteirista Charlie Kaufman e com o qual dividiu o Oscar de melhor roteiro original do ano de 2005 pelo filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças e, entre 2005 e 2006, foi artista residente do M.I.T. - Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Frequentemente os cenários e objetos dos filmes e videoclipes de Gondry são feitos de materiais recicláveis ou caseiros, como o papelão ou o celofane, e a audácia de realizar obras audiovisuais com essas características em meio à maior e mais competitiva indústria de entretenimento do mundo, aliada a uma estética minimalista, nos remete ao posicionamento artístico de grandes nomes da história da arte como Marcel Duchamp e Andy Warhol. É a partir dessa relação que desenvolveremos este trabalho. O início do século XX foi marcado por convulsões econômicas e sociais, principalmente pela 1ª Guerra Mundial que gerou conflitos de toda ordem, os quais refletiram diretamente na arte deste período. Dentro do movimento que ficou conhecido como Dadaísmo, que segundo Argan (1992:355) tinha por objetivo “ironizar e desmistificar todos os valores constituídos pela cultura passada, presente e futura”, destacou-se a figura de Marcel Duchamp, pintor e escultor francês que é considerado pelo professor de filosofia e crítico de arte Arthur C. Danto (2006:24): o primeiro a realizar na história da arte o sutil milagre de transformar objetos do Lebenswelt cotidiano em obras de arte: um pente de pêlos, um porta-garrafas, uma roda de bicicleta, um urinol.
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No fronte do fazer artístico, Duchamp lutava contra a figura romântica e heróica do artista, considerado um ser especial e adorado pela sociedade que lhe foi contemporânea. Por isso buscou incessantemente uma nova abordagem em que o olhar ou o trabalho manual do artista fossem abolidos. A resposta a essa busca resultou justamente nos ready mades: objetos comuns fabricados por outras pessoas ou máquinas que não tinham qualquer relação com a produção artística. Ao retirar esses objetos de seu contexto original e apresentá-los em um novo e inusitado, sob a condição de obra de arte, Duchamp além de romper com a cultura artística utilitária e a sociedade que transmitiu essa cultura até àquele ponto da história, abriu um novo caminho para interpretações e possibilidades de expressão. A postura de dissociar a figura do artista, em seu esforço físico e ritualístico, na execução de seu trabalho da própria obra ressaltou que, segundo Danto (Degen, 2005:132): A arte estava na idéia, independente de quem a executasse.
O sucesso de sua pintura Nu descendo a escada, no Armory Show de
Nova Yorque em 1912, após a mesma obra ter sido recusada pelo Salão de Outono de Paris de 1911 proporcionou a Duchamp a oportunidade de abandonar a pintura e a imobilidade do cenário artístico europeu e investir em novos trabalhos na América. Sua principal obra desenvolvida foi A noiva despida pelos seus celibatários, mesmo ou O grande vidro. Resultado de extensos estudos do artista sobre perspectiva e movimento, o trabalho consiste numa espécie de painel de vidro transparente dividido em duas partes: uma superior e outra inferior, cada uma contendo uma série de objetos como cabides, tecido, engrenagem interligados entre si de forma a denotar um mecanismo e a presença ou não das personagens do título. Duchamp realizou cálculos complexos para posicionar esses objetos e o processo de realização ocorreu entre 1918 e 1923, enquanto outras obras foram realizadas pelo escultor.Quando a obra foi transportada de seu ateliê para uma exposição o vidro trincou acidentalmente e só então o artista considerou a obra acabada.
Tomando como ponto de partida a postura diante da arte exemplifica-
da por Duchamp, podemos observar que ele frutificou mais tarde em outras gerações OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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de artistas como em Andy Warhol.
Warhol também pertenceu a um período marcado por transforma-
ções políticas e sociais: os anos 60 e 70. A sombra da Guerra Fria, a luta pelas conquistas do indivíduo e o florescimento da cultura e da comunicação constituíram um novo cenário que proporcionou o surgimento de movimentos artísticos como a Pop Art, que legitimou a cultura popular e de consumo em contraste à cultura elitista das galerias de arte. Os programas de TV, as revistas, o cinema e as histórias em quadrinhos repentinamente foram elevados ao status de arte. O imaginário da cultura de massa dividiu o mesmo espaço com as obras de arte clássicas dentro das galerias, substituindo o épico pelos acontecimentos e objetos do cotidiano do cidadão comum. O impacto da pop art foi tão inesperado e intenso que Danto não encontrou outra saída que não fosse decretar o fim da história da arte, ao menos de como a arte era conhecida até aquele ponto. Essa ruptura abriu uma nova perspectiva para além do campo artístico. Em entrevista, Danto relatou (Degen, 2005:129): Eu não tinha interesse filosófico pela arte até o advento da pop art [...] De repente, na arte avançada das décadas de 60 e 70, arte e filosofia estavam prontas uma para a outra. [...] elas precisavam uma da outra para se diferenciarem.
Andy Warhol graduou-se em design e, como outros representantes do movimento, começou sua carreira na publicidade criando cartazes e anúncios de revistas. Daí em diante passou a colecionar diversos prêmios até chegar à sua primeira exposição individual, que circulou em diversos lugares nos anos 50 até chegar ao MOMA de Nova Yorque. 54
Mas foi na década de 60 que Warhol realizou suas obras de maior im-
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portância como as serigrafias múltiplas em que retratou os rostos de figuras famosas como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Che Guevara do mesmo modo como as latas de sopa Campbell, garrafas de Coca-Cola e ícones da história da arte como a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci . Esses trabalhos eram realizados serialmente com variações de cores e a equivalência destes símbolos sintetizou visualmente o ideal artístico da pop art. Retomando as idéias de Duchamp e seus ready mades, Warhol apresentou ao mundo em 1964 o seu ultimato em relação ao conceito tradicional de obra de arte: as Caixas de Brillo. Tratava-se de réplicas perfeitas de caixas do sabão em pó Brillo feitas de compensado, que foram empilhadas como se faz no supermercado, mas estavam em uma galeria de arte. Danto, que estava presente nesta exposição, ficou tão instigado por ela que formulou algumas questões em um texto que mais tarde tomou a forma do livro A transfiguração do lugar- comum uma filosofia da arte, em 1981. Nesta obra, o autor analisa a contribuição de Warhol na relativização do conceito de arte e investiga esse processo de metamorfose em que objetos banais do cotidiano se transformam em obras de arte. Para Danto é fundamental a noção de que (2006:19) A obra de arte é um veículo de representação que corporifica seu significado. E a ferramenta para desvendarmos esse significado é a interpretação. Daí ele conclui que (2006:19) A obra é o objeto mais o significado uma vez que neste novo contexto da arte, sentido e forma podem estar dissociados. Outra ferramenta bastante afim aos propósitos da pop art utilizada por Warhol foi o cinema. A filmografia de Warhol corrobora sua atitude de nadar contra a corrente ao apresentar filmes totalmente diferentes entre si, e fora dos padrões tradicionais de realização: ausência de roteiro, câmera imóvel, pouca ou nenhuma movimentação dos personagens, fotografia e som de baixa qualidade, utilização de não atores e não narrativa, a qual impedia o processo de identificação tão caro a Hollywood. Essas obras ficaram conhecidas por retratar momentos do cotidiano de pessoas desconhecidas, tomando para si uma aura de realidade, como nos atuais reaOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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lity shows. Mas como no atual formato televisivo, Warhol manipulava a performance de seus personagens, porém, com um objetivo totalmente diferente. O diretor pedia para eles alongarem o tempo de suas ações o máximo possível e alterava a velocidade do projetor para que a ação filmada demorasse ainda mais tempo que o normal. O ato de comer um cogumelo em um filme de Warhol durava quarenta e cinco minutos. Os primeiros filmes são os mais radicais em sua proposta, talvez por isso os mais lembrados. O primeiro e mais emblemático dessa estética do tempo alongado é Sleep, de 1963, com duração de seis horas e retrata exatamente o ato e o tempo de uma pessoa dormir. Ainda aí, Warhol repetiu trechos do sono, montando uma duração fictícia. Mas as pessoas não precisavam assistir às seis horas do filme em que nada acontecia para serem provocados pela idéia do diretor. E o fato desses filmes serem mais comentados do que vistos confirma o poder da idéia por trás deles. Warhol decidiu filmar o cotidiano de forma mais alongada e estática por influência do minimalismo, por perceber que a ausência de movimento seria a antítese do que se praticava em cinema naquele momento e finalmente porque observou que naquela época as pessoas consumiam muita anfetamina para aproveitar a vida agitada nas grandes cidades. O efeito dos filmes de Warhol nos espectadores que se submeteram à experiência foi semelhante a um transe, pois após a excessiva permanência de expressões neutras e da monotonia, o simples fato de piscar os olhos se transformava em evento estético marcante. Segundo David Bourdon o maior legado do cinema inicial de Warhol foi a maneira como ele deliberadamente inovou certas convenções ao estender e redefinir nossa noção de realidade através de seu tratamento único da duração do tempo. Com essa perspectiva das inovações realizadas por Marcel Duchamp e Andy Warhol no campo da arte podemos agora analisar as influência destes dois artistas nas obras do diretor Michel Gondry (sob novo prisma). O nome de Gondry recebeu projeção a partir de sua colaboração com a cantora Björk, que o convidou para trabalhar com ela assim que viu o videoclipe da música La Ville na MTV, que o diretor francês havia feito para sua banda Oui, Oui e
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da qual ele era o baterista. Daí em diante Gondry passou a receber convites de diversas bandas famosas do mundo inteiro que o ajudaram a estabelecer-se como um dos mais criativos diretores de videoclipe. Logo o diretor foi convidado para também dirigir comerciais para a TV, e seu comercial para uma campanha da Levi´s 501 Jeans entrou para o livro dos recordes de 2004 como o comercial de TV que mais ganhou prêmios. Com um currículo invejável, Gondry se preparou para o passo seguinte de sua carreira: o cinema. Dirigiu em 1998 o curta-metragem A Carta, que lhe rendeu prêmios e a indicação de seu amigo Spike Jonze, também diretor de videoclipes e comerciais, para dirigir seu longa-metragem de estréia Natureza Quase Humana, de 2001, a partir do roteiro de seu futuro colaborador Charlie Kaufman. No mundo fantástico dos filmes de Gondry, que nos remete à infância, as nuvens são de algodão e o sonho uma fuga extremamente agradável. O personagem principal não tem por objetivo destruir um vilão superpoderoso, mas encontrar a melhor maneira de conquistar a garota pela qual se apaixonou ou lutar consigo mesmo para resgatar as memórias de um amor perdido. Michel Gondry está inserido no contexto dos reflexos da arte pós-pop e pós-moderna. Sua personalidade e obras surpreendentes e excêntricas espelham grandes nomes da arte do passado como Marcel Duchamp e Andy Warhol, pois Gondry se apropria de características de algumas vanguardas artísticas que permearam a vida desses dois expoentes para se destacar das produções que constituem o padrão do mercado cinematográfico de Hollywood na atualidade. O diretor apresenta em seus trabalhos cenários improvisados com material reciclado, papelão e celofane dignos de um ready made de Duchamp ou das colagens de Warhol, como o estúdio de TV nos sonhos do personagem Stephane de Sonhando Acordado e um panorama animado de Paris no mesmo filme. Ele provoca ao romper com a narrativa clássica fragmentando o tempo e o espaço, notadamente em Brilho eterno de uma mente sem lembranças, assim como Warhol introduziu o monótono e a manipulação técnica para alcançar uma outra forma de experimentar o tempo em sua obra cinematográfica. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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Em seus filmes, Gondry resgata a importância dos objetos do cotidiano, fazendo-os inclusive ganhar vida através da técnica de animação stop motion. Essa característica é extremamente afim aos conceitos trabalhados tanto por Duchamp no dadaísmo quanto por Warhol na pop art. O realizador francês tem uma visão artística de mercado, pois possui um site no qual vende diversos produtos, entre os quais seus vídeos mais importantes através de selo próprio, revistas em quadrinhos que desenhou, é possível até encomendar caricaturas desenhadas por ele. Gondry tornou-se uma marca e em atitude clara de autopromoção ele vende suas idéias e rascunhos em rolos de papel higiênico por 13.95 dólares. Uma postura autocrítica, mas rentável. Warhol tinha uma mistura de empresa, ateliê e ponto de encontro da vanguarda da arte chamada de The Factory, ou seja, A Fábrica. Foi lá que o artista começou a fazer suas famosas serigrafias pessoalmente. Com o tempo ele passou a conceber os projetos para serem executados por seus funcionários. Warhol cobrava 25 mil dólares para fazer um retrato e agenciava outros artistas, entre eles a banda de rock Velvet Underground. Tanto Gondry quanto Warhol trabalharam com a linguagem publicitária, o que acabou influenciando em suas obras artísticas. O primeiro, com seus comerciais de TV surreais, e o segundo, com seus anúncios para revistas e cartazes. Ambos os artistas se envolveram com a cena musical; Gondry inicialmente como bateirista da banda Oui,Oui bem como diretor de videoclipes para diversas bandas e Warhol produzindo capas de discos LP e a própria banda Velvet Underground. Gondry, assim como Warhol, foi comparado ao pioneiro do cinema Georges Mèliés, pois ambos trabalharam com elementos rudimentares e conceitos inovadores que remetem ao frescor das primeiras experiências da sétima arte. É possível observar semelhanças entre Gondry e o movimento da pop art também em relação ao uso de cores saturadas, ao apelo aos sentidos e símbolos universais facilmente reconhecidos por todos, à fusão da arte erudita e arte popular e talvez o cineasta francês esteja ainda mais próximo da pop art do que o próprio Warhol, com relação ao cinema, pois seus filmes são parte de uma cultura mais ampla
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do mercado, mais acessível aos consumidores do mundo todo e seu maior sucesso contou com história de amor com um elenco estelar como o ator Jim Carrey e a atriz Cate Winslet e, por mais experimental que seja a estrutura dos filmes de Gondry, eles são compreensíveis, pois retomam informações e até redundam no diálogo. Já Warhol era mais da cena alternativa. Seus filmes eram herméticos e se adequavam mais às galerias de arte do que às salas de cinema. Para concluir o ciclo de semelhanças com Duchamp e Warhol, Michel Gondry voltou às suas raízes, desenvolvendo projetos de exposições interativas com objetos e cenários desenvolvidos por ele e as equipes de seus filmes como em 2006 no SoHo de Nova Yorque com The Science of Sleep: An Exhibition of Sculpture and Pathological Creepy Little Gifts do filme Sonhando Acordado e Rebobine, Por Favor em 2008 e 2009 pelo mundo todo. Nos últimos anos Gondry tem criado diversos projetos de videoinstalação com seu amigo e também parceiro de roteiros Pierre Bismuth, que é um artista conceitual. Diante desta análise de semelhanças entre essas três personalidades marcantes de diBrilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
ferentes períodos da história da arte pudemos avaliar a continuidade ou a retroalimentação da mesma com o passar do tempo e com a evolução das ferramentas de expressão. Pudemos também colocar em perspectiva um artista importante do cinema contemporâneo cuja obra cinematográfica busca uma marca pessoal, artesanal em oposição ao sistema massificador, industrial e impessoal ao qual pertence. A liberdade de criação de Gondry parece espontânea. Como se ele pudesse fazer o que quisesse, como um menino em seu melhor brinquedo na definição de Orson Welles em relação ao seu contrato para realizar Cidadão Kane. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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Gondry parece estar zombando do espectador com seu não realismo. Seu lado infantil nos convida permanentemente ao faz de conta, aos brinquedos, à fantasia, aos jogos e brincadeiras. Ao mesmo tempo através da metalinguagem ele nos lembra que estamos assistindo a algo construído, exibindo os artifícios utilizados em seus truques de mágica cinematográfica através de objetos como a máquina de viajar no tempo de um segundo de Sonhando Acordado, que remete ao processo de edição do próprio filme e é realizado pelo protagonista. Em uma espécie de surrealismo terno, Gondry deforma o tempo e o espaço para nos lembrar que a realidade também é resultado de uma construção e que as lacunas entre o espaço, a memória e o tempo são a própria vida. Resultado da pluralidade dos meios de comunicação e da arte contemporânea, Gondry mistura simultaneamente a ousadia dos inovadores da vanguarda e a ingenuidade e o romantismo dos amadores.
referencias BIBLIOGRAFIcAs
ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. CAUQUELIN, A. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DANTO, A.C. A transfiguração do lugar-comum uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac & Naify, 2006 DEGEN, N. Filosofia da arte, entrevista com Arthur C. Danto in Revista Novos Estudos Cebrap,nº 73, São Paulo: Novembro de 2005. DUFRENNE, M. Estética e filosofia. São Paulo: Perspectiva, 1981. Mayshark, J. Post-pop cinema: the search for meaning in new American film. Greenwood Publishing Group, 2007.
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WEBGRAFIA
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* Cid José Machado dos Santos Junior é bacharel em Imagem e Som pela UFSCar, produtor audiovisual e professor do Centro Universitário Barão de Mauá e da Escola de Criação e Artes Visuais Immaginare- cid@immaginare.art.br.
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Dois artigos de Luchino Visconti Alex Calheiros*
O neo-realismo italiano não nasceu como fungos depois de uma chuva, na lúcida expressão de Umberto Barbaro, querendo corrigir uma tendência míope da crítica internacional, especialmente francesa, que compreendia o novo cinema italiano como uma espécie de milagre, irrupção sobrenatural, num mundo de pobreza e ruínas. Somente um total desconhecimento do panorama intelectual italiano nos anos que marcaram o fim da ditadura fascista, aliado ao entusiasmo, no mais próprio de uma crítica também ansiosa por novidades, num panorama árido como era o de então, poderia assentir uma leitura tão fácil.
Os artigos que ora apresentamos traduzidos: cadáveres e tradição e in-
venção, assinados por Luchino Visconti entre 1941 e 1943, visam, de alguma forma, contribuir para o preenchimento da lacuna existente no Brasil de material para pesquisas sobre um momento tão importante para a cultura cinematográfica mundial. Tais artigos marcam, de modo exemplar, um momento importante e muito curioso da história do cinema italiano, quando, no início da década de quarenta, um grupo de jovens críticos, redatores de Cinema, periódico dirigido por Vittorio Mussolini, o filho do duce, começou a fazer frente ao ambiente cultural e político italiano que vivia, já há duas décadas, sob o regime fascista. Para que fique claro, Obsessão, por exemplo, o primeiro filme dirigido por Luchino Visconti, mas realizado em colaboração, assim como boa parte dos artigos publicados em Cinema, foi justamente o primeiro resultado, ponto de partida, na opinião de alguns, da explosão cinematográfica ocorrida na Itália naqueles anos difíceis.
A resistência política e cultural empreendida pelos “jovens turcos” da
revista Cinema, a revista na qual saíram publicados os textos aqui traduzidos, visava a uma crítica radical do cinema produzido até então, mas, ao mesmo tempo, estava OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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engajada num projeto de renovação total do cinema italiano. Estes artigos são documentos daquele momento utópico e crucial para a história do cinema. A escolha de publicá-los traduzidos na revista Olhar não é de forma alguma aleatória, pois segue de perto um itinerário crítico que desemboca naturalmente nas obras primas do cinema italiano do pós-guerra, dando-nos - ainda que parcialmente – elementos para uma sólida iniciação ao neo-realismo italiano. O cinema neo-realista italiano já faz parte da nossa cultura cinematográfica, mas, grande parte do material a ele referente, infelizmente, continua inacessível ao público brasileiro, impedindo justamente que se inicie um debate mais especializado e também mais democrático acerca e um momento importante para a compreensão, não apenas da história do cinema italiano, mas, da nossa própria história, pois, não há dúvida, o neo-realismo italiano está na base das inovações que vimos eclodir em todo o mundo na década de sessenta com os assim chamados “cinemas novos”.
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Cadáveres1 Luchino Visconti
Andando por certas sociedades cinematográficas, acontece que se topa muito frequentemente com cadáveres que se obstinam a crer-se vivos. Terá acontecido aos outros, como a mim, tê-los em princípio encontrado e não tê-los identificado: porque, quando estão em circulação, estão vestidos como eu e vocês. Mas aquele processo de decomposição, que está neles escondido em ato, todavia, difunde um fedor de estragado, que não escapará mais a nenhum nariz um pouco experimentado. Nos casarões moderníssimos, onde agora têm sede certas sociedades, os escritórios dão todos para longos corredores com tantas portas laterais, e no batente de cada uma, tantas placas iguais, com o nome do ocupante: um columbário no cemitério. Já aconteceu de, por acaso, eu me encontrar abrindo uma dessas portas na presença de ceninhas memoráveis. Um velhinho saltitante pela sala, tomado pelo frenesi numa fúria inspiradora, sob os olhos de um contemporâneo com papos de antigo peru, que, imóvel, atrás do amplo escritório de madeira clara, segue os passos quebrando pastilhas de urotropina, vigilante com a serpente que depois papará o coelho. Personagens assim marcam encontros no tardar das horas vespertinas ao término de uma penosa digestão, a inventar livretes de melodrama que já existem sem que eles saibam. Se nunca se apresentou a vocês a ocasião de ter de conferir a algum destes senhores e ter de expor, com um fio de repugnância, os seus sonhos, as suas ilusões, a sua fé, os terão contemplado com o olho ausente do sonâmbulo, e no fundo da sua órbita opaca lhes parecerá aflorar-se o frio da morte. Vem deles, frente aos seus argumentos, como de certa personagem de Poe, que, 1 Publicado no n 119 da revista Cinema, de 10 jun. 1941, p. 336. Trad. Alex Calheiros e Pedro Heise; rev. Mariarosaria Fabris. Apesar de ser assinado só por Luchino Visconti, o artigo é também de autoria de Gianni Puccini. Cf. Lino Miccichè, Luchino Visconti: um profilo critico, p. 6. (N. do T.)
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morto já há algum tempo, mas conservado intacto no corpo por uma vontade magnética possante, esta vindo-lhe de repente a faltar, corrompe-se e dissolve quando menos se espera. Vivem, já mortos, ignorantes do progredir do tempo, do reflexo das coisas todas extintas, daquele seu mundo descolorido, onde a gente circulava impune sobre os pavimentos de papel e gesso, onde os cenários oscilavam no respirar de uma porta repentinamente aberta, onde floresciam perpetuamente roseiras de papel de seda, onde estilos e épocas se fundiam e confundiam magnânimos, onde, para que se possa entender, Cleópatras art nouveau, de aplique, vampirizavam (colocando-os sob o chicote) sombrios pedaços de Marco Antonios de espartilho. Saudosizam-se teatrinhos de pose em alpendres de vidro como os das estufas de flores, gabinetes fotográficos à periferia. Às vezes os surpreenderão de noite, entre a meia-noite e a lua, quando, furtivos e com a inocência do colegial que cortou a corda depois do silencia, correm para reencontrar a amiguinha jovem que os deixe chorar um pouco no seu ombro. Metem-se então por sobre certas escadinhas que cheiram a fenol. No sono partilham terríveis pesadelos: ao nascer do dia, acordados de sobressalto, atacados do fígado que reclama o seu Schoum, à luz incerta do quarto não sabem mais se estão vivos agora, ou se viveram. Não vão nunca ao cinema. Que os jovens de hoje, que são tantos e que vêem se nutrindo, por hora, apenas de santa esperança, todavia impacientes por tantas coisas que têm para dizer, devam encontrar-se como bastões entre as rodas destes muito numerosos cadáveres, hostis e desconfiados, é coisa muito triste. O tempo deles acabou e eles ficaram: e não se sabe por quê. Consintam, pois, serem colocados na vitrine, e nos inclinaremos todos nós. Mas como não deplorar que ainda hoje a muitos destes seja consentido ter em mãos a chaves do cofre e mandar e desmandar? Nunca virá o dia desejado, no qual às forças jovens do cinema será concedido dizer claro e direto: “os cadáveres no cemitério?”
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Tradição e invenção2 Luchino Visconti
Uma recente polêmica sobre as relações entre a literatura e o cinema situou-me espontaneamente no grupo daqueles que têm fé na riqueza e validade, para o cinema, de uma inspiração “literária”. Confesso que, tendo a intenção de iniciar uma atividade cinematográfica, uma das maiores dificuldades que me parecem fazer obstáculo ao meu desejo e à minha ambição de compreender o filme apenas como uma obra de poesia seja a consideração da banalidade e, se me permitem dizer, da pobreza que é tão freqüente na base da comunidade roteirística. Parecerá talvez óbvio, mas perguntei-me várias vezes por que, enquanto existe uma sólida tradição literária – que em diversas formas de romance e de conto realizou na fantasia tão sincera e pura “verdade” da vida humana -, o cinema, que na sua acepção mais exterior desta vida pareceria dever ser exatamente o documentador, compraz-se ao viciar o público no gosto pela pequena intriga, pelo retórico melodrama no qual uma coerência mecânica garante desde já o espectador também do risco da fantasia e da invenção. Em tal situação torna-se natural, para quem acredita sinceramente no cinema, voltar os olhos com nostalgia para as grandes construções narrativas dos clássicos do romance europeu e de considerá-los hoje, talvez, a fonte mais verdadeira de inspiração. É bom ter a coragem de dizer mais verdadeira, ainda se alguém calar esta nossa afirmação de impotência ou ao menos de rara pureza “cinematográfica”. Com a cabeça cheia desses pensamentos, andando um dia pelas ruas da Catânia e percorrendo a Planície de Catalgirone em uma manhã sirocosa, enamoreime de Giovanni Verga. A mim, leitor lombardo, habituado por tradicional costume ao límpido 2 In: V.A. Stile italiano nel cinema. Milano, Garzanti, 1941, v. VIII, pp. 78-79. Trad. Alex Calheiros e Pedro Heise; rev. Mariarosaria Fabris.
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rigor da fantasia manzoniana, o mundo primitivo e gigantesco dos pescadores de Aci Trezza e dos pastores do Marineo aparecia sempre elevado num tom imaginativo e violento de epopéia: aos meus olhos lombardos, também contentes do céu da minha terra que é “tão belo quando é bela”, a Sicília de Verga parecia realmente a ilha de Ulisses: uma ilha de aventuras e tórridas paixões, situada imóvel e bravia contra os vagalhões do mar Jônio. Pensei assim em fazer um filme sobre I Malavoglia. Desde que decidi não descartar este pensamento como o fruto imprevisto de uma comoção solitária, mas buscar de todos os modos realizá-lo, as dúvidas íntimas, as sugestões da prudência, e a consciência das dificuldades sempre cederam frente ao entusiasmo de poder dar uma realidade visível e plástica àquelas figuras heróicas que têm como símbolo toda força alusiva e secreta sem haver a frieza abstrata e rígida. Então, confortou-me o pensamento de que, também aos leitores comuns, mesmo em um primeiro contato superficial, a força e a sugestão do romance verguiano aparecem todas apoiadas sobre o seu ritmo íntimo e musical: e que a chave de uma realização cinematográfica sobre I Malavoglia está talvez toda aqui, isto é, em tentar escutar de novo e colher a magia daquele ritmo, daquela vaga ânsia pelo desconhecido, daquele dar-se conta de que não se está bem ou que se poderia estar melhor, que é a substância poética daquele jogo de destinos que se cruzam sem nunca se encontrarem, do trágico logro dos tremoços ao amor sem esperança de comadre Mena, à morte sem justiça de Lucca, ao último desesperado abandono de ‘Ntoni. Um ritmo que dá o tom religioso e fatal da tragédia antiga a este humilde evento da vida de cada dia, a esta história feita aparentemente de refugos, de recusas, de coisas sem importância, neste pedaço de “crônica” provinciana, emoldurado entre o rumor monótono das ondas que se abatem contra os Faraglioni e o canto inconsciente e santo de Rocco Spatu, que é sempre o primeiro a começar seu dia porque é o único a ter surrupiado o segredo de não pagar em sofrimentos, em lágrimas e suor, a existência que lhe foi determinada pelo destino. Não pareça estranho que, ao falar de uma eventual realização cinemato-
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gráfica, eu insista tanto sobre elementos sonoros, os quais, o fragor do mar, o som da voz de Rocco Spatù, o eco do rumor da carroça do compadre Alfio que não pára nunca: porque quero logo advertir que se um dia tiver a sorte e a força de realizar o filme sonhado sobre I Malavoglia, a justificação mais válida para a minha tentativa será certamente a ilusão que em uma hora distante tocou a minha alma, dando-me a convicção de que para todos os espectadores, como para mim mesmo, apenas o som daqueles nomes – padron ‘Ntoni, Malavoglia, Bastianazzo, a Longa, Sant’Agata, “A providenza” – e daqueles lugares – Aci Trezza, o Capo dei Mulini, o Rotolo, a Sciara, servirá para escancarar um cenário fabuloso e mágico, no qual as palavras e os gestos deverão ter o religioso relevo das coisas essenciais à nossa caridade humana.
* Alex Calheiros, professor de ética e filosofia política do Departamento de filosofia da Universidade de Brasília(UnB); e Pedro Heise, doutorando na Universidade de Roma II (tor vergata). Texto revisto por Mariarosaria Fabris, professora associada da Universidade de São Paulo (USP); pesquisadora das áreas de literatura italiana e cinema; autora, entre outros, de Nelson Pereira dos Santos. Um olhar neo-realista? São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1994.
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Delphine Seyrig em “O Ano passado em Marienbad” Sônia Maria Oliveira da Silva*
O Ano passado em Marienbad, filme de Alain Resnais a partir de roteiro de Alain Robbe-Grillet, mostra uma cena de sedução. Esta se passa em um luxuoso hotel, onde uma mulher, acompanhada de seu provável marido, é constantemente assediada por um segundo homem. Maiores detalhes sobre os personagens e o lugar onde se encontram são omitidas. O filme é todo uma incógnita, sendo os personagens identificados apenas no roteiro pelas não menos enigmáticas letras X (Giorgio Albertazzi), A (Delphine Seyrig) e M (Sacha Pitoëff). X tenta convencer A de que ambos já se haviam conhecido no ano passado, nesse mesmo hotel, onde marcaram o reencontro atual. A nega tais fatos. M, acompanhante de A, surge em vários momentos da história, mas não intervém diretamente no conflito entre a mulher e seu sedutor. Não-linear, o filme tem uma narrativa repetitiva. Distinguir entre o presente diegético do filme e o passado imaginado pelos personagens será menos uma reconstituição das intencões do autor feita por algum espectador ideal1 que uma operação de re-criação a ser elaborada pela recepção. Categorias temporais como realidade e imaginário não são indicadas na tela, sendo apenas pontuadas na decupagem técnica dos arquivos de Sylvette Baudrot, script-girl do filme.2 O espectador tem então um amálgama de imagens, uma 1 Esse tipo de demanda de um « espectador ideal » que faria o trabalho de organização das sequências é presente em filmes mais recentes como Pulp Fiction (Tarantino, 1994) e, posta de forma mais radical, Mulholland Drive (Lynch, 2001). 2 O quarto do personagem A (Delphine Seyrig), por exemplo, é descrito na decupagem de diferentes maneiras, sendo identificado como «Chambre État zéro A», «Chambre État B», «Chambre État C» indo até a letra H. A cada uma dessas indicações corresponde uma discreta mudança do cenário (às vezes dá-se mera mudança de posição de um objeto). Os quartos «État F», «G» e «H» são designados como pertencendo a um tempo imaginário. O quarto «État G» corresponde ao futuro. Outras indicações de ordem espácio-temporal são encontradas, tais como «Jardin Délirant», «Presque Réalité» ou «Vraie Chambre». Essas diferentes definições, porém, não são identificadas no filme.
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construção incessante de cenas que se desenrolam em um tempo indefinido. Dito de outro modo: as cenas em O Ano passado em Marienbad são representações de uma instância fabuladora, resultando uma teatralidade cinematográfica bastante singular. Esta sustenta-se sobre dois aspectos centrais: a representação que, de uma certa forma, constitui o próprio tema do filme e a atuação de Delphine Seyrig, cujo trabalho caracteriza o tipo de teatralidade presente. Ora, o ponto de vista predominante – se podemos identificar um – em O ano passado em Marienbad é dado pelo olhar de A, personagem de Seyrig. Esta empresta seus traços ao filme, cuja narrativa é marcada pela lassitude, incerteza e errância. Parecendo obedecer à curiosidade de um olhar « inquisidor », a câmera desliza pelos corredores, em travellings muito lentos, como se procurasse algo embora não se precise o quê. Em O ano passado à Marienbad, a camêra dá a ver uma realidade indefinida e às vezes assustadora, traços que caracterizam, insistimos, o personagem de Seyrig. Pier Paolo Pasolini, em seu texto Le cinéma de poésie ,3 nos fala de uma «força obsessiva» escondida atrás dos enquadramentos, dos ritmos e das montagens. Para ele, a subjetiva indireta livre é apenas um pretexto que permite ao autor, embora indiretamente, falar em primeira pessoa, fazendo-o de maneira essencialmente irracional. O ano passado em Marienbad é uma construção do olhar de A. Nesse contexto, cuja realidade é alterada, X, narrador que, à primeira vista, surge como aquele que dá as cartas, é, na verdade, mera criação de A. Por essa leitura, A passa de objeto a sujeito da ação. Ela vê-se a si mesma no lugar do objeto de desejo de um homem desconhecido, o que justifica o fato de A e X quase nunca dialogarem na presença de outros personagens. Porque trata-se de uma cena de conteúdo imaginário, carregado, evidentemente, de potência erótica, os encontros requerem, forçosamente, intimidade. «Esse jogo se joga a dois», dirá um 3 Cf. Pier Paolo Pasolini. Le Cinéma de Poésie, Cahiers du Cinéma, n° 171, octobre 1965, p. 63.
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dos personagens. Por trás dessa cena imaginária na qual um desconhecido tenta conquistá-la, A dá a ver igualmente a fantasia de mulher objeto, ou da mulher cativa, mas também a fantasia do corpo feminino impenetrável.4 A teria então fantasiado a existência de um estranho que invade sua estada e a de M no hotel. Assim, X, M e os anônimos que os cercam seriam personagens constitutivos da fantasia de A, que teria inspirado-se do conteúdo da cena teatral do início do filme para construir sua própria cena. Por esse motivo, ela assume postura idêntica à da personagem da peça. No final do espetáculo, mostrado nas primeira sequências de O ano passado em Marienbad, A aplaude os atores, em meio a outros espectadores, tendo já aí o braço cruzado sobre o torso e a mão direita pousada sobre o ombro esquerdo. Ela manterá essa posição, que evoca uma certa proteção do corpo, uma certa recusa de um suposto investimento externo, em quase todas as sequências do filme. Dada a importância que o personagem A ocupa no filme, pretendemos no presente artigo pontuar alguns aspectos do jogo cênico de Delphine Seyrig. Afastarnos-emos da análise fílmica para determo-nos sobre certos elementos pré-fílmicos.
De Beirute a Paris
Delphine Seyrig nasce em Beirute, em 1932, tendo passado sua infância em diversos países, estando essas mudanças motivadas pela carreira do seu pai, arqueólogo. Muda-se para a França em 1952 e, nesse mesmo ano, entra para o Centre Dramatique de l’Est, e participa também dos cursos de Roger Blin e Tania Balachova. Seus primeiros personagens foram interpretados no Théâtre du Quartier Latin, onde fez diferentes papéis nas peças da temporada 1951-1952. No ano seguinte, ela reaparece no Théâtre Comédie de Saint-Etienne, com o personagem Chérubin, na La folle journée ou Le mariage de Figaro (Beaumarchais), dirigida por René Lesage. Em 1956, muda-se para os Estados Unidos onde, durante três anos, será 4 Cf. J.-D. Nasio. L’hystérie – ou l’enfant magnifique de la psychanalyse, Éditions Payot & Rivages, Paris, passim.
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aluna de Lee Strasberg no Actor’s Studio. No manuscrito do prefácio do livro Le cinéma français des années 60, de Freddy Buache, ela fala de sua mudança para a América : J’avais, avec passion, vu, revu les films de Kazan et je ne comprenais pas comment fonctionnaient ses acteurs, Marlon Brando dans Un tramway nommé désir (1951), James Dean dans À l’Est d’Eden (1955), avec la délicieuse Julie Harris, dans La fureur de vivre (1955). Je trouvais magiques ces interprètes; j’étais surprise par ce qui se passait dans leur jeu. Professionnellement, j’avais envie de comprendre. Donc la possibilité de vivre à New York m’enchantait en me donnant le projet d’approcher l’Actor’s Studio. Je m’y rendis et fus reçue comme auditrice pendant un an, avant de suivre le cours privé de Lee Strasberg. Ce fut, pour moi, une formation essentielle. Je vivais dans un milieu de peintres, de poètes, ce qui me conduisit à jouer dans le film de Robert Frank, Pull my Daisy en 1959 […] . 5
Será em 1959, ano no qual, paralelamente à sua formação no Actor’s Studio, ela está em cartaz com o Inimigo do Povo (Ibsen, 1882), que o amigo William Klein apresenta-lhe Alain Resnais.
De Nova York a Marienbad
A filmagem de O Ano passado em Marienbad, em 1960, é o primeiro trabalho de Delphine Seyrig após seu retorno de Nova York. A atriz explica : Nous avions, de la sorte, à construire complètement cette femme rêvée, de ses chaussures à sa coiffure en passant par le maquillage. Nous avons accompli d’innombrables travaux préliminaires pour définir ses mouvements, son
5 Delphine Seyrig in Paris – New York et retour (Manuscrits), Fonds Delphine Seyrig, (Bibliothèque Nationale de France, Département des Arts du Spectacle), 2002, primeira página. O livro de Freddy Buache foi publicado por 5 Continents Hatier, em 1987. Na versão publicada, o prefácio de Seyrig contém algumas alterações em relação ao texto original. Essas retificações aparecem já no manuscrito, tendo sido feitas pela própria atriz. « Eu havia, com paixão, visto, revisto os filmes de Kazan e eu não compreendia como funcionavam esses atores, Marlon Brando em Um bonde chamado desejo (1951), James Dean em Vidas amargas (1955), com a deliciosa Julie Harris, em Juventude transviada (1955). Eu achava esses intérpretes mágicos. Surpreendia-me o que acontecia no jogo deles. Profissionalmente, eu tinha vontade de entender. Então a possibilidade de viver em Nova York encantava-me, dando-me o projeto de aproximar-me do Actor’s Studio. Eu apresentei-me e fui recebida como ouvinte durante um ano, antes de acompanhar o curso particular de Lee Strasberg. Isso foi, para mim, uma formação essencial. Eu vivia num meio de pintores, de poetas, o que me levou a trabalhar no filme de Robert Frank, Pull my Daisy em 1959 […].»
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comportement (ses attitudes), le non-réalisme (la sophistication) qui la caractérise, visionnant beaucoup de films muets, ceux de Garbo, Pabst, notamment, où j’examinais comment mes gestes sont accomplis jusqu’à leur terme.6
Trata-se pois de um trabalho construído por uma técnica. Strasberg, assim como Konstantin Stanislavski, buscava eliminar a separação entre razão e emoção no trabalho do ator. Seguindo os ensinamentos de seu mestre,7 Seyrig procurou, para construir A, servir-se da espontaneidade e da improvisação, ambas sob o controle da técnica. L’Actors Studio pour moi, [cela m’a n’était pas un comédien au service d’un vait se servir de toutes nos émotions, se connaître sous toutes nos facettes
fait comprendre] qu’on texte. Mais qu’on poude se projeter, et de les plus personnelles.8
À primeira vista, essas facetas das quais nos fala Seyrig podem ser tomadas como sendo as emoções do ator. Podem também ser associadas a características físicas deste, sem que necessariamente venham a prejudicar a composição do personagem. Assim a voz modulada e a postura hierática de A – traços que caracterizam em primeiro lugar a própria atriz –, somadas ao olhar perdido e à lentidão dos movimentos que esta criou para o personagem, marcam O Ano passado em Marienbad de um naturalismo psicológico singular. Tudo isso vem constrastar com a frieza do espaço cênico e dos demais personagens. Fundado em 1947 por Elia Kazan, Cheryl Crawford, Robert Lewis e outros atores provenientes do Group Theatre,9 o Actor’s Studio torna-se um laboratório 6 Delphine Seyrig in Paris – New York et retour (Manuscrits), Fonds Delphine Seyrig, (Bibliothèque Nationale de France, Département des Arts du Spectacle), segunda página. « Nós tinhamos, assim, de construir completamente essa mulher sonhada, dos seus sapatos ao seu penteado passando pela maquiagem. Nós cumprimos inúmeras tarefas preliminares para definir seus movimentos, seu comportamento (suas atitudes), o não-realismo (a sofisticação) que a caracteriza, vendo muito filmes mudos, notadamente os de Garbo, Pabst, onde eu observava, a termo, como meus gestos eram executados. » 7 Para Strasberg, no desenvolvimento de um papel, espontaneidade, improvisação e sensibilidade são apenas ponto de partida. O ator deve, em seguida, servir-se da técnica para dominar, mas também estimular, sua sensibilidade em vez de ser tomado por esta. 8 Delphine Seyrig in Delphine Seyrig – Portrait d’une comète. « O Actor’s Studio para mim, [isso me fez compreender] que não somos um ator a serviço de um texto. Mas que podemos nos servir de todas as emoções, projetarmo-nos e conhecermo-nos sob todas as facetas, as mais pessoais ». 9 O Group Theatre é um dos primeiros resultados da passagem do Teatro de Arte de Moscou pelos Es-
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vivo das idéias de Konstantin Stanislavski. Isso deve-se sobretudo a Lee Strasberg, que entra no grupo em 1949, tornando-se seu nome de referência. Ele procurará com seus atores atingir uma «verdade orgânica» e para tanto desenvolverá uma série de exercícios físicos, mas sobretudo de introspecção, como os praticados por Konstantin Stanislavski no Teatro de Arte Moscou.10 As lições de Strasberg baseiam-se no Método stanislavskiano e põem em evidência a importância dos cinco sentidos do ator no processo de construção do personagem. Os cinco sentidos do ator são os elementos que conduzem à evocação de sua “memória afetiva”. Nesse processo, Strasberg destaca a importância do olhar e da voz para o processo de criação. Delphine Seyrig será fortemente influenciada por esses princípios.
O Paradoxo de Marienbad: o falso da narrativa versus o realismo psicologico da interpretacao de Delphine Seyrig
A introspecção naturalista da interpretação de Delphine Seyrig pertence antes de tudo à dimensão da sensibilidade. Confrontada ao excesso e à espetacularização que caracterizam o filme, esse naturalismo confere à obra uma atmosfera marcada pelo estranhamento. Embora Delphine Seyrig não seja uma atriz do Actor’s Studio no seu sentido mais estrito, sua maneira de interpretar traz a marca do Método, fazendo uso constante das técnicas de interiorização e de introspecção. A interpretação da atriz não reproduz, porém, a maneira standard de interpretar dos atores do do Actor’s Studio, identificados principalmente por suas performances hiperexpressivas. Isso se deve em primeiro lugar porque o ambiente tados Unidos em 1923. Maria Oupenskaia e Richard Boleslavski, atores da companhia, resolvem ficar, tornando-se germinadores das idéias de Konstantin Stanislavski na América. Fundado em 1931 por Lee Strasberg, Cheryl Crawford e Harold Clurman, o Group Theatre, em suas primeiras experiências, mistura psicanálise, política e economia. 10 Cf. Jacqueline Nacache. L’acteur de cinéma, Armand Colin, Paris, p. 31.
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no qual se desenrola O ano passado em Marienbad não tem nada em comum com o espaço realista onde se encontram personagens como, por exemplo, os de Um bonde chamado desejo (Kazan, 1951). Assim, o estranhamento que se vê na tela já está presente no próprio roteiro. Cabe lembrar que, ao falarmos de interpretação realista – nos termos utilizados pelo Actor’s Studio –, não devemos reduzir a expressão à idéia de Realismo social.11 Falar de realismo, nesse contexto, é falar de uma pesquisa interior do ator conduzida principalmente pelo resgate de sua memória afetiva. Essa noção de realismo, cara tanto a Stanislavski como a Strasberg, baseia-se também no realismo psicológico do teatro naturalista de dramaturgos como Henri Ibsen, August Strindberg e Anton Tchekhov, no qual os conflitos mostrados são principalmente os da alma humana. Saliente-se ainda que, no teatro, realismo e naturalismo se confundem, as duas correntes estéticas visando compreendeer a realidade psicológica e social do homem.12 A introspecção do personagem A deve, muito provavelmente, ser o resultado do trabalho interior da atriz. Como sabemos, a criação do personagem segundo o Método inclui a reconstrução da história deste. A fabricação de um passado e de um futuro para a vida do personagem é uma das técnicas principais do Método tanto em Stanislavski quanto em Strasberg. Ora, estabelecer o passado e projetar um futuro para um personagem como A, cuja história no próprio roteiro é imprecisa, não é uma tarefa fácil. Entretanto, dada a ausência de uma realidade vivida de A, afora esta do hotel onde se encontra, é provável que Delphine Seyrig tenha criado uma vida passada e futura para o seu papel. Assim, embora não se trate de uma interpretação realista ao estilo Kazan, A é nesse filme o personagem mais dotado de potência afetiva, no sentido stanislavskiano do termo. As interpretações de Giorgio Albertazzi e de Sacha Pitoëff 11 É importante observar que, se, de um lado, os naturalistas que surgem no final do século XIX são orientados pelo determinismo de Émile Zola, de outro, abrem-se para as primeiras investigações da psiquê humana, especialmente a emergente psicanálise. 12 Cf. Patrice Pavis. Dictionnaire du théâtre, Armand Colin, Paris, p. 285.
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apontam para representações frias que atingem um certo automatismo. Um naturalismo puro norteia o trabalho desses atores, cujos personagens são voltados para o exterior, sem os momentos de interiorização que caracterizam A. A performance desta abunda em carga emocional. Se existe algo de humano na interpretação dos atores nesse filme, isso aparece apenas no trabalho de Seyrig. O que surge então na tela como aspecto falso é resultado da diegese e principalmente do espaço fílmico no qual se passa a história. Os personagens que têm um papel secundário transitam neste como autômatos, estando o objetivo deles nesse hotel tão impreciso quanto a memória de X. O ar aparentemente distanciado de A, elemento que reforça sua elegância, é um traço encontrado por Seyrig e usado para a composição do seu personagem. Observe-se que também essas características não são indicadas no roteiro. Diferentemente, Alain Robbe-Grillet afirma que teria preferido ver seu personagem representado por uma atriz menos etérea e mais «caliente». 13 O ar introspectivo de A é o resultado de um trabalho pessoal de Seyrig associado à direção de Alain Resnais. Saliente-se, porém, que não raramente atores levam para seus papéis traços pessoais que os determinam. Certos atores transmitem a suas criações gestos e posturas que lhes pertencem. Em geral feito inconscientemente, esse mecanismo pode tornar-se um mau hábito ou, como se diz no jargão teatral, uma « muleta », sobre a qual, na falta da intensidade expressiva necessária, apóia-se o ator, supondo assim esconder seus limites. Essa prática, no entanto, nem sempre resulta um defeito técnico, podendo muitas vezes aparecer como uma marca, uma espécie de assinatura do artista sobre sua obra. O ator James Stewart, por exemplo, tinha uma forma singular de interpretar com objetos. Em A felicidade não se compra (Capra, 1947), toda a hesitação do personagem George Bailey é concretizada na maneira como ele segura o galho enquanto caminha em direção à casa de Mary (Donna Reed) para pedi-la em casa13 Cf. Alain Robe-Grillet. Préface à une vie d’écrivain, Éditions du Seuil, Paris, p. 203.
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mento. Em Um corpo que cai (Hitchcock, 1958) é a incerteza e o lado flâneur de John Ferguson (Scottie) que são expressos no modo como brinca com a bengala (aqui, o objeto em si) na casa de Midge (Barbara Bel Geddes).14 O que pretendemos pôr em evidência – para voltarmos à Delphine Seyrig - é que o trabalho de alguns atores pode ser a marca de traços pessoais, sem que isso torne-se necessariamente um defeito. Embora James Stewart não seja exatamente uma referência no que diz respeito à interpretação, os gestos aqui citados sempre foram, no mínimo, eficazes enquanto recurso para expressar um sentimento. Proveniente da alta burguesia, o que lhe conferiu provavelmente a postura que a identificou ao longo de sua carreira, Deplhine Seyrig sempre destacou-se por seu charme incomum, nada cotidiano, características frequentemente transmitidas a seus personagens. Como diria Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), sobre Fabienne Tabard, personagem de Seyrig em Beijo roubado (Truffaut, 1968) : «Não é uma mulher, é uma aparição». O « sobrenatural » evocado pelo comentário de Doinel refere-se à finnesse e à elegância extremas de Madame Tabard, que parece não pertencer a esse mundo, o das pessoas comuns, sejam elas vendedores de sapatos ou detetives de ocasião. Vêmo-la assim no papel de Fabienne Tabard em Beijo Roubado (Truffaut, 1968), mas também como Madame Thévenot em O discreto charme da burguesia (Buñuel, 1972) ou como Anne-Marie Stretter em India Song (Duras, 1975). Para cada um desses personagens, Seyrig é toda elegância, encantamento, explorando sua finesse, sua voz melodiosa. Ora, num filme como O Ano passado em Marienbad, que se desenrola num ambiente assaz luxuoso, essas características aparecem de forma acentuada. 14 Entretanto, a marca singular do jogo cênico de James Stewart é seu gesto recorrente de levar a mão à boca ao mesmo tempo que comprime os lábios. Esse gesto aparece repetidas vezes em seus filmes e ele sempre o utiliza para expressar inquietude e/ou impotência. Pode-se verificar isso em A felicidade não se compra (Capra, 1947), quando, com seu caçula Tommy ao colo, George chora de desespero por causa de sua falência. Isso aparece também numa seqûencia posterior quando, completamente bêbado, ele reza ao balcão de Martini’s. O ator retoma esse gesto também em Um corpo que cai (Hitchcock, 1958), horrorizado com a queda de Madeleine (Kim Novak). Será ainda a mão à boca que ele utilizará para expressar a iniquetude de “Jeff” em Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954), ao ver Thorwald (Raymond Burr) voltar pra casa no momento em que Lisa (Grace Kelly) revista o apartamento do suposto assassino.
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C’était un rôle de composition pour moi parce que j’étais une personne qui n’avait pratiquement jamais mis les pieds chez un coiffeur, qui ne s’était jamais habillée d’aucune manière élégante. Et quand j’ai eu à jouer ça, je me suis dit qu’il faut que […] je me transforme. Ça m’a fait l’impression d’un aveuglement et en même temps d’une grande concentration. J’ai vraiment cherché à, depuis la pointe du pied jusqu’au sommet de mon crâne, être une dame.15
A é resultado de uma «composição», é certo, mas o trabalho de pesquisa da atriz certamente a reconduziu à sua própria história. Por fim, é necessário sublinhar que a atriz fez personagens menos sofisticados, menos reservados e mais expansivos, como Helena, em Muriel (Resnais, 1963). É também o caso de a Fada de Lilás, em Peau d’âne (Demy, 1970), no qual o personagem é frívolo e quase fútil, apesar da atmosfera diáfana evocada pelo seus poderes mágicos. Ela também representou personagens mais cotidianos, como o de Jeanne em Jeanne Dielman, 23, Quai du Commercee, 1800, Bruxelles (Akerman, 1975). Aqui, a atriz se lança numa pesquisa aprofundada sobre a banalidade dos gestos repetidos para expressar a angústia de uma mulher exasperada pela sua condição doméstica. Nesse filme, porém, não há mergulhos instrospectivos, à exceção da última sequência na qual Jeanne entra num estado agudo de estupefação após assassinar seu cliente. O lado excessivo e obssessivo do gestual do personagem, o que impede a tomada de consciência de uma vida interior, constitui, aliás, o tema central do filme. Não se repetir constituía a preocupação maior da atriz. E na sua busca por se renovar, o desafio maior era dar forma à sua pesquisa interior: […] chaque fois qu’on joue une nouvelle pièce, on essaie de se renouveler. On n’y arrive pas toujours mais on essaie. Quelquefois on se re15 Delphine Seyrig in Jacqueline Veuve, Delphine Seyrig – portrait d’une comète, Aquarius Film, Suisse. « Era um papel de composição para mim pois eu era uma pessoa que praticamente nunca havia posto os pés num salão de beleza, que nunca havia se arrumado de maneira elegante. E quando eu tive que interpretar isso, eu me disse que seria preciso que […] eu me transformasse. Isso deu-me a sensação de uma cegueira e, ao mesmo tempo, de uma grande concentração. Eu verdadeiramente procurei, da ponta do pé até o topo do meu crânio, ser uma dama.»
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nouvelle sans que ce soit perceptible de l’extérieur mais, pour nous, on essaie des choses nouvelles qui ne se voient pas forcement du dehors.16
Em todo caso, seja em seus trabalhos mais psicológicos ou representando personagens menos introspectivos, o trabalho de Seyrig se distancia consideravelmente desse que podemos observar na interpretação de, por exemplo, James Dean e Marlon Brando, para citar os nomes mais expressivos da primeira geração de atores americanos made in Actor’s Studio. O trabalho desses atores que, como sabemos, representaram sempre tipos comuns, confirma que a introspecção a partir da memória afetiva é apenas uma das técnicas do Método. A ação do personagem, determinada pelo texto, é um outro aspecto fundamental da criação do papel. Pode-se ver isso no trabalho de Marlon Brando para Um bonde chamado desejo (Kazan, 1951) ou de James Deans encarnando Cal Trask em Vidas Amargas (Kazan, 1955). Nos dois casos, os atores investiram sobretudo na ação em detrimento da instrospecção. Stanislavski procurava insuflar vida a seus personagens suprimindo o aspecto « fantoche » destes, alegoria de uma classe social forjada pelo teatro romântico. Ele atingia a realidade que procurava abrindo-se a uma concepção do homem que incorpora imaginação, memória e sensibilidade. Tudo isso foi posto a serviço de uma representação do qual o objetivo era atingir, como nos chama atenção Nacache: […] la vérité d’un jeu et d’un personnage dont l’âme se nourrit de la vie intérieure de l’acteur, de ses expériences et de sa vie propres; la notion de «mémoire affective», empruntée à la psychologie de Théodule Ribot, permet la résurgence de souvenirs et de sensations enfouies qui constituent les fondements du revivre, expérience-clé de l’acteur stanislavskien.17
16 Delphine Seyrig in op. cit. « […] cada vez que a gente interpreta uma nova peça, a gente tenta renovar-se. Nem sempre se consegue mas tenta-se. Às vezes a nós nos renovamos sem que seja perpectível do exterior mas, experimentamos coisas novas que não são forçosamente vistas de fora. » 17 Jacqueline Nacache, in op. cit. p. 31. « […] a verdade de uma interpretação e de um personagem cuja alma nutre-se da vida interior do ator, de suas experiências e de sua própria vida; a noção de « memória afetiva », emprestada à psicologia de Théodule Ribot, permite a ressurgência de lembranças e de sensações enterradas que constituem os fundamentos do « reviver », experiência-chave do ator stanislavskiano. »
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Os cinco instantes capitais do jogo de Delphine Seyrig em “O ano passado em Marienbad”
O movimento cíclico da narrativa de O Ano passado em Marienbad equivale a movimento idêntico na representação dos atores. Diferentemente do que acontece em geral em um filme de temática mais cotidiana, não há exatamente uma evolução do conflito dramático. A repetição da narração de X parece reproduzir-se nos gestos e na ação dramática dos demais personagens. Apesar disso, identificam-se cinco momento cruciais na interpretação de Seyrig, cujas sequências indicaremos a seguir: 18
Os momentos de introspeccao - A imobilidade
A ação dramática não diz respeito somente ao movimento físico. A total impossibilidade de agir pode ser a ação dramática de um filme ou de uma peça e, para expressá-la, o ator pode reduzir seus movimentos a zero. Em Stanislavski, assim como em Strasberg, estar em cena (seja no palco ou em frente às câmeras durante uma filmagem) implica estar invariavelmente em ação, ainda que o ator esteja imóvel. A ação não é somente física, ela é também «espiritual», ou seja, resultado de um trabalho interior da imaginação do ator.19 Sequência
Planos focalizados
Lugar
Conteúdo
34
238-241
Jardim/Noite
Sentada sobre o pedestal da estátua, A interroga X sobre as possibilidades de um futuro juntos.
Sequência
Planos focalizados
Lugar
Conteúdo
48
333 – 338
Quarto
A e M deitados na cama.
18 Essas sequências seguem a segmentação que fiz em L’invention de la scène : l’analyse de la théâtralité dans L’Année dernière à Marienbad, Thèse : Cinéma et Audiovisuel – Université Paris III (Sorbonne Nouvelle), Paris, 2009, orientada por Michel Marie. 19 Konstantin Stanislavski. La formation de l’acteur, Payot et Rivages, Paris, p. 43.
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Plano 238
Nessas duas sequências, A mantém um diálogo ao mesmo tempo que encontra-se totalmente voltada para si mesma. Ar perdido, ela parece repassar mentalmente seu plano de fuga. Na sequência 34, enquanto «abandona-se» à versão de X, expressa verbalmente sua refutação : «Que outro tipo de vida você acredita poder me dar» ? A indecisão é a marca da interpretação nesse plano.
Plano 335
Na sequência seguinte, deitada, ao lado de M, que pergunta ; «Onde está você, meu amor perdido» ? Ela responde : «Aqui, eu estou aqui», enquanto seu rosto, voltado para a direção oposta à M, o olhar vazio, indica que está ausente e que sua fuga com X é já um fato. A interpretação de Seyrig nessas sequências nos permite traçar um paralelo com o trabalho de Rod Steiger na sequência do taxi, em Sindicato de Ladrões (Kazan, 1954). Embora A não tenha o mesmo ar nervoso de Charley, encontramos uma similitude na forma como ambos utilizam o silêncio, os intervalos entre uma frase e a seguinte, para expressar a angústia de uma decisão – muito importante – a tomar. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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Uma grande diferença ente esses dois atores, ambos formados pelo Actor’s Studio : a expressão do olhar. Enquanto o de Charley parte em várias direções, como se procurasse uma saída, o de A é fixo. Em O Ano passado à Marienbad, o olhar de A, constantemente voltado para fora, para o hors-cadre, impregna o filme da angústia do aberto : abertura de sentido, abertura do quadro. No filme – e isso fica claro sobretudo nessas duas sequências – ela está capturada por uma realidade que não é mais a do quarto ou a do jardim: A está fora, em um outro espaço, imaginário, hors-cadre, hors-film.
Os momentos de extraversao - Os movimentos
Sequência
Planos focalizados
Lugar
19
111 (plano-sequência)
Jardim/Dia
Sequência
Planos focalizados
Lugar
31
224-227
Interior do hotel.
Sequência
Planos focalizados
Lugar
45
323-326
Jardim/Noite
Conteúdo A e X, no jardim, tentam atribuir um significado às estátuas. Conteúdo Evocando certos objetos do quarto descrito por X, A cai na armadilha, tornando possível a veracidade da história contada por este. Conteúdo A encontra X no jardim para sugerir-lhe que adiem a fuga.
Em O Ano passado em Marienbad, filme no qual os personagens estão imóveis em quase todas as sequências, aquelas em que há movimento surgem como contraponto. São três as sequências nas quais há uma ação física propriamente dita. A primeira, segundo ordem de aparição, o plano-sequência 111, mostra X e A no jardim, discutindo sobre a cena representada pelas estátuas. A, assim como X, está descontraída, numa atmosfera que destoa do conjunto do filme. Essa sequência que, segundo a narração de X, teria acontecido no ano passado, mostra A completamente entregue ao seu interlocutor e ao contexto que os cerca.
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Plano-sequência 111
Não há, nesta sequência, nenhuma introjeção. O naturalismo que aqui predomina é claramente desprovido do aspecto psicológico que marca o trabalho de Seyrig nos outros momentos. O intervalo dos planos que compõem a sequência 31 é igualmente marcado pela ação física. Neles, A recusa X e sua versão dos fatos e tenta fugir da situação. X mostra lhe a foto que teria sido feita no ano passado. Ela continua a negar. Tal recusa concretiza-se no momento no qual ela se distancia de X caminhando rapidamente – único momento do filme no qual se pode verificar uma mobilidade ágil.
Plano 227
O plano 227 é é o único no qual o duo amoroso dialoga na presença de outras pessoas. Nos planos seguintes, ela «abandonar-se-á» novamente à versão de X «É verdade, você tem razão», e retomará, consequentemente, seu habitual ar perdido. É novamente uma tentativa de fuga de A que marcará os planos 323-326. A reencontra X, no meio da noite, no jardim. Ela sugere adiar para o ano seguinte. Ele responde-lhe que é tarde demais para isso. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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Plano 321
Nos momentos de introspecção ou nos momentos de ação física, a incerteza e a imprecisão, prováveis «super-objetivos»20 dessa narrativa, são representados pelo trabalho de Seyrig. Os movimentos, sempre indecisos, são tão carregados de hesitação quanto as sequências nas quais o personagem está imóvel.
O personagem de Seyrig é Resnais 21
A voz do ator é um critério de seleção fundamental para Alain Resnais. Em artigo publicado no Le monde, o realizador comenta : Il est important que les comédiens aient des affinités entre eux. La distribution combine des éléments différents [...] Dans cette harmonie, les voix jouent un grand rôle pour moi. Je suis très sensible aux dictions particulières, aux accents. C’est peut-être un souvenir de mon enfance bretonne. Le trio de Marienbad, Seyrig, Albertazzi et Pitoëff est d’abord un trio de voix.
O ensaio com os atores é uma prática corrente em Resnais. Além disso, o diretor estimula seus atores a pesquisarem junto a outros personagens do universo cinematográfico. Segundo Sylvette Baudrot, Resnais levou toda a equipe de Marienbad para ver Loulou (Pabst, 1929), na Cinemateca Francesa, pois gostaria que a ma20 Cf. Konstantin Stanislavski, op. cit. 21 Alain Robbe-Grillet dans le film Dans le Labyrinthe de Marienbad, Luc Laugier, Studio CanalImage, Paris.
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quiagem e o penteado de Delphine Seyrig fossem semelhantes aos de Louise Brooks. Embora o realizador aprecie os ensaios, ele considera que um certo grau de improvisação deve ser preservado durante as filmagens. Por isso, pede aos atores para não interpretarem muito. E para garantir espaço à improvisação, ele para os ensaios três semanas antes do início das filmagens. Dar margem à espontaneidade é para ele indispensável: «Uma filmagem sem supresa […] seria grotesco.» Apesar dessa abertura à imprevisibilidade, é um estilo rigoroso de direção que caracteriza a direção de Alain Resnais. Extremamente presente durante o trabalho de seus atores, ele costuma intervir da entonação à forma de caminhar, de gesticular, destes. No que tange O Ano passado à Marienbad, Resnais também teria dirigido a representação de Seyrig em seus mínimos detalhes. Segundo o roteirista, o diretor teria predeterminado o papel de A em todos os seus aspectos : sua forma de andar, gesticular, curvar a cabeça sobre o ombro. Resnais não teria interferido, porém, na dicção e entonação da atriz. «Embora ele tenha realizado o filme respeitando escrupulosamente o que eu escrevi, o personagem de Seyrig é Resnais», afirma RobbeGrillet.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
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* Sônia Maria Oliveira da Silva é doutora em Cinema e Audiovisual pela Université Sorbonne Nouvelle (Paris III). Foi bolsista do programa Capes de Doutorado Pleno no Exterior.
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Análisis crítico del discurso político de la UNESCO sobre la educación intercultural Aleksandra Jablonska*
RESUMO: En el artículo se analizan las transformaciones del enfoque de la UNESCO relativo a la cultura, educación, multi e interculturalidad en el período de entre 2000 y 2007, a partir de las herramientas metodológicas del análisis crítico del discurso político. El estudio permite ver que, a pesar del reciente reconocimiento del organismo internacional de los derechos colectivos y de las determinaciones culturales específicas, en general la UNESCO mantiene una postura liberal, universalizante, que hace caso omiso de contextos específicos en que se presentan las situaciones del multiculturalismo. PALAVRAS-CHAVE: EDUCACIÓN, INTERCULTURALIDAD, MULTICULTURALIDAD
Cuestiones preliminares
En este trabajo parto del supuesto, contrario a la postura positivista, de que la realidad no es exterior ni independiente del sujeto social, puesto que es él quien contribuye a configurarla mediante todos los sistemas de símbolos de los que dispone. (Schutz, 2003; Ricoeur, 2002) Conforme a los autores pertenecientes a la línea fenomenológica y hermenéutica, no importa si éstos símbolos se refieren a lo que la ciencia moderna solía considerar como “verdadero” o “ficticio”, puesto que nuestro sentido de la realidad se construye siempre en relación con nuestra vida emocional y activa, y a partir de las interpretaciones que hacemos de ella tanto nosotros, como quienes se comunican con nosotros en forma directa o indirecta. (Schutz, 2003: 197) En este sentido, asumo que las interpretaciones que hacemos de los fenómenos no son algo accesorio a la realidad, sino el lugar de “una auténtica realización, ejecución, configuración o conjugación de lo real”. (Garagalza, 2005: 28) Los humanos disponemos de diversos sistemas simbólicos para expresarnos, pero en el presente trabajo quiero referirme sólo a uno de éstos, el código verbal y, más específicamente, su configuración discursiva. En contrapartida del OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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sistema o código lingüístico, afirma Ricoeur, el discurso es un “acontecimiento en forma de lenguaje”, acontecimiento que puede tener una forma fugaz, verbal, o una forma perdurable cuando se fija en la escritura. (2002: 95- 96) Algunas otras distinciones que Ricoeur hace entre la lengua y el discurso nos permitirán avanzar hacia el modelo del análisis de este último. En efecto, el discurso, a diferencia del código lingüístico, siempre remite a quien lo pronuncia, a un sujeto cuya identidad puede descubrirse mediante el análisis textual. Ricoeur deja claro que no se trata de identificar al sujeto empírico del discurso, sino a sus rasgos, tal como éstos quedan configurados por el propio texto. (Ídem: 173) Lo mismo ocurre con su intencionalidad: el análisis del discurso no se encamina a develar la intención del autor real, empírico, sino la intencionalidad del discurso, que no necesariamente coincide con la intención de quien lo hubiera escrito o pronunciado. (Ibídem) Dicha intencionalidad va configurando una significación, vale decir, una referencia al mundo, pero no al mundo que tenga supuestamente una existencia propia, independiente, sino al mundo que el texto proyecta. (Ídem: 173- 174) Un tercer elemento que debemos rescatar de la teoría del discurso de Ricoeur, es el hecho de que éste siempre se dirige a alguien, a un interlocutor que es definido por el propio discurso, que le atribuye ciertas aspiraciones, autoconceptos, miedos, etc. (Ibídem; Edelam, 1991: 19)1 Ahora bien, los elementos antes mencionados pueden servir para analizar cualquier tipo de discurso. Pero como mi intención es realizar un análisis crítico del discurso político, es necesario introducir otras categorías más específicas. El discurso político es aquel que participa de alguna manera en la lucha política, bien contribuyendo a la legitimación y a la construcción de la dominación mediante de configuración de un proyecto ideológico, bien enunciándose desde la perspectiva del contrapoder, de la resistencia, de las estrategias de desvelamiento de las estrategias de la dominación. (Van Dijk, 1994: 2) Para elucidar los mecanismos en que se construye dicho discurso Van Dijk propone una estrategia de análisis que 1 Ricoeur se refiere a un cuarto rasgo del discurso que es su dimensión temporal, aspecto que por lo pronto voy a dejar de lado.
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comienza por la manera en que el discurso plantea un tema o, como diría Edelman, como construye un problema. (Vad Dijk, 1994; Edelman, 1991) En efecto, en toda sociedad existen muchos problemas que deben ser resueltos en el ámbito político. Pero a menudo sucede que lo que es un problema para un grupo social, como lo es el desempleo, para otro- los empresarios por ejemplo-, constituye un beneficio. Las contradicciones que surgen en la vida cotidiana alientan las contradicciones en la política, y en el discurso que ésta elabora buscando formulaciones ambiguas, cambiantes y muchas veces inconsistentes entre sí, para dar respuesta a un espectro político amplio. (Edelman, 1991: 22-24) Para lograrlo el discurso político convierte la ambigüedad en certidumbre, las predilecciones y aspiraciones del grupo en el poder, en la esencia de la racionalidad. (Ibídem) Una vez analizada la manera como el discurso político construye un problema, como lo acota y excluye otras formas de percibirlo, es necesario develar el modo en que establece la coherencia semántica entre las proposiciones que lo conforman, vale decir de qué manera identifica las causas del problema que supuestamente pretende resolver. (Van Dijk, 1994: 9) Hay que proseguir el análisis con el empleo del léxico y de las formas retóricas: las metáforas, las hipérboles, los símbolos que pueden servir para diversas formas de persuasión, para convencer al lector de que el camino propuesto es el más correcto, el mejor planteado, el más deseable. El lenguaje político, advierte Edelman, “tiene una gran capacidad para reflejar la ideología, mistificar y distorsionar…”. (1991: 120) La necesidad de todas estas operaciones proviene del hecho de que el mundo social está signado por grandes desigualdades y conflictos de intereses. Por tanto, “el elemento crítico en la maniobra política para sacar ventaja es la creación del significado: la construcción de creencias sobre los acontecimientos, las políticas, los líderes, los problemas y las crisis, creencias éstas que racionalizan o cuestionan las desigualdades existentes”. (Edelam, 1991: 121) Eso es así , agrega el autor porque “la necesidad estratégica es inmovilizar la oposición y movilizar apoyo.” (Ibídem) Ésta será entonces la perspectiva, planteada aquí en forma muy sintétiOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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ca, desde la que voy a abordar el análisis del discurso de la UNESCO, sobre todo el elaborado a partir de 2000, acerca de la necesidad de introducir la educación intercultural en el mundo entero. Mi intención es analizar la transformación del enfoque del organismo internacional respecto a la cultura, multi e interculturalidad entre 2000 y 2007, considerando fundamentalmente tres documentos: El Convenio número 169 sobre pueblos indígenas y tribales en países independientes (1989) de la OIT, que hay que considerar como el antecedente de las formulaciones relativas a la diversidad cultural de la UNESCO, la Declaración Universal de la UNESCO sobre la Diversidad Cultural (2001) y las Directrices de la UNESCO sobre la educación intercultural (2007).
Los antecedentes: de las garantias individuales al reconocimiento de los derechos educativos colectivos
La preocupación original de los organismos de la ONU por las libertades y derechos individuales2 se traducía en la década de los 60 en el interés por asegurar la “igualdad de posibilidades de educación” para todas las personas sin “distinción, exclusión, limitación o preferencia fundada en la raza, el color, el sexo, el idioma, la religión, las opiniones políticas o de cualquier otra índole”. (UNESCO, 1960) Se trataba fundamentalmente de garantizar a los individuos- más estrictamente a las familias- el derecho a la educación como uno de los derechos universales. En este contexto sólo se consideraba como una obligación del EsHerbin
tado la impartición de la educación primaria, que debía ser obligatoria y gratuita. (Idem: 2-3) Los demás niveles educativos debían ser “accesibles” para todos, es decir, 2 Véase Declaración Universal de los Derechos Humanos, 1948; Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial, 1965, entre otros.
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se pensaba que la educación secundaria, preparatoria y superior constituían el ámbito de la elección individual. (Ibidem) Fue hasta los finales de la década de los 80 que los organismos de la ONU empezaron a incluir paulatinamente algunos derechos colectivos, entre los cuales destacaron los de los pueblos indígenas y tribales. (OIT, 1989) Por primera vez se les aseguraba a las colectividades y no sólo a los individuos los derechos sociales, económicos, culturales y políticos, y especialmente los de conservar y asumir el control de sus instituciones, así como de “fortalecer sus identidades, lenguas y religiones”. (Idem: 1) El énfasis estaba puesto justamente en la conservación y protección de las culturas, consideradas en el documento como “originarias”. Se trataba de una perspectiva fundamentalmente compensatoria, que reconocía que por razones históricas algunos pueblos han sufrido de discriminación durante varios siglos, aunque no se tomaba en consideración los modos en que los Estados contemporáneos continuaban con estas prácticas. De ahí que se enfatizaran las políticas de conservación de las tierras y recursos tradicionalmente ocupados por dichos pueblos y, sólo en segundo lugar se recomendaba instituir “procedimientos adecuados en el marco del sistema jurídico nacional para solucionar las reivindicaciones de tierras formuladas por los pueblos interesados”. (Artículo 14, inciso 3, Ibidem) De modo que no se planteaba abiertamente la necesidad de restituirles las tierras y los recursos naturales, ni de recuperar elementos culturales perdidos o debilitados, como si hasta este momento hubieran podido usufructuar y cultivar todos estos dispositivos plenamente. Sin embargo, además de reiterar la obligación de los Estados de garantizar a los miembros de dichos pueblos “la posibilidad de adquirir una educación a todo los niveles”, la OIT estipulaba que la educación destinada a ellos debía “desarrollarse y aplicarse en cooperación con éstos a fin de responder a sus necesidades particulares” y agregaba que debía prestarse especial atención a “su historia, sus conocimientos y técnicas, sus sistemas de valores y todas sus demás aspiraciones sociales, económicas y culturales”. (Artículos 26 y 27) Se aseguraba asimismo el derecho de los pueblos a crear sus propias instituciones educativas, a OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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enseñar a los niños a leer y escribir en “su propia lengua indígena”, así como a aprender la lengua nacional. (Artículos 27, 28) Aunque se trataba de estrategias que promovían la separación de los pueblos indígenas del resto de la sociedad, a medida que recomendaban crear instituciones y programas específicos para estos grupos, la OIT establecía también la necesidad de adoptar disposiciones de carácter educativo en toda la comunidad nacional, a fin de “eliminar los prejuicios que pudieran tener con respecto a esos pueblos.” Para lograrlo debía asegurarse que “los libros de historia y demás material didáctico ofrezcan una descripción equitativa, exacta e instructiva de las sociedades y culturas de los pueblos interesados “. (Artículo 31) La OIT respondía de esta manera a la creciente preocupación por la exclusión social, que desde la década anterior sustituía los enfoques centrados en la pobreza. (Barañano, et.al., 2007: 82) Se trataba de reconocer que ésta no sólo tenía una dimensión distributiva, sino que se debía a la combinación y retroalimentación de diversos factores que dificultaban el acceso de los individuos y grupos al mercado de trabajo, los servicios sociales y el ejercicio pleno de sus derechos. (Ibidem) Frente a ello algunos gobiernos elaboraron políticas de discriminación positiva, que aseguraban ciertas cuotas de acceso a la educación y a las estructuras de poder a las minorías. (Taylor, 2001: 63) Si bien es necesario reconocer cierto avance en el planteamiento de la OIT frente a los enfoques asimilacionistas monoculturales tradicionales, así como su intención de enfrentar el problema de la discriminación de las etnias en forma integral, a medida que el organismo recomendaba atender en forma simultánea la cuestión económica, de seguridad social y salud, la de la educación y del acceso a los medios de comunicación, es también necesario señalar sus limitaciones. Probablemente el cuestionamiento más serio debe hacerse a la tendencia de, por un lado, esencializar las culturas consideradas como originarias y, por el otro lado, de segregarlas del resto de la sociedad. Ambas tendencias, aunque originalmente buscan darles compensaciones a los grupos discriminados, corren el riesgo de encerrarlos en una especie de guetos y de perpetuar la estigmatización de las que son objeto. (cfr Maalouf, 2008)
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Junto con lo anterior, al ignorar los mecanismos mediante los cuales los Estados contemporáneos producen y potencian la exclusión, mediante las constricciones sociopolíticas, económicas y jurídicas, la OIT avalaba implícitamente esta situación, puesto que no establecía estrategias para que estas circunstancias se corrigieran, para que cambiaran las condiciones estructurales y simbólicas que asignaban a los grupos una posición desigual con arreglo a la “etnia”. En síntesis, las políticas de la OIT se basan en un análisis abstracto, ahistórico de las sociedades en cuyo interior viven los pueblos indígenas, análisis que ignora la desigual distribución de poder (y no sólo de tierras y recursos) entre los grupos dominantes y las minorías, y que fragmenta la totalidad social de tal modo que parecería que las estructuras económicas dentro de un país podrían transformarse al margen de las tendencias mundiales hacia la concentración y centralización del capital en los centros hegemónicos, y al margen de las relaciones de poder dentro y fuera del país en cuestión. Se trata, en definitiva de una suerte de combinación entre los enfoques liberal y pluralista, que tienden, por un lado, a separar a las minorías del resto de la sociedad y, por el otro, incluir en los curriculos escolares la información sobre ellos, pero no sus conocimientos, que se incluirían sólo en los programas educativos dirigidos a dichas minorías. Tales ampliaciones del curriculum, consideran Kincheloe y Steinberg, “pueden considerarse como un gesto simbólico que perpetúan las relaciones de poder del status quo; tan sólo allanan el camino para una opresión más amable…”. (1999: 74) A pesar de ciertos avances de la OIT en materia de atención a la diversidad cultural, un año después la Declaración mundial sobre educación para todos titulada “Satisfacción de las necesidades básicas de aprendizaje”, (Jomtien, 1990) insistía en la importancia de “respetar y enriquecer la herencia cultural, lingüística y espiritual común” y recomendaba que las otras culturas sean tratadas con tolerancia. (Declaración…, 1990: 3) Las minorías eran consideradas como objeto de políticas antidiscriminatorias y entre ellas se consideraba por igual a “los pobres, los niños de la calle, los nómadas, los trabajadores migrantes, los pueblos indígenas, las minorías étnicas, OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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raciales y lingüísticas, los refugiados, los desplazados por la guerra, y los pueblos sometidos a un régimen de ocupación”. (Idem: 4) Era patente la continuación de la política de asimilación de todos los miembros de una sociedad a una cultura homogénea. No se notaba ningún avance en la conceptualización de las minorías. Parecía que independientemente de los factores que producían la discriminación, sean éstos raciales, culturales o socioeconómicos, todos debían ser tratados de la misma manera. Además de lo anterior, el documento anunciaba ya la reducción de la concepción de la educación a lo utilitario y a “las necesidades básicas de aprendizaje”, política que a partir de esta década se promovería sobre todo en los países de Tercer Mundo, en los que, conforme a la apreciación de los organismos internacionales, el grueso de la población no requeriría sino de la instrucción primaria. (Chomsky y Dieterich, 1995)
Del monoculturalismo al reconocimiento de la diversidad cultural
La UNESCO abandonó el enfoque monocultural a partir del 2000, año en que se celebró el Foro Mundial sobre la Educación en Dakar, en el que se reiteraron los compromisos establecidos diez años antes en Jomtien, bajo la misma perspectiva. Sin embargo, un año después el organismo elaboró la Declaración Universal de la UNESCO sobre la Diversidad Cultural (2001) que marcó el cambio de enfoque en la materia educativa. La nueva política será más adelante reforzada por nuevos documentos y especialmente La educación en un mundo plurilingüe (2003), la Convención sobre la Protección y Promoción de la Diversidad de las Expresiones Culturales (2005) y Directrices de la UNESCO sobre la Educación Intercultural (2007). Para diseñar su nueva propuesta la UNESCO adoptó una definición de la cultura en el sentido antropológico tradicional, entendida fundamentalmente como identidad: la cultura debe ser considerada el conjunto de rasgos distintivos espirituales y materiales, intelectuales y afectivos que caracterizan a
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una sociedad o a un grupo social y que abarca, además de las artes y las letras, los modos de vida, las maneras de vivir juntos, los sistemas de valores, las tradiciones y las creencias. (UNESCO, 2001: 1)
Se trata de una concepción que hereda la idea romántica de las culturas como todos coherentes y exentos de contradicciones, idea que solía aplicarse a las culturas “primitivas” y más adelante a las consideradas como “atrasadas” o “subdesarrolladas”. Algunos autores se refieren a dicha concepción como corporativa o tribal y señalan no sólo sus limitaciones sino también riesgos. (Eagleton, 2001; Maalouf, 2008) Una de las limitaciones de esta concepción es que absolutiza y esencializa la idea de la cultura y también la pertenencia de las personas a ésta. De este modo no permite comprender el proceso continuo de transformaciones de las culturas a partir de los contactos con otras civilizaciones, mediante el impacto de los medios de comunicación, los procesos migratorios o cualquier otra dinámica que normalmente transforma a las culturas. Y, sin embargo, éstas son constantemente rehechas y redefinidas por las prácticas colectivas de sus miembros. (Eagleton, 2001: 177; Maalouf, 2008; García Castaño, 1997, García Canclini, 2004) Una crítica sistemática a este tipo de enfoques provino del posestructuralismo francés, de los discursos poscoloniales, tanto como de las teorías que tradicionalmente criticaron los discursos hegemónicos de la modernidad, como es el caso del neomarxismo. Su rasgo común es el rechazo al intento de “subyugar, uniformizar y- en última instancia- silenciar una multiplicidad de culturas, identidades y narraciones bajo la canonización del racionalismo cartesiano y del criticismo kantiano”. (Barañano, et.al, 2007: 251) Mientras los autores fascinados por los cambios que han sufrido las sociedades en la era del capitalismo tardío, subrayan que la inestabilidad y fluidez de las culturas, así como la fragilidad de las identidades es sobre todo, aunque no exclusivamente, un signo de los tiempos actuales, (García Canclini, 2004; Bauman, 2006; Maffesoli, 2004) los autores adscritos a los estudios poscoloniales y a las diversas corrientes del neomarximo muestran como el discurso hegemónico moderno impuso una visión monolítica y homogénea de las culturas, a OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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fin de legitimar el predominio político de las culturas occidentales sobre las demás, mediante la empresa colonial e imperialista. (Giroux, 1997; Kincheloe y Steinberg, 1999; Jameson y Zizek, 2003) Al fijar a las personas en su propia cultura, la noción de la UNESCO impide pensar en la posibilidad de que éstas puedan distanciarse de la sociedad en que nacieron por considerarla opresiva, injusta o porque no les brinda las posibilidades deseadas de vida. Los sujetos no podrían ejercer crítica de su propia cultura ni buscar transformarla o bien alejarse de ella para vivir más de acuerdo con sus deseos y aspiraciones. Tampoco se prevé la posibilidad de que los sujetos sociales reivindiquen los valores que su cultura omite o suprime, ni que participen simultáneamente de diversas culturas. (Eagleton, 2001: 101) En este sentido, los enfoques multiculturalistas más avanzados propugnan la idea de que las personas no deben ser estereotipadas de acuerdo con sus identidades étnicas y que, por el contrario, deben crearse las posibilidades de que todos por igual, es decir tanto quienes pertenezcan a las culturas mayoritarias como a las minoritarias, tengan la posibilidad de desarrollar competencias en diversas culturas, lo que les permitiría también una constante reconstrucción identitaria no sólo conforme a su origen, sino también a sus diversas experiencias de vida, así como expectativas y deseos. (García Castaño, et, al, 1997; Maalouf, 2008) Desde luego, la definición citada no permite tampoco comprender que en toda cultura existen determinadas relaciones de poder que colocan a sus integrantes en posiciones diferentes, desiguales y crean determinadas tensiones y conflictos. Por ello Eagleton argumenta que se trata de una visión opresiva y a la vez ideológica de la cultura. Opresiva porque parecería que quienes hayan nacido en el seno de una cultura no tienen más remedio que acatar sus prescripciones. E ideológica porque dicha definición oculta las desigualdades de clase, como si la pertenencia a una cultura asegurara una participación igualitaria en ella. En este sentido, para el autor, la búsqueda o la lucha por la igualdad y por la libertad son más importantes que el respeto a la culturas fijadas como un conjunto de rasgos estables. (Eagleton, 2001: 103) A partir de la definición anterior, la UNESCO plantea la necesidad de que
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las diversas culturas convivan, se comuniquen y realicen intercambios. (UNESCO, 2001: 2) Considera que dicha diversidad puede darse tanto en el seno de una sociedad, como en el ámbito internacional. Se trata nuevamente de un planeamiento abstracto que deja de lado la naturaleza conflictiva de las sociedades que albergan a diversas culturas, así como los problemas que entraña el intercambio cultural entre países diversos. Privilegia las ideas de la “integración”, la “cohesión social”, la paz y el pluralismo cultural como condición de una convivencia democrática. Exhorta al “respeto de la diversidad cultural”, a la “tolerancia, el diálogo y la cooperación, en un clima de confianza y de entendimiento mutuos”. (Idem: 1) Al evitar toda reflexión sobre las formas en que las relaciones de poder influyen en ello, proclama la diversidad cultural como un asunto no político, ni social sino como “un imperativo ético, inseparable del respeto de la dignidad de la persona humana”. (Ibidem) Dicho planteamiento, a su vez, hace que la UNESCO retorne al enfoque liberal centrado en el individuo, enfoque que el organismo ha empleado desde sus inicios. De modo que, después de dar una definición corporativa de la cultura, vuelve a reiterar “el compromiso de respetar los derechos humanos y las libertades fundamentales” y agrega que dicho compromiso atañe particularmente a personas que pertenecen a “minorías” y a los pueblos indígenas. Como han señalado diversos autores, el problema es que el concepto de los “derechos humanos” y “libertades individuales” se desprende de la doctrina liberal, que parte de un falso presupuesto de la igualdad humana universal y de una noción despolitizada del consenso. (Giroux,
Ivan Serpa
1997: 50; Kincheloe y Steiberg, 1999: 34- 39) El liberalismo no es, como pretenden muchos, una doctrina neutral, que podría constituir un campo de reunión para todas las culturas, sino una visión de la sociedad elaborada en el Occidente y OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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heredera, en última instancia, de doctrinas cristianas, por lo que la pretensión de imponerla a todas las culturas se considera como errónea y propia del punto de vista eurocéntrico que no considera las formas como otras culturas conciben estas cuestiones. (Taylor, 2001: 92- 93; Parekh, 2000) La operación consiste en considerar a la cultura occidental no como cultura sino como referente universal y juzgar a partir de ello lo que debe o no acontecer en otro tipo de culturas, como las indígenas, suelen sobreponer los derechos colectivos a los individuales. Dicha concepción, como subrayan Giroux (1997), así como Kincheloe y Steinberg (1999) impide comprender como la raza, la clase social, la pertenencia a una etnia y género estructuran experiencias en forma desigual: Hablando un lenguaje que transpira democracia y ética, pero incapaz de fundamentar estas cuestiones en el reconocimiento de que el poder se distribuye de manera desigual, el multiculturalismo liberal omite muchas veces las fuerzas que hacen peligrar los objetivos democráticos. (Kincheloe y Steiberg, 1999: 36) Se trata, por tanto, de un dispositivo ideológico basado en simplismo político y una operación mediante la cual se hace desconocer las circunstancias históricas que han provocado la discriminación de los grupos no pertenecientes a la cultura dominante. La ONU y sus distintos organismos, al vincular los derechos humanos con la diversidad cultural, pretende sustentar su propuesta en la concepción de los “derechos culturales”, tal como éstos fueron definidos por la Declaración Universal de Derechos Humanos (1948) y el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (1948).3 Ello implica nuevamente dotar de derechos al individuo que, en este caso, se refieren a “la posibilidad de expresarse, crear y difundir sus obras en la lengua que desee y en particular en su lengua materna”, así como al “derecho a una educación y una formación de calidad que respeten plenamente su identidad cultural” y a “la posibilidad de participar en la vida cultural que elija y conformarse a las prácticas de su propia cultura”. (Oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos, 1966: 2-3) Estos derechos deben garantizarse, según la 3 Pacto ratificado por México.
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ONU, mediante la vigilancia de los principios de “la libertad de expresión, el pluralismo de los medios de comunicación, el plurilingüismo, la igualdad de acceso a las expresiones artísticas, al saber científico y tecnológico … y la posibilidad, para todas las culturas, de estar presentes en los medios de expresión y de difusión”. (Ibidem: 3) Es patente que el organismo ignora la conformación de fuerzas en las sociedades capitalistas actuales, fuerzas que favorecen la concentración de la propiedad de los medios de difusión en las empresas transnacionales, lo cual ha sido contrario a los esfuerzos por democratizar el acceso de grupos subalternos a dichos medios. Los documentos de la ONU hacen énfasis en la preservación y transmisión del patrimonio, en el reconocimiento de los derechos de autor y en la no consideración de los bienes y servicios culturales como simples mercancías, pero no se refieren a la obligación del Estado de realizar las inversiones en este campo. A éste sólo le compete “definir su política cultural y aplicarla utilizando para ello los medios de acción que juzgue más adecuados”. (Ídem) El fin de dicha política es el de garantizar la libre circulación de las ideas y las obras y la creación de “condiciones propicias para la producción y difusión de bienes y servicios culturales diversificados, gracias a industrias culturales”. (Ídem) Se trata de nuevamente de un planteamiento liberal clásico en que el Estado no es sino una suerte de vigilante de las acciones que preferentemente ejecutan los individuos. Pero, evidentemente, para que todos los grupos pudieran expresarse y difundir su cultura se necesitaría de una intervención del Estado mucho más fuerte y decidida, de dispositivos legales que garantizarían el acceso de todos a los medios, de instituciones estatales con presupuestos apropiados y, muy probablemente de la definición de cuotas de participación para los grupos minoritarios. La ONU apenas reconoce “desequilibrios” en “los flujos e intercambios de bienes culturales a escala mundial”, como si no hubiera una concentración atroz de la propiedad de los canales más importantes de distribución de los bienes culturales, y como remedio propone “reforzar la cooperación y la solidaridad internacionales” para que todos los países, especialmente los “en desarrollo” y “en transición”, puedan OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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crear “industrias culturales viables y competitivas.” A pesar del esfuerzo por adoptar un discurso lo más democrático posible, la ONU propone como prioridad la creación de las industrias culturales y no la protección y promoción de las actividades artesanales, surgidas al margen del ámbito industrial, que tienen una especial relevancia en los países que el organismo supuestamente pretende apoyar con especial énfasis. Fue entonces a partir de estos antecedentes que la UNESCO elaboró la Declaración Universal sobre la Diversidad Cultural (2001). Su justificación del cambio de enfoque- en el que se transforma la idea del derecho individual a la expresión cultural a la noción de identidades culturales colectivas- se relaciona con la apreciación de los cambios sociales provocados por la globalización, así como con el hecho de que “la rápida evolución de las nuevas tecnologías de la información y la comunicación (…) crea las condiciones de un diálogo renovado entre las culturas y las civilizaciones”. (UNESCO, 2001: 1) Es una constante que aparece en todos los documentos del organismo: por un lado siempre se subraya su congruencia con sus propios principios a partir de las citas de los documentos anteriores en los cuales supuestamente ya se habían empleado dichos conceptos, y por el otro, cuando el organismo se ve obligado a cambiar de perspectiva, siempre lo relaciona con los cambios “de las realidades” y no, por ejemplo, con las limitaciones de sus propios enfoques. En esta ocasión, lo que intenta hacer la UNESCO es conciliar su perspectiva anterior, universalizante, con otra que se basa en el reconocimento de los derechos derivados de ciertas circunstancias particulares, relativas a la pertenencia a una cultura concreta. Cree que ambas dimensiones pueden articularse mediante la noción de la solidaridad, que en esta ocasión sustituye sus habituales llamados a la cooperación. (UNESCO, 2001: 1) Desde luego en ambos casos se trata de nociones abstractas. Define su nueva posición como pluralista, lo cual incluye la preocupación por la diversidad cultural entendida como sostén de diferentes identidades. Por primera vez hace énfasis en el plurilinguismo, que a partir de ahora se convertirá en una de sus preocupaciones centrales. La concepción de la diversidad cultural de la UNESCO es una suerte de
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síntesis de los enfoques liberal y pluralista del multiculturalismo, que descontextualizan y despolitizan las cuestiones relacionadas con las cuestiones de raza, género, cultura, lenguaje, etc. Invitan a celebrar la diversidad cultural sin cuestionar la opresión en que han vivido las culturas minoritarias frente a la cultura hegemónica durante siglos y sin señalar cómo podría revertirse esta situación, ni plantear la responsabilidad del Estado en esta materia. Debe, no obstante, subrayarse que es en este documento en el que el organismo se refiere por primera vez a la promoción de la interculturalidad. En este momento la UNESCO entiende por ello fundamentalmente “el intercambio de conocimientos y de las prácticas (…) (entre) personas y grupos que procedan de horizontes culturales variados”, la introducción de diversas lenguas, incluida la materna, en todos los niveles de la enseñanza, el fomento de la conciencia del valor positivo de la diversidad cultural, así como la incorporación de métodos pedagógicos tradicionales, lo mismo que el fomento a la “alfabetización digital” y del uso de la tecnologías, la difusión de los contenidos diversificados en los medios de comunicación y redes mundiales de información, así como el fomento a la movilidad de los creadores e investigadores a fin de que desarrollen proyectos conjuntos. (UNESCO, 2001: 4-6) Así, la interculturalidad debe construirse, a juicio de la UNESCO, a partir de los sistemas educativos y medios de difusión, así como a través de proyectos diversos que estimularían el intercambio de conocimientos y prácticas entre grupos y personas culturalmente diversos. Además de los aspectos ya mencionados, el organismo recomienda también que se mejoren, a esos efectos, la formulación de los programas escolares y la formación de los docentes”, que se respeten y protejan los sistemas de conocimiento tradicionales, especialmente los de los pueblos indígenas y particularmente los que se refieren al cuidado del medio ambiente y la gestión de recursos naturales. Aunque no se dice explícitamente que dichos conocimientos deben incluirse en los currículos escolares, sí se plantea la integración “al proceso educativo (…) de métodos pedagógicos tradicionales, con el fin de preservar y optimizar métodos culturalmente adecuados para la comunicación y la transmisión del saber. (Ídem: 5)
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La interculturalidad es, entonces, fundamentalmente para UNESCO una cuestión de intercambios simbólicos, por un lado, y por el otro, de la enseñanza de diversas lenguas y del aprecio por diversas culturas, con un énfasis especial en las indígenas. Se abandona aparentemente la idea de la segregación de las culturas minoritarias pero no hay planteamientos claros sobre la integración de los diversos grupos culturales. Al asumir que la cultura atañe fundamentalmente al ámbito simbólico, la UNESCO no presta ninguna atención a los aspectos materiales y políticos que hasta ahora han impedido el acceso equitativo de las minorías al sistema educativo, así como su plena participación en la vida económica y política del país. No obstante, las políticas anunciadas apuntan hacia algo más que el fomento del turismo cultural, a medida que reconocen el valor de los conocimientos de las culturas no occidentales y proponen incorporarlos en la enseñanza escolar junto con los métodos que dichas culturas emplean para transmitirlos. Así, aunque dichas recomendaciones estén en el mismo nivel que las que se refieren al fomento de la “alfabetización digital” y acrecentar el dominio de las nuevas tecnologías de la información y de la comunicación, que deben considerarse al mismo tiempo disciplinas de enseñanza e instrumentos pedagógicos capaces de reforzar la eficacia de los servicios educativos, constituyen, sin duda, un avance. Aunque las relaciones interculturales deben construirse, conforme a la UNESCO, preferentemente dentro de los sistemas educativos, el organismo considera que también debe asegurarse la presencia de “contenidos diversificados” en los medios de comunicación, a fin de que la diversidad cultural pueda manifestarse en el ámbito público. La UNESCO entiende que dichas manifestaciones deben estar vinculadas con la “preservación y realce del patrimonio natural y cultural” y no contempla la posibilidad de que los diversos grupos culturales puedan pronunciarse sobre los asuntos de su interés, incluidos los de índole económica, política, educativa. La perspectiva de la UNESCO exhibe también limitaciones en cuanto a la posibilidad de que los miembros de las diversas culturas participen en el diseño, producción y difusión de las políticas públicas, incluida la educativa. En este sentido
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sólo propone en forma abstracta “lograr que los diferentes sectores de la sociedad civil colaboren estrechamente en la definición de políticas públicas de salvaguardia y promoción de la diversidad cultural” e, inmediatamente después, subraya la importancia de la participación del sector privado. (Ídem: 6) Es importante señalar que en 2005 se aprobó la Convención sobre la protección y promoción de la diversidad de las expresiones culturales que tiene un carácter vinculante para los países que la signaron.
El plurilinguismo como aspecto de la politica del relativismo cultural
Un nuevo cambio en las concepciones de la UNESCO se dio a partir de la publicación del documento titulado La educación en un mundo plurilingüe, que daba sustento a la Resolución 30 C/12 aprobada por la Conferencia General en 1999. (UNESCO, 2003) Esta vez, se trataba de reconocer la importancia y el valor de la diversidad de las lenguas, en lugar de ver en ello un problema como había acontecido antes. Como en ocasiones anteriores, para introducir el nuevo enfoque el organismo buscaba dar la impresión de que, por un lado, había tenido esta preocupación desde mucho antes, para lo cual citaba sus documentos antiguos, (UNESCO, 1953, 1960, 1992, 1997) y por el otro, justificaba el cambio de su perspectiva a partir de la descripción de las transformaciones que ha experimentado el mundo recientemente. (UNESCO, 2003: 9) En efecto, conforme a la UNESCO el plurilingüismo constituye una situación nueva que se debe a las nuevas políticas lingüísticas en los países poscoloniales y recién independizados, a la existencia del peligro de desaparición de muchos idiomas, a los movimientos migratorios masivos, al internet, y al ritmo acelerado de mundialización que “compromete cada vez más la supervivencia de grupos pequeños, cuya identidad suele basarse en la lengua”. (Ibidem) Por otra parte, el organismo reconoce que el respeto a la diversidad lingüística ha sido una de las demandas que los grupos minoritarios han planteado con mayor insistencia, demanda que OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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incluye “la condición oficial y jurídica de las lenguas minoritarias e indígenas, (…) la enseñanza y el uso de esas lenguas en las escuelas y otras instituciones, así como su utilización en los medios de comunicación”. (Idem: 16-17) Como puede apreciarse se trata, como en los documentos comentados anteriormente, de una enumeración azarosa de circunstancias, sin que distingan cuestiones tan diversas como la difusión del internet y los movimientos migratorios, que se deben a causas disímiles y que repercuten en la vida de los grupos afectados en forma completamente diferente. Pero en lugar de indagar las causas, los contextos específicos y los problemas que entraña el uso de las distintas lenguas, la UNESCO se limita a constatar la existencia del plurilingüismo, como una situación de hecho, al tiempo que se presenta como sensible a las demandas de los grupos minoritarios. No se puede negar, sin embargo, la enorme importancia de dicho reconocimiento, así como de sus consecuencias. En realidad, la nueva propuesta de la UNESCO puede leerse como un germen de una visión completamente distinta de la educación a la promovida por los otros organismos internacionales y por ella misma en los años anteriores.4 En efecto, el nuevo enfoque permite dar un viraje radical a las políticas educativas orientadas hasta hace poco hacia la homogeneización de las sociedades en nombre de la afirmación de la identidad nacional, así como hacia su modernización, que implicaba, como se ha señalado en repetidas ocasiones, la intención de occidentalizar a todos los países del mundo, con todo lo que ello significaba: la promoción del individualismo, de la aspiración al progreso material, la orientación hacia la preparación para el trabajo, un ejercicio restringido de la ciudadanía, etc. (Ianni, 1996; Chomsky y Dieterich, 1995) Como consecuencia de aquellos planteamientos las lenguas se jerarquizaban, considerando que tenían valor sólo las que promovían “la unidad nacional” y la “modernización”, mientras que las demás se asociaban con “el atraso”. Estas últi4 Un ejemplo de ello es el documento elaborado conjuntamente por la CEPAL y la UNESCO, titulado Educación y conocimiento: eje de la transformación productiva con equidad de 1992 y que constituye la fundamentación de la reforma neoliberal.
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mas, huelga decir, pertenecían invariablemente a las minorías. No se trata entonces de un cambio de perspectiva menor. La política de reconocimiento a todas las lenguas implica no sólo abandonar un trato discriminatorio a quienes tenían como lengua materna un idioma diferente al que se había adoptado como nacional, sino también los supuestos que afirmaban la superioridad de la cultura y los valores occidentales. En este contexto habría que subrayar que la UNESCO, además de señalar los riesgos del monolingüismo, a medida que implica la pérdida de la diversidad lingüística y cultural, denuncie que las lenguas nacionales en muchos países son las de los antiguos colonizadores. (Ídem: 12) Se trata de un señalamiento importante y congruente con la definición de la lengua como uno de los fundamentos de la identidad. Ésta vez, la cuestión de la identidad y del uso de todas las lenguas en la enseñanza, ya no es sólo una cuestión ética para la UNESCO. Por el contrario, el organismo reconoce que ello tiene implicaciones políticas, puesto que “confiere poder y prestigio” a sus hablantes. Dicho reconocimiento está vinculado con una concepción amplia de la lengua comprendida como no sólo “un instrumento de comunicación, sino además un atributo fundamental de la identidad cultural y la realización del potencial individual y colectivo”. (Ídem: 16) Junto con lo anterior, la UNESCO reconoce la dimensión cognoscitiva de los idiomas, lo que confiere un valor especial al aprendizaje de otras lenguas, como portadoras de otros valores y otras interpretaciones del mundo. (Ídem:17) Los nuevos planteamientos llevan a que la UNESCO reconozca que “… en las sociedades plurales las soluciones uniformes (…) tienen el gran inconveniente de hacer caso omiso de los riesgos que su aplicación entraña, ya se trate de los resultados de la enseñanza o de la pérdida de la diversidad lingüística y cultural”. (Ibidem) De nuevo se trata de una cuestión de primera importancia para los países que, como es el caso de México, siguen promoviendo, en lo fundamental, los programas educativos monocultares, reforzados ahora por la aplicación de los exámenes estandarizados a nivel nacional. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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También las demás recomendaciones de la UNESCO son dignas de ser tomadas en cuenta en países con características similares a las de México: la de salvaguardar la diversidad lingüística, la de emplear las lenguas maternas en la enseñanza, tanto como asignatura como también como medio de enseñanza, la de aspirar a que todos los estudiantes aprendan tres lenguas, por lo menos: la lengua materna, la lengua regional o nacional y una lengua internacional. Sus propuestas en este sentido, aunque siguen siendo abstractas, a medida que no parten de estudios contextuales concretos, permiten problematizar algunas cuestiones relativas al uso de las diversas lenguas en la enseñanza escolar. Y así, la UNESCO advierte sobre la inconveniencia del empleo del concepto de la “lengua materna”, puesto que no establece una distinción entre todas las variantes de una lengua utilizadas por los hablantes, sus variedades dentro de un país. Aunque no propone el uso de otro concepto, llama la atención sobre el hecho de que las primeras experiencias de un niño no corresponden necesariamente con la variedad de la lengua materna usada en la escuela. (Ídem: 15) Junto con esta preocupación, introduce otra, relativa a la discriminación de género en materia lingüística, al observar que “en sociedades tradicionales, las niñas y las mujeres suelen ser monolingües. (Ídem: 16) A pesar de la recomendación de que a todos los niños se les imparta la enseñanza en su lengua materna, la UNESCO señala las dificultades que ello conlleva. (Ibidem) En muchas ocasiones es una lengua no escrita, a veces no es reconocida por todos como una auténtica lengua, tal vez no se haya elaborado aún la terminología apropiada a los efectos de su enseñanza, pueden existir pocos materiales didácticos para esta lengua, la carencia de profesores capacitados, la resistencia a la escolarización en la lengua materna por parte de alumnos, padres y/o profesores. Finalmente, reconoce que en los casos en que haya un gran número de lenguas en un país, resulta difícil impartir la educación en todas ellas. (Ibídem) Como consecuencia de los nuevos planteamientos, el organismo abandona el bilingüismo sustractivo, cuya finalidad es que los niños pasen a una segunda lengua como la lengua de enseñanza y propone dos principios básicos para orientar
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la política educativa. El primero se refiere a “la enseñanza en la lengua materna como medio de mejorar la calidad de la educación basándose en los conocimientos y la experiencia de los educandos y los docentes”. (Ídem: 31) Si bien, la UNESCO considera que dicha lengua es “esencial para la instrucción inicial y la alfabetización”, recomienda extender su enseñanza “hasta el grado más avanzado posible”. (Ibídem) En los grupos mixtos dicha enseñanza debe llevarse a cabo “en la lengua menos difícil para la mayoría”. Para que ello sea posible, el organismo recomienda producir y difundir de material didáctico y de lectura en lenguas maternas, y formar a un número suficiente de profesionales que estén “plenamente capacitados y calificados, que conozcan la vida de su pueblo y sean capaces de impartir la enseñanza en la lengua materna”. (Ibídem) El segundo principio se refiere a “la educación bilingüe y/o plurilingüe en todos los niveles de enseñanza como medio de promover a un tiempo la igualdad social y la paridad entre los sexos y como elemento clave en sociedades caracterizadas por la diversidad lingüística”. (Ídem: 32) A pesar de que el enfoque de la UNESCO sigue anclado en los principios de un relativismo cultural que evita la alteración sustancial de las relaciones de poder existentes5, es posible reconocer en él también algunos ecos del discurso poscolonial, teoría que reivindica la importancia de todas las lenguas como constructoras de realidades sociales, portadoras de valores y de la memoria social y, por consiguiente, de las identidades. (Giroux, 1997: 33) Es de subrayarse que el organismo no entiende la enseñanza de los idiomas como “simples ejercicios lingüísticos” sino que considera que dicha enseñanza “debería ser la ocasión de reflexionar sobre otros modos de vida, otras literaturas, otras costumbres”. (UNESCO, 2003: 34) En distintas ocasiones insiste en la necesidad de incluir en los currículos los conocimientos producidos por los grupos minoritarios y especialmente la historia de estos grupos. Sin duda, los nuevos planteamientos de la UNESCO constituyen un 5 Me refiero al uso político actual de esta postura y no al enfoque desarrollado por la antropología, que se opuso en su momento a la jerarquización de las distintas culturas a partir de las referencias occidentales. (Bartolomé , 2006: 109- 114)
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avance en la comprensión de la interculturalidad y también no cabe duda que, de aplicarse, podrían constituir una base importante para construir una sociedad más democrática, para reducir las prácticas discriminatorias, permitir la creación de identidades complejas que facilitarían la participación de los sujetos en diversos ámbitos culturales al mismo tiempo. Sin embargo, también es cierto que el planteamiento de la UNESCO sigue separando la esfera cultural y educativa de los ámbitos económicos, políticos, sobre los cuales habría que reflexionar en conjunto si se quisiera realmente buscar una mayor justicia social, condición de una verdadera democracia. Es indispensable, como subrayan Kincheloe y Steiberg, comprender las conexiones entre estas esferas, para dar cuenta de los procesos de dominación y subordinación que afectan a los estudiantes de manera distinta según su clase social, género y la pertenencia étnica. (Kincheloe y Steinberg, 1997: 57) Al referirse constantemente a las lenguas y conocimientos indígenas, como objeto de atención, por un lado contribuye a su reivindicación, pero por el otro, se corre el peligro de que ello prolongue la estigmatización de los sujetos concebidos en términos de su pertenencia a una etnia, mientras que la cultura dominante es comprendida como no- étnica, como un referente neutro. (Ídem: 56) La UNESCO en todos los documentos analizados hasta ahora, y éste no es una excepción, presupone la existencia del consenso social y de la igualdad de todos los sujetos independientemente de su pertenencia étnica, de clase social y género. De ahí que plantee la posibilidad de combinar diversas culturas sin conflicto, recuperar historias y conocimientos de los grupos subordinados como si eso fuera
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una cuestión sencilla en la que no pesan el olvido de cientos de años y la discriminación que ha provocado que los propios grupos minoritarios no valoraran sus conocimientos y lenguas. Tampoco considera la participación de dichos grupos en el diseño de los currículos. Sin ello, sin embargo, no se puede asegurar que sus puntos de vista sean realmente reflejados en los programas de estudio que se ofrezcan a los niños y jóvenes de toda la sociedad.
Del pluralismo a la interculturalidad
En 2007 el organismo publicó un documento titulado Directrices de la UNESCO sobre la educación intercultural en que, de nuevo, puede observarse una serie de cambios conceptuales. En primer lugar, por primera vez la UNESCO reconoce la existencia de las desigualdades entre las culturas y, por tanto, de las serias desventajas de las culturas minoritarias frente a la cultura dominante. En segundo lugar, también por primera vez se admite el vínculo existente entre la cultura, la condición social y económica del grupo en cuestión.6 Y, finalmente, se introduce el tema religioso como uno de los aspectos que deben ser considerados para construir una sociedad verdaderamente multicultural. Veamos cada uno de estos aspectos. El documento inicia con el reconocimiento de las tensiones existentes en una sociedad multicultural, tensiones que necesariamente hay que enfrentar al diseñar un modelo de educación que busca atender las necesidades de una sociedad de este tipo. En efecto, planea el organismo, cada cultura tiene una distinta concepción del mundo y las diversas concepciones no conviven simplemente sino compiten entre sí. (Ídem: 11) Ello da lugar, más adelante a la admisión de la existencia de “los conflictos entre diversos grupos culturales” y al planteamiento que ello está asociado a “distintos grados de acceso al poder y la influencia políticos (sic) y económicos (sic)”. (Ídem: 15) De modo que, a diferencia de los documentos anteriores, ahora se plantea abiertamente que “las diferentes culturas no tienen las mismas posibilidades de supervivencia o 6 Un esbozo de este planteamiento estaba presente en el Convenio no 169 de la OIT, comentado al inicio de este ensayo.
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de expresión en el mundo moderno”, es decir, se reconoce abiertamente la desigualdad no sólo en la distribución de los recursos, sino también en el acceso al poder y, por tanto, la opresión en que se encuentras las culturas minoritarias actualmente y no sólo en la época colonial. (Ibídem) Ello ya constituye un enorme avance frente a la postura anterior del organismo. Aunque la UNESCO proponga como remedio a esta situación la educación intercultural, es de suma importancia que reconozca que dichas culturasrefiriéndose en concreto a los pueblos indígenas-, “han sido sometidos a políticas económicas, culturales y de comunicación y educación que, aun bien intencionadas, han contribuido a socavar las bases de su existencia material”. (Ídem: 16) Al abandonar su tradicional postura liberal que presuponía la igualdad de todos los sujetos, ahora el organismo reconoce que en las sociedades actuales existe una jerarquización de los distintos estilos de vida y la marginación de algunos de ellos. (Ídem: 17) Ello significa que, aunque la UNESCO no señale las políticas que en concreto han instrumentado los Estados en las décadas anteriores y que han conducido al debilitamiento de las culturas indígenas en todos sus aspectos, incluido el material, por primera vez formula una crítica explícita a dichas políticas refiriéndose a épocas recientes y no sólo al colonialismo que, en caso de América latina, parecía trasladar la responsabilidad a tiempos muy remotos, dando la impresión que desde la independencia, la situación de dichos pueblos ha cambiado sustancialmente. Por otra parte, las formulaciones citadas, permiten apreciar que la UNESCO termina por reconocer la estrecha vinculación entre los ámbitos cultural, social, económico y político. En efecto, en esta ocasión señala que los programas educativos deben “fomentar la vitalidad cultural, social y económica de estas comunidades (…) propiciando al mismo tiempo una adquisición de conocimientos y habilidades que los preparen para participar plenamente en la sociedad en general”, (Idem: 17) lo que refuerza la idea, presente en todo el documento, que no sólo se trata de salvaguardar y fortalecer los elementos simbólicos de las culturas minoritarias, sino de fortalecer su condición social y económica, y propiciar intercambios y relaciones con la sociedad en su conjunto. Es de suma importancia que la UNESCO reconozca en esta ocasión la
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existencia de diversas religiones en el seno de las sociedades multiculturales y que plantee como una de las cuestiones que el sistema educativo debería atender, la cuestión del diálogo interreligioso. (Ídem: 14) El organismo define las religiones como “diferentes modos en que la gente puede hacerse cargo de la promesa, el desafío y la tragedia de la vida humana” y plantea su interacción con “otras prácticas y valores culturales”. El apartado dedicado a este tema contiene una especie de autocrítica a medida que se señala que “en Occidente, desde los tiempos de la Ilustración se tiende a restar importancia al papel de la religión en la vida pública”, a pesar de lo cual se observa que aumentan los conflictos sociales y políticos relacionados con estas cuestiones o que los toman como pretexto. (Ibídem) Al mismo tiempo, se recomienda valorar esta cuestión en cada sociedad, puesto que “en un contexto cultural escolar laico, la educación interconfesional puede no tener el mismo peso ni importancia que en un entorno donde las cuestiones de la fe gravitan considerablemente en la vida escolar”. (Ibídem) Así, a diferencia del Convenio no 169 de la OIT, en que se recomendaba fortalecer las identidades, las lenguas y las religiones de los diversos grupos culturales, política que conducía a acentuar las diferencias entre éstos, ahora el acento está puesto en el diálogo intercultural, en que se incluyen las cuestiones religiosas. Las nuevas consideraciones producen un cambio en la definición del multi e interculturalismo y, por ende, de la propia cultura. Ahora, se define lo multicultural como la diversidad no sólo en términos de la cultura étnica o nacional, sino también “la diversidad lingüística, religiosa y socioeconómica”, (Ídem: 17) es decir, se abandona, por lo menos parcialmente la idea de que lo multicultural sólo atañe el ámbito de los intercambios simbólicos y se incorpora lo material, lo socioeconómico. Al mismo tiempo se deja de lado la idea, presente en los documentos anteriores, sobre la necesidad de fortalecer, cada una de las culturas y se pone énfasis en “la presencia e interacción equitativa de diversas culturas y la posibilidad de generar expresiones culturales compartidas, adquiridas por medio del diálogo y de una actitud de respeto mutuo”. (Ibídem) Es también de suma importancia el que la UNESCO subraye que no se trata de una coexistencia pasiva de las culturas sino de OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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“lograr un modo de convivencia evolutivo y sostenible en sociedades multiculturales, propiciando la instauración del conocimiento mutuo, el respeto y el diálogo entre los diferentes grupos culturales”. (Idem: 18) Conforme a la UNESCO será la educación la que contribuirá a la construcción de las sociedades plenamente multiculturales, fomentando la vitalidad de la culturas, asegurando la participación de los sujetos en las diversas culturas presentes en el territorio nacional, propiciando la interacción de diversas culturas y la generación de las expresiones compartidas, el diálogo y el respeto mutuo. (Idem: 17) En este sentido distingue entre el enfoque tradicional, multicultural, que recurría “al aprendizaje sobre otras culturas para lograr la aceptación o, por lo menos, la tolerancia para con esas culturas”, del que ahora se dispone promover, que denomina como intercultural y que se propone propiciar “la instauración del conocimiento mutuo, el respeto y el diálogo entre los diferentes grupos culturales”. (Idem: 18) La educación intercultural así entendida, advierte la UNESCO, no puede ser un simple “añadido” en los currículos escolares”. (Ídem: 19) Por el contrario, se requiere transformar el entorno pedagógico, la vida escolar, la adopción de decisiones, la formación y capacitación de docentes, los programas de estudio, las lenguas de instrucción, los métodos de enseñanza, las interacciones entre los educandos y los materiales pedagógicos. (Ibídem) Aunque el organismo deja estos planteamientos en un nivel abstracto, puesto que no precisa cómo ni en qué sentido deben ir estas transformaciones, el señalamiento general es valioso. Preocupa que diga que en esta reformulación pueden incorporarse múltiples perspectivas y voces, en lugar de establecer eso como una necesidad ineludible. Sólo si se incorporan las perspectivas de las diversas culturas que conviven e interactúan en al ámbito regional y/o nacional podremos hablar realmente de un enfoque intercultural. En cambio, si las transformaciones del funcionamiento escolar y de los currículos se efectúa bajo una sola perspectiva, la dominante, por más que ésta busque dar cuenta de las distintas culturas, los resultados difícilmente serían aceptados por los grupos minoritaríos, porque difícilmente reflejarían sus puntos de vista e intereses.
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Como objetivos de la educación intercultural la UNESCO plantea los cuatro “pilares” definidos por la Comisión sobre la Educación para el Siglo XXI, es decir, aprender a conocer, aprender a hacer, aprender a vivir juntos y aprender a ser. (Ídem: 1920) Estos objetivos han sido considerados por diversos autores como elementos de la visión neoliberal de la educación, visión que pretende justificar el sometimiento de la educación a los objetivos económicos. (Rivero, 1999; Gentili, 2004) Resulta paradójico que los objetivos de una propuesta aparentemente tan avanzada de la educación intercultural se sometan, hacia el final del documento, a un ideario que responde a la visión que homogeneíza los propósitos educativos de acuerdo con los intereses de los poderes económicos hegemónicos. En efecto, como se ha destacado en una ya amplia literatura sobre el tema, la política educativa impulsada desde los años 90 en el mundo occidental constituye una suerte de traducción de los principios en torno a los cuales se reorganizó el trabajo en los empresas después de la tercera revolución industrial y que tienen como eje los conceptos de calidad total, entendida como la flexibilidad, la eficacia y la eficiencia del sistema. (Jablonska, 1994) Estos conceptos, tomados del ámbito empresarial, se aplicaron al ámbito educativo conforme a las recomendaciones de la CEPAL- UNESCO (1992) y se tradujeron en la descentralización- factor clave en la búsqueda de la “flexibilidad”-, introducción de los estándares de calidad muy vinculados con la eficacia y eficiencia (puesto que se mide por la relación entre los invertido en la educación y sus “resultados” cuantitativos, tales como la tasa de egresados, el porcentaje de profesores con la máxima cualificación académica, etc.) y, finalmente, por la formación basada en “competencias”, conforme a las recomendaciones de la comisión presidida por Jaques Delors. A pesar de que los organismos de la ONU tratan de hacernos ver que los dos enfoques son compatibles, en realidad no es así, a medida que se basan en supuestos contradictorios. El modelo de educación neoliberal propone una sola estrategia, apoyada en los mismos principios, para todos los contextos socioculturales bajo la premisa de la existencia de una sola economía global y de un solo modelo de productividad, el que se ha desarrollado en las empresas que incorporaron en su proceso producOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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tivo las nuevas tecnologías. Por el contrario, el modelo de la educación intercultural se basa en la idea de que la diversidad cultural realmente existente debe reflejarse en el proceso educativo que debe incorporar las distintas perspectivas, propias de los grupos humanos que habitan un territorio nacional, y responder a sus intereses particulares. Este último modelo asume, implícitamente, que no existe una sola racionalidad que debería permear todo el currículum escolar, sino que hay tantas racionalidades cuantas culturas, ninguna de las cuales debe ser privilegiada por encima de otras. Por contraste, el modelo neoliberal no sólo privilegia la racionalidad occidental, basada en las ideas de productividad, eficacia y eficiencia sino que la erige en la única posible.
Reflexiones finales
Después de un análisis puntual de la transformación de los conceptos de la cultura, la educación, así como de la inter y multiculturalidad, deseo volver al planteamiento metodológico planteado en la parte inicial de este texto. La UNESCO, quien se asume en todos los textos como el enunciador del discurso, se considera como un organismo supranacional, con indudable legitimidad y autoridad en el tema de la política educativa. Esta autoridad se establece en los textos a partir de diversas consideraciones. La primera es la continuidad de una política mundial preocupada por los valores humanos universales desde su fundación hasta la actualidad. De ahí que en todos los textos analizados hay un largo párrafo en que el organismo procura convencer a sus lectores que ha continuado la misma política desde su fundación. Aún cuando se ve obligado a hacer cambios sensibles en sus conceptualizaciones , por ende, políticas, las presenta como “exigencia del momento”, como una respuesta a un mundo social dinámico y cambiante y, de paso, se presenta a sí mismo como un organismo atento a dichos cambios a y a las demandas sociales. Con frecuencia se refiere a los foros en que se discutieron sus propuestas y a “las consultas” que se hayan realizado al respecto y, sobre todo, a su preocupación
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por la opinión de los “expertos”.7 Otra fuente de la autoridad y la legitimidad de la UNESCO es su permanente invocación de los valores “universales” de la humanidad: la justicia, la paz, la libertad, la dignidad, los derechos humanos, etc, valores enunciados siempre en forma abstracta, sin considerar que éstos pueden tener diversos significados e implicaciones en diferentes comunidades y situaciones históricas concretas. Ahora bien, ¿a quién se dirige su discurso? Fundamentalmente a los Estados soberanos, que implícitamente son considerados como Estados democráticos que representan la voluntad de sus miembros. A partir de este supuesto, la UNESCO no considera necesario dirigirse a otro tipo de actores sociales, aunque con frecuencia recomienda a los Estados crear mecanismos mediante los cuales los sujetos a los que se dirigen las políticas establecidas, participen en su planeación y ejecución. En general, la UNESCO suele efectuar análisis abstractos, vale decir, ahistóricos. Aunque suele marcar las diferencias entre los países desarrollados y los que denomina “en vías de desarrollo” o “poscoloniales” , no considera que ello tendría que implicar miradas distintas y conceptualizaciones diferentes. Ello inevitablemente implica la imposición de un solo punto de vista, bajo la vieja premisa cultura occidental que suele considerarse a sí misma como referente para todas las culturas. Pero, no hay que olvidar, la imposición de un solo punto Geraldo de Barros
de vista, es justamente contraria a los propósitos del multiculturalismo. Éste sólo es posible si parte de un auténtico diálogo y negociación entre las culturas, entendidas no 7 En el prefacio a La educación en un mundo plurilingüe, plantea lo siguiente: “Este documento (…), tiene como objetivo aclarar algunos de los conceptos y asuntos claves que rodean este debate, y presenta (…) las muchas declaraciones y recomendaciones que han hecho referencia a las cuestiones de lenguas y educación. Éstas han sido establecidas como directrices y principios de la UNESCO, siendo el fruto de diálogos y discusiones que han tenido lugar durante muchos mítines internacionales y conferencias de las Naciones Unidas y la UNESCO y de asesores cualificados en el mundo de la política de lenguas y educación. Un mitin de un grupo de expertos, que tuvo lugar en París en septiembre del 2002, enriqueció el documento original, al mismo tiempo que sirvió para explorar el futuro papel de la UNESCO en este campo. “ (UNESCO, 2003, Prefacio)
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como todos coherentes y armónicos, sino como estructuras diferenciadas y basadas en diversos conflictos, pero que proveen a sus integrantes de ciertos sistemas de significados y sentidos, que satisfacen una limitada gama de capacidades y posibilidades humanas. (Bartolomé, 1996: 118) Como todas las culturas satisfacen de manera parcial y limitada a sus integrantes, es indispensable el diálogo entre ellas para ampliar sus posibilidades. El problema no es sólo la imposición de dicho punto de vista, sino también que al ser sus recomendaciones hechas sin el conocimiento previo de los contextos específicos, éstas se vuelven impracticables, justamente por el peso de los factores que operan en los países latinoamericanos y que el organismo no toma en cuenta. Miguel Alberto Bartolomé ha demostrado en uno de sus libros que la llamada “independencia” de los países latinoamericanos en el siglo XIX, en realidad implicó el desplazamiento de la burocracia extranjera por las elites criollas y mestizas que efectuaron una “segunda conquista”, que implicó “una reestructuración política, económica y social de índole neocolonial”, (1996: 174- 175) situación que se mantiene en gran medida hasta la actualidad, pese a las diversas reformas democráticas. De ahí que los sistemas interétnicos se sigan comportado “como estructuras de explotación económica, generadores de una reiterada exclusión social y política, que acompaña la violencia material y simbólica ejercida sobre sociedades nativas”. (Idem: 32) El cambio que introdujo consigo la globalización es que los Estados latinoamericanos, excepción hecha de los últimos gobiernos de Venezuela, Bolivia, así como el de Cuba, han funcionado como agentes de respaldo para los intereses de capital transnacional, lo que ha significado en los hechos aumentar la presión sobre las comunidades indígenas a fin de que cedan los recursos que todavía quedan en sus territorios y de los que nunca han podido disfrutar plenamente. (Roitman, 1994; Vilas, 1994, Díaz-Polanco, 2007) A partir de ello ha aumentado también la corrupción que provoca una constante quiebra de leyes fundamentales para entregarle a dicho capital todo lo que a éste pueda interesarle: litorales, recursos naturales, etc. Este nuevo contexto ha implicado un mayor hostigamiento hacia las comunidades indígenas así
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como hacia los grupos que proponen caminos alternos. La UNESCO mantiene a lo largo de los años una postura liberal, universalizante, y aunque recientemente incorpora la idea sobre la necesidad de considerar también determinaciones culturales específicas, esta consideración no parece alterar mayormente su visión del conjunto. En efecto, las recomendaciones de la UNESCO están elaboradas con la pretensión de poder orientar lo mismo las acciones de los gobiernos que enfrentan la problemática multicultural derivada de las recientes migraciones, que la de los gobiernos en las sociedades en las que, como en Latinoamérica, habitan los pueblos originarios. Y, sin embargo, no se trata de situaciones análogas. Por un lado, como han argumentado diversos autores, no se puede subsumir todos los contextos dentro de la perspectiva liberal, puesto que ninguna doctrina política puede representar la totalidad de la experiencia y aspiraciones humanas. (Parekh, 2000; Bartolomé, 1996) En segundo lugar, es necesario reconocer que los migrantes que se desplazan dentro de Europa son todos partícipes de la cultura occidental y, por tanto, conocen y comprenden los mismos principios de convivencia y regulación social. No ocurre lo mismo en los espacios interétnicos en que se confrontan lógicas occidentales y no occidentales como en el caso latinoamericano. (Bartolomé: 1996) Otro tanto puede decirse de la distribución de poder en ambos casos. No puede compararse la situación de las etnias indígenas, a las que se les ha negado no sólo la participación en el poder, sino el acceso a sus propios recursos, así como a los servicios adecuados de educación, salud etc., con la que han vivido las minorías en Suiza o Canadá. (Ídem: 118- 119) En los países latinoamericanos persiste una profunda asimetría de poder material y simbólico, que constituye un obstáculo fundamental para el diseño, promoción y realización de las políticas interculturales efectivas. Es por ello que me incline a considerar el discurso de la UNESCO como un recurso legitimador y mistificador, que le sirve sobre todo al poder hegemónico mundial y que celebra la diversidad mientras ésta no atente contra sus bases. En palabras de Héctor Díaz- Polanco:
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La globalización funciona… como una inmensa maquinaria de “inclusión” universal que busca crear un espacio liso, sin rugosidades, en el que las identidades puedan deslizarse, articularse y circular en condiciones que sean favorables para el capital globalizado. La globalización entonces procura aprovechar las diversidades, aunque en el trance globalizador buscará, por supuesto, aislar y eventualmente eliminar las identidades que no le resultan domesticables o digeribles. (…) La globalización, en suma, es esencialmente etnófaga. (Díaz- Polanco, 2007: 137)
Es de suponer que otra intención de este discurso es apropiarse de los conceptos de muti e interculturalidad, darles contenido y dirección, antes de que los movimientos sociales radicalicen sus demandas de acceso al poder, a los recursos y a una educación definida por los grupos minoritarios.
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* Aleksandra Jablonska Zaborowska estudió la licenciatura y maestría en Sociología en la Universidad Nacional Autónoma de México y el doctorado en la Historia del Arte en la Universidad Autónoma del Estado de Morelos. Es profesora investigadora de la Universidad Pedagógica Nacional. Ha publicado dos libros y unos 30 ensayos como capítulos de libros y artículos en revistas especializadas. Desde 2008 coordina, junto con el Dr. Saúl Velasco, la investigación titulada “Las políticas educativas para la diversidad”. E-mail: aleksandra.jablonska@gmail.com
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O “OCASO” DO HERÓI TRÁGICO E O ANÚNCIO DO “ETERNO RETORNO”1 Tereza Cristina B. Calomeni*
Resumo: Acompanhando o movimento do texto Assim falava Zaratustra, o presente artigo apresenta o anúncio do eterno retorno, o pensamento abismal de Nietzsche. Palavras-chave: Zaratustra, morte de Deus, eterno retorno
I Quedai-vos vigilantes e à escuta, ó solitários! Chegam ventos, do futuro, com misterioso bater de asas; e trazem boa nova aos ouvidos finos.21
Zaratustra, o “mestre do eterno retorno” é, como Nietzsche, um extemporâneo, um inatual, um homem das alturas. O Prólogo da tragédia descrita em Assim falava Zaratustra tem início com uma referência ao recolhimento de Zaratustra ao silêncio de uma caverna situada no alto de uma montanha para onde havia se retirado aos trinta anos para o cultivo do isolamento, da solidão e de um certo olhar - intempestivo - para a humanidade e a cultura moderna. Alusão evidente ao platonismo - mais especialmente, ao mito platônico da caverna -, a primeira cena da tragédia apresenta um agradecimento: pleno, vigoroso, radiante, luminoso, Zaratustra saúda o sol como gratidão por tudo o que aprendera,assim mesmo, recluso, acima dos homens da planície. Enquanto a luz do sol - símbolo da sabedoria - não adentra a caverna platônica, a caverna de Zaratustra é o lugar mais apropriado ao acolhimento da ciência e ao fortalecimento do interes1 Este texto é parte da Tese de Doutorado - A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno em Nietzsche - apresentada à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em Agosto de 2000. Algumas alterações foram necessárias à presente publicação. 2 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, Da virtude dadivosa, 2, p. 91.
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se pela existência terrena e humana. Enquanto o sábio platônico deve-se esforçar constante e permanentemente para retirar-se da caverna e abraçar sua sabedoria, Zaratustra tem seu saber favorecido pela permanência no isolamento da caverna: o sol -- a ciência -- pode iluminá-lo e fortalecê-lo na solidão e no silêncio. Lugar de extemporâneos, dos criadores e dos fortes, o alto e a vida nas alturas conseguem dar a Zaratustra uma sabedoria alegre, uma gaia ciência que, conforme o desejo do próprio Zaratustra, será, gentilmente, oferecida aos homens. “‘Que seria a tua felicidade, ó grande astro, se não tivesses aqueles que iluminas!’”3 O movimento inicial de Zaratustra é um declínio -- um “ocaso”. Alegre, Zaratustra deixa sua morada e sua refinada solidão e desce a montanha aos quarenta anos, idade da maturidade e da colheita. Decisão, vontade de um espírito que se transformara, que se superara a si próprio e à moral milenar dos velhos valores e dos dez mandamentos cristãos, os ideais transcendentes e as “sombras de Deus”, o “ocaso” de Zaratustra é escolha determinada. Saudar o sol é expressão da alegria e do contentamento que acumulara com a experiência do “ar rarefeito das alturas”. Cansado de sua solidão e de sua sabedoria, Zaratustra desce alegremente. Como o sol que declina de sua morada nas alturas e vem caindo lenta e decididamente todos os dias para iluminar a terra e a vida dos homens, como o sol que, à noite, escondido “atrás do mar”, leva “ainda a luz ao mundo ínfero”,4 Zaratustra assume a necessidade e a urgência do declínio, vem à terra plana, desce à planície em que habitam os homens modernos para também, aos seus olhos, iluminar-lhes a vida com um presente: o futuro, o inabitual, o incomum, a renovação. A mensagem inscrita em sua alma solitária, o presente protegido em suas mãos de criador, deverão ser, julga ele, motivo de alegria e de júbilo para os homens. Intempestivo, Zaratustra, em sua descida, já está com olhos postos em outro tempo. Poeta, sua alma desce excitada pela novidade conquistada por um olhar mais rico para a vida e o mundo. No entanto, ao descer, Zaratustra ainda não sabe que a primeira hora lhe reserva surpresas desagradáveis e decepções desconcertantes. Não 3 Ibid., O prólogo de Zaratustra, 1, p. 27. 4 Id.
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sabe ainda que o caminho a percorrer até tornar-se o “mestre do eterno retorno” deverá ser árduo, árido, pedregoso, porque sempre dificultado pela incompreensão dos modernos, os homens da planície. Instalado por dez anos em sua caverna no alto da montanha, Zaratustra, ao menos para si próprio, é maduro, forte, seguro. Após dez anos de solidão, Zaratustra acredita ter conquistado maturidade suficiente para descer às profundezas e aos abismos, suficiente destreza para se abandonar ao convívio com os homens sem o risco de ser contaminado pela pequenez humana própria de sua época, sobretudo suficiente grandeza para dar aos homens o que tem em excesso - sua sabedoria, sua gaia ciência. Não espera a resistência e a recusa a que, ao descer, se submete: numa palavra, não espera a mediocridade dos homens contemporâneos, presos ainda a determinados valores e ideais próprios de uma interpretação moral da existência. Zaratustra, transformado, livre do peso do ideal transcendente, terá ainda que entender que a Modernidade é herdeira de uma “velha tábua de valores”, constituída pelo platonismo e consagrada pela religião cristã e, até certo ponto, pela ciência e historiografias modernas. Na planície, as nuvens são pesadas para Zaratustra. O tempo não é acolhedor de sua intempestividade. Não se escuta seu verbo. Suas estranhas razões e palavras “estridentes” não são compreendidas. Zaratustra ainda não pode, como pretende, falar do brilho do futuro que está por vir, ainda não pode comunicar suas leves palavras de criador. Zaratustra resplandece, mas, aparentemente, ainda não sabe que deverá enfrentar um longo caminho até poder falar da novidade mais escondida, de seu segredo mais visceral - a alegria da constatação e da aceitação do eterno retorno de todas as coisas, artifício de libertação do peso do ideal transcendente que marca a vida do homem ocidental, expediente de recuperação de uma relação trágica com a existência, tema central do livro e, no limite, de toda a obra nietzschiana do terceiro período. Generoso, dadivoso, Zaratustra quer levar aos homens um presente, o OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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super-homem (Übermensch), anunciado por ora, no Prólogo, como o novo “sentido da terra”. Do alto da montanha, iluminado e cheio de vida, excessivo, “como a abelha do mel que ajuntou em excesso”,5 Zaratustra, “a taça que quer transbordar”,6 quer descer à terra para que “sua água escorra dourada, levando a toda a parte o reflexo da [sua] bem-aventurança!”7 O tempo da descida revela um Zaratustra transformado. A luz que agora o ilumina decorre, na verdade, de uma metamorfose, de uma superação de si e da moral tradicional metafísico-religiosa, tema do primeiro discurso de Zaratustra, Das três mefamorfoses. Zaratustra não fora desde sempre alegre e radiante. Outrora, antes de sua ruminação intempestiva e solitária, antes da preparação de sua alma de criador, Zaratustra subira a montanha, exilara-se na caverna, talvez ainda influenciado pelo peso de Deus e da transcendência e naturalmente decepcionado com o convívio, nada alentador, com os homens, seus contemporâneos. A convivência com os homens, fora, de certa forma, desanimadora e Zaratustra escalara as alturas por entender a necessidade da distância e do isolamento, embora reputasse também necessária a permanente atenção às manifestações da vida e da cultura. Qual fênix - metáfora francamente utilizada por Nietzsche -, Zaratustra, no alto da montanha, renasce, cria-se outra vez, fortalece-se, volta ao fogo e ao vigor. Por isto, desce ao vale mais forte, mais íntegro, mais pleno, determinado como convém a um criador de novos valores, um legislador de si mesmo. No caminho de descida às profundezas e aos abismos, Zaratustra encontra um “velho”, um eremita - primeiro personagem a aparecer na trama da tragédia - que, deixando sua “sagrada choupana”, o reconhece: Zaratustra é aquele que havia subido a montanha carregando suas próprias cinzas. A interpelação do “velho” é, nesta altura do texto, o demonstrativo da transformação de Zaratustra. Não me é desconhecido, este viandante; passou por aqui há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado. / Naquele tempo, levavas a tua 5 Id. 6 Id. 7 Id.
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cinza para o monte; queres, hoje, trazer fogo para o vale? Não receias as penas contra os incendiários? / Sim, reconheço Zaratustra. Puro é o seu olhar e não há em sua boca nenhum laivo de náusea. Não será por isso que caminha como um dançarino? / Mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança, Zaratustra, despertou, Zaratustra; que pretendes, agora, entre os que dormem?8
A metamorfose de Zaratustra e, portanto, a velada exaltação da necessidade de superação da moral talvez sejam uma alusão disfarçada ao passado do próprio Nietzsche e à sua vida intelectual anterior: no tempo de redação de Assim falava Zaratustra, também Nietzsche já havia se transformado depois de carregar suas próprias cinzas, depois do tempo de recuperação da saúde, de recolhimento e de ruminação necessário como “estratégia de um grande livramento”.9 Outrora influenciado por Wagner, Kant e Schopenhauer, Nietzsche não pudera, durante algum tempo, desvencilhar-se absolutamente de certas ilusões metafísicas. Agora, ocasião de elaboração do Zaratustra, depois da ruptura com Wagner e Schopenhauer - ruptura mais explícita desde a constituição de Humano, demasiado humano -, 10 outro Nietzsche quer-se dirigir à Modernidade: um Nietzsche pleno de sua maturidade, ciente de sua tarefa e de sua missão, desejoso de expressá-las claramente e oferecer aos homens um outro caminho, a travessia para o futuro, para uma inusitada configuração cultural. A partir da construção de um novo olhar para a cultura moderna, Nietzsche quer mostrar a necessidade de aceitação da vida como ela é através da formulação do pensamento do eterno retorno e da confirmação da idéia de amor fati. “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo -- todo idealismo é mendacidade ante o necessário - mas amá-lo...”11 A despeito de ouvir do eremita o aviso de que poderia, não repartir ou transbordar, mas esvaziar-se ao se dirigir aos homens, Zaratustra, a “taça que quer 8 Ibid., 2, p. 28. 9 Cf. Prefácio escrito para Humano, demasiado humano, em 1886. 10 Antes mesmo de Humano, demasiado humano, Nietzsche critica as concepções de Schopenhauer. 11 NIETZSCHE, Ecce homo; como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, Porque sou tão inteligente, 10, p. 51.
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transbordar” seu excesso, escolhe correr o risco de “voltar a esvaziar-se”12 - e, neste caso, perder algo fundamental - e de se enfraquecer: esta é a grande prova, este, o grande perigo a ser enfrentado por Zaratustra em sua trajetória e no convívio com os homens modernos. Se a solidão favorece a dureza, a coragem e a força, virtudes de um “grande homem”, expedientes de repúdio do niilismo, a um só tempo, assustador e estéril, acercar-se dos homens fracos e escravizados - aqueles que, medíocres, “desconfiam dos solitários” e os confundem com “ladrões” - pode levar à exaustão, ao desânimo, ao niilismo e à passividade. No entanto, Zaratustra, amoroso, tem necessidade de ir ter com o humano; Zaratustra não prescinde do contato com os homens, possíveis companheiros de destruição e de criação; não quer ser “um urso entre os ursos, um pássaro entre os pássaros”.13 Zaratustra não é como o “velho” da floresta que se distancia dos homens e de sua imperfeição para amar e louvar a Deus; Zaratustra não odeia nem despreza os homens; Zaratustra “ama os homens” e é para eles que quer pronunciar: “preciso de mãos que para mim se estendam”.14 A solidão invocada por Nietzsche como necessária - a solidão de Zaratustra - não é sinal de desinteresse ou sintoma de inatividade. Nietzsche, inatual, extemporâneo, não se cansa de enaltecer a solidão, a vida nas alturas, mas não quer se evadir da história; quer se fortalecer e sugerir ao homem moderno a crença de que é preciso ser duro, decidir-se à construção de um futuro para ver a atualidade com mais clareza e maturidade. A solidão, inabitual para os modernos, é, para Nietzsche, condição de um outro olhar para a vida e a atualidade. Determinado e destemido, Zaratustra deixa a companhia do “velho” e chega à cidade, mais precisamente à “praça do mercado”, a Modernidade, a fim de entregar à multidão que espera ansiosa por um espetáculo de um “funâmbulo” o presente aos homens destinado, mas é logo surpreendido por uma decepção. Zaratustra experimenta o insucesso, depara-se com o fracasso: o presente - o super-homem, o novo “sentido da terra” - não é bem recebido, não é benvindo, não é compreendido 12 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, O prólogo de Zaratustra, 1, p. 27. 13 Ibid., 2, p. 29. 14 Ibid., 1, p. 27.
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pelos homens que o ouvem falar. “Vede, eu vos ensino o super-homem”.15 “O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?”16 Inútil: os supostos sábios que presenciam o discurso de Zaratustra não são simples como “pastores de cabras”; ao contrário, orgulham-se de sua “instrução”. Não será gratuito o conselho dado mais tarde a Zaratustra pelo “palhaço da torre”: “‘Vai-te embora desta cidade, ó Zaratustra (...); muitos são os que, aqui, te odeiam. Odeiam-te os bons e os justos, e chamam-te seu inimigo e desprezador; odeiam-te os crentes da verdadeira fé, chamam-te um perigo para a multidão’”.17 A multidão ainda não está preparada para o segredo fundamental: a eterna repetição de todas as coisas. O insucesso de Zaratustra não é desarrazoado ou incompreensível. Extemporâneo, senhor de um olhar oblíquo para a cultura moderna, herdeira da metafísica, Zaratustra sabe da condição de sua era. O homem da “praça do mercado”, o homem do povo, o homem histórico, o homem moderno, imerso em seu tempo, ainda não tem pleno conhecimento do significado de um fato singular e decisivo de sua época, fato que, em Nietzsche, é o pressuposto fundamental da possibilidade de conquista do super-homem: a morte de Deus, o grande acontecimento da Modernidade. Os modernos não sabem -- ou se comportam como se não soubessem - do sentido da “morte” do suposto criador e legislador do mundo. Não têm o espírito preparado nem para a dádiva de Zaratustra - o super-homem -, nem para seu segredo abismal - o eterno retorno - porque não aquilatam a importância da morte de Deus para o futuro, não percebem o sentido da bendita expressão “Deus está morto!” (Gott ist tot). A multidão ainda não tem habilidade para pensar tragicamente a existência, afirmar a vida sem Deus - ou sem o Deus cristão - e compreender as novas formas de vida que daí podem advir. A despeito de os homens modernos terem matado Deus e colocado no lugar dos valores divinos valores humanos, ainda esperam compreender o sentido e a finalidade últimos da vida; ainda se perdem em ilusões e crêem em ficções como identidade, substância, sujeito, causalidade. Ainda não vêem a existência e a 15 Ibid., 3, p. 30. 16 Ibid., 3, p. 29. 17 Ibid., 8, p. 37.
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temporalidade com inocência e gentileza; pensam ainda moralmente e preferem o que Nietzsche denomina o “último homem”, o “mais desprezível dos homens”.18 Sem preparo para a assunção do acaso e do devir sem metas, objetivos ou finalidade, preferem o peso, o “sentido”, a verdade e, por influência da religião cristã, orientam sua vida com ressentimento e culpa. O povo da “praça do mercado” ri – zomba -- de Zaratustra, de sua oferta, de sua alegre novidade. O povo, em algazarra, prefere o “último homem”. “Dá-nos esses últimos homens, ó Zaratustra! (...) -- Transforma-nos nesses últimos homens!”19 A recusa -- ou o estranhamento -- do presente determina o começo do sofrimento de Zaratustra. Têm início seu espanto e seu desconsolo. O alegre e radiante Zaratustra sofre sua primeira grande decepção e se entristece. Diante da reação inesperada, decepcionante e constrangedora da multidão, Zaratustra, sombrio e silente, é levado a concluir: “‘Eles não me compreendem: eu não sou a boca para esses ouvidos. Demasiado tempo, decerto, vivi na montanha, por demais escutei os córregos e as árvores (...).’”20 Intuindo a dificuldade de compreensão de seu pensamento do eterno retorno, depois de assistir à discussão entre o “funâmbulo” e um “tipo, todo sarapintado a modo de um palhaço”21 -- o “palhaço da torre” --, Zaratustra muda de tática: reconhece que é preciso falar para poucos. Nem todos são fortes ou intempestivos, criadores, artistas ou crianças; nem todos podem agüentar o pensamento trágico, romper com a moral consoladora, com as idéias que, supostamente, aliviam a dor da existência mediante a postulação do ideal, da finalidade, do ser em si, da identidade e da permanência; nem todos podem abdicar da procura de uma razão para existir e para sofrer; nem todos podem entender a existência como força, vontade de potência e eterno retorno; nem todos sabem viver sem as promessas do Deus cristão. Zaratustra, “sedutor”, haverá de seduzir uns poucos homens, terá de procurar não propria18 Ibid., 5, p. 34. 19 Ibid., 5, p. 35. 20 Id. 21 Ibid., 6, p.35.
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mente por discípulos, mas por companheiros privilegiados, precursores do futuro super-homem: os fortes, os criadores, os destruidores dos velhos valores, os dionisíacos, aqueles que, por sua constituição fisiológica e “grande saúde”, podem “afiar as foices”, construir uma nova tábua de valores, suportar e, sobretudo, querer o eterno retorno. Zaratustra não quer companheiros mortos, entregues a um destino traçado por um mestre, como o corpo do “funâmbulo” - primeira “pescaria” de Zaratustra que, quase morto, “gravemente ferido e com os ossos partidos”,22 caíra aos seus pés. Zaratustra quer companheiros vivos, ativos, aptos ao sim à vida e à rebelião contra a interpretação moral da existência. Uma luz raiou em mim: de companheiros, eu preciso, e vivos -- não de companheiros mortos e cadáveres, que levo comigo aonde quero. / (...) / Atrair muitos para fora do rebanho -- foi para isso que vim. (...) / (...) / Companheiros, procura o criador, e não cadáveres; nem, tampouco, rebanhos e crentes. Participantes na criação, procura o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas. / (...) / Não pastor, devo ser, nem coveiro. Não quero mais, sequer, falar novamente ao povo; pela última vez, falei a um morto.23
Extemporâneo, Zaratustra espera por companheiros. Não quer se identificar como novo profeta, novo pastor, arrebanhar ovelhas obedientes, mortas, sem vida e sem força: não pretende, como o cristianismo, “melhorar a humanidade”. Zaratustra quer falar a companheiros, àqueles que podem compreendê-lo e avaliar os perigos e as promessas de seu abismo e de seu pensamento abismal. “‘Entre uma aurora e outra, uma nova verdade apareceu-me.’”24 “‘Quero unir-me aos que criam, que colhem, que festejam; quero mostrar-lhes o arco-íris e todas as escadas do superhomem’.”25 Zaratustra pondera: importa procurar pelos raros, aqueles que podem avaliar o significado e o alcance do pensamento do eterno retorno como instrumento de superação, aqueles que farão do super-homem o futuro do homem -- os solitários, os fortes, vigorosos, os que permanecem de pé frente à oscilação, própria da existên22 Ibid., 6, p. 36. 23 Ibid., 9, p. 39. 24 Ibid., 9, p. 40. 25 Id.
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cia, entre a precariedade e o gozo. Cantarei minha canção aos que vivem solitários ou em solidão a dois; e quero que, quem ainda tem ouvidos para o que nunca se ouviu, sinta minha ventura oprimir-lhe o coração. / Quero atingir a minha meta, quero seguir o meu caminho; e pularei por cima dos hesitantes e dos retardatários. Que a minha jornada seja a sua ruína.26
As palavras de Zaratustra são pronunciadas ao “meio-dia”, hora significativa para a compreensão do desejo de eliminar os dualismos da metafísica e da religião cristã e para a profissão do pensamento do eterno retorno. Revestida de silêncio e prudência, altivez e determinação, esta é a hora da primeira alusão - sutil - à repetição eterna de todas as coisas. Integram-se abismo e silêncio; comprometem-se decisão e travessia.
II São as palavras mais silenciosas as que trazem a tempestade. Pensamentos que chegam com pés de pomba dirigem o mundo.27
Depois de ouvir o murmúrio assustador da solidão de sua “hora mais silenciosa”28, Zaratustra vai-se embora, “abandonando os amigos”.29 “Sim, mais uma vez deve Zaratustra voltar à sua solidão; mas com pesar, agora, regressa o urso ao covil”.30 Outra vez, deve deixar seus discípulos, subir a montanha, exilar-se em sua caverna, reencontrar a solidão e o silêncio para acolher e, mais tarde, revelar seu segredo abissal. Depois do “enigma” do sonho de que “havia renunciado a toda e qualquer vida”31 e se tornado “noturno guardião de sepulcros (...) lá, no solitário castelo mon-
26 Id. 27 Ibid., A hora mais silenciosa, p. 158. 28 Ibid., p. 156. 29 Ibid., p. 158. 30 Ibid., p. 156. 31 Ibid., O adivinho, p. 146.
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tano da morte”.32 Zaratustra, desgastado, pressente a necessidade de ver-se em isolamento para amadurecer e tornar-se, outra vez, a “criança” sem pudor de sua ciência e de seu jogo.33 Mais uma vez, Zaratustra precisa fortalecer-se, conquistar força suficiente para falar aos homens de seu pensamento mais escondido, aquele que, aos olhos de Nietzsche, deverá, efetivamente, colaborar para a condução dos modernos à constituição do super-homem: o eterno retorno de todas as coisas. “Ah, meus amigos! Alguma coisa teria para dizer-vos, alguma coisa ainda teria para dar-vos. Por que não a dou? Serei avarento?”,34 perguntara Zaratustra ao final do Capítulo A hora mais silenciosa. Zaratustra não é mesquinho ou avaro; a avareza não é apanágio de um tipo dadivoso e amoroso como Zaratustra. Ao contrário: Zaratustra descera de sua caverna por amor aos homens e vontade de dar-lhes de presente o super-homem, o novo “sentido da terra”.35 Também em sua segunda retirada à solidão da montanha e da caverna -- início da segunda parte do texto --, Zaratustra mostrara-se impaciente ao deixar aqueles “que (...) amava”36 porque “muito, ainda, tinha para dar-lhes”,37 mas agora Zaratustra está cansado, sem força, desanimado. Zaratustra não é mais o mesmo, aquele que outrora declinara da solidão de sua caverna, alegre e luminoso diante da possibilidade de um futuro exuberante vir a se construir depois da morte de Deus. Seu andar já não é mais o de um “dançarino”, como dissera, no Prólogo, o “velho” da floresta. No trajeto da descida e no convívio com os homens e seus discípulos, Zaratustra, aos poucos, compreende a estranheza provocada pelo presente que oferecera aos homens e o escárnio da multidão que o ouvira na “praça do mercado”; aos poucos, constata a imperiosa necessidade de reversão da concepção metafísicoreligiosa de tempo porque percebe que a superação da metafísica e da religião cristã depende da negação de sua concepção de temporalidade; aos poucos, ratifica a urgência da postulação do eterno retorno, não como algo a ser colocado no lugar do Deus morto, mas como nova relação com o tempo e, portanto, como expediente para a 32 Id. 33 Ibid., A hora mais silenciosa, p. 158. 34 Id. 35 Ibid, O prólogo de Zaratustra, p. 30. 36 Ibid., O menino com o espelho, p. 97. 37 Id.
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grande redenção38 e para o advento do super-homem, mas agora, depois de enfrentar alguns infortúnios e de se submeter a constrangimentos e ameaças, está abatido, “amedrontado”, assustado, exangue, sem vitalidade para o anúncio definitivo de sua idéia do eterno retorno. Desde que se sentira motivado a descer pela primeira vez de sua montanha para de novo conviver com os homens, Zaratustra sabe de si, de seus propósitos e de seu desejo: reanimar a multidão - a Modernidade - depois da morte de Deus, mostrar aos homens sua vontade criadora e propor a instituição de uma nova “tábua de valores” a partir da negação dos valores universais para a instituição de uma moral “além do bem e do mal”, afirmar definitivamente a vida e a vontade de viver e de criar através da sugestão do eterno retorno e do super-homem. Desde o primeiro declínio de Zaratustra, Nietzsche tem ciência de que o eterno retorno - “alguma coisa mais elevada do que toda a reconciliação”39 com o tempo - é o instrumento privilegiado para a redenção de uma cultura essencialmente niilista como a moderna, mas agora, depois de se constranger e enfrentar os mais diversos obstáculos, Zaratustra não se sente em condições de pronunciar o eterno retorno com o vigor e a determinação necessários. Apesar de ter compreendido por que grandes perigos o aguardavam em seu caminho, Zaratustra se enfraquece e desanima. Onde a força e a disposição de afirmar o eterno retorno? “Dirigi-me aos homens, mas ainda não cheguei a eles”.40 Reconhecer-se a si próprio e a seus propósitos, compreender o motivo dos riscos que enfrentara e ainda enfrentará até o final de sua rota, admitir a necessidade da constante superação de si e do niilismo decorrente das ameaças de incompreensão, ponderar e concluir sobre o despreparo dos homens e a dificuldade de entendimento da intempestividade que lhe é peculiar auxiliam na determinação de anunciar o eterno retorno, mas não impedem que os terríveis aborrecimentos postos em sua trajetória levem-no ao abatimento, ao medo, ao desânimo e, muitas vezes, ao asco e ao nojo. Zaratustra sente-se agastado: o eterno retorno - o pensamento, 38 Sobre o significado da redenção, cf., especialmente, os Capítulos Da redenção e Do superar-se a si mesmo, de Assim falava Zaratustra. 39 Ibid., Da redenção, p. 152. 40 Ibid., A hora mais silenciosa, p. 157.
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para ele, exultante - não escapará da incompreensão e da ameaça dos fracos e das forças reativas, assim como não pudera fugir da incompreensão sua proposta inicial do super-homem. Os homens modernos não estão preparados para o eterno retorno e o super-homem. Mais que isto, o próprio eterno retorno é um pensamento assustador, indício da difícil situação da Modernidade: será possível superar o niilismo? Que significa, propriamente, a superação? “Perigosos” e “escuros” foram os caminhos de Zaratustra; sua doutrina correra perigo; seus inimigos rondaram-no, à espreita de sua fraqueza, olharam-no de soslaio, de esguelha diante de muitos dos seus discursos; os “bons” e o “justos” desde sempre o estranharam; a mediocridade dos modernos fizera-se crescente, apesar da morte de Deus. Zaratustra tem motivos suficientes para o medo e o cansaço. Não por acaso, o Capítulo Da redenção, que se referira ao eterno retorno ao aludir à vontade maculada pelo fardo do passado e à vontade negativa de potência, terminara sob o tom da interrogação: Para longe eu vos levei dessas cantigas quando vos ensinei: ‘A vontade é criadora.’ / Todo o ‘Foi assim’ é um fragmento, um enigma e um horrendo acaso -- até que a vontade criadora diga a seu propósito: ‘Mas assim eu o quis!’ / Até que a vontade criadora diga a seu propósito: ‘Mas assim hei de querê-lo!’ / Mas já falou de tal maneira? E quando isso se dará? Já a vontade se desatrelou da sua própria loucura? / Já a vontade se tornou o seu próprio redentor e trazedor de alegria? Desaprendeu o espírito da vingança e todo o ranger de dentes? / E quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo e alguma coisa mais elevada do que toda a reconcialiação? / Alguma coisa mais elevada do que toda a reconciliação, deve querer a vontade que é vontade de poder; mas
como chegar lá? Quem lhe ensinaria também o querer para trás?41
Ainda que, ao longo do percurso, se torne quem é - “Torna-te quem tu és!” é o emblema da tragédia -, mediante o enfrentamento corajoso dos mais diversos perigos e impedimentos, Zaratustra é levado a perceber, agora com mais prudência e maior maturidade, a importância e a necessidade do isolamento: convém subir a 41 Ibid., Da redenção, p. 152.
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montanha, refugiar-se mais uma vez na solidão para deixar sobressair sua vontade positiva de potência, sua inocente e afirmativa vontade de “criança”. Necessária a volta à montanha para se preparar e assumir seu pensamento trágico, finalizar seu aprendizado com uma afirmação talvez mais incisiva acerca do eterno retorno, tornar-se o “mestre do eterno retorno” e criar, para os homens, a oportunidade de constituição de outra relação com a vida e, por conseguinte, de outra cultura. “Realizar uma coisa grande é difícil; mas o mais difícil é ordenar alguma coisa grande”.42 dissera-lhe sua solidão em sua “hora mais silenciosa”. És alguém que desaprendeu a obedecer; cumpre-te, agora, dar ordens! / Não sabes qual é o homem de que todos mais necessitam? Aquele que ordena alguma coisa grande. / (...) / É isto o mais imperdoável em ti: que tens o poder e não queres dominar.’ (...) / (...)‘Para ordenar, falta-me a voz do leão.’ (...) / ‘Tenho vergonha.’ / (...) ‘Ainda precisas tornar-te criança e não sentires vergonha.’ (...) / ‘Assim, deves voltar novamente para a solidão: porque ainda precisas sazonar’.43
A última solidão de Zaratustra é seu perigo derradeiro: exige coragem a proclamação do eterno retorno; exige ousadia a afirmação incondicional da vida -- a atitude dionisíaca. Sem uma força poderosa não há como sair vitorioso diante de um pensamento, em princípio, niilista e assustador. Triste, entristecido, Zaratustra “abandona os amigos” para se deixar apoderar pela coragem imprescindível e insubstituível: enfrentar o maior e mais fundo abismo para subir ao mais alto cume; acirrar o niilismo para tentar superá-lo: “(...) foi Zaratustra assaltado pela violência da dor e da proximidade da despedida dos seus amigos, a tal ponto que chorou em voz alta; e ninguém conseguiu consolá-lo. À noite, contudo, foi embora sozinho, abandonando os amigos.”44 Por que Zaratustra sobe outra vez a montanha? “‘É chegado o tempo! É mais que chegado o tempo!’”,45 dissera a “sombra” de Zaratustra, no Capítulo De 42 Ibid., A hora mais silenciosa, p. 157. 43 Ibid., p. 157-158. 44 Id. 45 Ibid., De grandes acontecimentos, p. 145.
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grandes acontecimentos exatamente na hora em que Zaratustra enfrentar-se-ia com o “inferno” e com o “nada”. “Os maiores acontecimentos - não são as nossas horas mais barulhentas, mas as mais silenciosas.”46 Necessários o silêncio e a distância para dar voz ao abismo interior e fazer vencer a força criadora que nele habita apesar de todas as ameaças e incompreensões. A transformação requerida - a criação de novos valores - exige que Zaratustra percorra abismos, deixe a superfície. Toda luta interior é luta difícil, dolorosa e imponderavelmente solitária. Como será confirmado no Capítulo Da visão e do enigma, necessário enfrentar a dor e o sofrimento incontornáveis se o que se quer é ultrapassar a mentira de existência de categorias universais: o caminho para a superação implica o enfrentamento e a afirmação do sofrimento. Não sem razão, Zaratustra se nega a arrancar o peso das costas do “corcunda”. Depois de deixar as Ilhas bem-aventuradas - capítulo em que se expõe a relação entre tempo e eternidade -, Zaratustra sobe e desce o monte para se entregar a uma viagem pelo mar em direção à “outra costa”47 e, posteriormente, à solidão de sua caverna. “Por volta da meia-noite”48 tem início o “caminho da grandeza”.49 o percurso do destino a um só tempo cruel e radiante -- o caminho para o segredo, para o abismo, para a dor e a solidão mais fundas e, ao mesmo tempo, para o mais elevado cume: “cume e abismo [resolvem]-se numa só coisa.”50 Amendrontado, fragilizado para enfrentar seu próprio abisso - “‘Está acima das minhas forças!’”51 -, Zaratustra, no entanto, sabe que não deve se poupar. Aqueles que se poupam e se preservam não vivem intensamente e não recolhem da vida sua riqueza, singularidade e raridade. Não compreendem os riscos inerentes a um imperioso “jogo de dados”. Aquele que sempre muito se poupou, acaba adoecendo de seu muito poupar-se. Louvado seja aquele que enrijece! Não louvo a terra onde escor-
46 Ibid., p. 143. 47 Ibid., O viandante, p. 161. 48 Id. 49 Id. 50 Id. 51 Ibid., A hora mais silenciosa, p. 157.
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rem - manteiga e mel! É preciso aprender a desviar o olhar de si, para ver muitas coisas: tal dureza é necessária a todo escalador de montanhas.52
Zaratustra obedece à voz da solidão: “‘Que importa a tua pessoa, Zaratustra! Fala a tua palavra e despedaça-te!’”53 “Reconheço o meu destino (...). Pois muito bem! Estou pronto. Começou, agora, a minha última solidão.”54 Pela manhã, Zaratustra embarca no navio de “estrangeiros”; depois de dois dias de silêncio, sem responder “nem a olhares nem a perguntas”,55 diante dos “intrépidos buscadores e tentadores de mundos por descobrir”,56 rompe “o gelo de seu coração”57 e dá início à descrição da revelação de sua visão do maior e mais estranho enigma - “a visão do ser mais solitário”58 -, descrição que, no entanto, se prolonga nos dois capítulos seguintes ao Da visão e do enigma: Da bem-aventurança a contagosto e Antes que o sol desponte. Não bastassem as lembranças de “suas muitas peregrinações solitárias desde a juventude”,59 mais um perigo apresentara-se “recentemente” no caminho de Zaratustra até sua solidão, na subida do monte em direção ao mar: no início da rota de encontro do eterno retorno, confidencia aos “marinheiros”, Zaratustra tem que enfrentar um “anão”, um “espírito de gravidade”, seu “demônio” e “mortal inimigo”,60 o representante do pensamento metafísico-cristão, da racionalidade, da moralidade, do niilismo e do pessimismo - possível alusão niilismo e ao pessimismo de Schopenhauer -, que procura colocá-lo para baixo, “pingando chumbo em [seus] ouvidos e pensamentos como gotas de chumbo no [seu] cérebro”.61 O início da narrativa da visão, a um só tempo, assustadora e benfazeja, coincide, pois, com o relato do encontro e do diálogo de Zaratustra com o “anão”, aquele que, a despeito da subida, “[puxa] [Zaratustra] para baixo”.62 A conversa com o “anão” dá início à primeira exposição, 52 Ibid., O viandante, p. 162. 53 Ibid., A hora mais silenciosa, p. 157. 54 Ibid., O viandante, p. 162. 55 Ibid., Da visão e do enigma, 1, p. 164. 56 Id. 57 Id. 58 Id. 59 Ibid., O viandante, p. 161. 60 Ibid., Da visão e do enigma, 1, p. 164. 61 Ibid., p. 164. 62 Id.
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ainda que velada, sutil e indireta, do eterno retorno. Ao subir, ao percorrer o caminho do criador, Zaratustra, já oprimido, é ameaçado pelo “anão”. O “anão” não compreende a vontade que olha para o futuro -- toda vontade ascendente cai, degrada-se, decompõe-se. ‘Ó Zaratustra,’, cochivava, zombeteiro, pronunciando por sílabas, ‘ó pedra da sabedoria! Arremessaste-te para o alto, mas toda a pedra arremessada deve - cair! / Ó Zaratustra, pedra da sabedoria, pedra de funda, destroçador de estrelas! A ti mesmo arremessaste tão alto; mas toda a pedra arremessada - deve cair! / Condenado a ti mesmo e ao teu próprio apedrejamento, ó Zaratustra, bem longe, sim, arremessaste a pedra -- mas é sobre ti que ela cairá de volta!’63
Solitário - “a dois, em tais circunstâncias, estamos realmente mais sós do que sozinhos”64 - , Zaratustra resiste às interpelações e insinuações de um tal “espírito de peso” e apela para a coragem, já que o haviam deixado o “orgulho” e a “esperteza”: “há uma coisa, em mim, à qual chamo coragem; e ela, até agora, sempre matou em mim todo o desânimo. (...) / É que a coragem é o melhor matador (...). / (...) / A coragem mata, também, a vertigem ante os abismos; e onde o homem não estaria ante abismos?”65 Certo de que a coragem “mata (...) a morte”,66 munido de coragem e protegido pelo destemor dos fortes - aqueles que, ousados, se enfrentam a si e a seus próprios abissos -, Zaratustra decide-se, enfrenta e desafia o “anão”; afinal, dentro dele, como expressão de seus instintos e afetos vitais - de sua vontade positiva de potência -, encontram-se forças criativas capazes da vitória: “‘Anão! Ou tu ou eu!’”,67 diz Zaratustra. Veladamente, Zaratustra afirma a vida e sua vontade criadora: “Era isso, a vida? Pois muito bem! Outra vez!”68 Primeira afirmação da aceitação do eterno retorno, primeira afirmação daquilo que o “espírito de gravidade”, na opinião de Zaratustra, não pode compreender. “‘Alto lá, anão (...). Ou eu ou tu! Mas eu sou o mais 63 Ibid., 1, p. 165. 64 Id. 65 Id. 66 Id. 67 Id. 68 Id.
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forte dos dois: tu não conheces o meu pensamento abismal! Esse -- não poderias suportá-lo!’”69 O “anão” é fraco, inapto a compreender o que diz Zaratustra; à vida não dedica um amor incondicional. A necessidade do amor fati não lhe é conhecida: o “anão” não (re)conhece a relação entre o eterno retorno e o amor fati. O “espírito da gravidade” - o “mortal inimigo” de Zaratustra - não pode conhecer o sentido atribuído por Zaratustra ao eterno retorno; não é um tipo (re)conciliado com o tempo: o “anão” vê a vida com peso, não tem leveza de ave ou dançarino e não ama a si mesmo, dirá o capítulo Do espírito da gravidade. O “anão” é o “espírito de peso”, o “camelo” que, satisfeito, carrega os mais pesados fardos: “‘Sim, a vida é um pesado fardo!’”70 De velhas e novas tábuas, mais tarde, indicará que o “espírito de peso” é o amante do bem e mal universais, da lei, da necessidade, da finalidade, da racionalidade e dos imperativos morais - tudo o que aprisiona o homem e impede o aprofundamento e o vôo. Por sua afinidade com a moral universal, o “anão” não pode compreender o eterno retorno de Zaratustra: ao contrário de sua moral - anã, pequena, pesada e fraca -, Zaratustra fala de bem e de mal não mais como “conjeturas” de “adivinhos e astrólogos”, mas como valores históricos singulares, conforme dissera em De mil e um fitos. Apesar de se definir como imoralista, a moral - ou a ética - admitida por Nietzsche não é equivalente à moral universal nem deve servir à “domesticação”; ao contrário, deve ser, a um só tempo, instrumento, estímulo e resultado de uma espécie de “cuidado de si”. O “anão” é, pois, em princípio, o homem da interpretação moral da existência; débil demais e incapaz de pensar a vida tragicamente, o “anão” é o representante dos fracos que, permanentemente, ameaçam os fortes. O diálogo entre o “anão” e Zaratustra é, portanto, o diálogo entre a interpretação racional e a interpretação trágica. O destemor, a coragem e a decisão de Zaratustra, a afirmação e a aceitação imponderáveis e incondicionais da vida apesar da possibilidade do eterno retorno de todas as coisas e, mais ainda, o desejo do retorno - “Outra vez!” - levam o “anão”
69 Ibid., 2, p. 166. 70 Ibid., Do espírito da gravidade, 2, p. 199.
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a saltar, “curioso”,71 das costas do corajoso Zaratustra para se postar “diante de um portal”:72 o eterno retorno faz tremerem os alicerces da visão ordinária de tempo, mas o salto é sinal de que o “anão”, a rigor, aceita a provocação de Zaratustra; mais ainda, é sintoma de que o espírito de peso parece conhecer o eterno retorno. Estaria o “anão” de acordo com Zaratustra?
III
Com o pulo do “anão”, Zaratustra, racional73 e pedagogicamente, inicia sua reflexão sobre o tempo: ‘Olha esse portal, anão!’ (...); ‘ele tem duas faces. Dois caminhos aqui se juntam; ninguém ainda os percorreu até o fim. / Essa longa rua que leva para trás: dura uma eternidade. E aquela longa rua que leva para frente - é outra eternidade. / Contradizem-se esses caminhos, dão com a cabeça
um no outro; e aqui, neste portal, é onde se juntam. Mas o nome do portal está escrito no alto: ‘momento’. / Mas quem seguisse por um deles - e fosse sempre adiante e cada vez mais longe: pensas, anão, que esses caminhos iriam contradizer-se eternamente?74
Passado e futuro são eternos: o passado inexorável, que tanto desespera o homem ressentido e rancoroso, é eterno; o futuro, o irrealizado, lugar de expectativa e de esperança, é também eterno. Por que duas eternidades aparentemente não-contraditórias no verbo de Zaratustra? Por que a insinuação da recusa da concepção ordinária de tempo como oposição entre passado e futuro? Que sentido tem a eternidade no pronunciamento de Zaratustra? Por que a sugestão de atenção ao “momento”? (Augenblick) Em princípio, ao propor o questionamento ao “anão”, Zaratustra parece querer fugir do inconveniente de ter que pensar o tempo a partir da 71 Ibid., Da visão e do enigma, 2, p. 166. 72 Id. 73 Apesar de o eterno retorno ser apresentado sob a forma de enigma, essa passagem retrata um dos raros momentos em que Zaratustra parece se valer de um argumento mais próximo do pensamento racional. 74 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, Da visão e do enigma, 2, p. 166.
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perspectiva linear - que expõe o tempo como a uma linha evolutiva e progressiva da História - e da concepção metafísica que, tributária da concepção de ser como substância, pretende subtrair-se, pela postulação da idealidade, à condenação a que se vê exposta a existência. Do mesmo modo, intui-se presente a recusa da concepção cristã de tempo como criação de Deus a partir do nada. Apressado e leviano, o “anão”, rapidamente conclui: se o passado encontra-se com o futuro, o tempo é um círculo. A resposta do “anão” é a mais óbvia das respostas: se passado e futuro são duas eternidades que se enlaçam no “Instante”, o tempo não é linear. “‘Tudo o que é reto mente!’, murmurou, desdenhoso, o anão”.75 “‘Toda verdade é torta, o próprio tempo é um círculo.’”76 A indiferença e a displicência do “anão” são compreensíveis: o descaso e o desprezo com que o “anão” pronuncia a idéia de tempo circular indicam que também ele, o “espírito de peso”, recusa o tempo linear e conhece o velho pensamento do retorno e do círculo; também ele é informado de uma doutrina cosmológica tão antiga, já postulada entre as mais diversas civilizações arcaicas anteriores ao pensamento judaico-cristão e conhecida dos pitagóricos, de Heráclito e dos estóicos e, até mesmo, de Schopenhauer. De imediato, parece que, ao aludir ao círculo, o “anão” refere-se ao eterno retorno que Zaratustra irá comunicar porque, de imediato, tudo leva a crer que, ao problematizar a contradição entre passado e futuro e recusar a dimensão linear e sucessiva do tempo, Zaratustra, assim como o “anão”, afirma o movimento circular de todas as coisas: se passado e futuro encontram-se no “momento”, o tempo é circular. Muito embora não desminta aberta e claramente o “anão”, Zaratustra não afirma que o tempo é circular; esta não é a sua afirmação sobre o eterno retorno, não é a sua convicção interior sobre o tempo e o eterno retorno; este não é o sentido de sua postulação. A rigor, afirmar o encontro do passado com o futuro no momento significa a afirmação do círculo? Pela reação de Zaratustra, percebe-se, desde já, a marca da diferença inconteste entre a doutrina antiga e o pensamento do futuro “mestre do eterno retorno”: supõe-se que o “anão” conheça a antiga doutrina do tempo 75 Id. 76 Id.
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circular mas não o sentido que Zaratustra quer atribuir ao pensamento de uma volta eterna de todas as coisas. “Zangado”, Zaratustra considera por demais simplista e superficial a solução apresentada pelo “anão”: concluir, rápida e desavisadamente, pelo tempo como círculo é esconder o essencial do eterno retorno que Zaratustra quer anunciar, é escamotear, anular e reduzir a complexidade e a densidade do tema em questão. O assunto é por demais complexo, confuso, complicado, é grave demais para ser reduzido de forma tão imatura, irrefletida e apressada. “‘Ó espírito da gravidade!’ (...) ‘não simplifiques as coisas tão de leve. Se não, deixo-te encarapitado onde estás, perneta -- eu, que te trouxe para o alto!’”77 Repreendendo o “anão”, Zaratustra prossegue em sua tentativa de refletir sobre o tempo para concluir sobre o novo sentido do eterno retorno. Falando baixo, “cada vez mais baixinho”78 porque tem “medo de [seus] próprios pensamentos e do que eles [ocultam]”,79 a partir da idéia de eternidade atribuída ao passado e ao futuro, Zaratustra sugere, sem uma explicação convincente, a idéia do eterno retorno de todas as coisas. Se o passado e o futuro são eternos, todas as coisas já aconteceram e, de novo, acontecerão; não há possibilidade de que ocorram acontecimentos sempre novos; está excluída a probabilidade de novos acontecimentos. Se o passado é infinito, tudo o que está por vir já esteve no mundo - nada é simplesmente promessa de futuro; se o futuro é infinito, tudo o que já aconteceu acontecerá mais outra(s) vez(es) e nada é passado apenas - apesar do esquecimento humano, tudo retorna incansável e invariavelmente. ‘Olha’ (...), ‘este momento! Deste portal chamado momento, uma longa, eterna rua leva para trás: às nossas costas há uma eternidade. / Tudo aquilo, das coisas, que pode caminhar, não deve já, uma vez, ter percorrido esta rua? Tudo aquilo, das coisas, que pode acontecer, não deve já, uma vez, ter acontecido, passado, transcorrido? / E se tudo já existiu: que achas tu, anão, 77 Id. 78 Ibid., p. 167. 79 Id.
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deste momento? Também este portal não deve já ter existido? / E não estão todas as coisas tão firmemente encadeadas, que este momento arrasta consigo todas as coisas vindouras? Portanto - também a si mesmo? / Porque aquilo, de todas as coisas, que pode caminhar, deverá ainda, uma vez, percorrer - também esta longa rua que leva para a frente! / E essa lenta aranha que rasteja ao luar, e o próprio luar e eu e tu no portal, cochichando um com o outro, cochichando de coisas eternas - não devemos, todos, já ter estado aqui? / E voltar a estar e percorrer essa outra rua que leva para a frente, diante de nós, essa longa, temerosa rua - não devemos retornar eternamente?’80
Diante da provocação de Zaratustra, o “anão” afirma imediatamente o círculo porque seu olhar se volta, espontaneamente, para a doutrina antiga; mas Zaratustra sabe que a arcaica concepção do eterno retorno não é propriamente equivalente àquele que lhe parece o “pensamento dos pensamentos” e nada acrescentaria a uma situação problemática e difícil como a que enfrenta a Modernidade. A Zaratustra não interessa repor ou confirmar um pensamento arcaico, uma doutrina cosmológica que inspirou tanto algumas das civilizações primitivas quanto parte do movimento grego de reflexão sobre o cosmo. A afirmação do círculo como verdade última do tempo não seria uma boa forma de propor a superação da concepção metafísico-religiosa de tempo, a não ser que se pudesse vê-la como estratégia. Se o eterno retorno de Zaratustra fosse repetição do eterno retorno arcaico não poderia dispor da força que Nietzsche quer lhe atribuir para “preparar o futuro” e confirmar-se como instrumento para a consagração da transvaloração de todos os valores - sobretudo os valores cristãos - e fazer surgir uma nova cultura em que possam prevalecer a força e a vontade de potência do super-homem, o homem livre do peso do cristianismo. Onde estaria a originalidade do pensamento nietzschiano do eterno retorno se Nietzsche tivesse apenas repetido uma doutrina cosmológica tão antiga e talvez inadequada à Modernidade? Nietzsche concederia à idéia de tempo como círculo o lugar central de sua obra? outorgaria a um pensamento tão antigo e fatalista a autoridade e a responsabilidade de dividir em duas partes a humanidade? De todo modo, ainda que queira marcar o seu eterno retorno com uma diferença, por que Nietzsche recorre ao mito 80 Ibid., p. 166.
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da repetição eterna? Criticar a concepção de tempo da metafísica e da religião cristã implica necessariamente o recurso à idéia de retorno? Aparentemente próximo do eterno retorno arcaico e, neste caso, da afirmação do tempo como círculo em que de fato tudo retorna inexoravelmente, o eterno retorno de Zaratustra não pode ser a mera reprodução do eterno retorno antigo: Nietzsche não afirma a circularidade do tempo como realidade última do tempo. Deste ponto de vista, o eterno retorno de Zaratustra seria, como a doutrina antiga, apenas uma tese físico-cosmológica pronta a anular todas as críticas anteriores constituídas por Nietzsche. (...) No tempo de redação de Assim falava Zaratustra, Nietzsche percebe o que tem a recusar da doutrina antiga e reconhece a dificuldade de sua futura anunciação: por sua aparente intimidade com o pensamento arcaico, os fracos - identificando o eterno retorno ao círculo e ao retorno do mesmo - tentarão interpretá-lo como fértil fonte de geração de um niilismo passivo e, quem sabe, de inação, resignação e inoperância, por nele reconhecerem a presença de um fatalismo irreversível: a volta de tudo, a volta do igual, independente da vontade humana. Nietzsche não quer afirmar o círculo ou o eterno retorno como tese fatalista - a não ser, repita-se, estrategicamente - porque, com o pensamento do retorno, espera favorecer a compreensão da necessidade da decisão e da superação do niilismo que abate e arrebata a Modernidade depois da morte de Deus. (...) O eterno retorno de Zaratustra não é subjugado ao começo, à origem; ao contrário, volta-se para o futuro, o super-homem e a cultura trágica. Se pode - e deve - provocar uma forma exacerbada de niilismo, ao mesmo tempo e sobretudo, deve convencer o homem de que é possível dar outro “sentido” à existência através da invenção de uma nova relação com o tempo, muito embora, com o eterno retorno, Nietzsche não queira, apressadamente, converter o homem a uma nova “tábua de valores”: a morte de Deus é um acontecimento grave; exige, pois, cuidado e cautela. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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A preocupação com o futuro move a filosofia nietzschiana em direção ao eterno retorno. Ainda que advenha da “desilusão” com o presente, a nostalgia de que fala Nietzsche, a “grande nostalgia”81 de Zaratustra é, por assim dizer, uma espécie de nostalgia do futuro: o olhar de Nietzsche é voltado para o que está por vir, para uma nova pátria, uma nova terra, a “terra dos “[seus] filhos, a terra por descobrir, nos mares distantes”,82 para uma nova filosofia, a “filosofia do futuro” e para um novo tipo de homem, o super-homem. O olhar nietzschiano para o futuro e o pensamento acerca da atualidade são duas faces complementares que exigem a urgência da criação; afinal, a visão nietzschiana da cultura não é só negativa. Em Nietzsche, o eterno retorno aparece vinculado, não só a postulações de caráter físico-cosmológico, mas também - e aí se pretende esclarecer sua originalidade - a uma espécie de exortação de caráter ético e / ou estético e / ou pedagógico. Ao sugerir o eterno retorno, Zaratustra parece interessado em exaltar a eternidade do momento, ao invés de se reportar a uma origem longínqua e perdida como fazem as antigas doutrinas. Interessa a Nietzsche a eternidade e não o círculo. A ênfase é concedida ao termo “eterno” e não, propriamente, ao “retorno”. O “anão”, por não ter a grandeza necessária e suficiente à compreensão do sentido do eterno retorno de Zaratustra, olha para o eterno retorno arcaico, deixa-se impressionar por uma doutrina antiga fatalista e determinista. Ao contrário do “mestre do eterno retorno”, o “anão” mantém uma relação pesada com a vida, não ama a vida como ela é: mais uma vez, o amor fati, condição de compreensão da “mensagem” de Zaratustra e uma das marcas da diferença entre o eterno retorno de Zaratustra e o eterno retorno antigo, não faz parte de suas convicções. (...) Diante das ponderações inabituais de Zaratustra, o “anão” não responde; o “anão” desaparece. Por que silencia o “perneta”? Por que foge o “espírito de peso”? Pressente que o eterno retorno proclamado por Zaratustra não é o círculo e que não corresponde ao movimento circular proposto pela doutrina antiga a que ele se referira? Intui que o eterno retorno a que aludira não é propriamente idêntico 81 Do grande anseio, na tradução ora utilizada. 82 NIETZSCHE, Assim falava Zaratustra, Do país da cultura, p. 133.
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ao sentido que Zaratustra confere ao pensamento do retorno e que, além disto, o eterno retorno, na boca de um “herói trágico” como Zaratustra, é tão-somente uma simbologia destinada a recusar e destruir concepções simplistas e equivocadas como a sua? Reconhece a tarefa concedida por Zaratustra ao eterno retorno, afirmar, como hipótese, o retorno de todas as coisas para radicalizar o niilismo moderno a ponto de destruir a habitual concepção de tempo linear responsável pela vingança, pelo remorso e pelo ressentimento e promover a aceitação da existência e da necessidade do acaso? Assim formulado o eterno retorno é um “peso” que ele, pequeno demais, é incompetente para suportar. Por enquanto, pode-se admitir a hipótese de que o “anão” desaparece por ser um “espírito de peso” incapaz de compreender a sutileza da insinuação de Zaratustra: a necessidade de valorizar o Momento para o abandono da continuidade e da linearidade, a urgência de viver o tempo na aparição do Instante com a leveza necessária à valorização da temporalidade e da existência. O “anão” desaparece porque não experimenta o tempo como temporalidade mas como algo externo a que se pode conferir um discurso lógico-discursivo; o “anão” não compreende a exaltação do Momento como forma de redenção da temporalidade e aprendizado de uma vontade positiva de potência. Zaratustra não pensa o tempo para defini-lo, propriamente. A relação entre o “anão” e o tempo é radicalmente diferente da que Zaratustra quer sugerir ao postular o eterno retorno: apesar da afirmação do círculo, o “anão” não pode compreender o eterno retorno de Zaratustra porque a concepção linear de tempo é o que condiciona sua existência. As idéias modernas de evolução e progresso ainda são capazes de seduzi-lo: o “anão” não é intempestivo como Zaratustra, não olha criticamente para a cultura. Na conversa com o “anão”, Zaratustra não admite claramente que o tempo é um círculo. Todavia, em A gaia ciência, a idéia de circularidade do tempo acompanha a exclamação do eterno retorno. Em A gaia ciência, o peso mais pesado é anunciado por dois argumentos básicos: repetição eterna e movimento circular de todas as coisas no tempo. Dissera o aforismo 341: “tudo o que há de indizivelmente grande e peOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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queno em tua vida há de retornar e tudo na mesma ordem e seqüência”. Do mesmo modo, não são poucos os Fragmentos Póstumos em que Nietzsche, para se referenciar ao eterno retorno, recorre à idéia de tempo circular. No texto do Zaratustra, também há a sugestão do círculo - através de metáforas e símbolos, como a “serpente”, o “anel”, a “roda” -, mas não é o personagem Zaratustra quem fala do movimento circular: o pensamento do círculo é próprio do discurso do “anão” e, mais tarde, no Capítulo O convalescente, dos “animais de Zaratustra”. Nietzsche insinua o argumento da circularidade em A gaia ciência e o expõe em Fragmentos Póstumos, mas Zaratustra não afirma o círculo. Ora, que poderia indicar o comportamento de Nietzsche? Por que Zaratustra não afirma o círculo, se em A gaia ciência a idéia de movimento circular é claramente sugerida como hipótese e se em Fragmentos Póstumos Nietzsche parece afirmá-la categoricamente? Por que, em Zaratustra, apesar da indicação da idéia de circularidade tantas vezes posta nas metáforas do “anel” e da “roda”, o “anão” e os “animais” são os responsáveis por anunciar o eterno retorno como círculo? Por que, em A gaia ciência, a afirmação da circularidade não é propriamente uma afirmação mas uma sugestão? Por que Nietzsche só afirma categoricamente o círculo em Fragmentos Póstumos? Com que intenção Nietzsche afirma o círculo, no caso dos Fragmentos, e se esquiva de pronunciá-lo em obras publicadas? Zaratustra não afirma o círculo; no entanto, é significativo que a essa altura do texto não se defenda da postulação do “anão” com muita veemência. O silêncio de Zaratustra não pode significar um assentimento - ainda que velado - da concepção anã de tempo como círculo; se não, por que Zaratustra se zangaria com o “espírito de peso” quando de sua afirmação do tempo circular? Mas, efetivamente, por que, apesar de mostrar-se “zangado”, Zaratustra silencia ao invés de argumentar contra a leviana resposta do “anão”, se as conclusões do “anão” levam-no à terrível visão de um “pastor sufocado” por uma “cobra”? Zaratustra não afirma o círculo porque sabe que a admissão do tempo como movimento circular conduz, necessariamente, a um fatalismo. Zaratustra percebe a utilidade da postulação do círculo e
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prefere deixar em suspenso a possibilidade de ser o seu eterno retorno uma afirmação do tempo circular, mas não afirma o eterno retorno como círculo porque não quer ver o niilismo provocado por seu pensamento confundido como o niilismo do tipo “Tudo é vão!” Ao deixar em suspenso a idéia de tempo como círculo, Nietzsche acaba por admitir a possibilidade de o eterno retorno ser compreendido como tese físicocosmológica - como nos Fragmentos - e marcar o pensamento do eterno retorno com uma ambivalência, muitas vezes, de difícil compreensão. A afirmação do círculo indica a idéia de que Nietzsche, com o eterno retorno, quer afirmar algo sobre a realidade do tempo e do mundo e, portanto, afirmar o eterno retorno como tese físico-cosmológica. Mas, com que intenção? Do ponto de vista da afirmação do círculo, o eterno retorno seria, em princípio, o eterno retorno do mesmo: tal como havia dito em A gaia ciência, também no Zaratustra, na conversa com o “anão”, está posta a idéia de que tudo o que está no tempo revém, necessariamente, na “mesma ordem e seqüência”. Sob a ótica físico-cosmológica, o eterno retorno do mesmo seria a representação de uma doutrina fatalista e, mais que isto, inconveniente às críticas nietzschianas das categorias metafísicas de identidade e substância. Como conciliar o determinismo de que se reveste o pensamento do eterno retorno assim entendido com a reação e o impacto que Nietzsche pretende provocar nos homens a quem seja dado o privilégio de ouvi-lo? Com que propósito Zaratustra permite que suas afirmações venham a ser entendidas como afirmações sobre a realidade do tempo e o eterno retorno como tese físicocosmológica? Ao referir-se ao eterno retorno Nietzsche quer afirmar algo sobre a verdadeira natureza do tempo? Nietzsche estaria identificando o tempo histórico a um tempo cíclico supostamente próprio da natureza? Extrairia da história humana sua singularidade e diferença em relação ao mundo natural se o eterno retorno fosse próprio da natureza? Estaria afirmando uma doutrina fatalista em que, provavelmente, não há lugar para a transformação e a mudança, em que só tem espaço a aceitação irrestrita do destino? Ou o eterno retorno nunca implicaria a aceitação de um destino OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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pré-determinado e uma espécie de inação já que pressupõe o esquecimento? Além disto, a afirmação do círculo deveria, necessariamente, impor a volta do mesmo como fazem crer alguns trechos dos textos de Nietzsche? Se Nietzsche contesta as noções de identidade e substância, poderia postular a volta do mesmo? A não-afirmação do círculo, o aborrecimento com o “anão” e a tranqüilidade diante das ponderações dos “animais” em O convalescente sugerem que Nietzsche afirma o eterno retorno como círculo e, portanto, como tese físico-cosmológica e como retorno do mesmo com uma intenção bem determinada. Pode-se ver aí a primeira e incontestável indicação de que Nietzsche quer afirmar o eterno retorno do mesmo não propriamente para assegurar a veracidade de um discurso sobre a realidade do tempo como círculo e a repetição do mesmo - embora repita, enfaticamente, que é o mesmo que retorna -, mas com outro objetivo: provocar o homem e incitá-lo a uma nova relação com a vida e a temporalidade através da negação de categorias tradicionalmente utilizadas para a interpretação do mundo e da existência, como se a adesão a outra forma de concepção do tempo - ainda que fictícia - pudesse livrar o homem do peso dos valores metafísico-cristãos, permitindo a constituição de um outro tipo de relação entre o homem e a temporalidade. Se, para Nietzsche, “não há fatos mas interpretações”, não seria estranha a afirmação do eterno retorno como afirmação incondicional de um fato físico-cosmológico? Tudo leva a crer que não há possibilidade de o eterno retorno ser a postulação da realidade última do tempo. Nietzsche não falaria do estatuto do tempo como algo objetivo e exterior. Como seria possível conciliar uma afirmação categórica sobre o tempo com as contundentes críticas anteriores? Por enquanto, tudo indica que Zaratustra reconhece que, apesar de o círculo e a idéia de repetição do mesmo não representarem integralmente seu pensamento, as idéias de movimento circular e de repetição - e até mesmo a de fatalismo - têm alguma serventia. Não sem reservas - tanto Zaratustra que se aborrece com o “anão” -, ao postular o eterno retorno, Nietzsche admite, propositalmente, a possibi-
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lidade de o tempo ser entendido como círculo e o eterno retorno como doutrina fatalista de repetição do igual para recusar a concepção habitual de tempo que, opondo passado e futuro, condena o passado e leva o homem a esperar por um futuro melhor mediante a desqualificação do presente.
IV
Uma segunda cena - outra visão desencadeada pela conversa entre o “anão” e Zaratustra - é subitamente configurada no relato de Zaratustra aos “marinheiros”: depois de ouvir o uivo de um cão e de apiedar-se de um lamento inusitado, Zaratustra, “no meio de selvagens rochedos, sozinho, ermo, no mais ermo lugar”,83 vê um “jovem pastor contorcer-se, sufocado, convulso, com o rosto transtornado, pois uma negra e pesada cobra pendia de sua boca”.84 Zaratustra, piedoso, tenta ajudá-lo a arrancar a “cobra” de dentro de si, impressionado com o pedido de socorro do cão e com o “asco” e o “horror” vislumbrados no rosto do “pastor”. O esforço, de início, inútil, converte-se em sugestão de uma solução definitiva: “‘Morde! Morde! Decepa-lhe a cabeça! Morde!’”,85 grita, exasperada, “alguma coisa de dentro” de Zaratustra, o seu “horror”, o seu “ódio”, o seu “asco”, a sua “compaixão”, “todo o [seu] bem e o [seu] mal”.86 O “pastor” morde a “cobra”; resoluto, cospe-a fora. O pastor (...) mordeu como o grito o aconselhava; mordeu com rija dentada! Cuspiu bem longe a cabeça da cobra; e levantou-se de um pulo. / Não mais pastor, não mais homem -- um ser transformado, translumbrado, que ria! Nunca até aqui, na terra, riu alguém como ele ria! / Oh, meus irmãos, eu ouvia um riso que não era um riso de homem -- e, agora, devora-me uma sede, um anseio, que nunca se extinguirá. / Devora-me um anseio por esse riso: oh, como posso, ainda, suportar viver! E como, agora, suportaria morrer!87
83 Ibid., Da visão e do enigma, 2, p. 167. 84 Id. 85 Id. 86 Ibid., p. 168. 87 Id.
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A nova visão - a “visão do ser mais solitário”88 -, o novo enigma que Zaratustra quer ver decifrado pelos “marinheiros” é, na verdade, uma antecipação do que virá descrito no Capítulo O convalescente. “Que vi eu, então, em forma de alegoria? E quem é aquele que, algum dia, há de vir? Quem é o pastor em cuja garganta a cobra assim se insinuou? Quem é o homem em cuja garganta se insinuará tudo o que há de mais negro e pesado?”89 Necessário esperar pelas insinuações de O convalescente para compreender que a visão de Zaratustra é uma “antevisão”?”90 de si próprio: “‘Ó farsantes realejos!’(...), ‘como conheceis bem o que devia cumprir-se em sete dias - E de que modo aquele monstro me penetrou na garganta, sufocando-me! Mas eu lhe mordi a cabeça e a cuspi longe de mim’”,91 dirá Zaratustra aos seus “animais”. O “pastor” é o mesmo Zaratustra e a “cobra”, o “grande fastio”, o niilismo passivo, um tipo de niilismo que, subjacente à filosofia de Schopenhauer – filosofia a que Nietzsche responde, relacionando trágico e alegria, trágico e amor fati -, ronda, ameaça e quase sufoca Zaratustra. O Capítulo Da visão e do enigma contém indicações importantes à compreensão do significado do eterno retorno; no entanto, ainda não é o lugar de uma proclamação decisiva. Ao contrário, ainda há necessidade de Zaratustra, andarilho como Nietzsche, continuar sua “viagem por mar”:92 somente “quando [se acha] a quatro dias de distância das ilhas bem-aventuradas e dos amigos”,93 Zaratustra pode superar “toda a sua dor.”94 Então, “vitorioso e com passo firme, novamente em pé no seu destino” (idem), referindo-se à “prova” do eterno retorno, pode falar “à sua exultante consciência”: 95 (...) estou no meio de minha obra, indo para os meus filhos e deles vol88 Ibid., p. 164. 89 Ibid., p. 168. 90 Id. 91 Ibid., p. 224. 92 Ibid., Da bem-aventurança a contragosto, p. 168. 93 Id. 94 Id. 95 Ibid., p. 169.
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tando; por amor de seus filhos, deve Zaratustra completar-se a si mesmo. / (...) / Lá onde as tempestades despenham-se no mar e a tromba do monte bebe água, deverá uma vez, cada um desses meus filhos, ter seu dia e sua noite de vigília, para sua prova e conhecimento de si mesmo. / Reconhecido e submetido à prova, deverá ser, para saber-se se é da minha espécie e origem -- se é senhor de longa vontade, silencioso, ainda quando fale, e de tal modo dúctil, que receba, mesmo ao dar; / Para saber-se se,
um dia, se tornará meu companheiro, partilhando da criação e do júbilo de Zaratustra -- e tal que escreva a minha vontade na minha tábua: para o mais pleno completamento de todas as coisas.96
Zaratustra ainda não se decidira a ir ao encontro de seu segredo, “amarrado” que estava “pelo amor pelos [seus] filhos”. Mas agora pode avaliar melhor o que já ouvira, anteriormente, de sua “hora mais silenciosa” - “‘Já é mais que chegado o tempo!’”. Assim, tudo, por sinais, me gritava: ‘É chegado o tempo!’ Mas eu - não ouvia; até que, por fim, o meu abismo moveu-se e o meu pensamento me mordeu. / Ah, pensamento abismal que és o meu pensamento! Quando acharei a força de ouvir-te cavar, sem mais tremer? / (...) / Nunca, ainda me atrevi a chamar-te para cima (...)97
Antes que o sol desponte, evidencia, então, que também Zaratustra deve se preparar. Zaratustra ainda não é um “herói trágico” suficientemente forte para a afirmação do eterno retorno, sua “prova” derradeira: ouvir o segredo, entregar-se ao abismo, aceitar plenamente a dor e o sofrimento, louvar a dolorida existência apesar do retorno eterno. (...) “eu mesmo preciso completar-me; por isso, evito, agora, a ventura e me ofereço a toda a desventura - para a minha derradeira prova e conhecimento de mim mesmo”.98 É chegada a sua hora, a hora do teste mais doloroso, da prova mais difícil, a hora do enfrentamento mais grave, a hora do anúncio do eterno retorno. Mais uma vez, a necessidade do declínio - da decisão - para a travessia. Repelindo a “hora bem-aventurada” em que a “felicidade chegou cada vez 96 Id. 97 Ibid., p. 170. 98 Id.
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mais perto dele”,99 Zaratustra “[espera] a noite toda pela sua desventura; mas [espera] em vão”:100 ainda não pode se entregar, ainda não pode ser surpreendido por seu pensamento abissal; ainda não está em condições de se deparar com o seu próprio abisso. “Ainda não chegou a hora da minha derradeira batalha - ou, justamente, estará chegando?”101 Como a retardar o difícil encontro com seu abismo, Zaratustra ainda não segue imediatamente em direção à sua montanha e à solidão. Antes do “regresso” ao isolamento das alturas e ao “ar rarefeito” da montanha, ainda caminha por entre povos diferentes, “percorre muitos caminhos e [faz] muitas perguntas, informandose de várias coisas”102 porque “[quer] saber o que, no meio tempo, se dera com o ser humano: se ele se tornara maior ou menor”.103 Refletindo sobre a Modernidade, tristonho, Zaratustra conclui: “Tudo tornou-se menor!”104 A mediocridade dos homens - confirma - aumentara. Nada fizeram em favor da cultura e da expressão de uma “superabundância de vida” ou de uma “vida ascendente” as modernas idéias de evolução, progresso, igualdade, socialismo e Estado. As idéias modernas não se constituíram como “tônico” ou “estimulante”, mas tão-somente como novas formas de niilismo e decadência e, portanto, como estratégias de manutenção do “pessimismo da fraqueza”. A Modernidade não realizara a “grande política”, não conseguira se transformar em uma cultura de estilo, conquistar uma “grande saúde”, superar sua extrema mediocridade e pequenez, reviver a força e o vigor que Nietzsche encontra nos gregos trágicos, pré-socráticos - ou pré-platônicos, como ele prefere -, que vencem o horror através da arte trágica. A cultura alemã confundira educação com “domesticação”, porque não exaltara a singularidade, mas a igualdade, fazendo dos jovens seres dóceis demais e enfraquecidos. A Modernidade mantivera-se aprisionada a ideais - bem, verdade, Deus - e a determinadas virtudes - compaixão, humildade, amor ao próximo, piedade -, todas elas idéias e “virtudes amesquinhadoras”, incapazes e 99 Ibid., p. 171. 100 Id. 101 Id. 102 Ibid., Da virtude amesquinhadora, 1, p. 174-175. 103 Ibid., 1, p. 175. 104 Id.
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impertinentes a uma cultura superior. O homem fora desumanizado, domesticado, tornara-se um “animal de rebanho” quando deveria, para se compreender como avaliador e criador, ser o lugar de uma educação para o “cultivo de si”. Os modernos ainda não sabem querer - são homens de “meio-querer”105 -, mas Zaratustra não pode se compadecer do infortúnio da Modernidade, dirá o Capítulo O regresso: a compaixão será seu último perigo. Triste ainda, Zaratustra discursa sobre a “virtude amesquinhadora” uma virtude que leva o homem a perdas irreparáveis - e sobre a “gente pequena”, a gente moderna que quer o “bem-estar” e confunde “resignação” com “covardia”, “moderação” com “mediocridade”. O homem moderno, por diversas vezes repudiado por Nietzsche, é um homem mesquinho e pobre porque mesquinha e pobre sua relação com o mundo. O moderno ainda está preso às idéias de finalidade e sentido, não vê a inocência do mundo, o “céu-acaso”:106 não percebe que poderia abrir no “céu” um “novo infinito” e se tornar a “tempestade” capaz de varrer as nuvens mais pesadas e escuras. Diante da pequenez e mesquinharia dos homens modernos, Zaratustra, mais uma vez, demonstra a necessidade, tantas vezes manifesta, de reafirmar a alma solitária daquele que é o anunciador do raio para marcar sua diferença em relação àqueles que louvam a igualdade e deixam-se impressionar pelo aparente fulgor dos novos ídolos, os ídolos modernos. “Antes bater um pouco mais os dentes do que adorar ídolos - assim quer o meu feitio”, dirá o Capítulo No monte das oliveiras. Antes de regressar à solidão para abraçar seu segredo abismal, antes de subir o “monte” para pregar a recusa da velha hierarquia valorativa e sugerir “nova tábua de valores” - nova hierarquia -, Zaratustra define-se e a seu tipo - o destruidor de ídolos -, assim como o fizera Nietzsche, insistentemente, em diversos textos, sobretudo em Ecce homo. “Passo no meio desta gente e guardo os olhos abertos: eles não me perdoam que eu não inveje suas virtudes. / Procuram morder-me, porque lhes digo: ‘Para gente pequena, são necessárias virtudes pequenas’ -- e porque custo [sic] a compreender
105 Ibid., 3, p. 179. 106 Ibid., Antes que o sol desponte, p. 173.
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que gente pequena seja necessária!” 107 Zaratustra demonstra seu imenso “nojo”108 pelo homem mesquinho, pelos “mestres da resignação”,109 pelos “amigos do bem-estar” e confirma o grito dos modernos: ‘Sim! Eu sou Zaratustra, o ímpio!’ / Oh, esses mestres da resigna-
ção! Em toda a parte onde haja o que quer de mesquinho e doentio e tinhoso, rastejam como piolhos; e somente o nojo que me causam me impede de esmagá-los. / Pois muito bem! É este o meu sermão para os seus ouvidos: eu sou Zaratustra, o sem Deus, o ímpio, o que diz: ‘Quem é mais ímpio do que eu, para que eu me alegre com seu ensinamento?’ / Eu sou Zaratustra, o ímpio: onde encontrarei os meus pares? E são meus pares todos aqueles que se dão a si mesmos a sua vontade e repelem de si toda a resignação.110
Os modernos não podem compreendê-lo - “onde encontrarei meus pares?”111 Submissos ainda às idéias de finalidade, causalidade, sujeito e livre-arbítrio, reforçam, a partir delas, a “velha tábua de valores” cristãos que, embora partida, ainda vigora na Modernidade. Zaratustra, o “ímpio”, redime o mundo através da postulação do acaso. Mais uma vez, consagra a necessidade do acaso, já postulado em Antes que o sol desponte. “‘Acima de todas as coisas está o céu-acaso, o céu inocência, o céu casualidade, o céu arrojo’. / ‘Por casualidade - esta é a mais velha nobreza do mundo; e foi ela que devolvi às coisas, redimindo-as da sua escravidão à finalidade.’”112 O solo da Modernidade é demasiado “delicado” e “fofo” para compreender a dureza da alma de Zaratustra, a necessidade de convivência entre a ternura e a dureza. Os modernos não são duros como convém a legisladores e a criadores de “tábuas de valores”; não têm, aos olhos de Nietzsche, a dureza necessária à superação de si e de seus valores, ao adestramento da vontade positiva de potência e à escultura 107 Ibid., Da virtude amesquinhadora, 2, p. 175. 108 Ibid, 3, p. 178. 109 Id. 110 Ibid., p. 178. 111 Id. 112 Ibid., Antes que o sol desponte, p. 173.
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do super-homem. “Tornai-vos duros”, diz Nietzsche em De velha e novas tábuas. Bater com o “martelo” em ídolos e deuses para destruí-los exige dureza. Enquanto “os criadores são duros” - “Duríssimo é somente o mais nobre”113 -, os modernos arranjam-se em torno de justificativas inaceitáveis e procedem a uma pobre e miserável avaliação de sua própria cultura. Intempestivo, Zaratustra espera o “grande meio-dia”, a hora em que, anunciado o eterno retorno, será possível atacar o niilismo em sua raiz mais funda: a dualidade de mundos, o dualismo de valores, a desvalorização da existência, fundamento da filosofia ocidental, de Platão a Kant. Andarilho, Zaratustra continua a atravessar diferentes cidades antes de regressar à sua montanha. No caminho, “à porta da grande cidade”,114 encontra um “louco”, aquele a quem, por seu poder e destreza em imitar o “fraseado e as inflexões [dos] discursos” de Zaratustra,115 denominam “o macaco de Zaratustra”, aquele que Zaratustra nomeia o “porco grunhidor”. ‘Ó Zaratustra, esta é a grande cidade; aqui, nada tens a procurar e tens tudo a perder. / Por que pretendias vadear este lodaçal? Tem pena dos teus pés! Cospe, de preferência, na porta da cidade - e volta atrás! / Aqui é o inferno para pensamentos de eremitas; aqui, os grandes pensamentos são refogados vivos e cozidos picadinhos. / Aqui apodrecem todos os grandes sentimentos; só pequenos sentimentos de estalante secura têm direito a estalar aqui!116
Finalmente, dois dias depois de pronunciar-se sobre os “renegados”, Zaratustra, em “lágrimas”, chega à sua caverna. Finalmente, pode ouvir, outra vez, a “meiga” voz117 de sua solidão. A solidão, companheira sua inseparável, parece a única apta a compreender que, entre os homens, Zaratustra não pudera ver-se em companhia, não pudera se encontrar e a seu segredo. No diálogo com sua companheira insubstituível, Zaratustra reafirma a importância do isolamento para o encontro com o abismo. “‘Ó solidão! Ó solidão, minha pátria! Tempo demais selvagemente vivi 113 Ibid., De velhas e novas tábuas, 30, p. 221. 114 Ibid., Do passar além, p. 183. 115 Id. 116 Id. 117 Ibid., O regresso, p. 191.
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em selvagens terras estranhas, para não regressar sem lágrimas’”.118 “Ó Zaratustra, eu sei de tudo: e que, no meio de muitos, estavas mais abandonado, mais só, do que algum dia estiveste comigo!”119 A solidão sempre fora para Nietzsche o ambiente propício à “ruminação”. Não por acaso, também o aforismo de A gaia ciência põe o “demônio” em contato com a “hora mais solitária” do homem para o anúncio do eterno retorno. Na solidão mais funda Nietzsche faz aparecer o eterno retorno. Embora tenha descido da caverna para estar com os homens, em solidão, Zaratustra livra-se do “cheiro dos humanos” mais sórdidos e pode escapar ao “ruído” insuportável do lado de baixo, ao zunido inconveniente das “moscas da feira”. Em solidão, Zaratustra pode reencontrar o lugar privilegiado para sua expressão e sua palavra. Em solidão, Zaratustra não está abandonado; abandonado estivera quando estivera entre os homens. “‘Possam guiar-me os meus animais! Encontrei mais perigos entre os homens do que entre os animais. - Isto era abandono.’”120 (...) ‘aqui, estás na tua casa e no teu lar; aqui podes dizer tudo livremente e desabafar as tuas razões; nada, aqui, se envergonha de sentimentos ocultos e obstinados. / Aqui, todas as coisas vêm afagantes ao encontro da tua palavra, lisonjeando-te: pois querem cavalgar nas tuas costas. Em cada imagem, cavalgas, aqui, para todas as verdades. / Sinceramente e de cabeça erguida, podes, aqui, falar a todas as coisas; e, na verdade, soa como um louvor, a seus ouvidos, que alguém, com todas as coisas - fale sem rodeios!’121
No Capítulo O convalescente, “não muito após seu regresso à caverna”, Zaratustra não pode mais se esquivar do anúncio do eterno retorno. Levanta-te da minha profundeza, pensamento abismal! Eu sou o teu galo e o teu alvorecer, verme dorminhoco! De pé, de pé! O canto da minha voz vai já acordar-te! / Solta a peia que te prende os ouvidos e escuta! Pois quero ouvir-te! De pé! De pé! Há aqui trovões suficientes para que também os túmulos aprendam a escutar! / E enxota dos teus olhos o sono e tudo o que debilita e cega a vista! Ouve-me também com os olhos: minha voz é
118 Ibid., p. 189. 119 Ibid., p. 190. 120 Id. 121 Id.
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remédio ainda para cegos de nascença. / E, depois que estiveres acordado, acordado deverás continuar eternamente. (...) /Moves-te, espreguiças-te, rouquejas? De pé! De pé! Não, rouquejar - falar é o que deves! Zaratustra te chama, Zaratustra, o ímpio, o sem Deus. / Eu, Zaratustra, o defensor da vida, o intercessor da dor, o assertor do círculo -- chamo-te a ti, ó meu abismal pensamento! / Viva! Estás vindo - eu te ouço. O meu abismo fala, revolvi e trouxe à luz a minha profunda profundeza! / Viva! Vamos! Dá cá a mão -- ah! não! Ah! Ah! Nojo! Nojo! Nojo!... Ai de mim!122
Em O convalescente, finalmente, Zaratustra é reconhecido por seus “animais” o “mestre do eterno retorno”. “Pois bem sabem os teus animais, ó Zaratustra, quem és e quem deves tornar-te: és o mestre do eterno retorno - este, agora, é o teu destino!”123 Apenas Zaratustra ouve o “pensamento dos pensamentos”; o conteúdo do eterno retorno não é explicitado. Logo após ouvir o segredo do eterno retorno, Zaratustra cai “ao solo como morto”124 e permanece assim, adoentado, longamente: confirma-se a visão do “pastor” sufocado pela “cobra”. Depois de longo tempo, Zaratustra volta a si, mas se mantém quieto e “prostrado” por exatos sete dias. A conversa com os “animais”, logo após o soerguimento de Zaratustra do leito, assim como o Capítulo Da visão e do enigma, sugere a idéia de que também os “animais” de Zaratustra pensam conhecer o eterno retorno. Repondo o pensamento do círculo, dizem os “animais”, ao fim de sete dias de convalescença de Zaratustra: ‘Ó Zaratustra, (...) ‘já faz sete dias que estás deitado, como olhos pesados; não queres, finalmente, pôr-te outra vez de pé? / Sai desta caverna; o mundo está à tua espera como um jardim. Brinca o vento com intensos perfumes, que te procuram; e todos os córregos gostariam de seguir os teus passos. / Por ti, que ficaste sozinho sete dias, anseiam todas as coisas. Sai desta caverna! Todas as coisas querem ser teus médicos! / Veio a ti algum novo conhecimento, amargo, doloroso? Como massa fermentada, estiveste deitado, a tua alma crescia e inchava, saindo fora de todas as bordas.”125
122 Ibid., O convalescente, 1, p. 222. 123 Ibid., 2, p. 226. 124 Ibid., p. 223. 125 Id.
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‘Tudo vai, tudo volta; eternamente gira a roda do ser. Tudo morre, tudo refloresce, eternamente transcorre o ano do ser. / Tudo se desfaz, tudo é refeito; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo separa-se, tudo volta a encontrar-se; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. / Em cada instante começa o ser; em torno de todo o ‘aqui’ rola a bola ‘acolá’. O meio está em toda a parte. Curvo é o caminho da eternidade.’126
Idênticas - ou quase - às ponderações do “anão” são as palavras dos “animais”. Na concepção natural dos “animais”, o eterno retorno pode-se justificar como círculo: nos “animais”, o eterno retorno não provoca qualquer reação desagradável, maldita ou constrangedora -- os “animais” não têm o peso da responsabilidade moral. Humana é a perspectiva de ajuizamento a partir do bem e do mal. Animais não precisam declinar, enfrentar seus terríveis abissos, ultrapassar, corajosamente, em direção à outra margem. Animais não conhecem a necessidade da decisão ou do amor fati, a trágica afirmação do existir. Só aquele que se depara com o niilismo mais fundo pode reconhecer a necessidade da coragem para afirmar a existência. Ao ouvir o discurso dos “animais”, Zaratustra sorri. Mais complacente com os seus “animais” do que fora anteriormente com o “anão” -- para quem, na verdade, havia posto um problema --, Zaratustra repudia, mais uma vez, o pensamento do círculo como “modinha de realejo”. ‘Ó farsantes realejos!’, retrucou Zaratustra, sorrindo de novo; ‘como conheceis bem o que devia cumprir-se em sete dias - / E de que modo aquele monstro me penetrou na goela, sufocando-me! Mas eu lhe mordi a cabeça e a cuspi longe de mim. / E vós - vós já fizestes disto modinha de realejo? Mas eu, agora, estou aqui deitado, cansado daquela mordida e cuspidura, ainda enfermo da minha própria redenção.’127
Zaratustra, inquieto, põe-se a lembrar do perigo do eterno retorno - a volta do pequeno homem -, mas é interrompido por seus “animais” que, a esta altura, sugerem-lhe o “canto” como mais “apropriado para o convalescente”.128 126 Ibid., p. 224. 127 Id. 128 Ibid., p. 226.
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‘Eternamente, retorna o homem de que estás cansado, o pequeno homem’ - assim bocejava a minha tristeza, arrastando da perna e sem poder adormecer. / (...) / ‘Ah, eternamente retorna o homem! Eternamente retorna o pequeno homem!’ / Nus, um dia eu vira ambos, o maior e o menor dos homens: demasiado semelhantes um ao outro -- demasiado humano, ainda, também o maior! / Demasiado pequeno, o maior! - era este o fastio que eu sentia do homem. E eterno retorno também do menor! - era este o fastio que eu sentia de toda a existência!129
Diante da fatalidade do regresso do “pequeno homem”, Zaratustra reconhece, mais uma vez, a distinção do canto como “consolo” e “cura”. “Porque vê, Zaratustra! Para os teus novos cantos, precisas de novas liras. / Canta e transborda, ó Zaratustra, cura a tua alma com novos cantos; para que possas carregar com teu grande destino, que ainda não foi destino de nenhum ser humano!”130 O eterno retorno, o “pensamento vitorioso”, não pode ser anunciado nem compreendido pela linguagem habitual, a linguagem lógico-discursiva, representativa e conceitual. Eterno retorno e amor fati não são objetos de conceituação. Confirmase o que diz Nietzsche em Ecce homo: a linguagem mais conveniente a Zaratustra é a do “ditirambo dionisíaco”; o canto é o lugar privilegiado à expressão do amor pela eternidade da existência. Zaratustra está silente: o eterno retorno não pode ser acolhido pela linguagem tradicional, fundamentada em categorias tradicionais da metafísica -- intencionalidade, causalidade, finalidade -- não lhe convêm. Retorna Nietzsche à exortação da arte. Ao ouvir o segundo discurso dos “animais” que, de todo modo, ultrapassa as conclusões do “anão”, Zaratustra, então, silencia. Mais uma vez, não é propriamente o círculo o que quer Zaratustra anunciar. Que segredo guarda o silêncio de Zaratustra?131 (...) 129 Ibid., p. 225. 130 Id. 131 Cf. CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo: USP, 2005, nº 18.
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Referencias bibliograficas
CALOMENI, Tereza Cristina B. A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno em Nietzsche. Tese de Doutorado apresentada à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em Agosto de 2000. ______. A redenção da temporalidade; a trágica intuição do eterno retorno em Nietzsche. In: Cadernos Nietzsche. São Paulo: USP, 2005, nº 18. NIETZSCHE. Ainsi parlait Zarathoustra. Paris: Gallimard,1971.
______. Assim falava Zaratustra; um livro para todos e para ninguém. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. ______. Ecce homo; como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
* Tereza Cristina B. Calomeni é professora de Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Doutora em Filosofia (PUC-RJ).
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Breves considerações sobre o signo lingüístico e sua relação com a teoria lacaniana Sergio Augusto Franco Fernandes*
Resumo: Buscaremos, nesse texto, elementos que venham facilitar a compreensão das origens do significante lacaniano, tentando entender, pela via do estruturalismo lingüístico, até onde vai, realmente, a influência saussuriana. Ressaltaremos o distanciamento de Saussure em relação a sua própria lógica, na medida em que ele acaba por confundir dois tipos de relação. Ele teria, então, confundido o arbitrário que caracteriza um certo tipo de relação, com o arbitrário que caracteriza a ausência de toda relação. Verificaremos, portanto, a validade de uma proposta que, de alguma maneira, tenta resolver essa questão. PALAVRAS-CHAVE: PSICANÁLISE LACANIANA, ESTRUTURALISMO LINGÜÍSTICO, ARBITRARIEDADE DO SIGNO Não é novidade dizer que o termo “significante” ficou conhecido por meio das idéias do lingüista Ferdinand de Saussure (1857-1913). O significante saussuriano designa, como muitos já sabem, a parte do signo lingüístico que nos remete à representação psíquica de uma imagem acústica (som), em contraste com o significado que, por sua vez, nos remete a um conceito. Vamos por etapas. Saussure, em seu Cours de linguistique générale (1916),1 divide em duas partes o signo lingüístico – ou unidade lingüística –, chamando de significante a imagem acústica de um conceito e de significado, o conceito em si. Sendo assim, do ponto de vista lingüístico, a palavra “árvore”, por exemplo, não nos remete à árvore de verdade, real, à referência, mas sim, à idéia de árvore, que é o significado e, também, a um som, que é o que Saussure chamou de significante, sendo este pronunciado sempre com a ajuda de fonemas (á-r-v-o-r-e). Logo, o signo lingüístico vai unir um conceito a uma imagem acústica, e não como comumente se pensa, uma coisa a um nome. O signo, com efeito, não equivale, exclusivamente, a uma relação entre duas coisas, isto é, a uma relação entre um conceito e uma imagem 1 Saussure, Ferdinand. Cours de linguistique générale. Édition critique préparée par Tullio de Mauro. Paris: Payot, 1981.Vale a ressalva de que esta obra foi publicada na França, pela primeira vez, em 1916, pelas Éditions Payot. A obra foi redigida após a morte de Saussure (1913), por seus alunos Charles Bally e Albert Séchehaye, com a colaboração de Albert Riedlinger, a partir de anotações feitas durante três cursos proferidos nos anos de 1906-1907, 1908-1909 e 1910-1911.
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acústica, na medida em que ele vai possuir, também, um valor que não se circunscreve à sua significação restrita. De antemão, mostra-se necessário precisar o termo “imagem acústica”: Cette dernière (image acoustique) n’est pas le son matériel, chose purement physique, mais l’empreinte psychique de ce son, la représentacion que nous en donne le témoignage de nos sens; elle est sensorielle, et s’il nous arrive de l’appeler «matérialle», c’est seulement dans ce sens et par opposition à l’autre terme de l’association, le concept, généralement plus abstrait. 2
Logo, o signo lingüístico vai aparecer como “entidade psíquica de duas faces”, onde os dois elementos instituem, de imediato, uma relação de associação. Quanto à definição do signo lingüístico, Saussure chama a atenção para uma questão de terminologia: apesar de chamarmos de signo a combinação entre o conceito e a imagem acústica, no uso comum esse termo diz respeito, normalmente, apenas à imagem acústica (a palavra arbor, utilizando o exemplo do autor). Acontece que, se chamamos arbor de signo, é porque o mesmo exprime o conceito “árvore” de tal forma que a idéia da parte sensorial vai implicar a da total. Saussure detecta aí uma ambigüidade que somente desapareceria se chamássemos as três noções – signo, significado e significante – por nomes que, ao mesmo tempo em que se relacionassem entre si, também se opusessem. Propõe, então, duas coisas: uma seria a preservação do termo “signo” para designar o todo; a outra seria a substituição de “conceito” e “imagem acústica” por, respectivamente, “significado” e “significante”. Tais termos teriam a vantagem, na perspectiva saussuriana, de marcar o contraste que os separa, seja entre si, seja do todo do qual fazem parte. Diz o lingüista: “Quant à signe, si nous nous em contentons, c’est que nous ne savons par quoi le remplacer, la langue usuelle n’en 2 Op. cit., p. 98 [‘‘Esta (imagem acústica) não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la ‘material’, é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato.” In: Saussure, Ferdinand. Curso de lingüística geral. Tradução de Antonio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 80].
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suggérant aucun autre.”3 Do ponto de vista saussuriano, o signo lingüístico apresenta duas características fundamentais, a saber: a arbitrariedade e o caráter linear do significante, que são tomados também como princípios. Quanto à primeira característica, que diz respeito ao arbitrário do signo, esta se manifesta ao nível da própria associação do significante e do significado, não parecendo existir vínculo necessário entre um conceito e a imagem acústica que serve para representá-lo. Para melhor compreendermos, pensemos, por exemplo, que, de uma língua para outra, a imagem acústica varia para um mesmo significado dado. Todavia, isto não quer dizer que o arbitrário do signo tenha um caráter aleatório. O arbitrário somente vale para o conjunto de uma determinada comunidade lingüística. Ressalta Saussurre: Le mot arbitraire appelle aussi une remarque. Il ne doit pas donner l’idée que le signifiant dépend du libre choix du sujet parlant (...); nous voulons dire qu’il est immotivé, c’est-à-dire arbitraire par rapport au signifié, avec lequel il n’a aucune attache naturelle dans la réalité. 4
Logo retornaremos a essa questão. Quanto à segunda característica fundamental, ou segundo princípio, é o que Saussure chama de caráter linear do significante. Sendo de natureza auditiva, o significante vai desenvolver-se unicamente no tempo tomando do próprio tempo as suas características. Saussure considera este princípio evidente, mas lamenta que tenha sido sempre negligenciado, talvez por ter sido considerado demasiadamente simples. Entretanto, considera-o fundamental, já que todo mecanismo da língua, no seu entender, vai depender dele. Ao contrário dos significantes visuais (sinais marítimos, por exemplo), os significantes acústicos teriam à disposição somente a linha do tempo, onde seus elementos formariam uma cadeia ao se apresentarem um após o outro: “Ce caractère apparaît immédiatement dès 3 Op. cit., p. 99-100 [“Quanto a signo, se nos contentamos com ele, é porque não sabemos por que substituí-lo, visto não nos sugerir a língua usual nenhum outro.” In: op. cit., p. 81]. 4 Op. cit., p. 101 [“A palavra arbitrário requer também uma observação. Não deve dar a idéia de que o significado dependa da livre escolha do que fala (...); queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade.” In: op. cit., p. 83].
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qu’on les représent par l’écriture et qu’on substitue la ligne spatiale dès signes graphics à la succession dans le temps”.5 Com efeito, vale antecipar que é essa seqüência, orientada na organização significante, que Lacan vai designar como “cadeia significante”. Retornando ao primeiro princípio, o do arbitrário do signo, Anika-Rifflet Lemaire faz a seguinte colocação: “E. Benveniste, R. Barthes e R. Jakobson têm criticado este conceito do arbitrário do signo tal como aparece utilizado por Saussure.”6 De fato, Saussure acaba por apresentar a sua tese do arbitrário do signo como sendo evidente. Acontece que os autores citados não vão estar de acordo com o lingüista genebrino. Benveniste, por exemplo, vai dizer o seguinte: Declara (Saussure) literalmente (p. 100) que “o signo lingüístico une não uma coisa e um nome mas um conceito e uma imagem acústica”. Garante, logo depois, que a natureza do signo é arbitrária porque não tem com o significado “nenhuma ligação natural na realidade”. Está claro que o raciocínio é falseado pelo recurso inconsciente e sub-reptício a um terceiro termo, que não estava compreendido na definição inicial. Esse terceiro termo é a própria coisa, a realidade. (...) Eis aí, pois, a coisa, a princípio expressamente excluída da definição do signo, e que nela se introduz por um desvio e aí instala para sempre a contradição.7
Benveniste acabou por demonstrar que Saussure distanciara-se da sua própria lógica, visto que havia confundido duas relações. A primeira relação seria tida como efetivamente arbitrária, na medida em que vai sempre ser possível imaginar outra que não seja ela mesma. Podemos utilizar o exemplo do signo lingüístico que, designando a coisa arbre, vai variar de uma língua para outra. Quanto à segunda relação, esta seria “necessária”, já que o significante vai determinar o significado e vice-versa, sendo impossível imaginar que o significado possa ser diferente do que ele é, sem que, de um mesmo golpe, o significante seja também alterado e vice-versa. 5 Op. cit., p. 103. [“Esse caráter aparece imediatamente quando os representamos pela escrita e substituímos a sucessão do tempo pela linha espacial dos signos gráficos.” In: op. cit., p. 84]. 6 Lemaire, Anika- Rifflet. Lacan. Traducción de Francisco J. Millet. Barcelona: Edhasa, 1971, p. 44 (tradução nossa). 7 Benveniste, Émile. A comunicação. In: Problemas de lingüística geral. Tradução de Mª da Glória Novak e Mª Luísa Néri. Campinas: Pontes/Unicamp, 1995, p. 54.
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Uma, então, seria a relação tradicional do signo à coisa designada; a outra seria a relação propriamente “saussuriana”, do significante ao significado. Jean-Claude Milner8 vai considerar brilhante a demonstração de Benveniste, na medida em que ele sustenta que Saussure não permanece fiel à novidade do seu gesto, qual seja, a definição de signo como recíproco e separado do espaço da representação. Do ponto de vista de Milner, Saussure teria confundido o arbitrário, que caracteriza um certo tipo de relação com o arbitrário que caracteriza a ausência de toda relação. Considera, então, o primeiro arbitrário como “positivo” e o segundo, como estritamente “negativo”. Conforme Milner, a objeção de Benveniste se resolveria da seguinte maneira: (...) l’existence du signifiant requiert l’existence du signifié et réciproquement. Semblablement, le recto requiert le verso et réciproquement. En ce sens, il y a relation nécessaire. Mais pour autant la configuration d’un signifiant particulier (la forme phonic s-ö-r) ne détermine pas la configuration d’un signifié particulier (le concept soeur) ; le dessin tracé au recto ne détermine pas le dessin tracé au verso. En ce sens, il y a non-relation. Cette disposition ne se laisse pas aisément saisir dans les termes usuels. Même le mot de «contingent», préféré par Benveniste et Lacan, en dit peut-être trop. Le terme le moins inadéquat demeurerait alors celui que Saussure a choisi.9
Saussure parte, portanto, de um ponto já estabelecido, qual seja, que não é preciso fornecer, num primeiro momento, duas entidades cuja operação estabeleça a relação, mas, antes, uma entidade única que se divida em duas. Milner,10 apesar de considerar que a lingüística, hoje, não seja mais necessariamente saussuriana – mesmo com o nome de Saussure ainda sendo bastante invocado –, no entanto, considera 8 Milner, Jean-Claude. Le périple structural. Figures et paradigme. Paris: Seuil, 2002, p. 31. 9 Op. cit., p. 32 [“(...) a existência do significante requer a existência do significado e vice-versa. De forma semelhante, a folha de papel requer o seu verso e vice-versa. Nesse sentido, há uma relação necessária. Mas, para tanto, a configuração de um significante particular (a forma fônica s-ö-r) não determina a configuração de um significado particular (o conceito soeur); o desenho traçado na folha de papel não determina o desenho traçado no seu verso. Nesse sentido, há uma não-relação. Esta disposição não se deixa apanhar oportunamente pelos termos usuais. Mesmo a palavra ‘contingente’, preferida por Benveniste e Lacan, sendo dita, pode ser demasiada. O termo mais adequado permanecerá então aquele que Saussure escolheu.”] Tradução nossa. 10 Op. cit., p. 39.
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a tentativa do referido lingüista surpreendente e admirável, na medida em que ela, de alguma maneira, obriga os lingüistas a nada tomar como evidente. Apoiado no paradigma estruturalista, Lacan teria incitado o reencontro do sentido da experiência psicanalítica, ao assumir a ambição de colocá-la no patamar de uma ciência. Considera, portanto, como melhor meio para tal empreendimento, o retorno à obra de Freud.11 Atente-se para o fato de que Lacan somente passa a apreender o sistema saussuriano (diga-se: os princípios da lingüística estrutural) a partir do seu encontro com a obra do antropólogo Claude Lévi-Strauss, mais especificamente a partir da sua leitura de Les structures élémentaires de la parenté (1949).12 Lembramos que foi com Lévi-Strauss que culminou todo o processo de tomada da lingüística como modelo, tanto para as ciências humanas como um todo quanto para a sociologia e a antropologia, em particular. Lévi-Strauss cita Marcel Mauss, ainda em 1945, quando assume, de forma explícita, o modelo lingüístico, dizendo que, certamente, a sociologia estaria bem mais avançada caso houvesse procedido da mesma maneira que a lingüística. Lembra-nos Richard Simanke13 que o conceito de inconsciente, incorporado por Lacan no início dos anos 50 – o que lhe permitiu considerar-se freudiano e pregar “o retorno a Freud” –, fora introduzido na reflexão antropológica por Mauss e desenvolvido por Lévi-Strauss. Para o antropólogo, existiria uma estreita analogia de método entre o estruturalismo e a lingüística, que acabaria por lhes impor um dever especial de colaboração. Diz Simanke: “Essa lição será muito bem aprendida por Jacques Lacan, que a repetirá durante todo o seu momento estruturalista, inclusive lamentando o fato de que Freud não tenha podido se
11 Lacan, Jacques. Fonction e champ de la parole et du langage en psychanalyse. In: Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 237-322 (‘Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. In: Escritos. Rio de Janeiro: JZE, 1998, p. 238-324). 12 Lévi-Strauss, Claude. Les structures élémentaires de la parenté. Paris: PUF, 1949. 13 Simanke, Richard Theisen. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. Curitiba: UFPR, 2002, p. 430.
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beneficiar de tantos e tão salutares progressos.”
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Dentre essas e outras inovações, acabaram por emergir as características do “método estruturalista” em antropologia, com o conceito de inconsciente passando a ter uma definição bastante aceitável no interior do projeto lacaniano, mesmo causando estranhamento com o seu sentido freudiano originário. Ainda de acordo com Simanke, se fez necessário, para que essa aproximação surtisse efeito, que a noção de símbolo fosse totalmente retirada de uma relação com as coisas, sendo, então, assimilada ao elemento formal de uma estrutura. Portanto, se Lévi-Strauss redescobre a distinção saussuriana entre o significante e o significado – o que já vinha sendo feito pela lingüística – ele adapta-a à antropologia, atribuindo ao significante o lugar da estrutura e ao significado, o do sentido, sendo que, em Saussure, trata-se antes de opor o som ao conceito. Teria sido, pois, por essa via, que Lacan elaborou o seu registro do simbólico. Discorre Simanke: Pois, embora o vocabulário saussureano desponte com freqüência em seus textos, é Lévi-Strauss quem fala aí pela boca de Saussure, inclusive na famosa desmontagem do signo e na inversão do “algoritmo” (sic) apresentado no Cours de linguistique générale. Uma vez assimilada, nesses termos, a concepção saussureana da linguagem, torna-se possível pensá-la como o instrumento, por excelência, para a construção e organização do mundo humano e social, já preconizadas pela sociologia de Augusto Comte. A complexidade, que o fenômeno lingüístico e as capacidades de comunicação atingem no homem, e o fato de que a linguagem aí se constituía em sistema e que, portanto, seus sinais remetam uns aos outros, e não apenas às coisas que eles designam, permitem que o simbolismo que assim se constrói forneça a chave para a organização do próprio mundo físico, adaptando-o às instituições humanas, ao contrário das linguagens animais que, por mais desenvolvidas que sejam, só podem expressar ou designar.15
Nesse sentido, completando o raciocínio de Simanke, se o estruturalismo consegue substituir pelo símbolo os remotos objetos da sociologia – basicamente o 14 Op. cit., p. 435. 15 Op. cit., p. 436.
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comportamento social do sujeito – é, portanto, em virtude de uma via que se abre, que se passa a conceber esses próprios sujeitos como constituídos pelo simbolismo.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
BENVENISTE, Émile. ‘‘A comunicação’’. In: Problemas de lingüística geral. Tradução de Mª da Glória Novak e Mª Luísa Néri. Campinas: Pontes/Unicamp, 1995. LACAN, Jacques. ‘‘Fonction et champ de la parole e du langage en psychanalyse’’. In: Écrits. Paris: Seuil, 1966 (“Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: JZE, 1998). LEMAIRE, Anika-Rifflet. Lacan. Traducción de Francisco J. Millet. Barcelona: Edhasa, 1971. LÉVI-STRAUSS, Claude. Les structures élémentaires de la parenté. Paris: PUF, 1949. MILNER, Jean-Claude. Le périple structural. Figures et paradigme. Paris: Seuil, 2002. SAUSSURE, Ferdinand. Cours de linguistique générale. Édition critique préparée par Tullio de Mauro. Paris: Payot, 1981 (Curso de lingüística geral. Tradução de Antonio Chelini, josé Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006). SIMANKE, Richard Theisen. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. Curitiba: UFPR, 2002.
* Sergio Augusto Franco Fernandes é Doutor em Filosofia (Unicamp), professor adjunto do CAHLUFRB, representante regional/Ba do GT Filosofia e Psicanálise (Anpof) e membro do Colégio de Psicanálise da Bahia. E-mail: sergioaffernandes@gmail.com
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Idealismo e libertação em Marcel Proust Ulisses Razzante Vaccari*
Resumo: o artigo parte das críticas de gratuidade que Sartre endereçou a Proust, para então mostrar como o escritor de Em busca do tempo perdido está acima da exigência de uma literatura engajada, assim como do lugar-comum do esteticismo. A literatura de Proust, ao contrário, se configura como realização e libertação estética da vida. Palavras-chave: MEMÓRIA, TEMPO, LITERATURA São já em termos conhecidas na história da literatura as severas críticas que os intelectuais franceses lançaram a Proust, julgando sua literatura uma escrita tipicamente burguesa e politicamente desinteressada. É o caso de Sartre, (1951, 207) por exemplo, que compara o escritor parisiense a Gide, Mauriac, Maurois e Giraudoux, para ele escritores tipicamente burgueses do início do século XX, cujas heranças familiares os desincumbia da função de ter de trabalhar para sobreviver. Ao contrário, podiam ler e escrever à vontade, sem que a situação política ou econômica da nação os importunasse em suas carreiras de intelectuais, de escritores. Mas justamente esse descompromisso foi o que propiciou uma escrita que se esvaziava, na crítica de Sartre, (1951, 208) de todo conteúdo político, revelando a condição ambígua do escritor que, “incapaz de abraçar sem reserva a ideologia burguesa, é por isso também incapaz de condenar a classe da qual fazia parte”. Essa acusação sartreana de gratuidade feita a Proust nos conduz a uma antiga discussão de arte pela arte e arte engajada. O filósofo de O ser e o nada retoma a discussão ao dizer que essa gratuidade proustiana se dá como um reflexo da inserção do escritor na decadente sociedade burguesa da virada do século XX, como se se reduzisse a meras descrições de costumes, à guisa de memórias. O próprio Proust, no entanto, declarara, numa carta a um amigo, que sua obra jamais poderia OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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receber o título de memórias, mas, ao contrário, era a obra de uma vida toda, de “une composition très sevère”, e sem o caráter contingente de memória. (LINS: 1956, 46-7) Não sendo memória, tratava-se de uma obra de arte sem definição de gênero, meio biográfica, meio ficcional, mas que viria a causar fissuras e transformações na tradicional forma de escrever e de enxergar o mundo. Por um lado, talvez as críticas de Sartre tivessem algum sentido. Por outro, revelam-se infundadas a um escritor que está acima dos lugares-comuns que separam a literatura em arte engajada e arte pura. O fato de a literatura de Em busca do tempo perdido ter alguns traços semelhantes com as literaturas de seus contemporâneos, por exemplo, com a de Gide, levou Sartre a qualificá-la gratuita como se fosse a expressão do todo daquele momento histórico vivido pela França. Proust e Gide respiram o ar fin-de-siècle, o ar da decadência, e é como se esse clima propiciasse uma escrita igualmente decadente ou, nas palavras sartreanas, uma literatura gratuita.1 Um ponto central das críticas de Sartre é o fato de Proust e os demais decadentes não viverem o clima da guerra, o clima do holocausto o qual absorveu a literatura dos anos 30, e do qual o romance A náusea é a maior expressão. Sartre, como ele próprio diz, viveu uma época cuja literatura “destinava-se a homens que esperavam a guerra e a morte”, (1951, 243) que viviam uma crise mundial, o advento do nazismo, os acontecimentos na China e a guerra da Espanha. De fato, um clima propício para que se despertasse na literatura da década de 30 uma consciência histórica talvez comparada apenas àquela que precedeu a revolução de 1789. Mas o juízo sartreano parecia de alguma forma enganado, pois, assim como ele, também Proust viveu o clima da primeira guerra e da efervescência do caso Dreyfus,2 tão importante para o futuro da Europa. “Dentro da época de Mar1 Segundo nos mostra um estudo de Paulo Eduardo Arantes, esse era um problema referente a toda civilização européia desde tempos antigos, particularmente acentuado no caso da Alemanha. Segundo suas palavras, “aquelas circunvoluções cerebrinas – que para Goethe e os demais weimarianos eram sintomas patogênicos – já foram chamados de frenesi burguês, o qual assolava então o conjunto da intelligentsia européia” (Ressentimento da dialética: 1996, 221). É também como um tipo de frenesi burguês que Sartre olhará para a literatura proustiana; como meras circunvoluções cerebrinas. 2 Sobre a relação entre o caso Dreyfus e a literatura, cf. CARPEAUX, O. M. História da literatura ocidental, Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1964, t.VI, 2824-28.
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cel Proust, os dois maiores acontecimentos políticos do ponto de vista francês foram o caso Dreyfus e a guerra de 1914: estão ambos refletidos no desenvolvimento de A la recherche du temps perdu”. (LINS: 1956, 46-7) O que ocorre, apesar disso, é que esse reflexo se dá de uma forma distinta em Proust e em Sartre. Vê-se que também Thomas Mann na Alemanha retratou o clima macabro do período que antecedeu a primeira guerra em sua Montanha Mágica, com seus personagens moribundos na clínica de Davos-Platz, e nem por isso se trata de um escritor politicamente engajado. A obra de arte, tanto no caso de Mann como no de Proust, assume um papel que foge ao velho esquema de arte engajada ou de arte pela arte. Ao menos no caso de Proust, a arte é sua própria vida, é um fim em si mesma, e não um meio de comunicação, de humanismo. Ao contrário de Sartre, Proust é o anti-humanista, o pessimista convicto, e a humanidade para ele é tão animal quanto o próprio animal (é de se lembrar que, desde O caminho de Guermantes, todos os volumes restantes de Em busca do tempo perdido deveriam se chamar Sodoma e Gomorra). Apesar disso, ao mesmo tempo que parece inadequado qualificar a literatura proustiana de moralista – tendo em vista a revelação do vicioso mundo de Sodoma e Gomorra – parece igualmente inadequado qualificá-la de esteticismo, à maneira de Oscar Wilde, por exemplo. “No romance de Proust, a arte, se não é utilitária, não é também hedonística”. (LINS: 1956, 195) Se se pode dizer algo de sua obra, é que ela opera uma transfiguração estética da realidade e essa transfiguração pressupõe a negação – também estética – do mundo. Em outras palavras, o mundo é, de um lado, negado e, de outro, esteticamente reconstruído. O verdadeiro mundo, na literatura de Proust, é aquele produzido pela obra de arte. Tanto a pintura de Elstir como a arte da atuação da Fedra pela Berma são como que aberturas estéticas, as únicas vias possíveis de se salvar o mundo do caos, do perecimento e da doença humana. A negação do tempo e o ensimesmamento na memória, executados pela obra proustiana, são as respostas estéticas a um mundo que deverá ser esquecido – o íntimo se abrindo como o caminho do verdadeiro mundo. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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A literatura de Proust aparece gratuita aos olhos de Sartre por ser este um filósofo crente da função social do intelectual, de modo que a obra de arte, para ele, só possui valor à medida que antecipa grandes acontecimentos históricos. É assim que A Náusea antecipou a Segunda Guerra, refletindo sobre o sentido da existência. É uma literatura que se volta claramente para o futuro, ao passo que o futuro, em Proust, está no passado. Em O imoralista, André Gide discute assuntos claramente relacionados à esfera quase metafísica do âmbito moral, assim como O estrangeiro de Camus. Para Sartre, pode ser que apenas divagassem sobre um céu estrelado, porque a sua época exigia algo mais do que apenas elucubrar sobre o homem, suas relações morais e sua vida em sociedade. Tratava-se de fazer os intelectuais se virarem para o que estava por vir, para um grande acontecimento histórico. O fato é que aqueles mesmos escritores burgueses, à medida que escreviam, revolucionavam verdadeiramente a antiga forma do romance psicológico e desse modo também transformavam, à sua maneira, sua época. Em Proust, as constantes pontes estabelecidas entre a literatura e as demais linguagens artísticas formam um verdadeiro universo, englobando em si a pintura, a música, o teatro e em muitos aspectos também a filosofia. Tornara-se famosa a passagem em que Swann compara Odette com os quadros de Botticelli, em No caminho de Swann, na qual ela o olhava “com um ar sério e ele revia um rosto digno de figurar na Vida de Moisés de Botticelli, onde o situava, dando ao pescoço de Odette a inclinação necessária...”. (1979, 141) No caso da música, tornaram-se célebres os trechos de descrição da sonata e do septeto de Vinteuil em O tempo redescoberto. Passagens tais como o início de No caminho de Guermantes, sobre a atuação da Berma, constituem verdadeiros ensaios sobre dramaturgia, assim como as passagens referentes à pintura de Elstir no caso de À sombra das raparigas em flor. Do ponto de vista filosófico, a obra de Proust constitui por vezes um verdadeiro sistema, à maneira dos alemães, sobre o tempo, sobre a memória, sobre a irrealidade do mundo exterior. É, pois, de suspeitar que uma literatura tão rica pudesse ser chamada de gratuita, mesmo aos
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olhos do intelectual situado frente à morte. Mostrando apenas um desses universos de Proust, pensa-se contribuir deveras para a dissolução de uma visão a tal ponto parcial de sua obra.
*** Falando de um modo geral, a leitura da obra de Proust conduz o leitor, página por página, a realizar uma travessia que conduz do real ao ideal, e a fronteira que separa o mundo objetivo da síntese estético-literária operada pelo escritor, salta aos olhos. Vê-se que uma construção é paulatinamente levada a cabo, linha por linha, página por página, ao mesmo tempo em que o mundo dos estímulos imediatos vai ficando para trás. Um sentimento é por vezes tão psicologicamente aprofundado em suas razões e causas, em suas hipóteses e comparações, que aquele sentimento bruto inicial parece ser esquecido, ser deixado para trás. Doravante se trata de um sentimento quase que totalmente criado pela imaginação artística, completamente idealizado e que se põe à parte do real sentimento, da realidade efetiva, à maneira de Flaubert. O que se tem, ao final das contas, depois de se ter iniciado na filosofia proustiana, é uma reconstrução ideal do mundo, é um mundo redescoberto, e a ambivalência da realidade salta aos olhos, tal como em Platão o mundo das formas se contrapunha ferozmente ao mundo sensível. Por vezes, em meio aos longos parágrafos de Em busca do tempo perdido, Proust encarna “... o filósofo idealista cujo corpo se dá conta do mundo exterior em cuja realidade sua inteligência não acredita...”. (1979, 228) A filosofia subjacente à sua literatura deixa entrever todo o ceticismo de seu espírito perante o mundo real, tendo visto que as frustrações provenientes desse mundo eram algo insuportável para Marcel. Com efeito, a incapacidade de realização dos desejos, ou seja, a oposição entre o desejo e o que Freud chamou de o princípio de realidade, pode ser a causa de uma literatura a tal ponto idealista. Sua literatura OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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é construída sobre relatos de decepções, de desilusões, mostrando a importância que dava aos prazeres, e como a incapacidade de satisfazê-los constituiu sua decisão de escrevê-los. Por exemplo, a dor de não ter a mãe sempre por perto que tanto desejava, na infância; de não poder ficar com Gilberta e de não poder sequer beijar Albertina, fato que tanto sonhara, ao final de À sombra das raparigas em flor. O que se pode dizer, é que o desejo sempre sobressaía àquilo que a realidade poderia preencher, e essa parece ser a fonte, o impulso criador de sua obra3. Como diz André Maurois, esse exercício de conhecer os sentimentos e o universo humano em geral desde o interior é próprio de quem foi obrigado a viver à parte da realidade. Todos dois [Proust e Ruskin] se iniciaram, como amadores ricos, num tipo de vida que talvez tenha seus riscos, porque priva a criança ou o jovem do contato com a vida real, mas que, por outro lado, deixando-lhe uma epiderme mais sensível e garantindolhe uma possibilidade de meditação mais prolongada, permite chegar a uma delicadeza de nuances muito particular e rara. (1995, 98)
Num dos seus diversos relatos, Proust expõe o desequilíbrio entre o seu desejo de viajar e a impossibilidade que depois lhe fora imposta por seu pai, criando para si, na imaginação, os ambientes que, no entanto, nunca pudera visitar: … se esses nomes absorveram para sempre a imagem que eu formava dessas cidades, assim o fizeram transformando-as e submetendo às suas próprias leis seu reaparecimento em mim; tiveram por conseqüência tornar essa imagem mais bela, mas também mais diferente do que as cidades da Normandia e da Toscana podiam ser na reali3 Se se utiliza aqui a vida de Proust para o esclarecimento de alguns pontos de sua obra, é à maneira do método contra Saint-Beuve, nem puramente biografismo, nem puramente histórico, que está na base da célebre obra de André Maurois, Em busca de Marcel Proust.
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dade, e agravar a futura decepção de minhas viagens com o incremento que dava às alegrias arbitrárias de minha imaginação. (1979, 225)
Ora, os mundanos salões da aristocracia, nos quais se reuniam as mais elegantes figuras da sociedade parisiense, sempre fora objeto de desejo para o jovem Marcel. “...o certo é que ele esteve realmente durante algum tempo fascinado pelo mundanismo. E justamente na base do dualismo ideação-decepção é que Proust nos oferece o seu principal recurso de técnica romanesca...”. (LINS: 1956, 117-8) Ainda criança, como não podia freqüentá-los, permanecia imaginando-os a partir das histórias que lhe contavam, ou ao ver a figura de Swann freqüentando sua casa. Em sua cabeça, formava um ideal do mundo aristocrático dos salões, da mesma forma que uma imagem completamente ideal do teatro e do desempenho da Berma no palco. Logo, entretanto, que pôde ver a Berma, decepcionou-se profundamente, do mesmo modo que aquela augusta beleza dos salões foi aos poucos se deteriorando em vícios e mesquinharias humanas. O que é característico, porém, desse movimento de decepção é que a ele está vinculado intrinsecamente o movimento do tempo. É como se a decepção, a impossibilidade de realização dos desejos estivesse relacionada diretamente com o fato de que é o tempo mesmo a causa dessas desilusões. A sociedade mundana, das belas duquesas e seus vestuários luxuosos, dos costumes aristocráticos, no tempo vão aos poucos desaparecendo, dando lugar a uma nova forma, aparentada com a decadência, de onde surge o verdadeiro esqueleto da humanidade. O tempo não faz progredir, mas leva antes à deteriorização do belo. A desilusão está, pois, ligada à vontade da permanência, da forma bela não-perecível, tal como se lhe apareceu um dia na infância, em que era possível assistir ao desfile de Madame Swann pela florida avenida dos Champs Elisées. Ao se entrar em contato com o verdadeiro mundo, imerso no tempo, vê-se enfim a beleza se esvaindo, os costumes se deteriorando. Por isso, Proust acompanha vivamente cada hora, cada minuto, como que tentando cristalizá-los em sua singularidade, em sua beleza etérea. A fluidez do tempo cria a necessidade do refúgio, mas sempre temendo “agravar a futura decepção”. A minúcia das OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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análises está ligada à tentativa de se abordar os eventos a partir de sua raiz, de sua forma, como se um mundo arquetípico fosse a causação do mundo ectípico, do tempo. Como diz o crítico Álvaro Lins, Reynaldo Hahn recorda-se de um desses ‘momentos profundos’, quando Proust se deteve de olhar fixo, durante um tempo considerável, ante as rosas de um jardim, as quais ele procurava com certeza transportar para dentro de si mesmo. Por sua vez, advertirá o próprio Narrador que não freqüentava a sociedade para ‘tomar notas’ ou ‘fazer um estudo’, mas para observá-la por dentro, para vê-la pelo interior. (1956, 203)
Enxergar o mundo pelo seu interior significa vê-lo em sua essência, na qual o tempo e a decepção são suprimidos. Neste ponto, nesse modo de ver o mundo por dentro, operou-se já a transposição do real que é a obra de Proust, após o mundo efetivo ter sido negado. Como se sabe, essa reconstrução ideal é levada a termo por meio da memória, a qual realiza, em primeiro lugar, a completa absorção do real, em todas as suas especificidades, para em seguida reconstruí-lo em termos de obra de arte pela imaginação. Daí que se tenha dito que o real deixa de possuir um estatuto de matéria bruta, tal como fora primeiramente percebido. Todos os sentimentos humanos, os objetos sensíveis, os costumes morais; tudo é como que sintetizado pelo mútuo trabalho de memória e imaginação. “De resto, se a imaginação se sente arrastada pelo desejo do que não podemos possuir, o seu impulso não é limitado por uma realidade perfeitamente percebida nesses encontros em que os atrativos de uma mulher que vemos passar costumam estar em relação direta com a rapidez de sua passagem”. (PROUST: 1981, 227) Esse mundo ambivalente a que se chega por meio da absorção e interiorização do real, dividido entre aparência e essência, constituirá um dos elementos propriamente filosóficos de sua obra. Como diz Maurois, o escritor dera bastante importância à filosofia, que o ajudara a alcançar a fonte dessa tensão íntima, a perscrutar de algum modo as fronteiras entre o desejo e a realidade. A
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filosofia lhe serviria como método intelectual de análise desse mundo ideal e para a formação de sua concepção geral de um mundo subjacente à aparência. Daí que o contato do jovem escritor com o mundo filosófico fora determinante para toda a sua produção literária: O ano de filosofia (1888-1889) foi para ele o de seu maior enriquecimento intelectual. Era a época em que, ao materialismo de Taine e de Berthelot, sucedia ‘uma variedade de imaterialismo imanente’, a época em que Lagneau, para Alain, comentava Platão e Spinoza em belas aulas negras como tinta, em que Lachelier, Fouillé, Boutroux preparavam o terreno para Bergson. Proust teve a sorte de ter como professor Darlu (...). Mais tarde Proust leu Renouvier, Boutroux e Bergson, mas sempre considerou Darlu seu mestre, e foi Darlu quem disparou essa longa meditação sobre a irrealidade do mundo sensível, sobre a memória e o tempo, que é À la Recherce du Temps Perdu”. (1995, 40-1. grifo nosso)
O contato com a filosofia fizera-o incorporar a crença na irrealidade do mundo sensível. Tal como em Platão, crescera a necessidade de se afastar do mundo cujos prazeres são apenas aparências, e virar-se em direção ao verdadeiro mundo, à verdadeira fonte de prazer. É nesse sentido que a filosofia ensinara a Proust o antigo preceito segundo o qual o mundo sensível, submetido ao tempo e ao perecimento, é por isso mesmo não a real fonte de prazer, mas a fonte do sofrimento, no seu caso o sofrimento da decepção. Desse modo, pode-se afirmar juntamente a Florival que, “mais fundamentalmente, para além da abordagem fenomenológica e da interpretação analítica, a Recherche faz pressentir uma abordagem metafísica, pois que o sujeito tende à contemplação de idéias ou essências estéticas”. (1970, 33. tradução nossa) Quando diz Proust que a realidade só pode ser representada pelo pensamento, (Sodoma e Gomorra: 1981, 177) é preciso saber que pensamento significa aqui memória, no sentido filosófico da palavra. É na memória que se abre a possibilidade de retenção do mundo fluido, no qual nada se retém, e no qual “cumpre lembrar que a opinião que temos uns dos outros, as relações de amizades, de família, nada tem de fixo senão em aparência, mas são eternamente móveis como o mar”. (No caminho de OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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Guermantes: 1981, 209) No mais, os objetos exteriores, como as árvores, os pássaros, apenas “ajudavam a melhor compreender a contradição que existe em procurar na realidade os quadros da memória, aos quais faltaria sempre o encanto que lhes vem da própria memória e de não serem percebidos pelos sentidos. A realidade que eu conhecera não mais existia”. (No caminho de Swann: 1957, 352) Trata-se, agora, de saber encontrar a verdadeira realidade, e reconhecer que só é possível na obra de arte, numa operação estética que funde o real objetivo com o real imaginário, cristalizando-a numa obra literária.
A tEcnica
A técnica literária permite encarar a obra a partir de um outro prisma. É evidente que uma tal visão exige o pressuposto de que forma e conteúdo são inseparáveis, e é disso que parte Anatol Rosenfeld em sua análise do romance moderno, no qual se insere Proust. Segundo o crítico, Proust faz parte de uma época da literatura cuja principal característica é a crise do romance psicológico. Uma crise que se faz ver, sobretudo na forma, pela aparência geral que o escrito assume aos olhos do leitor. À medida que o romance psicológico passa a idéia de onisciência do narrador, mostrando os meandros psíquicos e não-psíquicos de todos os personagens, o romance pós-moderno passa a sensação de completa ignorância dos detalhes da trama. Essa ignorância, a cegueira do personagem, é transmitida ao leitor que igualmente sente-se cego, incapaz de visualizar as causas, o outro lado. A partir do mesmo ponto de vista, Em busca do tempo perdido não se figura totalmente como uma obra psicológica tal como se poderia pensar. Fruto de sua época, é construída de acordo com o modo de pensar do início do século XX e desse modo exprime o sentimento geral de cegueira e de impotência frente à imensa complexidade dos mecanismos da sociedade pós-moderna. O fato de, em Proust, o narrador constituir-se em primeira pessoa e falar quase que tão-somente de si não faz dele um escritor do tipo de Flaubert.
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Como nos mostra Rosenfeld, a principal característica do romance psicológico era a centralização do foco narrativo nos indivíduos, ao passo que, a partir do século XX, o foco passa a ser o arquétipo, que exige a inserção e o conseguinte desaparecimento do Eu no mito. José e seus irmãos, de Thomas Mann, se afirma sobre bases explicitamente míticas e arquetípicas, próprias da inversão operada no âmbito literário de então. Diz Rosenfeld: O abandono da análise psicológica – como valor em si – e o esfacelamento formal do romance decorrem, ambos, de uma experiência ampliada da realidade, ampliada tanto em extensão como em profundidade. O ‘Eu atrevido’, desmascarado por Marx, Nietzsche, Freud e Pavlov, é solapado na sua essência de entidade racional e livre; vê-se ameaçado pelas gigantescas transformações sociais e técnicas e pelas concepções que lhe concedem no máximo o frágil ser de uma tênue camada de consciência sobre o mar insondável do inconsciente, em cujo fundo a categoria do tempo perde a sua validade.... (1994, 25)
Ora, é exatamente esse o motivo pelo qual Sartre desfecha golpes contra Proust, por ele contribuir com o desmacaramento do Eu e solapá-lo “na sua essência de entidade racional e livre”. Sartre, como filósofo da ação e da liberdade, do mote segundo o qual a existência precede a essência, jamais poderia consentir com uma obra na qual o indivíduo é impotente frente ao enorme e devastador mecanismo do mundo. Mas, apesar disso, como diz Rosenfeld, “ao lado oposto de Proust, o existencialismo [também] desfecha ataques contra o Eu inautêntico (precisamente o da psicologia), cavando túneis até à ‘existência’ e que se revela inacessível à análise psicológica”. (1994, 25) Em Em busca do tempo perdido, esse desfacelamento do Eu se dá frente ao devastador mecanismo da vida social parisiense. Da mesma forma que um misterioso processo, em Kafka, recai sobre o personagem K., impiedosa e inexoravelmente – revelando desse modo a forma pela qual o pretenso Eu está sujeito aos movimentos superiores, que o aniquilam – também o Narrador de Proust vê-se OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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como que esmagado em meio à sociedade, nos seus costumes impessoais, no aniquilamento da personalidade das leis morais totalizantes. Com efeito, Proust mostra o modo pelo qual o indivíduo se funde num tipo de arquétipo social e natural, e assim perdendo sua essência. As ações do indivíduo são impotentes e Swann se sente incapacitado de resgatar Odette do invencível monstro que constantemente a engole. “E um dos sinais da tristeza do mundo proustiano, da emoção que nos comunica pela melancolia, é esse espetáculo de seres isolados e fechados sobre si mesmos, seres como que lançados à danação de uma existência solitária e incomunicável...”. (LINS: 1956, 84) Assim, no contato com a realidade, o eu é desfacelado; não possui substância psíquica para se impor. Consequentemente, volta-se sobre si mesmo, para suas experiências pessoais, em busca de sua própria verdade. O verdadeiro sentido da vida é doravante buscado não mais na realidade imediata, mas naquilo que é próprio de um eu em busca de sua reintegração psíquica. A memória é, nesse sentido, o meio pelo qual, num primeiro passo, o eu desiste da realidade imediata que o circunda, oferecendo-lhe lapsos de um outro mundo possível. Num segundo passo, o eu se isola no mundo mnemônico, reconstituindo para si todas as experiências passadas. Enfim, o eu retorna a si mesmo trazendo consigo a totalidade das experiências revividas, se identificando finalmente como igual a si mesmo. A obra de Proust, pois, ao mesmo tempo que apresenta aspectos da inserção e aniquilamento do eu no arquétipo, apresenta igualmente um modo de superar essa destruição e conservar a integridade do eu: a obra de arte. É pela memória que o eu se vê capaz de retornar até a sua origem e retrilhar por meio dela os passos dados até o momento em que ambos os eus se coincidem, aquele de onde se partiu e o outro que retorna a ele pelo caminho da memória. Ao coincidir consigo mesmo, abre-se diante do Narrador o outro mundo, no qual se encontra a verdadeira essência das coisas, à maneira de Platão. Neste momento, o eu redescobre o tempo, porém um tempo agora atemporal, por assim dizer. Como diz Florival:
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Neste momento, o Verdadeiro se junta à certeza da infância e o desejo é concluído. A criação estética realiza então o sentido e a verdade de uma vida: o homem é libertado na e pela obra, tornada pólo da diferença objetiva. De uma parte, a criação é abertura a um tempo pessoal ‘e se a morte existe para nós, a obra sobreviverá, à medida que ainda existam homens para lê-la’; de qualquer forma, a Arte abre ao Absoluto. (1970, 38)
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Do ponto de vista psicológico, é fácil identificar o movimento de retraimento característico da obra proustiana, cuja causa está principalmente no sentimento de decepção, como se viu. As decepções aos poucos foram fazendo do mundo em que Proust vivia um mundo morto que necessitava ser reconstruído. Essa reconstrução pode ser vista de duas formas distintas: a estética, já citada, e a psicológica. Afinal, esse é um caso típico abordado pela psicanálise, pois, como escreve Freud, nos casos de sofrimentos agudos, “surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se fonte de (...) desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer...”. (1978, 134) Desse modo, a análise psicanalítica não se distingue da análise estética. A obra de arte realiza o mesmo movimento que realiza a análise psicanalítica: o movimento da libertação do indivíduo. Na análise, o indivíduo é conduzido ao passado pelo analista, na longa luta contra as resistências impostas pelo superego.4 Na confecção da obra de arte, é o artista quem se lança contra as resistências, e a sua vitória é para ele a sua libertação. Marcuse é quem sintetiza de modo admirável o movimento psicanalítico, comparando-o ao estético: 4 Diz ainda Florival: “... não se poderia suspeitar, em Proust, uma forma de intuição psicanalítica na medida em que toda a Recherche é uma reminiscência e onde o autor sublinha, remontando às lembranças, o lento trabalho da resistência?” (Le désir et l’autre chez Proust: 1970, 33)
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A regressão assume uma função progressiva. (...) A libertação do passado não termina em sua reconciliação com o presente. Contra a coação auto-imposta da descoberta, a orientação sobre o passado tende para uma orientação sobre o futuro. A Recherche du temps perdu converte-se no veículo de futura libertação. (1968, 39)
Tanto do ponto de vista psicanalítico como do estético, o indivíduo se liberta de suas neuroses e de suas fantasias sofridas por meio do reencontro com o conteúdo da fantasia. O fato é que a jornada, em ambos os casos, transporta o indivíduo do presente e, como disse Marcuse, a regressão se torna progressão. O indivíduo deixa de se situar no presente real e imediato. No caso de Proust, esse transporte no tempo se dá de forma ainda mais efetiva, pois o mundo, o tempo imediato e o presente são no final completamente descartados numa tentativa de manter o eu íntegro. Na visão de Rosenfeld, “o indivíduo, fechado no seu tempo subjetivo, já não vive no mundo histórico. (...) Se a epopéia dissolve a consciência individual no mundo, Proust dissolve o mundo na consciência individual”. (1994, 27) Nesse caso particular, a vida individual e concreta do escritor fornece dados-chave para se compreender a monumentalidade de sua obra. No caso de Proust, a aproximação não é de todo pueril visto que Em busca do tempo perdido é uma mistura de vida e de ficção, os personagens se constituindo numa mistura de muitas das pessoas com as quais Proust conviveu. O Narrador, entretanto, é o próprio Proust, e isso por si só permite que se procure em sua vida particular os elementos que lançam luz sobre sua obra. A partir do momento que Proust começa a escrever, ele percebe a necessidade de se isolar daquilo que seria destruído: o mundo. Ora, é sabido que, em vida, Proust abdicou completamente de sua vida social. Tendo inicialmente freqüentado os salões que descreve em sua obra, depois os abandonou. Se há um desenvolvimento de enredo em Em busca do tempo perdido, é a história do movimento da desilusão com o mundo snob. No caminho de Guermantes, por exemplo, começa com um sentimento eufórico do Narrador com aquele mundanismo de sua época, com aquele jogo 184
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infindável de costumes e regras sociais, para, ao se aproximar do final, terminar com a sátira devastadora desse mesmo mundo: ... as refeições dos círculos dos Guermantes faziam pensar então nessas horas que enamorados tímidos muita vez passam juntos a falar de banalidades até o momento de separar-se, sem que, por timidez, pudor ou inabilidade, tenha podido passar do seu coração para os lábios o grande segredo que seriam tão felizes em confessar. (1981, 160)
O movimento, pois, da obra-da-vida de Proust vai do encantamento inicial pelo mundo, seja o mundo dos salões, da natureza, do amor, para o seu conseguinte desencantamento e pessimismo. O fato é que esse pessimismo aflorou em sua forma definitiva quando Proust já tinha uma certa idade, de modo que sua Busca é a própria história desse desencantar-se. Se se lê primeiramente a última página de O tempo redescoberto e a seguir a primeira página de No caminho de Swann, percebe-se claramente o círculo que o fez, num determinado ponto de sua vida, retornar ao seu começo e contar a história de sua decepção. Consequentemente, essa história é a “história de uma decepção como homem e a história de uma vocação como artista”. (LINS: 1956, 165) Do ponto de vista da biografia proustiana – que é a visée da obra de Maurois – um ponto em especial exerce grande influência no trabalho do escritor: a morte de sua mãe que, como se sabe, é uma das principais figuras de sua vida, e é a única figura que se salva do mundo de Sodoma e Gomorra. Muito diferente das pessoas hipócritas que constituíam os salões de sua época, sua mãe representava o símbolo da pureza e da retidão moral. Se um dia Proust se desencantou com o mundo, e decidiu viver fora dele, foi justamente ao perder o único vínculo que ainda o forçava a nele permanecer de alguma forma. A perda de sua mãe foi o ponto de partida para iniciar o trabalho que, desde sua infância, sabia que um dia teria de executar. Como diz Maurois:
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Os únicos paraísos verdadeiros são os que nós perdemos. As possibilidades das horas tão belas e tão plenas da infância jamais renascerão, exceto alguns breves amores que, por algum tempo, de novo nos darão o entusiasmo e a pureza. Contudo, para descobrir o mundo mágico da infância, para retratá-lo, para transformá-lo em matéria romanesca, é preciso sair de dentro dele, justamente o que Proust, enquanto seus pais viveram, não tinha conseguido fazer. (1995, 109)
No tempo desapareceram os pais do escritor e muitas pessoas as quais amava. Um dos elementos caracteristicamente filosóficos da escrita proustiana, o tempo é a prova de que as coisas carecem de existência material propriamente dita. Elas simplesmente se esvaem, se esfumam, e “ai de nós, as casas, as avenidas, as estradas são fugidias como os anos!”. Segundo Maurois, a filosofia clássica supõe ‘que nossa personalidade é feita de um núcleo invariável, uma espécie de estátua do espírito’, exposta como uma pedra aos ataques do mundo exterior. Tal é o homem de Plutarco, o de Molière e mesmo o de Balzac. Mas Proust mostra que o indivíduo, mergulhado no tempo, desagrega-se. Nele, um dia, nada mais restará daquele homem que amou, ou que fez uma revolução. (1995, 146)
Mas talvez reste algo do homem que escreveu. Proust escreveu, e seu impulso para tal se dá ao tomar um chá em casa de sua avó, mergulhando na xícara uma dessas bolachas, a madeleine, e um prazer delicioso me havia invadido, isolado, sem a noção de sua causa. E logo tornara para mim indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, do mesmo modo como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou melhor, esta essência não estava em mim, ela era eu. Eu havia cessado de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa poderosa alegria? (1979, 31)
Essa alegria viera de uma abertura temporal caracterizada pela memória involuntária, justamente aquela que surge a partir de um cheiro, de um gosto, e transporta a pessoa imediatamente ao longo do tempo passado, das lembranças mais longínquas. A diferença é que Proust soube expandir esses raros momentos, 186
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soube alargá-los escrevendo-os, lembrando-os detalhe por detalhe até o ponto em que passou a ser parte deles, e não mais pertencer ao mundo da caverna, encarando as sombras. A memória involuntária exerce a abertura temporal inicial, mas ela é efêmera, assim como é aquilo que se chama comumente inspiração. Por outro lado, ela é a evidência de que existe um outro mundo, um mundo que pode ser buscado, seja por meio da filosofia, seja por meio da arte. Um mundo que se abre para a contemplação das essências, no caso de Proust, estéticas, no caso de Platão, matemáticas. Já dizia o filósofo de Atenas que conhecer é recordar, recordar que um dia o homem esteve diante da verdade, mas a esqueceu nascendo, encarnando, e hoje, vive no mundo do esquecimento. Se fosse possível exercitar um meio de permanecer no mundo da recordação, do conhecimento, se estaria para sempre liberto do esquecimento, não pertencendo mais ao eterno ciclo do devir e tornando-se a própria eternidade.
Referencias Bibliograficas
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* Ulisses Razzante Vaccari é mestre em filosofia pela UFSCar e doutorando em filosofia na USP.
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A Consciência da essencialidade e a inessencialidade do homem em relação ao mundo através da literatura Aline Maria Ferreira de Souza dos Reis* Paul Albert Simon**
Resumo: A consciência da essencialidade e a inessencialidade do homem em relação ao mundo através da literatura se constitui num primeiro passo para entender o pensamento de Jean-Paul Sartre e como ele formula, a partir da dialética existente entre o autor e o leitor, a sua literatura, tendo como objetivo mostrar a realidade incontestável da liberdade do homem. Palavras-chave: Sartre, Literatura, Liberdade
1. Introducao
Um dos primeiros passos que Sartre dá em seu livro Que é a literatura? (1948) é mostrar como o homem ao perceber-se inessencial em relação ao mundo tem como objetivo encontrar uma maneira de ser essencial; ele quer saber o que leva um homem a criar e descobre o fato de que o homem deseja ser essencial às coisas. Sartre está interessado na passagem da percepção à criação; ele parte exatamente da dialética da percepção e da criação e, posteriormente, da dialética existente entre o autor e o leitor, para caracterizar como de uma simples percepção de um artista pode resultar a criação de uma obra. O que a experiência do homem diz? Que apesar de perceber o mundo, ele não é essencial a ele. Mas, então, o que leva o homem a desconfiar disso? O homem morre, mas nem por isso o mundo deixa de existir. Ele sabe que as relações entre as coisas não desaparecerão, caso ele não esteja mais lá para percebê-las. Por isso, levado pela incapacidade de ser essencial às coisas, ele cria para se tornar essencial. Vejamos como exemplo uma obra literária, a de Stendhal que cria OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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o romance A cartuxa de Parma. Ele imprime na sua criação o seu traço definitivo. O seu estilo e a sua percepção estão ali presentes. O universo do livro que se passa em Parma não está isolado. Há a Itália e o mundo inteiro fora dos limites do livro. Mas, o que se torna mais instigante é o fato de que somente através dos olhos do leitor a obra aparecerá, o que faz parecer ao autor que ele perdeu de novo o seu lugar no mundo. É necessário afirmar que “o objeto literário é um estranho pião, que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele só dura enquanto essa leitura durar”. (Sartre: 1989, 35) Pois, a criação só encontra a sua realização final na leitura, o jogo da essencialidade e inessencialidade do homem em relação ao mundo, tão importante em um primeiro momento, dá lugar a um jogo dialético fundamental experienciado por autor e leitor que, juntos, a partir do reconhecimento recíproco da liberdade do outro, fazem surgir a obra. O autor, ao solicitar a liberdade do leitor, visa a realização da obra, mas acaba por reconhecer a sua própria liberdade. Toda obra é um apelo, uma criação dirigida ao leitor, “uma vez que é só através da consciência do leitor que ele [o autor] pode perceber-se como essencial à obra”. (Sartre: 1989, 35) Comecemos desde o princípio. O homem quer se tornar essencial ao mundo; para tanto cria, pois é a única maneira que encontra de se tornar essencial às coisas, mas a partir do momento que realiza a sua tarefa, ou seja, a sua obra está escrita. Ela só existe mediante a percepção de um outro homem que a leia, ou seja, o leitor. Então, inverte um pouco a perspectiva, pois o autor, que se constituía como uma figura principal no processo, passa a ser secundário diante do leitor que irá desvendar o objeto criado por ele. Mas o fato de não estar em um primeiro plano neste momento da criação não anula a importância dele na construção do objeto literário. Ao leitor cabe fazer surgir a obra. Para tanto faz-se mister empreender a tarefa de ler a obra e ver aparecer diante de si as personagens e as suas vivências. É por isso que “o leitor tem a consciência de desvendar e ao mesmo tempo de criar; de desvendar criando, de criar desvendando”. (Sartre: 1989, 39) Do objeto é preciso
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esperar e observar o que há nele para ser ofertado. A obra só se torna possível através da percepção do leitor e da sua generosidade em ofertar a sua própria liberdade, o que caracteriza uma outra contribuição inigualável à construção da obra. Há uma dialética entre autor e leitor que move a literatura. A própria noção de liberdade faz parte disso. É preciso que a liberdade esteja na origem e no final de todo empreendimento literário. Não há sombra de dúvidas de que Sartre pensa num leitor ideal, mas ele mesmo confessa que é mais fácil para o autor falar às “liberdades atoladas, mascaradas, indisponíveis; sua própria liberdade não é assim tão pura, é preciso que a limpe; é também para limpá-la que ele escreve”. (Sartre: 1948, 55)
2. A consciencia da essencialidade e da inessencialidade do homem em relacao ao mundo atraves da literatura
2.1. A dialetica entre percepcao e criacao
Ao descrever a percepção, Sartre se preocupa primeiramente em descrever o que o percipente percebe, ou seja, o que qualquer homem percebe e como ele percebe. O homem tem a capacidade de, com a sua presença no mundo, multiplicar as relações, perceber de modos diferentes, como, por exemplo, Saint-Exupéry, o escritor-aviador, de dentro de um avião em sua obra Terra dos homens descreve: O avião é uma máquina sem dúvida, mas que instrumento de análise! Este instrumento nos faz descobrir a verdadeira face da terra. As estradas durante séculos enganaram-nos. Pareciam soberanas que desejavam visitar seus súditos e conhecer se eles se divertiam em seu reino. (1939, 55)
Poeticamente, este mesmo autor descreve como durante séculos o homem não pôde ver, sob um ponto de vista diferente, os caminhos que o levam a ir e OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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vir. Privados da vista do alto, os homens ficaram confinados a uma mesma maneira de ver e não puderam tirar a conclusão de que as estradas “durante séculos os enganaram”, porque não vivenciaram como o autor as tinha vivenciado, como “soberanas a olhar para seus súditos”. O autor, tendo como base sua percepção de como é encarálas do alto, exclamou: “O avião é um instrumento de análise!” E continua: Assim, caminhamos ao longo das estradas sinuosas. Elas evitam as terras estéreis, as rochas, as areias, elas se casam com as necessidades do homem e vão de fonte a fonte. Elas conduzem os camponeses de suas granjas às terras de trigo, recolhem na entrada do curral o gado ainda entorpecido e o despejam na aurora. As estradas juntam essa aldeia àquela vila porque casam uma à outra (Idem).
As impressões do escritor-avidor evidenciam o fato de que ele percebeu o que antes outros não haviam podido perceber. A percepção do homem diante do mundo altera sensivelmente a sua maneira de ver o mundo. Mas, se por um lado a percepção do homem é essencial ao desvendamento da realidade, caso ele sofra um acidente, por exemplo, e aquela visão o escape e deixe de ser percebida por ele, o mundo continuará a existir mesmo sem a sua presença. O que nos leva a pensar que o homem não é essencial em relação ao que percebe. Bem distinto do homem, o mundo sempre estará lá, indiferente a quem o percebe. O mundo não deixará de existir se o homem não estiver lá para percebê-lo. Sartre interpreta a essencialidade e a inessencialidade do homem em relação ao mundo a partir da perspectiva de que a realidade humana é desvendante. A presença do homem no mundo faz com que haja uma relação entre as coisas, pois o homem percebe o mundo, embora saiba ser inessencial a ele. Com a morte do escritor-aviador, por exemplo, o mundo não deixará de existir, nem as relações entre as coisas desaparecerão se ele não mais as estiver olhando. O que leva o homem a ser essencial às coisas as quais percebe é o fato de que pode criar. O homem, levado por uma incapacidade de ser essencial às coisas, cria para se tornar essencial. A criação é o momento no qual o homem pode mexer com os elementos do mundo, pode colocar
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o homem perto da estátua, longe da relva, à espera de um outro que venha em sua direção.
2.1.1. O autor e a percepcao do ser
Cada ato do homem pode revelar-se uma maneira nova de ver o mundo, mas o próprio homem é cônscio de que ele não é o produtor do ser. Ele apenas pode detectar o ser. Ele tem consciência de que não o produz. O homem sabe que produz uma obra literária, porque ela é fruto do seu esforço. Tudo o que a obra contém é resultado do processo criativo dele como autor, e todo o processo lhe é tão familiar que, paradoxalmente, a intimidade com todo o processo faz com que a obra nunca apareça como objetiva aos seus olhos, porque percebê-la é refazer mentalmente todo o caminho percorrido durante a elaboração da obra. Então, a obra aparece como inessencial e o autor, como essencial, o que subverte a ordem estabelecida anteriormente. Daí Sartre afirmar que em nenhuma outra atividade fica tão visível o fato de que o homem passa da inessencialidade à essencialidade em relação às coisas percebidas. O autor preso à sua subjetividade não enxerga mais o que projetou, ou seja, quando ele lê uma palavra que lhe custou horas para achar, o que aparece para ele é todo o caminho percorrido, as palavras que rejeitou, outras que o fizeram oscilar. Por mais que o autor procure ter uma certa objetividade em relação ao seu texto, ele só encontrará a sua determinação, os seus achados, a sua vontade, o seu projeto, enfim, ele mesmo.
2.1.2. O leitor e a criacao da obra
O leitor é diferente. Para ele, basta iniciar a leitura para fazer surgir a obra. Diferentemente do autor que, envolvido com o texto e preso à sua subjetividade, não avança, o leitor tem a tarefa de página a página encontrar o futuro das personagens, embora seja um futuro apenas provável que ora se consolida, ora se OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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desmorona; afinal é o próprio leitor quem movimentará o que está por vir. Sartre justifica a importância do leitor quando afirma: “Ler implica prever, esperar”. (Sartre: 1989, 35) O autor não pode ler o que escreve porque não consegue prever. Ele sabe exatamente o que espera na próxima frase. Não há surpresas. Ele domina o futuro, ele não faz conjecturas, nem precisaria, sendo ele o próprio autor. A sua leitura é uma quase-leitura, porque ele mesmo escolheu e engajou o futuro que está lá. Ao contrário do autor, o leitor progride na leitura, ansioso para estar no final da frase e, assim, chegar à frase seguinte para confirmar as suas expectativas ou frustrá-las. O leitor vê diante de si um horizonte móvel que avança a cada página, assim sucessivamente, até o final do texto. O leitor se encontra na ignorância e espera um futuro que ainda será definido, mas é justamente isso que faz com que a obra surja. A obra é objetiva aos olhos do leitor que a percorre e a deixa surgir lentamente diante dele. O autor não consegue objetivar aquilo que para ele não é uma coisa exterior. A frase não é uma coisa que ele possa ver de fora. Ele não objetiva uma frase que ele mesmo projetou. Se conseguisse entrar objetivamente em sua obra é porque não mais a escreveria. Sartre cita o caso de Rosseau relendo o livro Do Contrato Social, no final de sua vida. Ao sentenciar que ‘’sem espera, sem futuro, sem ignorância, não há objetividade’’, (Sartre: 1989, 36) Sartre quer dizer que apenas o leitor possui os requisitos necessários para fazer surgir a obra. O leitor é responsável pelo aparecimento do objeto literário, porque só ele possui o distanciamento necessário para ler a obra de uma forma objetiva. A obra que é apresentada traz um futuro que ele mesmo desconhece que o faz esperar e o faz ter distanciamento e objetividade suficientes para fazer do objeto literário surgir diante da sua imaginação. O que seria da obra, se não houvesse um leitor ? Ela não passaria de um esforço inútil do autor. O autor escreve para ser lido e o leitor ao lê-lo destaca a sua figura num correlativo dialético. Não há como dissociar a figura do autor com a do leitor e vi-
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ce-versa. Ambos são agentes distintos essenciais ao surgimento da obra. O autor é necessário para desvendar e produzir para o leitor o objeto, assim como é o leitor responsável pelo aparecimento do objeto literário. Na feitura da obra, o autor sai do campo da percepção e parte para o campo da criação. A obra é fruto desse esforço. Por sua vez, o leitor no esforço contínuo da leitura prova que tanto o objeto criado quanto o sujeito criador são essenciais. O leitor opera a síntese e “tem consciência de desvendar e ao mesmo tempo de criar; de desvendar criando e criar pelo desvendamento “ (Sartre: 1989, 37). O leitor ao introduzir-se no universo das palavras criadas pelo autor reinventa o que já foi inventado e percorre todo o trajeto feito pelo autor.
2.2. A leitura como uma criacao dirigida
O autor cria para o leitor e tudo está lá pronto para ele, mas a obra não é nada sem que a subjetividade do leitor a preencha. É a subjetividade do leitor que enche de vida as personagens. Sartre se refere à personagem de Crime e castigo de Dostoïévski: A espera de Raskolnikoff é a minha espera, que eu empresto a ele; sem essa impaciência do leitor não restariam senão signos esmaecidos; seu ódio contra o juiz que o está interrogando é o meu ódio, solicitado, captado pelos signos, e o próprio juiz não existiria sem o ódio que o anima, é a sua própria carne. (Sartre: 1989, 38)
O objeto literário parece aos olhos do leitor inesgotável. O leitor tem diante de si um mundo a explorar. Ele tem tudo a fazer e a obra o estimula a querer estar sempre adiante, mesmo sabendo que é o autor que está sempre um passo à frente dele; por mais que o leitor queira estar à frente, o autor já foi muito mais adiante. Estamos no campo da liberdade. A obra é uma criação da liberdade do autor, por mais que o leitor queira estar sempre à frente na leitura. Tudo o que ela contém foi exaustivamente pensado e elaborado, pelo autor que a concebeu. A criação é OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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dirigida à liberdade do leitor. É um apelo à liberdade do leitor, dentre outras coisas, porque é pela disposição do leitor em se entregar à obra que ela se torna possível e também porque “é só através da consciência do leitor que ele pode perceber-se como essencial à sua obra, toda obra é um apelo. Escrever é apelar ao leitor para que este faça passar à existência objetiva o desvendamento que empreendi por meio da linguagem”. (Sartre: 1989, 39) O aparecimento da obra está nas mãos do leitor e o autor sabe disso, mas (...) como nunca se encontra no livro a razão suficiente para que o objeto estético apareça, mas apenas estímulos à sua produção; como tampouco há uma razão suficiente no espírito do autor, e como a sua subjetividade, da qual ele não pode escapar, não consegue esclarecer a passagem para a objetividade, a aparição da obra de arte é um acontecimento novo, que não pode explicar-se pelos dados anteriores. (Sartre: 1989,39)
O autor faz um apelo direto à liberdade do leitor e solicita a sua confiança. É muito importante que o leitor deposite confiança no autor, porque ele passará horas lendo, empreenderá boa parte do seu tempo em desvendar os desígnios das personagens. Não há como não depositar confiança no autor.
2.2.1. O apelo a liberdade do leitor
Um ponto deve ficar bem claro para que se possa entender como Sartre vê o apelo que nasce da liberdade do autor e se destina à liberdade do leitor. Ele não considera o livro como algo que serve à liberdade do leitor, mas que a requisita; há de se conquistar a liberdade. A obra de arte não é um meio que vise um fim. Ela se propõe a ser um fim para a liberdade do leitor, o que é diferente. A obra existe enquanto é percebida. Não existe uma obra que nunca tenha sido lida porque simplesmente se ela não foi lida como pode ser uma boa ou má obra, se não houve um leitor que a julgasse? A imaginação do leitor, a sua subjetividade e objetividade são peças-chaves na engrenagem da máquina literária. Sem elas o empreendimento do autor cai no
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vazio. Nas palavras de Sartre, “a imaginação, como as demais funções do espírito, não pode usufruir de si mesma; está sempre do lado de fora, sempre engajada num empreendimento”(Sartre;1989, 40). Não tendo uma finalidade, mas sendo uma finalidade em si mesma, a obra se coloca como uma existência que se baseia em uma tarefa a ser cumprida. O leitor é o agente que cumprirá essa exigência. O leitor, de posse da sua liberdade, pode ou não deixar o livro sobre a mesa. É sua decisão de ler ou não. Mas, uma vez que o abra, ele assume uma responsabilidade, pois a liberdade não se prova na fruição do livre funcionamento subjetivo, mas sim num ato criador solicitado por um imperativo. Esse fim absoluto, esse imperativo transcendente, porém consentido, assumido pela própria liberdade, é aquilo a que se chama valor. A obra de arte é valor porque é apelo. (Sartre: 1989,41)
O autor não propõe ao leitor que simplesmente faça a obra existir, ele coloca em primeiro plano a perspectiva de que o leitor é criador, engajado e co-participativo na realização da obra. Pode-se perceber isso na forma com a qual o autor age, pois não apela à passividade do leitor nem tenta afetá-lo com emoções que o transtornem. Sartre cita o caso de Eurípedes que, já na antigüidade, colocava crianças em cena. Na paixão, a liberdade é alienada; abruptamente engajada em empreendimentos parciais, ela perde de vista a sua tarefa, que é produzir um fim absoluto. E o livro não é mais que um meio de alimentar o ódio e o desejo. (Sartre: 1989, 41)
Não é através de um apelo gratuito que se recria o objeto literário, mas com sentimentos que existem ali de uma forma peculiar. A liberdade está na origem desse apelo, pois se o autor suscita tais sentimentos é porque eles estão ali para conduzirem o leitor através da narrativa; são dados por empréstimo. O que se pede ao leitor é que ele deposite confiança no autor e que se faça crédulo, mas que nunca perca esta noção de ser livre a cada instante, de embarcar na leitura se assim o quiser. Se a cada momento posso despertar da leitura na qual estou imerso é porque sou livre para isso e tal liberdade é acompanhada da consciência que tenho de ser livre.
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De modo que todos os sentimentos que se agitam no campo dessa crença imaginária são como modulações particulares da minha liberdade; longe de absorvê-la ou ocultá-la, são meios que ela escolheu para se revelar a si mesma. Raskolnikoff, como já disse, não passaria de uma sombra sem a mescla de repulsa e amizade que sinto por ele e que o faz viver. Mas, por uma inversão que é própria do objeto imaginário, não é sua conduta que provoca minha indignação ou minha estima, mas minha indignação, minha estima que dão consistência e objetividade aos seus comportamentos. Assim, as afeições do leitor nunca são dominadas pelo desejo e, como nenhuma realidade exterior pode condicioná-las, tem como fonte permanente na liberdade, isto é, todas são generosas – pois chamo de generosa uma afeição que tem a liberdade por origem e por fim. Assim, a leitura é um exercício de generosidade. (Sartre: 1989, 42)
Apesar das afeições do leitor jamais serem condicionadas pelo objeto literário, porque têm como fonte primeira a liberdade, não podemos considerá-la em estado absoluto como algo dado sem que necessariamente apareça a generosidade do leitor. A liberdade está intimamente associada à generosidade. A leitura é um exemplo concreto de como a liberdade caminha junto com a generosidade.
2.2.2. Liberdade e generosidade na criacao literaria
É através da leitura que o leitor se doa por inteiro, ou seja, usa todo o seu manancial de desejos, referências e emoções para dar vida às personagens; a obra leva o homem a redescobrir a sua sensibilidade. Entregando-se à leitura, o leitor permite que a sua liberdade trafegue pelos mais diferentes lugares e descubra tanto a sua liberdade de leitor, como a liberdade do autor, pois aliado a esse reconhecimento, há a descoberta de que quanto mais reconheço a liberdade do outro, mais eu exijo dele e ele de mim. Se deposito no autor a confiança de que ele tem algo a me dizer e empreendo tempo e vitalidade em ler seu livro, exigirei dele tanto quanto ele exige de mim; o autor espera um leitor voraz e atento a descobrir os meandros da trama, a se emocionar com a sorte das personagens. A confiança é sinal de generosidade, e a liberdade vem a reboque disso. Posso imaginar que o autor usou a sua liberdade 198
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dedicando-se a escrever a sua obra. Assim como o autor espera que o leitor use a sua liberdade lendo-a com entusiasmo, mas a confiança não traz apenas o bom termo da obra, ou seja, a sua realização, mas coloca em evidência a descoberta da liberdade de ambos, tanto reciprocamente, a relação estreita que estabelecerão um com o outro, e a noção exata de como exercem as suas próprias liberdades, individualmente. Sartre tem um objetivo maior quando fala do apelo à liberdade dos homens: “o escritor decide apelar para a liberdade dos outros homens para que, através das implicações recíprocas das suas exigências, elas reapropriem a totalidade do ser para o homem e fechem a humanidade sobre o universo”. (Sartre: 1989,47) Atingir a totalidade do ser é a sua meta. Ele entende que uma obra nunca está fora do contexto do mundo. Um quadro de Van Gogh não é só aquela paisagem pintada dentro dos limites da tela, muito menos o romance de Dostoïévski se tece numa só cidade onde a estória é contada. Há todo um mundo que continua para além do quadro ou das páginas do livro. O mundo existe imenso, e os nossos anseios por ora pequenos querem abarcar uma realidade maior; mais do que isso, queremos no empreendimento da existência abarcar o sentido do ser, mas como não somos os seus produtores e o ser nos é apresentado tão exterior quanto o mundo, a nossa contribuição é feita por meio das obras artísticas. É a maneira que encontramos de nos colocarmos no meio das coisas. O que o homem quer, em última instância, é fazer com que a arte recupere ‘’este mundo, mostrando-o tal como ele é, mas como se tivesse origem na liberdade humana”.(Sartre:1989, 47)
3. Conclusao
O reconhecimento que a liberdade do leitor toma de si mesma é manifesta como atividade criadora. O leitor não vê o objeto estético como algo dado por um criador, mas tem o domínio desse objeto quando toma consciência de que ele não se limita a ser apenas um objeto para as suas investidas e, sim, que há nele um horizonte mais largo a realizar-se. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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“O objeto estético é propriamente o mundo, na medida em que é visado através dos imaginários, a alegria estética acompanha a consciência posicional de que o mundo é um valor, isto é, uma tarefa proposta à liberdade humana’’. (Sartre: 1989, 48) O mundo aparece então como objeto da tarefa de ambos, tanto autor quanto leitor. O leitor ao descobrir e experimentar na obra uma sensação única de ter atingido o seu âmago, está próximo daquilo que o autor desejou desde o início ao escrevê-la origina uma emoção estética inigualável a ambos. Pois, “não se escreve para escravos”, é como Sartre retrata a literatura e ele não deixas dúvidas quanto às intenções do autor em compartilhar o mundo com o leitor. Sartre não só apresenta a dialética existente entre o autor e o leitor como a torna possível. O autor é aquele que viabiliza a liberdade do leitor para que ele se descubra em sua existência, pois o projeto do homem é exercer plenamente a sua liberdade, na medida em que inventa para si o seu caminho, as suas necessidades, pois saber-se livre é dar um passo em direção à ação. A liberdade como inserção do homem na realidade do mundo e não um mascaramento das possibilidades que ele pode a vir a se comprometer tem como objetivo o empreendimento que o autor faz ao “desvendar o mundo e especialmente [desvendar] o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face ao objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade.” A função do escritor, portanto, consiste em “fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerarse inocente diante dele”. (Sartre: 1989, 21)
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Referencias bibliograficas
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? (1964) Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1989. SAINT- EXUPÉRY, Antoine de. Terre des hommes. Paris: Gallimard,1939.
*Aline Maria Ferreira de Souza dos Reis é Doutoranda em Filosofia pela Universidade Gama Filho e Professora de Filosofia e Metodologia Científica da Universidade Estácio de Sá. ** Paul Albert Simon é Professor Titular de Filosofia da Universidade Federal Fluminense; Professor Titular da Pós-Graduação de Filosofia da Universidade Gama Filho (in Memoriam).
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Individualismo e Ética: da violência ontológica à moral da responsabilidade Carlos Eduardo de Moura*
POR UMA ANaLISE eTICA EM TORNO DO INDIViDUO
1. A crise do ‘ethos’ na modernidade e a presenca do individualismo: uma violencia ontologica
É necessário que saibamos da diferença existente entre a prática política de determinada sociedade, ou mesmo da época histórica - que traz em seu bojo a idéia do homem1 - das chamadas teorias políticas, cujo objetivo é explicitar, criticar ou justificar tal prática política, levadas a tematizar a concepção (idéia) do homem que sustenta a racionalidade que permeia esta prática. Temos, portanto, de um lado “...a idéia do homem presente no ethos das sociedades políticas e que orienta e regula o seu desempenho histórico” e de outro “...as teorias do homem como ser político que se formulam em momentos cruciais”. (LIMA VAZ: 1993, 139) Eis o saldo positivo da crise dos valores morais em que vivemos, pois são nos momentos de ascensão, crise ou declínio, que a sociedade política se volta sobre si mesma, interrogando sobre a estrutura das idéias fundamentais que a constituem, questionando a validade e a consistência de tal estrutura. Nestes aspectos, o ato político exige que a sua teoria e a idéia do homem, presentes na consciência social da comunidade política, sejam 1 Pois a prática política pretende que o indivíduo se pense como ser moral, ou seja, como ser universal.
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explicitadas, exigindo a definição de uma idéia do Direito segundo a qual o indivíduo, pertencente à comunidade política, possa ser pensado na universalidade racional da sua existência política. Deste modo, o indivíduo não é pensado na sua particularidade empírica (segundo sua existência natural), mas sim como sujeito livre, de direitos e deveres. O homem só pode ser considerado como sujeito de direitos (sujeito universal), enquanto reconhecido como cidadão (politês), pertencente à comunidade política e, portanto, reconhecido na sua existência política. Não é na particularidade do ser físico (ser biológico) que o homem se transcende à universalidade da existência política, mas é no domínio do logos (razão), enquanto espaço de comunicação - como estrutura de interpretação e expressão - que a particularidade do indivíduo se eleva à universalidade, ou ao ser político: ele se eleva ao universal questionamento sobre o bem e o mal, sobre o justo e o injusto. Temos, portanto, de um lado o homem individual e portador do logos e, de outro, a universalidade deste mesmo logos, expressa em valores (bem, mal, justo, injusto) atuando sobre o indivíduo segundo uma lógica do “dever-ser”, da lei ou do Direito. Neste processo, embora a particularidade do indivíduo (da sua situação natural) seja negada a passagem para a universalidade -universalização do logos enquanto universalidade do existir segunda a razão, conveniente ao ser político-, não há oposição, na existência política, do indivíduo particular e o universo dos valores. O que ocorre é a articulação entre a objetividade do logos, expresso pela lei e pelo Direito, com a universalidade assumida no indivíduo:2 Portanto, a negação dialética constitutiva da particularidade que advém ao indivíduo pela situação natural opera-se através do movimento universalizante do logos e tem como termo a universalidade do existir segundo a razão que convém ao indivíduo como ser político. (LIMA VAZ: 1993, 142)
É na passagem do indivíduo, de sua liberdade empírica (liberdade de arbítrio) à liberdade ética (liberdade racional), que ele garantirá a sua individualidade 2 Devemos nos lembrar que esta universalidade é subjetiva, assumida no indivíduo pelo logos e enquanto pertencente ao espaço livre da existência política.
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empírica e a sua singularidade ética - expressa pelo dever-ser. O homem político deve vislumbrar o logos universal partindo da particularidade de uma existência histórica, cuja finalidade é encontrar na existência política o modelo de vida racional que seja compatível com a sua contingência. Assim, o Direito deve ser “...humanizante, já que a universalização pelo direito não é, por definição, uma propriedade ‘natural’ do indivíduo particular, mas uma tarefa a ser cumprida historicamente pela sociedade política”. (LIMA VAZ: 1993, 146). O indivíduo político, mediador entre a sua individualidade natural e a universalidade do Direito, aparece como expressão antropológica, presente na História, coerente com a universalidade que lhe compete mediatizar, ou seja, o motivo antropológico fundamental coordena uma sociedade política, pertencente no nível de universalização (onde encontramos o Direito), tornando possível a passagem do indivíduo natural à universalidade (cidadão), daí tratarmos sobre o Direito humano, ou humanizante, negando uma violência ontológica. É através das variações historicamente observáveis de um dado sistema, que nos é possível observar e verificar o processo evolutivo das sociedades políticas e, não apenas enquanto ação, mas na sua estrutura antropológica, modelo e guia das expressões simbólicas e são nessas expressões que a sociedade visa expressar suas razões de ser. Através destas características é possível nos depararmos com a antropologia política clássica e moderna, que em nossas atuais sociedades trazem a marca de uma violenta crise das sociedades políticas, cujos modelos do passado tornaram-se insuficientes, levando-as a tentativas de construir uma nova imagem do homem como sujeito universal de direitos, não no sentido de uma profecia, mas aceitando lucidamente o desafio do futuro. Em contrapartida à Ética apresentada, o progresso científico intensificou e ampliou o campo daquilo que é tecnicamente realizável, na mesma medida que todo o progresso técnico desenvolveu e aprimorou o domínio experimental da pesquisa científica. O resultado deste processo é exatamente o que vivemos atualmente, ou seja, o desenvolvimento tecnocientífico autônomo que ultrapassa todo e qualquer controle social, tornando-se a primazia da sociedade. Assim, a problemátiOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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ca atual consiste em encontrarmos a mediação entre as desvantagens do progresso, embora nos pareça estranho tal perspectiva, onde devemos nos esforçar em descobrir e expor critérios racionais, ou mesmo determinar novos critérios, enfrentando a primazia do pragmático, emergindo com a Ética enquanto teoria da vida ética e podermos, por assim dizer, construir o verdadeiro ser político, ou o cidadão. É necessário construir “...novas regras dinâmicas, princípios morais novos; em suma, uma filosofia moral renovada”, com o intuito de “...adaptar-se a condições novas”. (KOUTLOUKA: v.34, 69) O advento da civilização urbano-industrial, com sua racionalidade científico-tecnológica, provocou um impacto muito forte sobre essa cultura, exigindo dos indivíduos que a compõem, um esforço intenso de assimilação e criatividade, para que não se tornassem culturas atrasadas em relação àquelas detentoras da tecnologia e da ciência. A introdução desta cultura também trouxe uma forte proletarização dos povos e de grupos sociais, marcadas pelo aumento agudo da dependência tecnológica e científica dos centros onde a cultura é elaborada. Como sabemos, por ser uma cultura secularista, que professa um evidente ateísmo teórico e prático, associado ao materialismo individualista, a cultura urbano-industrial funciona como elemento desagregador das culturas tradicionais (violência), deformadas até perder a própria identidade. Tais mudanças implicam diretamente na transformação profunda do ethos cultural destas sociedades, destruindo valores essenciais à tradição dos povos, cuja estrutura do modo de viver e conviver na sociedade, se construíram sobre outros alicerces. O principal problema que aqui podemos verificar é a tendência que estas civilizações impõem à sociedade, ou seja, procuram em sua estrutura o nivelamento e a uniformidade em relação às demais sociedades desenvolvidas, o que está levando as sociedades tradicionais (ou não-modernas) à destruição. A imoralidade não se dá apenas pela destruição da identidade cultural do integrante da comunidade, mas também assistimos à espoliação sobre o qual as minorias privilegiadas apropriam-se da riqueza produzida e das vantagens da cultura da ciência. Trata-se dos direitos fundamentais da pessoa que são negados pelo sistema social, cuja base
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teórica, anuncia um humanismo fechado e egocêntrico, ofensivo à dignidade humana e, conseqüentemente, violando os direitos do homem e caracterizando a violência ontológica a qual é submetido. A violação da dignidade, a crise política e ética, é por nós assistida devido aos sistemas que conduzem sobre a máxima da vontade de poder baseados no ter, no poder e no saber. A ruptura com a tradição clássica da forma da vida política (bíos politikós) aparece no centro do profundo movimento de transformação do mundo ocidental, convencionado como a emergência da idade moderna, caracterizada, principalmente, pelo advento de uma nova forma de razão. “A essa nova forma de Razão corresponde necessariamente uma nova imagem do homem”, (LIMA VAZ: 1993, 162), pois assistimos neste movimento de transformação, de onde emerge a figura do homem moderno, a característica de uma nova imagem de homem, elaborada segundo a filosofia racionalista e da sua respectiva visão pragmática (empirista) e, como desenvolvemos anteriormente a idéia sobre a importância do modelo fundamental antropológico para a formação de uma sociedade política, nos é permitido afirmar dentro desta nova visão de homem, o lançamento da base teórica que “...fornecerá os traços para a nova imagem do indivíduo delineada nas novas teorias morais e políticas”.3 (LIMA VAZ: 1993, 162) Quando nos referimos à racionalidade da sociedade contemporânea, dizemos respeito à razão que serve para o desenvolvimento da técnica, ou seja, a razão instrumental. Assim, com a história das sociedades modernas, a relação com a natureza é puramente técnica, acabando por determinar a formação de um universo de valores baseados ao redor do problema da organização sociopolítica, ou seja, polarizar-se em torno do direito ao trabalho universal e livre, acrescida de uma adequada remuneração. A partir destes aspectos, as sociedades modernas constróem o núcleo 3 A formação de uma nova idéia de Razão e a nova imagem do homem encontra-se justamente no processo da crise do ethos por nós visto anteriormente, modificando o conceito de Natureza e as propriedades que constituíam a antiga physis. Esta nova idéia de Razão se fundamenta na constituição de um novo tipo de ciência fundada numa relação de fazer, isto é, uma relação técnica entre o homem e o mundo. Os tempos modernos surgiram marcados por um ideal da racionalidade que, como sabemos, veio a culminar com o Iluminismo do século XVIII, na qual a concepção medieval - centrada na tradição e na visão religiosa do mundo - foi superada pela modernidade, tornada laica (não religiosa) e buscando na razão a possibilidade da autonomia do homem.
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axiológico da civilização. Se a relação com a natureza é puramente técnica, o homem moderno passa a lutar pela dominação e exploração dessa natureza, sempre com a finalidade de satisfazer suas necessidades, portanto, a natureza, em relação ao agir do homem, não é mais a physis imutável que anteriormente descrevemos, cuja ordem e fundamento faz emergir um nómos, sendo este a referência de toda e qualquer práxis humana. A Natureza não mais se refere ao fundamento das verdades, cuja função seria a de reunir o homem e o mundo, permitindo ao pensamento e à ação humana agir sobre essa natureza, conhecendo e respeitando suas leis, nem mais ela se oferece como um horizonte de universalidade. Deste modo, o pensamento político moderno assume como principal tarefa, soluções de ordem analítica ao problema da associação de indivíduos, visando assegurar a satisfação das necessidades vitais aos integrantes dessa associação.4 Prioriza-se o indivíduo segundo sua particularidade psicobiológicas, auto-suficientes, a singularidade do indivíduo pensada como momento da consciência-de-si singular ou como momento da personalidade independente, isto é, infinita em si. Porém, num segundo momento, nos deparamos com o indivíduo, impossibilitado de atender às suas necessidades e de garantir a sua sobrevivência, tornando-se imprescindível abandonar a sua particularidade empírica pela elevação à universalidade da vida social. Desta sorte, as teorias do Direito natural moderno terão a tarefa de assegurar ao indivíduo, na passagem ao estado de sociedade, os direitos provenientes do seu estado de natureza original, portanto, “...o horizonte ontológico no qual se inscrevem essas novas teorias do Direito natural não será a natureza (physis)”, enquanto ordem universal e manifesta aos homens dotada de normatividade, “...mas sim o modelo hipotético de um estado de natureza”, cuja existência social do indivíduo se dá pela sua condição histórica de sobrevivência (LIMA VAZ: 1993, 165). A universalidade dos direitos, derivados do Direito natural moderno, é fundada num postulado igualitarista, estabelecendo a igualdade dos indivíduos apenas enquanto 4 Analítica no sentido cartesiano, ou seja, parte-se do simples até o mais complexo, no caso, do indivíduo inicialmente suposto como auto-suficiente, e posteriormente elevado à universalidade da vida social.
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unidades isoladas, isto é, enquanto numericamente distintas, no estado de natureza. É possível, deste modo, afirmarmos que a modernidade liga o valor, de maneira predominante ao indivíduo; a filosofia trataria de valores individuais e a sociologia com valores essencialmente sociais. Deste modo, a natureza de nossa ciência implicaria na separação entre o ser e o valor moral, ou seja, entre o que é e o que deve ser e, por conseqüência, “... descoberta científica do mundo teve como pressuposto a rejeição de todas as qualidades a que não é aplicável a medida física”. (DUMONT: 1985, 240) A sociedade passa a ser a soma de indivíduos (ligados pelo pacto social), articulada a uma sociedade organizada segundo a universalização do trabalho livre, generalizando a propriedade privada e implantando a economia de mercado, inaugurando o conflito entre interesses meramente particulares e, a partir daí, a necessidade de garantir a liberdade dada pelo espaço do direito natural do indivíduo para a sua autoconservação. O que une o interesse individual com o bem comum será a lei, em que pensamento social e a filosofia do direito se confundem, isto é, a lei é vista como a expressão da vontade geral e como o instrumento da igualdade, porém, sua tarefa é a de também defender (indiretamente) as liberdades individuais, já que ela visa negar uma violência ontológica, “...definindo os ‘limites’ que tornam a liberdade de cada um compatível com o respeito dos direitos dos outros. Em poucas palavras, propõe uma teoria da democracia” (TOURAINE: 1994, 62). A lei encontra-se colocada debaixo dos direitos naturais do homem, o que nos leva a verificar que seu objetivo maior é combinar o interesse de cada um com o interesse da sociedade. Necessariamente, a ciência experimental surgiria como modelo para as sociedades modernas, pois “A ciência experimental, por sua vez, aparece historicamente como o tipo privilegiado e paradigmático de racionalidade aos olhos dessa sociedade” por melhor corresponder à finalidade de uma sociedade do trabalho e da produção, ou seja, “...para a execução do seu projeto fundamental de exploração e utilização da natureza” (LIMA VAZ: 1993, 166). Compreendemos, portanto, que as doutrinas políticas, fundamentadas na concepção moderna de Direito Natural, pressupõem uma antropologia individualista, em que o indivíduo é considerado o “átomo social”. Esta antropologia individuOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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alista nos leva à figura do homem como um ser solitário, carente frente à natureza, daí a importância da sociedade, pois ela lhe aparece como solução à sua solidão e como ajuda indispensável às suas necessidades. O individualismo inaugura a separação entre o homem e a natureza, como vimos, distinguindo o ser do dever ser. Pensar desta maneira implica na idéia de que o homem age sem qualquer ligação com a natureza das coisas, como se o universo e o próprio lugar que ele ocupa no universo, nada se relacionaria com ele. As sociedades “não-modernas” alicerçavam-se na ordem das coisas, fossem elas naturais ou sociais, acreditavam imitar os princípios da vida e do mundo com suas próprias convenções, ou seja, “...uma humanidade reconciliada consigo mesma e com o mundo, harmonizada espontaneamente com a ordem universal”. (TOURAINE: 1994, 21) O prazer corresponderia à ordem do mundo, em que o homem chegaria espontaneamente à verdade do Belo absoluto, onde haveria a coincidência entre o Belo ideal com as leis. São os desejos e a felicidade - impressa no homem pela natureza – e, com a aceitação da lei natural, é que será possível ao homem a felicidade. Ao contrário, a sociedade moderna pretende, separando o homem e a natureza, desajuntar o bem, o verdadeiro e o belo, ou seja, pretende desligar-se da natureza para instaurar uma ordem humana mais autônoma, pois “...a sociedade moderna pretende ser racional”. (DUMONT, 1985, 250) A comparação com a natureza perdeu a sua finalidade de revelar a ordenação do mundo; a comparação é feita segundo o pensamento ordenado, do simples ao complexo. Tal separação marca o desaparecimento das velhas crenças supersticiosas ou mágicas e a entrada, enfim, da natureza na ordem científica.
2. O problema etico do individualismo: a violencia da negacao axiologica do individuo
De um modo geral, os valores estão profundamente ligados com outras representações, ou seja, a construção de um sistema de valores só é possível mediante a abstração de um mais amplo sistema das idéias e valores e, tal característica, é
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assistida por nós enquanto ligamos os valores morais (individuais) ao conhecimento objetivo (científico). Prova disso, é a conclusão que tiramos de nossas exposições anteriores, isto é, o dever-ser relacionando-se com a moralidade individual (subjetiva). Com efeito, vemos a tendência nas sociedades atuais em separar os valores das idéias e dos fatos, ou seja, separamos idéias e fatos do todo na realidade, onde eles se encontram: penso que é verdade no sentido de que cada todo deixou de ser fornecedor de valor. Considero exemplar que a constituição do sistema de Hegel resulte de um desvio na localização do Absoluto, ou do valor infinito, da Totalidade do ser para o Devir da entidade individual. (DUMONT: 1985, 256).
Há uma tendência nos modernos em definirem o valor em relação com a vontade arbitrária, decompondo a relação original entre valores, idéias e fatos. Não relacionamos o indivíduo com o todo (nível superior), limitamo-nos a apenas um nível, ao indivíduo como “átomo-social”. Por exemplo, os valores modernos primaram pela divisão entre sujeito e objeto, e a ciência, separando o objeto formal da coisa observada, preparando os caminhos para a especialização das ciências, o que segundo Morin, “...culminaria na perda da visão totalitária do ser, e na sua conseqüente fragmentação.” (MORIN apud PETRAGLIA: 1995, 43). Deste modo, o homem concebido como indivíduo implica no reconhecimento de uma ampla liberdade de escolha. E é por esta livre escolha que os valores são determinados, ou seja, não derivam da sociedade, mas do indivíduo para seu próprio uso. Por assim dizer, o indivíduo como valor social exige que a sociedade lhe garanta uma parte de sua capacidade de fixar os valores. Teremos como conseqüência um conflito, ou seja, ou o valor se vincula ao todo, em relação com as suas partes e o valor está imbricado, é prescrito por assim dizer, pelo próprio sistema de representações, ou o valor se vincula ao indivíduo, o que tem por resultado, como vimos, separar idéia e valor. (DUMONT: 1985, 270)
Há uma inversão da relação entre liberdade e necessidade, onde a teoria OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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e a prática da ética e da política proclamam uma liberdade voltada à satisfação das necessidades (ainda que “artificiais”), abrindo ao indivíduo o campo infinito do desejo. A relação entre necessidade e liberdade é invertida, pois “...a necessidade passa a ser como o corpo da liberdade obediente aos seus fins propriamente éticos e às exigências impostas pela tarefa de sua auto-realização”, contudo, as desigualdades sociais demonstram que esta auto-realização não ocorre, já que desejo e necessidade constituem uma relação inconclusa (LIMA VAZ: 1993, 177). Deve ser a liberdade política a expressão socialmente mais elevada da liberdade ética, não a inversão que aqui mostramos. Voltando a questão da separação entre o homem e a natureza, as relações entre homens encontram-se subordinadas, de modo que o sujeito individual declarese autônomo e igual, assim, a relação do homem com a natureza torna-se prioridade. O indivíduo (livre) opõe-se à natureza enquanto determinada, emergindo a visão de um sujeito absolutamente distinto do objeto. Dizemos que “...o homem distanciou-se da natureza e do universo de que faz parte”, (DUMONT: 1985, 270) colocando-se numa posição pragmática em relação à natureza, sendo capaz de remodelá-la segundo sua livre vontade. A relação do homem com a natureza nos leva a dois tipos de análises entre conhecimento e a ação, resultando numa relação de violência com ela. No primeiro caso, o acordo entre os dois nos é garantido ao nível da sociedade, pois as idéias estão em conformidade com a natureza e a ordem do mundo e, o indivíduo, deverá inserir-se nessa ordem. A sociedade nessa relação é a fonte de valores, é o conjunto dos efeitos produzidos pelo progresso do conhecimento, onde o ideal de cidadão será aquele cujas virtudes caminham para o bem comum. Se cada episteme de uma época implica numa visão de homem, o pressuposto que aqui encontramos diz respeito à visão de homem a partir da natureza, pois é ela que assegura e indica que existe um grande mundo e que seu perímetro traça o limite de todas as coisas criadas, inclusive possibilitando ao homem a segurança de conhecer as coisas, pois é ela que também indica a existência de uma criatura privilegiada que reproduz e desenvolve o jogo das semelhanças entre as coisas existentes no mundo.
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No segundo caso, não há mais uma existência, uma ordem no mundo humanamente significativa, portanto, é o sujeito individual que deve estabelecer a relação entre as representações e a ação, no caso, entre as representações sociais e sua respectiva ação. Não há mais a harmonia entre as coisas do mundo como garantia do conhecimento. A natureza deve entrar na ordem da cientificidade e o mundo passa a ser desprovido de valores, que deverão ser acrescentados pelo homem, um mundo de objetos e de coisas. “É um mundo sem o homem, um mundo donde o homem se retirou deliberadamente e sobre o qual pode, portanto, impor sua vontade.” (DUMONT: 1985, 271) O mundo é algo a ser conhecido, não apenas isso, mas temos poder sobre ele na medida em que podemos agir sobre este mundo, onde as relações entre homens passam a ser vistas sob a perspectiva das relações com as coisas ou, utilizando um termo buberiano, afirmar que a vida coletiva do homem moderno engajou-se na forma de relação “EU-ISSO” ou seja, a “coisificação” da natureza e do próprio homem.
3. A outra face do conflito: a esperanca do novo
Não podemos pensar que a universalidade e normatividade do ethos se apresentam frente ao indivíduo seguindo a uma ordem cronológica anterior ao indivíduo, ou seja, primeiro encontraríamos constituído o ethos, vindo depois o indivíduo. Menos ainda nos seria permitido crer que a universalidade e normatividade do ethos fossem constituídas à luz da razão de uma exterioridade social, em que o indivíduo surgiria no seio de um ethos socialmente instituído (costumes), pronto e acabado. Sendo assim, a relação entre ethos e indivíduo jamais poderia ser compreendida como uma relação de natureza causa-efeito segundo uma anterioridade logicamente linear. Ao contrário, a relação entre ethos e indivíduo se apresenta como uma relação dialética, segundo a qual a universalidade abstrata (no sentido da lógica dialética) do ethos como costume é negada pelo evento da liberdade
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na praxis individual e encontra aí o caminho da sua concreta realização histórica no ethos como hábito (hexis) ou como virtude. (LIMA VAZ: 1993, 29)
A liberdade, portanto, não pode ser vista como exterior ao ethos, pois o ethos não é exterior ao indivíduo, mas é exatamente a liberdade que possibilita o movimento dialético enquanto espaço de possibilidade entre a particularidade da praxis, ou seja, a ação do indivíduo no presente de sua existência empírica, e a singularidade da praxis enquanto universalidade do ethos no agir virtuoso. A constituição do ethos permeia a passagem da praxis enquanto ato do indivíduo empírico e a praxis enquanto ato de agir do homem bom, ou seja, enquanto universalidade do ethos no agir virtuoso; é exatamente neste ponto onde se instaura a liberdade, entre a recusa desse agir virtuoso ou sua plena aceitação e consentimento. Entre a praxis como ato do indivíduo empírico e a praxis como agir do homem bom, o movimento constitutivo do ethos percorre este domínio de possibilidades onde se traça o caminho da liberdade como oscilação entre o não-ser da recusa e o ser do consentimento ao bem. (LIMA VAZ: 1993, 29)
Por assim dizer, a passagem da universalidade do costume - de um ethos já socialmente instituído - à singularidade da ação - a praxis do indivíduo na sua existência empírica , carrega em sua própria natureza, a possibilidade de uma ação eticamente boa ou eticamente má, concretizando a partir daí a existência de um conflito ético. No entanto, não poderemos cair na idéia de um “dever ser” como um valor ideal, totalmente desvinculado da realidade e da história, colocando-o como falsidade, como algo a ser abandonado. Como bem sabemos, o conflito ético é bem distinto do niilismo ético - a negação total do ethos - ou da negação da ação eticamente má ou da recusa da normatividade do ethos, isto é, da falta da ação ética. “Na verdade a falta tem lugar no interior do movimento que conduz normalmente à ação eticamente boa: ela assinala uma ruptura no processo de interiorização do ethos como costume no ethos como hábito ou como virtude.” (LIMA VAZ: 1993, 30) Deste modo, o conflito ético será o campo de manifestação da sociabilidade humana, respeitando a
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natureza histórica do ethos, o que implica no reconhecimento e assimilação dos desafios que nascem e emergem na caminhada da sociedade no tempo. O conflito ético, portanto, é de extrema relevância, pois ele constitui a dinâmica da construção histórica do ethos, isto é, da sua historicidade. O conflito ético se dá no campo dos valores, o que implica na possibilidade de interpretarmos as novas exigências do ethos na sua historicidade, porém, é o indivíduo ético que é capaz de viver tal conflito, sendo, posteriormente, anunciador de novos paradigmas éticos.5 Como poderíamos descobrir caminhos de um ideal ético superior ou mesmo de uma resposta positiva a essa crise? Talvez a pergunta possa parecer estranha para muitos, pois se costuma confundir o “...momento estrutural do dinamismo histórico do ethos, o conflito ético, como simples revolta do indivíduo contra a lei.” (LIMA VAZ: 1993, 31). O conflito ético é marcadamente conflito de valores, não apenas uma contestação gratuita ou um ato de violência perante a ética, mas apresenta-se especificamente entre os costumes, normas e práticas que estão sendo questionadas frente às novas formas de comportamento (também questionadas). Não queiramos ser como Nietzsche, negando o valor por crê-lo como distinto da realidade - eis aí o seu niilismo - e criticando o “dever ser” e as normas moras, já que nós mesmos, espíritos livres, somos uma transvaloração de todos os valores, uma verdadeira declaração de guerra e vitória contra todos os velhos conceitos de verdadeiro e não verdadeiro. No entanto, sua pretensão era negar a moral de sua época, baseada nas falsas certezas de uma moral burguesa, construída através de um contexto histórico-cultural. Assim, a busca de novos valores éticos, visando alargar as exigências do dever ser de um determinado ethos histórico, devem implicar numa “...racionalização ideológica ao transgredir obstinadamente os limites da esfera da utilidade e do interesse”, devendo, aqueles que se debruçam sobre estas novas exigências, ter como subsolo “...a gratuidade de um absoluto do bem e da justiça.”. (LIMA VAZ: 1993, 33) O último conceito a ser desenvolvido, essencial ao nosso propósito, é o 5 É importante salientarmos que o indivíduo empírico poderia recusar uma norma ou valor do ethos, seguindo apenas os fins subjetivos da sua praxis (utilidade, satisfação) e recusando tornar-se participante de uma praxis efetivada como realização da universalidade do ethos. Por isso da sua incapacidade de transmitir novos paradigmas éticos.
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conceito de transgressão, cujo significado expressa a consciência dos limites de uma liberdade situada dentro dos limites do reconhecimento histórico e social do ethos estabelecido. Deste fator, retiramos a esplendorosa função do conflito ético, isto é, levar-nos ao abandono de uma segurança protetora das formas tradicionais do ethos, lançando-nos frente ao novo e arriscado caminho da liberdade, anunciando um novo mundo de valores. A transgressão é a evidência da força criadora do conflito ético. “O ethos afinal, não é senão o corpo histórico da liberdade, e o traço do seu dinamismo infinito inscrito na finitude das épocas e das culturas.”. (LIMA VAZ: 1993, 35)
A DIMENSaO eTICA DO PERSONALISMO
Perspectivas da superacao do individualismo no Personalismo de Mounier: o resgate da dignidade humana
O realismo personalista é apresentado como solução à visão dualista de homem, às duas substâncias diferentes: matéria e espírito. Nesta perspectiva, o homem é integralmente corpo e integralmente espírito. Este mesmo homem se encontra inserido na Natureza, que lhe impõe determinações e que por ele é transcendida. O homem não pode cair num determinismo, negando suas possibilidades e, por conseguinte, destituindo-lhe de sua “pessoa criadora”. O movimento de personalização que Mounier nos apresenta, só tem seu início com o homem rompendo os determinismos da matéria. Existem diversas possibilidades referentes ao livre arbítrio do indivíduo, em que o comportamento é dominado pela nossa situação biológica e econômica, onde ambas estruturas deverão ser estabelecidas seguindo-se as exigências fundamentais da pessoa. Mundo e objetos devem ser falados em relação à consciência que os percebe - matéria como feixe de relações (Marx - materialismo). Portanto, “...pelo corpo, o homem se expõe ao mundo e a si próprio.”. (MOUNIER: 1960, 40)
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É necessário personalizar a Natureza. Em primeiro lugar, a consciência deve aceitar o real, para depois vê-la como obra, como suporte de toda personalização. O homem domina a Natureza, age sobre ela. Porém, a ação sobre a Natureza pode ser de domínio, de poder que, fundamentalmente se expressará nas relações humanas. O homem tem como dever humanizar a Natureza, resgatá-la pelo trabalho (resgatando-se), deve transformar esta mesma Natureza, que lhe causara a queda, numa relação dialética entre pessoa e Natureza. Passaremos então, de uma Natureza pura para uma Natureza humanizada, onde a produção tem função libertadora, isto é, possuidora de uma ação “libertante”, modelando-se sobre os moldes de todas as exigências da pessoa humana. A produção não pode reduzir-se à simples organização de técnicas ou visar à acumulação dos produtos apenas em busca da prosperidade. “A invenção de instrumentos e a construção de máquinas contribuem para o processo de despersonalização enquanto que a personalização promove instrumentos de libertação do homem dos determinismos naturais e a reconquista da Natureza.” (MOUNIER: 1960, 53) A vida de sociedade é como uma presente guerrilha, conflito e violência, cuja comunicação se resume em possuir e submeter. O mundo dos outros se nos apresenta como risco, conduzindo-nos ao instinto de autodefesa. Deste modo, a cultura cria máscaras que sufocam e aniquilam a verdadeira face do indivíduo. Tais atitudes são denominadas de individualismo, proveniente da ideologia e da estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX. Estes “egoísmos” e o lucro são a antítese do personalismo (ou uma violência ontológica). “O individualismo procura centrar o indivíduo sobre si mesmo, ao passo que o personalismo visa descentrá-lo para elevá-lo às largas perspectivas abertas pela pessoa.” (MOUNIER: 1960, 70) Na comunicação a pessoa cresce, ela existe para os outros, se conhece pelos outros e se encontra nos outros. Assim, necessariamente, o personalismo é comunitário, pois o primeiro ato da pessoa será a construção de uma sociedade de pessoas, juntamente com os outros. Deste modo, o egocentrismo, o narcisismo e o individualismo (constitutivos da violência ontológica) devem ser aniOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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quilados na medida em que a pessoa se liberta de si própria e se coloca à disposição dos outros - reconhecimento e acolhimento do outro, sem, porém, deixar de perder o seu “eu”. Neste aspecto, a pessoa age por generosidade, por gratuidade, ao contrário dos ideais burgueses, sem centrar-se numa recompensa. Para Mounier, o outro será sempre tratado como sujeito, não como objeto de meu interesse, mas devo identificá-lo como ser presente, como ser inesgotável. Porém, esta comunicação não se vê em todos, há uma resistência à reciprocidade, sempre encontrando seu fim num egocentrismo. Critica-se também a formação de uma sociedade em que o todo corrompe o nós, onde tais sociedades apenas se abrem à pessoa em função de uma ordem superior: a universalidade é estabelecida esquecendo-se da pessoa.6 Dito isto, “...o personalismo afirma a existência de uma unidade na humanidade, cuja organização se volta para as pessoas, estruturadas num universo de pessoas.” (MOUNIER: 1960, 75) Deve-se ressaltar o nosso ser como infinita capacidade de ter, sem jamais se esgotar pelo o que ele tem. O desenvolvimento da pessoa se dá na medida em que ela se despoja de si e de seus bens, distanciando-se do egocentrismo. Não importa aqui o quanto se tem, mas a sua utilização e as atitudes daquele que possui estes bens. A Pessoa ocupa lugar único no universo das pessoas devendo, portanto, descobrir sua vocação, desviar-se de suas pretensões menores (egocêntricas, individualistas). Assim, a “...unidade de um mundo de pessoas se dá na unidade de vocações e na autêntica adesão a elas. A pessoa é uma interioridade que necessita de uma exterioridade, ela deve expandir-se e exprimir-se.” (MOUNIER: 1960, 96) A modernidade também se caracteriza pela ruptura centrada na pessoa, conscientizada do vazio no mundo que a rodeia, colocando-a num constante estado de alerta, de defesa. Há uma ruptura íntima com o sentido da existência, ignorando atitudes apaziguadoras, de acolhimento, constitutivas de nosso ser. Portanto, ocorre o processo de degradação do contato afetivo na comunidade, cedendo espaço para o domínio do medo e da violência. O homem político desviou-se de sujeito a objeto da sua 6 Mounier define pessoa como aquilo que não pode ser repetido, afirmando que o Homem se faz a si próprio.
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existência econômica, onde o poder do dinheiro, a distribuição de riquezas alienou o homem real. A produção, o lucro e a especulação, de forma violenta, destituíram os indivíduos de seus valores. “A sociedade e o direito nascem de uma luta de forças, expressando-as ou mesmo baseiam-se nelas”. (MOUNIER: 1960, 120) O direito, portanto, visa racionalizar a força, controlá-la. Assim, a vida é luta e, nela, a pessoa toma consciência de si. Deste modo, agir significa escolher, em que a decisão é um ato de força interior onde a pessoa, imersa em seu próprio futuro, resume sua própria experiência e cria outras novas. Eis a vocação fundamental da opção responsável! A liberdade será vista como afirmação da pessoa, como algo conquistado e vivido. A pessoa escolhe ser livre e, esta liberdade jamais se encontrará constituída, dada. Neste caso, experienciá-la será fundamental: é tomar consciência de ser livre. A existência livre caracteriza-se como qualidade sempre renovada, ilimitada - liberdade absoluta. Porém, há qualidades e valores presentes no mundo ou na natureza, que constrangem a nossa liberdade. Portanto, ao mesmo tempo em que a manifestação é espontânea, é também dada, faz parte de uma situação concreta. A liberdade poderá também nos aparecer como absurda e ilimitada, mas, verdadeiramente, ela deve ser vista como dom, já que o indivíduo poderá recusá-la ou não. Por fim, a pessoa é livre pela liberdade dos outros, isto é, sendo livre, a pessoa cria ao seu redor um universo de liberdade. Torna-se necessário assegurar comuns condições de liberdade. “A liberdade leva seu sentido de personalização do mundo e da pessoa, no entanto, em nossa época, o que mais vemos é a troca da liberdade por um pouco de segurança e, perdendo-se a paixão pela liberdade, se torna difícil construí-la.” (MOUNIER: 1960, 136) Esta liberdade exige uma opção (negar, aceitar), cuja decisão criadora leva a pessoa numa nova ordem, numa nova maturidade, tendo como fim uma maior liberdade, negada como anarquia ou como isoladora, mas que une, que expressa o modo que a pessoa é, exigindo responsabilidade e, não apenas “romper e “conquistar”.7 7 A transcendência da pessoa se manifesta por sua atividade produtora e, o indivíduo que produz, não pode bastar-se a si próprio. Ora, deste modo, o que é produzido deve ter um fim ou uma finalidade
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Sobre os valores, os vemos como fonte inesgotável de determinações, revelando uma expansão e uma aproximação com o ser pessoal. Pessoas e valores possuem uma ligação necessária, pois só assim as pessoas existiriam plenamente. Tais valores se revelam na liberdade, não dependem da particularidade empírica do sujeito dado, mas sim existem em relação a um sujeito não isolado, recriado por ele e findado em implicações universais, não são projeções do eu, mas transpessoais (experiência da comunhão) e, estes valores, nascem da luta. Direcionar os valores e articulá-los na vida pessoal, a partir dos quais passamos a existir definitivamente, é função essencial de cada indivíduo. Por último, a economia deve procurar suas respostas no campo político-ético, visando englobar ética e técnica (personalização do econômico). Toda ação tem como fim a construção de algo exterior, não perdendo de vista a formação daquele que executa, da sua unidade pessoal (ação ética). “Num mundo individualista, predomina a técnica, a matéria até o ponto dos meios materiais tornarem-se humanos.” (MOUNIER: 1960, 169) A ação deve visar valores que desenvolvam toda a atividade humana (atividade contemplativa). Eis a dimensão coletiva da ação. Para Mounier, a crise será vencida na medida em que a afrontarmos e, conseqüentemente, negarmos o conformismo. Vencer a crise, para o autor, significa reorganizar estruturas, revisar valores, renovar as elites. O personalismo de Mounier nos oferece reflexões que sustentam a crítica da “violência ontológica versus dignidade da pessoa humana”, auxiliando-nos a elaboração de novos paradigmas éticos para a crise ontológica em que vivemos.
e não ser apenas uma mera fabricação. Ao perceber minha liberdade, percebo que desejo vivamente a dos outros, no entanto, não se trata apenas de aumentar a nossa superfície social (egocentrismo). O transcender da pessoa é a negação da pessoa como mundo fechado e isolado sobre si mesma, é o lançar-se na experiência da relação, é a projeção da pessoa para além dela mesma.
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A REALIDADE HUMANA EM SITUAcaO: A MORAL DA RESPONSABILIDADE
1. A origem e a natureza do Em-Si e do Para-Si
Jean-Paul Sartre foi o filósofo mais popular do século XX e sua obra era conhecida de estudantes, intelectuais, revolucionários ou mesmo do público em geral pelo mundo afora. Porta-voz do existencialismo, justamente quando essa filosofia preencheu o vazio espiritual de uma Europa destruída após a segunda guerra mundial. Sartre cada vez mais sentia-se provocado por questões acerca da natureza da experiência, do ser e do mundo e, portanto, da própria existência. Ele desejava o mundo, queria possuí-lo e, de fato, seresse mundo.8 O ponto de partida ou o primeiro princípio do pensamento sartreano “...é, de fato, a subjetividade do indivíduo e isso por razões estritamente filosóficas.” (SARTRE: 1996, 56) 9 Podemos observar aqui a inspiração cartesiana em Sartre, conferindo ao cogito o ponto de partida de sua filosofia. “Não pode aí ter outra verdade, no ponto de partida, senão esse: eu penso, logo eu sou, é a verdade absoluta da consciência alcançando-se a si mesma.” (SARTRE: 1996, 57) Toda filosofia que considerar o homem fora deste momento, não passará de uma teoria que suprime a verdade, pois fora deste cogito cartesiano todos os objetos tornam-se apenas prováveis. Sabemos que as doutrinas baseadas em possibilidades não se encontram articuladas a uma verdade, portanto, para obtê-la, é necessário definir o provável e atingir uma verdade absoluta. Em que lugar poderia residir esta verdade senão na subjetividade, apre8 Para Hume, não experimentamos coisas como a causalidade; causa e efeito são duas idéias bem distintas entre si. A necessidade é algo que existe na mente, não nos objetos. Hume viu tudo isso intelectualmente, Sartre foi percebê-la na experiência, isto é, tudo seria pura contingência. 9 Não podemos conceber, portanto, outra verdade no ponto de partida senão o eu penso, logo sou. Como conseqüência, afirmá-lo como tal demonstra uma verdade absoluta da consciência na medida em que ela atinge a si própria. Lembremos da necessidade cartesiana de um primeiro princípio que fosse infenso à dúvida para estabelecer-se como absolutamente certo.
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endida, portanto, sem intermediários, intuitivamente. Sartre afirma a consciência como um primeiro princípio pela própria força da evidência. Tornar-se-á uma lei ontológica de que não haverá senão dois tipos de existência: a existência como coisa do mundo e a existência como consciência. A imagem é um ato e não uma coisa, ela é consciência de alguma coisa. Ao afirmar a subjetividade, Sartre nega a possibilidade de uma metafísica do materialismo, ao mesmo tempo instaurando em seu pensamento uma dicotomia de dois reinos originais, isto é, o Reino Humano e o Reino da Matéria. Tal dualidade (sujeito-objeto) apresenta-se na importância do cogito. O método que Sartre pretende percorrer em sua filosofia deve ser metafisicamente determinado pela subjetividade. O cogito sartreano é alcançado enquanto aceitação certa e absoluta. Mas, neste momento, indagaríamos qual é a natureza desse cogito. Sartre dá seus primeiros passos para solucionar a questão servindo-se do que poderíamos chamar de “dúvida metódica”, cuja finalidade é a de assegurar atingir o reino humano e, posteriormente, perguntar pela natureza desse reino. Aqui mergulharemos numa ampla análise existencial, mas, diferentemente de Descartes, Sartre não procura submeter a dúvida apenas ao conhecimento, mas vai além, submete-a ao próprio sentido da existência humana, existência esta distante de uma consciência apenas individual, fechada em si mesma. Mas a subjetividade que nós alcançamos aqui, a título de verdade, não é uma subjetividade rigorosamente individual, pois nós demonstramos que no cogito, não se descobriria somente a si mesmo, mas também aos outros. Pelo eu penso, contrariamente à filosofia de Descartes, contrariamente à filosofia de Kant, nos alcançamos a nós mesmos em face do outro, e o outro é tão certo para nós quanto nós mesmos. Assim, o homem que se alcança diretamente pelo cogito, descobre também todos os outros, e ele os descobre como a condição de sua existência. (SARTRE: 1996, 58)
No Romance A Náusea, o personagem principal da novela, Antoine Roquentin, instala-se numa pequena cidade do interior da França, mergulhado em experiências que lhe modificarão o próprio sentido de sua vida. Digamos que nas andanças de Roquentin, instaura-se-lhe progressivamente a clareza de uma verdade
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última, de perceber que “Tudo está cheio, existência por todo lado, densa e pesada e suave.” (SARTRE: 1980, 155) Roquentin encara o método de Sartre -e a nós se faz a mesma exigência enquanto seres éticos- na medida em que as andanças do personagem do romance procura alcançar, não apenas um princípio intelectual, mas um primeiro princípio existencial, permitindo o acesso à verdade do Reino Humano e, por conseqüência, fornecer subsídios para instaurar todo um programa de vida. Vemos no Romance o grande desvelamento do sentido mesmo da sua existência colocada em jogo em sua faticidade, mergulhando-o em sua verdade mais fundamental. Permeado desta trama, Roquentin é conduzido na experiência – privilegiada – da náusea. “Sim, é isso, é exatamente isso: uma espécie de náusea nas mãos”. (SARTRE: 1980, 27) Num determinado momento, o relato aparecia-nos como uma seqüência incômoda de vivências psíquicas, mas que, em dado momento, adquirem um teor ontológico por uma súbita intuição reveladora. “Gostaria tanto de me abandonar, de deixar de ter consciência de minha existência, de dormir. Mas não posso, sufoco: a existência penetra em mim por todos os lados, pelos olhos, pelo nariz, e subitamente, de repente, o véu se rasga: compreendi, vi”. (Sartre: 1980, 187) Assim, podemos inferir uma intuição “iluminativa” em Roquentin enquanto espelhoda condição de nossa própria existência, isto é, uma náusea que termina por se revelar como sendo em “nós mesmos” algo constituído daquilo que o homem é. A experiência da náusea não é mais algo que se acrescenta ao nosso psiquismo, mas se converte em algo substancial, que oferece oportunidade de acesso ao sentido último da realidade humana. Roquentin percorreu um método, um caminhar que vai do desconhecido ao conhecimento. Mas ainda há alguma coisa que nos incomoda, a saber, quem é este homem concreto no mundo, ou melhor, quem é este ser-no-mundo? O concreto não poderia ser senão a totalidade sintética, em que a consciência, como fenômeno, não constituiria senão momentos. O concreto é o homem no mundo como aquela união específica do homem ao mundo que Heidegger, por exemplo, nomeia ‘ser-no-mundo’. (SARTRE: 2001, 37)
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Exatamente pela concretude inerente à idéia de ser-no-mundo, ela se impõe à nós de modo imediato, evidente. Por admitir a idéia de mundo é que Sartre atribui ao cogitouma dimensão existencial, desintelectualizando-o, fundamentando-se a reflexão na consciência não reflexiva, isto é, no cogito é-reflexivo. A consciência é (imediatamente) abertura ao mundo por determinar-se como consciência de percepção. Temos aqui o ponto de partida do que é a consciência (uma consciência não fechada em si própria), visto que o homem é ser-no-mundo. Este ser-no-mundo não encontra seu fundamento na reflexividade ou na res cogitans, já que ele o estabelece num plano pré-reflexivo. O existir se qualifica como preeminência absoluta. “É o que se pode exprimir nesses termos: toda consciência existente existe como consciência de existir.” (SARTRE: 2001, 20) A Náusea, observamos uma finalidade para este ser-no-mundo. Poderemos compará-la com o procedimento da dúvida em Descartes. Se compreendermos esse homem como ser-no-mundo, esse mundo não pode cair no esquecimento e, como afirmamos, se o cogito reflexivo está condicionado ao pré-reflexivo, só podemos inferir que o plano de pensamento deve ceder lugar a uma experiência existencial concreta, isto é, à uma experiência que permita atingir o sentido da existência em seu ser-no-mundo -e disso o homem não pode esquivar-se. Assim, deve haver um fenômeno de ser, uma aparição de ser descritível como tal. O ser nos será desvelado por algum meio de acesso imediato, o tédio, a náusea, etc, e a ontologia será a descrição do fenômeno de ser tal como ele se manifesta, isto é, sem intermediário. (SARTRE: 2001, 14)
Portanto, deve-se partir de uma manifestação de ser, de uma experiência existencial. Lembremos de Roquentin ao obedecer a uma intuição básica que afirmava a existência humana como gratuita, como um absurdo desprovido de qualquer sentido, uma experiência negativa da náusea que nadificava e diluia os significados do real.10 10 O personagem de A Náusea é o homem das revelações da náusea, pois com ou sem o Absoluto o homem a sofre, além de toda experiência e tudo o que ele traz consigo, num plano tolamente imanente e mergulhado nessa imanência, isto é, o homem não consegue evitar a visão do absurdo do real.
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Mas o que sentir diante desta existência humana gratuita, um absurdo desprovido de qualquer sentido, desta experiência que nadifica, da angústia que dilui os significados do real? O existencialista não tem pudor em declarar que o homem é angústia, que todo homem encontra-se ligado por um compromisso àquele que escolhe ser, ou melhor, “... um legislador escolhendo, ao mesmo tempo que si, a humanidade inteira, não poderia escapar ao sentimento de uma total e profunda responsabilidade.” (SARTRE: 1996, 33 )11 Tudo se passaria como se, para todo homem, a humanidade voltasse seus olhos no que ele faz e, na mesma medida, se regulasse pelo que ele faz. Tal homem deve dizer-se a si mesmo se ele terá, seguramente, o direito de agir de tal modo que a humanidade se regule pelos seus atos. Esta é a forma de encarar com autenticidade a angústia, que transcende ao individualismo moderno e que jamais leva o indivíduo ao quietismo. Trata-se de uma angústia conhecida por todos os que possuem responsabilidades. Esta espécie de angústia é descrita pelo existencialismo, explicada por uma responsabilidade direta frente aos outros homens que ela envolve, frente ao meio social-econômico-político em que se vive e que faz parte do campo de ação. Com um radicalismo simbólico, o ponto de partida da evolução sartreana se situa precisamente nas coisas, ou melhor, na alienação dos homens nas coisas, assumida na “na experiência da náusea” como absurdo e angústia. Vemos aqui a descoberta máxima da pura contingência do ser, do absurdo do existente. Roquentin interroga sua própria existência e ao absurdo de existirem coisas, absurdo este também da sua própria existência. Portanto, ao absurdo de existirem coisas ele associa o absurdo de ele próprio existir, o que se configura como uma ligação estritamente ética. Eis que estamos agora em face de uma Liberdade que aspira tornar-se efetivamente valor. 11 Sartre, semelhante a Kant, eleva sua máxima moral: “Mas, em verdade, deve-se sempre se perguntar: o que aconteceria se todos fizessem o mesmo? Escaparia-se a este pensamento inquietante somente por um tipo de má-fé.” (SARTRE: 1996, 34)
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O homem sartreano é aquele cuja “...existência precede a essência, ou se preferir, é preciso partir da subjetividade.” (SARTRE: 1996, 26) Ora, se a existência precede a essência, o homem não possui uma natureza prefixada, portanto, faz-se se fazendo, constrói-se o que é, determina-se essência por aquilo que realiza. O ponto de partida é o Nada, a inexistência de leis inscritas numa vontade divina, do homem absolutamente abandonado a si e dotado de uma liberdade necessária e responsável diante de outras liberdades. O homem tem de construir-se numa Tábua de valores e de assumi-los em responsabilidade, ele escolhe porque tem de escolher, mas ao fazê-lo, o faz diante do destino dos outros homens. Ao escolher, uma vez que a realiza, julga-a ser a melhor também para os outros, deposita nela uma imagem do homem como dever ser. É por isso que a angústia se apodera dos homens em face de uma responsabilidade total, ou seja, a nossa escolha é a escolha do mundo, portanto, somos responsáveis por nós e pelos outros. “O homem se faz; ele não está feito, ele se faz escolhendo sua moral, e a pressão das circunstâncias é tal que ele não pode deixar de escolher. Nós não definimos o homem senão por relação a um engajamento” (SARTRE: 1996, 66), ou ainda, “...escolhe-se em face de outros.”12 (SARTRE: 1996, 67) Nosso ponto de partida é a imediata relação com o mundo concreto, real e não meramente metafísico ou “idealizado” e o estatuto original do conhecer estará no original intuir desse mesmo mundo, isto é, na dimensão da intencionalidade. A liberdade implica no ato intencional, ela é a consciência e o seu modo de ser. O homem está condenado a viver para sempre para além de sua essência. É a liberdade como estrutura ética no homem, fazendo parte da sua própria qualidade de ser consciente, da possibilidade de negar, de transcender. É pela liberdade que o homem pode recusar-se como em-si (coisa), projetando-se para além além de si. Como dissemos, se a existência precede a essência, o homem não poderá ter uma natureza prefixada, pois se faz fazendo-se, constrói-se o que é, determina12 Sendo a situação do homem como escolha livre, sem subterfúgios, desculpas e auxílios, todo aquele que se refugia na desculpa que inventa um determinismo é um homem de má fé: ela se estabelece como um erro, uma dissimulação à total liberdade do compromisso. Já os atos dos homens de boa fé têm como último significado a procura da liberdade enquanto tal.
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se essência por aquilo que realiza. O ponto de partida é o nada, sem leis inscritas numa vontade divina, deve constituir-se numa tábua de valores e de assumi-los em responsabilidade. Escolhe porque tem de escolher; mas escolhendo implica ao destino dos outros homens, já que é sua escolha, uma vez que a realiza, julga-a por força a melhor para os outros, implica nela uma imagem do homem como julga dever ser. (FERREIRA: 1970, 187)13
A responsabilidade implica em nosso desejo autêntico de jogar-nos integralmente numa ação e, por este motivo, a angústia se apodera de nós. Aqui o desespero nos invade pela impossibilidade que temos de avaliar previamente todas as conseqüências de nossos atos (que temos de realizar) e da maneira como os outros (livres como nós) assumirão esses nossos atos. Se nos encontramos abandonados no mundo, desapoiados de valores trancendentes, condenados à construí-los e à assumi-los social e politicamente, deveremos transcender quaisquer perspectivas pessimistas da existência. A Liberdade total confere ao homem as possibilidades de reagir sempre, de se (re)inventar todos os caminhos, de recusar todos os limites, dando-nos o direito ao otimismo. Sartre retoma uma situação concreta em que normalmente nos reconhecemos em face de um problema de “escolha”, de liberdade. Aborda-se aqui o problema da ação, tendo por princípio a intencionalidade. A liberdade do homem é de fato consciente, mas só os seus atos claramente a revelam. A intencionalidade implica precisamente uma situação, ou melhor, um “estar-no-mundo”. É evidente que na conjunção eu-mundo, é exatamente o eu que confere certezas, só imaginamos o mundo sem uma consciência imaginando-o através de uma consciência: não pode haver espaço para o homem alienar-se de sua situação. Mas como o que somos, somos ao olhar do outro, veremos também que 13 Daí que a angústia se apodera dos homens em face de uma responsabilidade total, ou seja, a nossa escolha é a escolha do mundo, portanto, somos responsáveis por nós e pelos outros. O homem está mergulhado no mundo sem que sinal algum possa orientá-lo, ele terá de interpretar e assumir sua ação no mundo: é a angústia e a responsabilidade diante de suas ações.
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a consciência que de nós tomamos implica esse outro. Assim, atingimos o mitsein, a intersubjetividade. No entanto, o que somos nós e os outros, precisamente porque “o que somos o fazemos”, não nos é dado por uma natureza pré-fixada, prédeterminada. “À Natureza opomos a ‘condição’, ou seja, os limites a priori que nos constituem a situação no mundo: o estar com, o ser moral, etc. Mas o que somos é obra nossa dentro desses limites.” (FERREIRA, 1970, p.189) Deste modo, podemos falar numa “Universalidade” do homem, na medida em que se pode falar na intelecção genérica dos projetos humanos.14 O homem encontra-se ligado por um compromisso, se dando conta de que não é apenas o homem que quer escolher, mas passa a legislar na medida que, ao mesmo tempo, se escolhe a si mesmo, não podendo escapar ao sentimento da sua mais profunda responsabilidade: escolhendo-me, escolho o homem. Não há como o homem escapar de si mesmo e procurar algo fora de sua existência para servir de base ao fundamento da violência ontológica: está nele mesmo sua origem e superação. Estamos intrinsecamente ligados a uma perspectiva ética, pois O homem, quem é ele? Constitui, por conseguinte, um problema importantíssimo, mas, infelizmente, também um problema muito difícil, dada a enorme complexidade de nosso ser, o nosso grande dinamismo, as fortes e elevadas aspirações, as múltiplas expressões do bem e do mal, do ódio e do amor, da generosidade e da perversidade, do progresso e do retrocesso de que somos capazes. (MONDIN: 1980, 05)
referencias BIBLIOGRAFIcAs
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* Carlos Eduardo de Moura é Mestrando em Filosofia (UFSCar) e bolsista CAPES. prof.carloseduardo@ bol.com.br
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PRAZER E DESEJO NO “ENSAIO” DE LOCKE1 Magdalena Mendonça*
Resumo: O presente trabalho examina as noções de prazer e desejo expostas no Ensaio do Entendimento Humano de John Locke, a fim de mostrar a estreita ligação que há entre a teoria das paixões, a questão da experiência perceptiva e o projeto de uma teoria do conhecimento na filosofia desse autor.Trata-se de sinalizar na compreensão lockeana de prazer e desejo o postulado da autoconsciência a partir do sentido interno da reflexão. Esta, juntamente com a sensação, é considerada fonte originária da “experiência empírica”. Em síntese, o que se pretende é destacar o tom metafísico da experiência perceptiva na filosofia lockeana e mostrar como a concepção de prazer e desejo em Locke fundamenta-se a partir de um pensar teológico e teleológico. Palavras-chave: PRAZER, DESEJO, J. LOCKE A questão da experiência perceptiva inscrita na teoria das paixões em Locke, precisamente nos conceitos de prazer e de dor, não se apresenta, como poderia parecer à primeira vista, como expressão de uma crítica radical à tonalidade metafísica da filosofia cartesiana, com a qual mantém em comum a postulação do princípio divino como base da ordem, eficácia do perceber humano. Esse, uma vez dotado do dom de ver – tanto a identidade quanto diversidade – no processo de concepção de suas idéias, guarda na experiência perceptual o potencial de atingir o conhecimento objetivo e preciso. Na exposição da sua compreensão da conduta humana fundamentada na noção de prazer e dor (contida nos escritos do Livro II do Ensaio acerca do Entendimento Humano) Locke esclarece que essas sensações “[...] são idéias simples que se dirigem à mente por todas as vias da sensação e reflexão”, as quais, segundo o “empirista”, são as fontes originárias da experiência. Ao reconduzir as idéias simples de prazer e dor para a esfera da experiência, o autor do Ensaio apresenta a tese da possibilidade de se atingir o conhecimento 1 Versão parcial deste texto foi exposta no XIV Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea, promovido pelo Colegiado do Curso de Filosofia e Programa de Mestrado em Filosofia da Unioeste - Campus de Toledo, PR, realizado no período de 26 a 30 de outubro de 2009.
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dessas “idéias simples” quando sentencia: “ [...] assim como outras idéias simples, não podem ser descritas, nem seus Nomes definidos; a maneira de conhecê-las é, do mesmo modo, que as idéias simples dos sentidos, somente através da Experiência”. (1975: L. II,,cap. XX , &1) Locke não se furta de apresentar uma definição de prazer e de dor quando afirma: “[...] defini-las pela presença do Bem ou do Mal não é diferente de fazê-las nossas conhecidas”. (1975: L.II, cap. XX, &1) Deste modo, o autor inglês compreende o prazer em contraste a um estado oposto à dor, associando prazer e deleite à presença do bem e, por outro lado, vinculando a dor à presença do mal. Sendo assim, a experiência do deleite ou da dor implica necessariamente na interdição do encontro simultâneo ou combinação de elementos sensíveis contrários. Locke não aceita a mistura de prazer e desprazer na medida em que apresenta uma concepção dualista da esfera passional, a qual acarreta uma compreensão unívoca e imutável da esfera sensível, na qual a presença de uma sensação exige a ausência de outra que a esta se opõe. Se a interdição da combinação simultânea de elementos passionais na abordagem lockeana permanece como interrogação, de modo similar muitas suspeitas podem ser levantadas no que diz respeito à incorporação da noção de presença ou ausência associadas à experiência perceptiva do prazer, da dor, envolvendo uma concepção complexa da dimensão sensível. Em suma, é necessário indagar: como se torna possível captar a presença ou ausência de algo na esfera sensível? No percurso argumentativo sobre as noções de prazer e dor, Locke procura expor definições sobre diversas sensações, tais como alegria, tristeza, medo, esperança, além de outras que são compreendidas como concepções ou representações mentais que não abarcam qualquer resíduo sensível. Assim, Locke sustenta a possibilidade de inteligibilidade da alegria, por exemplo, como “[...] um deleite da mente, a partir da consideração da posse do bem”.
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Seguindo na tarefa de traduzir as sensações, sentencia: Tristeza é uma insatisfação (uneasiness) da mente quando ela pensa em relação a um bem perdido, que poderia ter sido desfrutado por mais tempo; ou a sensação de um mal presente.
Medo (temor) é do pensamos em
uma insatisfação mal futuro prestes
da mente, quana nos chegar.[....]
Esperança é aquele prazer na mente, que todos encontramos dentro de nós mesmos, quando pensamos em um provável desfrute futuro de uma coisa que é apta a nos deleitar [...]. (1975: L.II, cap. XX, &7-10)
Esta abordagem da esfera passional indica que, para Locke, experiência perceptiva constitui-se em apreensão de estados internos, tais como deleite ou insatisfação que são necessariamente reconhecidos por meio da representação de caráter estritamente intelectual: ato auto-reflexivo, que enquanto ‘concepção’ tem a possibilidade do encontro imediato com ‘a presença do bem ou do mal’. Deste modo, compreende-se que Locke fundamenta o perceber no reconhecimento do pensamento reflexivo como um olhar sem desvio sobre o que há de essencial no campo sensível: apreensão do próprio ser do elemento sensível. Contudo, tal apreensão situa-se estritamente na esfera única da razão, do pensar que enquanto fundamento torna a visão clara da percepção assegurada. Como já observou de modo esclarecedor Cassirer: [...] as representações da força, unidade e existência [...] são, segundo a explicação originária, simplesmente cópias ou reproduções de um ser objetivo que se dá como realidade acabada fora de nós ou em nós mesmos. Todo objeto exterior e toda representação interior impõem ao espírito os conceitos da existência e unidade“. (1986: 205)
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Referindo-se ao prazer ou deleite, dor ou insatisfação, Locke as define como “idéias dos sentidos”, o que significa dizer que prazer e dor, satisfação/insatisfação não são compreendidos enquanto impressões, e nada mais são senão idéias, as quais trazem “em si” objetividade suficiente a ponto de serem identificadas como percepções claras e distintas, ligadas à esfera intelectual. Justamente neste ponto vale notar que se para Locke sentir não se distingue de uma forma de pensar, precisamente conceber – que consiste no critério de evidência sobre existência e natureza das sensações, tal como a captura do prazer, deleite, em relação à esperança, que conforme garante Locke, “todos encontramos dentro de nós mesmos quando pensamos” –, então não é difícil perceber convergências e similaridades entre a redução do sensível ao pensar em Locke e o estratagema cartesiano de mascarar a dúvida (como também o desejar, sentir) em mero ato do pensar. A ninguém escapa que esta proposta cartesiana é exposta na Segunda Meditação, no célebre argumento do Cogito: [...] que é uma coisa que pensa? [....] é uma coisa que duvida , que concebe, que afirma, que nega, que quer e não quer, que imagina também e que sente, (de maneira que) [....] cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo é evidente por quanto tempo?A saber todas as vezes que eu penso. (1953: 276-277)
E no Ensaio, Locke seguindo nesta linha, argumenta : É controvérsia ultrapassada que temos em nós algo que pensa; nossas próprias dúvidas a respeito do que é isto confirmam a certeza de seu ser [...]. (1975: L.IV, cap. III, &6)
Deste modo, pode-se afirmar que o critério de evidência tanto em Locke
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quanto em Descartes baseia-se na estratégia de redução do sensível ao âmbito estrito do pensar balizado no ato de conceber.2 Forlin adverte que a evidência do existir não se efetiva no mero enunciar ou proferir chamando a atenção do leitor para o detalhe de que o argumento do Cogito expresso na proposição “eu sou, eu existo” nas Meditações Metafísicas, pode ser erroneamente compreendida como uma associação da verdade da existência ao ato da simples enunciação. Neste sentido, o intérprete faz a ressalva: “[...] a verdade da minha existência está exclusiva e necessariamente associada ao ato de consciência, do pensar, do conceber”. (2006: 114-115) Então, não é difícil notar que em Locke, como em Descartes, percepção vincula-se à idéia, ou seja, uma concepção que a partir de uma operação cognitiva emite um juízo assertivo sobre as sensações no que elas têm de essencial, o qual é considerado como indubitável. Retomando o texto do Ensaio no qual se expõe a definição da alegria, tristeza dentre outras, pode-se compreender que sensação – feita razão, pensamento, torna-se o objeto do conhecimento, que por si mesmo, no exercício reflexivo atinge a percepção clara e nítida do deleite ou da dor e, precisamente, a presença do bem e do mal. Confirma-se, então, que a respeito da representação advinda do ato reflexivo e da autoconsciência que os fundamentam, em Locke, a influência cartesiana torna-se clara e indubitável. Seguindo neste registro teórico, Locke ao se referir à auto-reflexão, diz: 2 Etienne Gilson indica com muita clareza que “[...] a primeira meditação não é uma teoria a compreender, é um exercício a praticar. A reflexão sobre as razões pelas quais nós temos de duvidar dos sentidos deve engendrar um bom hábito que ‘balance o mal’. E ainda diz o intérprete sobre o exercício introspectivo do duvidar : “ Eles intervêm para dobrar em sentido contrário um espírito que os sentidos têm torcido durante longos anos, como uma força em sentido contrário, um bastão dobrado para tornar a pôr reto”. In: GILSON, Etienne. Études sur le role de la pensée medievale dans la formationdu système cartésien.. (1930: 186) Em sua obra, Démons, rêveurs e fous. La défense dela raison dans lês meditations de Descartes, (1989) Harry Frankfurt esclarece : “[...] a intenção de Descartes é de guiar o leitor até a saúde intelectual, fazendo-a parte da maneira na qual ele descobriu a razão e na qual ele se liberou da tenebrosa dependência dos sentidos que o havia deixado na incerteza e no erro”. Sobre este ponto no seu livro monumental, Descartes selon l’orde dês raisons, Gueroult (1953: 156) observa de modo apropriado que a posição cartesiana em relação à razão se repete em toda a sua investigação posterior, e, precisamente coincide com a das Regras para a direção do espírito em que já aparecem as linhas mestras do seu método, cuja idéia básica, como assinala o intérprete , é a de que “[...] o saber tem limites inquebrantáveis, mas que no interior destes limites a certeza é inteira [...] que é necessário duvidar previamente de tudo, mas não a ponto de duvidar de nossa inteligência”.
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A experiência de cada um bastará para ensinar que a mente, seja por perceber [...] o acordo ou desacordo de qualquer de suas idéias, tacitamente e por si mesma as organiza num tipo de proposição afirmativa ou negativa. [...] mas esta ação da mente, tão familiar para todo homem que pensa ou raciocina, é mais fácil de ser concebido ao refletir acerca do que se passa em nós quando afirmamos ou negamos, do que ser explicada mediante palavras. (1975: L. IV. cap.V, &6)
Estas afirmações nos levam a pensar que unicamente a partir da primazia da esfera reflexiva, a qual envolve autoconsciência, é que se abre a possibilidade para Locke fazer uma triagem da esfera passional, como tentamos mostrar, valendose das noções moralizadoras do Bem/ Mal, em termos absolutos, e como “presenças” ou “ausências” objetiváveis à esfera racional. Na referência ao ato perceptivo do prazer, Locke afirma de modo categórico: “[...] ao infinito e sábio autor de nosso ser [...] agradou juntar aos vários pensamentos e sensações a Percepção de Deleite. (1975: L.II, cap.VII, &3) O que Locke entende como percepção do deleite, nada mais é que a apreensão intelectual do prazer, a qual não se constitui em um ato da vontade particular do indivíduo nem se restringe à própria esfera da razão, pois a questão da percepção situa-se para além da razão humana, portanto a transcende quando se propõe o Ser divino como condição de validade da experiência do perceber. Ocupando-se da garantia da percepção, Locke não abandona a hipótese ontológica da existência de Deus, uma vez compreendido que enquanto criador do nosso ser torna-se garantia da necessária adequação entre percepção (da razão natural) e o que é por ela pensado, representado e concebido. Assim, Locke seguindo as pegadas da filosofia cartesiana estabelece que concepção e asserção baseiam-se na pressuposição do Ser divino, Deus, compreendido como causa primeira e última de todas as coisas: o homem, o sujeito cognoscente considerado como criatura desse ser perfeito, guarda na razão e na reflexão o dom de
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conhecer preciso e absoluto, referindo-se à garantia de adequação entre a relação de idéias e juízos e existência das coisas externas. Assim, Locke segue na argumentação: Em algumas de nossas idéias há certas relações, hábitos, conexões tão visivelmente incluídas na natureza das próprias idéias que não podemos concebê-las separáveis delas por não importa que poder. E nestas somos capazes de conhecimento certo e universal [...] nem podemos conceber essa Relação, essa conexão de duas Idéias, como possivelmente mutável, ou dependendo de qualquer Poder arbitrário, de cuja escolha isto foi feito, ou pode fazê-lo de outro modo. Segue-se que não podemos descobrir nenhuma conexão natural em nenhuma das idéias que temos, mas podemos assinalá-las ao poder arbitrário, e bel-prazer do Sábio Arquiteto. (1975: L. IV, cap. III, &29)
Fala-se de uma confiança da razão estreitamente vinculada ao perceber de relações necessárias de identidade ou distinção entre as idéias que se revelam ao olhar da percepção isenta de qualquer desvio. Como já visto, a confiança da esfera cognitiva não se dá sem o suporte ontológico do “Sábio Arquiteto” – condição de garantia da luz, clareza, evidência da razão humana no que tange ao conhecimento, à percepção, à conexão essencial entre as suas idéias e coincidência com a necessária ordem da realidade. De fato, é na postulação da veracidade e perfeição do Ser Supremo como garantia imprescindível da validade da própria razão é que se pode verificar mais um ponto de convergência entre Locke e Descartes. É precisamente no livro IV do Ensaio que Locke, partindo dos qualificativos de bondade, sabedoria e existência do Ser Divino, postula a garantia da validade da esfera racional para além dela própria, pois situa na esfera supra-sensível o fundamento da razão tanto no campo teórico quanto no âmbito pratico, quando declara: A idéia de um Ser Supremo de infinito poder, bondade e sabedoria, cuja obra somos nós, e do qual dependemos, como ainda a idéia de nós mesmos, como criaturas racionais e inteligentes, por serem tão claras em nós, ofereceriam suponho, se bem consideradas e pesquisadas, tais fundamentos para nosso dever e regra para ação [...]. (1975: L.IV, cap.
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III, &18) A possibilidade de haver adequação entre plano ideal e o plano real é garantia do conhecimento certo e absoluto que não se dá na esfera da própria razão humana, mas na própria condição do existir humano: o ser supremo, perfeito e bondoso, do qual advém a minha razão de existir e ter idéias, fornecendo a garantia dessas idéias constituírem-se em um conhecimento indubitável. Assim, Deus, compreendido como fundamento maior da experiência perceptiva ou reflexiva é quem interdita no perceber a obscuridade ou lacuna e permite visibilidade e transparência. A filosofia cartesiana já havia apostado no princípio da perfectibilidade divina no interesse de responsabilizar o sujeito racional na possibilidade da errância, pois recusa que “[...] Deus, verdadeira origem de toda luz possa ser [...] a causa direta dos erros aos quais estamos sujeitos e o qual experimentamos em nós mesmos, [...].”(1953: Principes. L.I,&29) Postulando a coincidência entre a percepção da razão humana da ordem natural como verdade imutável e necessária, advinda de Deus no ato da criação de todas as coisas, afirma: [...] Notei certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, depois de refletir bastante sobre elas, não poderíamos duvidar que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe o mundo. (1998)
E admite: [...] procurei mostrar quais eram as leis da natureza, e sem basear minhas razões em nenhum outro princípio – a não ser no das perfeições infinitas de Deus–, procurei demonstrar todas aquelas que pudessem suscitar qualquer dúvida e mostrar que elas são tais que, embora Deus tivesse criado muitos mundos, não poderia existir um só em que deixassem de ser obedecidas. (1998)
Locke corroborando a tese cartesiana de linhagem ontológica da inteligibilidade do princípio divino como causa primeira de todas as coisas, a partir das
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coisas criadas, natureza e razão humana, declara: [...] tenho por uma verdade certa e evidente que as coisas evidentes invisíveis de Deus, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas. Pois o nosso próprio ser nos proporciona, como mostrei, uma evidente e incontestável prova da existência de uma divindade. (1975: L.IV, cap.X , &7)
A evidência, tanto na coincidência entre a idéia e a existência essencial de Deus quanto àquela de nós mesmos, é mantida na experiência perceptiva de caráter imediato, e adquire validade a partir da dependência da razão humana ao ser divino. Assim, tanto em Locke quanto em Descartes, mantém-se a convicção de que é a condição de dependência da razão humana ao ser supremo que se torna condição sine qua non da garantia da precisão quanto à percepção, concepção das relações, conexões entre idéias e sua coincidência em relação à nossa existência e à existência das coisas externas. Sendo assim, se para ambos os autores modernos não há relatividade na conexão entre idéias quando estas são referidas ao poder cognoscível advindo do “sábio arquiteto” que garante clareza, exatidão e adequação inequívoca nas relações entre as suas idéias e o mundo físico, segue-se inevitavelmente, tanto em Locke quanto em Descartes a postulação da necessidade, seja na esfera natural quanto na esfera cognitiva. Neste ponto pode-se pensar, sem o risco de cometer desvarios, que na teoria das paixões em Locke apresenta-se a motivação epistemológica e ontológica de construção de uma teoria do conhecimento permeada de tons metafísicos análogos aos inscritos na filosofia cartesiana. Na célebre tese lockeana do entendimento como ‘tábula rasa’, na qual se afirma que “nada pode estar no entendimento antes de ter sido percebido que não
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tenha transitado pelos sentidos”,3 ao contrário do que se possa deduzir, o que se postula é a possibilidade de conhecimento da esfera sensível na experiência balizando-a na percepção intelectual por meio do sentido interno da reflexão. Seguindo na mesma linha, em outra passagem garante a visibilidade do entendimento na experiência perceptiva quando afirma: Podemos igualmente pensar o uso da razão necessário para fazer nossos olhos descobrirem objetos visíveis como deveria haver necessidade da razão ou do exercício posterior para fazer o entendimento ver o que está originalmente gravado nele e não pode estar no entendimento antes de ser percebido. (1975: L.I, cap. II , &9)
Do ponto de vista lockeano experiência pressupõe um sentido externo e interno, sensação e reflexão. No entanto, afirma-se que os conteúdos externos são apreendidos estritamente no exercício introspectivo da razão reflexiva. Ora, na reflexão, identificada como poder cognoscitivo da esfera intelectual, a ênfase recai na inter-relação entre introspecção, clareza e precisão na percepção e juízo. A primazia do pensamento e do entendimento surge na presença da intuição inteligível que então apreende, de forma clara e precisa, o diferencial entre as idéias ou “sensações” de prazer e dor. Se o conhecimento intuitivo, segundo Locke, consiste na percepção clara e precisa do acordo e desacordo entre idéias, então, segue-se que na esfera passional é a percepção da razão reflexiva – da intuição inteligível – (entendida como forma de pensar, conceber) que valida a diferença qualitativa das sensações de prazer e dor. Pode-se, assim afirmar que experiência é compreendida por Locke como exercício de reflexão consciente. A relação entre a experiência perceptual e autoconsciência torna-se evidente quando, a respeito da universalidade das idéias abstratas, Locke garante a possibilidade da visibilidade na experiência perceptual, balizando-a na ‘luz da razão’: 3 LOCKE, John. An essay... , op.cit., L.I, cap.II , &9. Seguindo na mesma linha, Locke em outra passagem do Livro IV, cap.III, &8, afirma: “[...] não pode haver nenhuma idéia que não seja presentemente, por um conhecimento intuitivo, percebida o que é, e ser diferente de outro qualquer.”
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[...] nosso conhecimento acompanha a natureza de nossas idéias. Se as idéias são abstratas, cujo acordo ou desacordo percebemos, então nosso conhecimento é universal. [...]. De sorte que todo conhecimento geral que podemos procurar e descobrir se encontra apenas em nossas próprias mentes, sendo apenas o exame de nossas próprias idéias que nos fornece isto. (1975: L.IV, cap.III,&31)
Abstração, em Locke, não é considerada como resultante de um processo aleatório de construção da razão humana, e sim conhecimento que guarda na própria razão uma visão nítida e transparente. Neste ponto, pode-se salientar que a questão da vinculação entre Experiência e razão intuitiva na esfera da experiência perceptiva já se anuncia. Ernest Cassirer chama a atenção para a continuidade do primado do entendimento no empirismo mentalista de Locke, quando adverte: “[...] a intuição acaba afirmando sempre sua primazia e sua própria independência”. (1986: 223) Prosseguindo na abordagem de Locke sobre as paixões, precisamente a noção de prazer, passemos à consideração do desejo, que também é exposta no Livro II do Ensaio sobre o entendimento humano. Locke apresenta a sua definição de desejo, articulando-o às de incômodo, de inquietude, que é sintetizada pelo termo “uneasiness”. Desse modo, esclarece: A uneasiness que um homem encontra em si mesmo em relação à ausência de alguma coisa [...] é o que chamamos de Desejo. [...] e aqui talvez possa ser de alguma utilidade observar a propósito que a uneasiness é o mais importante, senão o único estímulo da ação e da indústria humana.4
Locke garante que enquanto a satisfação leva à acomodação e ao repouso em virtude do deleite que propicia a determinação da sensação da dor – similar à noção de insatisfação – reside na motivação de deflagrar o movimento de reordena4 LOCKE. John. An essay …, op.cit. , L.II, cap.XX, &6. Raymond Polin chama atenção para o fato de que, enquanto oposto ao prazer, o termo “uneasiness”, em Locke, pode ser considerado como equivalente à insatisfação. Aqui seguiremos esta tradução do termo lockeano. (In: La politique morale de John Locke. Paris: PUF, 1960, p. 18. Sobre a questão do possível significado de “uneasiness” como “inquietude” ver: MONZANI, Luiz Roberto. Desejo e Prazer na Idade Moderna. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995, p. 137.
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ção da ação. Nota-se, então, que o estado de insatisfação, entendido como desejo, guarda-se em um caráter deliberativo, na medida em que se pressupõe uma autonomia e escolha que possibilita a saída de um estado de insatisfação ao encontro da satisfação, do deleite e do prazer. Associando desejo ao esforço racional que visa a um fim, Locke enfatiza a distinção entre desejo e vontade e garante que é no primeiro (no desejo) que se situa a determinação da ação, quando escreve: [...] se um homem estiver à vontade e satisfeito sem ele (o bem); se não tiver nenhum desejo dele, nenhum esforço para obtê-lo; não há mais que uma simples Volição, o termo usado para significar o nível mais baixo do Desejo e aquele que não está de forma alguma próximo a nenhum outro, quando há pouca insatisfação na ausência de qualquer coisa, que leva um Homem não além de alguns anseios vagos por ele, sem nenhum uso mais eficaz ou vigoroso para alcançá-lo. (1975: L.II, cap.XX, &6 - grifo nosso)
Em outra passagem, surge de modo curioso, na definição de movimento, a menção à noção de desejo: A idéia de início do movimento nós temos somente através da reflexão daquilo que se passa em nós mesmos, em que descobrimos por Experiência que somente ao desejá-lo, somente por um pensamento da mente, podemos mover as partes do nosso corpo. (1975: cap. XXI, & 4)
Da citação, tudo leva a crer que Locke apresenta a sua concepção de desejo na sua condição de força motriz, que uma vez compreendido como um elemento determinante da ação tem por elemento basilar o pensar, ou seja, o exercício da razão reflexiva pela qual adquire a possibilidade de ser efetivado. Parece que é justamente na compreensão de desejo como potência de realização de algo que tem uma direção precisa que Locke, seguindo na trilha da filosofia aristotélica, assevera: “[...] todos os homens desejam a felicidade, não há dúvida”. (1975: cap. XXI, & 68) E acrescenta: ”Como tudo aquilo que desejamos é apenas ser felizes [...] Este desejo geral de felicidade opera constante e invariavelmente“. (1975: cap. XXI, & 71)
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Desta forma instaura-se a universalidade do desejo, a “uneasiness”, ou seja, a noção de insatisfação em Locke é respaldada a partir da pressuposição de que há unanimidade entre todos os homens quanto à preocupação e dedicação de suas vidas em busca da felicidade, que é entendida como própria do objeto de desejo da “natureza humana” em geral, que finda por abstrair a diversidade de apreciações sobre a felicidade e modos de conduta. Seguindo a trilha da moral tradicional, Locke considera que é justamente na mistura entre dor e prazer que se apresenta ao sujeito uma condição de imperfeição da sua felicidade terrena que, vista como incompleta, é reconhecida pela criatura humana como uma falta em relação à felicidade completa, o bem supremo. A partir disto Locke assegura, sem valer-se de qualquer tipo de exceção, que na vida terrena “[...] encontramos imperfeição, insatisfação, e desejamos a felicidade completa”. (1975: cap. VII, & 5) É neste ponto que se verifica o quanto a noção de desejo em Locke está intimamente relacionada à noção de finitude humana, que não deixa de se pautar por um pensar eminentemente teológico. Sendo assim, desejo, entendido como insatisfação leva á noção de falta, imperfeição que revela a presença da postura moralizadora de Locke em relação à compreensão do desejar como busca de aperfeiçoamento espiritual. Neste ponto, de modo pertinente, Polin esclarece: [...] necessidade de procurar a felicidade verdadeira é o fundamento da liberdade [...] não se trata de felicidade efetiva e atual desejada por cada homem vivente, mas desta felicidade verdadeira que é ou deveria ser, para o homem, a beatitude eterna. (1960: 20-21)
Levando em conta o acima exposto, parece-nos que uma compreensão do desejo em Locke como um movimento incessante, desprovido de um caráter metafísico, torna-se no mínimo inusitada, uma vez que tal interpretação cai no desvio de OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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se tornar externa ao próprio texto lockeano quando se permite abstrair da estrutura interna da obra do filósofo e, sobretudo, valer-se da estratégia de camuflar a conotação teológica que o próprio autor inglês confere à noção de desejo. Seguindo a linha da tradição, Locke sustenta que o diferencial entre virtude e vício “[...] consiste em sua aceitação ou rejeição, em seu louvor ou condenação [...]. Em toda parte virtude é aquilo que se pensa digno de louvor”. (1975: cap. XXVIII, & 10-12) Assim, desejo compreendido como busca de prazer e de felicidade – sempre em referência à lei e desígnio divinos – assume um caráter metafísico, na medida em que se torna parâmetro para se pensar o bem e o mal, o vício e a virtude associados à lei natural que estabelece com precisão os limites do permissível e censurável. A busca do prazer, no entanto, expressa a liberdade limitada do ser humano, compreendido como criatura que guarda a sua conservação em um princípio divino. Neste sentido, Locke escreve: “[...] o bem e o mal, ou prazer e dor implicam nossa obediência ou rompimento com a lei decretada pelo legislador, o que denominamos prêmio ou castigo”. (1975: cap. XXVIII, & 5) Aqui é preciso observar que Locke identifica prazer e dor a dois atos distintos, submissão e transgressão, onde cada ato está associado a efeitos distintos sobre o sujeito advindos de uma ordem de caráter supra-natural. A liberdade determinada pelo dever moral tem como fundamento a lei divina, o desígnio, parecendo que é em referência ao decreto divino que se fundamenta a visão do desejo como o movimento constante e determinado no campo do existir humano. Ora, desejo então, é um esforço cognitivo de cumprimento da lei divina que confere regularidade e uniformidade à conduta humana. Na compreensão lockeana de desejo como busca de prazer, felicidade, deleite há implícito um referencial transcendente: a lei natural ou divina. Constata-se assim que, em Locke, desejo obedece ao imperativo de um desígnio divino, de um projeto que diz respeito ao plano traçado pela vontade perfeita de um Deus Supremo, o qual estabelece, no trajeto da vida humana, uma meta fixa, um telos que por sua
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vez interdita pensar o casual, o relativo, imprevisível no campo da conduta humana. Ao lermos com atenção o Livro II, cap. X do Ensaio, notaremos que as referências à noção de prazer, de fato, parecem relacionadas à noção de bem-estar, preservação ocasionada no distanciamento da dor. Verifica-se, de qualquer modo, que a procura da preservação de si nunca deixa de falar sobre o desígnio divino, pois sem a presença da vontade divina não haveria nem o cuidado consigo próprio Desta forma, pode-se pensar que a compreensão de prazer e desejo em Locke é compatível com o pensar teológico e teleológico que ele endossa. Assim, desejo em Locke configura-se como móvel da ação, o que não significa sustentar na sua definição de desejo a possibilidade de mutações imprevisíveis no campo do agir, ou ainda uma compreensão de desejo como um movimento que não tenha um princípio direcionador de natureza transcendente. A compreensão de prazer e desejo tem por conseqüência a tentativa de fundamentação do campo do agir humano, isto é, da ética, a partir das noções do bem e de virtude, que acaba por reduzir ação à idéia de aperfeiçoamento associada à idéia do modelo de perfeição divina. Neste ponto, pode-se conjecturar que há, na antropologia finalista de Locke, o interesse de postular a possibilidade de padronização na esfera dos comportamentos humanos “em nome do Pai”, e do próprio teísmo que o autor inglês endossa. Sem qualquer motivação de levantar uma querela sobre a verdade das inúmeras interpretações divergentes sobre uma noção específica em um autor, a título de observação, importa lembrar que ao se incumbir de fornecer inteligibilidade ao prazer e desejo e seguir a proposta cartesiana de defender a autonomia e eficácia da razão, ou seja, da possibilidade do conhecimento preciso –, seja no campo teórico quanto prático de atingir a verdade e realizar um aperfeiçoamento moral –, Locke não deixe de ter, como acontece na filosofia cartesiana, um alvo certo, inconciliável com o seu pensar teológico. O que Locke quer, ao apostar na racionalidade do prazer e do desejo, nada mais é senão repetir a tentativa cartesiana de derrocada da perspectiva OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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cética, que se expressa na filosofia de Hume no seu distanciamento do projeto cartesiano e lockeano de fundamentação do conhecimento em bases estritamente racionais. Assim, tanto em Locke quanto em Descartes o que se vê é o combate aos céticos, considerados seres não razoáveis, quando da suspeita em relação à capacidade da razão humana atingir um terreno sólido do saber, controlar suas paixões em nome de uma ética baseada, a partir da razão virtuosa. Ao se referir à máxima lockeana de que a “razão é único juiz e guia da ação” Polin ressalta justamente que é essa “[...] a regra que Locke segue sempre preocupado em manter distância em relação ao ceticismo” (1960: 57) e o comentador explica o caráter ontológico e teleológico presentes no combate de Locke ao ceticismo, quando esclarece ao leitor que, segundo o inglês: “Se não existissem relações originárias e necessárias entre idéias perenes para todos os tempos das quais podemos nos assegurar uma vez por todas, cairíamos irremediavelmente no ceticismo”. (1960: 79) Gostaríamos de finalizar a nossa análise relembrando as sábias ponderações de Gerárd Lebrun em seu artigo David Hume dans l’albun husserlian quando chama a atenção do leitor para o equívoco do pai da fenomenologia ao incluir Hume e não Locke como primeiro referencial da criação do projeto crítico: Descartes, sem dúvida, é o primeiro inspirador insubstituível, mas somente quando sua inspiração é revigorada pelo empirismo resultante de Locke é que a filosofia começa a tornar-se tecnicamente fenomenológica [...]. Locke foi o primeiro a procurar, partindo do cogito cartesiano, o caminho que conduziria a uma ciência do cogito, [...] é o primeiro a compreender que é preciso reduzir todo conhecimento até suas origens intuitivas originárias na consciência, na experiência interna e elucidar a partir dessas. (1982: 37-53)
Tudo leva a crer que o estudo da influência cartesiana e lockeana em relação ao projeto fenomenológico justifica-se, no mínimo, quanto à procedência em se conjecturar um desdobramento da filosofia da consciência intuitiva, cujo débito deve-se à continuidade do primado da reflexão intuicionista advinda do “empirismo 246
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lockeano”. Tal estudo torna-se ainda promissor na possibilidade de se poder demarcar distinções entre uma compreensão ontológica da experiência perceptiva, de caráter representacionista, e outra que se distancia do terreno ontológico, quando mantém de forma radical a redução de idéias às impressões e, assim, finda por frustrar qualquer pretensão de construção de um projeto fundacionalista do saber, a partir das noções de reflexão e autoconsciência. O leitor cuidadoso não ignorará o fato que tal pesquisa demanda um estudo mais aprofundado que ultrapassa o limite deste trabalho que se ocupou, de forma precisa, sobre o caráter ontológico e teleológico das noções de prazer e de desejo em Locke, sinalizando seu débito à filosofia cartesiana.
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* Maria Magdalena Cunha de Mendonça é doutora em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas.
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Apolo Belvedere Localizado no Museu Pio-Clementino, Octagon, Apollo Hall 250
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O olhar de Apolo
A arte como momento negativo na constituicao da esfera publica Ezequiel Ipar*
A arte é a antítese social da sociedade. Theodor Adorno (ÄT: 19)
A constituicao da esfera publica e o momento paradoxal da arte
Na historia do conceito de esfera pública (Öffentlichkeit), que tem adquirido uma importância crescente na discussão acadêmica referida aos dilemas da comunicação e a cultura das sociedades contemporâneas, a obra de Jürgen Habermas continua representando uma fonte imprescindível. Foi ele quem deu um caráter abrangente ao conceito (podendo utilizar-se no estudo não só da esfera pública política, mas também da literária, científica, moral etc.) e quem elaborou a partir desse conceito uma perspectiva de filosofia social consistente (sua conhecida Teoria da Ação Comunicativa). Já no seulivro Historia e crítica da esfera pública tinha tentado oferecer um estudo histórico que servisse de paradigma para as investigações empíricas da esfera cultural do capitalismo tardio e que permitisse dar conta da sua complexa articulação com o mercado e o Estado. Este trabalho continuava, a seu modo, as investigações da primeira geração da escola de Frankfurt (fundamentalmente os trabalhos de Benjamin, Adorno e Horkheimer) sobre a lógica da cultura de massas e OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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sua dependência dos novos agentes econômicos monopólicos. Em termos históricos o conceito de esfera pública, entendido como o espaço no qual os cidadãos podem comunicar-se entre si e ocupar-se dos temas do interesse geral sem ser coagidos, (HABERMAS: 1990) permitia contrapor a experiência da politizada e crítica opinião pública (öffentliche Meinung) das sociedades burguesas em sua etapa liberal (séculos XVIII e XIX) com aquela que existia efetivamente após o surgimento dos grandes meios de comunicação do século XX (o rádio, o cinema, a televisão) nas sociedades pós-liberais ou de estado social de bem-estar. Porém, esta crítica de Habermas não tinha exclusivamente uma significação histórica. Ela ia implicitamente dirigida, também, contra as insuficiências teóricas que ele encontrava no conceito de indústria cultural de seus antecessores, o qual - segundo ele - permitia pensar à lógica cultural das democracias capitalistas exclusivamente a partir da idéia da “mistificação das massas”. Num sentido superador, o conceito de esfera pública permitia a Habermas criticar a degradação e a manipulação da vida cultural nas sociedades modernas, evitando, ao mesmo tempo, os diagnósticos sombrios que desfiguravam a complexa realidade das disputas simbólicas entre interesses opostos que podem existir no sistema cultural das sociedades democráticas, quando estas garantem normativamente a liberdade de expressão e de acesso aos espaços de deliberação coletiva. De fato, este foi um dos argumentos centrais que o levaram, vinte anos depois, à sua própria Teoria da Ação Comunicativa, onde ele tenta superar o que considera o grande erro de Adorno e Horkheimer, quer dizer: o fato de haverem-se concentrado na construção de uma filosofia da história da dominação total do indivíduo, descuidando das possibilidades da ação racional e da resistência ao poder que surgem da construção de valores, tanto por parte dos distintos grupos sociais que participam da vida moderna, como dos indivíduos que os integram. (HABERMAS: 1995a: cap. 4) Isto explica porque quando Habermas quer pensar a “debilitação das funções críticas da opinião pública” (öffentli-
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che Meinung)” (HABERMAS: 1990: 225 y ss.) utiliza o legado do conceito de indústria cultural, ainda presente com força em seu diagnóstico da “colonização do mundo da vida” (HABERMAS: 1995b: 239 y ss.) e da destruição da autonomia das distintas esferas de valores (morais, estéticos, cognitivos). E porque, pelo contrário, quando Habermas quer pensar um conceito de ação racional que esteja à altura das dificuldades, mas também das potencialidades das sociedades modernas avançadas, ele tem que criticar o conceito de indústria cultural por excessivamente determinista e simplificador. O desenvolvimento de seu conceito de esfera pública, com seus diferentes campos de aplicação, lhe permite realizar esta dupla tarefa, já que nela é que se dão tanto os intentos por manipulá-la, instrumentalizá-la e pô-la ao serviço de interesses privados, como os esforços para tentar expressar outras opiniões e outros interesses, exercidos por grupos que resistem à privatização das discussões referidas ao interesse geral, voltando a abrir assim continuamente, pela própria lógica interna da esfera pública, o jogo deliberativo. É sabido que este conceito de esfera pública recebeu múltiplas leituras e críticas, referidas fundamentalmente a seu valor explicativo para dar conta (ou não) da lógica através da qual são gerados e se expressam os conflitos sociais contemporâneos. (CALHOUN: 1994) Porém, o ideal da liberdade comunicativa postulado por Habermas encontrou, por motivos que nos interessará analisar logo mais, as maiores dificuldades no momento do confronto com a arte e a experiência estética. O conceito de esfera pública sustenta uma relação de complementaridade positiva entre as esferas autônomas da cultura e as potencialidades do mundo da vida dos sujeitos que parece não tolerar o autêntico conteúdo da arte sem deformá-lo em uma doutrina da formação cultural de difícil atualidade. Pelo contrário, o filósofo e crítico Christoph Menke tem desenvolvido uma interpretação da autonomia da arte moderna que depende - e assim deveria concebê-lo a teoria crítica essencialmente, da sua realização em termos de relação negativa, pela qual a experiência da obra de arte caracteriza-se por promover uma negação eficaz das outras formas de produção do sentido socialmente válidas. O confronto entre a perspectiva de Habermas e a de Menke sustentaOLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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se, evidentemente, na sua diferença em relação a Adorno e na sua divergência sobre os dilemas que a arte enfrenta no mundo contemporâneo. Para Habermas a arte, para não ser estéril, deve interatuar positivamentecom as outras esferas culturais (moral, ciência, política, religião), colaborando assim no processo da livre formação da identidade dos sujeitos. O sítio da arte no intercâmbio simbólico é, com efeito, formalmente diferente daquele da moral ou da ciência (porque ela não depende da univocidade dos conceitos e é portadora de uma riqueza perceptiva e afetiva da qual as outras esferas carecem), mas converge com elas na constituição de uma inter-subjetividade que tem por finalidade a identificação recíproca dos sujeitos participantes em um marco de valores compartilhados. Habermas estabeleceu sempre uma relação clara e estreita entre a função da interação positivadas esferas de valor diferençadas da modernidade e a função daconstituição da identidade dos sujeitos. A esfera pública seria precisamente o espaço simbólico no qual ambas as funções poderiam ativar-se seguindo critérios de reciprocidade, liberdade e igualdade. Enriquecer criticamente esse marco axiológico, fornecer o elemento expressivo que fica ausente das outras esferas culturais, é a autêntica função - para Habermas - da relação positiva na qual a arte deve inserir-se, completando assim sua existência autônoma. Contrariando essa interpretação de Habermas, Menke reconstruiu um diagnóstico da potencialidade da arte nas sociedades contemporâneas que depende exclusivamente da idéia de interação negativa. Para Menke, a negatividade do conceito de autonomia é chave para prantear adequadamente esta questão e a obra de Adorno é particularmente apropriada para essa formulação. (MENKE: 1997) A situação paradoxal na qual Adorno tinha situado, na sua Teoria Estética, a arte, ao compreendê-la como um momento anti-social da sociedade, aponta contra a idéia de uma arte que serve ao princípio de individuação e identificação subjetivo. De fato, o contrário poderia ser considerado como certo no caso da arte moderna. Menke descobre que a difícil experiência da autonomia da arte não pode ser compreendida, sob nenhum aspecto, a não ser que a perspectiva teórica ultrapasse a idéia de
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complementaridade das esferas culturais e compreenda a relação de oposição e subversão que a arte promove na sua relação com as formas convencionais pelas quais a identidade (das coisas e dos sujeitos) circula socialmente. Se essa tese fosse válida, a arte transformar-se-ia, desse jeito, no momento negativo par excellence da constituição da esfera pública das sociedades modernas, tornando insustentável a tese do seu caráter complementar com as outras esferas culturais. Porém, para comprovar a legitimidade dessa posição de Adorno, várias aclarações devem ser feitas em relação a: o potencial explicativo da negatividade como chave para compreender a experiência estética; a estrutura dessa negatividade e seus efeitos. O que deve ser indagado, em primeiro lugar, é a potencialidade teórica que poderia ter uma fundamentação da idéia de autonomia estética baseada na negatividade, que define a existência da arte essencialmente por meio da oposição entre o mundo estético e o não-estético. Esse conceito de autonomia deveria poder operar negativamente, não só em relação ao discurso artístico tradicional, mas também em relação aos outros discursos socialmente válidos do “mundo administrado”. Para os requisitos exigentes desse conceito de negatividade estética que Adorno tentou formular já não basta a desarticulação e a novidade dentro do campo artístico. A negatividade da arte tem que ser capaz de intervir sobre a nova lógica cultural desencadeada pela indústria cultural, que descansa em uma série de operações discursivas e extra-discursivas (que são das ordens econômica, política e psicológica). Segundo Adorno, a articulação destas operações faz possível a organização econômica da cultura, a inscrição da arte no entretenimento e do entretenimento em funções de mercado, de modo tal que garantem a adesão massiva dos indivíduos a um sistema cultural repressivo. Quando analisamos suas operações cognoscitivas, encontramo-nos com o mecanismo subjetivo que Adorno denominou “compulsão identificadora” (Identitätszwang), que se õe ao que ele considerava o fundamento da identidade estética: a expressão OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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do não-idêntico (ÄT: 14). Aparece assim a grande diferença entre Adorno e Habermas. Se este último considera que a função da arte na constituição da esfera pública é garantir formas livres e enriquecidas de identidade, o primeiro considera à própria identidade simbolicamente mediada como aquilo contra o qual trabalha a liberdade artística. É evidente que a partir de aqui surgem duas idéias da esfera pública, dependentes a sua vez de dois diagnósticos da situação objetiva da arte (complementação das esferas de valor vs. negação por parte da arte da lógica interna das outras esferas simbólicas da sociedade). Para indagar seu conteúdo devemos começar, logo, pela revisão da idéia de compreensão identificadora,desenvolvida pela estética modernista e retomada, na sua Teoria Estética, por Adorno.
O problema do pensamento identificador na arte moderna
A idéia de compreensão identificadora foi utilizada pela primeira vez na teoria estética pelo poeta russo Victor Shklovski, para determinar o procedimento contra o qual opera o efeito singular da arte, efeito que ele tinha denominado por sua vez “estranhamento” (ostranenie). Embora Adorno não o mencione explicitamente na Teoria Estética, em toda sua concepção do caráter enigmático (Rätselcharakter) da obra de arte existem ressonâncias do conceito de ostranenie de Shklovski. Este conceito, que determina o efeito que permitiria a singularização da obra de arte, contém diferentes formulações possíveis, as quais, embora não sejam necessariamente contraditórias, orientam para uma ou outra posição teórica em relação aos fundamentos da autonomia estética. O problema com estas formulações diversas é que todas elas indicam distintos termos da oposição frente ao pensamento identificador e, portanto, diferentes alcances e conteúdos desta relação negativa. Por um lado, o estranhamento pode referir ao efeito que a arte produz, isto é, à possibilidade atualizada no sujeito de uma forma de conhecimento diferente
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ao conhecimento conceitual, que funciona ao modo de uma restituição ou intensificação de faculdades perceptivas que são constantemente minguadas ou adormecidas no trabalho habitual da vida racionalizada. Quem se estranha é o eu racional frente ao que lhe provê, no plano da experiência, a revitalização e intensificação destas faculdades adormecidas. Shklovski apresenta esta formulação do efeito de estranhamento como o resultado da oposição entre o conhecimento orientado no sentido do reconhecimento dos objetos da experiência (compreensão identificadora) e o conhecimento que depende de formas de percepção imediata que acessam exclusivamente a singularidade dos objetos da experiência (conhecimento prévio a qualquer processo de identificação).1 O conceito de estranhamento delimita negativamente essas duas formas de conhecimento não subsumissas uma a outra, que são postas através da arte como reciprocamente opostas (o reconhecimento como a negação da percepção imediata, mas também esta última como negação do reconhecimento). Derivada desta diferença em relação ao conhecimento conceitual surge a segunda interpretação, orientada pela pergunta referida à capacidade da arte para transcender os limites do acesso categorial à realidade. Por tratar-se a arte de um conhecimento, mas de um conhecimento que não depende de conceitos, a idéia de estranhamento como efeito produzido por ela pode indicar a particularidade do objeto que é causada experiência estética. Se a compreensão identificadora fica limitada no procedimento que pretende realizar o reconhecimento do finito e condicionado na experiência, o estranhamento que produz a arte bem pode ter sua origem no fato de que, através dele, o homem se relaciona com o infinito e incondicionado. Deste modo, o que é estranho é o autêntico objeto-causada experiência artística, em relação a todos os objetos da experiência possível para a mediação categorial. A arte como meio e espaço de abertura do incondicionado, do objeto da metafísica por oposição ao objeto da ciência, retoma a formulação kantiana que prometia para a experiência estética a possibilidade de acessar sensivelmente a coisa em si. 1 “Para dar sensação de vida, para sentir os objetos, para perceber que a pedra é pedra, existe isso que se chama arte. A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; os procedimentos da arte são aqueles da singularização dos objetos.” (SHKLOVSKI: 1970: 60)
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Finalmente, o conceito de estranhamento pode referir a uma diferença na modalidade da compreensão, com relativa independência de seu objeto e das faculdades que intervêm. O fundamental nesta acepção é a relação entre o tempo e o ato da compreensão: O procedimento da arte consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção é na arte um fim em si e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir do objeto: o que já está ‘realizado’ não interessa para a arte. (SHKLOVSKI: 1970: 60)
Poder-se-ia afirmar que recém aqui começa a novidade teórica de Shklovski. O efeito de estranhamento implica agora a suspensão e a prolongação no tempo daquilo que toda compreensão identificadora realiza, como se disséssemos, automaticamente. A negatividade da arte já não se daria como supressão de uma faculdade por causa da revitalização de outra, ou como superação de um objeto graças à aparição de outro superior, mas sim como interrupção e prolongação temporária das formas espontânea se automatizadas de compreender, graças ao assombro que inscreve nelas uma duração indefinida.
A particularidade da negacao estetica
Quando Adorno pensa o caráter enigmático da obra de arte e, com ele, a negatividade estética, o faz a partir de uma série de oposições que fazem lembrar esta idéia do estranhamento estético, em suas três formulações possíveis. À compreensão identificadora, que domina na vida prática, Adorno opõe o caráter enigmático e expressivo da obra de arte, nos seguintes termos: As obras falam como as fadas nas fábulas: “Você quer o incondicionado; você o terá, mas irreconhecível.” A verdade do conhecimento discursivo existe sem véus (Unverhüllt), mas por isso mesmo ele não a possui; o conhecimento que é a arte a possui, mas como incomensurável com o conhecimento discursivo. […] Finalmente, subsiste no caráter enigmático, através do qual a arte se opõe à existência inquestionável dos objetos da
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ação, o enigma que eles mesmos contêm. A arte transforma-se em enigma porque ela aparece como tendo resolvido aquilo que na existência é um enigma, enquanto que no meramente existente o enigma está esquecido devido a seu próprio endurecimento opressivo. Quanto mais compactamente cobrem os homens com a rede categorial aquilo que é outro em relação ao espírito subjetivo, mais profundamente se desacostumam do assombro frente à alteridade; com esta familiaridade se enganam sobre o estranho. A arte procura corrigir (wiedergutzumachen) isto debilmente. (ÄT: 191)
Resulta evidente nesta passagem que aquilo que Adorno opõe ao caráter enigmático da obra de arte é o pensamento conceitual, que ele coloca em uma situação de equivalência com a compreensão identificadora. A tarefa “corretiva” da experiência estética consistiria em superar a unilateralidade que a mediação conceitual estabelece sobre a alteridade. Entretanto, esta oposição não deixa de ser imprecisa para determinar a singularidade da negação estética, já que também o pensamento religioso e distintas formas de empirismo/vitalismo radicalizadas se opõem ao pensamento conceitual, sem que possam ser confundidos em si mesmos com a peculiaridade do estético. Essa ambigüidade colabora na incompreensão do pensamento crítico de Adorno e deve ser resolvida para utilizar sua teoria na análise da esfera cultural das sociedades contemporâneas. Em caso contrário, se essa ambigüidade persiste, a crítica habermasiana, que vincula seu pensamento a restos neo-românticos incompatíveis com a complexidade do presente, tornar-se-ia completamente acertada. Pois bem, apesar de Adorno nunca terminar de rechaçar a legitimidade da pergunta pelo incondicionado na arte a necessidade de um deslocamento para formas de conhecimento que transcendam o conhecimento conceitual dos objetos da experiência, não poderia afirmar-se que estas formulações do caráter enigmático da obra de arte sejam a única resposta de Adorno, já que a própria Teoria Estética contém elementos para sua transformação. Christoph Menke demonstrou como aquilo que habilita uma má compreensão deste problema na teoria de Adorno consiste na equiparação da “compreensão identificadora” com o trabalho do “pensamento conceitual”. Para Menke, essa equivalência implica uma determinação insuficiente do problema do pensamento identificador na arte e não alcança definir aquilo sobre OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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o qual opera negativamente a obra de arte. Como resultado disto, desconhece-se a essência radicalmente negativa do problema e se pretende reconhecer, na teoria de Adorno, uma superação positiva do conhecimento conceitual através da arte, seja por sua relação afirmativa com o incondicionado, ou por sua afirmação de faculdades não-racionais existentes no sujeito. Entretanto, não é difícil encontrar os elementos teóricos para reformular esta questão no próprio Adorno. A menção que ele faz referida à presença do incondicionado na obra de arte (“o conhecimento que é a arte o possui”), aparece relativizada, logo, na distinção entre o caráter enigmático da arte e os mistérios. Adorno os diferencia da seguinte maneira: O enigmático das obras de arte consiste em ser algo fraturado (Abgebrochensein). Se a transcendência estivesse presente nelas, haveria efetivamente mistérios, mas nenhum enigma”. (ÄT: 191)
Deste modo, não se pode pensar o enigmático da obra de arte com o cânone classicista que transforma a materialidade sensível da obra em um receptáculo perfeito para a manifestação simbólica do supra-sensível. Se a arte fosse uma mera “vasilha do supra-sensível”, o seria – para Adorno – na forma de uma vasilha farpada, quebrada, que já não consegue acolher seu conteúdo. A lógica que a transforma em um objeto cifrado, impenetrável para a compreensão identificadora ordinária, não provém, pois, da afirmação de uma instância transcendente, mas sim da imersão na existência, quando consegue: “descobrir os enigmas que ela mesma contém”. Adorno se opõe deste modo ao cânone classicista e romântico que quer ver na arte a manifestação adequada de uma significação transcendente em relação à finitude da experiência humana. O caráter enigmático não implica, por conseguinte, um momento de fusão significante, onde se soldariam o sentido supra-sensível com o corpo sensível da significação. A esta fusão, frente à qual o homem emudece (na contemplação desse objeto que está fora de seu alcance), Adorno reserva o nome de mistério e a exclui da experiência estética.
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Por outro lado, tampouco a acepção do enigmático como motivado pela revitalização de faculdades perceptivas não-racionais pode prosperar unilateralmente. Adorno foi muito crítico da desagregação analítica da obra de arte que pretende reconduzi-la a um conjunto de estímulos sensoriais. Para Adorno, não entende o conteúdo objetivo da obra de arte quem a subsume aos elementos sensíveis que mobiliza. Ao supor legítima esta redução “desapareceria a diferença da obra de arte em relação às meras qualidades sensíveis; a obra de arte formaria parte da empiria, seria a battery of tests, e o meio adequado para dar conta da arte seria o program analyzero u a pesquisa sobre as reações dos grupos às obras de arte ou aos gêneros”. (ÄT: 394) Mesmo que
se trate da revitalização de faculdades adormecidas, nunca é a partir de-
las que pode conformar-se a essência negativa do conteúdo da obra de arte. Supor esta determinação seria supor que a constituição objetiva da obra de arte tem como finalidade adaptar-se ao sujeito, convergindo assim “com os critérios da indústria cultural, que organiza seus produtos como sistemas de estímulos”. (ÄT: 395) A última das alternativas interpretativas disponíveis - que devemos analisar -sobre o fundamento do enigmático da arte é a criação ficcional. A diferença em relação aos demais objetos empíricos surgiria neste caso da possibilidade de transcender o existente, o estado atual das coisas, em uma realidade imaginária criada pela especificidade da produção artística. Aquilo que a aparência estética revela seria, deste modo, uma configuração da realidade que não pode existir no estado atual do mundo sob a rígida legalidade natural e social, tal qual a reconhece o procedimento objetivador da ciência positiva. Se o pensamento identificador pretende alcançar a determinação objetiva do estado de coisas do mundo, pode supor-se que a arte, enquanto negação determinada desse modo de proceder, se apóia nesse movimento de transcendência subjetiva da realidade que a tradição denominou fantasia. Assim estabelecida a oposição, aquilo que se levantaria contra o pensamento identificador seria a capacidade do sujeito para criar no plano da representação um mundo no qual não regem como restrições as leis que regulam o mundo social e o mundo natural, tal qual o conhecemos. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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A fantasia como fundamento da arte depende da idéia de creatio ex-nihilo, e por ela responde, na teoria moderna da arte, o conceito vulgar de invenção absoluta. Existe uma extensa fundamentação da autonomia da arte moderna que depende deste conceito de fantasia, cujo produto, a ficção artística, aparece como sua autêntica objetividade. Poder-se-iam oferecer múltiplos exemplos da presença deste conceito de fantasia na fundamentação da arte moderna. A antítese com o mundo social divulgada pelo princípio da art pour l´art não é alheia a esta consideração e se torna solidária da mesma crítica. Adorno a formulou a partir do exame do tipo de transcendência que ambas propõem. De fato, a negatividade que apresenta a fantasia artística cai facilmente em ideologia pelas mesmas razões que a teoria da arte pela arte fracassa em sua idéia, ao pretender uma autonomia e um prazer estético puros. Ambas neutralizam a negatividade da arte, mas não por sua oposição radical ao mundo existente, “mas sim pela abstração e a facilidade dessa antítese”. (ÄT: 351) A transcendência do princípio de realidade que faz possível o conceito de fantasia re-
cai em seu contrário quando, como se comprova em muitos autores do modernismo, pretende fazer do princípio construtivo da arte algo absoluto. O próprio caráter de criação a partir do nada implica um abandono da existência que faz da fantasia artística um mero complemento do mundo existente e não uma forma radical de negatividade. Adorno ressaltou acertadamente de que modo a eliminação de todo conteúdo que seja alheio à artística, vale dizer, que quebre sua condição de ser uma invenção absoluta, é precisamente a causa de sua recaída em um conceito dogmático do belo que anula a negatividade estética. A fórmula desta situação paradoxal diz assim: A idéia de beleza, que erige o princípio do art pour l’art em sua evolução post-baudelairiana, se bem não deve ser formal-classicista, amputa, não obstante, tudo conteúdo que não se submeta à lei formal da arte (inclusive em termos anti-artísticos), dobrando-se assim ante um cânone de beleza dogmático: com este espírito George lhe reclama em uma carta a Hofmannsthal o fato de que em uma nota de A morte de Tiziano deixasse que fosse a peste a causa do desenlace fatal do pintor. O conceito de beleza da art pour l’art se torna, ao mesmo tempo, vazio e muito determinado pela matéria. [...] A beleza, incapaz de determinar-se a si mesma, dado que só pode determinar-se em seu outro, fica enredada, como se fosse uma raiz aérea, no
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destino da invenção ornamental. Esta idéia do belo é limitada porque está em antítese imediata com a sociedade à qual rechaça como feia. (ÄT: 352)
A negatividade da fantasia deixa intata a divisão ideológica do trabalho que atribui à ciência a relação efetiva com a realidade e à arte sua transcendência abstrata. Esta passagem crítica da teoria de Adorno é de vital importância porque permite rechaçar, definitivamente, a freqüente acusação de esteticismo com que se carrega sua idéia de autonomia da arte e a dimensão utópica da sua filosofia social. Devemos chamar esteticista, pelo contrário, exclusivamente a essa autonomia que nega abstratamente o mundo que diz rechaçar e se assenta na lógica da totalidade social como uma esfera complacente e complementar, como pretendia a teoria habermasiana. O conceito de fantasia artística delimita perfeitamente o horizonte deste tipo de autonomia. Sua oposição à realidade objetiva e às faculdades identificadoras do sujeito, ao excluir todo conteúdo que não se submeta a seu princípio construtivo, constitui uma fuga superficial do existente, que se resolve na mera postulação de algo não existente como existente. Uma análise estética dos resultados deste procedimento de enriquecimento da experiência tem que mostrar como o princípio criador que anima o conceito de fantasia artística parte e culmina na mesma existência que a fantasia queria ter superado. Ao pretender determinar em si mesma a arte, a partir de um poder configurador superior, esta construção de objetos que não existem não consegue nada que, em seus elementos e conexões, não seja redutível a algo existente. Efetivamente, os momentos de criação livre são intrínsecos à produção artística. Mas, o conceito de fantasia artística pretende fundar nesses momentos, que têm que ser considerados como mediados imanentemente pelo existente, a autonomia de uma representação que não passa da “projeção inútil do existente”. (ÄT: 258-260) O caráter abstrato desta negação da realidade está determinado subjetivamente por
sua condição de fuga frente à realidade, e objetivamente pela eliminação absoluta do conteúdo das formas não-estéticas de compreensão. A debilidade desta negação faz que seus recursos fiquem confinados às possibilidades da distorção ou do desvio do curso normal das representações, construindo estas representações fantasiosas OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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uma transfiguração que não interrompe as formas de compreensão ordinárias, mas as deixa de lado ou as utiliza para seus próprios fins. Paradoxalmente, a autonomia assim conseguida, que se pretende pura e absoluta, torna-se complacente com o estado do mundo que queria rechaçar. A posição de Adorno parece sugerir que todas as anteriores conceituações da autonomia artística contém alguma unilateralidade e que só mediante a sua crítica recíproca poderia obter-se um conceito que estivesse à altura dos dilemas da arte nas sociedades contemporâneas. Nesse sentido, as posições que temos comentado acima devem ser pensadas como os extremos de uma relação dialética que operaria, agora sim, como autêntica instância da negatividade estética. Porém, neste caso, o outro da compreensão estética já não pode ser o pensamento conceitual, tornandose necessária uma nova definição do que Adorno chama “pensamento identificador”. Esta nova configuração da relação negativa que estabelecem, na Teoria estética, o caráter enigmático da obra de arte e o pensamento identificador, permite descobrir a estrutura radicalmente negativa e anti-teleológica da negatividade estética. Para avançar nesta linha da pesquisa, a certeira correção de Menke em relação aos automatismos da compreensão resulta particularmente importante: A noção de automatismo permite reformular a estrutura fundamental da compreensão não estética sem reduzi-la à univocidade definível do conceito. Pois o automatismo determina a oposição entre as duas formas de compreensão, a estética e a não estética, não em função da estrutura de seu objeto respectivo, mas em função da modalidade do cumprimento do ato mesmo da compreensão. São automáticos os atos de compreensão que terminam em uma identificação do objeto que é compreendido por meio de convenções. Pelo contrário, os atos não automáticos são os que acabam em um processo de identificação sem a ajuda de convenções. Embora ambos os modos de compreensão façam intervir a identificação, só a identificação automática é identificação no sentido de Adorno. Na compreensão automática, a compreensão é um resultado; na compreensão estética, é um processo. (MENKE: 1997: 53)
A partir desta aclaração dos termos da oposição de Adorno, pode pensarse a negatividade estética como o movimento que torna possível a autonomia da arte 264
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não por seu objeto transcendente, suas faculdades extra-ordinárias ou sua capacidade de abstração em relação como o real, mas por sua capacidade imanente de interromper e suspender as formas da compreensão identificadora que prevalecem na esfera pública racionalizada. A tese de Adorno postula que é o núcleo temporal da obra de arte o responsável por essa singular capacidade de interferir no normal funcionamento da compreensão identificadora, sendo essa a sua diferença específica em relação às outras formas de oposição possíveis. Por levar este aspecto temporal da obra até o centro da sua negatividade, Adorno realiza uma fundamentação polêmica da autonomia estética. Poderia parecer uma contradição, mas para Adorno a autonomia da arte é, de fato, um processo sempre inacabado, um devir autônomo e nunca algo conseguido de uma vez e para sempre em termos histórico-institucionais. Aqui se torna decisiva a exposição adequada da oposição ao pensamento identificador, esse plano de fundo sobre o que se recorta a necessidade da diferença da arte. Frente às três formas da negação do “pensamento identificador” que examinamos, isto é, o mistério, o caos de sensações e a fantasia, distingue-se a negatividade estética que procura fundamentar Adorno, graças à categoria do caráter enigmático da obra de arte, pela definição da mesma a partir do caráter processual da compreensão que suscita. (ÄT: 183 e ss.) Menke observou com muita precisão esta questão. Em sua leitura da experiência da negatividade estética, essa negatividade não se constitui a partir de um uso excepcional das faculdades perceptivas, nem do conhecimento de um objeto extraordinário, nem da negação abstrata do uso habitual dos signos que encerram a representação objetiva do mundo, mas a partir da “desautomatização dos procedimentos ordinários de identificação”. (MENKE: 1997: 55) Deste modo, o outro do pensamento identificador já não é algo em si existente (o supra-sensível, as sensações não-habituais, as fantasias), mas a negação da existência, o outro da existência: o devir. O caráter processual da obra de arte pode funcionar adequadamente como categoria da negatividade estética (radicalizada), não por sua capacidade abstrata para anular o conteúdo da compreensão identificadora, mas sim por sua própria condição negativa, por não ser nada fora dessa negatividade que OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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destrói de dentro o pensamento identificador. Ao suscitar no ato automatizado da compreensão da vida ordinária um processo, a intervenção da arte não erige uma segunda realidade rebelde, oposta à primeira realidade do mundo ordinário, mas transforma a compreensão da realidade de algo existente em um devir. A alteridade da arte não se dirige neste caso para a afirmação de outro mundo ou para a compreensão de outras coisas diferentes das habituais, mas interrompe o mecanismo que estabelece a identificação e o reconhecimento do mundo nas diferentes esferas da vida social. Essa negação não nos permite “compreender outra coisa, mas compreender de outro modo”. (MENKE: 1997: 55) Tal como o estabelecia a autêntica idéia de Shklovski, a arte não nos oferece a experiência do estranho em presença do desconhecido, mas a capacidade para sentir estranhamento frente ao que conhecemos muito bem; como diria Adorno, tão bem que apagamos nele “a experiência da alteridade”. A correção que a obra de arte produz desencadeia uma série de dificuldades na “espontaneidade” do ato da compreensão, interrompe-o inscrevendo-o em um processo de duração indefinida e o libera da exigência de consumar-se em um resultado. Só neste sentido pode dizer-se que a negatividade estética é aquela que se opõe e subverte o pensamento identificador.
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Apolo com a cítara e serpente Píton. Localização: Museu Britânico, Londres.
O olhar de Apolo, ou do lugar da arte na esfera publica
Se a situação paradoxal na qual Adorno situa a arte difere daquela situação de complementaridade positiva postulada por Habermas, é necessário destacar que essa diferença produz múltiplas conseqüências no próprio conceito de esfera pública no qual essa arte circula. A idéia de publicidade com a qual trabalha o conceito habermasiano está marcada pela idéia de abertura e transparênciado espaço no qual o olhar dos sujeitos vai intervir. (HABERMAS: 1990: 58 y ss.) Essa abertura e transparência na qual é situado o objeto, a coisa em questão, é para Habermas a autêntica condição da possibilidade da participação livre e igualitária dos sujeitos na vida em comum. Pelo contrário, a análise da arte moderna leva Adorno a considerar que a abertura e a transparência não são condições suficientes para garantir a desejada liberdade e igualdade. Se no caso da interpretação de Habermas o espaço público é aquele espaço no qual os olhares dos sujeitos são confirmados entre si através da livre apreciação, argumentação e deliberação sobre o sentido do objeto, para Adorno a arte introduz, a partir do próprio objeto, uma negatividade tal no espaço em comum que desestrutura o olhar dos homens sobre as coisas e sobre si mesmos. Essa é sua potencialidade crítica, que lhe permite intervir de um modo mais profundo na constituição da esfera pública. A relação negativa entre a arte e as diversas formas da compreensão identificadora da vida prática racionalizada deslocam o problema do público, colocando em questão um momento prévio ao da argumentação e deliberação que se faz inter-subjetivamente, fazendo possível a interrogação da modalidade pela qual se consegue a identidade das coisas e dos sujeitos que intervêm nessas deliberações. É neste sentido que a negatividade estética pode devir - para Adorno - expressiva dos conflitos sociais que foram naturalizados nas formas dominantes da cultura. Desse modo, a idéia de esfera pública ou espaço público inclui um momento anterior e uma refletividade maior àquela que o conceito de Habermas permite pensar. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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Ao reconstruir a tese de Adorno, que afirma que a arte introduz no ato da compreensão identificadora um processo de duração indefinida, tentamos mostrar como, nela, a unidade de sentido é sempre algo instável que torna, por sua vez, instável tudo o que a rodeia. O objeto estético seria aquele que nega o automatismo da compreensão mediante o curto-circuito de seus momentos, impedindo que se realize essa passagem contínua e espontânea do significante no significado. Por isso ele não é um objeto superior, mas um objeto que contém um conflito interno de tal intensidade que só pode existir como devir. Enquanto operação negativa, a arte tem que ser pensada como um agente que corrompe de dentro a compreensão identificadora, ao afetá-la com uma processualidade que torna impossível a unidade plena de seu resultado. O caráter enigmático da arte se corresponde com sua fecunda vida parasitária no interior das formas ordinárias da compreensão, que desloca e separa seus momentos.Neste sentido pode afirmar-se, sem incorrer em flagrante contradição, que a negatividade estética se dá no interior da linguagem e, simultaneamente, que a negatividade estética se dá contra a linguagem, marcando deste jeito decisivamente a esfera pública com um princípio negativo que não depende nem de princípios morais, nem de princípios religiosos. Para explicar este efeito do caráter enigmático da obra de arte sobre a esfera pública Adorno utilizou, em sua Teoria Estética, um belíssimo poema de Rilke: O torso arcaico de Apolo, que serve para ilustrar tanto a perspectiva que abre no espaço a obra de arte, como a relação com o sujeito que ela torna possível: O verso de Rilke “pois aí não há nenhum lugar / que não olhe em você”, do qual Benjamin tinha uma grande opinião, codificou de uma maneira nunca superada essa linguagem não significativa das obras de arte: a expressão é o olhar das obras de arte. Em comparação com a linguagem significativa, a linguagem das obras de arte é mais antiga, mas ainda não se realizou (Uneingelöstes): como se as obras, através da disposição de seu ser, refletissem no sujeito (durch ihr Gefügtsein dem Subjekt sich anbilden), repetissem como ele surgiu e se desenvolveu. As obras de arte têm expressão não onde comunicam ao sujeito, mas onde vibram com a pré-história da subjetividade. (ÄT: 172)
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Ao afirmar que o momento negativo da obra de arte no espaço público gera um conflito com os códigos de significação das outras esferas da vida social, Adorno faz uma interpretação deste conflito muito peculiar. Ele destaca a potência de um olhar que parte da própria obra em direção ao lugar de donde ela é, por sua vez, observada. Um olhar que provém de todos os lados do objeto observado, e que se torna significante para um sujeito que desconhece sua linguagem, porque aquela com a qual ele poderia compreendê-la “é mais antiga” que essa linguagem de que ele dispõe. Adorno agrega, entretanto, que “essa linguagem ainda não foi realizada”. Esta natureza contraditória, ativa, interrogadora e escorregadiça da estranheza estética constitui a especificidade que diferencia a obra de arte dos outros signos que circulam socialmente nas outras esferas da comunicação pública. É por isso que a alteridade da experiência estética frente ao horizonte do espectador não vem, como na mera experiência do desconhecido, de que ele dirige seu olhar a uma realidade estranha, mas sim de que um olhar estranho volta-se sobre sua própria realidade. A condição para a liberdade e igualdade em uma autêntica democracia cultural começaria - para Adorno - a partir da incorporação legítima dentro da esfera pública desse tipo de olhares estranhos e reflexões desestruturadoras que provêm do próprio objeto e interpelam a soberania do sujeito. Esse é o olhar do Apolo de Rilke, que transforma o caráter enigmático e a negatividade da obra de arte em um paradigma de outra forma de comunicação no espaço público. Essa forma “ainda não foi realizada”, mas existe já no trabalho negativo do traço da arte.
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* Ezequiel Ipar é Doutor em Ciências Sociais (UBA) e Doutor em Filosofia (USP); Professor da Faculdade de Ciências Sociais (UBA) e da Faculdade de Humanidades da Universidade Nacional de Mar del Plata; Bolsista pós-doutoral de CONICET.
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A MÚSICA NA MODERNIDADE: Uma reflexao sobre as ideias de Nietzsche, Weber e Rousseau1 Luciana Cristina de Souza*
RESUMO: A compreensão da música enquanto arte e também como meio de expressão do discurso humano se transformou definitivamente a partir do racionalismo moderno, cuja ordem e capacidade de sistematização impuseram métodos de estudo e execução musical muito mais afeitos à técnica, do que propriamente à criação do autor. Embora a beleza das melodias ainda seja o grande atrativo para o ouvinte, na Modernidade, a racionalização do estudo musical foi acompanhada pelo constante progresso dos instrumentos e mesmo da escrita por partituras, dicotomizando fortemente a música erudita, pertencente ao mundo civilizado, do simples cancioneiro popular. O processo de transformação da sociedade moderna, inevitavelmente, afetou também suas produções musicais, que passam a buscar perfeição em sua tecnicidade, única forma de expressão, por este meio de comunicação, adequada ao pensamento da época. Considerando as idéias de Weber, Rousseau e Nietzsche sobre o tema, faz-se uma pequena reflexão sobre sociologia da arte: descrevendo a perspectiva racional do modo de tradução do pensamento humano em música – como leciona Weber; ouvindo prudentemente as críticas nietzscheanas aos que sacrificam o dom do criador em prol de outros valores mais mesquinhos, que comprometem a verdadeira arte; e, respeitando a mágoa rousseauniano pela perda cultural da linguagem perfeita ao se extrair a musicalidade dos helênicos para adotar o tecnicismo. Apesar disso, estes três grandes teóricos da Modernidade puderam analisar o gradativo “evoluir” da música, cada qual em seu contexto cultural, conservando em si a sensibilidade dos apreciadores. PALAVRAS-CHAVE: racionalidade, música, modernidade
Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada, juntamente com o Prof. Renarde Freire Nobre, com o qual cursei disciplinas no mestrado em sociologia da UFMG. A opção pelo tema deste artigo surgiu, ao constatar que tanto Nietzsche quanto Weber indicava a música como um meio mais próprio para nos expressarmos. Nietzsche, devido à perfeição da arte, da criação do artista, que é livre de todos os limites e distorções que permeiam a retórica. Weber a apontava, na Modernidade, como uma técnica mais avançada, a qual, se não era mais rica culturalmente que as culturas de outros povos, era sem dúvida um processo de aperfeiçoamento instrumental mais científico e, portanto, uma forma universalizada de expressão. Fazendo uso do livro de De Man, Alegorias da Leitura, optei por ampliar esta discussão e incluir as análises de Rousseau, cujas idéias com certeza atingiram, ainda que em diferentes graus, a formação dos dois autores anteriores. Rousseau também apresentava algumas proposições interessantes a respeito da relação entre a música e a retórica. Por isso a idéia de escrever um ensaio a respeito do quanto a Modernidade, em diferentes modos, alçou para a música um podium mais alto do que o da linguagem. E o quanto, para estes três estudiosos, ela representava um prazer estético a ser preservado. Em razão da perspectiva espácio-temporal adotada – a Europa dos séc. XVIII e XIX – não serão analisados neste texto os paradigmas e as inovações surgidos durante o período novecentista.
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Apolineo e Dionisiaco
A potencia artistica eterna e originaria ... em Richard Wagner em Bayreuth o liame entre música e palavra é mais estreito do que o encontrado no primeiro livro de Nietzsche (O nascimento da tragédia). Enquanto naquele livro a palavra acrescenta-se à música tão somente como um elemento de proteção contra o seu poder de conduzir os homens ao estado de natureza, onde seria aniquilada a sua individualidade, neste, a palavra, o visível, une-se à música para expressá-la. (DIAS, 85-86)
Ao tratarmos de um pensador cuja vida foi permeada de inconscientes relações musicais, em suas próprias palavras, cujo critério estético pautou-se em valores artísticos “puros”, livres de qualquer vaidade pessoal, mas repletos de orgulho da obra, não poderíamos evitar considerá-lo um visionário dentro dos tempos modernos. O mecanicismo industrial, o crescente individualismo moral, por fim, todo um desencantamento – como visto por Weber – da sociedade daquela época poderia ter ocasionado em Nietzsche um “abandono da vida”, ou um forte sentimento de desesperança weberiano, um excessivo realismo talvez. Todavia, longe de ser um utópico, este filósofo contrariou sua descrença pessoal na convivência humana e transformou-se em um artista de sua obra. Motivo pelo qual foi tido como louco, isolacionista e tantas vezes incompreendido pelos de seu tempo. A evolução de sua “produção artística” aproximou-o cada vez mais da música, compondo, inclusive, algumas peças. Aliás, é reconhecida a musicalidade das palavras e aforismos nietzscheanos, seu ritmo potente, sua força pulsante, conquanto seu talento como músico não seja tão prestigiado. Em a relação com o artista é uma identificação com os valores de liberdade da criação, de intensidade. Jamais se submeteria às convenções métricas, quer das partituras quer das regras sociais, em prejuízo da qualidade daquilo que criava. A arte representa o prazer e a tragédia. 274
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Tanto é o mundo das sensações, quanto é o local do amargo, do sofrimento. Como a própria vida e a natureza, a arte verdadeira acolhe, sem reservas, todos os acontecimentos num fluxo contínuo. Há um movimento que sustenta a vitalidade da obra, externo ao indivíduo, fora de seu controle. A criação ultrapassa o esperado pelo seu criador pela potência da vida que ela contém, sempre em aumento e sempre em transformação. O imaginário artístico contrapõe-se ao realismo moderno. Na literatura nietzscheana, a música se insere no conceito da arte grega. Música e palavra recordam os embates entre o apolíneo e o dionisíaco, “dois impulsos antagônicos, duas faculdades fundamentais do homem: a imaginação figurativa, que gera as artes da aparência... e a potência emocional, que dá voz e vez à música”. (Op. cit., 12) A canção popular e a poesia lírica representam a harmonia perfeita; a melodia musical retrata o mundo e suas nuanças, enquanto a palavra, expressão dos sentimentos do artista, tem contida por aquela seu vício de emitir conceitos e juízos – “Na poesia da canção popular vemos, portanto, a linguagem empenhada ao máximo em imitar a música...”. (NIETZSCHE: 1992a, 49) Disto deriva a forte crítica empreendida por Nietzsche à Sócrates, de que este e Eurípedes houvessem destituído de sua musicalidade o discurso grego, restringindo a função da palavra à proposição de argumentos, à retórica. Opõe-se, também, à perspectiva moral da palavra e da música, motivo de suas duras críticas a Wagner, posteriormente. Condena o uso dos instrumentos estéticos para proferir-se juízos e máximas de valor, especialmente de cunho religioso ou metafísico. A essência da arte está em se ater à vida e nela desenvolver o seu potencial, por isso, o ascetismo é refutado por este filósofo, visto que a música não se destina a um fim, mas reflete o próprio movimento das coisas. Conjuga palavra e melodia em ditirambos, que de tempos em tempos se repetem, como um coro de OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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vozes em um eterno retorno da canção. O asceta, para Nietzsche, jamais será um artista. Ele se prende a um sistema de valoração dos acontecimentos que é por demais humano. O artista ultrapassa as convenções, transvalora com sua criação a realidade que o cerca. O gênio vive livre de regras e de opiniões; julga a si mesmo conforme o seu próprio critério e avalia-se por si mesmo, sendo o protótipo do homem nobre. Procura, incessantemente, impingir sempre maior potência àquilo que cria, voltando-se para a obra-prima sem, no entanto, ater-se a ela. Ao contrário, cada criação impulsiona-o a outra, ao movimento vital. Alheio às convenções humanas, o artista está livre para realizar plenamente seus desejos na sua arte, ausente qualquer consciência moral.2 O ideal ascético corrompeu não apenas a saúde e o gosto, corrompeu ainda uma terceira, uma quarta, uma quinta, uma sexta coisa – eu me guardarei de enumerar tudo (quando chegaria ao fim?)... ele não se submete a poder algum, acredita, isto sim, na sua primazia perante qualquer poder, na sua incondicional distância hierárquica em relação a qualquer poder... (NIETZSCHE: 1992b, 135)
O ascetismo simboliza todo o transcendentalismo rejeitado por Nietzsche. A que começará depois, após a renúncia, após o sofrimento, após a justiça dos ressentidos acontecer. Uma que há de vir, mas que ainda não é. O ideal ascético direciona todos os esforços humanos para longe da realização do indivíduo em si mesmo, e o conduz a uma realização expectante. Isso é imobilidade, segundo o filósofo, é estagnação e perda de vitalidade, provocando um imenso desperdício de potência. Contudo, é aceitável esse pensamento no homem que desconhece a nobreza nietzscheana. O homem escravo realiza-se desse modo: aguarda uma atitude vital do outro para a sua própria vida, reduz sua existência ao movimento praticado pelo outro, não 2 “Antes que a arte polisse nossas maneiras e ensinasse nossas paixões a falarem a linguagem apurada, nossos costumes eram rústicos, mas naturais... Não se ousa mais parecer tal como se é (...) De que serve procurar nossa felicidade na opinião de outrem, se podemos encontrá-la em nós mesmos?” Desta forma, em seu Discurso sobre as ciências e as artes, Rousseau reflete a idéia do valor do homem em si mesmo, mais tarde repetida por Nietzsche ao descrever o homem nobre, aristocrático, possuidor de seu próprio valor. (ROUSSEAU: 1973, 344 - 360)
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por si mesmo. É um ressentido, pois se o movimento esperado se frustra, sua vida não se realiza e isto gera a contra o outro levantada e contra si mesmo. O homem ressentido é um destruidor que se contrapõe ao homem nobre, criador e, portanto, artista. E este encontra na sua obra a alegria e a tragédia da vida, como Dionísio, o sacerdote itinerante da Grécia e as loucas mulheres de Tebas que o acompanhavam. O dionisíaco é o dissonante, ele não se adapta à vida em sociedade; ao contrário, vive solitário pelas florestas, um andarilho cujos seguidores são unicamente aqueles que perderam a razão. Rejeitado por sua cidade natal, Tebas, ele se vinga atraindo as mulheres tebanas às orgias das florestas. Leva-as a transgredirem as regras de comportamento da cidade e as enfeitiça para que vivam em um mundo de sensações, sem juízos de valor, em um festejar a vida incessante. Segundo Jean-Pierre Vernant, Dionísio restabelece os laços com o divino, “não durante uma festa ou uma cerimônia, para a qual os deuses são convidados, mas logo se retiram, e sim na própria vida humana, na vida política e cívica de Tebas tal como ela é.” (VERNANT: 2000, 153) O deus errante do panteão grego “de lugar nenhum e de todo lugar” (Op. cit., 144) é o mais próximo dos homens, estabelecendo com eles uma relação diferenciada daquela imposta pelos demais deuses. Apolo é o deus da beleza, da estética. A perfeição alcançada pela verdadeira beleza gerada pela arte. Nietzsche é Dionísio, o andarilho e sua sombra, livre de laços. É também Apolo, o artista em busca de sua obra-prima, a perfeita criação da estética artística. Sua força reflete toda a sua vontade de potência, sempre em movimento e sem qualquer ascetismo ou pretensão de corresponder a um juízo de valor, transgredindo toda lógica formal. Coexistem em Nietzsche o apolíneo e o dionisíaco. Música e mito trágico são de igual maneira expressão da aptidão dionisíaca de um povo e inseparáveis uma do outro. Ambos procedem de um domínio artístico situado para além do apolíneo; ambos transfiguram uma região em cujos prazenteiros acordes se perdem encantadoramente tanto a dissonância como a imagem terrível do mundo; ambos jogam com o espinho do desprazer... Aqui o dionisíaco, medido com o apolíneo, se mostra como a potência artística eterna e originária... (NIETZSCHE: 1992ª, 143)
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Sendo uma cultura manifestada pela tragédia, o helenismo carrega em sua arte também o pessimismo frente à vida. Somos jogos dos deuses, brinquedos em suas mãos. Não há destino, não há justiça de recompensas; apenas vida, com sua dor e seu prazer e, tanto um quanto o outro para serem experimentados pelo homem. Conforme Nietzsche, esse povo tão belo possuía uma necessidade de tragédia. Todavia, a vitalidade com que os gregos desenvolviam sua arte era uma prova de que o pessimismo não fosse somente um signo do declínio. Representava, ainda, a fortitude, uma plenitude da existência que somente o homem nobre, com sua força pode ser capaz de viver. È o símbolo do apolíneo, que carrega o destino de ser, na obra de Nietszsche, a outra face do dionisíaco. Mais visível torna-se a defesa nietzscheana do espírito artístico, quando se distancia de Schoppenhauer e Wagner. À medida que estes autores denotam em suas obras a clara distinção entre bem e mal, Nietzsche rejeita-os por se aproximarem do cristianismo. Em Wagner critica Parsifal, o herói casto wagneriano, no qual sexualidade e castidade são tidos como elementos dissociados do indivíduo. Essa separação de fatores próprios do ser humano, às vezes em equilíbrio, outrora não, constitui um erro do ponto de vista nietzscheano. O mesmo erro, segundo ele, cometido pelo cristianismo: induzir o maniqueísmo, atribuir todo o mal ao mundo real e o supremo bem ao mundo ideal e transcendental. Para Nietzsche isso representa a ção da vida, a sua negação e, ainda, a supressão de toda potência que poderia ser realizada. Inibem-se as forças que geram o movimento da vida.3 Esta seria uma atitude dos fracos, dos que rejeitando a tragédia, perdem a alegria e cujo sofrimento é ascético, visa a recompensa futura. O homem nobre exala sua vontade de potência, sua força vital nesta vida. Em razão de considerar 3 Weber compartilhava da posição crítica da obra wagneriana firmada por Nietzsche, embora em um grau de intensidade muito menor. Parsifal é uma decepção para ambos. Weber acusa Wagner de impregnar sua música com uma estranha mescla de sensualidade e simbolismos cristãos, tornandoa impura enquanto arte. Também contrasta a “doçura vazia” dessa obra com a “verdade e grandeza artísticas” de Tristão e Isolda: “Gostaria de conhecer bem o grande mago, uma vez mais na melhor versão possível, e em companhia de uma pianista amiga nossa (Mina Tobler), porque nem sempre estou de acordo com ele. Junto a uma grande admiração por sua habilidade, há uma aversão a muitas coisas espúrias e artificiais”. (...) “Parsifal é uma obra que já não representa Wagner em seus plenos poderes artísticos... Ao contrário, Tristão foi o tipo de grande experiência que raras vezes se tem, de uma obra de grande verdade humana e de beleza musical sem paralelo”. (WEBER: 1995a, 470 e 471 – tradução nossa)
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ser impossível à massa viver dessa maneira, Nietzsche se afasta cada vez mais até dos amigos. Mas se aproxima da música crescentemente, notadamente italiana após suas viagens a Turim, uma vez que nela inexistem juízos de valor; o trágico e a alegria são expressos em melodia e por instrumentos sem dissociação; e o artista vê a vida em sua totalidade, e não parcialmente como Wagner o fazia, segundo a crítica do filósofo. A obra wagneriana é perpassada de arrogância, visto que julga a si mesma como superior tanto por sua eficiente técnica, em oposição à criação, quanto pelos valores ético-religiosos que pretende transmitir.4 A música de Wagner é limitada, segundo Nietzsche. Está presa à forma e, assim, inibe a necessária expansão do artista. Ela não cria novas idéias, não atinge a grande arte. Repleta de regras e valores morais, a música wagneriana seria um reflexo da ítica e da moralidade alemãs da época. Sua obra se destinaria, sob esse aspecto, não a propiciar o gozo estético ou as sensações prazerosas e trágicas da musicalidade pura, contudo, tão-somente oferecer uma sensibilidade indigente, sem alcançar os delírios e a força dionisíaca. Em A verdade e a mentira no sentido extramoral, Nietzsche, começava a distanciar-se intelectualmente de Wagner, postando-se “acima do bem e do mal”. É preciso, assevera, que a linguagem musical prepondere sobre a escrita para serem evitados os vícios que permeiam esta última – deixemos claro que ele não faz defesa da notação musical moderna, por partituras e técnicas matematizadas. Segundo este autor, toda linguagem traz implícito em suas palavras uma vontade ali manifesta.(NIETZSCHE: 2007, 3) Como a escrita permite um simbolismo mais extenso nas suas formas de expressão, permitiria também maiores deturpações do que deveria ser dito pelos interlocutores e seria mais facilmente corrompida. Analisando diferentes meios de comunicação como a fala e a escrita, os quais, na realidade, considera-os incomunicáveis entre si devido à sua natureza distinta. Além disso, a música seria a forma adequada de expressividade, pois o meio de comunicação é único do início ao fim da melodia, sendo preservado dos problemas trazido pela retórica moderna, em um falso resgate do que seriam as virtudes gregas 4 Nem mesmo a técnica wagneriana é apreciada por Weber após perceber no compositor alemão a marca indelével do ascetismo. (WEBER: 1995a, 470 e 471)
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da Antiguidade. Considerando-se este raciocínio, podemos concluir que deturpada pelos políticos e pelos intelectuais modernos, a linguagem escrita pode transformarse em um instrumento útil para o domínio dos “cultos”, em geral a elite ocupante do poder, e os indivíduos, tolhidos duplamente: falta de acesso aos bens culturais de sua sociedade, falta de poder para manifestarem-se autonomamente. A música perfeita seria aquela que elevasse a linguagem igualmente à perfeição, purificando-a das discrepâncias provocadas pelo uso dos diversos canais, como voz, audição, texto e visão, cuja integração em uma única “fala” somente seria pensável em um mundo invertido, (Op. cit., 4-5) e, notadamente, a retórica. Nietzsche oferece séria crítica à Sócrates ao apontar a retórica como uma linguagem enganadora, longe dos primórdios, pois como arte de convencer não se preocupa em dizer a verdade. Ao contrário, a retórica se dedica ao encobrimento do real. A palavra, em virtude disto, serve apenas aos interesses daqueles que, ocupando o poder, pronunciam seu discurso em detrimento dos demais.5 Rousseau, como se verá mais a frente, faz a mesma crítica à sociedade francesa de sua época ao recordar os dias de “magnificência e brilho” de Roma e Atenas, tempo em que as artes tornavam a convivência amável, deixando ao Governo e à política os cuidados com a segurança e com o bem-estar do povo. (ROUSSEAU: 1973, 342-343) No seu Ensaio, o autor acusa o uso da retórica pelos políticos como instrumento de manipulação dos cidadãos e uma deturpação completa da palavra. A correção desse erro seria possível pelo emprego da música como linguagem.
A racionalidade da musica moderna E a musica passava por seu corpo em espirais
Weber viveu durante o período romântico da história da música em que grandes nomes da Escola Alemã lhe eram contemporâneos, como Richard Wagner, Franz Liszt e Johannes Brahms e seu estudo sobre a música foi realizado por meio de 5 Sobre a superposição do discurso dos dominantes, vide artigo de Pierre Bourdieu, Os doxósofos.
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uma abordagem histórica, considerando o surgimento desta enquanto prática social. (CUPANI: 2006, 11) Havia na Europa outras duas grandes escolas musicais no século XIX. A Escola Francesa, com seus dois gêneros principais, a música instrumental, representada por Berlioz, e a música dramática, distinguida em Grande Ópera e Óperas Cômicas. Em 1911, Weber visita Paris, período em que já iniciava a escrita de seu trabalho sobre os fundamentos sociológicos da música. Segundo Marianne Weber, o sociólogo considerou a arte francesa como um símbolo da decadência moderna, na qual a retórica heróica dos clássicos havia se perdido. (WEBER: 1995a, 468-469) A partir de 1913 dedicou-se a conhecer mais a música italiana. A Escola Italiana apresentou maior influência quanto ao gênero musical operístico, com compositores até hoje famosos: Rossini, Verdi e Paganini. A ópera era o meio de execução da arte musical, por excelência, a grande obra racionalizada, pois representava o estilo harmônico moderno, aprimoramento da técnica de polifonia (WEBER: 1995b, 113). Representava o ápice da intelectualidade e da erudição, contrastando com o cancioneiro popular, ainda muito primitivo em sua forma de notação musical. No entanto, muito embora haja gostado da ópera As bodas de Fígaro, segundo a regência de Mozart, desagradou-lhe o erotismo musical presente nesta e em outras peças musicais na Itália. De fato, no estudo da arte musical européia, Weber apreciava mais o estilo alemão, mais clássico, em especial o ambiente mais provençal de Munique. Por sua paixão pela música, atribuía a ela grande importância para a compreensão do mundo moderno. Aconselhava um sério estudo pelos pensadores de seu tempo da musicalidade européia ocidental e sua história. Recomendava Haydn aos amigos e que suas obras fossem ouvidas pela manhã e pela tarde. Essas doses de boa música para o espírito produziam em Max Weber a sensação de que “a música visivelmente passava por seu corpo em espirais”. (WEBER: 1995a, 465) A perspectiva weberiana sobre a música é histórica. Weber se dedicou ao estudo da racionalidade moderna e sua internalização pela cultura a partir de uma análise histórico-comparativa do fenômeno da polivocalidade. Comparando as formas primitivas de música e as culturas não ocidentais à Europa do século XIX, OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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focaliza a evolução da técnica musical, descrevendo com precisão e qualidade outras formas de expressão musical muito distintas da musicalidade clássica européia. E as considerou sob seu prisma próprio, sem o risco de uma postura negativa antropológica evolucionista. Ele mesmo confirma essa postura através dos discretos elogios que em diversos pontos do seu livro. Apreciava nesses sistemas de notação musical “a mobilidade mais livre da melodia”.6 (WEBER: 1995b, 126) Denominamos aqui uma música como sendo ‘polivocal’, inclusive em sentido mais amplo, somente se as várias vozes não caminham exclusivamente em uníssono ou em oitavas umas com as outras. (WEBER: 1995b, 105)
De modo muito simples e, talvez, fora do jargão musical próprio, eis o que ocorre. No canto em uníssono todas as vozes seguem ordenadamente as mesmas notas musicais. Em unicidade, facilmente se obedece ao padrão estabelecido. Ainda quando em oitavas diferentes, a estrutura da música é similar, pois a mudança ocorre com a inserção de diferentes tons para as mesmas notas, como se costuma presenciar nos cantos corais em que contraltos e sopranos obedecem à mesma partitura, com os últimos cantando, por exemplo, uma oitava acima. Na polivocalidade, as diversas vozes estariam de certo modo mais livres, sem um padrão único para todas cantarem ao mesmo tempo. E esta é uma questão crucial: como se poderia coordená-las no tempo da música e acertá-las quanto ao compasso e ao ritmo sem o emprego de uma técnica suficientemente evoluída em notação musical? Pois bem, sendo a polivocalidade dependente de consonância, ela apresenta características adequadas para a verificação da existência, ou não, de um processo de sistematização também da notação musical no surgimento e no decorrer da Modernidade. A combinação de várias vozes nem sempre alcança a harmonia da música, pode não ser melodiosa e, sim, um vozerio alto e desencontrado. 6 A respeito da luta dos povos não europeus pela preservação de sua cultura vide o artigo Uma leitura musical do filme A missão, escrito por João Marcos Santana da Silva, Vânia Gizele Malagutti, Vidlin de Ávila Carvalho e Kiyomi Hirose (I Encontro de Pesquisa em Educação, IV Jornada de Prática de Ensino, XIII Semana de Pedagogia da UEM: Infância e Práticas Educativas. Arq Mudi, Maringá/ PR, 2007; 11/Supl.2, p. 313-318).
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O nascimento da polifonia na música erudita européia ocorre entre os séculos XI e XII, no chamado período gótico, e coincide com o “despertar da burguesia como camada social”. (REZENDE: 1971, 53-54) Este grupo é o grande responsável pelas evoluções técnicas que ocorreram doravante. De acordo com o historiador Roland de Candé (2004), a notação musical nos séculos IX e X consistia apenas em muito rudimentares chamados neumas, alinhados por cima do texto cantado. No século X, estes sinais foram postos em diferentes alturas, conforme os sons eram mais ou menos agudos, mas apenas no século XI foi criada a pauta de quatro linhas para notação musical. No século XIII, aparecem figuras de notas que indicam as durações proporcionais umas às outras. Ao serem aperfeiçoadas e à medida que se modificavam, deram origem ao sistema de notação conhecido; deixaram de se chamar ‘neumas’. A quinta linha da pauta generalizou-se somente a partir do século XIV.
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No século XVII, a representação gráfica das notas musicais alcançou o formato hoje utilizado. Na Inglaterra e na Alemanha o uso de letras para identificação dos acordes já estava bem difundido e deu origem ao sistema moderno: A (lá), B(si), C (dó), D (ré), E (mi), F (fá), G (sol). No século XVIII, o piano havia sofrido o impacto da racionalização da técnica do dedilhado e da produção maquinal do instrumento – por exemplo, com a utilização do ferro para superar dificuldades climáticas. (WEBER: 1995b, 106) A partitura torna-se, na Modernidade, uma construção lógico-formal, aliada à matemática e estruturada mediante a utilização de conceitos produzidos pelo conhecimento humano, tais como, compassos, pausas, semitons, etc.. Pela consideração de todos esses fatos, Weber expõe sua teoria de que a ciência é a razão instrumental que contribui com a técnica para o aperfeiçoamento do saber,permitindo ao artista evoluir sua arte musical. A ciência e a razão servem ao aprimoramento desse estudo e à sua universalização.7 Com a invenção do primeiro aparelho fonógrafo do mundo em 1877, por Thomas Edison, a música podia ser, então, gravada e as óperas ouvidas nos solares das famílias aristocráticas européias. Assim, a linguagem musical se firma enquanto expressão cultural e intelectual de uma classe, em especial através da música clássica. A erudição é uma das características mais marcantes da Modernidade, pois representa claramente o processo de racionalização da sociedade pela intelectualidade, aqui aplicado à notação musical e ao modo de produção dos instrumentos. A “registração sonora” (REZENDE: 1971, 192) que o aparelho de Thomas Edison permitia realizar foi utilizada também para memorizar as canções românticas dos camponeses. Isso fazia parte de um processo intenso de estudo da etnomusicologia – a análise sociológica e, principalmente antropológica, da construção cultural dos povos através de suas expressões musicais. Não raro esses empreendimentos eram patrocinados pelo Estado como meio de se realizar um diagnóstico sócio-cultural de sua população. Para Weber a sociologia da música deveria ser tão científica quanto aos seus demais 7 Para mais informações sobre a matematização da música neste período, vide o artigo Música, experiência e memória: algumas considerações sobre o desenvolvimento da partitura a partir das obras de Max Weber e Walter Benjamin (Gabriel Sampaio Souza Lima Rezende).
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trabalhos, merecendo uma tipologia própria. Jamais a tratou como um mero hobby, tão-só não podendo concluir esta pesquisa em razão de sua morte.8 Em favor da música racionalizada, o sociólogo afirma que a existência de uma polifonia, de um acorde de sons aprazível para se ouvir, deveria obedecer a um sistema qualquer de regras que permitissem que a execução de uma peça musical dessa natureza. Assim, percorreu o conhecimento teórico e prático deixado como legado por diferentes culturas, além da ocidental; procurou as fontes históricas da polifonia européia; e traçou o progresso técnico dos instrumentos musicais, já que a polifonia teve sempre como suporte o acompanhamento instrumental. Foi em virtude dessa pesquisa de campo que ele pode determinar o que chamou de superioridade técnica da música ocidental, devido à sua racionalização da polifonia. (WEBER: 1995b, 55) Na verdade, seu trabalho dedica-se ao estudo da racionalidade e à defesa do pensamento moderno ocidental, como dito, tipo ideal da erudição musical. A arte musical, como toda atividade técnica da Modernidade, deveria ser exercida tão somente por especialistas. Estes estariam habilitados, pelo conhecimento científico adquirido na área musical, a exercerem verdadeiramente esta “vocação”. O saber fornecido pelo progresso das ciências aperfeiçoa a prática dos instrumentos, da regência e da própria notação musical. Em Weber, podemos notar o respeito à métrica musical por sr constituir esta em uma linguagem universal, devido à sua técnica padronizada e amplamente conhecida. Assim como o sociólogo alemão adotava como de explicação da história da humanidade o ponto de vista da Modernidade, idêntica análise poderia ser realizada sob o prisma da musicalidade européia ocidental do séc. XIX. Exemplo desse pensamento encontra-se em Os fundamentos racionais e sociológicos da música: “As escalas alteradas surgiram historicamente, de modo característico, em primeiro lugar nas tonalidades menores, e apenas pouco a pouco foram racionalizadas pela teoria”. (WEBER: 1995b, 58) As melodias e os acordes são construídos ao longo do 8 Contrariando a opinião de Leopoldo Waizbort (WEBER: 1995b, Introdução), este artigo quer apontar para a sociologia da música weberiana como objeto único e específico de estudo, sem inseri-lo obrigatoriamente dentro da sociologia das religiões. Muito embora a discussão sobre o ethos da música perpasse a análise de Max Weber a respeito da sistematização e racionalização da doutrina de salvação, aqui não se pretende abordar o tema da musicalidade como coadjuvante de outro, nem mesmo como simples instrumental da disciplina religiosa.
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tempo em um processo de racionalização constante e evolutivo, o qual conduziu a teoria musical até o ponto em que ela atingiu na Modernidade. Em seu tratado sobre a sociologia da música, Max Weber procura explicar como a moderna notação musical possibilitou que se estabelecesse a lógica interna das relações musicais. Segundo essa técnica, “uma obra de arte musical moderna, por menos complicada que seja, não poderia ser produzida, nem transmitida, nem reproduzida sem os meios de nossa notação”. (WEBER: 1995b, 119) Conforme a sociologia weberiana, a notação musical racionalizada possui um sistema de signos que representa as notas, o andamento da melodia, o ritmo e diversos outros aspectos da composição que lhe permitem ser objetivamente conhecida. Assim, por meio dessa racionalidade, uma obra pode ser tocada da mesma maneira em diferentes lugares, bastando ao músico possuir o conhecimento técnico da ciência musical para compreender o modelo de notação adotado. Isso lhe conferiria superioridade sobre a escrita fonética, uma vez que as formas artísticas lingüísticas, como a poesia, possuem uma estrutura de notação comumente diversa do “produto poético”.
A linguagem e a musica Ao cultivar a arte de convencer, perdeu-se a arte de emocionar
Motivado pela necessidade de sobrevivência e sem vocação para a carreira cartorial, na qual trabalhara inicialmente, Rousseau vale-se do conhecimento musical adquirido pela educação católica que recebera e atua como professor de música dos filhos de algumas famílias importantes de Paris (1741). Em suas Confissões, percebe-se sua insistente tarefa em construir uma nova notação musical, mais completo e sofisticado, que permitisse à linguagem corrigir suas imperfeições aliando-se
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à música. Todavia, seu modelo foi considerado sem inovações por uma comissão de análise em Paris, em 1742. Sua publicação somente foi possível graças à amizade com o filósofo Denis Diderot, apreciador de seu trabalho musical e responsável pela edição do sistema de notação rousseauniano. Posteriormente, em 1744, apaixona-se pela música italiana, tal como ocorrera à Nietzsche e, com menor intensidade, a Weber – já que este conservara sua predileção pela música provincial alemã, como afirma em suas cartas à Helene durante suas viagens à França e à Itália. Após essa viagem Rousseau publica seu polêmico texto Letter sur la musique française, em que tece duras críticas ao estilo musical francês frente à riqueza musical italiana, especialmente a ópera. Crítica de mesma natureza ofereceu Weber ao regressar à Alemanha de suas viagens. Compartilhava com Nietzsche e Weber, também, a admiração pela cultura grega, como torna perceptível o trecho a seguir: Assim, a cadência e os sons nascem com as sílabas: a paixão faz falar todos os órgãos e confere à voz todo o seu brilho; assim, os versos, o canto, a palavra têm uma origem comum.(... ) Uma língua que possui somente articulações e vogais possui portanto apenas a metade de sua riqueza: ela exprime idéias, é verdade, porém para exprimir sentimentos, imagens, precisa ainda ter ritmos e sons, isto é, uma melodia; eis o que possuía a língua grega e o que falta à nossa. (ROUSSEAU: 2005, 160-161)
Considerado uma figura importante no cenário francês do século XVIII, encontrou algum destaque também na literatura e nas artes com algumas composições próprias, tais como, Les muses galantes (1743-45), Le devin de village (1752) – já apresentada no Teatro Municipal de São Paulo – e Pygmalion (1770.)9 Em uma outra composição, dedica-se à estética helênica, ao contar a trágica história de amor entre 9 Algumas de suas músicas se encontram disponíveis para audição no site da Association Rousseau, de Montreal, Canadá. Em 2001, esta associação realizou a 12.ª Bienal - Colóquio da Associação Rousseau, cujo tema era A música e a linguagem nas obras de Rousseau. O conferencista principal foi Jean-Jacques Eigeldinger, professor Ordinário de Musicologia, da Faculdade de Letras, da Universidade de Genebra, um grande comentarista de seu compatriota. Outras informações estão disponíveis nos sites desta Universidade (http://www.unige.ch) e do Departamento de História e Crítica da Arte, do Instituto Italiano Antonio Vivaldi, em Veneza (http://www.cini.it/fondazione/09.pubblicazioni/ dmv/dmv22.html).
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Daphins e Chloë. Estes aparecem como servidores de Dionísio, jovens apaixonados de forma inconvencional, dedicados ao pastoreio de ovelhas e às tarefas do campo e que sofrem um amor repleto de dificuldades. Escreveu, ainda, um Diccionaire du Musique (1767), enquanto mantinha contendas com os músicos adeptos da notação musical moderna, cuja rigidez e superficialidade seriam responsáveis por empobrecer a linguagem musical, corrompendo-a. Os elementos em torno dos quais ele constrói o seu ideal de música remetem à idéia de simplicidade, força (energia). A harmonia, tal como os modernos a inventaram, representa para ele, um empobrecimento, pois ela se sustenta da arbitrariedade de convenções que privam a música de seu poder expressivo, original, ligado à melodia. A harmonia indica a decadência que se abateu sobre o corpo social, pois toda música guarda estreita relação com a sociedade que a produz, como lemos no capítulo XIX do Ensaio. Diante disso não é de estranhar o envolvimento do filósofo em uma série de polêmicas sobre questões musicais ao longo de sua vida. As disputas com Rameau, a defesa da melodia em detrimento da harmonia, a famosa querela dos bufões, os debates concernentes a Carta sobre a Música Francesa, são apenas alguns dos muitos pretextos usados por ele para defender com paixão desenfreada as idéias expostas em seus escritos de doutrina. A recusa do excesso de artifícios também na música insere-se numa crítica mais ampla à sociedade do espetáculo, aquela que substitui a verdadeira essência das coisas pela aparência, como escreve no 3º Diálogo. Não nos esqueçamos o tempo e lugar de onde nos fala Rousseau: uma Europa barroca dedicada a cultivar o gosto imoderado pelo luxo e a ostentação, pelo encobrimento do natural. Esse o olhar que o filósofo lança sobre a sociedade de seu tempo. Civilização que favorece a ampliação dos signos representativos e a passagem do campo do real para aquele do imaginário, em que os desejos se ampliam, engendrando objetos fictícios que se interpõem entre os homens e as coisas, os homens e os outros homens. (FREITAS: 2008, 56)
A música seria a forma natural de expressividade dos indivíduos, posto permitir-lhes a criação de uma identidade. Consistiria no meio pelo qual a linguagem poderia ser comunicada sem o recurso aos signos representativos convencionados pela sociedade e, portanto, assegurando a liberdade e a fidelidade do dito em relação ao pensado. Assim, a apropriação da melodia pela palavra é o seu caminho necessário para libertar-se dos padrões culturais. (FREITAS: 2008, 71) O problema desses
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signos convencionais para Rousseau reside no fato de que ao progresso da técnica faltou um desenvolvimento também da moral. O resultado, portanto, da evolução moderna quanto à notação musical e à harmonia não encontra correspondência nos valores da sociedade dos séc. XVIII e XIX, segundo o autor, repleta de retórica para encobrir as verdades desagradáveis da convivência social da época. No tocante ao tema da decadência das virtudes na sociedade, em consequência da música moderna, Bento Prado Jr. nos aponta as posições de Rousseau e Nietzsche. O primeiro atribui tal ocorrência às astúcias da linguagem, ao uso que dela fazem os governos para fundamentar as decisões políticas. Para o segundo resulta da visão escrava dos homens, pela rejeição da potência da vida. Mas tanto um quanto outro vê na retórica o significado de astúcia. Em Nietzsche, ela representa uma metáfora das coisas, segundo uma convenção estabelecida e que se deseja manter para submeter o rebanho. (FONSECA: 98) A retórica é o meio formal para persuadir e não corresponde à verdade real, mas a verdade convencionada, e, segundo Rousseau, é utilizada pelo Estado para submeter os indivíduos. A escrita, embora sua redação se faça por meio da técnica, consiste em retórica, pois ela serve para encobrir esta verdade ao expurgar do indivíduo a força de sua voz, tornando-a inexpressiva. (PRADO JR.: 1998, 71) A importância da menção do texto de Rousseau nos serve para demonstrar que, no período de formação do principal ideário moderno, houve não somente um resgate da cultura grega, a partir do renascimento, como também da musicalidade mais rica e vinculada à linguagem escrita do ocidente europeu (ditirambos).10 Todavia, em uma época de construção das grandes correntes do pensamento científico e social, igualmente o emprego da música como linguagem se condicionou pelos valores da Modernidade, o que teria corrompido a sua origem artística grega clássica. Rousseau e Nietzsche preocuparam-se com o mau uso da retórica e suas conseqüências para a vida dos indivíduos, assim como com a necessidade de resgate da verdadeira linguagem, purificada do viés ideológico. Suas críticas seguem a mesma linha 10 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Dissertation sur la musique moderne.
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que anos mais tarde Dahlhaus indicou ao escrever que “ninguém pode negar que o princípio da autonomia se impôs na música artificial” (DAHLHAUS apud CARVALHO: 1991, 13) e desta imposição a expressividade natural dos indivíduos foi comprometida pelas métricas, pela partitura e pela harmonia, símbolos representativos da cultura da sociedade setecentista e oitocentista, transformadores da linguagem musical em retórica de uso articulado pelos que detinham o poder à época. A música também se transforma, como a linguagem, em símbolo ideológico – daí a razão pela qual tantos autores posteriormente dedicaram-se à criticá-la sob o enfoque sociológico. O texto rousseauniano também enumera seus argumentos fundamentando-se na técnica musical, como o fez Weber. Também produziu uma pesquisa intensa e comparativa com outros povos, como sobre as inflexões “... que se observou nos cantos dos selvagens da América”. (ROUSSEAU: 1998, 180) Neste mesmo capítulo ele descreve tecnicamente o sistema musical grego. Todavia, seu discurso é mais curto e menos denso. A linguagem escrita, bem como a retórica clássica do helenismo, teriam perdido sua grandeza artística e sua verdade de conteúdo no momento em que a força política do Estado, de acordo com Rousseau, exerceu seu domínio mais solidamente, em especial, após firmada a crença no contrato social, em relação ao qual a linguagem escrita foi extremamente útil para fundamentar o poder político dos governantes, visto que sua manipulação era possível e muito utilizada nos inúmeros discursos proferidos à época. Ora, o contrato foi exatamente o processo social em que a “voz” do indivíduo é alienada ao seu representante no Estado constituído, perdendo este, como criticava Rousseau, sua condição natural de igualdade e sua identidade. A proximidade com o real na linguagem – que para Nietzsche nunca existiu – para Rousseau estaria aliada e submetida a um ideal político de manutenção do Estado da Modernidade, na qual se buscaria pela sua perfectibilidade. Tal seria alcançada por meio da sociedade, já que a linguagem é um fenômeno social. Todavia, Paul De Man discute se Rousseau realmente teria distinguido ou atribuído importância a
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uma separação entre linguagem literal e figurativa. Enquanto o texto rousseauniano do Discurso apontaria para a primeira como a origem das palavras e nomes, no seu ensaio sobre as línguas, afirma que a forma literal teria sido precedida da figurada. (De Man: 1996, 172) O ato da persuasão do ouvinte, segundo Rousseau, estava mais presente na cultura grega, cuja eloqüência de seus oradores é até hoje muito respeitada. A consolidação dos governos haveria alterado o caráter figurativo da linguagem, já que a partir do monopólio da violência pelo Estado, detentor da “força pública”, o convencimento torna-se desnecessário em virtude de já estar justificada a autoridade política. Não se precisa de artifício nem de figuras de estilo para dizer: ‘esta é a minha vontade’... As sociedades adquiriram sua última forma: nelas só se transforma algo com artilharias e escudos; e como nada mais se tem a dizer ao povo, a não ser ‘dai dinheiro’, dizêmo-lo com cartazes nas esquinas ou com soldados dentro das casas... Entre os antigos era possível fazer-se ouvir na praça pública... Hoje, o acadêmico que lê uma memória, num dia de assembléia pública, mal é ouvido no fundo da sala. (ROUSSEAU: 188-189 - sic)
Como o próprio subtítulo do ensaio nos conduz a pensar, a linguagem figurativa teria sido a precursora e, ainda, a sua modalidade mais harmoniosa por aproximar-se da melodia musical. Também Jean-Jacques Rousseau conferiu à música um status superior, não obstante com diferentes argumentos, ao apontar a educação musical como prática necessária para a boa formação do homem, como retratado em sua obra Emile. Defendia o aspecto transcendental da música que “pinta as coisas que não se podem ouvir”. (ROUSSEAU: 177) Enquanto a linguagem literal seria uma forma monótona e sempre igual, a música estabeleceria uma relação sensível com o seu ouvinte: “Music is an imitative art; what it imitates are states and afections of men’s souls”. (MARQUES: 2004. p. 3) Eis porque as virtudes de uma sociedade constituem-se ou degeneram-se conforme o padrão de linguagem adotado, moldando dessa maneira o seu desenvolvimento moral. Como mencionado por MARQUES em Apresentação escrita por ele para a tradução brasileira de Carta à música francesa: (ROUSSEAU: 2005) “De fato, Rousseau havia produzido uma devastadora crítica do progresso técnico OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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e científico, o qual acusou de promover o luxo e a desigualdade e minar os valores morais e cívicos da sociedade”. Nietzsche acreditava na pureza da música contra a contaminação retórica da linguagem. Weber historicizou o fenômeno musical e, mesmo em sua referência ao helenismo, alcunhou de racionalizada apenas a melodia moderna ocidental, por sua estrutura literal e lógico-formal. Rousseau parte de um ponto de vista totalmente diferente. É certo que o estudioso francês confere à linguagem musical maior perfeição do que à escrita, pelo que se infere de seus textos, notadamente o Ensaio. Mas, se na defesa dessa superioridade concorda com Weber, sua argumentação segue outro rumo. Talvez, mais nietzscheano. Dedica um pequeno capítulo especialmente a apontar alguns dos músicos contra sua arte e, dentre eles, elenca o excessivo apego às instituições harmônicas, que foram descritas por Weber como símbolo da Modernidade racionalizada através do uso do piano. Weber, é claro, também menciona essa ausência de vocação para a música, no final de seu tratado, e critica a utilização do piano como móvel burguês. Mas enquanto para ele as regras racionalmente construídas eram essenciais à linguagem rítmica perfeita, para Rousseau a multiplicação de regras e o progresso do raciocínio são exatamente os fatores que conduziram à degeneração da música. Segundo este autor, a sociedade francesa de sua época estava mais afeita à discutir com autoridade as técnicas musicais do que a se aprofundar em reflexões filosóficas e morais: “na falta de belezas reais, introduziriam ali belezas de convenção. (ROUSSEAU: 2005, 4-6) O grande marco da crítica oposta por Rousseau à linguagem e à retórica é, em suma, o encobrimento da realidade por meio dessas falsas belezas, que são ilusões nas quais crê o indivíduo e que o impedem de reconhecer a verdadeira sociedade em que está vivendo, seus vícios públicos e privados. Enquanto eivados pelo uso oficial da regra, seja da notação musical ou da língua culta, os indivíduos distanciam-se do real, notadamente no território político, locus onde o contrato social se estabelece e os direitos e deveres são escritos, na maioria das vezes, com exclusividade pelos governantes.
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As idéias, as virtudes, as identidades e as diversas formas de expressão e comunicação são sucateadas pela grande produção histórica (SEGATO, 3) – vide as críticas de Nietzsche a Wagner, como exemplo, e de Rousseau aos Bufões franceses –, arte feita para ser oferecida às gerações seguintes como marcos da literatura e da obra musical de uma época, em verdade, representando apenas um discurso ideológico proferido pelos que detinham o poder político. Desse modo tais governantes perpetuariam o sistema político e social vigente ao construir uma memória coletiva, ainda que ilusória, referencial para os indivíduos. Michel Pollak explica que a memória de um grupo social é tanto fruto de suas vivências, quanto de uma construção histórica. E a identidade dos indivíduos que compõem essa sociedade também se forma a partir dessas referências de valores e comportamentos que são preservados pela cultura do grupo. Por isso, é possível corromper a identidade individual ao se alterar a memória coletiva, como ocorre com sagas de heróis que, em verdade, não lutaram da maneira honrosa como se conta às novas gerações. Há muito mais uma necessidade social de manter a coesão do grupo sob certos valores, obviamente ideológicos, do que expor o real. Se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos. (...) Não se trata apenas de herança no sentido material, mas no sentido moral... (POLLAK: 1992, 5)
Ora, a linguagem é uma das principais responsáveis pela preservação da memória, seja através das narrativas sobre fatos do passado ou por meio das canções, principalmente populares, que descrevem os feitos de seus antepassados e seus valores tradicionais. Voltando ao tema da intensa procura pela perfectibilidade na sociedade moderna, Rousseau reafirma a idéia da degeneração da linguagem, (De Man: 1996, 169) à qual também dedicou um capítulo em seu ensaio. Para ele, a palavra havia se distanciado da melodia, pois agora existem regras para a escrita – gramática – e regras para a música. A linguagem harmoniosa aperfeiçoada, que em Weber é OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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fruto da racionalização ocidental moderna, em Rousseau, encontra-se na palavra que se apresenta sob a forma musical e melodiosa, como os antigos gregos o faziam. Por isso, dentre eles, critica o racionalismo dos sofistas, que separaram a filosofia, arte da palavra, da poesia e da música. Somente as línguas em que a melodia fizesse parte da linguagem escrita poderiam ser, segundo sua perspectiva, consideradas realmente livres. Aqui se aproxima um pouco mais de Nietzsche ao afirmar que: “Ao cultivar a arte de convencer, perdeu-se a de emocionar... A Grécia escravizada perdeu esse fogo que somente aquece as almas livres...” (ROUSSEAU: 184)
Conclusao
A análise desses três autores nos remete a uma compreensão de suas perspectivas sobre a música e a linguagem européias do auge da Modernidade. Mesmo distintas, se tocam. Se Nietzsche buscou a verdade artística – embora esta expressão talvez seja inadequada quanto à sua postura crítica –, verdade é que se aproxima de Rousseau ao apontar a retórica como uma linguagem manipulada, cujo destino é servir ao seu interlocutor. Quantos contemporâneos seus não acusou de cumplicidade com tais ideologias vigentes, o que comprometeu a arte destes compositores e pensadores ao longo dos anos. Nietzsche condenava essa falsidade da suposta “verdade” da linguagem retórica, uma pretensão perfeccionista fruto da crença na racionalidade, e exaltava, sim, a arte criadora. Afeto às músicas Rousseau também resgatou o valor desse meio de comunicação, especialmente apontando para a herança helênica que marcou a história da humanidade. Valorizou as artes como o instrumento de fazer emocionar as pessoas e, não obstante esta talvez seja uma visão asceta do fenômeno musical, paralelamente a Nietzsche também condenou o uso que da retórica se faz, cuja impostação vocal diferenciada da fala normal, seu gestual dramático e enfatizante, seria uma arte fadada ao fracasso por arte não ser, mas apenas tropo. Sem adentrar profundamente nessa discussão filosófica, Weber avaliou o
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quanto a racionalidade científica alterou o conceito de música à sua época e, porque não, do que sejam músicos, enquanto profissionais especializados da técnica musical. Não haveria um prejuízo estético das outras formas de expressão musical, como a melodia oriental ou o cancioneiro popular, mas agora um fator irreversível se fazia presente: a técnica. O reconhecimento do talento se confunde com o reconhecimento do seu domínio. O progresso dos instrumentos passou a exigir do especialista o encontro constante com a aprendizagem científica e cadenciou a música em uma linguagem universal e matematizada. Mas o mais importante para se notar, ao ler esses três autores, é a verdade de que, por razões diferentes e através de uma distância temporal, Rousseau, Nietzsche e Weber foram homens da Modernidade que, se desencantados estavam, nem por isso tiveram alma menor. A racionalidade iluminista e pós-industrial, pode-se acrescentar, não foi forte o suficiente para inibir uma discussão a respeito da arte que compunha o quadro de sua vivência social. A arte foi discutida, proposta e analisada não apenas como cultura, todavia como prática resultante de uma sociedade específica que, por meio dela, evidenciou sua moral e sua hierarquia de poder. Assim como hoje, serviu também como meio de protesto aos paradigmas propostos, em verdade, sendo esta a maior análise proposta pelos três autores. Pelas consonâncias e dissonâncias da interação social moderna e da formação de seu universo representativo a construção do conceito de obra musical, das técnicas de notação, partitura e harmonia é decorrente da transformação que viveu a Europa nos séc. XVIII e XIX. Para além da descrição qualitativa da suposta evolução da linguagem musical, o que se constata neste cenário de contradições é a tentativa de redefinição dos valores fundamentais da sociedade européia moderna, especialmente, burguesa: que grupos estão representados no poder e quais são as virtudes que apregoam ao restante da sua comunidade; como essas virtudes são impostas sobre os demais indivíduos e de que maneira as identidades destes podem ou não ser livremente desenvolvidas neste ambiente; qual a capacidade dos meios de comunicação de expressar verdadeiramente o conteúdo dos discursos vigentes. OLHAR no 21 - Ano 11 - AGO/DEZ 2009
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Weber, Nietzsche e Rousseau, cada um ao seu modo, perceberam socialmente os efeitos da ascensão da cultura européia em sua época. Principalmente, os dois últimos, dedicaram-se a analisar em profundidade o aspecto político desse novo paradigma cultural, as possibilidades de sua manipulação para corromper a igualdade entre os indivíduos e diminuir a sua liberdade de expressão. Enquanto Weber nos revela como o predomínio da razão industrial solidificou as bases da música moderna sobre a especialização da arte, Rousseau e Nietzsche desvelam o que está encoberto por meio da superficialidade das obras musicais de seu tempo as quais, embora perfeitas em sua técnica, ideologicamente serviam ao fim da política e não da cultura, do pensamento livre, da formação de identidade para o indivíduo, que preso às convenções racionalmente erigidas na Modernidade não pode para si invocar a beleza dos ditirambos gregos e assim, também não poderia pretender se ver livre em uma democracia política como se em Atenas estivesse. Pode-se então concluir que o discurso proferido pela linguagem escrita, portanto, esconderia os vícios da sociedade por meio da preocupação com a perfeição do meio de comunicação. Seria influenciado, ainda, pelos trejeitos e entonações distorcidos pela retórica. Tudo isso com a finalidade de desviar o indivíduo de sua atenção para com as palavras, atendo-se mais ao efeito da sua oratória, como o fazem os políticos, dizem os autores. Iludido pelo discurso, segue o caminho que lhe indicam; dominado, já não é livre, embora sem correntes. A arte musical seria o meio ainda preservado de se revelar a verdade, de se descobrir o real, pois, conquanto discutam-se os compassos, a métrica e as rimas na chamada música artificial, como visto acima, podese encontrar outros espaços de construção da música descompromissados com a racionalidade científica, como Cupani (2006) apresenta em seu texto sobre a musicalidade no séc. XX, período de fragmentações e dissonâncias. Mas nos séc. XVIII e XIX, consideradas as críticas pelos três autores arroladas, prevaleceu a limitação do conteúdo pela forma, cujo poder universalizante propiciou padronização em lugar de igualdade. A música seria o lugar da transgressão possível, o primeiro mecanismo de rompimento com o paradigma moral da Modernidade para ir-se além do paradigma proposto.
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* Luciana Cristina de Souza é Mestre em Sociologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG e Professora da Faculdade Arnaldo Janssen e da IBS-Fundação Getúlio Vargas.
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