Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 12. Número 23 (Ago-Dez/2010). São Carlos: UFSCar, 2010. Semestral ISSN 1517-0845 1. Humanidades - Periódicos. 2. Artes - Periódicos. I. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. CDU 168.522 (05)
ANO 12 - NÚMERO 23 – AGO-DEZ/2010 CECH - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
Revista Olhar Ano 12 - Número 23 - Ago-Dez/2010
Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Administração Superior Prof. Dr. Targino de Araújo Filho Reitor Prof. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior Vice-Reitor Profa. Dra. Wanda Hoffmann Diretora do CECH Prof. Dr. Eduardo Baioni Vice-Diretor do CECH Coordenação Editorial Editores Bento Prado Jr. (in memoriam) Josette Monzani Júlio César de Rose CONSELHO EDITORIAL: Conselho Executivo Antônio Zuim – DEd (UFSCar) Cibele Rizek – EESC (USP) Fernão Ramos – Multimeios (Unicamp) João Roberto Martins Filho – DCSo (UFSCar) Luiz R. Monzani – Filosofia (Unicamp) Manoel Dias Martins (UNESP – Araraquara) Maria Ribeiro do Valle (UNESP – Araraquara) Marina Cardoso – DA (UFSCar) Richard Simanke – DFMC (UFSCar) Samuel Paiva – DAC (UFSCar) Sidney Barbosa (UNESP – Araraquara) Tânia Pellegrini – DL (UFSCar) Wolfgang Leo Maar – DFMC (UFSCar) Marcius Freire – Multimeios (Unicamp) Suzana Reck Miranda – DAC (UFSCar) Conselho Consultivo Arley Moreno (Unicamp) Arlindo Machado (PUC/USP) Benedito Nunes (UFPa) Bóris Schnaiderman (USP) Bruno Pucci (UNIMEP) Carlos Alberto Ribeiro de Moura (USP) Cecília Almeida Salles (PUC) Celso Castro (CPDOC/FGV) Débora M. Pinto (UFSCar) Diléa Z. Manfio (UNESP – Assis) Fernando da Rocha Peres (UFBa) Flávia Seligman (UNISINOS – RS)
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Equipe Técnica Redator-Assistente: Fabrício Mazocco (MTb:29.602) 3URMHWR *Ui¿FR Vítor Massola Gonzales Lopes Editoração e Arte Final: Vítor Massola Gonzales Lopes. Capa: Igor Spacek Impressão: Depto. de Produção Gráfica – UFSCar
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EDITORIAL EDITORIAL
N
ovamente, tem-se nesta edição um dossiê temático. Novidade introduzida há pouco neste periódico, e que não se pretende uma regra fixa e imutável. Ela é, na verdade, um canal a mais de produção e divulgação de debates, aberto a sugestões dos Conselheiros, dos colaboradores e leitores da Olhar. Desta vez, o dossiê tem por tema ‘Cinemas’: seus processos de criação, crítica, mercado e algumas de suas interfaces: com a temática religiosa; com o vídeo, a música, as artes plásticas e o teatro. Mantém-se aqui a tradição da Olhar de contemplar o diálogo entre áreas irmãs. Nesse mesmo viés, há neste número artigos discutindo as relações entre imagem/imaginário e religiosidade; série televisiva/público e cultura pós-industrial; sistema público de radiodifusão e seus suportes econômicos; mais, as análises dos conceitos de paradigma e de complexidade, nas visões de Kuhn e Wittgenstein e de Bachelard e Morin, respectivamente. Ainda em relação ao dossiê ‘Cinemas’, cabe destacar que vários dos trabalhos que o compõem foram realizados a partir das discussões encetadas dentro das reuniões do grupo de pesquisa “Cinema e Comunicação”, da UFSCar, que contou com a participação da professora convidada do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som (PPGIS – UFSCar), Dra. Aleksandra Jablonska, da Universidad Pedagógica Nacional e da Universidad Nacional Autônoma de México, da Cidade do México. Para finalizar, outra boa inovação da revista Olhar. Convidamos os leitores a visitar o nosso blog, no endereço eletrônico: revistaolharufscar.wordpress.com, onde poderão ter acesso à íntegra de números anteriores. Com vista na democratização da cultura e na ampliação do alcance de público – metas constantes deste periódico – esperamos em breve ter todos os números da Olhar online. Josette Monzani Julio Cesar de Rose
Capa: Igor Spacek – artista midiático igor@atibaia.com.br www.makemedia.com.br facebook.com/igor.spacek @Igor_Spacek
Sumário DOSSIÊ CINEMA GÉNESIS Y DESARROLLO DEL PROYECTO DE BAJO CALIFORNIA, EL LÍMITE DEL TIEMPO, UNA PELÍCULA DE CARLOS BOLADO Aleksandra Jablonska
10
ENTRE RITOS E MITOS: TEMPO CÍCLICO E (RE)NASCIMENTO EM BAJO CALIFORNIA Edson Pereira da Costa Júnior
26
FIGURAS TRAÇADAS NA LUZ SILENCIOSA. ASPECTOS DO ESTILO EM CARLOS REYGADAS Hugo Reis
36
TEMPORADA DE PATOS E LAKE TAHOE: SONS E SILÊNCIOS NO CINEMA DE FERNANDO EIMBCKE Juliana Panini Silveira
45
FRIDA KAHLO, NATURALEZA VIVA E LIMITE: MUITO ALÉM DO CINEMA CALADO DE PAUL LEDUC E MÁRIO PEIXOTO Alexandre Ramos Vasques
61
CRONOS – GUILLERMO DEL TORO Claudio Ferraraz Junior BRASIL E MÉXICO: UM OLHAR SOBRE A INDÚSTRIA SONHADA E O REAL MERCADO DO CINEMA Roberta Assef
69
76
HIROSHIMA MON AMOUR E A CRÍTICA BRASILEIRA NA DÉCADA DE 60 Alessandra Brum
87
PROCESSO DE CRIAÇÃO NO CINEMA: O CASO THE TULSE LUPER SUITCASES Eduardo Cunha Bonini
94
O DIRETOR NO VIDEOCLIPE BRASILEIRO: O CASO MANGUEBEAT Fernanda Carolina Armando Duarte
100
O DOCUMENTÁRIO LET IT BE COMO REGISTRO DE PROCESSO DE CRIAÇÃO COLETIVO DOS BEATLES Ana Paula Cappellano
112
ROTEIRO DE CINEMA E CENA DRAMÁTICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A EXPERIÊNCIA DA ESCRITA Sérgio Puccini
122
ENTREVISTA COM O DIRETOR PEDRO SENA NUNES Ana Isabel Soares
130
ENTREVISTA COM O DIRETOR JOÃO DIAS Ana Isabel Soares
143
PELAS SOMBRAS OU O DESVENDAR DE UM SEGREDO DE CATARINA MOURÃO E LOURDES CASTRO Ana Catarina Pereira
159
EL CINE DE HOLLYWOOD DE LOS AÑOS VEINTE COMO MODELO HEGEMÓNICO: POTENCIALIDADES, FUNCIONES, VENTAJAS Y DESVENTAJAS DEL NUEVO LENGUAJE. LA VOZ DE HORACIO QUIROGA EN LA NOTA “LOS INTELECTUALES Y EL CINE DE 1922” Laura Utrera O CAMPO DO FILME RELIGIOSO Luiz Vadico SUJEITO E MEIOS PÚBLICOS NA COMUNICAÇÃO SISTEMA PÚBLICOS DE COMUNICAÇÃO – DEFINIÇÃO, O CASO BRASILEIRO E O DESAFIO DO FINANCIAMENTO Isabel Anderson Ferreira Da Silva LOST E A ERRÂNCIA DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO Mauro Eduardo Pommer FICÇÃO BATOM Gustavo Carvalho
165 178
198 208
222
SÓLITO Gustavo Carvalho
226
CASA VAZIA Wilton J. Marques
228
ROTEIRO PARA UMA ANIMAÇÃO AMOROSA Josette Monzani
229
SOLIDÃO Josette Monzani
230
VIAVERTIGEM Marcelo Ferretti
231
SINAL EM TEMPO REAL Marcelo Ferretti
233
IMAGEM, SOCIEDADE E FILOSOFIA VIETNÃ. ENTRE A CONVERSÃO DO OLHAR E A CONVERSÃO PELO OLHAR. UM ENSAIO SOCIOLÓGICO SOBRE RELIGIÃO Júlia Miranda KUHN, WITTGENSTEIN E OS PARADIGMAS João José R. L. de Almeida A EPISTEMOLOGIA DA COMPLEXIDADE, DE GASTON BACHELARD A EDGAR MORIN André Santana Mattos
236 261
271
DOSSIÊ
CINEMA
GÉNESIS Y DESARROLLO DEL PROYECTO DE
BAJO CALIFORNIA, EL LÍMITE DEL TIEMPO UNA PELÍCULA DE CARLOS BOLADO ALEKSANDRA JABLONSKA*
Resumen: En el ensayo se explica el proceso creativo de Carlos Bolado, director, co-guionista y editor de la película Bajo California: el límite del tiempo, a partir de los postulados de la crítica genética, una corriente teórica desarrollada originalmente en Francia y dedicada al estudio de procesos creativos en la literatura. El análisis muestra la complejidad de este proceso guiado siempre por las vivencias y pasiones personales del director del filme, por su capacidad para deleitarse con la música, con las artes plásticas, con algunas películas y directores de cine, con la naturaleza y la historia. En suma en ensayo muestra la pasión con la cual un autor hace del cine su vida. PALABRAS-CLAVE: CRÍTICA GENÉTICA, PROCESO CREATIVO, CINE Genesis and development of the Bajo California: the limit of time, a film by Carlos Bolado Abstract: This essay explains the creative process of Carlos Bolado, director, co-writer and editor of the film Bajo California: the limit of time, based on the principles of genetic criticism, a theoretical perspective originally developed in France and dedicated to the study of creative processes in literature. The analysis shows the complexity of this process, always guided by the experiences and passions of the film’s director, by his delight for music, the visual arts, some films and filmmakers, as well as for nature and history. In short, this essay shows the author’s passion for the cinema. KEYWORDS: GENETIC CRITIC, CREATIVE PROCESS, CINEMA Gênese e desenvolvimento de Baixo Califórnia: o limite de tempo, um filme de Carlos Bolado Resumo: Este ensaio explica o processo criativo de Carlos Bolado, diretor, co-escritor e editor do filme Baixo Califórnia: o limite de tempo, baseado nos princípios de crítica genética, uma perspectiva teórica desenvolvida originalmente na França e dedicada ao estudo dos processos criativos na literatura. A análise mostra a complexidade deste processo, sempre guiado pelas experiências e paixões do diretor do filme, por seu prazer pela música, pelas artes visuais, por alguns filmes e cineastas, e pela natureza e a história. Em suma, este ensaio mostra a paixão do autor pelo cinema. PALAVRAS-CHAVE: CRÍTICA GENÉTICA, PROCESSO CRIATIVO, CINEMA
Damián y Arce
Los orígenes del proyecto Tal como narra Carlos Bolado, es imposible hablar de un origen del proyecto que lo llevó a filmar Bajo California, el límite de tiempo (1998), su ópera prima. Tuvieron que coincidir factores diversos desde sus intereses y pasiones personales por la historia y por el arte, su historia familiar, su propia experiencia, las influencias de distintas personas, las lecturas, las coyunturas políticas y hasta algunas casualidades. ¿Cómo ordenar todo eso? ¿Cómo decir qué fue lo primero o lo más decisivo?¿Cómo se van anudando las experiencias, las coincidencias, las inspiraciones, los recuerdos, las influencias de personas, de lecturas, de películas vistas y también las dificultades, los tropiezos, los accidentes, los impedimentos para que al final surja una obra notable, fascinante, única en muchos sentidos en la cinematografía mexicana? Desde un punto de vista cronológico lo primero fue la muerte de su madre, atropellada cuando Carlos tenía 10 años, circunstancia que lo marcó profundamente, tal como se desprende no sólo de nuestra entrevista sino de otras declaraciones, cuando, por ejemplo, explicó el origen de su segunda película Sólo Dios sabe. En aquella ocasión dijo: Escribí el papel de Damián para Diego. Una noche, hace muchos años, bebíamos y hablábamos en otro festival, y él me decía cuánto le había gustado mi primera película, Bajo California, y cómo el accidente de coche de esa película lo afectó mucho- y dije “por supuesto, tu madre”. Su madre murió en un accidente de coche cuando él era niño. Le conté que mi madre también murió en un accidente de coche cuando yo era niño, y nos reconocimos como miembros de la “hermandad de los huérfanos”. (BOLADO, 2006: 8)
Con ello arrancará la película, con el protagonista del filme, Damián Ojeda (Damián Alcázar), atropellando a una mujer embarazada, probablemente una migrante, circunstancia que lo sumirá en una profunda crisis y originará el viaje que constituye la trama del filme. Pero hubo otra muerte por atropellamiento en la vida del director, y ésta ocurrió cuando ya estaban preparando la filmación. Ésta última quizás fuese decisiva para que
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el sentimiento profundo de culpa y de pesar se convirtiera en un rasgo fundamental del protagonista de la película, el alter ego del propio Bolado. En esta ocasión, aunque no fuera Carlos quien manejara la combi en que iba con otras tres personas al lugar de filmación, la situación lo afectó personalmente. Convencido que se trataba de un accidente absurdo, porque desde el coche se veía desde lejos, en una larga recta, a un hombre deambular por la carretera y porque el chofer hizo todo lo posible para evitar el choque, éste se produjo y tuvo consecuencias fatales.1 Se trata de dos acontecimientos lejanos en el tiempo, uno había ocurrido en 1975 y el otro en 1996, pero que fueron decisivos para definir las preocupaciones, el estado de ánimo y los objetivos del protagonista del filme. Su profesión, a su vez, fue definida a partir de otros criterios. Como Bolado quiso que el protagonista fuese su alter ego decidió que éste tendría una profesión cercana aunque no idéntica a la suya. De ahí que Damián sea un fotógrafo y artista plástico. ¿Pero de dónde surgió la idea de crear a un protagonista que fuera el alter ego del director y co-guionista de la película? Estoy especulando: de la necesidad de expresarse emocionalmente, de plasmar su propia visión de las cosas, que Carlos siempre define como “mística”, de hablar de las coincidencias, que el director encuentra todo el tiempo en su vida y llena de ellas el filme (las mujeres embarazadas que cruzan frente a la camioneta de Damián, que le sirven la comida en un restaurante, que aparecen- como el vientre abultado de su mujer en sus recuerdos y evocaciones), y quizás de Truffaut, uno de los directores preferidos de Bolado, que nació, por coincidencia¡, un 6 de febrero, como él mismo y quien creó el personaje de Antoine Doinel, interpretado por el actor JeanPierre Léaud, su alter ego… Pero hubo, desde luego, otro punto de partida, y éste fue la fascinación de Carlos Bolado por las pinturas rupestres en Baja California. No las descubrió por sí solo, sino que se enteró de su existencia por Fanny Campilla, entonces esposa de Walter Doehner, amigo de Bolado. Ella le contó, durante una cena de amigos, de las pinturas y le mostró el libro de Harry W. Crosby, editado en México por Banamex. Crosby había viajado por la región y fotografiado tanto los paisajes como las pinturas (CROSBY, 1975). Carlos se autodefine como un historiador apasionado, no porque hubiera estudiado la disciplina, puesto que sus estudios formales fueron en Sociología y Cine, ambas en la Universidad Nacional Autónoma de México, sino por una inclinación personal. Por esta misma razón había colaborado como editor en los documentales Uxmal, piedras de lluvia (1992), Chichen-Itzá, la palabra del Chilam (1992), Monte Albán, uno muerte (1992) y Xochicalco (1996), que también dirigió. A Bolado le entusiasmó de inmediato la idea de hacer un documental sobre las pinturas rupestres y a partir de este momento empezó una doble búsqueda, la de la información más amplia posible no sólo sobre las pinturas, sino sobre todo el contexto en que 1 En la película hay el siguiente diálogo: Damián: Arce, ¿tú has matado a alguien? Arce: No, como cree. ¿A poco usted sí? Damián: Creo que atropellé a una mujer embarazada. Arce: ¿Cuándo? Damián: Ha unos dos meses. Arce: ¿Pero murió la mujer? Damián: No lo sé, Arce- No me canso de repetirme que yo no tuve la culpa, que esa mujer se atravesó imprudentemente… Esa mujer salió corriendo y yo ya no pude hacer nada…
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fueron realizadas, en que se conservaron y fueron “descubiertas” una y otra vez, porque, como narra el director, la falta de intervención de las instituciones estatales para preservarlas y para crear el acceso a ellas,2 produjo a los distintos viajeros la sensación de que fueron ellos quienes ponían allí el pie por primera vez,3 y por otra parte del financiamiento para el proyecto. La investigación y su vida amorosa lo llevaron a San Francisco, California, donde encontró gran cantidad de materiales sobre Baja California, mapas, textos y el libro original de Crosby, en el que criticaba más al gobierno mexicano que en su versión española, editada por Banamex. Consultó la revista Life,4 que había hecho reportajes entre 1964 y 1965 sobre las pinturas. Leyó los textos de Gardner. Encontró que había un mexicano, “un personaje increíble que se llama Fernando Jordán”, un reportero y un aventurero que, entre muchas otras cosas, viajo a Baja California y escribió El otro México, que es el libro que lleva el protagonista de la película, y también una muñeca, porque Jordán siempre llevaba una. Para Bolado Jordán fue una inspiración y la película, un homenaje a él. En realidad, recuerda Carlos, él ya había leído los reportajes de Jordán antes, cuando se quedaba en el laboratorio farmacéutico de su padre, donde había revistas con los artículos del personaje. En total, el director leyó unos 40 libros sobre la región, estudió la geología, los suelos, revisó los archivos de los jesuitas, la historia que escribieron ellos sobre su paso por la península, hasta los libros de pesca, “para saber todo”. También entrevistó a Harry Crosby y a todos que tenían algo que ver con las pinturas, a los antropólogos, al director del Museo del Hombre de San Diego. Habló con un fotógrafo mexicano, de cuyo nombre no se acuerda, pero quien había acompañado a Crosby y le explicó desde donde podía tomar las imágenes de las ballenas, imágenes que se incluyeron después en la película. Tuvieron la suerte, cuenta Bolado, que cuando llegaron allí un año después, Damián Alcázar, quien actuó como protagonista del filme, estaba a cuadro cuando las ballenas salieron. De este modo las imágenes quedaron perfectas. Bolado enfatiza mucho la importancia de la investigación previa a la realización de sus películas. Considera que eso es fundamental para todos los cineastas mexicanos porque en el Centro Universitario de Estudios Cinematográficos (CUEC) y en el Centro de Capacitación Cinematográfica (CCC)5 se estudian principalmente los aspectos técnicos de la filmación. Antes de 1982 ambas instituciones exigían que para ingresar a ellas, había que tener otra carrera universitaria, pero justamente en este año, dicho requisito se eliminó. La investigación previa, considera Carlos, permite que la película sea más “densa” 2 El Instituto de Antropología e Historia (INAH) realizó la exploración de las pinturas a partir de 1992, fecha en que empezó a regular el acceso a las cuevas en que dichas pinturas se encuentran. 3 Sin embargo, las pinturas fueron exploradas mucho antes, por los jesuitas, antes de ser expulsados de Nueva España en el s. XVIII, por un químico francés, León Diguet, entre 1889 y 1913 , por el periodista mexicano, Fernando Jordán y los arqueólogos Barbro Dahlgren y Javier Romero a fines de los cuarentas. (Entrevista a Carlos Bolado, 16 de abril de 2010, Liñán (2010), “Gran arte de la roca…”, 2010). 4 En la película, el primer personaje al que encuentra Damián camino a San Francisco, le muestra la revista Life, con los artículos de Gardner: “The Case of the Baja California Caves” y “A Legendary Treasure Left by a Long Lost Tribe,” y luego National Geografic con un artículo titulado “Baja’s Murals of Mystery”, con fotos de las cuevas y pinturas. En una de las fotos le señala a Tacho Arce. Le comenta que Gardner afirmó haber descubierto las cuevas, cuando fue él y su primo quienes le enseñaron el lugar. 5 El CUEC, una de las dependencias de la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) y CCC, dependiente del Consejo Nacional para la Cultura y las Artes (CONACULTA), son las únicas dos escuelas en México donde se preparan los cineastas.
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Espiral
y más “creíble”: “cuando un actor me pregunta por qué debe hacer tal o cual cosa, yo le digo porqué”, y eso se debe a su sólido conocimiento del tema. Junto con la lectura de los diversos textos Bolado hizo investigaciones in situ. Hizo varios viajes a la sierra de San Francisco para conocer las diversas cuevas y sus pinturas. Y una vez que las había conocido estudió a las culturas que existieron en aquellos territorios antes de la Conquista, Cochimíes, Guaycuras y Pericués. Como se trataba de culturas desaparecidas, Bolado decidió estudiar culturas similares. Dado que en las pinturas de San Francisco algunos personajes tienen tocados, es posible deducir que eran chamanes. Y así estudió a los chamanes de Siberia, a las mujeres- chamanes de Corea y a los de las Amazonas. Fue a Ecuador, a la zona amazónica para comprender los rituales chamánicos a fondo. Este estudio le permitió construir diálogos entre Damián y Arce (Jesús Ochoa), en una escena en que ambos personajes pernoctan cerca de las cuevas para ver las pinturas. Es ahí donde el viajero le explica al lugareño quienes eran los antiguos pobladores de la zona, sus creencias y rituales. Encontró también que de las lenguas de los pobladores antiguos de la zona, sólo se conservó una oración… el Padre Nuestro, que en la película recita un indígena, filmado en blanco y negro, quien empieza en latin “Pater noster…” para continuar la oración en su lengua. Cuando se levanta de la piedra en que estaba sentado, la roca cae al precipicio, simbolizando así la caída y desaparición de una cultura.6 Ahora bien, las investigaciones de Bolado se realizaban de manera paralela con sus esfuerzos para obtener los fondos para su proyecto que en un principio iba a ser un documental. En un primer momento Bolado propuso al productor de una serie de televisión sobre las ciudades del México antiguo, Gonzalo Infante, hacer un documental sobre las pinturas, pero a aquél el tema no le interesó. Recurrió entonces al Consejo Nacional para la Cultura y las Artes (CONACULTA), que le dio en 1994 la Beca para Jóvenes Creadores para un proyecto de edición de las imágenes de la ciudad de México en las películas nacionales. Pero una vez iniciado el trabajo, Bolado se arrepintió y planteó a CONACULTA 6 Carlos Bolado me explicó que esa piedra fue hecha especialmente para la película y transportada en un burro hasta el lugar de la filmación.
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el cambio de proyecto para dedicarlo a las pinturas rupestres en Baja California. El dinero de la beca le permitió viajar por primera vez a las cuevas, desde San Francisco, California hasta San Francisco de la Sierra. Bolado reconoce que se benefició de la coyuntura política. En efecto, en 1992, el entonces presidente de México, Salinas de Gortari quien, conforme a Luis Vázquez León, probablemente quería saldar la “ofensa personal” que significó el robo de las piezas del Museo Nacional de Antropología y quizás también quiso, al igual que José López Portillo, “crear la realidad histórica a voluntad”, anunció los primeros doce Proyectos Especiales en Arqueología (VÁZQUEZ LEÓN, 2003: 213-214). Al año siguiente agregó otros dos. Para financiarlos constituyó un Fideicomiso Fondo Nacional Arqueológico con 13.5 milllones de pesos, a los que se agregaron en 1994, 111 millones más (Ibídem). La distribución de este presupuesto fue desigual y la designación de los responsables de cada uno se guió por criterios políticos, además de la competencia profesional y honestidad (Ibídem: 214). El proyecto más favorecido fue el de Teotihuacán, al que se destinaron 37.5 millones de pesos y el que menos fue el de las Pinturas Rupestres con 2 millones de pesos (Ibídem: 217). Como sea, ello creó un ambiente propicio para los proyectos relacionados con estos temas. Con el material que filmó durante su primer viaje Bolado hizo una serie de videos “muy poéticos”, con la música de la tercera sinfonía de Gorecki, para mostrarlo en las presentaciones de los becarios, que fueron como 100, recuerda Bolado, y opina: Fue uno de los buenos proyectos de este sinvergüenza de Salinas, que también lo hizo para ganarse a los intelectuales, para reducir su espíritu crítico, dándoles el dinero. ¿Cómo puedes criticar el gobierno que te está dando de comer? Es una lógica muy añeja de los gobernantes. Entonces él creó el Sistema Nacional de los Creadores al que yo había pertenecido durante 2 periodos y luego el Sistema de Jóvenes Creadores en que sólo estuve 1 año… (BOLADO, 2010a).
En uno de los videos hizo un montaje con autos chocados, autos abandonados a lo largo del trayecto: “era un montaje muy dramático, sólo carros, yo salía un poquito y un poco mi ex mujer, pero en realidad no había personaje, era un punto de vista, una subjetiva, una llegada a las pinturas. Cuando la música subía en intensidad era cuando se veían las pinturas”. Filmó también las cuevas bajo la lluvia, unas imágenes de “gran belleza”, en que las pinturas se veían a través de la lluvia. Bolado cambió la velocidad de la cámara porque “me gusta mucho usar la sensación de movimiento, reducir la velocidad porque te causa una sensación de extrañeza” (Ibidem). Pero estas imágenes no las usaría en Bajo California, sino que las filmaría de nuevo. A la postre de lo que más se arrepiente es de no haber usado las imágenes de las cuevas con las pinturas bajo la lluvia “por que en Bajo California falta más lluvia, más agua”. Y agrega: “Y ya sé dónde meterlas. Es más, voy a hacer una nueva edición. Director’s cut (ríe)” (Idem: 2010b). Para poder vender su proyecto, en una época en que no se apoyaba la producción de los documentales, Carlos hizo una caja que contenía su video, una serie de fotos de las pinturas en diapositivas, una copia de libro de Fernando Jordán y un texto, que era el germen del guión de Bajo California y la entregó a todos los miembros del Consejo de IMCINE. Hubo mucha discusión sobre ello y también mucho escepticismo y Bolado
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sentía que no recibiría el apoyo. Esta caja sustituía lo que ahora es la carpeta electrónica, que los cineastas entregan cuando buscan el apoyo de la institución. Pero, entonces, de nuevo se presentó una coyuntura favorable. En 1995 fue nombrado, como director del Instituto Mexicano de Cinematografía (IMCINE) Jorge Alberto Lozoya, un hombre sin experiencia en el cine pero con buenas conexiones políticas,7 y como director de producción, Fernando Sariñana, amigo de Bolado. Sariñana desde un principio trató de convencer a Carlos de que hiciera un filme de ficción, para el cual le dio dos guiones, pero el joven director estaba empeñado en su proyecto original, aunque más desarrollado. Ahora se traba de tres documentales que se podían exhibir juntos o por separado: uno sobre las pinturas, otro sobre la vegetación del lugar y el último sobre los pobladores de la sierra. Sariñana instistió: conocía las bien las capacidades de su amigo porque él había dirigido una parte de Hasta morir (Sariñana, 1994) y había editado todo el filme. Bolado aceptó pensando en hacer dos películas, una ficción y un documental en tres partes. Pero por más deseos que tuviera Bolado de hacer su documental, por más obsesionado que se sentía con la idea del filme, que estaba preparando desde hacía más de un año, las circunstancias le fueron adversas. Después del “error de diciembre”8 y la crisis económica que se desató, a IMCINE le habían reducido el presupuesto y Sariñana le explicó que no podían hacer las dos cosas. Opinaba que hacer una ópera prima de ficción iba a pesar mucho más en la carrera de Bolado que “un pinche documental que quién sabe quién va a ver” (BOLADO, 2010a). Finalmente, Carlos aceptó. Este momento podríamos considerarlo como el origen de Bajo California, estrictamente hablando, aunque dicho origen no se podría explicar sin que existiera todo el proceso anterior. IMCINE pre-aprobó el proyecto, le dio dinero para iniciar las filmaciones, pero el resto estaba condicionado a la presentación de un guión. Entonces Bolado volvió a ir a la Sierra de San Francisco, con un pequeño equipo para filmar. Ya conocía bien la zona y a la gente, a los guías sin los cuales no era posible llegar a las cuevas, sabía ya montar las mulas y arriar los burros. Al mismo tiempo empezó a escribir el guión.
La construcción del guión o “el proceso creativo nunca termina” Carlos Bolado recuerda de esta manera sus primeras ideas sobre el guión: Entonces decidí hacer una ficción. Entonces decidí escribir la historia de un personaje, pensé en Jordán, mis experiencias de viaje, lo que había vivido con los guías, yo ya me los conocía tanto que sabía cómo hablaban, entonces dije: voy a escribir la historia. … y a partir de una fantasía flashforward que es escribir un poco lo que me iba a pasar, esos son mis rollos místicos… Yo en este momento era el novio 7 Carlos Bolado lo definió así: “él había sido el asesor de Salinas y entró como director de IMCINE porque se lo pidió a Zedillo. De ser economista quería pasar a ser director de cine o algo así”. 8 Así se denomina popularmente en México la crisis económica que inició en 1994 y que provocó, entre otras cosas, una fuerte devaluación de la moneda nacional.
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de esta mujer, entonces yo puse que este guey era un mexicano que vivía en Estados Unidos, que se había casado con una mujer judía y demás. Eso todavía no me pasaba. Y tuvo un hijo. Fue niña en la película y el mío fue niño. Pero después sucedió, 4 años después, 5 años después, pasó todo eso. … también nuestra propia experiencia, para mis hermanos es muy cercana la película porque somos huérfanos, mi madre murió atropellada por un automóvil, entonces cuando yo pongo a esa mujer embarazada es una referencia a nosotros. (BOLADO, 2010a)
La estructura de la historia se basó en el Héroe de las mil caras de Joseph Campbell porque Bolado quería hacer algo “muy clásico”. No se acuerda desde cuando lo conocía, pero supone que a través de los libros de guión. Pero cuando empezó a desarrollar la historia de Damián, inspirada en sus propias vivencias y las de Jordán, se dio cuenta que él era “muy urbano” y que necesitaba de la colaboración de alguien quien conociera más el campo, “y ahí es donde entró Ariel García”. Define a su co-guionista como un hombre muy culto, autodidacta, cuya familia procedía del campo. Lo que le propuso es que desarrollara con él los diálogos entre Damián y Arce (actuado por Jesús Ochoa), en los que Carlos era Damián y Ariel, Arce. García tocaba la puerta de Carlos todos los días a las 9 de la mañana. Trabajaba en mi casa, en mi estudio, nos echábamos nuestro té, nuestro café, comíamos y nos echábamos él su whisky y yo mi vino y así todos los días. Porque yo le decía ¿cómo lo contestarías tú? Revisábamos los diálogos. Yo decía una cosa y él decía otra cosa. Él leyó el libro de Jordán, él me regaló una edición original del libro de Jordán. Él empezó a leer todos los libros de Jordán, y hablábamos. El me dijo hay una persona que se casó con el hijo de Jordán, entonces la conocimos, él hizo algunos contactos… (BOLADO, 2010a).
Pensó en quienes iban a interpretar a los personajes. Para el papel protagónico quería a Demián Bichir, a quien había conocido por Fernando Sariñana, mientras filmaba Hasta morir, porque hablaba muy bien el inglés y tenía el acento pocho.9 Sin embargo, el actor tenía la agenda llena. Entonces se acordó de Damián Alcázar. También se trataba de un actor conocido. Cuando Bolado estudió en el CUEC, su maestro de dirección de actores era Zermeño, quien llevó a sus estudiantes a algunas obras que él había montado y en las que actuaba Alcázar. El actor accedió a hacer unos cortos con los estudiantes y les pidió que lo llamaran cuando hicieran las películas. Pero cuando empezaron a hablar del personaje resultó que el actor no conocía el inglés y no sabía manejar… La película empieza con él manejando un jeep a través de la frontera y luego en dirección a la Sierra de San Francisco. Bolado le enseñó a conducir el carro, aunque cree que en la película se nota la inseguridad de Alcázar cuando toma las curvas. Otros detalles a resolver eran el bigote que el actor lucía y su vestuario. El director le pidió rasurarse el bigote, para que su personaje se viera frágil. En cuanto al vestuario
9 Así se llama el acento que adquieren los mexicanos que viven en Estados Unidos.
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acordaron que Alcázar escogería entre la ropa que usan los guías en la sierra. Sólo usó su propio pantalón de mezclilla. Para el papel de Arce, el guía de Damián, desde un principio pensó en Jesús Ochoa. Éste vaciló, pero lo convenció su esposa. Y es que en IMCINE se consideraba que Carlos no tenía un verdadero guión, porque sólo constaba de 60 páginas. Pero una vez que empezó a acudir a los ensayos, en la azotea de la casa de Carlos en la Colonia Roma, el proyecto le gustó cada vez más. Y cuando ya se metió en la película “era como un niño feliz jugando, se mimetizó con los vaqueros y volvió a su juventud, cuando jugaba con sus primos en Sonora” (BOLADO, 2010b). Las características de la compañera embarazada de Damián tenían que ver con las de Justine Shapiro, una judía norteamericana, y pareja de Bolado en este entonces. Y su embarazo era el flashforward del director. La interpretó Claudette Maillé, pero el vientre que aparece tantas veces en el filme, era de la hermana de Carlos. La filmaron en Cuernavaca. Y la niña que nace hacia el final del periplo de Damián y que aparece en las fotos que éste encuentra en la oficina postal en Santa Rosalía son las de la hija recién nacida de Manuel Hinojosa, el primer asistente en el viaje de scouting. El personaje que encuentra primero Damián en su travesía, interpretado por Fernando Torres, está pensado para contarle al viajante (y a los espectadores) de las pinturas rupestres y así orientar su aventura que inicialmente sólo tenía que ver con la búsqueda de la tumba de su abuela, Olivia. El viejo invita a Damián a su camper pintado de rosa y ahí le muestra la revista Life, los artículos de Gardner y las fotos de las pinturas, así como de Tacho Arce, que fue su guía. Mientras los personajes conversan las observan mujeres vestidas de negro, con las cabezas cubiertas. Estas mujeres, explica Carlos, eran del circo que se había establecido en las inmediaciones porque las habitantes del lugar no habían accedido a aparecer en el filme. Dichos mujeres, contrariamente a lo que había pensado la autora de este artículo, no eran las “chismosas del pueblo” sino la familia del viejo: Es que ahí se hacen uniones muy extrañas, lo que te decía, esta endogamia. Y cuando alguien se muere, tienen la costumbre, como los judíos, de adoptar a los otros. Un hombre se muere o se va y tú agarras la familia de tu hermana o de tu cuñada. Y de repente ahí viven todos (BOLADO, 2010b).
El personaje del caminante (Gabriel Retes) quien intercambia su sombrero por la gorra del Damián y le da unas pequeñas piedras para chupar, ha sido inspirado en parte en el libro de Campbell, como esta persona que le da una información al héroe y a veces cambia su itinerario. Sin embargo, Carlos tenía una motivación mucho más profunda y el proceso de construcción del personaje puede ser un ejemplo de lo complejo del proceso creativo. En primer lugar Bolado quería rendir homenaje al propio Retes,10 este director de cine mexicano heterodoxo, “el que tomó otro camino”, el que siempre ha buscado for-
10 Entre las películas de Retes destacan Chin Chin el teporocho ( 1975), Nuevo Mundo (1976), Flores de papel (1977), Los náufragos del Liguria (1985), La ciudad al desnudo (1989), El bulto (1991), Bienvenido/ Welcome (1994) y Un dulce olor a muerte (1998).
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mas novedosas, como lo hizo también Rubén Gámez11 y el hermano de Carlos, Jorge.12 Cuando Retes se resistía a aceptar la invitación del director para actuar en el filme argumentando que él sólo era actor de sus propias películas, Bolado le dijo: Es que quiero que actúes de director. Yo quiero que tú seas Gabriel Retes que es un caminante, es un homenaje a ti, hay un camino ahí y tú tomas el camino del desierto. Tú te vas por donde hay piedras, tú pasas por el camino y te vas por el otro (…) no sigues el camino hecho (BOLADO, 2010b).
Otra vivencia de Carlos y Justine Shapiro marcó al personaje de Retes. Mientras estaban filmando vieron una capa roja en la carretera. De pronto esta capa empezó a moverse y de pronto se incorporó un hombre que la llevaba. Carlos le pidió a su compañera que le sacara una foto, y así se produjo el diálogo que luego fue incorporado a la película: Damián: Le voy a tomar una foto. Retes: No, para qué? No vale la pena. A lo anterior se sumó la figura del “deambulador”, que estaba presente en las ciudades como Cacaxtla o Xochicalco en el período clásico, asegura Bolado, un personaje que traía noticias. Entonces “cuando escribimos la historia de Retes, es la suma de todas esas cosas (…) aquí le pongo el valor simbólico y el narrativo (lo que) hace que tu historia llegue a distintas personas por distintos motivos o razones, que es el cine por capas (Íbidem). Las demás personas que aparecen en el filme son reales, son, en efecto, los Arce. El director filmó a cada uno de ellos mientras daban su nombre completo y editó el material de esta manera que el espectador queda impresionado por la endogamia existente en esta zona. La reconstrucción del árbol genealógico, que en la película hace Damián, también se basa en la historia real de la familia Arce, como asegura Bolado. Y los guías que aparecen hacia el final del filme platicando con Arce alrededor de una hoguera, son realmente los guías que acompañaron al equipo durante la filmación. Esta escena, explica Bolado, fue dirigida por Jesús Ochoa, quien se identificó muy rápidamente con la gente de la sierra y convivió estrechamente con ellos mientras se encontraba ahí. Carlos piensa que es importante involucrar a los actores en el proceso de la filmación: para que ellos se sientan creadores junto contigo y eso hace que haya más riqueza y más colaboración porque en el fondo sí es cierto que el cineasta, el director es como un director de orquesta, que dice “ahora juegas tú”, y que también tiene que escoger a todas las gentes creativas que enriquecen tu película, tienes que escoger lo que más aplica, porque el concepto general de la película lo tienes tú (BOLADO, 2010a).
También involucró a Alcázar a quien pidió que filmara sus pies caminando. Después hizo con estas toman un montaje magistral en que se aprecian los distintos tipos de 11 Entre otros, guionista, fotógrafo y director de Formula secreta (1965) y Tequila (1991), películas multipremiadas. 12 Jorge Bolado ha filmado, entre otros, Segundo siglo (2000) y Dios y todos los santos (2002).
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Pituras rupestres
suelo que pisó el caminante durante su travesía. Esta idea se le ocurrió a Carlos mientras viajaba una y otra vez hacia San Francisco de la Sierra y observó que el suelo cambiaba muchas veces, y que dar cuenta de ello podía enriquecer el filme. Un papel importante en la construcción del guión lo desempeñaron dos artistas plásticos que Bolado invitó al proyecto y que tomaron un papel protagónico cuando renunció el director del arte, que se sentía boicoteado por el productor de la película. Fueron Abraham Cruzvillegas y Sebastián Romo. Bolado pensó en ellos porque desde hacía tiempo le encantaba el trabajo de Richard Long y de Hamish Fulton, cuya obra conoció en Edinburgo en los años 80. Ambos son representantes británicos de Land Art, una tendencia de arte contemporáneo que usa el marco y los materiales de la naturaleza. Su principal técnica es la instalación en el paisaje, donde las obras interactúan con el medio ambiente y el artista se apropia y reinterpreta de alguna manera el territorio. Tanto Long como Fulton practican el arte de caminar y fue a partir de la impresión que ello le causó al director, que decidió que su protagonista sería un artista caminante que intervendría en el paisaje con elementos cada vez más sencillos, encontrados en la propia zona. Las piezas que crea Damián en la película fueron hechas principalmente por Sebastián Romo, antes de la filmación bajo la idea de que el proceso del protagonista consistiría en ir dejando todo lo tecnológico para regresar a lo natural, a lo más sencillo. Al final Damián ya no iba a poner las cosas en el suelo sino empezar a quitar elementos del entorno, pero Bolado confiesa que se equivocó a la hora de editar y esta acción, al final del filme, ya no se puede apreciar. En el guión los diálogos no son los más importantes, como les dijo Bolado a quienes en el IMCINE consideraban que 60 páginas no eran suficientes. Una gran parte del filme describe mediante las imágenes y el sonido el viaje de Damián, tanto el que hace por tierra, como su recorrido interior. Hay largas secuencias de Damián manejando el jeep, secuencias en que además de observar su estado de ánimo y presenciar sus recuerdos, el espectador se va dando cuenta de lo largo del camino que tiene que recorrer el artista hasta San Francisco de la Sierra, y de que en este camino no hay ningún tipo de construcciones ni huellas de presencia humana. Damián quiere alejarse de sus problemas y
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viaja hacia un territorio alejado del resto de México que simboliza, desde luego, el largo recorrido hacia su propio interior. Este aislamiento de la población de la sierra - de ahí que los Arce se fueron casando entre ellos- impresionó mucho a Carlos Bolado, quien cuenta que la principal carretera que une las dos penínsulas se construyó bajo el gobierno de Echeverría, alrededor de 1973. Fanny Campilla le había contado que cuando en los setenta llevó a Rufino Tamayo a las cuevas, tardaron tres días en mula. El camino que llega a la sierra se construyó en los 80 “y eso lo cambió todo”. Antes, tal como lo menciona Jordán, la gente hablaba un español antiguo, “como en el siglo XVIII”. Estaban aislados, no tenían radio ni televisión. “La propaganda, las cosas se las echaban por el helicóptero, pero ni iba nadie”, subraya Bolado. Hasta hoy no tienen luz, pero tienen las celdas solares que les llevaron los norteamericanos y que se conectan a un acumulador que genera la energía necesaria para que puedan usar radio como medio de comunicación entre ellos y la televisión. Carlos cuenta que un rico de la sierra llevó en pedacitos, en un burro, una antena parabólica gracias a la cual pueden ver la televisión, “El chavo del ocho”. Eso, concluye el director, les cambió el lenguaje. Cuenta que la primera vez que fue a ver las pinturas, al salir de San Ignacio vio un letrero que indicaba que para San Francisco de la Sierra faltaban 37 km. Como eran las 4 de la tarde decidió viajar ahí para ver las cuevas y regresar a dormir a San Ignacio. Pero resultó que el camino era muy estrecho, lleno de hoyos, “muy difícil, casi escabroso, muy complicado”. Llegó la noche, tal como le ocurre a Damián en la película cuando se queda sin gasolina, y tuvieron que buscar donde dormir en un lugar sin hoteles, ni posadas para turistas. Él director cree ello permitió establecer un contacto más cercano y cordial con los pobladores, lo que después facilitaría el desarrollo del proyecto de la película. La endogamia ha provocado que un porcentaje relativamente alto de los hijos de los Arce tengan problemas mentales. Carlos filmó a uno de ellos pero, explica: cuando estaba escribiendo el guión dije, han sido tan buenos conmigo, porqué lo voy a decir, no es que lo hagan… han vivido solos, no han tenido muchas opciones. No han ni de entender por qué y yo voy a empezar a decir… se me hizo muy morboso. Y decidí que no era lo que yo tenía que contar (BOLADO, 2010a).
Ahora bien, aunque el guión era una guía del trabajo, ocurrieron circunstancias que impidieron filmar lo que estaba en él y cosas que se fueron agregando sobre la marcha o incluso terminada la edición de la película. Porque “el proceso creativo no termina”, explica Bolado, hasta que de verás no hay ya nada que agregar. “Lo más importante es nunca quedar en la inmovilidad” y compara el proceso de la maduración de la obra, aunque guardando las distancias, con la que retrató Víctor Erice en el Sol de membrillo, inspirándose en el trabajo de Antonio López. Bolado leyó el filme como la metáfora del trabajo creativo, de la constante búsqueda de la perfección. De manera que, reconoce, el hecho de que la película se filmara a lo largo de tres años, dados los problemas que tuvo con Gonzalo Infante, su productor, finalmente benefició al filme. Qué es lo que había en el guión y no se filmó? Una toma de los acantilados, contesta Carlos, una toma aérea con la que iba a empezar el filme “para mostrar la dimensión de la península, tan estrecha que se mete al mar, como el personaje…” (BOLADO, 2010b). Esta toma no se hizo porque de pronto el director recibió la noticia de que debía comunicarse
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Quemando camioneta
urgentemente con el productor. Hizo la llamada telefónica de una caseta en Santa Rosalía y escuchó de la voz de Gonzalo Infante, que se había acabado el dinero y que debían regresar inmediatamente al Distrito Federal. Carlos Bolado no daba crédito pero verificó en el banco y, en efecto, la cuenta estaba en ceros. Carlos cuenta que enloqueció, se quedó un día más para filmar lo que se podía, los petroglifos y una escena en que Damián se metía desnudo al mar. Después ya en DF filmaron el accidente en que Damián atropellaba a una mujer y que, gracias a la sugerencia de Guita Shyfter13 quedó al principio del filme para crear una especie de impresión o curiosidad en el espectador. “Por que después tú ya te soplas cualquier parte de la historia porque hay algo más, hay un secreto…” (BOLADO, 2010b). Tampoco pudo filmar en algunas locaciones originales, por ejemplo en una playa que se llama Marabrimo, que describió Jordán porque cuando fue a esta playa encontró desechos de la II Guerra Mundial, puesto que las corrientes marítimas llevan la basura tirada en el Pacífico justamente para allá. Estaba planeado que Damián llegaría y caminaría por allá, escena que finalmente se filmó en otro lugar, dada la dificultad para acceder a la locación. Ello en el filme ocurre poco antes de que Damián decidiera quemar su camioneta y continuar su periplo a pie. Pero los últimos momentos del rodaje fueron my difíciles, la relación con el productor se rompió por completo cuando éste se quedó con gran parte del dinero de la película y con algunos negativos. La película, cuenta Bolado “salió en 500 mil dólares pero 300 mil están en la casa de este hombre que se construyó en la Condesa, con pisos italianos, en fin. Comprobado¡ Yo tuve las pruebas y me las arrebataron¡” (BOLADO, 2010a). En otro momento cuenta cómo pudo recuperar el negativo del filme después de largas negociaciones: Tardé otros 6 meses, era una tormenta conseguir el negativo, me cortaron el negativo, me cortaron escenas porque había una gran escena de un eclipse de un cometa, la mejor escena del cometa la robó el productor para venderla y el negativo estaba tijereatado cuando lo recibimos (Ibidem). 13 Directora, productora y guionista de numerosas películas documentales y de ficción.
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Pero así como hubo escenas que nunca se filmaron, otras que le fueron sustraídas por Gonzalo Infante, también hubo secuencias que decidió sacrificar el propio Bolado, para no alargar la película. Todas eran escenas que le gustaban mucho a él y a los demás pero entonces recordó que Antonioni había dicho que él había dejado los mejores planos de sus películas y las mejores secuencias colgadas en el cuarto de edición, para que el resultado fuera mejor. Carlos decidió cortar una escena en que Damián escuchaba solo, de noche, en un descamapado, tocar al trío de músicos que habían tocado en el velorio del niño muerto y que, creía, era una escena muy bonita y nostálgica. Este trío estaba inspirado, confiesa Carlos, en el grupo de Kusturica que suele aparecer en sus filmes. También quitó una puesta de sol que filmó en la misión jesuita, que duraba 5 minutos y simbolizaba la caída de la civilización antigua, y unos impresionantes petroglifos con animales marinos gigantes en una zona desértica, que filmó cuando ya no había dinero. Tampoco incluyó la escena en que iban a hacer la instalación con piedras en forma del corazón. Resultó que para amarrarlas habría que perforar los cactus, cosa que Bolado no quiso hacer y renunció a ella. Tampoco pudieron filmar en San Diego, excepto la breve escena que aparece al inicio del filme, porque los detuvo la policía argumentando que no tenían ni permiso para filmar ni licencias para conducir… Aunque una de las policías opinaba que se trataba de una falta grave, los salvó otro de ellos que se lo tomó con humor, se río de su osadía y los mandó de inmediato del otro lado de la frontera. La música original para el filme la compuso Antonio Fernández Ros, quien ya había colaborado con Bolado en otro proyecto. La compuso cuando el filme ya estaba editado, cuando ya estaba terminada la parte visual. Carlos explica su método: Yo creo mucho, y de eso también habla Wajda, que tú debes tener tu propio ritmo, de las imágenes, y también tu propia música. Él de pronto se quejaba de la construcción del montaje a partir de una pieza musical, que a veces eso hacen los editores, porque este ritmo de la música está hecho para esta pieza musical, y de repente te están imponiendo un ritmo, y la imagen tiene su propio ritmo. Uno tiene que combinar los diversos ritmos, sumarlos, y no imponerlos, no hacer uno solo. La edición de la imagen tiene que ser silenciosa, tiene que tener su propio ritmo sin interferencia del sonido directo, ni de los diálogos ni obviamente de la música. Para que cuando tú agregues el sonido hagas lo mejor, se sume, le des una profundidad, hagas una mucho mejor secuencia. Yo como editor siempre una de las últimas cosas que hago es veo la película sin sonido. La veo también a gran velocidad de atrás para adelante. La veo de principio a fin a gran velocidad y luego de fin a principio. Todo esto para ver la estructura, que éstas son mis herramientas para ver la estructura, para ver los grandes bloques y ver la duración y tener la sensación de cómo se cuenta la historia, creo que eso es muy importante. Creo que tienes que tener tu propio ritmo para que cuando sumes la música tengas un contrapunto, hay un diálogo, una suma. Entonces Antonio recibió las imágenes ya editadas además sabiendo que iba a haber una
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secuencia musical. Pero le dije ésta es la imagen. Buscar este diálogo entre el ritmo de la imagen y su propio ritmo de la música, para que se sumen y no se empaten y sea lo mismo. Son todos estos detalles que se suman, para que tu experiencia de esta obra audiovisual sea mucho mejor y más fuerte, son todas esas cosas que de manera muy sutil y que no sea muy obvia, pero terminan por impactar al espectador, influenciándolo (BOLADO, 2010b).
Al principio hubo diferencias entre Fernández y Bolado. Trabajaban a distancia porque no había todavía la tecnología que permitiera una comunicación más ágil. Carlos acababa de ver Kundun de Martín Scorsese y no le había gustado ni el filme ni la música compuesta por Philip Glass, cuando le llamó Fernández para contarle que había pensado en una música minimalista que recordaba las obras de Glass. Eso, obviamente, lo preocupó mucho. Cuando la escuchó por primera vez, todavía tenía dudas. Pero cuando llegó la Orquesta de Bellas Artes a los Estudios Churubusco para grabar la música para la película, bajo la dirección de José Arián, Bolado se sintió muy satisfecho. La primera exhibición del filme ante el público entre el cual estaba Eduardo Amerena, el entonces director de IMCINE, le confirmó que la música “dialogaba” muy bien con las imágenes. Cuando la película ya estaba editada decidió agregar algo más. Acababa de ver Distant Voices, Still Lives (1988), dirigido y escrito por Terence Davies, una película que retrata los años de guerra y posguerra en Liverpool y en la que “no hay sonido más que canciones, canciones que la gente canta” (BOLADO, 2010b). Y entonces pidió a Justine Shapiro que cantara en inglés las canciones infantiles, grabaron su voz y lo agregaron al filme “y creo que esto le da cierta añoranza”, explico Carlos (Ibidem).
Notas finales ¿De qué finalmente fue hecha la película, premiada en México con 7 Arieles y con el Premio de la Crítica en el Festival de Guadalajara, y en el extranjero con el Gran Premio del Jurado del Festival de Amiens, además de formar parte de las selecciones oficiales en los festivales de Sundance y de Toronto? De los intereses y preocupaciones personales de su director, editor y co-guionista, de sus gustos por los distintos tipos de música, por las artes plásticas, por algunas películas y algunos directores de cine, por la importancia que tiene para él la naturaleza y su interacción con el hombre, por su concepción de cómo debe filmarse, editar y relacionar las imágenes con la música, por su apertura para escuchar los consejos y las sugerencias de quienes intervinieron en el filme directa e indirectamente, por su relación amorosa con Justine Shapiro que lo acompañó a lo largo de todo el proceso e hizo la voz de Claudette Maille, por los actores que se identificaron con sus papeles, por la amistad de algunas personas que le brindaron apoyo, como lo hizo otro exitoso director de cine, Fernando Sariñana, por una coyuntura favorable que se creó durante el gobierno de Salinas de Gortari hacia la arqueología mexicana, y también por una constante lucha contra la burocracia del IMCINE, contra la corrupción en que participaron algunos de sus funcionarios. La obra de Carlos Bolado es, en suma, la síntesis de él y de sus relaciones personales, de su historia, pero también de un contexto cultural e institucional en que se desenvolvió, que le puso muchas trabas, pero que también lo apoyó, y desde luego, de su persistencia para llevar a buen puerto un proyecto del que se apasionó.
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Referencias BOLADO, Carlos. “El sueño llega a la pantalla”, Excélsior, sección Función, 14 de septiembre, de 2006, p. 8. ______. entrevista concedida a la autora, 16 de abril de 2010a. ______. entrevista concedida a la autora, 2 de junio de 2010b. CAMPBELL, Joseph. El héroe de las mil caras. Psicoanálisis del mito. México: FCE, 1999. CROSBY, Harry. The Cave Paintings of Baja California: Discovering the Great Murals of an Unknown People. San Diego: Sunbelt, 1975. “Gran arte de la roca del Mural, Baja California”, www.worldlingo.com/…/Great_Mural_ Rock_Art,_Baja_California. LIÑÁN ÁVILA. El rastro de los dioses. Un viaje a las pinturas rupestres de Baja California Sur. México: UNAM, M.A. Porrúa, 2010. GARDNER, Erle Stanley. “The Case of the Baja California Caves”, “A Legendary Treasure Left by a Long Lost Tribe”. Life 53(3):56-64, http://en.wikipedia.org/wiki/Great_Mural_Rock_ Art,_Baja_California, 1962 VÁZQUEZ LEÓN, Luis. El Leviatán arqueológico. Antropología de una tradición científica en México. México: CIESAS/M.A. Porrúa, 2003.
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Aleksandra Jablonska es Doctora en Historia del Arte. Profesora, investigadora de la Universidad Pedagógica Nacional y de la Facultad de Filosofía y Letras de la UNAM. Ha publicado, entre otros La Revolución mexicana en el cine: 1911- 1917, México, UPN, 1997 (en coautoría) y Cristales de tiempo: pasado e identidad en las películas mexicanas contemporáneas, México, SEP/UPN/ CONACYT, 2009.
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ENTRE RITOS E MITOS
tempo cíclico e (re)nascimento em Bajo California EDSON PEREIRA DA COSTA JÚNIOR*
Resumo: Trata-se da análise da película mexicana Bajo California: El límite del tiempo (1998), dirigida pela cineasta Carlos Bolado. Relacionamos o estudo do historiador romeno Mircea Eliade, a respeito da percepção do ser e da realidade nas sociedades arcaicas, e a jornada do protagonista Damián Ojeda rumo ao lugar onde viveram seus ancestrais. PALAVRAS-CHAVES: CARLOS BOLADO, MIRCEA ELIADE, PERCEPÇÃO EM SOCIEDADES ARCAICAS Between rites and myths: cyclic time and (re)birth in Bajo California Abstract: This essay is an analysis of the Mexican film Bajo California: the limit of time (1998), directed by Carlos Bolado. Mircea Eliade’s study of the perception of being and reality in archaic societies is related to the journey of the protagonist Damián Ojeda to the place where his ancestors lived. KEYWORDS: CARLOS BOLADO, MIRCEA ELIADE, PERCEPTION IN ARCAIC SOCIETIES
Entre ritos e mitos: tempo cíclico e (re)nascimento em Bajo California O presente artigo tem como objetivo relacionar a jornada empreendida pelo personagem Damián Ojeda, do longa-metragem mexicano Bajo California: El límite del tiempo (1998), com as concepções do ser e da realidade que o filósofo e historiador romeno Mircea Eliade detecta no comportamento das sociedades pré-modernas, mais especificamente a realização de rituais baseados em gestos arquetípicos praticados originalmente por deuses, heróis ou antepassados. O percurso realizado por Damián reflete, para nós, a crença em um tempo cíclico que constantemente se renova e, simultaneamente, promove uma renovação espiritual do ser humano. Bajo California: El límite del tiempo é dirigido pelo cineasta mexicano Carlos Bolado. A película compreende a história de Damián Ojeda, um artista plástico que mora em San Diego e está prestes a se tornar pai. Depois de, acidentalmente, atropelar uma grávida, Damián entra em uma forte crise pessoal e resolve deixar sua família para realizar
uma viagem ao México, à região de San Francisco de la Sierra, conhecida por abrigar pinturas rupestres. É na localidade, também, que está enterrada a avó de Damián. O deslocamento até e por San Francisco de la Sierra é permeado por flashbacks1 que remetem a gravações em vídeo feitas da mulher de Damián, que está gestante, e à ocasião em que o artista plástico atropela uma grávida. Deleuze (2007) explica que os flashbacks são utilizados no cinema clássico como explicação ou causalidade psicológica de algo que ocorre no presente. Esse retorno frequente a imagens de seu passado evidencia que tanto a gravidez da companheira quanto o acidente de carro são motivações para a crise que desencadeia a viagem do protagonista. Tentaremos apontar durante o decorrer do artigo como as provações que o protagonista passa em sua jornada estão vinculadas a um ciclo onde morte e vida se sucedem constantemente e às imagens do passado reveladas por meio dos flashbacks. Cremos que o artista plástico necessita restaurar a paz com o Universo para poder se entregar à tarefa de ser pai, educador e doador de vida a um ser. A respeito do cinema mexicano contemporâneo, Aleksandra Jablonska destaca películas que versam acerca de sujeitos que transformam suas identidades a partir de deslocamentos geográficos e espirituais. Jablonska (2007a) aponta duas situações na cinematografia em destaque: filmes onde os personagens viajam ao norte – na maioria das vezes aos Estados Unidos – com a finalidade de romper com uma tradição opressiva ou a fim de buscar emprego e melhores condições de vida; e películas que abordam viagens ao sul – partindo de regiões fronteiriças dos Estados Unidos em direção ao centro-sul do México ou a lugares além de suas fronteiras. A segunda categoria, que compreende Bajo California, geralmente remete a experiências espirituais: El sur representa en las películas mexicanas, definitivamente, la oportunidad de una renovación espiritual: del reencuentro con las raíces, de maduración y de enriquecimiento personal. El punto de partido lo constituye siempre uma fuerte crisis personal. (JABLONSKA, 2007: p. 56)
Relacionaremos a experiência espiritual apontada por Jablonska com o que Mircea Eliade postula sobre ‘o Mito do Eterno Retorno’. O historiador romeno afirma que a base para qualquer ritual ou mito consiste na repetição de gestos arquetípicos realizados originalmente por entes sobrenaturais, heróis e ancestrais. (ELIADE, 1985) Enquadrando Damián dentro dessa concepção de repetição, ponderamos que o percurso do protagonista de Bajo California em direção à região onde viviam seus ancestrais está repleto de gestos e ações que participam de uma realidade que os transcende e têm sua origem em um tempo primordial, sagrado. Os atos de Damián não se encerram em si, mas no significado agregado aos mesmos a partir de um modelo, de um protótipo mítico que os precede. Baseando-se na tradição hermenêutica simbólica, Jablonska (2007b) escreve que o homem não tem acesso a uma realidade imediata, mas é regido por desejos que nunca são satisfeitos plenamente e que os colocam frente a algo inalcançável ou ausente por meio exclusivo da razão ou da objetividade. Essa realidade ausente só seria preenchida a partir de formas de conhecimento baseadas na capacidade simbólica. 1
O termo designa um circuito que vai do presente ao passado, e depois volta ao presente. O flashback compreende a relação entre a imagem atual ou do instante presente e a imagem-lembrança, que traz à consciência um momento único e singular do nosso passado. (DELEUZE, 2007)
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Nuestro presente no es el mundo inmediato sino un conjunto de representaciones que incluyen elementos del pasado y también las anticipaciones de lo que queremos o tememos vivir. Nuestra vida depende menos de las circunstancias objetivas que de la forma como nos la representamos y de cómo la orientamos conforme a las creencias, deseos, aspiraciones, miedos. (JABLONSKA, 2007b: p. 4)
A repetição de gestos está impregnada de uma ontologia arcaica onde um objeto ou uma ação só é real a partir do momento em que se baseia em ações primordiais. Ao cumprir rituais baseados em mitos e repetir ações de seus ancestrais ou de entes sobrenaturais, o homem das sociedades arcaicas acredita que consegue sair do tempo concreto e desprovido de significado, e do espaço profano, para habitar um tempo mítico e um espaço sagrado. A partir da realização do mito, o homem torna-se, por um instante, contemporâneo e conterrâneo daqueles em que baseia seus gestos. A imitação de arquétipos envolve a eliminação implícita do tempo profano, da duração e da história. (ELIADE, 1985) O ser retorna à época da origem, dos deuses, e repete as ações que correspondem ao ato da criação, à cosmogonia. Refaz os gestos dos seres sagrados e, simbolicamente, é como se criasse um novo Universo. A vida do homem inicia-se novamente, como se o seu passado fosse eliminado. A abolição ou negação do tempo profano ocorre pela transferência do homem, a partir do gesto exemplar, à época mítica em que o gesto foi feito pela primeira vez. A jornada de Damián, que repete a viagem arquetípica do herói,2 (JABLONSKA, 2007a) se passa em outro tempo que se diferencia do devir, do tempo profano que Eliade (1992, p. 38) qualifica como “a duração temporal ordinária na qual se inscrevem os atos privados de significado religioso”. Durante sua passagem por San Francisco de la Sierra, Damián encontra-se em uma temporalidade mítica, recuperável aos homens por meio de rituais. Eliade (1985) considera que a integração a esse tempo sagrado, mítico e primordial compreende uma tentativa de restauração, de purificação e anulação dos pecados. A abolição da duração ordinária e reintegração à época primordial, a fim de promover a purificação ou novo nascimento está relacionada, tratando-se de Bajo California, ao atropelamento3 da mulher grávida. Damián realiza gestos arquetípicos para ser transferido a uma realidade sagrada. Através desta, o personagem passa por uma purgação dos males que causou, tem um novo nascimento (re-nascimento). O acidente provocado fica em um tempo decorrido, anulado, que não mais lhe aflige – posto que expurgado. A reintegração à época mítica necessita também de uma transformação do espaço profano em espaço sagrado. (ELIADE, 1985) Acreditamos que a jornada até a região sacralizada de San Francisco de la Sierra é pontuada por meio das várias intervenções que Damián faz naquela terra. Ele, que é artista plástico e, portanto, criador e manipulador de formas, age como um xamã, manipulando os elementos da natureza. Podemos 2 Uma travessia que deve ser realizada por homens e mulheres a fim de se transformarem em pessoas maduras e cumprir o ciclo da vida. O deslocamento físico é associado a uma mudança interior, psicológica. 3 Mortes por atropelamento marcaram profundamente a vida do diretor Carlos Bolado. Jablonska (2010) escreve que o cineasta tinha 10 anos quando sua mãe foi atropelada e morreu. Durante as filmagens de Bajo California, Bolado estava em um carro que atropelou e matou um homem. O cineasta conta que este último acidente foi fundamental para o sentimento de culpa que se converte em um traço do personagem Damián Ojeda.
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mencionar a cena em que o herói depara com conchas espalhadas no chão e as organiza no formato de uma espiral. O gesto também se repete com outros materiais, como pedras que o protagonista encontra durante sua caminhada. Com o progredir da jornada de Damián, perde-se a noção dos dias decorridos. O mesmo acontece com a localização do herói. Inicialmente, um mapa traça o percurso feito, mas, depois de chegar a San Francisco de la Sierra, não há qualquer indicativo geográfico. O tempo e o espaço ficam indefinidos, sem marcas rígidas, representando a entrada no tempo-espaço mítico dos deuses e ancestrais. As intervenções que Damián realiza são dotadas de outros significados imbricados aos flashbacks da esposa e do atropelamento. Nos próximos tópicos do artigo, debruçar-nos-emos sobre a simbologia por trás das ações daquele personagem durante a passagem pela terra de seus ancestrais.
Centro, lugar do sagrado e do novo nascimento O círculo é uma forma geométrica constante durante Bajo California. A peregrinação de Damián, da saída da Califórnia até as rochas com as pinturas rupestres, é marcada pelo aparecimento reincidente de círculos – além de uma espiral: a tatuagem em sua testa, a intervenção que faz com pedras, o ventre das mulheres grávidas, o chapéu que o protagonista recebe do andarilho, o círculo pintado em um pedregulho, o círculo de fogo que aparece depois da explosão do carro, o quebra-molas durante a passagem pela fronteira que divide Estados Unidos e México, a espiral feita com conchas, dentre outros.
Os círculos atravessam a jornada de Damián até e por San Francisco de la Sierra
Os círculos que perpassam a viagem de Damián Ojeda são interpretados por nós como uma alusão aos “ritos do centro”. Eliade (1996) discorre sobre a simbologia e os significados que várias culturas atribuem ao “Centro”, geralmente derivadas da imagem de três regiões cósmicas (Céu, Inferno e Terra) unidas a um “Centro” por meio de um eixo. A simbologia remissiva ao “Centro” tem sua origem nas imagens arcaicas dos centros do mundo: a Montanha Cósmica, a Árvore do Mundo ou o Pilar Central. Essas regiões são consideradas zonas do sagrado, e também equivalem ao “umbigo da Terra, o ponto onde começou a criação”. (ELIADE, 1996: p. 39) A presença constante dos círculos em Bajo California indica que a região de San Francisco de la Sierra e a jornada de Ojeda têm um teor sacro e, ademais, assinalam que a viagem consiste em uma peregrinação
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rumo ao centro ou ao local onde tudo começou. Retrata, assim, um novo nascimento ou o renascimento espiritual e psicológico. Na mitologia de várias culturas, o caminho em direção ao “Centro” consiste em uma espécie de transformação. O ser que realiza essa peregrinação muda de condição; passa de uma existência profana e ilusória, a uma real e duradoura. Eliade (1985: p. 33) aponta que o caminho até o centro é permeado por diversas provações: O caminho é árduo, semeado de perigos, porque é, efetivamente, um rito de passagem do profano ao sagrado; do efêmero e do ilusório à realidade e à eternidade; da morte à vida; do homem à divindade. O acesso ao “centro” corresponde a uma consagração, a uma iniciação.
As provações existentes nos mitos são abordadas por Joseph Campbell (1990) como uma fase onde os valores daquele que está sob prova são testados a fim de descobrir se o herói tem ou não condição de receber a graça que procura. Damián, por exemplo, abdica de qualquer tipo de comodidade durante sua peregrinação por San Francisco de la Sierra. Primeiramente, o protagonista deixa seu carro e quase todos os seus pertences para trás – leva consigo os essenciais. Quando sobe a montanha, dispensa o cavalo e prefere seguir a pé. A ajuda do homem que o guia pela região também é prescindida. O personagem principal demonstra estar ciente da necessidade de auto-sacrifício para obter o renascimento místico que almeja. Os círculos que aparecem ou são criados (por meio das intervenções do artista plástico), durante a viagem, também simbolizam o tempo cíclico. Tal concepção diz respeito à renovação periódica da temporalidade. Como apontamos anteriormente, o ser que cumpre um ritual se imanta a um tempo sagrado, abolindo o tempo profano. Feito o rito, o homem atravessa uma purificação e passa a viver nova vida. Eliade (1985) postula que as sociedades pré-modernas ou arcaicas que baseavam suas concepções de ser e realidade em mitos apercebem o tempo não em uma escala linear, com início e fim, mas em forma cíclica, repetitiva: há um fim que sempre precede um começo e assim por diante. Nada é irreversível. Ao relacionar o círculo com o tempo, Campbell (1990: p. 234) diz: “o aspecto temporal do círculo é que você parte, vai a algum lugar e sempre retorna”. Os círculos com que Damián depara demonstram, assim, que a viagem consiste em regresso ao tempo sagrado. Juntamente aos círculos, é possível encontrar uma espiral na peregrinação do herói. Interpretar a forma geométrica como símbolo de uma concepção temporal conduz-nos a uma leitura coadunada à da temporalidade cíclica. A repetição e o retorno continuam existindo, mas, a estes, acrescenta-se um avanço, um progresso no fluxo do tempo. No curso espiralar, o ser deixa o presente (tempo profano) para retornar ao passado (tempo sagrado) – pelo resgate das tradições – e voltar ao presente, que já não é o mesmo de onde saiu, pois foi alterado pelos ritos. Damián empreende sua caminhada realizando, por meio da repetição de arquétipos míticos, um retorno à era dos seus ancestrais. O personagem deixa o tempo profano, projeta-se no tempo sagrado e, por fim, retorna ao tempo profano– agora renovado e dotado de uma nova existência. Sua jornada tem o regresso ao passado não como fim, mas como meio para modificar sua condição – atravessada pelo atropelamento de uma grávida e pelo filho que está prestes a nascer. Os círculos aludem ao ato de abolir ou negar o tempo profano para retornar ao tempo sagrado; a figura da espiral acrescenta ao retorno mítico a volta do ser a outro tempo profano. Círculo e espiral
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se integram como formas complementares. Juntos, descrevem a trajetória de Damián, que parte do presente para resgatar o passado e, assim, delinear o seu devir.
A espiral representa uma concepção de tempo complementar à dos círculos
A presença de círculos sinalizando San Francisco de la Sierra como lugar sagrado e mesmo um “Centro do Mundo” (neste caso, a “Montanha Cósmica”) permite, ainda, compreender a constante escalada de Damián ao ponto mais alto da região por meio do “simbolismo da ascensão”. Os “Centros do Mundo” acompanham histórias sobre mitos de homens que escalavam árvores ou escadas rumo ao Céu. Como estavam no eixo cósmico, situado entre o Inferno, a Terra e o Céu, esses locais sagrados permitiam a ascensão a outro nível. A escada ou a escalada são interpretadas por Eliade (1996) como fortes simbolismos referentes à ruptura da condição existencial que reflete a passagem de um modo de ser a outro. O percurso de Damián em San Francisco de la Sierra constitui-se parcialmente de subidas. As pinturas rupestres feitas pelos ancestrais do artista plástico estão em pontos altos da montanha. Ojeda não realiza a escalada incólume: na subida, demonstrações de depauperamento e exaustão são constantes. Em alguns trechos, o personagem não suporta o esforço físico e cai semi desfalecido, precisando descansar. Essas provações, como já discorrido anteriormente, consistem no ritual de purificação que culminará na mudança de condição, no renascimento espiritual. O momento que simboliza o êxito da jornada de Damián e a passagem para outro nível espiritual é composto pelos planos onde o artista plástico sobe ao cume da montanha, ponto mais alto da região. O local parece ser dedicado só aos que passaram por provações. Ciente disso, o guia que acompanha Damián prefere não subir. Lá no topo, o herói se deita e sorri satisfeito. Enquanto isso, um travelling mostra a região. É esta a cena onde Ojeda estreita definitivamente os laços com seus ancestrais e com aquela terra, nascendo novamente. Jablonska (2007a) ressalta que neste momento há um pacto com a montanha, marcando a reconciliação de Damián com a natureza e consigo mesmo. Não tomamos os planos citados como demonstração do êxito de Damián por acaso. A subida ao cume da montanha é posterior a um gesto arquetípico fundamental, em diversas mitologias, para a mudança de condição espiritual. Referimo-nos à aparição da cobra. Quando vai buscar mais água, o protagonista de Bajo California depara com uma serpente e é mordido pelo ofídio. Acreditamos que essa situação repete o arquétipo mítico da luta entre Indra e Vrtra, a grande serpente. O mito conta que Vrtra confiscou toda a água no interior de uma montanha, deixando o mundo acometido pela seca. Indra encontra a cobra em sono profundo e a decapita. O extermínio de Vrtra simboliza, para Eliade (1985), a passagem do não-manifesto ao manifesto, o próprio ato de criação ou gesto cosmogônico.
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Depois de ser mordido pela cobra, Damián adormece. Durante o sono, tem alucinações (ou sonhos) onde mistura imagens da cobra, das pinturas rupestres, dos ancestrais, da estrada, do atropelamento, de sua jornada por San Francisco de la Sierra, do ventre de sua mulher, dentre outras. A montagem das imagens lembra o cinema onírico que, segundo Xavier, (2005) não obedece a uma continuidade lógica de espaço e tempo; e cuja associação descarta a verossimilhança ou a afinidade com a percepção comum em prol de valores subjetivos e mesmo irracionais. Uma das imagens mostra Damián entrando nas águas do mar, nu. Essa seria a representação do batismo ou iniciação que, como explica Eliade, (1996) quer dizer “morte e ressurreição do neófito”. Acreditamos que o episódio da cobra é o gesto por excelência de passagem a uma nova existência. A aparição da serpente não é exclusiva da jornada de Damián. Entre as pinturas rupestres nas rochas, há desenhos de cobras mordendo homens e, também, de sacrifícios dos ofídios. O mesmo pode-se afirmar sobre outras situações do presente, como o ato do herói de gravar com tinta sua mão na montanha, repetindo o comportamento dos mais antigos da arte. Essas correlações comprovam o que havíamos dito anteriormente a respeito da própria jornada de Damián repetir arquétipos e ações realizadas em um tempo primordial. Ao realizar o ritual, o personagem encontra-se em uma época mítica e, por isso, está sujeito a confrontar os mesmos perigos, provações e circunstâncias que seus ancestrais. O homem, através do ritual, sempre pode voltar à era de seus antepassados. Após o episódio com a cobra, Damián sobe a um mirante e resolve jogar pedras para o alto. Indagado pelo companheiro de viagem a respeito do motivo de praticar tal gesto, o protagonista responde que o faz para saber de que maneira as pedras caem, como se fazia nos primeiros anos. O amigo decide ajudá-lo. O plano que sucede o dos homens atirando as pedras mostra grandes rochas caindo no chão. Existe uma descontinuidade espacial e temporal entre o plano das pedras atiradas e o das rochas que caem. Diferente do que predomina majoritariamente em Bajo California, a transição entre estes planos não obedece à decupagem clássica, pois o fim de um não coincide com o início do outro. (XAVIER, 2005) Há um salto na montagem que infringe a linearidade. A nosso ver, a imagem das rochas se situa no tempo passado, na era dos ancestrais. Seria a demonstração visual do desejo de Damián de ver as rochas caindo, como nos primeiros anos. O plano das pedras jogadas – sucedido pelo das rochas caindo – representa a união do tempo mítico e sagrado ao tempo concreto.
A magia da origem e os rituais de fertilidade A repetição dos gestos de seus antepassados seria a última fase de um desejo latente desde o início da jornada empreendida pelo protagonista: a vontade de conhecer melhor suas raízes. Quando chega ao túmulo da avó no início da viagem, diz as seguintes palavras: Finalmente nos encontramos tu y yo abuela. Aquí en tu tierra que de alguna forma también es la mía. (…) cómo puede vivir uno sin saber dónde es uno. Y saber de dónde es uno es saber dónde están enterrados los abuelos. Y yo estoy aquí ahora.
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O depoimento de Damián para a avó revela que a viagem à região de San Francisco de la Sierra é uma peregrinação rumo ao lugar de onde tudo começou. Para seguir em frente como um ser completo, é necessário que o protagonista conheça melhor sua história, seu passado. Outra ocasião em que essa necessidade se evidencia é quando o protagonista conversa com seu companheiro a respeito da família e, com pedras, faz uma imensa árvore genealógica, demonstrando que conhece seus antepassados. Essa busca pela origem simboliza no estudo dos mitos a possibilidade de renovar e regenerar a existência. Para Eliade, (1994: p. 76) o regressus ad uterum é: Efetuado com o objetivo de fazer com que o recipiendário nasça para um novo modo de ser, ou de regenerá-lo. […] O ‘retorno à origem’ prepara para um novo nascimento, mas este não repete o primeiro, o nascimento físico. Especificamente, há uma renascença mística, de ordem espiritual.
Freud (apud ELIADE, 1994) associa o retorno à origem (no caso da psicanálise, à primeira infância), à capacidade do ser de vencer traumas que lhe afligem no presente e renovar sua condição. Em outras culturas, conhecer a origem de uma planta, de um animal ou de determinados atos confere sobre estes um poder mágico-religioso. A busca de Ojeda pelo lugar onde viviam seus parentes e ancestrais ecoa neste simbolismo que envolve o conhecimento da origem e a regeneração. A trajetória de Damián está relacionada não apenas ao renascimento místico. Tão frequentes ou mais que a lembrança do atropelamento são os flashbacks alusivos à mulher do protagonista. Várias situações vivenciadas pelo personagem durante sua jornada desencadeiam a irrupção de lembranças da companheira, mais especificamente do seu ventre. Acreditamos que os gestos arquetípicos que compõem a odisséia de Damián funcionam, também, como ritual de fertilidade. O gesto que revela a motivação do protagonista em contribuir com o nascimento do filho é consumado no início da jornada. Assim que chega a San Francisco de la Sierra, Damián organiza conchas em espiral ou caracol. A ação é interpretada por nós como um ritual de fecundidade, pois as conchas são, para diversos povos, sinônimo de fecundidade. O formato de ostras e mariscos remete, como diz Eliade (1996), ao da vulva, o que propagou a crença nas suas virtudes mágicas relacionadas ao nascimento e regeneração e, consequentemente, na sua utilização em inúmeros ritos religiosos. Como exemplo, o historiador cita crenças japonesas e chinesas onde as ostras e outros mariscos são sinônimos e propagadores da fecundação e do parto. “A concha pode significar o ato do renascimento espiritual (ressurreição) com tanta eficácia que ela assegura e facilita o nascimento carnal”. (ELIADE, 1996: p. 132) Assim como o renascimento de Damián é apresentado pelo duelo com a cobra e a subida ao topo da região – que acreditamos simbolizar a escalada à Montanha Cósmica –, o êxito do ritual de fertilidade é exposto através da pintura rupestre “O homem e sua família”, com a qual Ojeda depara depois do conflito com a cobra. Se as pinturas funcionam como símbolo dos arquétipos que serão repetidos a partir de rituais, o desenho de uma criança com sua família é a demonstração do que também acontecerá a Damián. Mais à frente, ao terminar sua jornada, o personagem recebe uma carta de sua mulher onde ela diz que o filho nasceu bem. A jornada e as provações não foram, destarte, em vão.
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Conclusão O Mito do Eterno Retorno compreende o estudo de Mircea Eliade acerca do comportamento das sociedades arcaicas. O historiador foca, sobretudo, a revolta daquelas sociedades frente ao tempo concreto ou histórico e a sua tentativa, a partir da repetição de gestos arquétipos, de retornar a um tempo mítico, sagrado e correspondente à origem. Neste artigo, traçamos um paralelo entre a viagem que Damián Ojeda faz à região de San Francisco de la Sierra e o Mito do Eterno Retorno. Nosso ponto de partida foi a categorização de Aleksandra Jablonska a respeito de películas mexicanas contemporâneas que versam sobre deslocamentos geográficos no sentido norte-sul, relacionando-se a uma mudança psicológica e o renascimento espiritual dos personagens. Este renascimento é alcançado, como indicamos neste trabalho, a partir da execução de rituais arquetípicos que permitem a transposição do tempo concreto ou profano para o tempo dos ancestrais. O ritual que permite a ligação com o passado mítico exige que Damián passe por várias provações. São estas que ajudam a expurgar os pecados e a sanar a crise, desencadeada pelo atropelamento, que afeta o protagonista. As postulações sobre o Mito do Eterno Retorno fazem referência a essa tentativa do homem de anular ou os acontecimentos e renovar o tempo concreto, tentando romper com a irreversibilidade da História. Através do rito, o homem tem a capacidade de extinguir o que lhe aflige. Retomando os gestos dos seus antepassados e de deuses, consegue voltar à época das origens e renovar o seu tempo, começar do zero, como se tudo que ocorreu no passado fosse diluído. Diante de catástrofes, guerras e outros acontecimentos que atestam a irreversibilidade do tempo, o homem realiza ritos de renovação, através dos quais regressam, simbolicamente, à época de seus ancestrais. Esse eterno retorno permite renovar a condição do homem. Não há um fim definitivo. Para o homem que crê no mito, o tempo é cíclico, o fim sempre precede o começo e assim ad infinitum. É esta a compreensão que Damián demonstra ter no que tange ao ser e à realidade. É este modo de ser/viver, intermediado por ritos, mitos e símbolos, que lhe permite seguir em frente depois do atropelamento; como se nascesse de novo. O mundo do protagonista não consiste apenas na realidade objetiva, mas em ações calcadas na memória coletiva do homem e dotadas de um significado exterior que não encerra o ato em si. Levantamos rapidamente a possibilidade de que o nascimento está presente de duas maneiras em Bajo California: El limite del tiempo: através do renascimento místico de Damián e, também, do nascimento carnal. A renitência com que os flashbacks do ventre da mulher do protagonista e da grávida morta por atropelamento aparecem indica a nós como a gravidez e a idéia de nascimento/paternidade desencadeiam a viagem. Encontramos na manipulação e organização das conchas no formato de espiral uma ligação com a simbologia que diferentes culturas atribuem à fertilidade. Ritos com conchas, ostras e outros mariscos são feitos com o objetivo de propiciar o parto – e, a fecundação (interrompida pelo protagonista ao matar o feto que estava no ventre da mulher atropelada). A jornada de Damián demonstra, ainda, uma viagem de ida e volta ao mundo dos mortos – o lugar onde estão as pinturas rupestres deixadas pelos ancestrais e o túmulo da avó. Através dos rituais e das intervenções na natureza, o protagonista abole a atropelamento da grávida e assegura o nascimento do filho, constituindo o ciclo composto pela sucessão de morte e vida.
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A compreensão do mundo mediada pela capacidade simbólica é o ponto matriz de Bajo California. A relação do ser com algo que reside além da objetividade e da razão lhe permite crer em rituais que agem diretamente sobre si (renascimento) e sobre outros (a fecundidade). A crença do protagonista permite transformar o tempo profano a partir do regresso ao tempo sagrado ou ancestral. O homem que acredita e atualiza os mitos – o Tempo e a História – percebe-se como homem Natural e é livre para mudar o próprio destino.
Referências bibliográficas CAMPBELL, Joseph & MOYERS, Bill. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2007. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução de: Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ______. Mito e realidade. 4 ed. Tradução de Pola Civelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994. ______. O mito do eterno retorno. Tradução de Manuela Torres. Lisboa: Edições 70, 1985. ______. O sagrado e o profano. Tradução Rogério Fernandes. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1992. JABLONSKA, Aleksandra. Génesis y desarrollo del proyecto de Bajo California, el límite del tiempo, una película de Carlos Bolado. 2010. Original cedido pela autora, publicado agora nesta edição da Olhar. ______. Identidades en redefinición: Los procesos interculturales en el cine mexicano contemporáneo. In: Estudios sobre las Culturas Contemporáneas. Vol. XIII. Núm. 26. Colima, 2007, p. 47-76. ______. Pasado e identidad en los espacios fronterizos. In: Simposio HIST RI La historia reciente en Latino – América: encrucijadas y perspectivas. 2007a. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
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Edson Pereira da Costa Júnior é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som (PPGIS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), bolsista FAPESP, e estuda a relação entre audiovisual e memória. E-mail: <jredsoncosta@gmail.com>.
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FIGURAS TRAÇADAS NA LUZ SILENCIOSA aspectos do estilo em Carlos Reygadas
HUGO REIS*
Resumo: Este artigo se dedica ao estudo do estilo do diretor mexicano Carlos Reygadas, a partir de seu filme Luz Silenciosa (2007), dirigindo o olhar sobre a mise-en-scène, o uso do plano-sequência e os arranjos estéticos articulados no espaço cinematográfico. Pensaremos nossa análise a partir de algumas sequências específicas do filme em questão, dialogando com os conceitos e ponderações estabelecidos por David Bordwell em seu livro Figuras traçadas na luz (2008). PALAVRAS-CHAVE: CINEMATOGRAFIA DE CARLOS REYGADAS, LUZ SILENCIOSA, DAVID BORDWELL Figures sketched in Silent Light: aspects of style in Carlos Reygadas Abstract: This article is dedicated to the study of the style of the Mexican director Carlos Reygadas; it focuses on his film Silent Light (2007), the mise-en-scène, the use of large sequence plans and the aesthetic arrangements articulated in cinematographic space. Our analysis reflects on some specific sequences of the film, as well as the concepts and appraisals proposed by David Bordwell in his book Figures Traced in Light (2008). KEYWORDS: CARLOS REYGADAS´CINEMATOGRAPHY, SILENT LIGHT, DAVID BORDWELL
Introdução Carlos Reygadas nasceu no México em 1971. Ficou conhecido recentemente pela repercussão de seus filmes em festivais internacionais de cinema. Após dirigir três longas e alguns curtas, o cineasta já afirma um corpo estilístico inquietante, construído a partir de influências (Antonioni, Tarkovski, Bresson) abertamente assumidas em seus filmes. Acreditamos que o diretor se insere na tradição de cineastas que adotaram o plano longo e o trabalho cuidadoso da mise-en-scène como marcas de um estilo próprio que dialoga (inclusive com citações diretas em seus filmes) com o trabalho de consagrados diretores: Rossellini foi um mestre em utilizar o mundo como ele é para criar tudo que ele precisava para suas histórias. Para mim, Dreyer também é muito bom, Ordet (1954) é um dos filmes mais comoventes que já vi em minha
vida, um milagre do cinema. Bresson também foi um mestre, especialmente na maneira como trabalha com não-atores e no uso do som. Um Condenado à Morte Escapou (Un condamné à mort s’est échappé…, 1956) é meu favorito. Tarkovsky foi o que realmente abriu meus olhos. Quando vi seus filmes percebi que a emoção pode vir diretamente do som e da imagem, e não necessariamente do enredo.1 (REYGADAS em WOOD, 2006: p. 117-8, apud LUCA, 2010. Tradução nossa)
Embora trate de questões complexas como a religião, o corpo, a culpa, a moral e o tempo, o enredo de seus filmes traz histórias aparentemente simples. O diretor prioriza o uso de não-atores, locações ao invés de estúdio, o uso de luz natural, as grandes paisagens, composições pictóricas e a elaborada mise-en-scène. Também chama atenção o uso de planos com longa duração e o ritmo lento da montagem, assim como as sutilezas da trilha sonora. Reygadas graduou-se em Direito Internacional, continuando seus estudos em Londres, onde se especializou em conflitos armados. Seguiu carreira profissional no Serviço de Relações Exteriores do México para as Nações Unidas em Nova Iorque até conhecer o INSAS (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle et Techniques de Diffusion) em Bruxelas (BEL), onde realizou alguns curtas-metragens até escrever o roteiro de seu primeiro filme de longa-metragem, Japón (2002). Filmado em 16mm com equipe reduzida e verba do próprio diretor, numa comunidade no interior do México, o filme ganhou repercussão ao passar pelo Festival de Cinema de Rotterdam e ao receber a Menção Especial – Câmera de Ouro no Festival de Cannes. Seu segundo longa, Batalha no Céu (2005), também ganhou projeção internacional ao concorrer à Palma de Ouro na competição oficial do Festival de Cannes. Sua última produção foi Este es mi reino (2010), um dos dez curtas que integram o conjunto do filme Revolución (2010) e, em 2011, deverá finalizar seu quarto longa-metragem Post Tenebras Lux. Nesse artigo, iremos analisar algumas sequências do filme Luz Silenciosa (2007) – terceiro longa-metragem dirigido pelo cineasta – observando a ocupação e a organização do espaço fílmico pelos aspectos visuais e sonoros, buscando compreender como o diretor desenvolve um estilo e uma temporalidade como estratégia de construção de uma possível poética em seu cinema. Interessa-nos olhar minuciosamente as nuances da mise-enscène, do fluxo estético visual e sonoro nas diferentes intensidades no filme. Nossa análise pretende dialogar com os conceitos e questionamentos de David Bordwell sobre a encenação no cinema, tendo como principal referência seu livro Figuras traçadas na luz (2008).
O filme Luz Silenciosa é um enredo de amor e traição, um tema recorrente em diversas narrativas, mas que se torna aqui peculiar diante do inesperado desenvolvimento das 1
Rossellini was a master at using the world as it is to create everything he needed for his stories. For me, Dreyer is also great. Ordet (1954) is one of the most moving films I’ve ever seen in my life, a miracle of film. Bresson is also a master, especially in the way he works with non-actors and uses sound. A Man Escaped (1956) is a personal favourite. Tarkovsky was the one to really open my eyes. When I saw his films I realized that emotion could come directly out of the sound and the image, and not necessarily from the story-telling. (REYGADAS em WOOD, 2006: p. 117-8, apud LUCA, 2010)
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relações entre as personagens e por se passar numa comunidade Menonita2 localizada ao norte do México. O filme conta a história de Johan, um agricultor, marido e pai que se apaixona por outra mulher. Ao contrariar suas próprias crenças e as leis de sua religião, Johan, amando as duas mulheres, se vê obrigado a decidir entre começar uma nova vida ao lado de sua amante Marianne, ou continuar junto com sua esposa Esther e a vida familiar. O filme tem 131 minutos de duração, divididos em 14 sequências. A estrutura narrativa é linear e cronológica. Começa sugerindo o problema, segue com a exposição do conflito e o reforço do dilema do protagonista. Aponta-se então uma solução possível que em seguida se mostra inviável, retomando o conflito e nos levando à sequência final em seu desfecho milagroso. Para nossa análise, optamos por aquelas sequências em que o diretor melhor combina a montagem em articulação com o uso do plano-sequência. Apesar de o plano longo ser uma das marcas do estilo do diretor, Reygadas utiliza os recursos da montagem para que esta possa “cooperar, de maneira sutil, com o plano prolongado e com a imagem densa”. (BORDWELL, 2008: 23) Na segunda sequência do filme, por exemplo, assistimos à família sentada ao redor da mesa para tomar o café da manhã. Essa sequência apresenta 25 planos e pode ser dividida em duas partes. A primeira parte combina 24 planos, totalizando 3’50” de duração. A segunda, composta por apenas um plano, tem 3’22’’. Aqui temos a apresentação das personagens e de seu universo. Numa sequência de planos fixos, é possível notar a família arquetípica que protagoniza o filme. A figura do pai, da mãe; o momento de oração antes da refeição, o figurino comportado, os objetos ordenados ao fundo; tudo isso reforçado pela simetria e rigidez dos enquadramentos tomados em plano único ou plano conjunto das personagens em torno da mesa. Em meio à aparente ordem da casa, essa sequência nos sugere aos poucos – quase sem diálogos, apenas com pequenos movimentos e contidas expressões – que existe algo errado naquela família. Durante a oração, Johan abre os olhos e lentamente dirige um olhar angustiado em direção à esposa. Esther está de cabeça baixa, olhos fechados. Novamente voltamos pra Johan que agora dirige o olhar em direção à mesa, aos filhos, e engole seco. A oração termina, e essa primeira parte da sequência segue com planos dos filhos comendo e um diálogo corriqueiro entre o casal sobre os afazeres do dia. O café termina, mãe e filhos se levantam e deixam Johan sozinho sentado à mesa. A duração média dos planos aqui gira em torno de 12 segundos. Todo o clima criado nessa primeira parte parece preparar o espectador para o último e mais longo plano da sequência. Num plano frontal, vemos Johan no centro do quadro, sentado na cabeceira da mesa. No plano de fundo a porta da casa por onde irão sair os filhos e a esposa. Toda a profundidade de campo se estende do protagonista ao fundo do quadro. Após se despedir de Johan pela segunda vez, Esther sai de casa e dá uma última olhadela pela janela. Johan se levanta, vai à janela como que para se certificar que todos já foram. Pega um banquinho 2 Os menonitas são uma dissidência protestante “Anabatista” que prega o batismo como uma escolha de adulto. Após perseguições políticas e religiosas seus adeptos migram para o Canadá e para os Estados Unidos, posteriormente para o norte do México. O grupo do filme é considerado moderado, aceita carros e a medicina científica, mas recusa meios de comunicação modernos como telefone e internet. Falam Plautdietsch, um dialeto germânico próximo do Holandês medieval e do flamengo. (resenha oficial da distribuidora Atalanta Filmes, disponível em <http://www.atalantafilmes.pt/PDFs/luz_silenciosa.pdf>).
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e usa-o para alcançar o relógio pendurado na parede fora de quadro. Ouvimos o som do tic-tac parar, estabelecendo um primeiro ritmo/tempo interno, Johan põe o banquinho de volta no lugar e volta a sentar-se à mesa. Manipula uma colher esquecida sobre a mesa, em atitude contemplativa. Lentamente, a câmera se aproxima de Johan iniciando um segundo ritmo/tempo. O som ambiente ao fundo fica mais evidente e a partir daí o pai de família inicia um choro copioso, encerrando a cena num terceiro ritmo/tempo. A primeira parte desta sequência parece já ser suficiente para dar prosseguimento às necessidades da trama. Entretanto, como é recorrente no estilo de Reygadas, vários momentos do filme são reservados para a criação de micro-ritmos internos, provocando essas “fissuras poéticas”, esses momentos onde se busca, por meio da duração, inscrever na superfície do suporte o peso do tempo em busca de uma suposta densidade da imagem, impingida pela força de uma tentativa realista de representação. No plano pictórico, as linhas diagonais da mesa acompanham o mesmo movimento de dolly in da câmera, as linhas horizontais ao fundo vão se abaulando na medida em que a câmera se aproxima e evidenciam a distorção provocada pela lente grande angular. A profundidade de campo vai diminuindo e isolando Johan ainda mais. Toda a atenção visual se volta pra ele, que ocupa o centro do quadro, ao passo que o som se divide, combinando referências à paisagem do campo amanhecendo, o choro do personagem que ocupa todo o primeiro plano sonoro e o choro lamurioso de vacas que oscilam em intensidades variadas. O trabalho de som aqui expande o espaço diegético (que na imagem se afunila), trazendo um pouco do mundo, do fora de campo, para dentro do quadro, insistindo na continuidade da vida lá fora. Ainda não sabemos a causa do choro de Johan, não estamos precisamente envolvidos com os personagens ou com a trama. Ainda assim: a imagem arquetípica do pai de família que desaba num choro incontido; a câmera que lentamente se aproxima, sem entretanto chegar ao close; e o som doloroso do mugir das vacas acompanhando o fluxo do movimento da câmera, criam um conjunto de elementos que – combinados com a encenação reduzida e a longa duração do plano – serão responsáveis por instaurar o drama vivido pelo personagem. Muito diretores utilizam o plano-sequência em função de uma grande quantidade de movimentação coreografada dos elementos no quadro, com o corte invariavelmente coincidindo com o término dessas ações. Reygadas, assim como outros cineastas, parece buscar o efeito produzido pelo predomínio da ação mínima na imagem. Antonioni […] reduz cenas a silêncios e a blocos de tempo morto em que nada, rigorosamente nada, do tradicional arco dramático está acontecendo. […] ao ultrapassar a sua duração normal, todo o peso da cena muda, dando a ver sua essência. (BORDWELL, 2008: 204-205)
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Em muitos momentos de Luz Silenciosa, o movimento e o arco dramático se restringem a mudanças de olhar, pequenos gestos ou movimentos repetitivos e constantes em velocidade e direção. Muitas vezes, a ação, o movimento maior de elementos no quadro pode ser encontrado no trabalho de som operado no fora de quadro, que encontra aqui grande peso narrativo como um todo. A duração dos planos compõe um tempo fílmico tal que o espectador é chamado a multiplicar as leituras e interpretações possíveis. A tomada longa provoca a deformação da percepção e convida o espectador a explorar cada canto do espaço fílmico, a perscrutar o menor movimento. Esse processo é capaz de afetar diferentes níveis das habilidades perceptuais dos espectadores. Quando desistimos de esperar o que vai acontecer, ‘abandonamos’ o enredo para entrar nas dimensões do campo poético. O ritmo do plano geral é afetado pela escassez do quadro. Se o espectador quiser mergulhar em tais imagens longínquas tem de contemplar a tela por algum tempo. No entanto, o andamento dramático é desacelerado pela recusa do movimento. Procurando gestos e revelações nos alinhamentos de figuras, o espectador tem de inventar mil maneiras de dar sentido ao plano, preenchendo os vazios com significado. O resultado, além do aspecto conscientemente pictórico, é que a progressão dramática é suspensa, levando a contemplação distanciada e a uma sensação de contenção e aridez. (BORDWELL, 2008: 216)
Numa outra sequência, a família se encontra num momento de lazer, tomando banho numa espécie de piscina natural. A função desta sequência no desenvolvimento da narrativa parece ser a de mostrar a dedicação e a verdade do amor do pai pelos filhos e pela mulher, evidenciando a complexidade do dilema enfrentado pelo protagonista. Também aqui, para efeito de análise, separamos a sequência em duas partes. Na primeira parte, em tom próximo ao do registro documental, temos uma série de tomadas feitas com a câmera na mão, mostrando as crianças brincando na água. São planos soltos, leves, com mise-en-scène aparentemente improvisada. Constantemente notase as crianças olhando em direção à câmera ou à equipe de filmagem. Na banda sonora, temos vários índices de materialidade e reverberação (ou a falta de) que nos remetem ao som direto vindo dos ruídos tranquilos dos corpos se movendo na água e de alguns poucos diálogos entre as crianças. A leveza dessa primeira parte contrasta com o peso dramático da segunda. Utilizando planos ligeiramente mais longos, as tomadas nessa segunda parte são feitas sobre um tripé e a mise-en-scène é visivelmente mais controlada. A pouca profundidade de campo – outro traço que também separa Reygadas do uso mais comum dos planos de longa duração e do trabalho de mise-en-scène – destaca aspectos pictóricos do quadro, como linhas, texturas e movimentos, diminuindo a quantidade de informação descritiva, impregnando de sensações. O diretor investe na função expressiva de seu estilo, destacando as curvas desenhadas pelos braços e olhares dos personagens em primeiro plano. O movimento lento e panorâmico da câmera se desloca acompanhando essas linhas até alcançar os pés da menina sendo ensaboados pela mãe. As linhas curvas inscritas no primeiro plano pelas pernas e braços da mãe se somam aos da raiz da árvore no segundo plano. Temos um corte e a câmera agora se desloca para cima revelando Esther de cabeça
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baixa. Ao escutar a voz de Johan no fora de campo tecendo um elogio amoroso e espontâneo à esposa, Esther levanta a cabeça e olha em direção ao marido. O movimento de câmera termina fixando o olhar desiludido dela. Johan, em plano médio, como que surpreso pela própria ingenuidade, dirige o olhar para Esther buscando compreensão. A resposta vem num contra-plano da expressão de compaixão da esposa. O mesmo plano se mantém, com a voz de Johan ainda em off convidando Esther a entrarem na água. O braço dele entra em quadro, acaricia o rosto dela e em seguida ajuda-lhe a se levantar. Os dois abandonam o quadro e o que sobra é um fundo desfocado, uma textura em tons de verde com uma mancha lilás no canto inferior direito. Enquanto escutamos do lado esquerdo do quadro alguns sons que nos sugerem que o casal entrou na água, lentamente a câmera se aproxima da mancha até revelar os contornos de uma flor. A câmera para, uma gota d’água cai da pétala da flor e a sequência termina. David Bordwell pressupõe que o estilo cumpre quatro funções. (BORDWELL, 2008, p. 59) Dentre elas, a função expressiva é por ele dividida entre aquela que apresenta um sentimento, planos que transmitem alguma sensação; e aquela que causa determinado sentimento no espectador, alterando seu estado de espírito anterior. Reygadas aqui, como em outros momentos do filme, prefere explorar os planos que apresentam sentimentos, optando por movimentos sutis dentro do quadro, utilizando o mínimo do texto falado, potencializando o som e a ambientação, buscando uma encenação minimalista. No último plano dessa sequência, Reygadas termina criando um momento de intensa expressividade pictórica, explorando o nível da função simbólica. A câmera paira sobre texturas e detalhes provocadores para produzir significações mais abstratas. Reygadas trabalha com não-atores e dificilmente repete as tomadas na hora da gravação. Sua direção consiste em orientar cada ator sobre a intenção específica de cada cena ao invés de enveredar pela construção estrutural das personagens. O diretor parece estimular a criação de momentos espontâneos no set de filmagem buscando desenvolver uma grande carga de afeto. De alguma maneira, o plano longo enquanto recurso de linguagem parece a aposta de Reygadas para trazer à tona e preservar tal afeto. Eu planejo o movimento da câmera e o movimento dos personagens. Eu trabalho com não-atores. Eu me certifico de que meus personagens sabem seus textos de coração. Nós não ensaiamos. Muitas vezes a primeira
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tomada é a melhor. Acredito que é a melhor maneira de trabalhar isso em meus filmes. Só um não-ator pode representar os tipos de personagens que eu tenho. […] É uma maneira de se aproximar de cada momento pouco a pouco. Isto te dá espaço para entrar no quadro e imaginar o que está acontecendo. (REYGADAS, em BADT, 2007. Tradução nossa)3
Na terceira sequência analisada, Johan visita o pai em busca de conselhos. O pai o recebe num galpão onde Johan lhe revela seu segredo. Ao saber da gravidade da conversa, o pai convida Johan a sair do galpão “para ver a neve”. Num plano sequência de 3’13’’ de duração, a câmera acompanha os dois caminhando na escuridão do galpão. Uma porta se abre mostrando uma paisagem tomada pelo branco da neve. Os dois seguem caminhando de costas para a câmera. Ouve-se somente o forte ruído dos passos. Os dois param de caminhar, a câmera continua e passa por entre os dois deixando-os para trás. Ainda no mesmo plano a câmera inicia um lento giro de 180º sobre seu eixo, até reenquadrar pai e filho novamente. Durante o movimento panorâmico, escutamos no fora de campo o diálogo entre os dois personagens. As falas de cada um são intercaladas por longas pausas, a dificuldade de comunicação fica patente nesse afastamento da câmera, nos intervalos e na direção dos olhares no enquadramento final do plano, com Johan e seu pai olhando em direções opostas enquanto conversam. Após esse plano, a sequência segue no interior da casa de pai de Johan. Reygadas procura reduzir ao máximo a necessidade do recurso ao plano/contra-plano, utilizando em várias ocasiões a voz offscreen para representar os diálogos. Com a câmera em contraplongée e o plano totalmente desfocado, Johan cruza o quadro e senta no primeiro plano, próximo a câmera, entrando em foco. Ele olha na direção do pai, mas este evita olhar diretamente para o filho. O que vemos então no quadro seguinte é um plano subjetivo de Johan olhando o perfil do rosto de seu pai. O “desenquadramento” inicial força os limites do quadro e realça detalhes como a boca, o nariz e as rugas. À medida que ele confessa ao filho ter vivido experiência semelhante no passado, a câmera lentamente deriva revelando os olhos e o ouvido, até “corrigir” o quadro e centralizar o rosto por completo. Essa lenta deriva da câmera parece corresponder à dificuldade do pai em revelar um segredo que ainda lhe causa certa vergonha. Nesses dois momentos, apesar de filmados de maneiras diferentes, podemos sentir nos diálogos o desenvolvimento de uma mesma temporalidade, com certo equilíbrio entre o andamento dramático e o poético. Os planos contam uma história, mas de maneira tão demorada e vaga que ultrapassam as concepções padronizadas da economia narrativa. […] A imagem estendida excede os aspectos simbólicos e denotativos, buscando,
3
I plan the movement of the camera and the movement of the characters. I use non-actors. I make sure my characters know their texts by heart. We don’t do rehearsals. Many times the first take is the best. I believe this is the best way to do it for my films. Only a non-actor can represent the kind of characters I have. […] It is a way to approach each moment little by little. It leaves you space to enter the frame and imagine what is going on. (REYGADAS, em BADT, 2007)
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em vez disso, expressividade emocional e abstração formal. (BORDWELL, 2008: 228-9)
Ao evitar o contato visual e inserir longas pausas entre uma fala e outra, a conversa entre pai e filho alcança um ritmo regular de sedimentação do pensamento, ao mesmo tempo em que exprime a relação de respeito existente entre os dois.
Considerações finais Reygadas é um diretor mexicano que conseguiu ser absorvido por parte do circuito de festivais internacionais possivelmente por encerrar uma singularidade de estilo e por lograr trabalhar temas nacionais por meio de uma linguagem cinematográfica mais ousada em relação à narrativa clássica hollywoodiana. Assim como Amat Escalante, Fernando Eimbcke, Paz Encina, Lucrecia Martel, Naomi Kawase, Apichatpong Weerasethakul e outros cineastas contemporâneos, Reygadas faz parte de um grupo que busca o cosmopolitismo trabalhando material nacional genuíno de maneira sofisticada e utilizando códigos que se tentam universais. Muitos desses novos diretores também têm em comum o fato de terem estudado cinema no exterior, absorvendo muitas inovações narrativas de cineastas consagrados no cinema europeu e americano. Este artigo pretende-se um estudo parcial sobre o estilo do diretor, reconhecendo que, para compreender profundamente nosso objeto, é necessário um mergulho maior em toda a sua obra. No entanto, ao longo de seus três filmes, podemos dizer que Luz Silenciosa (2007) foi o que se mostrou mais amadurecido nesse sentido. Acreditamos que nesse filme, Reygadas sedimenta seu estilo e persegue mais objetivamente uma concepção de cinema, conseguindo por vezes ultrapassar suas referências e desenvolver uma marca própria, repleta de nuances e de experimentações. As sequências de abertura e de encerramento são dadas em planos únicos, com cerca de 6 minutos de duração cada. Na abertura vemos estrelas no céu e a câmera se deslocando lentamente para a linha do horizonte mostrando o sol nascendo. No encerramento, temos o fechamento do ciclo, onde o sol se põe e o movimento da câmera, dessa vez ao contrário, nos leva do horizonte de volta às estrelas. Reygadas justifica o uso desses dois planos para dar ao espectador a noção da insignificância da história que acontecerá nesse lugar qualquer dentro da imensidão do universo. Para além da metáfora, podemos pensar esse longo e singelo prólogo-epílogo como uma construção comum a certo tipo de cinema que, mais do que se preocupar em contar uma história, centra seus esforços em explorar o específico cinematográfico, experimentando maneiras de narrar inerentes unicamente ao cinema.
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Referências AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. 5. ed. Campinas, SP: Papirus, 2007. BADT, Karin. Silent Light or Absolute Miracle: an interview with Carlos Reygadas at Cannes 2007. Disponível em <http://www.brightlightsfilm.com/57/reygadasiv.php>. Acesso em maio 2010. BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas, SP: Papirus, 2008. LUCA, Tiago de. Carnal spirituality: the films of Carlos Reygadas. Disponível em <http:// www.sensesofcinema.com/2010/feature-articles/carnal-spirituality-the-films-of-carlos-reygadas-2/>. Acesso em maio 2010. LUZ SILENCIOSA (Stellet licht). Direção: Carlos Reygadas. México, França, Holanda, Alemanha: 2007. VANOYE, Francis e GOLIOT-LÊTE, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 4. ed. Campinas, SP: Papirus, 2006. <http://www.atalantafilmes.pt/PDFs/luz_silenciosa.pdf>. Acesso em abril 2010. <http://www.menonitas.org.br>. Acesso em abril 2010.
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Hugo Reis é mestrando do Programa de Pós-graduação em Imagem e Som da UFSCar. Bolsista da CAPES. Bacharel em Comunicação Social pela UFES.
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e
Temporada de Patos Lake Tahoe
sons e silêncios no cinema de Fernando Eimbcke JULIANA PANINI SILVEIRA*
Resumo: Os dois longas do diretor mexicano Fernando Eimbcke, Temporada de Patos (2004) e Lake Tahoe (2008), apresentam similaridades não apenas nas temáticas abordadas, mas no próprio tratamento cinematográfico dado aos temas. Partindo de personagens sutilmente marcados pela solidão, Eimbcke delineia traços ainda mais delicados – e ainda assim muito fortes – dos relacionamentos que surgem das convivências do acaso. O presente trabalho visa refletir como se dá a organização dos elementos sonoros nestas obras, de modo a compreender como o som contribui para a construção dramática desses inusitados encontros que geram laços entre estranhos e transformam, em maior ou menor medida, suas vidas. PALAVRAS-CHAVE: FERNANDO EIMBCKE, DESIGN DE SOM, TEMPORADA DE PATOS, LAKE TAHOE Duck Season and Lake Tahoe: sounds and silences in Fernando Eimbcke’s films Abstract: The two films Duck Season (2004) and Lake Tahoe (2008) by Mexican director Fernando Eimbcke are alike not only in their themes, but in the cinematographic treatment of their subjects. Based on characters tinged by loneliness, Eimbcke portrays the delicate, yet very strong aspects of relationships born of chance. This essay reflects on the sound design of these works, in order to understand how sound contributes to the dramatic construction of such unusual encounters between strangers, who forge bonds which transform their lives, to a greater or lesser degree. KEYWORDS: FERNANDO EIMBCKE, SOUND DESIGN, DUCK SEASON, LAKE TAHOE
Quadro de patos e peça de carro: o vazio cheio de cada dia Não poderia ser de outro jeito. É do vazio enfadonho que se arrasta e contamina o tempo e o espaço do dia-a-dia de pessoas comuns que o mexicano Fernando Eimbcke – diretor dos curtas Disculpe las molestias (1994), Perdón? (1995), No todo es permanente (1995), La suerte de la fea… a la bonita no le importa (2002) e Perro que ladra (2005) – encontra a matéria perfeita para o que parece ser o tema-chave dos longas Temporada de Patos e Lake Tahoe: justamente nas frestas do vazio do cotidiano, profundas e marcantes manifestações de vida afloram. Manifestações estas que não poderiam ser mais
Rita, Flama, Moko e Ulises
silenciosas e singelas e, por isso mesmo (tal como os filmes de Eimbcke) não poderiam ser mais sinceras e tocantes. Um domingo inteiro em casa, sozinhos, sem a presença dos pais. Assim se inicia Temporada de Patos: a mãe de Flama (Daniel Miranda) sai do apartamento para um compromisso, deixando-o sozinho com Moko (Diego Cataño). Ambos de 14 anos, amigos de longa data, os garotos aproveitam para fazer o que mais gostam: beber Coca-cola, comer pizza e jogar videogame. Mas o acaso fará com que Flama e Moko passem a tarde toda com Rita (Danny Perea) – a vizinha adolescente de Flama que precisa usar a cozinha do garoto para fazer um bolo – e Ulises (Enrique Arreola) – o entregador de pizza que os garotos não querem pagar por ter atrasado alguns segundos a entrega. Entre uma e outra situação, os quatro personagens dividem entre si não apenas o vazio do apartamento e daquele dia, mas também um pouco de suas próprias vidas. Solitários, mas juntos numa tarde que se arrasta no tempo, algo os impele a ficarem sentados no sofá, discutindo uma pintura na parede. O quadro de patos na sala do apartamento de Flama é uma destas coisas inexplicáveis e incabíveis que une as pessoas. Lake Tahoe, por sua vez, tem como ponto de partida um acidente: Juan (novamente Diego Cataño) bate o carro num poste. Inicia-se uma verdadeira saga pela pequena cidade onde se encontra e mora, em busca de alguém que possa lhe ajudar a consertar o veículo. De um lado para outro, em meio a oficinas fechadas e pessoas desinteressadas em
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auxiliar o jovem, o acaso fará com que Juan conheça Don Heber (Hector Herrera) – um velho mecânico que vive sozinho com seu cachorro – Lucia (Daniela Valentine) – uma adolescente, mãe de um bebê, que trabalha numa loja de peças para automóveis – e David (Juan Carlos Lara II) – um jovem aficionado por artes marciais, que depois de muitas idas e vindas concerta o carro de Juan. As narrativas de Temporada de Patos e Lake Tahoe dialogam não apenas no que concerne o tema. Em ambos os filmes, Eimbcke opta por uma decupagem rígida, de planos fixos, salvo uma ou outra exceção em cada filme. A ausência de movimentos de câmera auxilia na construção de molduras – no apartamento de Flama e na cidadezinha de Juan – nas quais os personagens, ao mesmo tempo em que transitam, estão presos nelas. Tal como a tarde de domingo que se arrasta para os garotos, moroso também é o tempo para Juan, que precisa transpor, de um lado para outro, quadros fixos para ir de oficina em oficina em busca de uma ajuda que parece inalcançável. A cidadezinha onde mora e onde bateu o carro, com ares de vilarejo esquecido no tempo e perdido no mapa, parece ignorar os esforços do garoto, parece induzi-lo a estagnar-se, tal como ela mesma. Mas o jovem insiste. Saberemos, mais a frente, que se trata do carro de seu pai, que falecera recentemente. Semelhantes na decupagem e na cadência temporal, com uso recorrente de cortes com fades para tela preta, separando uma situação de outra, Eimbcke, todavia, renova certos aspectos de uma obra para outra. Optou em Temporada de Patos por uma fotografia em preto e branco e um espaço específico e delimitado para a convivência dos personagens: o apartamento de Flama. Colorido e tendo como palco de encontros e desencontros uma cidade inteira – apesar de pequena – Lake Tahoe tem seus personagens (agindo ou se deixando levar pelas ações de outros) coabitando num fragmento de espaço público – e “fragmento” parece um termo compatível com a pequena cidade onde Juan se encontra e seus ares de “desconexão” com o resto do mundo. Vale ressaltar, nesse sentido, outra similaridade entre os filmes e que diz respeito a estes espaços com os quais se relacionam os personagens. Flama enfrenta um conflito familiar: seus pais estão se separando e brigando por tudo que se encontra no apartamento, com exceção, ao que tudo indica, do próprio filho. Juan, por sua vez, perdeu o pai recentemente. Ao passo que Flama se encontra em sua própria casa – cercado pelos pratos, quadros e vasos tão disputados pelos pais e nos quais irá atirar com uma espingarda, quebrando tudo – Juan transita pela cidade, aparecendo em sua casa uma ou outra vez, momentos nos quais interage mais com o irmão do que com a mãe. Enquanto a mãe de Juan se tranca no banheiro junto com fotos de família e chora, o irmão pequeno acampa numa barraca no quintal da casa. A ausência do pai parece, de certa forma, impelir Juan (e também seu irmão) para fora de seu lar, onde poderá por fim, aos poucos, ao lado de cada pessoa que conhecerá em sua jornada para consertar o carro, aprender a lidar com a dor desta perda. Eimbcke não tira lições de moral dos relacionamentos que retrata. Talvez não seja possível nem dizer que seus personagens saiam destas convivências com novas perspectivas de vida. Nesse sentido, os enquadramentos rígidos, fixos, o tempo distendido, a quase inexistente movimentação de câmera, escassez de diálogos e o próprio silêncio, as ações que não impulsionam a narrativa pra frente, tudo parece conspirar para o momento, a fresta, o fragmento. Um tempo presente que não representa um dia inteiro, mas cada pedaço deste dia. Desta forma, talvez “dia-a-dia” e “cotidiano” não caibam em Temporada de Patos e Lake Tahoe. Cada dia parece ser muitos dias, pelos inúmeros momentos e possibilidades de encontros, ou mesmo pelos momentos e encontros que são poucos, mas
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se repetem, e cada vez que acontecem são re-significados. Convivências de pessoas que, em teoria, nada têm para oferecer aos outros (e nem a si mesmas). Eis a chave do cinema de Eimbcke: do encontro do vazio de algumas vidas, nota-se vidas não tão vazias assim.
Sons e silêncios: o cinema sonoro de Eimbcke No que concerne ao uso do som, ambos os filmes apresentam tratamento sonoro bastante expressivo que em muito contribui para a construção dramática da narrativa. Com presença contida de diálogos – principalmente em Lake Tahoe – Eimbcke permite que o silêncio fale por si, livrando suas obras de um “verbocentrismo” (CHION, 1993) que a elas é desnecessário. Silêncios estes que ora expressam o vazio do dia, a estagnação da vida, a pasmaceira dos personagens, ora alegam justamente o oposto: o quanto dizer pode ser desnecessário para a comunicação – e principalmente para a comunhão – entre seres humanos. Ricos em detalhes sonoros, o diretor utiliza os sons ambientes com maestria. Muitas vezes sem vozes (diálogos) para competir, os sons do apartamento de Flama e da cidade de Juan parecem legitimar os silêncios e desafiá-los ao mesmo tempo, dando contornos dramáticos as banais situações do cotidiano. Aparentemente hiper-realistas, os sons da trilha sonora de ambos os filmes são, melhor dizendo, verdadeiramente realistas e destacam-se perante a inércia dos personagens e daquilo que os cerca. Em Temporada de Patos, Eimbcke combina música popular com erudita na compilação da trilha musical, bastante presente na narrativa. Em Lake Tahoe a presença da trilha musical é menor, mas tal como em Temporada, remete quase somente a artistas e estilos de seu próprio país, fazendo com que ambos os filmes se enquadrem na cinematografia contemporânea mexicana que incorpora, reflete e valoriza elementos nacionais.
Temporada de Patos: o apartamento, os patos, a pizza, o brownie O tom de humor, recorrente em Temporada de Patos, se instaura logo nos créditos iniciais com a canção “O Pato”. Dos compositores brasileiros Jayme Silva e Neuza Teixeira, Eimbcke optou por utilizar para a abertura do filme a versão em espanhol “El Pato”, de Natalia e La Forquetina, banda da cantora mexicana de pop/rock Natalia Lafourcade. Curioso notar que, com “El Pato”, logo de início instaura-se a idéia de encontros inusitados. Leve e divertida, a letra da canção fala de um pato que “vinha cantando alegremente / cua, cua / quando encontra um lindo gato / miau, miau / para cantar a bossa nova”. Juntam-se a eles ainda um ganso e um cachorrinho.1 Tal como este curioso grupo que insiste em cantar junto, outro quarteto irá se formar: Flama, Moko, Rita e Ulises passarão uma tarde inteira juntos. Terminado os créditos iniciais, Temporada de Patos começa com uma sucessão de nove planos fixos da cidade, sendo o último deles a imagem do edifício “Niños Heroes”, onde mora Flama. Com estas imagens – uma bicicleta quebrada, uma quadra de basquete 1
Na letra original da canção, o quarteto é um pouco diferente. Trata-se de um pato, um marreco, um ganso e um cisne. Juntos e desafinados, as aves tocam um samba.
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abandonada, crianças brincando no balanço, um carro passando por uma rua, traços da arquitetura da cidade,… – Eimbcke anuncia seu estilo de composição, seu retrato do espaço-tempo: planos fixos, sem movimento de câmera, abordando ações banais do dia-adia de pessoas comuns. Uma cidade que tende ao abandono e estagnação, questões estas que se refletirão dentro do apartamento de Flama. A mãe do garoto se despede dele e de Moko e sai para seu compromisso. Do corredor, se escuta de dentro do apartamento um gritinho de comemoração dos personagens: estão sozinhos em casa. Em seguida, tela preta e sons de água. Da direita para a esquerda, surge o título do filme em letras grandes brancas. O som de água cessa e entra as batidas iniciais da canção “Puto”, do grupo mexicano de rapcore Molotov. Trata-se da única inserção diegética da trilha musical, pois quando a tela preta dá lugar para a imagem de Flama em seu quarto, de roupão (o som da água parece justificado pelo banho que o garoto, ao que tudo indica, tomou), temos Moko também no quarto, deitado na cama, lendo um gibi e com fones de ouvido. Moko – que ora ou outra observa o amigo se trocar – assobia o que seria a continuação de “Puto”, que permanece audível durante toda a cena no quarto, num volume bem baixo, caracterizando a escuta como privilégio do garoto, detentor dos fones de ouvido. Mais um artista mexicano na compilação da trilha musical, com influências rap, rock e punk, a banda Molotov, com “Puto” – cuja letra critica, chamando de “puto”, alguém que não faz o que deseja e chora conformado – auxilia na caracterização do universo juvenil de Flama e Moko, tal como em Lake Tahoe quando Lucia (a jovem que trabalha na loja de peças para automóveis) pede a Juan que este tome conta de seu bebê, Fidel, para que ela possa ir ao show da roqueira mexicana Jessy Bulbo. Conhecidos e populares principalmente entre os jovens mexicanos, esses artistas agregam a compilação da trilha musical sonoridades que trazem contornos aos personagens, expressando seus gostos e preferências, nas quais se misturam o consumo de produtos estrangeiros – como o game “Halo” e a Coca-cola – e nacionais. Recorrente também em Lake Tahoe, os sons ambientes são pontuais, mas bastante expressivos. Desafiando e ao mesmo tempo legitimando os silêncios do apartamento, o sons da Coca-cola sendo derramada no copo com gelo, do game “Halo” com seus tiros e explosões, da torneira da pia do banheiro que goteja sem parar, o batuque das mãos de Moko entediado no sofá, a balança de cozinha na qual Rita mexe, o lacre da bolsa da pizza de Ulises que Moko insiste em abrir e fechar, dentre outros sons, constituem uma série de pequenos ruídos que parecem marcar sonoramente o ritmo do tempo que se arrasta moroso no apartamento de Flama. Apesar de iniciar o filme com imagens da cidade, localizando nela o prédio dos garotos, ouvem-se poucos (ou nenhum) sons ambientes externos ao apartamento. Dessa forma, este se configura, de certo modo, como um mundo a parte, com seus próprios sons e silêncios. Rita, a vizinha de Flama, toca a campainha e pede para usar o forno para terminar de preparar um bolo. Impacientes com a interrupção da garota, querendo voltar ao jogo do videogame, os garotos permitem que ela entre no apartamento e use a cozinha. Eis que a energia elétrica acaba. Entediados, Moko e Flama decidem pedir uma pizza. Acompanhamos Ulises, o entregador de pizza, em sua moto pelas ruas da cidade depois de receber o pedido. Ao fundo, a terceira inserção musical. Trata-se de um instrumental de batidas eletrônicas. Em determinados momentos dessa pequena sequência, os sons eletrônicos diminuem o volume até cessarem, dando destaque a outros ruídos presentes na composição
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musical, dentre eles batidas de relógio, reforçando a idéia do desafio de entregar a pizza no tempo previsto. A dinâmica de sons nesta composição e a dificuldade de defini-los como diegéticos ou extra-diegéticos nos remete a Anahid Kassabian: com relação a novos parâmetros referentes ao design de som e mixagem, a autora comenta o “desaparecimento de fronteiras e hierarquias entre som e música”, tal como da rígida distinção entre sons em primeiro plano e de fundo, (2003: p. 91) tratamento este utilizado por Eimbcke. A batida eletrônica inicial retorna. Essa composição musical – tal como outra música presente no momento no qual os garotos atiram nos objetos da casa com uma espingarda – não aparece nos créditos finais do filme. Todavia, tudo indica que os acompanhamentos musicais destas sequências (ambos instrumentais) sejam de autoria do trio Liquits, grupo mexicano de pop/rock, estes sim presentes nos créditos das músicas originalmente compostas para o filme. Vale a pena notar que esta composição instrumental que acompanha Ulises na moto pela cidade acrescenta “cores” a narrativa preto e branca de Temporada de Patos. A simples tarefa de entregar uma pizza dentro do tempo estipulado ganha ares de missão. A música, nesta sequência, instaura momentaneamente no filme indícios sonoros de outro gênero cinematográfico: a ação. Sin embargo, este ritmo audible que es la música, a menudo es más que un acompañamiento, se convierte en una fuerza activa y generadora. La música parece imponerse como fuente imaginaria del movimiento de las imágenes, cuya fuente real es una proyección mecânica. En particular el momento rítmico, respiratorio, del sonido (tanto el de la música como el de un ruido de respiración), a partir del momento en que la vez es periódico y no excesivamente mecânico, se percibe como elemento dinamizador [grifo nosso], portador de rimo visual. La música desempeña también, en numerosos casos, u papel de patrón rítmico, cronométrico, en relación con el cual podemos sentir cómo se desatan los ritmos más fluidos, irracionales, que se producen em la imagem en los comportamientos, los cuerpos, los ruidos, las luces, el montaje. (CHION, 1997: p. 222-223)
Eimbcke, através desse acompanhamento musical, rompe com o ritmo da narrativa – e com o próprio tratamento sonoro apresentado até então – para comentar, de modo bem humorado (e de certa forma até mesmo ironizar a ação, já que a música, à lá “missão impossível”, reforça de um modo um tanto quanto exagerado) a movimentação e ação da cena, potencializando desta forma os percalços e barreiras a serem transpostas na incrível jornada de um entregador de pizza, transitando perigosamente de moto pelas ruas da cidade, em busca de cumprir seu desígnio. As batidas eletrônicas e o som do relógio levam o espectador a “despertar” da morosidade que impregna a narrativa até então. Cria-se a expectativa do que virá pela frente, se Ulises conseguirá ou não cumprir sua tarefa. Depois de ultrapassar os obstáculos urbanos e até mesmo de cair da moto, Ulises consegue por fim chegar ao seu destino. Impossibilitado de usar o elevador – pela ausência de energia no prédio – o pobre entregador sobe as intermináveis escadas até o apartamento de Flama. Os garotos se negam a pagar a pizza, alegando que a entrega está 11 segundos atrasada. Dizendo que não sairá de lá sem receber, Ulises aceita a proposta de disputar a pizza no videogame. Energia elétrica de volta, Flama o desafia num game de fu-
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tebol. No momento decisivo no jogo, cai novamente a energia elétrica e o conflito da pizza permanece ainda um tempo não resolvido. Os quatro personagens na sala – Moko, Flama, Rita e Ulises – começam a discutir acerca do quadro de patos na parede. Flama o detesta. Moko explica a Ulises e Rita que os pais ganharam juntos o quadro que mostra patos num lago – numa rifa e que agora, como estão se separando, brigam pra ver com quem o quadro ficará. Moko vai para a cozinha ajudar Rita a preparar um outro bolo, pois o primeiro queimara no forno, enquanto Flama permance na sala com Ulises. O garoto decide pagar o entregar de pizza, mas para irritá-lo, joga o dinheiro no chão. Nervoso com a brincadeira, Ulises empurra Flama, que acaba por machucar a mão. Arrependido com sua ação, o entregador se oferece para limpar o ferimento. Trata-se de um momento chave da narrativa, no qual os personagens começam deveras a se aproximar uns dos outros. Enquanto Ulises narra para Flama um pouco de sua vida – que morava com a tia avó e por causa desta terminara com a namorada, que havia trabalhado em um canil no qual tentava salvar os cachorros do sacrifício e que pretendia largar o emprego de entregador para criar e vender papagaios – Moko e Rita também se aproximam enquanto tentam fazer outro bolo. Rita beija o garoto, provavelmente o primeiro beijo de Moko, que corre confidenciar com o amigo. Flama e Ulises comem a pizza na sala, conversando sobre a disputa dos pais pelo quadro de patos. Rita decide fazer um brownie, depois de mais um bolo que não dá certo. Enquanto aguardam o brownie assar, Moko e Rita conversam deitados no chão da cozinha. O garoto confessa a vizinha de Flama devaneios que tem com o amigo: vemos ele e Flama dançando em máquinas de fliperamas e sozinhos num supermercado. Moko olhando o amigo se trocar, trocando beijos com Rita e confidenciando estes devaneios nos quais está a sós com Flama, configuram momentos nos quais Eimbcke sutilmente aborda o tema da sexualidade. Os devaneios de Moko, tal como as imagens do canil onde Ulises trabalhava, são algumas das poucas cenas do filme em que há movimentos de câmera. Ao fundo deles, sons que não se definem ao certo, ressoando, caracterizando estes fragmentos como pertencentes a um outro tempo e lugar, fragmentos ora da memória do personagem – o canil onde Ulises trabalhara – ora das fantasias de Moko. Acompanhadas pela voz over de Moko e Ulises que explicam aos seus interlocutores, Rita e Flama respectivamente, o que se passara com eles nestas situações, o acompanhamento musical das lembranças do canil e dos devaneios expressa fortemente “o fluxo cambiante das emoções sentidas por um personagem”, fluxo que, segundo Chion, “a música traduz fina e ricamente, sem que nenhum outro elemento do cinema possa substituí-la nesta função”. (1997: p. 229) Rita insistira em preparar um bolo por se tratar de seu aniversário. Segundo a garota, ninguém em sua casa lembrou da data. Depois de cantar “Parabéns pra você” para si mesma, todos comem o brownie que ela e Moko fizeram. Não tardam a descobrir que a garota colocara um pouco de maconha no doce. Inicia-se uma pequena sequência na qual, sob o efeito da droga, os quatro personagens conversam, dão risadas, plantam bananeira e dançam, dentre outras estripulias. Acompanhando este que é o momento mais extrovertido do grupo, temos o “Concerto para Piano No. 4 em Sol Maior Opus 58:1”, de Beethoven. Extra-diegética, o trecho do concerto utilizado por Eimbcke instaura ares de grandeza à comunhão que vivencia o quarteto:
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La música de Beethoven, muy habitual en el cine de los años treinta y cuarenta pero dejada de lado posteriormente, representa clásicamente la encarnación de la fuerza, de la grandeza y del drama humano, así como de la tragedia, tanto si se cita directamente como si se plagia, (…). (CHION, 1997: p. 257)
Com a percepção alterada, o som da torneira fica ainda mais alto (e engraçado!), a vida mais leve e alegre. O cotidiano se dissolve e não há mais barreiras entre eles. Moko, Flama, Ulises e Rita – tal como o cachorro, o ganso, o pato e o gato – dançam juntos, a mesma coreografia de uma música que apenas eles sabem qual é, já que o concerto de Beethoven não é diegético. Eis que a atenção novamente se volta para o quadro de patos. Moko, olhando fixamente para a pintura, chama a atenção dos demais. Eles conseguem ver as figuras se mexendo e escutam o som da água e dos patos no lago. Estes sons, inicialmente relacionados à dimensão da metadiegese, ou seja, oriundos da mente dos garotos, Rita e Ulises – talvez ainda sobre o efeito da maconha – passam posteriormente a fazer parte da música “Panorama”, inserida no momento de contemplação do quadro. Originalmente composta para o filme por Alejandro Rosso – da banda mexicana de rock alternativo Plastilina Mosh – e Bibi Zambrano, a composição mescla instrumental de piano, baixo e percussão com sons de água e patos, tendo ainda ao fundo uma “ruidagem” semelhante às imagens dos devaneios de Moko e lembranças do canil de Ulises. Ressoando, essa textura sonora, juntamente com a própria composição musical de “Panorama”, ajuda a caracterizar o lago e os patos do quadro como um espaço imaginário. A sequência segue com Ulises explicando aos demais porque os patos voam em forma de “V”. Gesticulando com as mãos, imitando o movimento dessas aves no ar – outro momento com movimento de câmera, que acompanha as mãos do personagem – Ulises diz que voam dessa forma, pois assim um pato abre espaço e impulsiona pelo ar o próximo, que impulsiona o próximo, e assim por diante. Quando o primeiro da fila se cansa, dá lugar ao próximo e vai descansar no final da formação. Um dos momentos mais sublimes de Temporada de Patos, a história dos patos, ao som delicado de “Panorama” – que combina, sem distinções hierárquicas, (KASSABIAN, 2003) sons de água e patos com instrumentos musicais – representa uma metáfora para o relacionamento humano calcado na solidariedade. Juntos, os patos migram de um lugar para outro em busca de melhores condições para sobreviverem. Juntos, Moko, Flama, Ulises e Rita começam uma tarde e a terminam. Viver um simples dia pode representar uma grande jornada na vida de pessoas comuns. “Grande” não no sentido romântico e heróico que o termo pode abarcar, mas justamente no que diz respeito à falta de grandiosidade e o esforço muitos vezes necessário para passar por cada minuto e cada fragmento de espaço de um dia inteiro no qual se vive – de novo e de novo – o abandono, a rejeição, a falta de perspectiva, a incerteza, a distância, a tristeza. E sem notar, na banal convivência, uma pessoa abre espaço e, de certo forma, pode impulsionar as outras para frente. Bravo com as incessantes brigas dos pais pelos objetos da casa – e considerando até mesmo a possibilidade de ser adotado – Flama pega uma espingarda e começa a atirar, junto com Moko, nos enfeites do apartamento. A vingança do garoto acontece ao som de outra composição instrumental que não aparece nos créditos finais (possivelmente do trio mexicano de pop/rock Liquits, tal como a composição de batidas eletrônicas que acompanha Ulises de moto pela cidade). Trata-se de um trecho instrumental de rock pesado.
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Semelhante a sequência de Ulises, a música nessa cena traz uma nova característica de gênero para o filme. Dialoga, inclusive, com o próprio game de ação e tiro em primeira pessoa (“Halo”) que Moko e Flama jogam. Outra cena na qual a música dinamiza (CHION, 1997) ainda mais o momento de explosão dos personagens, instaurando uma nova atmosfera. “Panorama” retorna na narrativa durante um devaneio de Ulises. A música de Rosso e Zambrano dialoga com a idéia do sublime, do devaneio e relaciona-se diretamente com o universo dos patos e sua ligação com a própria subjetividade dos personagens, principalmente de Ulises, que se vê dentro do quadro. La música, en el cine sonoro “naturalista”, a semejanza de la tentativa de monólogo interior de Hitchcock, intenta asegurar también la continuidad de la dimensión subjetiva y psicológica en el seno de películas en las que, especialmente a causa de la presencia de la voz y de ruidos realmente oídos, nuestra mirada tiene cada vez más a ser exterior, y en las que el cine pierde su naturaleza de sueño despierto. (CHION, 1997: p. 228)
Nem sempre os ruídos atuam no sentido de canalizar a atenção para a dimensão exterior dos personagens – em outros termos, a dimensão da “realidade”.2 A colocação de Chion é válida, todavia, para Temporada de Patos e Lake Tahoe, nos quais os sons ambientes, muito expressivos, reforçam a materialidade de ações banais (como varrer uma calçada) ou reproduções mecânicas (como o som de um filme na Tv), presenças sonoras que recorrentemente ganham o primeiro plano em contraste com a inércia e passividade muitas vezes apresentada pelos personagens. A partir da definição de leitmotiv feita por Claudia Gorbman (1987) – segundo a autora, qualquer música, uma melodia completa ou apenas um fragmento, ou até mesmo uma progressão harmônica distinta, escutada mais de uma vez durante o filme – com função denotativa quando caracteriza personagens e situações (relacionando-os com as imagens apresentadas) ou conotativa quando expressa ou sugere um sentido mais implícito, abstrato (em concordância ou discordância com a imagem com a qual está interrelacionada),3 é possível compreender “Panorama” como leitmotiv conotativo, representando a espaço subjetivo da imagem do lago onde se encontram os patos e da própria dimensão subjetiva e psicológica dos personagens, dimensão está que ganha força de expressão na presença do quadro. No banheiro do apartamento, nu dentro da banheira, Ulises olha para o quadro de patos na sua frente, que ele mesmo salvou do tiro-ao-alvo dos garotos, recordando-se de uma série de reclamações que recebera em suas entregas de pizza. Eis que se encontra dentro do quadro, a beira do lago, quando Flama aparece com um telefone. É o patrão de Ulises, reclamando que o entregador ainda não retornou ao trabalho. Ulises se demite e permanece, aliviado, em frente ao lago, onde se encontram os patos. Tal como afirma Chion, o leitmotiv, elemento instável e móvel, “assegura ao tecido musical uma espécie de elasticidade, de fluidez deslizante, a dos sonhos”, representando
2 Como é possível notar, a exemplo, em filmes como Elephant (2003), Last Days (2005) e Paranoid Park (2007), do diretor americano Gus Van Sant. 3 Conceitos de Ronald Rodman (2003), inspirados nos trabalhos de semiótica de Roland Barthes.
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assim uma vasta “rede de ecos” emocionais, ressonâncias, recordações, pressentimentos e indecisões. (1997: p. 220, 221) A narrativa segue para o fim com os garotos no sofá. Flama diz a Moko que pretende ficar com a mãe, o que significa que se mudará do apartamento. Moko tira sua camiseta e entrega a Flama, que faz o mesmo. A troca de roupa simboliza uma despedida para os amigos. Flama se despede também de Rita, desejando-lhe um sincero “parabéns” pelo seu aniversario – anteriormente ele havia implicado com a bagunça que a garota fizera em sua cozinha e ameaçara expulsá-la do apartamento – e a agradece. Temporada de Patos termina com a imagem de Ulises nas ruas da cidade à noite, com o quadro de patos amarrado na moto, ao som de “Panorama” novamente. A presença da canção no desfecho do filme (e a associação da mesma com a subjetividade dos personagens e a idéia de um outro lugar, onde vivem os patos) desenha uma sutil expectativa do que virá em seguida em suas vidas. Expectativas não de um futuro inteiro. Apenas uma curiosidade de como será o dia de amanhã. E para onde irão os patos, impulsionados no ar uns pelos outros.
Moko, Flama, Ulises e Rita: uma tarde com patos
Lake Tahoe: o carro, o cão, o bebê, o samurai Parece possível pensar Lake Tahoe como um projeto contínuo a Temporada de Patos, no qual Eimbcke – com algumas semelhanças estéticas e narrativas – retoma temas como a perda, a dor, solidão, abandono e encontros inusitados. Juan bate o carro num poste e segue a pé pela cidade (que tudo indica ser um vilarejo a beira-mar) em busca de ajuda para concertar o veículo. Não vemos a batida, apenas escutamos o som da colisão no black. Eimbcke, mais do que em Temporada de Patos, abusa do uso de quadros fixos e de tela preta (ausência completa de imagens) com os sons da cena ao fundo. Juan precisa transpor estas molduras, de um lado para outro, em busca de uma oficina. O diretor mexicano retrata a cidade vazia, abandonada, povoada por casas velhas, estabelecimentos comerciais fechados, ruas desertas. A idéia de vazio estaria completamente instaurada não fosse a presença de uma série de sons que dinamizam e temporalizam estas imagens. (CHION, 1993: p. 25) Recorrente em todo o filme, são ruídos referentes a uma série de pequenas ações, grande parte delas de pouco ou nenhuma importância para a trama central da narrativa, tais como os de alguém varrendo a rua, mastigando algo. Tal como em Temporada de Patos, não se trata de sons hiper-realistas, mas fortemente naturalistas, num ambiente no qual quase nada compete com eles (vozes, por exemplo).
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Dessa forma, parte significativa da atenção do espectador volta-se para as ações das quais os sons emanam (relacionadas ou não com os personagens centrais), ações banais que através de sua expressão sonora ganham contornos dramáticos. Depois de muito caminhar, o jovem encontra a oficina de Don Heber. Eis que ocorre o primeiro de alguns encontros nos quais Juan conhecerá pessoas da cidade. Acreditando que o garoto invadira seu estabelecimento – que, pelas condições de abandono, parece não funcionar há muito tempo – o velho mecânico coloca De Sica (seu cão) para vigiar Juan, enquanto ele procura o telefone para ligar para a polícia. A distensão do tempo das ações que, uma em seguida da outra – a procura pelo telefone, pela lista telefônica e a tentativa frustrada (já que o aparelho não funciona) de chamar a polícia – não levam os personagens a lugar algum, somado ao tratamento sonoro do ruído dos passos do velho mecânico, que arrasta os pés de um lado para outro enquanto De Sica encara Juan, imóvel na cadeira, compõe uma atmosfera fortemente marcada pela inércia. Por fim, Juan explica que apenas busca ajuda para concertar seu carro. Como o telefone não funciona, Don Heber desiste de denunciar o rapaz, que conta o que ocorrera com o carro. O velho mecânico diz que provavelmente precisa trocar o distribuidor do veículo. Juan espera-o – e ao cão – comer algo na cozinha para depois receber a instrução do que fazer: Don Heber diz que não o acompanhará até o carro, pois se cansa facilmente, mas que Juan compre o distribuidor e traga para que ele explique como instalar. Eis que se inicia a busca por uma loja de autopeças que tenha o tal distribuidor. Juan acaba por conhecer, numa destas lojas, Lucia, uma adolescente, mãe do bebê Fidel, que ali trabalha. Quando Juan explica o que procura, Lucia olha para as prateleiras de peças automobilísticas e pede que o jovem aguarde chegar alguém que entende do assunto. Não sabemos ao certo se a garota realmente não sabe reconhecer o tal distribuidor ou se simplesmente fizera Juan esperar um pouco, fazendo-lhe companhia. De todo o modo, tal como na oficina de Don Heber, nada e ninguém funciona de modo a fazer o tempo fluir. Em frente à loja, ambos sentados, aguardam a chegada de David, outro rapaz que, ao que tudo indica, trabalha com Lucia. Apesar de Juan pedir apenas a peça, David insisti em acompanhá-lo até o carro para ajudá-lo. Na tentativa de consertar o veículo, Juan descobre que na verdade não se trata de um problema no distribuidor, mas em outra peça. Antes de voltarem à loja, David leva Juan até sua casa. Descobrimos que o jovem é aficionado por artes marciais: seu quarto exibi, nas paredes, fotos de lutadores, espadas, estrelas ninjas e símbolos orientais. Sem pressa de resolver a situação, David mostra a Juan um vídeo de Shi Yan Ming, um mestre de artes marciais, e insiste para que o rapaz aceite emprestado o livro de “treinamento Shaolin” de Ming. Juan, passivo a toda demora da situação, ainda acabar por aceitar tomar café da manhã com David e sua mãe, mas não tarda a fugir da casa. Pela primeira vez, a câmera se movimenta acompanhando o jovem pelas ruas da cidade, em direção a sua própria casa. Juan conversa rapidamente com o irmão menor, que acampa no quintal da casa. O garoto, dentro da barraca, recorta figuras de uma revista. Ao entrar em casa, Juan se depara com a mãe trancada dentro do banheiro, fumando e chorando, com fotos da família. Através da conversa com o irmão, descobrimos que o pai falecera recentemente. Não tarda, todavia, para que Juan saia apressado e retorne a loja de Lucia em busca da nova peça. A adolescente pede que o garoto segure rapidamente seu bebê no colo. Fidel, que chorava, para de repente e adormece no colo de Juan. Lucia aproveita para escutar música
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e liga seu rádio. Diegética, ouvimos um trecho de “El Sexo sin Amor”, da roqueira mexicana Jessy Bulbo, que Lucia canta junto: “No tengo tiempo para nada / que no sea lo que / me venga en gana / no soy del tipo / que se la vive angustiada”. Vale notar outros trechos da canção de Jessy: “Yo la verdad no me ocupo de nada / no le hago la lucha a nada / por que para mi todo es una simple / bobada.” “Y me gusta / y me encanta / el sexo sin amor / el sexo sin amor / el sexo sin amor.” “Soy cobarde, desordenada / como los ciervos en la sabana / privilegios de una / mujer liberada.”
“El Sexo sin Amor” corrobora, juntamente com o ar despreocupado, o cigarro sempre na mão e as vestes adolescentes, na caracterização de Lucia como uma garota acomodada e desencanada. Como em Temporada de Patos, Eimbcke insere na narrativa outra artista popular no universo juvenil mexicano, ao introduzir não somente uma de suas canções, mas a própria figura de Jessy Bulbo no filme, que fará um show no qual Lucia quer ir. Fã da roqueira e de suas canções libertadoras, a jovem mãe de Fidel não se resume, todavia, apenas a uma adolescente sem causa e sem vontade para nada. Lucia demonstrará postura e atitude quando, mais a frente, partir dela a iniciativa de uma relação amorosa, em seu quarto, com Juan. “El Sexo sin Amor”, com sua letra despojada e melodia frenética, destaca-se completamente do ambiente pacato e insosso no qual é inserida por Lucia. Dessa forma, a música atua no sentido de fazer a própria adolescente se sobressair ao lugar ao qual pertence. Lucia, como a canção de Jessy, pulsa, contagia, transpira vida. Al mismo tempo, la canción es el símbolo de eso que en cada uno de nosotros está ligado a lo más íntimo de su destino, de sus emociones, y que, a la vez, permanece libre como el viento, la cosa más compartida del mundo, la más común, ya que es el aspecto más vulgarizado, menos esotérico, más anônimo de la música. A veces la melodia de una canción es también un código, un cifrado: el código de las palabras implícitas a las que remite, incluso cuando éstas no se escuchan; son como el inconsciente de las notas (…). (CHION, 1997: p. 288)
Com a peça na mão, Juan retorna a oficina de Don Heber em busca de orientação para que ele mesmo possa repor a peça defeituosa. Levado mais uma vez pelo ritmo de vida dos outros e aceitando uma vez mais seus pedidos, Juan concorda em levar o cão do velho mecânico, De Sica, para passear. Arrastado de um lado para outro pelo cachorro, Juan acaba por perdê-lo. De volta a loja de peças, Juan está sentado ao lado de Lucia que lhe pede um favor. A garota gostaria de ir ao show de Jessy Bulbo e pede que Juan cuide de Fidel por uma noite, coisa que o jovem se recusa a fazer. Com um caderninho do lado, a garota anota algumas coisas. Parece estar compondo uma música – a lá Jessy Bulbo, sua inspiração – sendo que em seguida, batuca com os pés e com as mãos e canta: “Abra os olhos e olhe para mim / Não tenha medo, venha para perto de mim”. Apesar de aparentemente indiferente ao que diz e faz a adolescente, a letra da canção de Lucia encontrará ecos mais a frente se lembrarmos que, por fim, Juan se aproximará dela.
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Mais algumas idas e vindas, David acaba por concertar o carro de Juan e o convida para ir ao cinema assistir ao filme Operação Dragão (1973), com Bruce Lee. Juan, uma vez mais, nega o convite e volta para casa, mas não tarda a sair novamente. A partir de então, inicia-se uma sequência de reencontros, nos quais Juan demonstra, diferentemente dos momentos anteriores, uma atitude mais ativa com relação às pessoas e os acontecimentos com os quais se vê envolvido. O primeiro dos reencontros é com Don Heber. De carro, Juan sai junto com o velho mecânico em busca de De Sica, que fugira quando estava passeando na coleira. O garoto e Don Heber acabam por encontrá-lo na casa de uma outra família. O cachorro parece divertir-se em meio aos pais e crianças. Do carro, Don Heber observa a cena e desaprova quando Juan diz que pegará o cachorro de volta. Don Heber deixa De Sica para trás e volta para casa, sozinho. Apesar de ter negado ir ao cinema com David, Juan aparece para ver o filme de Bruce Lee. Eimbcke faz uma interessante intervenção sonora para representar Operação Dragão. Temos Juan e David sentados um ao lado do outro, na sala de cinema. Depois, apenas uma tela preta – não vemos cena alguma do filme – e sons da pancadaria de Lee. Em seguida a uma série de gritos referente a golpes, luta corporal e ruídos de coisas quebrando, ouvimos ainda na tela preta a famosa música tema de Operação Dragão, do compositor Lalo Schifrin. Já fora do cinema, David, imitando os golpes de Bruce Lee, quer lutar (pacificamente) com Juan e diz para o garoto – lição de samurai – que é preciso saber conter a raiva, possuir controle emocional. Juan pega no carro o taco de beisebol que ganhara anteriormente de um conhecido e começa a bater no capô do carro com ele. A ação prossegue na tela preta, ouvimos apenas as batidas e depois silêncio. Os dois se despedem e Juan vai embora, com o carro ainda mais amassado do que ficara depois da batida no poste. Por fim, ao lado de Lucia, Juan completa a série de reencontros. O jovem aceita cuidar de Fidel para que a garota possa ir ao show de Jessy Bulbo, a roqueira mexicana que a jovem tanto gosta. Já no quarto de Lucia ambos descobrem, após um telefonema, que o show ocorrera no dia anterior. Juan diz que vai embora, mas acaba por ficar. Sentado na
Don Heber e De Sica
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cama da menina, aceita fumar um baseado com ela e, sem reação, permite que a garota se aproxime. Lucia tira a própria blusa e em seguida a camiseta de Juan. Sem qualquer tipo de intervenção sonora – o quarto parece isolado do resto do mundo – os jovens se entreolham. Juan abraça Lucia e chora. Mesmo procedimento usado anteriormente, Eimbcke priva o espectador da imagem e, na tela preta, ouvimos apenas o choro do rapaz e, depois de um tempo, o choro de Fidel que – já de manhã – acorda. Vemos Juan levantar e ir ate o bebê, enquanto Lucia continua dormindo na cama. Grande parte das cenas de Lake Tahoe são pontuadas por sons que emanam ora da ação dos personagens, ora do próprio ambiente onde suas “inações” mergulham. O tratamento sonoro dado por Eimbcke faz com que a materialidade dos lugares por onde transita Juan se torne bastante expressiva, como se o diretor mexicano tentasse dar “voz” ao vazio e ao silêncio que predomina na vida dos personagens. Nesse sentido, é significativa a colocação de Chion quando comenta que “segue prestando-se ao ruído dupla propriedade, não somente a de narrar objetivamente por si mesmo a causa da qual emana, mas também a de despertar impressões ligadas a esta causa.” (1993: p. 108). É justamente de muitas impressões e texturas sonoras que Eimbcke reveste suas narrativas, impregnandoas de uma veracidade orgânica, sensorial. Praticamente todos os momentos mais significativos da narrativa – Juan batendo o carro no poste, ouvindo “El Sexo sin Amor” com Lucia na loja, chorando no quarto dela, com David no cinema, batendo no capô do carro, procurando Sica com Don Heber, (…) – têm sua dimensão imagética interrompida por uma tela preta antes de se finalizarem. Diferentemente do que ocorria no cinema sonoro clássico, “no qual se evitava mostrar certas coisas, recorrendo ao som para auxiliar no tabu visual, para sugerir o espetáculo de uma maneira muito mais impressionante do que se houvesse visto antes” (CHION, 1993: p. 31), Eimbcke não priva o espectador de algumas imagens por qualquer tipo de restrição. Recurso narrativo e estético, o uso recorrente de cortes para o black e, daí pra frente, o contato apenas com a dimensão sonora das ações que se desenrolam, leva o espectador a um contato ainda mais profundo com os aspectos sonoros que envolvem os personagens. Privado de imagens, apenas os sons comunicam sensorialmente a experiência de se encontrar naquela situação. O som dos passos, da respiração, do carro percorrendo as ruas, da pancadaria de Bruce Lee, do taco batendo no capô do carro, o choro de Juan, … Princípio básico do contrato audiovisual (CHION, 1993): na ausência de imagens, escuta-se tudo de um modo diferente. Nesse sentido, Eimbcke não apenas destaca os aspectos sonoros durante todo o filme – numa dinâmica simples e bem elaborada onde utiliza narrativamente o silêncio, poucos diálogos e a própria inação dos personagens – mas ainda permite que, em determinados momentos, a dimensão sonora seja a única camada narrativa, configurando um convite direto à total imersão na experiência sonora que vive Juan. Como espectador, percebemos a cena de uma maneira diferenciada e nos perguntamos se os personagens, no momento de black, também são acometidos por uma percepção diferente do que se passa com eles. Contextualizada a cena, quando o espectador é privado das imagens que indicariam como ela continuaria, parece instaurar-se sempre a dúvida referente à possibilidade de que algo de surpreendente possa acontecer nesse intervalo de black. Mesmo quando a imagem retorna e notamos que nada de novo aconteceu, ainda sim fica a sensação de que perdemos um olhar, um gesto, algo que poderia nos orientar no sentido de compreender melhor o que se passa com Juan e os demais personagens.
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O reencontro com Don Heber faz com que o velho mecânico saia de casa (e tudo indica que isso não acontece há muito tempo) para um passeio de carro pela cidade, em busca de Sica. Sua atitude – abrir mão de seu único companheiro, permitindo que o cachorro permaneça num ambiente mais vivaz – parece dialogar, de certo modo, com a morte do pai de Juan e a dificuldade de lidar com tal ausência. Tal como o velho mecânico permitiu que De Sica partisse, Juan precisará fazer o mesmo: aceitar que seu pai já não mais estará ao seu lado. Depois de ver Bruce Lee espancar e derrotar seus inimigos, Juan faz o mesmo na frente do cinema. A tela preta e apenas os sons das batidas do taco de beisebol contra o capô do carro indicam que o garoto seguiu os ensinamentos de David. Para alcançar o controle emocional, Juan precisou primeiramente perdê-lo. Ao extravasar sua raiva contra o carro – veículo que dera tanto trabalho para consertar – Juan desconta sua dor e, de certa forma, vinga-se do pai ausente estragando o carro que lhe pertencera em vida. E é com Lucia, por fim, que o jovem irá chorar. Na presença humana da adolescente, nua, com toda sua beleza e imperfeições, Juan desaba, como um personagem de Eimbcke: apesar de audível – ouvimos seu choro na tela preta – ainda assim muito contido, sutil, como se cada som produzido por ele fosse dotado, em essência, de silêncio. Conclui-se assim a pequena jornada de Juan. Em teoria, o jovem foi ao encontro de Don Heber, David e Lucia para ajudá-los, prestar favores, fazer-lhes companhia. Na prática, Juan parece ter ido ao encontro, mesmo que breve, de si mesmo. Pessoas e situações que passaram por Juan e que talvez não retornem mais. Tal como em Temporada de Patos no qual cada um segue seu rumo, Lake Tahoe retoma o que parece ser uma máxima do cinema do mexicano Fernando Eimbcke: na efemeridade de alguns momentos, profundas manifestações de vida acontecem. Nem sempre podem ser vistas – muitas telas pretas nos impedem disso – mas é possível ouvi-las. Quando retorna a sua casa, Juan descobre que o irmão montou um caderno cheio de recortes de revista e fotos do pai. Para contribuir com a compilação de lembranças presentes no caderno, Juan retira do carro um adesivo e o entrega para que o irmão cole junto com os demais recortes e fotografias. Trata-se de um adesivo escrito “Lake Tahoe”, referente ao famoso lago Tahoe que fica na divisa dos estados de Nevada e Califórnia, nos EUA. O irmão de Juan confessa que não se recorda de quando visitaram o lugar. O jovem diz que, na verdade, nunca foram a Lake Tahoe, que haviam ganhado o adesivo de uma tia. Baseado no adesivo, o irmão acha que o lugar deve ser muito bonito e Juan diz que acredita que sim. Lake Tahoe funciona como uma espécie de “Rosebud”4 às avessas. Sendo o próprio título do filme, não é, todavia, citado em momento algum da narrativa nem desperta curiosidade ou desencadeia investigações acerca do que seria o tal lago, mas no final traz revelações consigo. Juan comenta que o pai não gostava do adesivo. Ainda assim, estava colado no carro e agora faz parte de uma compilação de imagens que ajudará o jovem e seu irmão a se recordar do pai, do que ele gostava e do que não gostava. Dos lugares que teve a oportunidade de visitar e de tantos outros – como Lake Tahoe – dos quais apenas ouvira histórias. O filme termina, já nos créditos finais, com a última intervenção musical. Tratase de “La lloroncita” – interpretada pelo grupo mexicano Los Parientes de Playa Vicente 4 “Rosebud”, última palavra que o personagem Charles Foster Kane, do filme Cidadão Kane (Orson Welles, 1941), pronuncia antes de morrer. O mistério do significado da palavra desencadeia toda a investigação para descobrir a essência de Kane.
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– canção tradicional conhecida como “son jarocho” (estilo musical proveniente do estado mexicano de Vera Cruz). “Dulce madre tierra llora, por el mar, el río y el viento / Por el mar, el río y el viento, dulce madre tierra llora / Nos recuerda con la aurora, que el amor es alimento / Que el amor es alimento, nos recuerda con la aurora” “Ay de mí, Llorona, déjame llorar / Ay de mí, Llorona, pero déjame llorar / A ver si llorando puede mi corazón descansar / Ay de mí, Llorona, pero déjame llorar”.
Lamentosa, “La lloroncita” refere-se à tristeza de um amor perdido e a esperança de, ao se chorar, encontrar um breve conforto ao sofrimento. É nos braços de Lucia que Juan, mesmo que momentaneamente, encontra este conforto quando chora a morte do pai. De momentos e momentos Eimbcke constrói suas narrativas. Banais e profundamente tocantes. Fragmentos de vida.
Lucia e Juan: uma tarde qualquer, de um dia qualquer, num lugar qualquer
Referências bibliográficas CHION, Michel. La audiovisión: introducción a um análisis conjunto de la imagen y del sonido. Antonio Lopez Ruiz (Trad.). Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1993. ______. Film, a Sound Art. Claudia Gorbman e C. Jon Delogu (Trad.). University Presses of California: Columbia and Princeton. 2009. ______. La música en el cine. Manuel Frau (Trad.). Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1997. GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: Narrative Film Music. Bloomington: Indiana University Press, 1987. KASSABIAN, Anahid. The sound of new film form. In: INGLIS, Ian (Org.). Popular music and film. London: Wallflower Press, 2003. RODMAN, Ronald. The popular song as leitmotif in 1990s film. In: DICKSON, Ray. Movie Music: the film reader. London: Routledge, 2003. RODRÍGUEZ, Ángel. A dimensão sonora da linguagem audiovisual. Rosângela Dantas (Trad.) e Simone Alcantara Freitas (revisão técnica). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. ZAVALA, Lauro. Tendencias temáticas y formales en las óperas primas del cine mexicano, 1988 – 2004. In: El ojo que piensa: revista de cine iberoamericano. Ano 2/ no. 3, Janeiro - Junho, 2011.
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Juliana Panini Silveira é graduada em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som pela mesma universidade, com pesquisa na área de estudos de som no cinema. Bolsista FAPESP, é diretora e roteirista do curta-metragem Em casa (2010).
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Frida Kahlo, naturaleza viva
e
Limite
muito além do cinema calado de Paul Leduc e Mário Peixoto ALEXANDRE RAMOS VASQUES*
Resumo: Limite e Frida Kahlo, naturaleza viva são filmes que podem dialogar intensamente de maneira surpreendente. As duas obras cinematográficas abordadas pelo autor do texto são vistas sob a ótica da construção audiovisual. As imagens construídas por eles, cada um ao seu modo, com estruturas de produção distintas, reproduzem a idéia da finitude humana. O uso da palavra, por sua vez, tem papel fundamental na construção do discurso cinematográfico de Limite e de Frida Kahlo, naturaleza viva, e mais ainda na idéia de morte trabalhada pelos dois realizadores, em consonância com as características autorais de Mário Peixoto e de Paul Leduc. PALAVRAS-CHAVE: PAUL LEDUC/MÁRIO PEIXOTO, SILÊNCIO, CONSTRUÇÃO AUDIOVISUAL Frida Kahlo, naturaleza viva and Limite: Beyond the silence in movies by Paul Leduc and Mário Peixoto. Abstract: Limite and Frida Kahlo, naturaleza viva are intensely engaging films - moreover, in surprising ways. The two films discussed by the author of the article are considered from the perspective of audiovisual construction. The images constructed by them, each in his own way, with different production structures, reproduce the idea of human finitude. The use of the word also plays a fundamental role in the construction of the cinematographic discourse of Limite and Frida Kahlo, naturaleza viva, and even more so in the idea of death developed by the two filmmakers, in line with the authorship characteristics of Mário Peixoto and Paul Leduc. KEYWORDS: PAUL LEDUC/MÁRIO PEIXOTO, SILENCE, AUDIOVISUAL CONSTRUCTION
Introdução O objetivo deste trabalho é buscar estabelecer outros pontos de contato para além da característica em comum aparentemente mais evidente a Frida Kahlo de Paul Leduc em Frida Kahlo, naturaleza Viva (1986) e Limite (1931) de Mário Peixoto: a ausência ou escassez de diálogo como recurso de linguagem presente nas duas obras. Desta forma, esperamos ultrapassar a mera coincidência entre os realizadores, para de fato constituir-se numa ferramenta básica de um projeto cinematográfico que uniu dois cineastas cronologicamente tão distantes.
A escolha do tema ligado imediatamente ao universo sonoro poderia ser contraditória em se tratando do cinema silencioso produzido no Brasil ainda nos anos 1930, entretanto o que está em jogo aqui é o número reduzidíssimo de letreiros – uso da palavra – de Limite, apenas três ao longo de 120 minutos de filme. Também poderíamos estender a questão sobre o uso do som no filme de Mário Peixoto se direcionarmos nossos ouvidos para a trilha musical elaborada por Brutus Pedreira1 para Limite. Erik Satie, Maurice Ravel, Prokofieff, Stravinsky, entre outros, dialogam com as imagens fotografadas por Edgar Brazil e montadas por Mário Peixoto dando sentido ao filme do estreante cineasta brasileiro. Em relação à Frida, os poucos diálogos têm uma função bastante específica ao longo do filme. Além dessa característica, também podemos atentar para o tipo de música impressa na banda sonora do filme de Leduc, a música popular cantada por pessoas do povo e pela própria Frida (Ofélia Medina), muitas vezes em companhia de Diego Rivera (Juan José Gurrola). Encontramos aqui um duplo ponto de contato entre Limite e Frida Kahlo, naturaleza viva. A escassez de diálogos apresentada nas duas obras dá lugar às construções musicais eruditas e populares, respectivamente, compondo com as imagens brasileiras e mexicanas, o sentido de cada filme particularmente. Biograficamente, podemos considerar que Leduc e Peixoto se comportam cinematograficamente como realizadores. Embora tenhamos subsídios mais concretos para ratificarmos tal afirmativa em relação ao diretor mexicano, tendo em vista sua filmografia composta por dez longas-metragens, a existência de Limite, desde sua pré-produção, passando pelas filmagens e finalização, distribuição, exibição e até preservação dependeu, em grande parte, da ação direta de Mário Peixoto. Aqui estamos já estendendo o conceito básico de “autor” ao cineasta brasileiro dentro da chave da proposta da “política dos autores”, elaborada por André Bazin e defendida por outros cineastas franceses da Nouvelle Vague, entendendo que a teoria desenvolvida pelos jovens do Chaplin-Club,2 em especial pelo romancista Otávio de Faria, um dos membros fundadores do cineclube, amigo e principal interlocutor cinematográfico de Mário Peixoto, dava conta de princípios da teoria que iria aflorar na Europa dos anos 1950. Retornando ao eixo propulsor do trabalho – o silêncio tendo o espaço vazio cinematográfico preenchido com imagens e com trilha musical – chega-se à temática comum da morte. Os símbolos de sua concretude são perceptíveis em Frida Kahlo, naturaleza viva através da cama e da cadeira de rodas da pintora, e em Limite, através do barco ocupado pelos três personagens da história peixotiana. A partir destas três chaves – o uso do som, a política dos autores, e a temática da morte – efetuaremos uma leitura comparativa entre as duas obras, estabelecendo mais aproximações do que afastamentos dentro dos tópicos citados.
Brutus pedreira também interpreta o pianista bêbado de Limite, no qual ele executa uma música de acompanhamento no filme exibido de Charles Chaplin dentro da sala de exibição. A trilha musical de Limite foi elaborada por Brutus Pedreira sob a supervisão de Mário Peixoto para ser executada em acompanhamento com a projeção do filme. 2 Cineclube fundado em 1928 por Otávio de Faria, Plínio Sussekind Rocha, Cláudio Mello e Almir Castro. 1
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O cinema calado O termo acima citado remete diretamente à entrevista concedida por Paul Leduc à Maria do Rosário Caetano em 1995. Questionado pela entrevistadora sobre os 70% de silêncio incapazes de calar o talento artístico, político e humanista da representação da pintora mexicana, Leduc justifica politicamente a carência de diálogos em seu filme. Porque, para ele, “a palavra está desvalorizada em boa medida pela esquerda e pela direita. No México, a palavra “revolução” perdeu sua real carga semântica. O Partido Nacional Revolucionário (PNR), que nasceu da Revolução de 1910, institucionalizou-se. Hoje chama-se, contraditoriamente, Partido Revolucionário Institucional.” (CAETANO, 1997: p. 194) O cineasta mexicano, nascido na Cidade do México em 1942, dirigiu Reed: México insurgente, em 1973, filme sobre a Revolução Mexicana de 1910 visto através das lentes do fotógrafo norte-americano John Reed. Treze anos antes de retratar Frida, Leduc, embora não tenha dispensado os diálogos para contar a trajetória de Reed em solo mexicano, já naquela época se preocupava com o “excesso retórico, as palavras inúteis, a verborragia.” (CAETANO, 1997: p. 194) Leduc parece ter depurado mesmo o uso das palavras durante os 108 minutos de Frida. Nos primeiros dez minutos de filme não há um diálogo sequer. O cineasta privilegia ao longo da fita o gestual dos atores, principalmente da protagonista interpretada corajosamente por Ofélia Medina. Os gestos, a postura corporal, a fisionomia do rosto contribuem para exteriorização do estado de espírito da personagem. As canções populares, cantadas em coro, ou cantaroladas por Frida em companhia ou não de Diego Rivera seu principal interlocutor no filme, são elementos inseridos no universo fílmico como trunfos contra a tentação do diálogo explicativo para o espectador domesticado pela retórica hollywoodiana. O desenvolvimento da técnica expressiva sem recorrer aos diálogos torna-os quando necessários não insignificantes, mas elementos limítrofes no filme, onde a partir dos quais a trajetória de Frida sofrerá uma mudança de curso. No primeiro caso, quando há uma tentativa de diálogo entre Frida e Rivera, enquanto este é surpreendido pela pintora pintando o corpo da irmã de Frida imaculado pela poliomielite, o sentimento de decepção, ódio e revolta – nesta gradação – já estava estampado no rosto da artista, passando a partir daí para um momento bem menos afetuoso entre Frida e Rivera, aplicando tons mais nostálgicos aos quadros seguintes da película de Leduc. No segundo momento, a dor na perna direita de Frida já é insuportável, angustiante, a partir da qual mais uma vez, a tentativa de diálogo agora estabelecida entre Frida e uma das enfermeiras confirma o destino inevitável da amputação. Em ambos os casos, à tentativa de diálogo responde-se com um silêncio do interlocutor, de alguém que lhe privou de algo realmente importante, do amor e de seu corpo. O silêncio para Mário Peixoto reside na ausência de letreiros nos 120 minutos de Limite ou na quase total ausência, já que o cineasta lança mão de apenas três letreiros para dar sentido ao drama vivido pelo personagem de Raul Schnoor. A visita do Homem Nº1 ao cemitério já era extremamente penosa para o personagem que se dirigia ao túmulo de sua esposa. O vazio, o cansaço, a quase prostração daquele homem dialogava em silêncio com o abandono da natureza no cemitério. O encontro inesperado com o marido de sua amante (personagem de Mário Peixoto), debruçado sobre o túmulo de sua mulher, foi acompanhado por poucas palavras, tendo na última frase seu conteúdo devastador. Aquele amor, um pequeno idílio registrado nas areias de Mangaratiba, apagado
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imediatamente pelas ondas implacáveis em movimento, foi passado a limpo pelo personagem interpretado pelo próprio Mário Peixoto. A quebra do silêncio, ou a inserção de letreiros na obra peixotiana, definiu o destino do Homem Nº1. O desespero tomado pelo conhecimento de uma doença transmissível, adquirido de sua amante, transforma o personagem de Raul Schnoor, colocando-o inevitavelmente na embarcação à deriva de onde se contava esta história. Nesta sequência, todo o desespero do Homem Nº 1 é trabalhado pelo gestual do ator, pela modificação em seu caminhar, pelo cabelo que esvoaça, pela roupa que se desfaz, e pelos trabalhos de câmera de Edgar Brasil e pelos efeitos de montagem. Provocativamente, numa chave narrativa, podemos propor que o encontro do cemitério causou “o clima de Limite [que] é uma única tomada – a grande panorâmica pelo céu”. (MELLO, 1996: p. 79) A partir da qual “o filme adquire uma progressão fatal, um quase tranquilo fluir fúnebre”. (MELLO, 1996: p. 79) Contextualmente, a escassez de diálogos em Limite também pode ser explicada, aqui no caso não tanto pelo diretor, mas com maior aprofundamento no debate teórico travado nas reuniões do Chaplin-Club que refletiam nas páginas de O fan, órgão oficial do cineclube. Um dos grupos, representado por Otávio de Faria, defensor do cinema alemão de raízes basicamente expressionistas, admirador de Sunrise (F. W. Murnau, 1927), via na “tentativa de abolir o letreiro” (MELLO, 1991: p. 7) uma das novidades revolucionárias do cinema alemão dos anos 1920. Embora a justificativa de Leduc, aqui apresentada, para a ausência de diálogos em sua obra, mais especificamente em Frida, esteja ancorada num posicionamento político, o sucesso de receptividade do filme em festivais internacionais e mesmo em nichos culturais do mercado destaca o talento do realizador para lapidar a linguagem não-verbal na obra. Mário Peixoto, ao contrário de Leduc, não teve o reconhecimento do mercado cinematográfico em relação a Limite. O filme, considerado por duas ocasiões o melhor filme brasileiro de todos os tempos, nunca foi exibido comercialmente, ao contrário fez parte de sessões para amigos e admiradores do filme, eventos que ajudaram a transformar a obra e seu criador em mitos.
Os autores Possivelmente a criação dos mitos Mário Peixoto e Limite, completamente indissociáveis, é a relação que melhor estabeleça o par autor e obra no cinema brasileiro. O fato de ser Limite a única obra cinematográfica de Mário Peixoto contribui para eternizar a simbiose obra e criador até a morte deste. Entretanto, a ausência de uma continuidade na trajetória cinematográfica de Peixoto problematize tal proposição. Muito mais interessante do que encontrarmos na vasta bibliografia de Limite palavras e expressões que enalteçam a qualidade de autor de Mário Peixoto, tais como “a inspiração de Mário”, a “revelação de Limite surgiu em Paris”, “este milagroso Limite”,3 a trajetória de Mário Peixoto como cineasta em formação manteve-se intimamente ligada à relação com o amigo e orientador Otávio de Faria. “A influência de Otávio sobre Mário era grande e confessa: Mário declara ter escrito o scenario de Limite depois do aprendizado com Otávio 3
Dos textos teóricos às reportagens sobre Limite os termos que dão conta de uma noção de autoria surgem à profusão em qualquer estudo mais ou menos minucioso sobre o filme.
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de Faria”. (MELLO, 1991: p. 18) A palavra escrita, mais tarde, acompanharia Mário Peixoto até sua morte,4 enquanto o jovem crítico de O fan, tutor intelectual de Mário Peixoto, foi jornalista e romancista, tornando-se, em 1972, membro da Academia Brasileira de Letras. Ainda do ponto de vista do cinema brasileiro, talvez isto ponha em xeque cronologicamente a afirmação de Paul Leduc sobre a relação do público cinematográfico e o produto visto na tela dos anos 1960 produzido por representantes da intelectualidade: Houve a grande tragédia de os intelectuais entrarem no cinema. Antes, os cineastas mexicanos eram pessoas de origem popular. Contavam histórias populares, criavam ídolos populares, como atores e outros mais. E tinham uma repercussão muito mais fácil, um acesso bem mais fácil ao público. A partir da teoria de muitos de vocês, críticos de cinema, a teoria do cinema de autor, a partir de Cahiers du Cinéma, do Cinema Novo, da Nouvelle Vague, começa a atitude do diretor universitário. Isso introduziu a politização, por um lado, certos tipos de temas, mas também um certo tipo de linguagem.5
O cinema brasileiro, antes da geração cinemanovista, já provara a dicotomia arteindústria cinematográfica, tendo no dueto Cinearte e O fan veículos de informação sobre o universo do cinema feito e principalmente exibido no Brasil. Entretanto, os posicionamentos da revista e do jornal não eram excludentes, se o primeiro era mais mundano e glamouroso e o segundo mais teórico, intelectualizado, havia um objeto específico que os unia, o cinema posado, ou de ficção. Se este cinema foi consagrado pela indústria cinematográfica hegemônica, o “outro cinema”, o natural, o documentário foi fundamental para a renovação da linguagem cinematográfica. Retornando a questão do silêncio no cinema, Paul Leduc lembra sua trajetória após Reed, na qual ele afirma ter feito muitos documentários e em nenhum deles ter proferido uma única palavra. “Estas só aparecem em depoimentos das pessoas entrevistadas. Tenho para mim que não devemos impor nossas opiniões. Os fatos e as imagens é que devem falar por si mesmos.” (CAETANO, 1997: p. 194) Se devemos ou não devemos “impor nossas opiniões”, questão completamente discutível diante das possibilidades oferecidas pela captação da imagem e do som, e pelo posterior trabalho de montagem, o que importa é a consolidação de uma linguagem cinematográfica em Frida. Leduc converte o “depoimento de pessoas entrevistadas” em canções populares cantadas por figurantes que representam o povo mexicano. O ato de dar a voz ao outro, como interlocutor dele [Leduc – Frida], confere este aspecto documental ao longa de ficção premiado internacionalmente. O silêncio ou a escassez de diálogos, e a ausência de letreiros ou reduzida aparição deles, confere a Frida e Limite, respectivamente, marcas autorais que distanciam tais obras cinematográficas do cinema hegemônico.
4 Mário Peixoto foi autor de obras literárias como O inútil de cada um, Mundéu, Outono – O jardim petrificado, entre outros. 5 Entrevista concedida por Paul Leduc ao programa Roda Viva da TV Cultura. Domingo, 18 de Novembro de 2007 (pgm1088).
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Outra marca presente nas duas películas é a fragmentação narrativa. Leduc ao adotar as memórias de Frida em seu leito de morte como fio condutor de sua história, se deixa levar pelo caráter naturalmente dispersivo e acronológico do mecanismo da memória. Miguel Barbachano Ponce, produtor do filme considera este o grande êxito de Leduc (diretor), José Joaquin Blanco (roteirista), Rafael Castanedo (montador), encarregados da organização narrativa do filme: Apresentar ao espectador um filme biográfico diferente, muito diferente da estruturação (nascimento, relações sexuais, maturidade intelectual e morte) tradicional, a qual nós estamos acostumados, realizado em excesso por Hollywood, no subgênero biográfico, e mais próximo do enigma (alta forma intelectual de compor uma figura conhecida) cujas partes fragmentadas vão se unindo lenta, mas implacavelmente na mente do espectador formando a grande imagem totalizadora de uma personalidade em que se consubstancia uma época indicada de nosso país, neste caso: Frida Kahlo. (PONCE, 1996: p. 4)
A sequência inicial de Limite é analisada por Saulo Pereira de Mello, crítico de cinema, maior especialista no filme de Mário Peixoto, responsável pela primeira restauração da obra nos anos 1960: O “prólogo” – uma sequência fora da diegese do filme – estrutura-se em torno de uma imagem que é a fundamental de Limite: a mulher e as mãos algemadas – e que é a reprodução da capa da revista Vu. Imagem elementar originária – protéica – geratriz de todas as imagens do filme que serão metamorfoses dela, alegoria do tema. Essa sequência, não-narrativa, dá o tom, esboça o ritmo de Limite que a sequência-chave inicial vai desenvolver: lenta, de imagens longas, ligadas por fusões, estruturadas segundo um princípio não-narrativo. (MELLO, 1996: p. 33)
Fundamental aqui também é ressaltar a semelhança estrutural dos filmes. Leduc inicia e finaliza seu Frida Kahlo, naturaleza viva com a imagem do caixão dentro do qual supomos, no quadro inicial, estar depositado o corpo da pintora surrealista mexicana, e que no último quadro estamos certos de que ali somente reside o corpo de Frida, pois sua memória está depositada em seus quadros. Peixoto, por sua vez, inicia e finaliza seu Limite com a imagem de um rosto feminino envolto por mãos masculinas algemadas. Os aprisionamentos do corpo de Frida e da figura feminina, representada por Olga Breno (Alzira Alves) – a Mulher Nº1 em Limite –, nos remete diretamente e indiretamente ao destino inexorável: à morte.
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Figura 1: Fotogramas iniciais de Limite
Figura 2: Plano de Frida Kahlo, naturaleza viva
A morte em Peixoto e Leduc Em 1995, quatro anos depois de lançar Latino bar, filme sem diálogos de Paul Leduc, o cineasta mostrava-se desinteressado pelo cinema que se fazia às vésperas da comemoração histórica do centenário da sétima arte. Defendendo a ausência de diálogos em seu último filme – Leduc retornaria à direção em 2006 com O cobrador – o cineasta assume uma posição que naquela altura parecia irredutível, afirmando que, para ele, “o cinema é um espaço de exercício, de experimentação. Acredito no filme-ensaio. O cinema que se faz, hoje, pelo mundo, dentro das regras de Hollywood, me aborrece muito.” (ROSÁRIO, 1997: p. 197) No entanto, em 2007, Leduc retornaria ao Brasil para lançar El cobrador, baseado no conto de Rubem Fonseca, com Lázaro Ramos no elenco. Sobre a sua volta ao set de filmagem, Leduc revela que “o maravilhoso do cinema é existir calado e falado, que existam temáticas diferentes. Continuando o que eu dizia, diversificaram-se mais os temas, abriram-se janelas, nesse sentido, para a nossa temática. Continua a busca de linguagem, mas já não é tão drástica, já não é uma obsessão.”6
6 Entrevista concedida por Paul Leduc ao programa Roda Viva da TV Cultura. Domingo, 18 de Novembro de 2007 (pgm1088).
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Da mesma forma, a pintura de Frida Kahlo também não morreu, muito pelo contrário, a exposição de sua arte foi amplamente divulgada fora do território mexicano depois do lançamento de Frida, naturaleza viva, e depois de Frida [Julie Taymor, 2002], filme biográfico tradicionalmente hollywoodiano que teve grande repercussão inclusive no mercado brasileiro. Frida é retratada por Leduc como uma mulher libertária, comunista, amante de seu povo, amante da vida, lutando contra sua condição física, na qual em todo o filme seu corpo está escorado por muletas, cadeiras de rodas e, em muitas cenas, por sua cama. A limitação do espírito revolucionário de Frida é seu corpo, a limitação de sua arte é seus quadros apresentados em suaves movimentos de câmera por Paul Leduc. A libertação, que conjuga corpo e espírito, ocorre durante o processo criativo, enquanto Frida pinta, enquanto Leduc filma. Infelizmente parece que tal processo não inclui a participação do espectador, pelo menos não na prática, enquanto espectador convencional das salas de exposição de arte, enquanto espectador médio das salas de cinema. Limite também só foi “livre” enquanto processo artístico, com uma pequena equipe em Mangaratiba, sem apoio financeiro de patrocinadores ou do Estado Brasileiro, tornou-se realidade pela iniciativa de Mário Peixoto. A imagem das algemas em mãos masculinas já sem o rosto feminino é fundamental para compreender este estado momentâneo de elevação espiritual proporcionado por uma experiência sensorial [audiovisual] que irá se estender pelos próximos 120 minutos. De maneira fragmentada, as histórias do trio de náufragos são contadas, para depois, no desenlace do filme, revermos as mesmas mãos masculinas algemadas envolvendo novamente o rosto feminino da Mulher Nº1. Limite e Frida, naturaleza viva trabalham na chave da representação, cada um ao seu modo, do sentimento universal da finitude humana. A vida pulsa em seus fotogramas, ainda que algemada, ainda que emoldurada, ilhada num barco, travada numa cama, a vida pulsa em películas que só são capazes de revitalizarem seu sentido vital quando deparadas com o olhar do público.
Bibliografia MELLO, Saulo Pereira. Limite. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. MELLO, Saulo Pereira. O fan, o Chaplin-club e Limite. In: Centro dos Pesquisadores do Cinema Brasileiro. Cinearte. Rio de Janeiro, 1991. PONCE, Miguel Barbachano. Frida em los espejos. In: Excelsior Espacio Crítico. CAETANO, Maria do Rosário. Cineastas latino-americanos: Entrevistas e filmes. Mario do Rosário Caetano. São Paulo: Estação Liberdade, 1997.
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Alexandre Ramos Vasques é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos, projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
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CRONOS GUILLERMO DEL TORO CLAUDIO FERRARAZ JUNIOR*
Resumo: Guillermo del Toro é um dos mais bem sucedidos cineastas mexicanos da atualidade, sendo respeitado internacionalmente por seus filmes como O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno, 2006), indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Analisando-se alguns aspectos de Cronos (1993), seu primeiro longa-metragem de sucesso de crítica, identificamos predileções criativas que mais tarde se repetirão ou serão desenvolvidas como marcas autorais nas demais produções assinadas por del Toro. PALAVRAS-CHAVE: GUILLERMO DEL TORO, CRONOS, MARCAS AUTORAIS Cronos – Guillermo del Toro Abstract: Guillermo del Toro is one of the most successful Mexican filmmakers of today, and is respected internationally for films like Pan’s Labyrinth (El Laberinto del Fauno, 2006), Oscar nominee for Best Foreign Film. After examining some aspects of Cronos (1993), his first full-length critical success, we identify the creative leanings which will later be repeated or developed as signs of authorship in other productions signed by del Toro. KEYWORDS: GUILLERMO DEL TORO, CRONOS, SIGNS OF AUTHORSHIP
Introdução Guillermo del Toro é um dos mais bem sucedidos cineastas mexicanos da atualidade, sendo respeitado internacionalmente por seus filmes como O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno, 2006), indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (Academy Awards), tendo dirigido grandes produções hollywoodianas como a adaptação para o cinema do personagem de histórias em quadrinho Hellboy (2004). Uma das características marcantes na obra de del Toro é a sua predileção por estórias e personagens fantásticos, navegando entre gêneros como o suspense e o horror. (considerados gêneros menores da literatura e do cinema, mas de grande público). Seu primeiro longa-metragem de sucesso de crítica foi Cronos (1993), pelo qual recebeu o
Figura 1: cartazes de Cronos
prêmio Mercedes-Benz no Festival de Cannes, já apresentando as características autorais relevantes presentes posteriormente em seus filmes. Analisando-se alguns aspectos de Cronos, identificamos predileções criativas que mais tarde se repetirão e/ou serão desenvolvidas nas demais produções assinadas por del Toro.
Cronos e as características autorais de del Toro Del Toro escreveu e dirigiu uma pequena obra-prima do cinema fantástico. Produzido em 1993 com incentivos do Fundo de Fomento da Qualidade Cinematográfica (Fondo de Fomento a La Calidad Cinematográfica), através do Instituto Mexicano de Cinematografia (IMCINE), (COSTA, 2010) Cronos alcançou sucesso de crítica e público por sua abordagem diferenciada do mito do vampirismo. Cronos conta a estória de Jesús Gris, sexagenário dono de um antiquário, que encontra um artefato de metal dourado escondido dentro de uma antiga imagem de madeira de um anjo. Sabemos, pelo prólogo do filme, que o artefato mecânico em questão fora construído por um Alquimista que, em 1535, fugindo da Inquisição na Europa, desembarcou no México e trabalhou como relojoeiro oficial do rei. Já nesse início do filme, podemos identificar uma das características autorais de del Toro: a utilização de artefatos religiosos, como arcanjos e outros símbolos religiosos, e constantes referências ao Catolicismo. Tendo sido criado por sua avó, uma católica fervorosa, e se declarando um “ateu calmo em um país fervorosamente Católico”, (HARRINGTON, 1994) del Toro busca referências cruzadas entre as diversas religiões, muitas pagãs, e o simbolismo cristão da Igreja Católica.
Figura 2: Jesús e sua neta Aurora encontram o aparelho Cronos
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Além dos objetos, os nomes dos personagens também são pensados para reforçar essa simbologia, mesmo que de forma implícita. Assim, o personagem principal de Cronos é Jesús; toda a ação se passa na época entre o Natal e o Ano Novo, quando Jesús irá morrer e ressuscitar, sendo que suas ações sofrem interferência direta do Angel de la Guardia, personagem interpretado por Ron Perlman (ator americano que repetiria a parceria com del Toro, atuando como o personagem principal em Hellboy (2004) e Hellboy II: O Exército Dourado (2009)). Além disso, a neta de Jesús, Aurora, representaria a pureza do novo. Outras duas das características autorais de del Toro são também mencionadas logo no prólogo de Cronos: sua paixão por elementos mecânicos, especialmente por mecanismos que remetem à engenharia dos relógios e o recorrente uso de insetos ou de suas referências imagéticas. Tanto o design utilizado na criação de vários objetos e artefatos mecânicos em seus filmes e a obsessão para com a passagem do tempo, assim como a referência da anatomia de insetos na criação de personagens fantásticos são retomados em algumas de suas obras posteriores, como Hellboy, O Labirinto do Fauno e Hellboy II. O aparelho construído pelo Alquimista se assemelha a um escaravelho egípcio mecânico que, tendo suas engrenagens acionadas, injeta no corpo do operador uma substância
Figura 3: O aparelho Cronos
produzida por um inseto aprisionado dentro do mecanismo, resultando em rejuvenescimento e proporcionando vida eterna a este. Porém, aquele que é afetado pelo uso do aparelho passa a ter necessidade de consumir sangue humano, tornando-se uma espécie de vampiro. Esse artefato é o Cronos que dá título ao filme. Sentido do escaravelho para os egípcios? A própria nomenclatura do artefato já traz em si referência à mitologia grega, ou pagã. Segundo Contrera, (1996) Cronos é conhecido como “o Senhor do Tempo, da Morte e do Destino, tendo desempenhado um papel muito importante nos mitos gregos […] sendo, de alguma maneira, o guardião do portal que nos cabe atravessar a cada novo dia, a cada nova semana, a cada novo fim de ciclo”. No filme, Cronos é o mecanismo capaz de reverter fisicamente as marcas do tempo no organismo de seu operador, possibilitando a ele manter-se vivo eternamente enquanto estiver utilizando-o. Jesús Gris, vivido pelo ator Federico Luppi, após encontrar o aparelho, mais de 400 anos depois de sua invenção, descobre o funcionamento do Cronos por acaso, enquanto o analisa curiosamente em sua loja de antiguidades junto com sua pequena neta órfã, Aurora. A relação da pequena menina com seu avô será a base, ou o porto seguro, para que o personagem de Jesús consiga suportar os infortúnios que a utilização do Cronos irá lhe causar. Crianças aparentemente frágeis, vindas de lares desfeitos ou órfãs, apresentadas como personagens fortes, chaves para o desenvolvimento dramático, aparecem em quase todos os filmes de del Toro que, em uma entrevista sobre a produção do filme, (http:// www.youtube.com/watch?v=Z6BYb37lP5k) define as crianças como puras, inocentes,
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sem os filtros de valores morais ou éticos dos adultos, porém com possibilidade de perversidade em sua pureza. Assim como em Cronos, onde a criança tem papel decisivo no desenvolvimento da estória, este mecanismo dramático se apresenta novamente em A Espinha do Diabo (El Espinazo del Diablo, 2001), O Labirinto do Fauno, dirigidos por del Toro, e também no filme O Orfanato (The Orphanage, 2010), onde ele atuou como produtor.
Cronos – releitura do mito do vampiro Guillermo del Toro inova em sua obra com uma releitura do mito do vampiro. Tradicionalmente, o vampiro é um ser que uma vez foi humano e que, por forças malignas e sobrenaturais, transformou-se numa criatura que representa o lado escuro e maléfico, necessitando de sangue humano para sua sobrevivência. Conforme aponta Párraga, a partir da obra de Bram Stocker, Drácula (1897), “os vampiros são sistematicamente caracterizados como seres diabólicos, que devem sua imortalidade a algum obscuro pacto luciferino”.
Figura 4: Jesús utilizando o Cronos
(PÁRRAGA, 2010, p. 59) Além disso, o vampiro clássico faz uso de poderes de sedução, de forte apelo sexual, normalmente perpetuado em sua condição de não-morto ainda jovem (mesmo velhos, como Nosferatu, eles tem um poder de atração erótico-sexual). A pretensa imortalidade (sim, pretensa porque, afinal, os vampiros podem ser destruídos – com uma estaca de madeira fincada no coração ou pelo contato com a luz solar –, não sendo imortais, portanto) é, muitas vezes, apresentada como uma maldição que os condiciona a uma rotina de busca, ou caça constante. Os vampiros têm a escolha sobre a vida e a morte. Nós não. Del Toro vai apontando uma semelhança com Cristo que é muito interessante!!! E os vampiros alimentam-se de sangue, sem o qual morremos, o que permite o estabelecimento de uma correspondência com a alma humana – que só está em nós se estivermos vivos. Em Cronos, del Toro subverte os estereótipos da mitologia do vampirismo. Seus personagens não são totalmente bons ou maus. Ao invés de criar uma estória centrada no preto e branco, cada um de seus personagens vive entre nuances acinzentadas de suas vidas diárias, o que potencializa o drama. A transformação do homem comum em vampiro se dá por meio da ciência, de um aparelho construído com sabedoria por um homem, não por poderes sobrenaturais e diabólicos. A imortalidade, ou melhor, a longevidade do novo vampiro é colocada como um tipo de maldição também, porém, ela se dá pelo vício que a utilização do aparelho Cronos causa e no efeito colateral que ele causa no usuário: a
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Figura 5: O enfermo de la Guardia e Jesús
necessidade de consumir sangue humano. O vampiro de del Toro sofre com os questionamentos morais de sua nova condição, “um monstro que é realmente vulnerável, humano”, (DEL TORO, abud HARRINGTON, 1994) sendo que a luz solar lhe causa apenas um desconforto, ferindo-o, porém de forma não mortal. Após utilizar o Cronos pela primeira vez, Jesús percebe uma sensível melhora em sua saúde e disposição. Ao olhar-se no espelho, percebe nitidamente o rejuvenescimento de seus traços. Mas a sua empolgação é interrompida quando ele começa a sentir o desejo e a necessidade física de consumir sangue. Sua angústia aumenta na proporção em que se vê cada vez mais dependente do Cronos. Enquanto a vida eterna proporcionada pelo Cronos passa a ser um fardo para Jesús, para outro personagem, ela é a busca e a salvação. O aparato descoberto por acaso por Jesús Gris é intensamente desejado pelo rico empresário Dieter de la Guardia (Claudio Brook), que sofre de câncer já em estado avançado e vive recluso dentro de uma de suas propriedades industriais. Sua esperança de sobrevivência está justamente no uso do Cronos, o qual ele descobriu existir em sua constante busca por recursos extraordinários para tratar de sua enfermidade. É la Guardia que tem o conhecimento da funcionalidade de Cronos, uma vez que tem a posse do manuscrito do antigo Alquimista que construiu o aparelho. Se para Jesús existe o questionamento moral, la Guardia se desprende de valores para conseguir a posse do aparato. Para tanto, ele utiliza os serviços de seu sobrinho Angel (Ron Perlman), imaturo, dependente e que odeia seu tio e apenas aguarda sua morte para herdar sua fortuna. É Angel que, no cumprimento das ordens de seu tio la Guardia, vai confrontar Jesús para conseguir dele o Cronos, ultrapassando limites e chegando a matá-lo. É pela sua atitude brutal que Jesús morre e ressuscita completamente transformado. Aqui del Toro novamente transgride o mito do vampiro, que não cria caninos pontudos, mas tem sua pele transformada numa crosta que precisa ser retirada para a nova e jovem pele aflorar. Angel é o agente catalisador, mesmo que de forma inconsciente. Ao contrário, a pequena
Figura 6: Jesús, debilitado, é amparado pela esposa e por sua neta
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Aurora tem uma atitude mais ativa e, ao aceitar a transformação de seu avô, dele se torna parceira para evitar que la Guardia se apodere do Cronos. No confronto entre Jesús e de la Guardia pela posse do Cronos, é justamente Aurora quem desfere um golpe na cabeça de Dieter, salvando seu avô Jesús que estava prestes a ter o peito cravado por uma adaga. Aurora observa atentamente e com bastante naturalidade enquanto seu avô, para recuperar suas forças e aplacar sua sede, suga o sangue de la Guardia que está desacordado. Mas ao mesmo tempo em que se sente regozijado, Jesús novamente se confronta com seus valores morais. Após o embate final com Angel, quando ele o mata para salvar sua neta, Jesús decide destruir o artefato para colocar um fim no círculo vicioso de Cronos. Aqui del Toro remodela o vampirismo mais uma vez. Se na mitologia as vítimas do vampiro só conseguem a liberdade da maldição com a morte do mesmo, em Cronos o próprio vampiro é uma vítima em si, e sua liberdade é conquistada com a destruição por ele próprio do aparelho responsável pela sua condição. Na mitologia clássica do vampirismo as vítimas libertas do controle do monstro voltam a seu estado natural, ali também isso ocorre, Jésus aceita o fato de ter seu corpo desprovido de vitalidade, como que apodrecendo lentamente. Se o destino final do vampiro clássico é a morte ou destruição instantânea, em Cronos o vampiro redimido aguarda seu fim em sua cama, tendo ao seu lado sua neta Aurora e sua mulher.
Conclusão Segundo a revista Curzon em sua edição de número 23, (2010) “Cronos marcou, sem dúvida, um ponto de virada no cinema Mexicano e estabeleceu um modelo de sucesso para a carreira de del Toro”. Cronos pode ser visto, na verdade, como vitrine das estruturas simbólicas e predileções artísticas que estão presentes nas obras do mexicano nascido em 1964 em Guadalajara e que iniciou sua carreira trabalhando como supervisor de maquiagem e efeitos especiais para filmes e programas de TV do gênero de horror. Guillermo del Toro imprime em Cronos suas crenças, seu fascínio pelo diferente e, principalmente, sua instigante necessidade criativa de subverter conceitos e retrabalhar gêneros. Vários são os detalhes e aspectos presentes em seu filme, como os detalhes de design mecânico de sua arte, as referências religiosas, principalmente as alusões ao catolicismo; a importância do papel das crianças, entre outros. Nesse sentido, Cronos pode, sim, ser considerado um modelo para os trabalhos posteriores do brilhante diretor.
Referências bibliográficas COSTA, Sebastião Guilherme Albano. Consenso de Washington de Cosmopolíticas na Atualização dos Sentidos na América Latina. Razón y Palabra. n. 72. Maio-julho 2010. Disponível em: http://www.razonypalabra.org.mx/N/N72/index72.html. CONTRERA, Malena Segura. El Mito em los Medios de Comunicación. Cronos – El Guardián del Portal Temporal. Congresso Espanhol de Semiótica, 1966. Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia.
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HARRINTON, Richard. Cronos. Washington Post, 22 de maio de 1994. PÁRRAGA, Javier Martín. La Reinvención del Mito Vampírico em Cronos, de Guillermo de Toro. Universidad de Córdoba. Revista Frame. N. 6, fevereiro 2010. WOOD, Jason. We are What We are – Second Helps Anyone? Revista Curzon. N. 23, novembro – dezembro de 2010.
Referências webgráficas http://www.youtube.com/watch?v=z6byb37lp5k. Entrevista com Guillermo del Toro sobre a produção de Cronos (1993)). http://www.washingtonpost.com/wp-srv/style/longterm/movies/videos/cronosnrharrington_a0abc7. htm. Artigo sobre Cronos, no site do Washington Post. http://pt.wikipedia.org/wiki/Guillermo_del_Toro. Biografia e filmografia. http://deltorofilms.com/wp/. Site oficial dos fãs de del Toro. http://www.imdb.com/title/tt0104029/. Informações sobre o filme. http:///www.imdb.com/name/nm0868219/bio. Biografia.
Referências filmográficas CRONOS. Guilherme Del Toro, México, 1993. ESPINHA DO DIABO (A). (El Espinazo del Diablo). México, Espanha, 2001. HELLBOY II: O EXÉRCITO DOURADO. (Hellboy II: The Golden Army). EUA, Alemanha, 2009. HELLBOY. EUA, 2004. LABIRINTO DO FAUNO (O). (El Laberinto del Fauno). México, EUA, Espanha, 2006.
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Claudio Ferraraz Junior é bolsista CAPES, Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da UFSCar. Membro do Grupo de Estudo sobre Mídias Alternativas em Imagem e Som – GEMInIS. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Cinema pela ECA/USP.
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BRASIL E MÉXICO
um olhar sobre a indústria sonhada e o real mercado do cinema ROBERTA ASSEF*
Resumo: Neste artigo, são esboçadas comparações, no campo cinematográfico, entre o Brasil e o México, referentes aos aspectos com uma dimensão histórica, com destaque para o desenvolvimento industrial da atividade e também às questões contemporâneas, como a configuração da cadeia produtiva, a participação no mercado interno e a representatividade no cenário mundial. PALAVRAS-CHAVE: CINEMA BRASILEIRO E MEXICANO, INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA, ÊNFASE NO MERCADO Brazil and Mexico: a look at the cinema’s hoped-for industry and its real market Abstract: In this article the cinematographies of Brazil and Mexico are compared in their historical dimensions, with emphasis on market and on contemporary issues such as the configuration of the chain of production, the share of the domestic market and representation on the world stage. KEYWORDS: BRAZILIAN AND MEXICAN CINEMA, INDUSTRY, EMPHASIS ON MARKET
Introdução Brasil e México têm muito em comum. Foram colonizados pelos europeus e incorreram na mesma classificação, a de países latino-americanos, dado o caráter românico das línguas impostas como idiomas oficiais; seu desenvolvimento foi afetado por mais de 300 anos de dominação política e cultural; ao longo do século XX, passaram por regimes ditatoriais, vivenciaram “milagres” e crises econômicas e foram submetidos às políticas neo-liberais em nome da globalização. Figuram entre as maiores extensões territoriais da América Latina,1 região em que são também os países de maior PIB e os únicos com uma população superior a 100 milhões de habitantes. Embora na última década tenham mantido a estabilidade econômica e assistido ao crescimento da classe média, seguem enfrentando graves problemas sociais como a desigualdade, o tráfico de drogas e a violência urbana. 1
Ocupando, respectivamente, a primeira e a terceira posição, sendo a segunda da Argentina.
Cartaz de O cangaceiro (Lima Barreto, 1953)
No campo cultural, também podem ser apontadas semelhanças entre as duas nações. O Brasil é aclamado internacionalmente pela diversidade do povo, dada a miscigenação de etnias, e das manifestações da cultura nacional, oriundas de matrizes européias, africanas, indígenas2 – posteriormente, também de outras origens, devido aos movimentos de imigração. O México, por sua vez, é marcado pela mestiçagem da população e pelo caráter multicultural – contra os prognósticos (e após anos de uma política incisiva de proteção ao patrimônio), tem conseguido preservar as línguas indígenas, sendo que algumas gozam, inclusive, do status de idiomas oficiais. Neste artigo, pretende-se tomar uma expressão cultural específica, o cinema, para a comparação entre o Brasil e o México. Serão abordados aspectos com uma dimensão histórica – com destaque para o desenvolvimento industrial da atividade cinematográfica – e também questões contemporâneas – como a configuração da cadeia produtiva, a participação no mercado interno e a representatividade no cenário mundial. Espera-se assim contribuir para o debate sobre as perspectivas para o futuro da atividade cinematográfica, nesses dois países.
Cine de Oro mexicano, era dos estúdios no Brasil: o sonho da industrialização O Brasil e o México, ao lado da Argentina, são os países latino-americanos que historicamente produziram o maior volume de filmes: no período de 1930 a 2000, foram realizados cerca de 5500 filmes mexicanos e 3000 brasileiros. (GETINO, 2007: 25) Os números, muito superiores aos dos demais países da região, atestam a busca de ambas as cinematografias pelo desenvolvimento segundo o modelo industrial. A indústria cinematográfica mexicana teve a sua Era de Ouro nos anos 1940/50. Já no início da fase sonora, ao longo de um lento processo pelo qual as salas foram equipadas com máquinas de reprodução de som, o cinema mexicano foi favorecido porque o público ainda não tinha o hábito de ler as legendas de filmes em outro idioma. Prosperou, nesse contexto, um gênero nacional, a “comedia ranchera”. Situação semelhante ocorreu no Brasil, contribuindo para o sucesso das chanchadas da Cinédia e da Sonofilms (“chanchada” vem do espanhol e remete à porcaria, coisa malfeita, indigna).3 Apesar da “comedia ranchera” ser considerada tipicamente mexicana, pode-se estabelecer uma relação entre esse gênero e a chanchada brasileira, por meio de elementos comuns: o humor e a música. 2 Apesar da pretensa diversidade, não se pode relevar a opressão das culturas nativas pela a do ocupante, aspecto ideológico do processo de colonização. 3 WordReference.Com: Spanish - English Dictionary (site).
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A Era de Ouro do cinema mexicano, marcada pela qualidade técnica e artística dos filmes, diversidade de gêneros e pelo sucesso, inclusive no mercado externo, começou a declinar no período que sucedeu a 2a Guerra Mundial (1939-45), com a recuperação da produção norte-americana – reduzida durante o conflito, o que abriu espaço para o cinema local – e o surgimento da TV. Outros fatores da decadência, internos, também podem ser apontados: a diminuição do orçamento dos filmes para a manutenção do volume da produção, o que implicou em queda de qualidade, e a burocratização do mercado, efeito colateral da intervenção do Estado na sua regulação. Esperava-se que no Brasil, assim como no México, a passagem do cinema silencioso para o sonoro conduzisse à consolidação de uma indústria cinematográfica nacional. Essa perspectiva, entretanto, não se concretizou. Para a exportação dos filmes brasileiros, o idioma representou uma barreira, não encontrada pelo México e pela Argentina: enquanto nesses países se fala o espanhol, como em praticamente toda a América Latina, no Brasil – e somente no Brasil, nessa região – a língua é o português. No mercado interno, a concorrência com o filme norte-americano tornou-se ainda mais desigual após a assinatura de um acordo comercial com os Estados Unidos, em 1935, prevendo a livre circulação de filmes americanos no mercado brasileiro. (MIRANDA; RAMOS, 2000: 221) O Brasil, contudo, também teve a sua “era dos estúdios”, marcada por algumas tentativas de industrialização, além da Cinédia: a Vera Cruz, em SP – dotada de infra-estrutura, equipamentos, profissionais vindos do exterior e com a ambição de emular a sofisticação das produções hollywoodianas – e a Atlântida, no RJ, que, ao invés de reverenciar, parodiou a produção norte-americana e optou por um cinema menos glamouroso e mais popular.4 A Vera Cruz, atuante de 1949 a 1954, não resistiu ao custo alto das produções e a Atlântida, que operou de 1941 a 1960, à saturação da fórmula de seus filmes. Mesmo nos tempos áureos das indústrias nacionais, é possível notar que a referência, para os brasileiros e mexicanos, vem do estrangeiro: o filme hollywoodiano, que baliza a participação da produção local em seu próprio mercado (à medida que se faz mais ou menos presente) e representa um padrão técnico e estético a ser alcançado – um ideal, por vezes, incompatível com a realidade econômica latino-americana.
Brasil e México: indústria nacional e mercado em tempos de globalização Apesar das dificuldades encontradas no passado e ainda hoje para a consolidação de suas indústrias cinematográficas, o México e o Brasil ocupam, respectivamente, a primeira e a segunda colocação entre os mercados de cinema da América Latina.5 Recentemente, registraram o crescimento do número de filmes e de espectadores das produções nacionais, após um período de reduzida representatividade no mercado interno. Em 2007 a produção cinematográfica mexicana foi a maior dos últimos dezessete anos:6 70 filmes, semelhante à média anual do período de 1984 a 1993, que totalizou 747 4 Atlântida Cinematográfica (site). 5 Filme B (site). 6 O Estado de S. Paulo (site).
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títulos. Para se ter uma idéia do que esses números representam, no decênio 1994-2003, apenas 212 filmes foram feitos – consequência negativa da assinatura, pelo México, dos acordos ligados a projetos da Alca e da entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, que sujeitaram o cinema nacional às leis do mercado, sem o escudo da proteção estatal. (GETINO, 2007: 38-39) A injeção de recursos governamentais foi decisiva para a recuperação da produção mexicana. 59% dos filmes de 2007 foram realizados por meio de fundos públicos, totalizando uma destinação do Estado para o cinema da ordem de 670 milhões de pesos (US$ 61,75 mi).7 No Brasil, a ação do Estado também foi fundamental para a retomada da produção. A criação de incentivos fiscais em meados da década de 1990 preencheu a lacuna deixada pela extinção da EMBRAFILME no governo Collor. O impacto da extinção desse órgão federal vale algumas considerações. Nas décadas anteriores, as de 1970-80, o Brasil havia registrado os maiores índices de público e participação da produção nacional no mercado interno, tomado então pela pornochanchada, gênero que combinava a comédia com o erotismo (como o “cine de ficheras” mexicano, em voga na mesma época). Os resultados positivos do cinema brasileiro naquele período deveram-se em grande proporção ao Estado, que, além de apoiar substancialmente a produção e a distribuição via EMBRAFILME, também estabeleceu, por meio do CONCINE, cotas elevadas para a obrigatoriedade de exibição do filme nacional. Em 1992, apenas três longas-metragens brasileiros foram lançados, (MARSON, 2009: 199) contra uma média de 80 por ano na década de 1980; a participação do filme nacional foi reduzida, em 1993, a 0,1% do mercado interno. Pós-retomada, no ano “mágico” de 2003, sete lançamentos locais superaram a marca de um milhão de espectadores8 e o market share foi de 22%. O Estado, portanto, vem alternando os papéis de carrasco e de salvador do cinema nacional, no Brasil e no México. Como sequela desta atuação bipolar, em ambos os países a produção de filmes tornou-se cronicamente dependente das verbas públicas, os principais (quando não, os únicos) recursos disponíveis para a viabilização da atividade cinematográfica, carente de “dinheiro bom”, ou seja, de investimento privado. A recuperação da produção conduziu a outro resgate, o do público.9 No ano de 2007, foram comercializados 170 milhões de ingressos no México, 8% (14 milhões) para filmes nacionais, sendo o de maior público Quilômetro 31, co-produção hispano-mexicana do gênero terror, dirigida por Rigoberto Castañeda. O filme contabilizou 3,2 milhões de espectadores10 e converteu-se no terceiro maior êxito de bilheteria na história do país.11 No Brasil, em 2010, foram vendidos aproximadamente 136 milhões de ingressos de cinema, cerca de 26 milhões12 para produções locais. Tropa de Elite 2, de José Padilha, ultrapassou os 11 milhões de espectadores e bateu o recorde detido há mais de 30 anos por Dona Flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1977). 7 O Estado de S. Paulo (site), op. cit. 8 Ministério da Cultura (site). 9 É importante salientar que os índices de público e participação no mercado já foram historicamente muito maiores no Brasil e no México, mas recentemente encontravam-se bastante diminuídos. 10 O Estado de São Paulo (site), op.cit. 11 Eye for film (site). 12 O Povo (site).
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Cartaz de Tropa de Elite 2 (José Padilha, 2010)
Verifica-se que nos últimos anos a venda de ingressos no México suplanta a do Brasil, ainda que a população do primeiro país seja equivalente à metade da do segundo. O fato pode ser justificado, ao menos parcialmente, pela dimensão do circuito comercial. No ano de 2010, o Brasil chegou à marca de 2.500 telas em seu território. O número ainda é inferior ao da década de 1970, quando o parque exibidor nacional tinha mais de 3 mil salas, mas considerando-se a restrição a pouco mais de mil cinemas em meados da década de 1990,13 demonstra a recuperação do setor após a entrada do capital estrangeiro, com a chegada de redes transnacionais como a Cinemark. O investimento na implantação dos multiplex consistiu em uma estratégia global para a expansão dos espaços de exibição de filmes do cinema hegemônico, em função da saturação do mercado interno norte-americano.
13 Folha.Com (site).
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Cartaz de Maria Candelária (Emílio Fernández, 1944)
Um grupo mexicano também estendeu os seus domínios para além das fronteiras, chegando inclusive ao Brasil, em 2010: a Cinépolis, maior rede de exibição da América Latina e a quarta do mundo, com 2.200 salas em oito países. Instalada em 69 cidades mexicanas,14 a Cinépolis já tem salas em Ribeirão Preto, no interior de SP, Belém/PA, Rio de Janeiro/RJ, Salvador/BA e São Paulo/SP.15 O parque exibidor mexicano conta com aproximadamente 4 mil telas de cinema, uma para cada 22 mil habitantes – relação muito diversa da encontrada no Brasil, de uma tela para cada 80 mil habitantes.16 A disparidade também pode ser observada pela confrontação do número de cinemas e municípios, nos dois países: no México, são 4 mil telas em 2.500 cidades; no Brasil, 2.500 telas em 5.500 cidades. Se o parque exibidor mexicano, ao menos em termos numéricos, é satisfatório, especula-se que o brasileiro pode crescer mais. No entanto, a tendência é que as salas continuem sendo implantadas nas capitais e regiões metropolitanas, ou, no máximo, em cidades de médio porte – praças que oferecem uma perspectiva de lucro mais consistente para as redes. Grande parte da população, residente no interior, continuará distante (ao menos, geograficamente) do cinema. Para outra parcela da população, o impedimento é de ordem financeira. O preço do ingresso é, por vezes, julgado alto no Brasil – no entanto, o México tem um dos bilhetes mais caros do mundo e, ainda assim, a frequência per capita mexicana é maior que a brasileira. A base da pirâmide social, seja no Brasil ou no México, pouco ou nunca vai às salas, embora ultimamente tenha sido registrado o crescimento do público de cinema junto à classe C. Deve-se ainda levar em consideração que as classes menos favorecidas, em função das condições descritas e de outros fatores, não criaram o hábito de ir ao cinema e preferem investir os exíguos recursos de que dispõem para o lazer em outras formas de entretenimento – contudo, assistem a filmes, seja na televisão, em DVD ou pela internet. Por um lado, os espaços para a exibição de filmes estão aumentando, mas, por outro, a distribuição segue como um gargalo para o escoamento das produções brasileiras e mexicanas. As distribuidoras estatais dos dois países entraram em colapso na década de 1990: a PELNAX (Peliculas Nacionales), criada em 1947 para atuar no mercado interno, foi à bancarrota em 1992, mesmo destino da PELMEX (Peliculas Mexicanas), implantada em 1945 para operar na America Latina:17 a já citada EMBRAFILME, que surgiu em 1969 com o propósito original de promover a distribuição de filmes brasileiros em mercados estrangeiros, foi liquidada pelo governo em 1990. 14 15 16 17
Cinépolis - México (site). Cinépolis - Brasil (site). Revista Exame (site). Princess Arturia’s blog (site).
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Antes da extinção, sob a égide da EMBRAFILME – cuja distribuidora em escala nacional surgiu em 1973, reorientada a ação da companhia – o cinema brasileiro atingiu resultados expressivos, conforme mencionado. Mas também sofreu desvirtuamentos como paternalismo, oneração, burocratização, clientelismo. (JOHNSON, 2009: 36; 38-42) A extinção da EMBRAFILME, sem a sua substituição imediata por outro órgão ou política pública para a atividade, praticamente aniquilou o cinema brasileiro – mas o modelo, de fato, há muito estava obsoleto. No México, a política neo-liberal não ofereceu ao cinema a deferência da exceção cultural, tratando-o como qualquer mercadoria. A abertura do mercado no início dos anos 1990 e a flexibilização das medidas protecionistas, como a cota de tela,18 serviram como uma espécie de legitimação oficial do domínio das majors. Hoje, a empresa líder na distribuição (e também na produção) de filmes mexicanos é a Videocine, que faz parte da Televisa Cine, divisão de cinema do poderoso consórcio multimídia Televisa. (RUIZ: p. 88) No Brasil, as Organizações Globo, o maior conglomerado de mídia da América Latina, também têm uma divisão de cinema, a Globo Filmes, cujas produções ou co-produções (em parceria com produtoras independentes e majors) concentram o público dos filmes nacionais desde a retomada. De forma diversa da Videocine, no entanto, a Globo Filmes mantém-se alheia à distribuição, alegando falta de know-how e evitando indisposições com as majors. (BUTCHER, 2006: 71) Essas empresas investem em filmes (essencialmente, comerciais) brasileiros, graças a uma manobra legal que as compeliu a ampliar as relações com a produção local. Os lucros obtidos pelas filiais das majors no Brasil são remetidos às matrizes no exterior, operação que é taxada; o Artigo 3o da Lei do Audiovisual (Lei no 8.685/1993) autoriza a aplicação de até 70% do valor dos impostos devidos sobre essa remessa de lucros, no desenvolvimento de projetos/produções brasileiras; a MP 2.228-1 criou uma CONDECINE adicional de 11% sobre o valor da remessa, tornando o investimento praticamente obrigatório. (BRAGA, 2010: 80-81) A maior parte dos filmes brasileiros não chega aos cinemas por meio das majors, mas sim, das distribuidoras independentes – hoje, cerca de 30 empresas. O volume de filmes distribuídos, no entanto, contrasta com o público alcançado: em 2009, as independentes distribuíram 57,8% dos filmes brasileiros, perfazendo 21,4% do público, enquanto as majors, que distribuíram 21,4% dos filmes nacionais no mesmo ano, arrebanharam 63,3% dos espectadores.19 Os dados denotam a concentração do público, do mercado e, principalmente, do poder nas mãos das distribuidoras ligadas aos grandes estúdios estrangeiros. Se, por um lado, os filmes hollywoodianos distribuídos pelas majors ocupam os mercados do Brasil e do México em sua quase totalidade, poucos filmes brasileiros e mexicanos são vistos nos cinemas dos Estados Unidos. Na lista20 dos filmes estrangeiros de maior arrecadação nas bilheterias norte-americanas de 2000 a 2009, só um é brasileiro,21 18 Acesso: o blog da democratização cultural (site). 19 ANCINE (site). Obs: percentuais aproximados, bem como os que seguem, da mesma fonte. Em termos de lançamento: distribuição própria, 13,3%; RioFilme, 5,2%; co-distribuição independente-RioFilme, 1,7%; co-distribuição major-independente, 0,6%. Em relação ao público: co-distribuição independenteRioFilme, 12,3%; co-distribuição major-independente, 1,9%; distribuição própria, 0,6% e RioFilme, 0,5%. 20 indieWIRE (site). 21 O filme Os diários de motocicleta consta da lista na sétima posição, mas é descrito como argentino, embora seja na verdade uma produção multinacional.
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Cartaz de Km 31 (Rigoberto Castañeda, 2006)
Cidade de Deus (19o colocado) e quatro, mexicanos: O labirinto do fauno (3o), E sua mãe também (10o), Sob a mesma lua (12o) e O crime do padre Amaro (26o). Apesar de relacionados como mexicanos, esses filmes, à exceção de E sua mãe…, são resultados de coprodução, modalidade bem mais explorada pelo México do que pelo Brasil, em parte, devido à questão idiomática (profusão de mercados para filmes em espanhol, inclusive a população hispânica nos Estados Unidos). Tendo em vista que a conquista do mercado interno (ou, ao menos, de índices de participação mais representativos no próprio mercado) representa uma dura batalha para o Brasil e o México, a do mercado externo tem proporções épicas. No entanto, não se pode relegar a importância desse mercado: para as produções hollywoodianas, não é o território norte-americano a principal fonte de receitas, mas sim o mercado mundial. Para além das bilheterias estrangeiras, as produções do Brasil e do México buscam o reconhecimento internacional como uma chancela de competência artística ou comercial, representado pela premiação em festivais como os de Cannes, Berlim, Veneza, e pelo Oscar, a maior premiação da indústria cinematográfica. Nos anos 1990, foram indicados ao Oscar na categoria filme de língua estrangeira, os brasileiros O Quatrilho (Fábio Barreto, 1995), O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e Central do Brasil (Walter Salles, 1998), que concorreu também na categoria atriz, pela performance de Fernanda Montenegro. Na década seguinte, Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2003) recebeu quatro indicações, nas categorias roteiro adaptado (Bráulio Mantovani), direção (Fernando Meirelles), fotografia (Cesar Charlone, uruguaio radicado no Brasil) e edição (Daniel Rezende).22 Nenhuma estatueta dourada veio para o Brasil. Em 2007, o México assistiu à indicação ao Oscar de oito nativos:23 por Babel, Alejandro González Iñárritu (diretor), Guillermo Arriaga (roteirista) e Adriana Barraza (atriz coadjuvante); por O labirinto do fauno, Guillermo Del Toro (diretor – o filme disputou a categoria “melhor filme em língua não-inglesa”), Guillermo Navarro (fotografia) e Eugenio Caballero (direção de arte); por Filhos da esperança, Alfonso Cuarón (roteiro adaptado; edição) e Emmanuel Lubezki (fotografia). Dois mexicanos receberam a estatueta dourada, Guillermo Navarro e Eugenio Caballero. 22 IMDB (site). 23 IMDB, op. cit. (site).
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Estes filmes foram ainda laureados em outras categorias,24 no entanto, a origem da produção nem sempre é a mesma da sua força de trabalho: Babel é uma co-produção França/EUA/México; O labirinto do fauno, Espanha/EUA/México; e Filhos da Esperança, EUA/ Reino Unido. A inexistência de uma indústria nacional forte leva os mexicanos à produção no exterior – situação semelhante à vivenciada pelos diretores Walter Salles, Fernando Meirelles, Carlos Saldanha entre outros, que ultimamente tem priorizado a carreira internacional em detrimento de filmar no Brasil.
Considerações finais Confrontados alguns aspectos do desenvolvimento industrial da atividade cinematográfica e da atual configuração dos mercados de cinema no Brasil e no México, constata-se a subordinação das cinematografias nacionais ao cinema hegemônico, perpetuando uma condição de subdesenvolvimento criada ao tomar-se Hollywood como o referencial. No entanto, o próprio cinema hegemônico vem incorporando às suas produções, as estéticas e linguagens de filmes contemporâneos do Brasil e do México, bem como tem recrutado profissionais dessas origens pela sua criatividade e competência técnica. Ainda que essa inversão de modelos não altere substancialmente as dinâmicas do mercado, tampouco deve ser ignorada: a diversidade parece representar a entropia necessária a um sistema como o do cinema hegemônico, marcado pela redundância. Os cinemas do Brasil e do México não podem, no entanto, restringirem-se a representar um dado novo para o cinema hegemônico, além de oferecerem matéria prima e mão de obra especializada para a confecção de seus produtos, pasteurizados. Devem, sim, buscar na singularidade o caminho para o fortalecimento do mercado interno, por meio da identificação do espectador para com os filmes nacionais, e consequentemente, da legitimação dessas produções pelo público. O fortalecimento do mercado demanda, ainda, a busca por modelos de negócio sustentáveis, da produção à exibição, passando, principalmente pela distribuição; e a participação do Estado, que deve transcender o papel de mecenas e garantir a continuidade da produção, ao assegurar o funcionamento regular da cadeia do audiovisual como um todo. Em tempos de globalização do mercado, a autonomia das indústrias cinematográficas nacionais é uma quimera, mas a auto-afirmação das cinematografias, uma questão de sobrevivência.
Referências bibliográficas BRAGA, Rodrigo Saturnino. Distribuição cinematográfica. In: DIAS, Adriana; BARBOSA, Letícia de Souza (org). Film business: o negócio do cinema. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. BUTCHER, Pedro. A dona da história: Origens da Globo Filmes e seu impacto no audiovisual brasileiro. Dissertação de mestrado apresentada na UFRJ. Rio de Janeiro: 2006. 24 Babel venceu o Oscar de Trilha Sonora; O labirinto do fauno, o de Maquiagem, além dos já mencionados Direção de Arte e Fotografia. IMDB (site).
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GETINO, Octavio. As cinematografias da América Latina e do Caribe: indústria, produção e mercados. In: MELEIRO, Alessandra (org.) Cinema no mundo: indústria, política e mercado: América Latina (Coleção Cinema no mundo, vol. II). São Paulo: Escrituras Editora, 2007. JOHNSON, Randal. The film industry in Brazil: culture and the state. Pittsburgh: University of Pittsburgh, Digital Research Library, 2009. MARSON, Melina Izar; MELEIRO, Alessandra (org). Cinema e Políticas de Estado: da EMBRAFILME à ANCINE. São Paulo: Escrituras Editora, 2009. MIRANDA, Luiz Felipe; RAMOS, Fernão (orgs). Enciclopédia do cinema brasileiro (2a edição). São Paulo: SENAC, 2000.
Sites consultados ACESSO: o blog da democratização cultural. Entrevista com Ana Rosas Mantecón: Política Cultural Mexicana. Disponível em http://www.blogacesso.com.br/?p=98. Acesso em 14/1/11. ANCINE. “Distribuição de filmes brasileiros por tipo de distribuidora – 2009”. Disponível em http://www.ancine.gov.br/media/SAM/2009/Distribuidoras/140.pdf. Acesso em 17/1/11. ATLÂNTIDA CINEMATOGRÁFICA. História. Assim era a Atlântida. Disponível em http:// www.atlantidacinematografica.com.br/sistema2006/historia_texto.asp. Acesso em 6/1/11. CINÉPOLIS (Brasil). Disponível em http://www.cinepolis.com.br. Acesso em 9/1/11. CINÉPOLIS (Mexico). “Una gran historia.” Disponível em http://wp1.cinepoliscorporativo.com.mx:10038/wps/portal/!ut/p/c1/04_SB8K8xLLM9MSSzPy8xBz9CP0os3g_f6NQNxN PQ0MLM1dDAyMzDxMnnzBPA39_U_1wkA6zeAMcwNFA388jPzdVvyA7rxwA-LcnqA!!/ dl2/d1/2dJQSEvUUt3QS9ZQnB3LzZfU1E3RzFGSDIwODdKRTAyNTQyTVZJSDBCVjM!/. Acesso em 5/1/11. ESTADO DE SÃO PAULO, O (jornal). “Produção de filmes mexicanos é a mais alta em 17 anos”. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,producao-de-filmesmexicanos-e-a-mais-alta-em-17-anos,97791,0.htm. Acesso em 3/1/11. EXAME (revista, versão online). “Mexicana Cinépolis investirá R$ 500 milhões no Brasil até 2012”, por Tatiana Vaz. Disponível em http://exame.abril.com.br/negocios/empresas/noticias/mexicana-cinepolis-vai-investir-r-500-milhoes-brasil-2012-598063. Acesso em 10/1/11. EYE FOR FILM. “Starting a Mexican wave” by Amber Wilkinson. Disponível em http:// www.eyeforfilm.co.uk/feature.php?id=458. Acesso em 10/1/11. FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA. RUIZ, Enrique E. Sánchez. “O cinema no México: globalização, concentração e contração de uma indústria cultural”. Disponível em http://seer.fclar.unesp.br/estudos/article/viewFile/751/616. Acesso em 9/1/11. FILME B. “Focus 2009 publica balanço da América Latina”. Boletim no 612, publicado em 10/8/2009. Disponível em http://www.filmeb.com.br/portal/html/materia14.php. Acesso em 12/1/11. FOLHA DE SÃO PAULO (jornal). “Mercado brasileiro alcança as 2.500 salas de cinema”, por Ana Paula Sousa. Publicado em 21/12/10. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrada/848422-mercado-brasileiro-alcanca-as-2500-salas-de-cinema.shtml. Acesso em 5/1/11. IMDB. Disponível em www.imdb.com. Acesso em 12/1/11. INDIEWIRE. “BO of the 00’s: The Top Grossing Foreign-Language Films” by Peter Knegt (November 20, 2009). Disponível em http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-
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Roberta Assef é mestranda do Programa de Mestrado em Imagem e Som da UFSCar e docente do Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto, SP.
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Hiroshima mon amour e a crítica brasileira na década de 601 ALESSANDRA BRUM*
Resumo: No Brasil, Hiroshima mon amour foi lançado em circuito comercial no ano seguinte ao de sua estréia na Europa. Antes mesmo de sua exibição em nosso país, o primeiro longa de Alain Resnais era aguardado com enorme expectativa pelos críticos brasileiros, todos eles fortemente influenciados pelas leituras de artigos das revistas estrangeiras dedicados ao filme. Encontramos notações sobre o filme de Resnais por toda a década de 60, seja como tema principal, seja como referência. PALAVRAS-CHAVES: HIROSHIMA MON AMOUR, ALAIN RESNAIS, 1RECEPÇÃO CRÍTICA Hiroshima mon amour and Brazilian criticism in the sixties Abstract: Hiroshima mon amour was commercially released in Brazil the year after its European debut. Even before its screening, in our country, Alain Resnais first feature was awaited with great expectation by Brazilian critics, all strongly influenced by articles about the film in foreign magazines. We found writings on Resnais’ film throughout the 60s, either as their main theme or as a reference. KEYWORDS: HIROSHIMA MON AMOUR, ALAIN RESNAIS, CRITICAL RECEPTION
A
ntes mesmo de sua primeira exibição no Brasil, Hiroshima mon amour era aguardado com enorme expectativa pelos críticos brasileiros, todos eles fortemente influenciados pelas leituras de artigos das revistas estrangeiras dedicados ao filme, sobretudo as francesas Cahiers du Cinéma, Positif, Téléciné e Cinéma. Antonio Moniz Vianna (2004, p. 192) comenta esse momento que antecipa a chegada do filme ao Brasil: A reação crítica imediata ante a Hiroshima mon amour, na França, foi de estupefação ou de perplexidade, mas ao se organizar em análise, não era tão favorável quanto se faz crer por aqui, onde o filme já era elogiado antes mesmo de ser conhecido.
1
Essa pesquisa contou com o apoio da FAPESP.
A primeira exibição de Hiroshima mon amour aconteceu em 24 de janeiro de 1960 no Cine Art-Palácio na cidade de Belo Horizonte, como parte integrante da programação da II Jornada dos Cineclubes Brasileiros, co-patrocinada pelo Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC/MG). A cópia de exibição era um exemplar com legendas em espanhol. José Haroldo Pereira, responsável pela segunda fase da Revista de Cinema,2 descreve a reação dos críticos e cineclubistas logo após a primeira sessão. “Foi aquele impacto, acabou o filme e ficou todo mundo estatelado, deslumbrado, sem entender muito o quê estava acontecendo. Como um filme poderia ser tão ousado a ponto de fundir cinema com literatura.”3 A partir dessa primeira exibição – restrita ainda a um público especializado de críticos, cineclubistas e apaixonados pela arte cinematográfica – o filme ganha repercussão. Nelson Pereira dos Santos, em carta, conta ao amigo Glauber Rocha (que na ocasião estava às voltas com a filmagem de Barravento) como o filme estava sendo recebido. “O filme de Resnais provocou polêmicas. Por aí percebes como ele é importante. Há os que se colocam furiosamente contra o filme ou os que o defendem ardorosamente”. (SANTOS apud ROCHA, 1997, p. 121)
Box promocional veiculado no Jornal do Brasil, 28 de agosto de 1960
Paulo Emílio Salles Gomes destacou em um dos seus artigos essa capacidade do filme de causar polêmicas, bem como assinalou o resultado relevante da bilheteria alcançada por um filme com “a reputação de difícil” e com poucas possibilidades comerciais.4 O sucesso comercial de Hiroshima mon amour também foi motivo de comentário de Glauber Rocha em seu artigo O processo cinema: “Contou-me o Sr. Charles Malandra, supervisor da França Filmes na América do Sul, que não tinha a menor esperança em Hiroshima Mon Amour. A bilheteria foi fantástica.” (ROCHA, 1961) Hiroshima mon amour foi tema de um número expressivo de artigos em colunas jornalísticas. Encontramos notações sobre o primeiro filme de Resnais por toda a década de 60, seja como tema principal, seja como referência. A maioria dos críticos dedicou mais de um artigo sobre o filme, como é o caso de Paulo Emílio Salles Gomes que escreveu um total de sete artigos, e Walter da Silveira, cinco artigos. Vinícius de Moraes, morando no Uruguai e distante do exercício da crítica cinematográfica, assiste ao filme dias antes de seu retorno ao Brasil. Já no Brasil, escreve suas considerações a respeito
2 O primeiro número da 2a fase da Revista de Cinema traz como matéria de capa o artigo “Hiroshima mon amour – interpretação cinematográfica de um filme superior ao cinema”, de José Haroldo Pereira 3 Depoimento de José Haroldo Pereira em entrevista com a autora. Rio de Janeiro, 26 de março de 2008. 4 HIROSHIMA, mon amour. Revista Visão, 08 jul. 1960. Artigo atribuído a Paulo Emílio Salles Gomes por José Inácio de Melo Souza, a quem agradeço pela referência e apoio na localização.
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da obra de Resnais, o que seria um de seus últimos escritos sobre cinema. (CALIL apud MORAES, 1991: p. 17) Maurício Gomes Leite, ainda sob impacto da primeira exibição no Brasil, em sua coluna no Diário da Tarde (MG) convoca toda a crítica mineira, inclusive os críticos ausentes da atividade diária, a se debruçar no estudo dessa “obra inavaliável” e ponto de referência “de todo o cinema sonoro”. Para o crítico, Hiroshima mon amour é uma extraordinária tentativa de Alain Resnais em registrar na tela a descrição interior de uma experiência amorosa, é também o coroamento dos vários ensaios feitos rumo a criação de um cinema subjetivo, de um cinema onde o personagem – ou a mente do personagem – é o centro de todos os acontecimentos. (LEITE, 1960)
Esse primeiro artigo deu o tom das análises do período e aponta para algumas questões que serão trabalhadas por vários críticos brasileiros: a relação cinema X literatura; a memória como condutora da narrativa cinematográfica; e a idéia de filme-ruptura.5 A relação cinema X literatura foi tema de uma série de artigos de Walter da Silveira que conduz sua análise na tentativa de demonstrar que “essa fita polêmica alarga, por uma compreensão mais futura do cinema, sua posição no quadro das artes”. (SILVEIRA, 2006: p. 216) Embasado a partir de textos sobre a obra de Alain Resnais e de depoimentos do autor às revistas Téléciné e Tiempo Del Cine, Walter da Silveira, ao relatar o processo de criação do filme em sua concepção embrionária (que inclui o fato de a escritora Marguerite Duras não escrever o texto em formato de um roteiro cinematográfico) ressalta o valor singular do trabalho do diretor que transpõe para o cinema uma obra literária. Diz Silveira (2006: p. 217): “A suposta descaracterização do cinema pela fala é um problema que já devia estar ultrapassado, mas que Alain Resnais teve de enfrentar em Hiroshima, mon amour com a audácia de um revolucionário”. Acredita que a crítica e os teóricos do cinema de uma maneira geral não estão sintonizados com o advento do cinema falado; e argumenta que a teoria cinematográfica tem suas bases sedimentadas no cinema silencioso, o que impede uma compreensão mais adequada do novo filme de Resnais. Paulo Emílio Salles Gomes assume, em um dos seus artigos, que “é difícil escrever sobre Hiroshima mon amour”, preferindo adotar uma postura mais cautelosa em suas análises sem, no entanto, deixar de registrar sua profunda admiração pelo filme de Resnais. Segundo Paulo Emílio, o filme está configurado sob o que ele considera ser suas linhas de força: amor, morte, memória e esquecimento. As forças dicotômicas encontram expressão e significado através da memória da personagem de Emmanuelle Riva, e sendo a memória o condutor de toda a história, o tempo e o espaço se atualizam, já que as imagens do presente e do passado se mesclam indistintamente:
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Quando Maurício Gomes Leite escreveu esse artigo em janeiro de 1960, ele já tinha tido acesso às revistas francesas, sobretudo a Cahiers du Cinema (juillet 1959), já que em determinado momento de sua análise cita uma observação que Jacques Rivette fez na mesa redonda promovida pela revista francesa sobre Hiroshima mon amour. Essa mesa redonda foi amplamente difundida entre os críticos brasileiros, chegando a ter parte de seu conteúdo traduzido e publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil de 10 de setembro de 1960.
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A introdução de lembranças é o cerne de Hiroshima mon amour e tem pouca relação com as habituais técnicas cinematográficas de referência ao passado. A fita é um poema que abole os elementos históricos e geográficos introduzidos. (GOMES, 1981: p. 211)
O outro elemento introduzido por Maurício Gomes Leite chama atenção, por ter permeado várias análises acerca de Hiroshima no Brasil, e principalmente por ser um dos elementos distintivos das análises brasileiras sobre o filme de Resnais: a idéia de filmeruptura, estruturada a partir da comparação com Cidadão Kane de Orson Welles, filme símbolo de toda uma geração de críticos brasileiros.6 Este é um dos pontos de interseção que acaba por estabelecer um diálogo entre a antiga e a novíssima geração de críticos que recebiam as novas mudanças estéticas da Nouvelle Vague com bons olhos. Exemplo dessa polêmica, são as posições assumidas por Antônio Moniz Vianna, defensor inconteste de Cidadão Kane, e José Lino Grünewald, que vê no filme de Resnais o começo de uma nova era após Welles. (CASTRO apud Grünewald, 2001: p. 13) A renovação nos quadros da crítica especializada em cinema no Brasil é um dado a ser levado em conta na década de 60. Chegou a ser assunto de artigo de Paulo Emílio Salles Gomes que lamentava a aposentadoria precoce dos fundadores da Revista de Cinema de Belo Horizonte, observada pela ausência de textos dos veteranos (Cyro Siqueira e Jacques do Prado Brandão) na publicação da segunda fase da Revista. É importante ressaltar que o primeiro número da segunda fase dessa revista trazia como tema central e matéria de capa o filme Hiroshima mon amour. A ausência dos veteranos da crítica mineira na segunda fase da revista não foi proposital ou mesmo uma intenção da nova geração à frente da Revista de Cinema como pondera José Haroldo Pereira. Como responsável pela retomada da Revista, Haroldo Pereira comenta que recebeu todo o apoio de seus “mestres”, como costuma chamar a antiga geração. Cyro Siqueira, um dos fundadores da Revista de Cinema irá colaborar nos números seguintes. De qualquer forma, a década de 60 é marcada por uma mudança de postura do trabalho da crítica introduzida pela nova geração. Jovens entusiasmados, formados dentro dos quadros do movimento cineclubista e das cinematecas,7 que encaravam o exercício da crítica como um caminho de aprendizado do pensar cinematográfico com objetivo de se chegar à realização.8 Muitos jovens partiram para a ação, ou seja, ingressaram na prática cinematográfica, como é o caso de Glauber Rocha, David Neves, Rogério Sganzerla, Gustavo Dahl, os irmãos José Renato e José Geraldo dos Santos 6 O filme de Welles representou para a geração de críticos da década de 40 uma renovação no modelo narrativo imposto por Hollywood, reafirmando o cinema como arte, além de ter sido um dos centros da polêmica Cinema Mudo X Sonoro do período. Sobre o assunto: SOUZA, José Inácio de Melo e. A Carga da Brigada Ligeira: Intelectuais e Crítica Cinematográfica, 1941-1945. São Paulo, Tese de Doutorado, ECA/USP, vol. I, 1995. 7 Em São Paulo na Cinemateca Brasileira; no Rio de Janeiro com as sessões de cinema promovidas pela Cinemateca do MAM; em Belo Horizonte em torno do CEC; na Bahia através do Clube de Cinema, tendo como figura central Walter da Silveira. 8 É bom lembrar que a experiência prática por parte da crítica não é exclusividade da geração de 60. Exemplar é a equipe da Revista Cinearte conduzido por Adhemar Gonzaga na realização de Barro Humano em 1929.
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Pereira.9 Estava no horizonte dessa geração, experimentar na prática a idéia de cinema que defendiam com paixão em suas colunas jornalísticas. O início dos anos 60 é marcado também pela realização da Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, organizada pela Fundação Cinemateca Brasileira e promovida pela Comissão Estadual de Cinema do Governo do Estado de São Paulo, ocorrida entre os dias 12 e 15 de novembro de 1960 na cidade de São Paulo. Nessa Primeira Convenção, estavam reunidos praticamente toda a crítica brasileira em atividade na época, críticos de diferentes gerações e de vários estados brasileiros. Presentes ao evento somam um total de 100 participantes, se fazendo representar os seguintes estados: Goiás; Ceará; Paraíba; Paraná; Rio Grande do Sul; Pernambuco; Bahia; Minas Gerais e, em grande maioria, São Paulo. O evento tinha por objetivo “estudar os problemas da indústria, do comércio e da cultura cinematográficas no nosso país”, como declarou Francisco de Almeida Salles no discurso de abertura da sessão inaugural. Durante o evento, Paulo Emílio apresentou a comunicação “A ideologia da crítica brasileira e o problema do diálogo cinematográfico”.10 Nesse trabalho, Paulo Emílio defende a idéia de que a compreensão integral de um filme se dá quando se conhece a língua falada. A noção enraizada entre os críticos de que a essência do cinema é o visual, mascara “o desconforto em seguir a dialogação através dos letreiros [que] é atenuado pela convicção de que nada de essencial foi perdido”. Paulo Emílio, seguindo essa idéia, apresenta como caminho para o desenvolvimento do cinema brasileiro e da própria crítica brasileira um cinema pautado pelo diálogo. Para ele, no cinema brasileiro, até aquele momento, nunca existiu um bom filme dialogado, e considera que isso é resultado da condição adquirida ao longo dos anos como espectadores de filmes estrangeiros. Diz Paulo Emílio: “Os cineastas nacionais precisam encontrar outra escola, a da descoberta e da invenção, para o problema do diálogo. Mas para isso, precisam libertar-se definitivamente da ideologia morta que lhes foi inculcada pela crítica, a respeito da preponderância do visual em cinema. Seria ótimo se eles caíssem no exagero contrário. A margem do oportunismo das ideologias é sempre muito grande. Nas condições brasileiras atuais, a ideologia cinematográfica mais útil e, portanto ‘verdadeira’ seria a que definisse o cinema como “uma fala literária e dramática envolvida por imagens.” (GOMES apud CALIL & MACHADO, 1986: p. 333-334) José Haroldo Pereira, presente a essa Convenção, conta que a tese apresentada por Paulo Emílio causou um mal estar geral entre os participantes. Ele comenta: a reação chegou a ser desrespeitosa… Eu não me lembro quem estava falando, alguém da crítica mais antiga disse: eu acredito que essa tese do Paulo Emílio é diretamente inspirada nesse filme, Hiroshima, mon amour, que dá importância tão grande ao diálogo, a fala, mas acho isso inteiramente discutível. Foi um alvoroço.11
9 Muitos críticos e cineastas procuram se especializar no Centro Sperimentale di Cinematografia na Itália ou IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques) na França. 10 Durante a I Convenção Paulo Emílio apresentou ainda a tese “Uma Situação Colonial?”, posteriormente publicada no Suplemento Literário de O Estado de São Paulo em 19 de novembro de 1960. 11 Depoimento de José Haroldo à autora. Rio de Janeiro, 26 de março de 2008.
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A frase que conclui o trabalho de Paulo Emílio que define “o cinema como uma fala literária e dramática envolvida por imagens” foi a principal causa das inúmeras manifestações contrárias à sua tese. José Inácio de Melo e Souza em seu livro Paulo Emílio no Paraíso narra esse momento da Convenção em detalhes: o parecer de Didonet e Jacques do Prado Brandão reconheceu a ‘(…) importância da tese, recomenda sua leitura e estudo, embora não apoiando o seu final’ [de que o cinema é uma fala literária e dramática envolvida por imagens], ou seja, a nova ideologia proposta pelo autor. Seguiu-se a discussão, quando Cavalheiro Lima pediu a incorporação da tese como subsídio à moção contra a dublagem, sendo recusada por Walter da Silveira e Trigueirinho Neto, ambos patidários do sentido ‘revolucionário’ que ela apontava. O primeiro, inclusive, vislumbrou uma possível influência de Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais, na sua redação. (…) Dada a palavra a Paulo, ele concordou com a negativa de anexação à moção por entender que talvez ela causasse alguma confusão entre os legisladores e técnicos no exame da dublagem. Em seguida, homenageou a Comissão de Assuntos Culturais. ‘Depois de ler a tese, tive o medo de ser infeliz. Disse: aconteça o que acontecer eu terei sempre razão. Se eles concordarem estarão de acordo comigo e eu ficarei satisfeito. Se discordarem e rejeitarem a tese, eles demonstram que minha argumentação era verdadeira. Com o que eu não contava é com essa resolução satânica da Comissão de Cultura (e soube agora que nisso está o dedo do Didonet), e eu confesso que toda a resolução me deixa satisfeito mas não me deixa a sensação plena de ter a tese aprovada ou rejeitada.’ Posta em votação, foi referendada pelos debatedores. Trigueirinho Neto ainda apresentou uma moção de apoio às ‘conclusões vanguardistas’, sendo aceita também por unanimidade. (SOUZA, 2002: p. 402-403)
Não temos como afirmar se Paulo Emílio estava sob influência do primeiro longametragem de Resnais quando escreveu sua tese. Em todo caso, a situação narrada acima nos indica o incômodo causado pela recente exibição de Hiroshima mon amour entre os críticos, que acabou por refletir na Convenção. Se o início da década de 60 representa um marco para a crítica cinematográfica com a realização da primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, por outro lado, é também o começo de grandes transformações no cinema brasileiro e por consequência da mudança de postura da crítica. Linduarte Noronha, crítico e cineasta paraibano, compareceu à Convenção trazendo debaixo do braço o seu filme de curta-metragem Aruanda, que exibe a uma platéia restrita aos críticos paulistas. Glauber Rocha não compareceu ao evento por estar envolvido com as filmagens do seu primeiro filme de longa-metragem Barravento. (GOMES, 1981: p. 295) O Cinema Novo ainda não estava estabelecido enquanto movimento, mas suas raízes já começavam a despontar. É nesse cenário que o primeiro longa-metragem de ficção de Alain Resnais é exibido no Brasil. A polêmica criada em torno de Hiroshima mon amor no Brasil dá a dimensão exata da importância do filme de Resnais, povoando o imaginário de toda uma geração de críticos, cineastas e futuros cineastas. As inovações formais levadas à cabo por Alain Resnais
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no final dos anos 50, período marcado por profundas transformações estéticas acirram o debate e ampliam os parâmetros de análise do fazer cinematográfico.
Referências bibliográficas VIANNA, Antonio Moniz. Um Filme por Dia. Crítica de Choque. Ruy Castro (org.). São Paulo: Cia. das Letras, 2004. ROCHA, Glauber. Cartas ao Mundo. Ivana Bentes (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ______. O Processo Cinema. Jornal do Brasil, 06 mai.1961. MORAES, Vinícius de. O Cinema dos Meus Olhos. Carlos Augusto Calil (org.) São Paulo: Companhia das Letras, 1991. LEITE, Maurício Gomes. Hiroshima, mon amour: obra inavaliável abre caminho para a “Stream of Consciousness” do cinema. Diário da Tarde, Belo Horizonte, 26 jan.1960. SILVEIRA, Walter. O Eterno e o Efêmero. José Umberto Dias (Org. e notas). Salvador: Oiti Editora e Produções Culturais Ltda, vol. 2, 2006. GOMES, Paulo Emílio. Amor e Morte. Suplemento Literário de O Estado de São Paulo, 04 de junho de 1960. GRÜNEWALD, José Lino. Um Filme é um Filme. Ruy Castro (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2001. GOMES, Paulo Emílio. A Ideologia da crítica brasileira e o problema do diálogo cinematográfico. In: CALIL, Carlos Augusto & MACHADO, Maria Teresa (Org.). Paulo Emílio. Um Intelectual na Linha de Frente. Rio de Janeiro-São Paulo: Brasiliense-Embrafilme, 1986, p. 331-4. SOUZA, José Inácio de Melo. Paulo Emílio no Paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2002. GOMES, Paulo Emílio Sales. Crítica de Cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, vol. II, 1981.
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Alessandra Brum é Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Multimeios – Instiuto de Artes, Unicamp.
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Processo de criação no cinema
O caso The Tulse Luper Suitcases EDUARDO CUNHA BONINI*
Resumo: Ao se deparar com a obra The Tulse Luper Suitcases, uma combinação complexa de produções que extravasa a lógica das obras transmidiáticas, uma vez que os limites entre as mídias que a compõem se encontram diluídos, uma abordagem crítica a partir dos processos criativos operados pelo diretor Peter Greenaway se fez necessária. Para abarcar as produções como um todo, a crítica de processo foi adotada como método para fazer dialogar teóricos do cinema e das novas tecnologias digitais, em prol de flagrar uma relação simbiótica entre tais mídias, presente na obra do cineasta. PALAVRAS-CHAVE: PETER GREENAWAY, THE TULSE LUPER SUITCASES, OBRAS TRANSMIDIÁTICAS The process of creation in the cinema: the case of The Tulse Luper Suitcases Abstract: When faced with the work The Tulse Luper Suitcases – a complex combination of productions that goes beyond the logic of trans-media works, since the boundaries between the media from which it is made are diluted – a critical approach based on Peter Greenaway’s creative processes was needed. In order to cover the productions as a whole the critical analysis of the process of creation has been adopted as a method of engaging theorists of the cinema and of new digital technologies, for the sake of capturing a symbiotic relationship between such media, present in the work of the filmmaker. KEYWORDS: PETER GREENAWAY, THE TULSE LUPER SUITCASES, TRANSMEDIA WORKS
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pesquisa sobre o processo de criação do cineasta Peter Greenaway teve início em 2008, quando da tomada da obra The Tulse Luper Suitcases como objeto de estudo do mestrado realizado no programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP,1 sob orientação de Cecília Almeida Salles. A obra é composta, originalmente, de três longas-metragens realizados com tecnologia digital, diversos websites, exposições, produção de 92 livros, numerosos DVDs, um videogame on-line, VJ 1
BONINI, Eduardo Cunha. As tramas do cinema de Peter Greenaway: processos de criação em The Tulse Luper Suitcases. São Paulo, 2010. 107 pgs. Dissertação de mestrado defendida no Programa de Estudos Pós-graduados em Comunicação e Semiótica. PUC-SP.
Cartazes dos três longa-metragens
performances, peças teatrais e uma série de televisão, que pretendem reconstruir a vida de Tulse Henry Purcell Luper, projetista e escritor nascido em Newport, South Wales, cuja vida ele mesmo arquivou em 92 maletas, posteriormente encontradas ao redor do mundo. A história da vida do personagem é reconstruída e contada por pesquisadores, a partir das evidências encontradas nas maletas. A obra está condensada em três longas-metragens, por meio dos quais podemos conhecer quem foi Tulse Luper, suas prisões ao redor do mundo, suas maletas e seu desaparecimento repentino. Porém, ela também se irradia por materialidades diversas, como é o caso da exposição contendo as 92 maletas com seus respectivos conteúdos – índices da existência da personagem –, da performance de VJing – também conhecida como “live image”, na qual o diretor, com o advento de uma tela touchscreen, manipula diversos segmentos do filme digitalizado, realizando diferentes montagens para o filme em tempo real (ao vivo) –, ou mesmo os diversos sites espalhados pela internet, cada qual com um propósito diferente.2 Há também o jogo on-line, que convida o espectador a ser um pesquisador e abrir as 92 malas repletas de aventuras e desafios, bem como as proliferações que o projeto permite, como os sites que fãs criaram e passaram a integrar o panorama geral da obra e a performance que Thais Almeida Prado realizou, a partir da exposição das maletas em São Paulo. A complexidade desta obra nos chamou atenção, sendo este o fator decisivo para sua escolha como objeto de pesquisa. Extravasando a lógica dos produtos transmidiáticos conhecidos até então, a maioria com um forte apelo comercial e, portanto, sem novidades substanciais, a obra de Greenaway, nos parece, instaura novos paradigmas. A primeira impressão logo flagra a diluição de limites entre as mídias, operada pela obra. Não se trata de uma série de manifestações que orbitam em torno do filme, como de costume, mas sim de uma estrutura modular, onde as partes (filmes, exposição, performance etc.) são independentes, mas com certa relação entre si. Não há centros gravitacionais nem hierarquias entre os elementos, trata-se então de uma estrutura não-linear, em forma de rede. Por exemplo, a obra é estruturada a partir das 92 maletas, onde cada um de seus conteúdos propõe uma pequena narrativa a respeito da vida do protagonista, que uma vez encadeadas em uma sequência numérica, formaram os três longas-metragens, que por sua vez são a matéria-prima para a performance de VJing. Os conteúdos das maletas 2 O site oficial do projeto (www.tulselupernetwork.com) funciona como uma enciclopédia multimídia a respeito da obra e da vida do protagonista, onde, inclusive, encontramos os métodos de organização da obra por categorias e demais dados a respeito do processo construtivo da mesma. Já nos sites Tulse Luper in Turin e Tulse Luper in Venice (http://www.tulseluperinturin.net/ - http://www.tulseluperinvenice.net) o diretor dialoga com os conteúdos que se encontram nos livros de mesmo nome, bem como disponibiliza textos que discutem questões acerca do projeto. E o diretor dedica um espaço em seu próprio site para o projeto (http://petergreenaway.org.uk/tulse.htm), onde, mais uma vez, encontramos um verdadeiro banco de dados, labiríntico e informal, de informações que nos auxiliam a montar o quebra-cabeça que é a vida do protagonista.
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Cena do filme – a infância do protagonista
também estão presentes no jogo, em forma de desafios e em sites e livros, como é o caso da maleta de número 46, intitulada Ouro do Holocausto, que contém 92 barras de ouro usurpadas de 92 famílias judias. Greenaway escreveu mais uma pequena narrativa para cada uma das barras de ouro e as publicou no livro chamado Gold e no site Bolzano Gold.3 Portanto, as manifestações da obra não estão fechadas em si mesmas, mas sim mantêm uma relação simbiótica essencial à sua organização. Por possuir tal natureza complexa, nos deparamos não mais com um objeto bem definido, passível de uma leitura cartesiana que decomponha a obra em especialidades para então estudá-la. As abordagens convencionais se tornam reducionistas para tal objeto, pois são capazes, apenas, de propor leituras especializadas: pelo viés do cinema, das artes plásticas, da performance ou das mídias digitais. Por conta disto, decidimos realizar uma leitura pelo viés do processo de criação do cineasta, pois acreditamos que assim é possível identificar as conexões que a obra estabelece entre o cinema e as demais mídias. Encontramos então na crítica de processo, proposta por Cecília Salles, o suporte teórico-metodológico que possibilitou a realização de tal leitura – tomando por base, principalmente, o livro Redes da Criação.4 Como o objetivo da pesquisa era entender a fonte da complexidade da obra e não realizar a reconstrução do percurso criador de Peter Greenaway, a escolha pela crítica de processos enquanto metodologia de trabalho se deu principalmente por sua capacidade em abordar um objeto tão multifacetado e em permanente processo. A crítica de processo também nos permitiu estabelecer o diálogo entre os documentos de processo, os estudos de críticos da obra do cineasta e nossa análise direta do objeto de pesquisa, diálogo este valioso para a construção da pesquisa. Uma vez realizado o mapeamento da obra, partimos para a definição dos documentos de processo. Percebemos que o que se colocava publicamente apontava de maneira bastante significativa as tendências que guiaram o cineasta e, portanto, serviriam como registros de processo. Tomamos assim, como documentos de processo as entrevistas realizadas com Peter Greenaway, seus ensaios e palestras transcritas, que podem ser facilmente acessadas por meio de seu site.5 Vale ressaltar a importância dos sites, dada a natureza processual da obra: sites que, por essência, estão em permanente mobilidade, contando com atualizações constantes. Dado que o escopo da pesquisa não foi realizar a reconstrução do percurso criador do cineasta, os documentos de processo escolhidos foram suficientes para a empreitada. 3 http://www.bolzanogold.com. 4 SALLES, Cecília. Redes da Criação: construção da obra de arte. Vinhedo, SP: Horizonte, 2006. 5 http://petergreenaway.org.uk/pglinks.htm.
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Cartazes dos três longa-metragens
A sua escolha se deu por partimos do princípio de que eles fazem parte da reflexão do cineasta. Eles registram o trabalho intelectual do autor e nos contam muito sobre o princípio direcionador de suas obras. Os trabalhos de críticos das obras de Peter Greenaway também foram de suma importância para a identificação das tendências que guiam o processo criativo do diretor. Por meio do diálogo entre os documentos de processo e os textos de pesquisadores como Maria Esther Maciel,6 Maria Dora Mourão, Yvana Fechine, Ivana Bentes – compilados em livro7 organizado pela primeira – e Jorge Gorostiza8 foi possível levantamos duas grandes características presentes nas obras do cineasta: o aspecto enciclopédico de seus trabalhos e a influência da estética barroca, principalmente em seus filmes. A primeira é peça chave para a nossa pesquisa, por ser uma característica estrutural recorrente em suas obras, inclusive em nosso objeto de estudo. Por outro lado, decidimos não tratar da segunda característica na pesquisa, uma vez que a estética barroca não é o principal aspecto a ser estudado para que cheguemos ao entendimento da estrutura da obra The Tulse Luper Suitcases”, além de que este assunto já fora trabalhado por uma série de pesquisadores, como Rosa Cohen, Marcelo Carrard Araújo e Wilton Garcia, entre outros. Identificamos também algumas questões importantes sobre o processo criativo de Peter Greenaway. Intituladas pelo cineasta de tiranias do cinema,9 são restrições impostas pela natureza do dispositivo técnico e da linguagem cinematográfica predominante na maioria dos filmes de ficção, como o enquadramento, a câmera, o texto (o encadeamento linear dos planos que culmina na estrutura narrativa advinda da literatura) e o ator. Tomamos então a busca pela emancipação das tiranias são como tendências do processo criativo do diretor, pois culminam em características presentes em suas obras. Porém, para embasar a nossa leitura sobre estes aspectos inerentes ao cinema e presente nas obras, buscamos suporte teórico em consagrados pesquisadores do cinema. Procuramos realizar um diálogo entre os escritos de Arlindo Machado,10 Jacques Aumont,11 Noel Burch,12 Gilles 6 MACIEL, Maria Esther. As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias ficcionais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 7 Idem. O cinema enciclopédico de Peter Greenaway. São Paulo: Unimarco, 2004. 8 GOROSTIZA, Jorge. Peter Greenaway. Madrid: Cátedra, 1995. 9 GREENAWAY, Peter. O cinema está morto, vida longa ao cinema. In: Caderno SESC Videobrasil. São Paulo: Edições SESC SP, 2007, Vol. 3, n. 3. 10 MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas, SP: Papirus, 1997. 11 AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. Campinas, SP: Papirus, 2005. 12 BURCH, Noel. Práxis do Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1992.
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Jogo na internet – Tulse Luper Journey
Deleuze13 e Ismail Xavier14 para darmos sustentação a questões relativas ao aparato técnico para a realização de obras cinematográficas, como é o caso do uso da câmera e a prática da montagem, e também questões de caráter estético. Porém, como o enfoque do estudo foi voltado à análise da estrutura da obra, procuramos realizar na pesquisa um diálogo entre as instâncias teóricas do cinema e das mídias digitais, juntamente com os escritos sobre as obras do diretor. Para tanto, fizemos uso de figuras topológicas para guiar a condução da de nossa leitura crítica. Assim como A Divina Comédia está organizada por meio de círculos, a obra The Tulse Suitcases possui uma série de figuras que podem ser utilizadas para realizarmos a sua leitura. Utilizadas para dar sustentação conceitual à análise da obra, propusemos uma perspectiva de acréscimo de complexidade entre elas, partindo das figuras do labirinto e da enciclopédia, mais recorrentes nos trabalhos dos pesquisadores da obra do cineasta, para então chegarmos à figura do banco de dados, por conta da aproximação da obra com as linguagens contemporâneas – marcadas principalmente pelas tecnologias digitais. A rede, como citado acima, é a figura que melhor descreve a organização da obra e suas características estão diluídas pelas demais figuras trabalhadas. Portanto, o uso das figuras determinou a organização do trabalho, dado que diferentes aspectos estruturais convivem na obra. A enciclopédia permite uma leitura não-linear, como o passeio por um labirinto, e como este, possui regras bem definidas que a criaram. Com a obra The Tulse Luper Suitcases não é diferente, ela é organizada por meio de uma regra simples, porém poderosa: 92 maletas que geram 92 narrativas, que por sua vez geram 92 desafios (jogos), etc. E a obra pode ser experimentada de forma não-linear, pois não há uma sequência obrigatória de maletas para contar a história de Tulse Luper e tampouco há um percurso definido para o espectador experimentar a obra – não é obrigatório assistir aos filmes ou visitar a exposição, por exemplo. Como uma coleção, as maletas e mesmo as manifestações da obra estão sujeitas a novos arranjos, propostos pelo próprio espectador. Pelo fato de a estrutura da obra permitir diversas manifestações e percursos, aliado a características expressivas que se aproximam da estética das mídias digitais, propusemos o uso do conceito de banco de dados como forma simbólica da contemporaneidade, conforme proposto por Lev Manovich,15 reconhecido teórico das novas mídias. Um banco de dados é uma coleção de dados estruturada por alguma regra, que pode ser acessada de forma não-linear, por meio de interfaces. Esta figura serve como guarda-chuva para diferentes dispositivos de comunicação e expressão que ganharam 13 DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985. 14 XAVIER, Ismail (org.). O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. 15 MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge: MIT, 2001.
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notoriedade por conta do amadurecimento da computação, entre eles o hipertexto e a internet. A estrutura de ligações (links) que permitem a navegação pelos diferentes textos (ou informações) já estava presente na enciclopédia, porém no banco de dados se encontram atualizados. Assim como a procura de Peter Greenaway pela adaptação do cinema à realidade midiática contemporânea, procuramos ajustar a análise da obra aos novos padrões digitais. Sem divorciar o cinema das novas mídias, partimos da sétima para flagrar que a fênix proposta por Peter Greenaway não renega a tradição, mas sim a potencializa.
Performance de VJing
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Eduardo Cunha Bonini é mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e docente dos cursos de Design do Centro Universitário Senac de São Paulo.
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o diretor no videoclipe brasileiro
O CASO MANGUEBEAT
FERNANDA CAROLINA ARMANDO DUARTE*
Resumo: O artigo considera videoclipes brasileiros pertencentes à cena musical denominada “Movimento Manguebeat”, sua construção e os aspectos regionais característicos do movimento. Para entender este processo, selecionamos dois videoclipes, de diretores diferentes, “Manguetown” e “Maracatu Atômico”, produzidos a partir de canções da banda Chico Science e Nação Zumbi. PALAVRAS-CHAVE: VIDEOCLIPES, CHICO SCIENCE, ASPECTOS REGIONAIS The video clip director in Brazil: the manguebeat case Abstract: This paper considers Brazilian videos clips of the so-called “Manguebeat Movement”, how they were made and how the regional characteristics of the movement permeate them. To understand this process we selected two video clips made by differente directors as examples – “Manguetown” and “Maracatu Atômico” – based on songs by Chico Science e Zumbi Nation. KEYWORDS: VIDEOCLIPS, CHICO SCIENCE, REGIONAL CHARACTERISTICS
1. Alguns aspectos da cena Mangue No início da década de 1990 surgia em Recife um movimento cultural denominado ‘Manguebeat’, a partir da iniciativa de duas bandas até então desconhecidas: Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. As suas bases revolucionariam a música jovem brasileira, através de propostas que englobariam o resgate das tradições e do folclore recifenses, modernizando-os através da adição do rock e algumas doses de funk, hip hop e sons eletrônicos, porém sem descaracterizá-los e, sim, incutindo neles novas roupagens, o que geraria uma evolução, como disse Chico Science em sua música Monólogo ao Pé do Ouvido: “Modernizar o passado é uma evolução musical”. A diversidade cultural é o conceito-chave instituído pelo Manguebeat e seus idealizadores que, até em sua nomenclatura, procuraram explicitar isso (Mangue = ecossistema rico e diversificado, alusão aos manguezais existentes em boa parte do território de Reci-
fe; + Beat que é batida em inglês); alternativamente, o movimento também é chamado de Manguebit (bit = a menor parte de uma informação digital). Bem como o videoclipe, o Manguebeat também está ligado às tecnologias recentes de sua época e a um discurso contemporâneo e híbrido. Este foi um movimento que saiu de um mercado não-tradicional e “exportou” elementos de seu regionalismo para centros estabelecidos de consumo como Rio e São Paulo. Certamente, o videoclipe enquanto ferramenta de divulgação teve um grande papel para o êxito dessa empreitada, pois a imagem em movimento aliada ao som é um dos meios mais eficazes para se comercializar algo, parte essencial de qualquer plano de marketing que ambicione atingir algum mercado massificado. No excerto abaixo podemos perceber alguns aspectos que nos auxiliam na compreensão deste tema; nele observamos que Jameson considera o vídeo o meio principal de comunicação com as massas: (…) O cinema e a literatura não mais cumprem essa função, ainda que eu não vá me deter nas evidências circunstanciais de sua crescente dependência de materiais, de formas e de tecnologia, e até da temática tomada a esse novo medium, ou arte, que penso ser, hoje, o candidato mais provável à hegemonia. A identidade desse candidato não é certamente secreta: trata-se, é claro, do vídeo e das suas manifestações correlatas, a televisão comercial e o vídeo experimental ou videoarte. Essa não é uma proposição que se prove; o que se procura é, como farei no restante deste capítulo, demonstrar o interesse dessa pressuposição e, em especial, a variedade de consequências que advêm ao se dar uma nova prioridade central aos processos do vídeo. (JAMESON, 1997: p. 93. Grifo nosso)
Podemos supor que o diretor de um videoclipe que busca atingir um grande público possui um papel muito importante dentro do plano geral de negócios. Porém, até agora, esse papel parece ser um tanto nebuloso, pois o videoclipe recebe grande influência de outras fontes, como a gravadora, a banda etc. Essa condição acaba por “diminuir” o papel deste profissional que, por fim, não recebe os devidos créditos, em diversas ocasiões. O processo de “suavização” dos elementos regionais, a fim de tornar o produto universalizado para o mercado massificado, no caso estudado por essa pesquisa, tem início desde o princípio dessa cadeia, já pela natureza do movimento Manguebeat, no qual, os elementos “não-digeríveis”, ou talvez “entediantes” – para se fazer uma aproximação com Jameson (1997) – são reorganizados para tornarem-se atraentes ao maior número de pessoas. Quando Chico Science adiciona o rock e outros ritmos mundializados ao maracatu e outros ritmos regionais, como coco e cavalo marinho, a fim de produzir uma nova música, é isso o que ele realiza. Com esse procedimento, ele resgata o maracatu e outros ritmos regionais, e os ‘descaracteriza’ em certos momentos, mas, com essa mistura, por outro lado, ele consegue tornar todos esses ritmos atraentes ao público jovem que, em sua maioria, desconhecia totalmente o maracatu e os outros ritmos tradicionais de Pernambuco e sua vasta cultura, gerando um resgate das tradições que, a partir de então, pôde se revelar ao mundo. Os videoclipes que servem como objetos de estudo para esse trabalho são de canções que fazem parte do álbum Afrociberdelia. Este álbum foi o segundo produzido pelo
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selo Chaos, associado da gravadora multinacional Sony, o que afirmou a banda definitivamente no mercado mundial; tanto isso é verdadeiro que logo após este trabalho a banda realiza diversos shows no mercado internacional. Logo que saiu, o álbum gerou uma primeira turnê nacional em junho e, no mês seguinte, uma internacional. “Fomos para Suíça, Alemanha, Bélgica, França… Foram 13 shows inesquecíveis”. O grupo estava melhor no palco. O contato com David Byrne feito no ano anterior, quando a Nação abriu o show de Gilberto Gil no Summer Stage, no Central Park foi restabelecido diante do interesse do selo Luaka Bop em lançar “Afrociberdelia”. Mas a Sony não quis e ofereceu o disco às suas subsidiárias. “O problema é que enfiaram a Nação num pacote rock en español. A banda ficou perdida ali”, critica Paulo André. (RIBEIRO, 2006: p. 44)
A escolha desses dois diretores deveu-se ao fato de ambos possuírem larga experiência no campo videográfico, grande reconhecimento nacional e perfis e trajetórias marcadamente diferentes, o que tornará muito instigante a confrontação das idéias e visões que eles possuem, além dos mesmos terem participado da cena Manguebeat na época do seu auge através da realização dos referidos videoclipes e outros.
2. Conteúdo para a construção das narrativas: cenários e personagens O videoclipe brasileiro vem adquirindo um status maior com a evolução de sua linguagem, conseguindo unir o artístico ao comercial, de forma a fazer com que a banda retratada conserve a sua personalidade e o diretor do trabalho consiga mostrar a sua assinatura pessoal na obra. Ainda que o foco seja a divulgação da música para a venda, tornouse possível criar uma identificação que acrescenta um “algo mais” a ela, sem redundâncias. O enfoque deste tópico será a criação dos personagens, cenários e as narrativas nas quais estes se inserem (situações) nos vídeos musicais. Os itens analisados (narrativas, cenários e personagens) destes videoclipes são os elementos principais do trabalho criativo de pré-produção que implicarão na construção da imagem veiculada, além de carregarem consigo a imagem mercadológica que a banda necessita – o que não excluirá de forma alguma os outros elementos necessários para a realização da obra (como a composição dos planos, a montagem, a edição de som etc.). Comumente os videoclipes são obras que possuem narrativas não-lineares e híbridas (no sentido de misturarem dentro da mesma obra imagens de origens diferenciadas como imagens videográficas, vetorizadas, filmadas em super-8, etc.) constituídas de cortes rápidos que “encavalam” diversas histórias que podem ou não estarem conectadas por algum elo narrativo, essas características não são, via de regra, para todos os videoclipes, mas tem grande incidência em diversas obras. Consideramos apropriado fazer uma breve classificação acerca das narrativas de maior ocorrência nos videoclipes, através da qual já poderemos ter alguma idéia de inserção de personagens, como podemos ver a seguir:
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– performances de bandas Foram os temas dos primeiros vídeos musicais, que provinham de apresentações em programas televisivos ou os próprios shows dos artistas. – narrativas com personagens externos à banda Geralmente, geram sequências mais ou menos lineares, gerando histórias com a ordem tradicional de início, meio e fim. – narrativa com personagens de membros da banda Na maioria das vezes, esses integrantes são retratados dentro de um cenário especial representando personagens, muitas vezes, aliada à performance de alguma banda da ficção. – narrativas visuais experimentais (videoarte) Ligados à videoarte geralmente possuem narrativas de difícil entendimento, que dão margem a diversas interpretações possíveis. Podem conter imagens desconexas entre si, agir em discordância com o som da música. Não possuem o compromisso de mostrar o artista ou banda. – híbridos São uma mistura de duas ou mais das classificações citadas acima. Atualmente é um dos estilos mais utilizados nos videoclipes. Nos videoclipes, os cenários e objetos de cena precisam ser bem distribuídos, devido às limitações técnicas do vídeo, que pedem planos mais fechados e solicitam uma quantidade menor de objetos, como veremos posteriormente. Por esse motivo, os diretores procuram exibir imagens de ambientes com cores vibrantes e de alto contraste, para que o espectador consiga distinguir rapidamente os objetos e ambientes, porém, de acordo com o que já dissemos anteriormente, esta não é uma regra, apenas uma condição que figura em diversas obras dessa categoria.
3. Ferramentas para a construção das narrativas: os elementos técnicos do vídeo Os elementos técnicos utilizados pelos videastas são muitos semelhantes aos dos cineastas, salvo em respeito a algumas características do vídeo as quais é necessário levar em consideração. Um dos aspectos mais lembrados nesse quesito é a diferença do tamanho da tela de cinema e da tela televisiva, motivo pelo qual os planos dessa costumam ser mais fechados e com menos elementos nele inseridos. Atualmente, a tecnologia nos oferece uma maior gama de recursos mas, na década de 1990, existiam ferramentas mais precárias do que as atuais. Podemos notar neste trecho retirado do livro de Arlindo Machado, tais características que vigoravam na década de 1990. Em primeiro lugar, e como já nos havíamos referido no início, a imagem de vídeo – pelo menos a atual imagem do vídeo, aquela que é obtida nos
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níveis atuais de tecnologia – tem uma definição precária, em consequência do número de linhas de varredura que comporta. Trata-se de uma imagem inadequada para anotar informações abundantes, e na qual a profundidade de campo é continuamente desmantelada pelas linhas de varredura. O vídeo é uma tela de dimensões pequenas, entendendo-se por tal uma tela em que se pode colocar pouca quantidade de informação, já que há sempre o perigo de uma imagem demasiado abundante se dissolva na chuva de linhas de varredura. Multidões em plano geral são motivos pouco adequados ao vídeo, assim como são inadequados os cenários amplos e as decorações muito minuciosas, pois todos esses motivos se reduzem a manchas disformes quando inseridos na tela pequena. (MACHADO, 1997: p. 193 e 194)
O uso bem feito dos movimentos de câmera produz efeitos formidáveis, e esse, aliado ao corte e transições adequados, ajuda a dar ritmo às obras. Podemos dizer que há uma função encantatória dos movimentos de câmera que corresponde, no plano sensorial (sensual), aos efeitos da montagem rápida no plano intelectual (cerebral). (MARTIN, 2007: p. 47)
O videoclipe e os vídeos experimentais levaram esses artifícios às últimas instâncias, quebrando diversos paradigmas tais como regras de enquadramento, pontos de vista, simetria e movimentos de câmera. Os movimentos de câmera podem ser divididos em três qualidades, segundo Marcel Martin em seu livro A Linguagem Cinematográfica. Em resumo, são elas: – panorâmica: rotação da câmera em torno de seu eixo vertical ou horizontal (transversal), sem deslocamento do aparelho. – travelling: movimento durante o qual permanecem constantes o ângulo entre o eixo ótico e a trajetória do deslocamento – trajetória: é a mistura indeterminada do travelling e da panorâmica efetuada com o auxílio de uma grua. (MARTIN, 2007: p. 47) Todos esses movimentos têm suas variações e cada qual pode ser utilizado para “escrever” com a câmera mensagens subjetivas ao espectador. Um certo número de fatores cria e condiciona a expressividade da imagem. Esses fatores são, numa ordem que vai do estático ao dinâmico: os enquadramentos, os diversos tipos de planos, os ângulos de filmagem, os movimentos de câmera. (MARTIN, 2007: p. 35)
Da mesma forma, os enquadramentos podem sugerir dados expressivos aos vídeos, e são usados frequentemente de forma díspar ao uso tradicional. Aqui ressalvamos algumas funções de dois enquadramentos bastante utilizados nos vídeos:
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A contra-plongée (o tema é fotografado de baixo pra cima, ficando a objetiva abaixo do nível normal do olhar) dá geralmente uma impressão de superioridade, exaltação e triunfo, pois faz crescer os indivíduos e tende a torná-los magníficos, destacando-os contra o céu aureolado de nuvens. (…) (…) A plongée (filmagem de cima pra baixo) tende, com efeito, a apequenar o indivíduo, a esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele um objeto preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade. (MARTIN, 2007: p. 41)
4. A organização das narrativas: a edição e a montagem A edição e a montagem de um material audiovisual são utilizadas para a organização do material filmado; esses procedimentos adicionam sentido à obra, como já disse Einsenstein em seu livro O Sentido do filme (1990). Essas etapas fazem parte da pós-produção, e nos videoclipes são super evidenciadas, pois, em sua maioria, são os cortes e as transições que adicionam o ritmo ao vídeo. Como já citado anteriormente, nos videoclipes é comum que a ordem de diversas narrativas seja organizada de forma não-linear e podem ter ou não um elo narrativo que as unirá. Os cortes e as transições que unem os diversos núcleos da narrativa são rápidos, muitas vezes, alucinantes. Para finalizar este tópico nos resta discorrer brevemente sobre as animações e os efeitos gráficos relativos à edição que, em videoclipes, são praticamente indispensáveis. A maioria dos videoclipes de cunho experimental possui essas inserções; mesmo em outras categorias de vídeos esses recursos tornam-se indispensáveis para conferir às obras o caráter lúdico e extraordinário das imagens.
5. Estudos de caso: duas traduções das imagens do Mangue Agora iniciaremos os estudos através dos videoclipes escolhidos mas, antes de cada uma das análises, notaremos alguns pontos em relação à gravação das músicas em estúdio e alguns atritos que ocorreram entre banda e gravadora nessa época. Inicialmente, ressaltaremos a dificuldade de prazos que a banda sofreu para finalizar sua primeira música de trabalho, Manguetown. Paulo André1 desconversa. Ele diz que a Sony atrapalhou mesmo ao se intrometer demais no marketing da banda. Segundo o empresário, o atropelo teria começado com o Hollywood Rock, que aconteceu em janeiro de 1996, com atrações como Robert Plant e Jimmy Page, Black Crowes, White Zombies, Smashing Pumpkins e The Cure. Chico Science era um dos raros nomes nacionais. Houve uma correria para finalizar “Manguetown” antes do
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Paulo André era o empresário da banda na época.
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disco. “Prensamos o single pras rádios e gravamos um clipe com o Gringo Cardia”, lembra Paulo. (RIBEIRO, 2006: p. 45)
Em uma análise rápida, podemos perceber que Gringo Cardia em Manguetown, videoclipe elogiadíssimo até os dias atuais, preza pela sofisticação cenográfica, inclusive, é impressionante pensar sobre o relato acima e ver que o videoclipe deve ter sido feito em um ritmo muito acelerado. A escolha das cores fortes e a exclusão total de cenários naturais denotam a construção de um mundo especial e exclusivo para o videoclipe, no qual as formas foram cuidadosamente confeccionadas para a inserção de suas personagens. Notável, também, é que até a “lama” e o “lixo” da periferia, que a letra da música sugere, são representados de forma visual; o lixo aparece na forma de poluição visual gerada pelas diversas placas amontoadas do lado de fora da janela da sala cenográfica, e a lama é gerada por grafismos de computador em um cenário separado. Os lugares insólitos possíveis ou impossíveis ao mundo real são criados através de brincadeiras gráficas com as formas. A câmera realiza movimentos oblíquos, panorâmicas e travellings são frequentes e as imagens sempre estão fora de eixo, descentralizadas na tela, o que nos parece uma tentativa de conferir ritmo ao vídeo através das imagens. Existem experiências cinematográficas anteriores realizadas nesse sentido conforme nos conta Martin: Ao lado dessas funções descritiva e dramática, pode-se definir uma terceira, evidenciada nos filmes de Alain Resnais e Jean Luc Godard, que poderia ser qualificada de função rítmica. Em Acossado, a câmera permanentemente móvel, cria uma espécie de dinamização do espaço, que se torna fluido e vivo ao invés de um quadro rígido: os personagens dão a impressão de estar sendo arrastados num bailado (quase se poderia falar em uma função coreográfica da câmera, na medida em que ela é que dança); por outro lado, os movimentos constantes da câmera, modificando a todo momento o ponto de vista do espectador sobre a cena, cumprem um papel parecido com o da montagem e acabam por conferir ao filme um ritmo próprio, que é um dos elementos essenciais de seu estilo. (MARTIN, 2007: p. 46)
Além desses movimentos oblíquos da câmera (instabilidade), Cardia ainda usa transições em fade in e luzes semelhantes às estroboscópicas (que supostamente provêem da televisão da sala) para atribuir ritmo. Talvez, por isso mesmo, o corte e as transições deste videoclipe não sejam tão rápidos, já que não apenas esses itens estejam encarregados de conferir o ritmo ao vídeo. O cenário da sala, em um momento, mostra um helicóptero de brinquedo confeccionado a partir de latinhas do refrigerante Coca-cola. Esse elemento pop tem destaque na cena. A roupa do caboclo de lança do maracatu, permanece sempre pendurada em um mancebo, em um canto da sala. Os integrantes da banda são retratados como um grupo de amigos em uma reunião cotidiana na casa de um deles; diversas vezes aparecem de torso nu, deitados no sofá, bebendo e assistindo à televisão. Em uma cena aparece uma estante branca cheia de produtos de difícil identificação em seus compartimentos, uma cena que lembra lojas chiques, sofisticadas e de produtos “pasteurizados”. Em outro momento Gringo cria um ‘Mangue’ e introduz a figura feminina na forma de uma mulher com um cabelo
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em corte black Power; talvez ali ele esteja fazendo referência a ritmos de origem negra mundializados como o hip hop e o funk, algumas das influências da banda. O videoclipe não possui performances de shows ou performances instrumentais da banda. Em Manguetown existe certa economia de personagens e uma profusão maior de cenários; existem por volta de 16 núcleos diferentes encadeados que se repetem ao longo do videoclipe, sendo que, desses, 10 núcleos possuem cenários digitais ao fundo, diversas vezes repetidos em outros momentos com distorções e multiplicação de seus elementos ao longo da obra. Podemos ver abaixo uma breve organização desses núcleos, para leitura: Núcleos de representação e personagens (por ordem de aparição): 1 Besouro empalado com tela digital ao fundo 2 Placas cenográficas (lixo, sujeira) = imagem com efeito negativo em sua coloração 3 Placas cenográficas (lixo, sujeira) = imagem sem efeito, luz verde 4 Sala da casa 5 Esfera com lama cenográfica ao fundo 6 Placas com efeitos digitais 7 Floresta ou bosque cenográfico e integrantes com roupas de luz 8 Cenário digital de “minhoca” preta e vermelha com fundo azul 9 Cenário digital de “minhoca” preta e vermelha e ao fundo estante branca digital 10 Cenário de estante com elementos brancos 11 Cenário digital de “minhoca” preta e vermelha e ao fundo estante branca digital duplicado 12 Cenário digital de “broca” preta e amarela e ao fundo estante branca digital 13 Cenário digital de “broca” preta e amarela e ao fundo estante branca digital duplicados 14 Cenário digital de “minhoca” preta e vermelha e ao fundo estante branca digital quadriplicado 15 Cenário digital psicodélico com imagens abstratas espelhadas 16 Cenário digital psicodélico com imagens rosto de personagem ao fundo A multiplicação dos itens de forma orgânica ao longo do clipe, nos faz pensar que Cardia faz, nestes momentos a sua leitura super estilizada da diversidade do mangue. Já no caso das estantes se duplicam, Gringo talvez tente nos passar uma menssagem simbólica a respeito da expansão do consumismo. As personagens construídas por Gringo são, basicamente, os integrantes da banda agindo de forma descontraída. Em todas as situações nas quais elas estão inseridas percebemos que são as mesmas personagens produzidas especialmente para o vídeo; em outra situação, há também uma personagem feminina externa à banda, conforme já citado. A classificação da narrativa deste videoclipe se enquadra em narrativas híbridas, pois possui personagens internos e externos à banda, além de uma narrativa visual experimental e estilizada, feita através da inserção de imagens computadorizadas. À respeito de Maracatu Atômico, pelo trecho que se segue abaixo notamos o poder de interferência da gravadora, primeiro exigindo a entrada dessa música no álbum, e
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depois inserindo versões remixadas por outros artistas no final do álbum sem o conhecimento da banda. Com a idéia de incrementar o apelo comercial de “Afrociberdelia” surgiu a idéia de incluir uma versão de “Maracatu Atômico”, composta por Jorge Mautner e Nelson Jacobina em 1972. A primazia da sacada é discutida. “Eu tive a idéia, achava que tinha tudo a ver”, fala BiD. “A música foi idéia minha! BiD foi quem mais colocou resistência”, defende Davidson. O produtor, contudo, tem outra história: “Meu plano original era usar um sampler de ‘Get Up Upon the Sun’, dos Smiths, mas não conseguimos a liberação e chegamos a desencanar da versão”. Segundo Lúcio Maia, o disco já estava longo demais, e banda e produtor acharam que não seria necessário incluir mais uma música. Mas o diretor artístico insistia em “Maracatu Atômico”, e pediu que a banda gravasse mesmo sem o sample e sem a presença de Jorge du Peixe, que estava em Recife finalizando a arte do CD. “A companhia acreditava no trabalho da banda, mas com essa música teria mais abertura em rádio”, explica Davidson. “Aí, não satisfeita, inventaram os remixes”, detona Paulo André. (RIBEIRO, 2006: p. 45)
Na versão audiovisual de Maracatu Atômico, Raul Machado usa o mundo para construir sua obra. Ele aproveita as ruas e os campos abertos. A preferência aqui é por cenas externas com iluminação natural, utilização de materiais orgânicos, como a lama, para a caracterização das personagens; nota-se também uma forte influência do estilo hip hop e da arte de rua, através da gestualidade de suas personagens. Raul se preocupa em regionalizar o videoclipe, com muitas cenas dos integrantes vestidos como caboclos de lança do maracatu; existem cenas que parecem até agressivas ou simulações de luta, nas quais Chico e seus companheiros agitam suas lanças com vigor em direção à câmera. A parte tecnológica se restringe a poucos momentos como naquele em que Chico, com o corpo sujo de lama, tem o símbolo @ em seu peito, e outro, no qual uma pequena inserção digital escurece o céu de algumas cenas. Raul mostra diversas performances da banda em shows, tocando seus instrumentos, cantando e dançando. As locações do clipe foram o próprio Recife antigo e Olinda. Evidente é a economia de núcleos narrativos no encadeamento das imagens (e a economia de cenários também), a pouca mobilidade da câmera (praticamente estática nos planos), a profusão das personagens (o desdobramento dessas em diversas facetas: caboclos de lança, catadores de caranguejo, músicos, dançarinos, urbanóides), a rapidez dos cortes (que dão ritmo à obra), o revezamento incomum de diversos plongées e contraplongées e a falta de distorção nas imagens produzidas via computador, e sim através das lentes e ângulos de câmera. Abaixo, é possível observar o número reduzido de núcleos de representação que Machado utiliza neste vídeo: Núcleos de representação e personagens (por ordem de aparição) 1 Caboclos de lança (céu escurecido digitalmente) 2 Homens cobertos de lama no lamaçal 3 Portaria (enquadramento contra-plongée)
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Caboclos de lança (luz natural) Performance de show (preto e branco) Chico (em lente olho-de-peixe) Performance de show (colorido)
A classificação da narrativa desse videoclipe se enquadra na categoria híbrida também, pois possui a narrativa com personagens, com os membros da banda, combinada com imagens da performance da banda. Nessas duas obras produzidas para músicas do mesmo disco e da mesma banda existem expressões de ideologias completamente diferentes, ou seja, as obras carregam em si visões completamente distintas sobre o mesmo tema: uma mais ‘clean’/artificial, a outra mais ‘chão’/natural, para sintetizarmos suas expressões básicas. Os traços do mundial/global e do regional existem nas duas obras, em graus de intensidade diferentes. Na obra de Gringo Cardia, os traços de mundialização aparecem bem fortalecidos (o que não significa que seja um clipe descaracterizado), pode-se notar com clareza o esforço do diretor para a “suavização” de diversos elementos incomuns à cultura vigente/nacional. A ausência dos tambores e da “energia” que eles transmitem à banda, que aparecem em um breve momento; a roupa de caboclo de lança, personagem tradicional do maracatu, não sai de seu lugar e nem é usada em nenhum momento, parece-nos que a sua função é apenas decorativa; a lança do caboclo também não aparece em nenhum momento da ação. Em compensação, o mundo que Cárdia constrói para este clipe é belíssimo e vibrante, seus cenários e personagens parecem saídos de um mundo fantástico, de sonhos – da arte. Compreende-se claramente a importância que este diretor-cenógrafo dirige a uma estética diferenciada, super elaborada e com sua marca pessoal. Por outro lado, na obra de Raul Machado, esses traços regionalizados emergem de forma mais crua e visceral; parece-nos que a sua preocupação é a de mostrar a relação do Maracatu com a cidade de Recife, a lama, a performance da banda. O aspecto de maior importância, que contém traços mundializados, são as cenas em que Chico canta ao lado de outros integrantes da banda, em frente a uma portaria; a gestualidade deles e o posicionamento da câmera em um contre-plongée remetem à linguagem do rap e do hip hop americanos, assemelham-se muito à gestualidade de videoclipes da banda Beastie Boys e diversas outras que atuam nas grandes gravadoras. Aqui nessa obra, achamos nós que Raul trabalha com os elementos mundializados principalmente através da edição e ritmo acelerado de seu videoclipe; a linguagem serve como elemento/veículo global de comunicação. Para uma conclusão, ainda provisória, depois dessas análises, ressaltamos que já foi possível perceber rastros da assinatura pessoal de cada um dos diretores e a visão que cada um deles demonstrou possuir a respeito do Manguebeat. Enquanto Gringo Cárdia se esforça em favor da estetização, através da cenografia e grafismos digitais, e preza pela suavização dos elementos extremamente regionalizados, não pensando em uma forma de podá-los, e sim de “domesticá-los”, torná-los atraentes às novas gerações, dando-lhes nova roupagem estética, única e pessoal (semelhante ao que Chico fez ao maracatu), Raul Machado pensou externar a face mais crua dos elementos regionais, esteticamente falando, sua preocupação foi a de apreender a energia, a vitalidade e o frescor dessa nova/ antiga tradição que surgia, conferindo-lhes, através do corte e da edição, as sua características pessoais.
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8. Artigos eletrônicos BRITTOS, Valério Cruz e OLIVEIRA, Ana Paola de. MTV, sucesso musical e cena alternativa. Artigo, 2005. Disponível em: http://revistas.ufg.br/index.php/musica/article/view/1874/2373. Acesso em 22/06/2009.
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LIMA, Mariana Mont’Alverne Barreto. O específico mercado brasileiro de música gravada e a nova economia musical mundial. Artigo, 2008. Disponível em: http://www2.faac.unesp.br/pesquisa/lecotec/eventos/ulepicc2008/anais/2008_Ulepicc_0729-0744.pdf. Acesso em 24/06/2009. KISCHINHEVSKY, Marcelo. Manguebit e novas estratégias de difusão diante da reestruturação da indústria fonográfica. Artigo, 2006. Disponível em: http://www.uff.br/ciberlegenda/ gt2_marcelok.pdf. Acesso em 27/06/2009.
* Fernanda Carolina Armando Duarte é bolsista CAPES – REUNI, mestranda do Programa de Pós-graduação em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos – SP, no qual desenvolve o trabalho de pesquisa intitulado O Videoclipe brasileiro pelo viés do Manguebeat: a contribuição do diretor, orientada pela Profa. Dra. Josette Monzani.
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O documentário Let it be como registro de processo de criação coletivo dos Beatles ANA PAULA CAPPELLANO*
Resumo: O seguinte artigo tem como objetivo descrever o percurso metodológico do estudo “O caso Let it be: o documentário como registro de processo de criação musical”, que tomou o filme documentário como um registro de processo de criação musical e coletivo do grupo britânico The Beatles. Pontua-se os vários desafios encontrados no desenvolvimento do trabalho: como a crítica de processos e o conceito de redes da criação da obra de arte – de Cecília Almeida Salles – serviram de suporte teórico para a pesquisa, para a composição do dossiê e sua análise. PALAVRAS-CHAVE: LET IT BE, PROCESSOS DE CRIAÇÃO, REDES DE CRIAÇÃO The documentary Let it be as a record of the collective process of creation by The Beatles Abstract: The following article aims at describing the methodological itinerary of the study “The Let it be case: the documentary as a record of the process of musical creation”, a film about the process of music creation by the British pop group The Beatles. The various challenges encountered in developing the work are highlighted; Cecilia Almeida Salles’ analysis of processes and networks of creation served as a theoretical support for research and for the composition and analysis of process documents. KEYWORDS: LET IT BE, PROCESSES OF CREATION, NETWORKS OF CREATION
Introdução A crítica de processos lida hoje com os mais diversos tipos de arte e atravessa um período em que o interesse pelos processos de criação artística cresce entre a comunidade artística, acadêmica e crítica, na imprensa e no público. São inúmeras as exposições, os eventos e projetos culturais pautados pela abordagem de processo e o crítico ou pesquisador se depara com um universo criativo em expansão, onde a ideia de “manuscrito” vai além dos rascunhos, esboços ou anotações em papel que guardam momentos do percurso criativo de uma obra de arte e revelam o pensamento criador em ação. Quando o olhar da crítica se volta às obras contemporâneas, em diálogo constante com as linguagens midiáticas, e aos produtos da indústria cultural, com suas conflituosas relações entre arte e mercado, o pensamento sobre processos de criação artísticos se abre
Ensaio – testando músicas novas
à incorporação de novas ferramentas, novos recursos e novas possibilidades de se criar e de se debruçar sobre percursos criativos. Uma vez absorvidas as linguagens e a cultura da mídia e as tecnologias de produção e reprodução, como vemos nos processos de criação da música pop e do cinema, entre outros, elas passam a fazer parte também dos estudos de processo.
O caso Let it be Em 1969, a já consagrada banda de rock britânica The Beatles reuniu-se para a realização do último projeto do grupo antes da separação, o décimo segundo álbum, Let it be. São muitas as particularidades do projeto, que se estendeu pelo mês de janeiro de 1969 e só se concluiu um ano depois, com o lançamento do álbum e do documentário Let it be, no Reino Unido, em 8 de maio de 1970. Durante um mês, os Beatles se reuniram no Twickenham Film Studios e no estúdio no sótão da sede da Apple, selo da banda, em Londres, para tocar e ensaiar novas músicas para uma série de apresentações ao vivo, depois de cerca de dois anos afastados dos palcos. A ideia dos shows foi abandonada, mas a banda continuou as sessões de ensaios, agora com a intenção de gravar um álbum “ao vivo”, inicialmente batizado de Get Back, sem os efeitos de produção em estúdio que caracterizaram os trabalhos anteriores do grupo. O projeto que começou em janeiro de 1969 e só teve um fechamento um ano depois inclui a produção do documentário Let it be. Durante os ensaios e sessões daquele mês, a banda foi acompanhada por uma equipe de filmagem que registrou todo o processo do que veio a ser a última produção para os cinemas com o quarteto. O documentário, a
George Harrison falando de uma música durante ensaio
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princípio filmado para exibição na tevê, foi lançado em maio de 1970, depois da separação da banda, junto com o álbum Let it be. Quarenta anos depois, em pesquisa sobre o processo de criação da música pop, o termo se referindo à música criada no seio da Indústria Cultural, (ADORNO; HORKHEIMER, s/d) o documentário foi tomado como um registro audiovisual de processo criativo dos Beatles, buscando analisar, a partir do material registrado em imagens e som no filme, os principais aspectos que caracterizaram o projeto na perspectiva da crítica de processos.
Percurso de pesquisa e dossiê de documentos de processo O estudo “O caso Let it be: o documentário como registro de processo de criação musical” fez parte da pesquisa “Processo de criação da música pop e expansão dos registros de processo: o caso Let it be – The Beatles”, desenvolvida como dissertação de mestrado na PUC – São Paulo, defendida em maio de 2010, e tomou o filme como um registro de processo de criação musical e coletivo dos Beatles. Desde o início, vários desafios foram impostos,
Gravando ao vivo
tanto em termos de suporte teórico, quanto em termos práticos, no que toca à composição do dossiê de documentos de processo. As pesquisas do formato audiovisual como registro de processos criativos ainda são incipientes e por isso o estudo de Let it be se fez, principalmente, como uma experiência crítica. A dissertação partiu da abordagem da crítica de processos para estudar a música pop através de seu processo criativo e de sua relação com a expansão dos estudos de processo. Entendendo o processo de criação da música pop como uma rede complexa, (MORIN, 2000) procurou-se fazer um percurso de pesquisa que desse conta, pelo menos em parte, de abarcar alguns dos principais aspectos envolvidos na discussão do objeto de análise escolhido e que apontasse caminhos para futuras pesquisas na linha de processos de criação, a partir de possíveis generalizações. Assim, o filme Let it be foi escolhido como estudo de caso por parecer funcionar como um registro de processo criativo do grupo e direcionou todo o desenvolvimento da pesquisa, suscitando questões que pareceram fundamentais para a análise do processo de criação dos Beatles, como exposto pelo documentário, e do processo de criação da música pop, de maneira geral. A leitura crítica do processo documentado em Let it be foi feita considerando o processo de criação da obra de arte como rede, com base nas pesquisas de Cecília Salles,
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principalmente em Redes da criação – Construção da obra de arte, (2006) e tendo como referências teóricas o trabalho de Vincent Colapietro, (2003) que discute o sujeito criativo historicamente, culturalmente e socialmente localizado, e a teoria da complexidade de Edgar Morin, (1998; 2000) para contextualizar o documentário Let it be e os Beatles num ambiente de efervescência cultural. São identificados os principais aspectos que caracterizaram aquele momento do processo criativo flagrado no documentário: interações, interferências, interlocução – colaboração e relação de linguagens, memória, escolhas e critérios, experimentação, consciência de processo, processo coletivo. A metodologia utilizada foi a da crítica genética (SALLES, 2007) e se procurou montar um dossiê de documentos de processo. Lembrando que a idéia de manuscrito muda e se expande quando os objetos de estudo saem da esfera dos estudos literários, os primeiros materiais de análise a integrar o dossiê foram três cópias alternativas do documentário, já que não foi possível obter uma cópia original (retirada de circulação e esgotada nas distribuidoras, inclusive nas internacionais) – duas obtidas em coleções particulares e uma digitalizada a partir de uma fita VHS disponível na biblioteca da PUC-SP. As cópias alternativas, por oferecerem qualidade de som e imagem em muito superiores
Harrison apresenta uma música a Starkey
à da cópia original digitalizada, foram as mais utilizadas para o estudo do filme. Depois das cópias assistidas, outros materiais, incluindo audiovisuais, foram pesquisados e entraram para o dossiê de documentos de processo. Assim, o dossiê incluiu: três cópias do documentário Let it be (LINDSAY HOGG; ASPINALL; BEATLES, 1970); Let it be mini-documentary (incluído como bônus no álbum remasterizado digitalmente e lançado em 2009), com cenas cortadas da versão final do documentário original e comentários off dos integrantes dos Beatles sobre o projeto do álbum; o álbum The Beatles Anthology 1, de 1995, com trechos de sessões de gravações de músicas do início da carreira da banda em estúdio; o álbum Let it be, de 1970; o álbum Abbey Road, de 1969; o álbum With the Beatles, de 1963; a entrevista de John Lennon concedida à revista Rolling Stone em 1971; uma reportagem de capa, publicada pela mesma revista, em 2009, sobre a separação dos Beatles, que destaca Let it be como um dos “momentos do fim”; as legendas traduzidas do documentário Let it be, transcritas durante a pesquisa; capítulos do livro The Beatles: a biografia. (SPITZ, 2007) A pesquisa teve início com a obtenção do documentário, primeiro documento de processo considerado no dossiê, tomado como o registro audiovisual do processo de criação coletivo dos Beatles e dos álbuns Let it be, Let it be… Naked e Abbey Road. Partindo
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Harrison apresenta uma nova música a produtores
deste documento principal – objeto de análise da pesquisa sobre o processo de criação da música pop e sobre a expansão de registros de processo –, foram sendo buscados outros materiais que pudessem informar sobre o processo e que, relacionados ao objeto de análise e entre si, teceram uma rede complexa de informações sobre o processo criativo registrado no documentário Let it be. Pode-se dizer, então, que o dossiê foi sendo composto durante toda a pesquisa. Quanto ao tipo de material tomado como documento de processo, é importante destacar que, desde o início, o acesso a informações históricas sobre o objeto de análise e o acesso ao próprio objeto foram um fator de complicação. Dado o caráter da obra em questão, o dossiê de documentos de processo foi composto por material obtido, em grande parte, nos arquivos de banco de dados de imprensa, ou seja, coletados entre aquilo que foi produzido na grande mídia, publicados em jornais, revistas e internet. A legitimidade desses documentos foi relativizada e se considerou a credibilidade dos veículos nos quais foram publicados. Foi o caso das biografias dos Beatles, matérias e entrevistas em revistas e cadernos de jornais especializados, encartes de álbuns dos Beatles, página oficial do grupo na internet e o site Wikipedia. O último serviu de fonte de informações de caráter mais geral e prático, como dados cronológicos, alguns nomes e pormenores da carreira do grupo britânico. O fato de se tratar de material por um lado produzido pela imprensa e por outro pelo público levantou mais uma questão para a crítica de processos, a da necessidade de lidar com objetos de estudo, obras de arte, que não se legitimam apenas pela literatura acadêmica, mas pela inserção na mídia. As informações produzidas por mídia e público, lembrando que a internet tornou-se espaço de compartilhamento mundial de informações, acabam sendo as maiores fontes de documentação sobre as obras produzidas na
Ao vivo no telhado – grupo apresenta novas músicas
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indústria cultural, em total concordância com a natureza das mesmas. A falta de outras fontes de pesquisa e a dificuldade de acesso a informações “oficiais” acabam por autorizar tais fontes alternativas. Como mencionado anteriormente, o principal documento de processo é o próprio objeto de estudo da pesquisa, o documentário, e foi dali que se tirou a maioria das informações sobre o processo de criação coletivo dos Beatles. Entretanto, as imagens que registram o ato de criação no momento em que acontece, de forma viva, também têm seus limites, inclusive técnicos. Pela edição original do diretor Michael Lindsay-Hogg e pelas técnicas de captação na época das filmagens de Let it be, alguns diálogos, por exemplo, são difíceis de precisar e alguns agentes do processo difíceis de identificar. Estes limites poderiam, num primeiro momento, de alguma forma, influenciar a análise do processo, induzindo a falsas interpretações, causadas por alguma falha de leitura das imagens ou das falas dos “atores” do processo filmado. O percurso de pesquisa mostrou, no entanto, que esses limites são parte do estudo de registros de processos de criação e não diminuem o valor e a relevância do documentário como um registro e documento de processo de criação dos Beatles. No estudo de caso de Let it be, lidamos com um objeto de natureza diversa daquela consagrada pelos estudos da crítica genética. Em primeiro lugar, o documentário registra o processo de criação de uma obra não-canônica, a música contemporânea, não-erudita. Por isso, num primeiro momento, para se poder entender o documentário como registro de processo e estudá-lo, mais especificamente, como registro de processo criativo musical dos Beatles, foi de fundamental importância contextualizar a ideia dessa música, chamada na pesquisa de música pop – aquela produzida na dinâmica da Indústria Cultural –, (ADORNO; HORKHEIMER, s/d) assim como os próprios Beatles e sua obra, na cultura de uma “imagem musical”. Assim, a pesquisa abordou o surgimento de novas mídias e formatos, desde o desenvolvimento da técnica de gravação eletrônica, que para a música representou a expansão dos registros de processo de criação, antes guardados às notações das partituras, até a chegada das tecnologias digitais, com a chegada do DVD ao mercado e a produção doa making-ofs, passando pela experimentação da linguagem cinematográfica como forma de registro de processos criativos por artistas da música. Tudo isso para se chegar a uma leitura do documentário dos Beatles como registro de processo de criação. As teorias da complexidade de Edgar Morin, os estudos de Vincent Colapietro e, especialmente, a teoria das redes de criação da obra de arte de Cecília Almeida Salles, assim como suas pesquisas sobre o making-of, nortearam toda a análise.
Billy Preston – colaboração
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Conclusões O estudo do documentário Let it be como um registro de processo mostrou-se profícuo numa abordagem de processo da música pop, de uma forma generalizada e, mais especificamente, da obra – os três álbuns já mencionados – dos Beatles. O filme mostra a banda ensaiando, tocando pela primeira vez algumas composições novas, compondo outras, e podemos testemunhar a obra num momento embrionário, ainda sendo lapidada, experimentada, sem acabamento, enfim, em processo. Podemos ver os sujeitos criadores – os integrantes do grupo – em diálogos e discussões sobre a obra, sobre aquele projeto e outros, e em momentos de descontração e tensão, entre eles e com outros sujeitos externos e internos ao processo, como técnicos de som, produtores, empresários, artistas convidados e familiares. Foi justamente nos momentos de interação do grupo – seja em conversas ou tocando – que se obteve o maior volume de informação sobre o processo criativo coletivo dos Beatles e se buscou a reflexão sobre o mesmo. Dessa forma, o documentário veio de encontro às reflexões abordadas na pesquisa desenvolvida sobre o processo de criação da música pop e pôde ser entendido como um registro no formato audiovisual do processo de criação coletivo da banda britânica. As cenas do filme dirigido por Michael Lindsay-Hogg, ainda que nos limites e na parcialidade da montagem cinematográfica, permitiram fazer uma leitura de processo dos álbuns Let it be e Let it be… Naked, além de músicas do penúltimo – ou último lançado antes do grupo se separar – disco dos Beatles, Abbey Road.1 Foi possível, a partir da análise do registro do documentário, fundamentada no conceito de redes de criação, na relação com o estudo de todos os outros documentos de processo que fizeram parte do dossiê, chegar a algumas conclusões sobre o processo de criação dos Beatles, naquele momento: 1 O processo coletivo flagrado pelo documentário acontece na interação de quatro sujeitos criadores individuais, subjetivos e distintos, mas que, atuando para a realização de um projeto poético em comum determinado, formam um núcleo criativo. O núcleo criativo, por sua vez, opera em constantes interações com agentes internos – produtores, técnicos e artistas colaboradores – e externos – familiares, amigos, empresários e executivos da gravadora – ao processo e em tensão contínua gerada pelos embates da individualidade criativa e artística de cada integrante da banda e do núcleo criativo e seu projeto poético com as exigências mercadológicas da dinâmica da indústria fonográfica e os interesses da gravadora; 2 Como todo projeto artístico, Let it be começa com uma tendência e vai se organizando ao longo do processo de criação. Os objetivos pouco claros no início 1
Faixas dos álbuns: Let it be: 1 - “Two of us”, 2 - “Dig a pony”, 3 - “Across the universe”, 4 - “I me mine”, 5 - “Dig it”, 6 - “Let it be”, 7 - “Maggie Mae”, 8 - “I’ve got a feeling”, 9 - “One after 909”, 10 - “The long and winding road”, 11 - “For you blue”, 12 - “Get back”; Abbey Road: 1 - “Come together”, 2 - “Something”, 3 - “Maxwell’s silver hammer”, 4 - “Oh! Darling”, 5 - “Octopus’s garden”, 6 - “I want you (She’s so heavy)”, 7 - “Here comes the sun”, 8 – “Because” , 9 - “You never give me your money”, 10 - “Sun king”, 11 - “Mean Mr. Mustard”, 12 - “Polythene Pam”, 13 - “She came in through the bathroom window”, 14 - “Golden slumbers”, 15 - “Carry that weight”, 16 - “The end”, 17 - “Her majesty”; Let it be… Naked: 1 - “Get back”, 2 - “Dig a pony”, 3 - “For you blue”, 4 - “The long and winding road”, 5 - “Two of us”, 6 - “I’ve got a feeling”, 7 - “One after 909”, 8 - “Don’t let me down”, 9 - “I me mine”, 10 - “Across the universe”, 11 - “Let it be”.
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das filmagens do documentário foram sendo moldados ao longo do percurso criativo, sendo ajustados de acordo com decisões de caráter artístico e outras de caráter prático, ligadas aos mais diversos interesses da banda, de seus integrantes e ainda dos empresários e da gravadora. O processo, feito de idas e vindas, começa oficialmente em 1969 e só chega a uma de suas possíveis versões finais, aquela entregue ao público, no ano seguinte, com o lançamento simultâneo do documentário Let it be nos cinemas e do álbum homônimo, reproduzido pelo produtor Phil Spector; 3 Em Let it be pode-se flagrar, em imagens e som, como cada integrante dos Beatles atua tanto como agente criativo, quanto como observador do processo – um do outro. Sendo o grupo composto por quatro artistas, há quatro processos criativos individuais que compõem um processo coletivo, feito de colaborações e contribuições, mas também de concessões, aprovações, reprovações e observações. Poderíamos dizer que essa seria uma característica intrínseca a todos os processos de criação coletivos, cada um dos agentes criativos atuando ora como criador, ora como observador, melhor, como um leitor intermediário, mas que cria e interfere no processo individual do outro em nome do núcleo criativo e do projeto poético coletivo; 4 Ao escolherem a linguagem imagética para registrar seu processo de criação através de uma mídia de massa, o cinema, os Beatles tornam seu processo criativo, e, assim, a reflexão sobre os mesmos, públicos. Ao contrário dos artistas geralmente estudados pela crítica genética e/ou crítica de processo, que guardam suas reflexões sobre obras em processo para a esfera do privado, numa conversa consigo próprios, os Beatles o fazem publicamente, quando o filme é lançado no cinema, concomitantemente ao lançamento do álbum. Pode-se dizer que a reflexão sobre o processo e o (re) acionamento das redes do processo de criação de Let it be foram feitos primeiro no âmbito privado da produção das músicas em estúdio, e, depois, no âmbito público, pela recepção – fãs, espectadores nos cinemas e imprensa (crítica especializada, jornalistas, mídia). O lançamento do filme e do álbum gera grande repercussão pública e midiática e os Beatles e sua obra voltam a ser assunto entre fãs e na imprensa. Há, portanto, uma reflexão sobre processo feita no universo público, considerando-se que o documentário lançado nos cinemas provoca uma discussão feita pela recepção pública da obra, ainda que levada como um testemunho do fim da banda e com uma postura próxima à do voyeur, o espectador de Let it be tendo acesso ao universo privado da banda. O documentário acaba despertando entre o público “leigo” e/ou apresentando para esse mesmo público, ao mesmo tempo, o interesse pelo processo criativo dos Beatles, e algumas questões sobre processos de criação coletivos, musical, especificamente, e artísticos, em geral, comprometidos ou envolvidos com a indústria cultural. A opinião pública, ao entrar em contato com obra – o álbum – e processo – no filme Let it be – simultaneamente, ao mesmo tempo em que desencadeia a reflexão sobre aquele processo na produção de comentários e críticas na imprensa, ao olhar da crítica de processos, o faz como parte integrante da rede de criação dos produtos da indústria cultural. O processo de criação vira assunto, mas as relações público – artista – obra – mídia
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Yoko Ono – presença constante durante as gravações de Let it be
ora estabelecidas na cultura de massa e características da produção artística da indústria cultural mediam essa reflexão. Se vemos que a banda tem consciência de processo e se questiona em termos de critérios e procedimentos durante o processo registrado em Let it be, podemos, pelo volume de informação que até hoje se produz sobre aquele processo, dizer que a reflexão dos artistas também acontece a posteriori. O fato de essas informações serem produzidas quase sempre pela mídia – matérias, reportagens e entrevistas em jornais, revistas e internet – indicam que essa reflexão acontece não apenas, mas também no âmbito público. O estudo do documentário Let it be aponta características de caráter geral dos processos de criação coletivos e da música pop – principalmente no aspecto interativo e comunicacional e nas relações com a mídia. As reflexões e análises feitas sobre o processo criativo dos Beatles no filme indicam como processos de criação coletivos podem acontecer na busca de equilíbrio entre objetivos e projetos poéticos individuais e projeto poético coletivo e como o processo criativo de artistas da música pop se desenrola no conflito entre projeto poético e produto cultural.
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SALLES, Cecilia A. Crítica Genética – Fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3a ed. São Paulo: Educ, 2007. ______. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. ______. Redes da criação: construção da obra de arte. Vinhedo: Ed. Horizonte, 2006. ______. Expansão dos documentos de processo: registros audiovisuais. Em Processo de Criação e Interações: a crítica genética em debate nas artes performáticas e visuais. Organizadores: José Cirillo e Ângela Grando. [Editor: Fernando Pedro da Silva] – Belo Horizonte: C/Arte, 2008. ______. Arquivos de criação – Arte e curadoria. São Paulo, 2009. SPITZ, Bob. The Beatles: a biografia. São Paulo: Larousse do Brasil, 2007. WENNER, Jann S. & LEVY, Joe (editores). The Rolling Stone interviews. New York: Back Bay Books, 2007.
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Ana Paula Cappellano é Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP).
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ROTEIRO DE CINEMA E CENA DRAMÁTICA considerações sobre a experiência da escrita
SÉRGIO PUCCINI*
Resumo: Esse artigo analisa a experiência da escrita do roteiro cinematográfico partindo daquilo que seria sua unidade menor: a cena dramática. São levantados alguns aspectos ligados à funcionalidade da cena dramática; citamos as concepções de alguns dos manuais de roteiro, bem como comentamos a relação entre palavra e imagem. A análise situa o processo da escrita do roteiro dentro do campo das escritas dramáticas, estabelecendo relações com o texto teatral naquilo que seriam as diferenças entre as duas formas de escrita. PALAVRAS-CHAVE: ROTEIRO DE CINEMA, TEXTOS TEATRAIS, CENA DRAMÁTICA Film scripts and dramatic scene: some thought on the experience of writing Abstract: This paper considers the experience of screenplay writing, beginning with its smallest unit – the dramatic scene –, and deals with some aspects linked to the function of the dramatic scene in a screenplay. We consider the views expressed by some script manuals, and comment on the relationship between word and image. The analysis locates the script writing process within the field of dramatic writing, establishing relationships with the theatrical text with respect to what are supposed to be the differences between the two forms of writing. KEYWORDS: SCREENPLAY WRITING, THEATRICAL TEXTS, DRAMATIC SCENE
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uito embora seja o principal documento para a organização de um produto voltado para a tela, o roteiro de cinema, na forma padrão do roteiro de ficção, se sustenta em um elemento herdado da dramaturgia de palco, qual seja, a cena dramática.1 A cena dramática, menor parte na divisão do ato de
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Em uma tentativa de se livrar da herança teatral e afirmar a autonomia do meio cinematográfico, é comum encontrarmos em roteiros e planilhas de produção, como análise técnica, ordem do dia e plano de filmagem, a substituição do termo cena pelo termo sequência. Em alguns casos, esses mesmos documentos de produção utilizam o termo cena quando fazem menção ao que seria mais conhecido como plano cinematográfico. Seja qual for a denominação adotada, a confusão está ligada somente a uma alteração de nomes que não implica em uma mudança conceitual daquilo que estamos chamando aqui como a menor parte do roteiro.
um texto teatral, vem a ser também a menor parte do roteiro de cinema em torno da qual toda a narrativa irá se articular. A cena é o elemento de continuidade dentro de uma ação maior que se estende além dos limites impostos pelas unidades de tempo e lugar. No teatro, o recurso da utilização da cena dramática, que quebra a continuidade do ato, marca uma intervenção épica, tipicamente narrativa, dentro de uma forma dramática que tem nos contornos do palco seu elemento de convergência.2 Embora frequente, a livre adoção da cena, sob o impulso de se criar nova localização espacial para a ação, é procedimento de risco no teatro. Atrelada à maior liberdade na condução e apresentação dos eventos da história, liberdade garantida pela livre manipulação do espaço e do tempo da história possibilitada pela inserção de novas cenas dentro do contínuo do ato, está a consequente quebra da cadeia dialógica. O excesso de quebras causa o esvaziamento de uma tensão dramática que no drama vem a ser preferencialmente sustentada pela progressão contínua das réplicas e tréplicas dos personagens. A cada nova cena, instaura-se uma nova situação, o que equivale a dizer que uma determinada situação dramática poderá ser alterada ou renovada pela imposição de um artifício narrativo e não por uma evolução orgânica, concebida e insuflada dentro do quadro das motivações e movimentações do núcleo dramático, expressa pelo diálogo entre os personagens. A demasiada quebra da continuidade dialógica reduz a preponderância do diálogo na consumação da tensão dramática. Muito embora as manifestações teatrais não se conformem apenas a um modelo que erige o texto como principal componente do espetáculo, no que concerne especificamente ao texto teatral, o diálogo ainda é o componente principal que distingui a expressão dramatúrgica. É pouco provável encontrar qualidade em um texto teatral carregado por um diálogo sem força expressiva. Para que manifeste sua força, o diálogo dramático precisa de fôlego e de uma duração mínima para um desenvolvimento eficaz. A interrupção da cadeia dialógica vem a ser uma das razões pelas quais a excessiva proliferação de cenas, em um texto teatral, nem sempre encontra boa acolhida por parte do meio a que este texto se destina.3 Outra consequência da proliferação de cenas no teatro está relacionada com uma especificidade técnica do meio. No teatro as transições espaciais determinadas pelo texto exigem mais da interferência criativa do encenador bem como da máquina teatral, o que ressalta o papel do dispositivo cênico na composição do espetáculo (aqui o risco não é assumido pelo texto mas pela concepção do espetáculo cênico). No cinema, ao contrário, essas transições são assimiláveis de forma transparente pela técnica da montagem cinematográfica que permite uma livre manipulação do espaço no decorrer da ação. Pela possibilidade de acesso aos recursos da montagem, a cena dramática adquiri, no roteiro de cinema, um status que não possui no teatro.
2 A concepção de cena que estamos utilizando não é a mesma utilizada no drama clássico, no qual sua marcação é limitada à entrada e saída dos personagens. No drama clássico, principalmente aquele guiado pelas normas rígidas do aristotelismo francês, a cena não possui a ampla autonomia, em relação ao ato, que irá conhecer no teatro de Shakespeare e do período romântico, por exemplo. 3 Sobre esse assunto, ver crítica de Décio de Almeida Prado à peça Toda nudez será castigada, em Nelson Rodrigues radicaliza a adoção de cenas na quebra da continuidade do ato. Em PRADO, Décio de Almeida. Exercício findo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987, p. 109.
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A cena do roteiro Dentro do modelo dominante de formatação do roteiro de cinema, o início da cena dramática é sempre identificado por um cabeçalho que indica a localização cenográfica e o período do dia em que será realizada a filmagem, conforme vemos no exemplo a seguir: CENA 2 - TERRENO BALDIO - EXTERIOR/DIA André sai do supermercado, caminha pela calçada até um terreno baldio ao lado do supermercado. Ele olha para os lados, abre a mochila, revelando uma grande quantidade de dinheiro, notas de cem e cinquenta. Despeja o dinheiro no chão. Derrama álcool sobre o dinheiro e acende um fósforo. O dinheiro queima.4 Qualquer alteração no tempo e no espaço, ou seja, qualquer quebra da continuidade da ação descrita, determinará o fim de uma cena e o início de outra. A cena é a partícula rigorosamente dramática no corpo de um texto que é, por vocação, narrativo, o texto cinematográfico. Como instrumento de um projeto narrativo, a cena do roteiro de cinema possui uma versatilidade rara se comparada com a cena do texto teatral. Seus formatos e funções se diversificam, podendo incluir cenas sem conteúdo dramático como as cenas de transição, de duração ínfima, que pouco se adaptam às convenções do palco e que servem à narrativa para informar a movimentação dos personagens pelo espaço e/ou pelo tempo da ação. O tratamento da cena, dado pela maioria dos manuais de roteiro, apregoa, invariavelmente, a necessidade de que esta venha a ser concebida como o núcleo de uma ação dramática maior a ela integrada. A funcionalidade da cena está estreitamente ligada a eficácia de sua força motriz. A cena, como peça perfeitamente ajustada ao grande motor dramático da história, deve levar a história adiante. De Syd Field: “A cena é o elemento isolado mais importante de seu roteiro. É onde algo acontece – onde algo específico acontece. É uma unidade específica de ação – e o lugar em que você conta sua história. (…) O propósito da cena é mover a história adiante.” (FIELD, 1995: p. 112) De David Howard e Edward Mabley: “Num certo sentido, uma cena é como uma peça de um ato, que se encaixa na cena anterior e na seguinte para formar o todo. Quando construída convencionalmente (como o são muitas das melhores), a cena tem um protagonista, do mesmo modo que a história completa. Além disso, as melhores cenas têm um objetivo, obstáculos, uma culminância e uma resolução.” (HOWARD; MABLEY, 1996: p. 145) A rigor, para que seja dramática, é necessário que a cena apresente algum conflito, configurado através do choque de intenções contrárias entre duas ou mais personagens, ou entre personagens e alguma força antagônica. No modelo aristotélico, que prega a adoção da unidade de ação como princípio fundamental para a composição da peça, a cena é uma célula da ação dramática, trás em si elementos dessa ação principal mesmo que não esteja, em um primeiro momento, claramente vinculada a esta, caso típico das cenas que introduzem pistas falsas para enganar o espectador em sua investigação particular a cerca dos rumos da história. A função da cena é fazer a ação avançar. No caso das cenas 4 FURTADO, Jorge. O homem que copiava. Disponível em <http://www.casacinepoa.com.br/port/roteiros/homcop1.txt>. Acesso em 07/01/2006.
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essenciais, e no modelo aristotélico todas as cenas devem ser essenciais caso contrário deverão ser descartadas, a cena é parte fundamental da ação sem a qual esta não encontrará uma progressão convincente rumo ao clímax e ao desfecho final.5
Cena, palavra, imagem É na criação e ordenação de cenas dramáticas que se encontra a principal contribuição do roteirista para a construção narrativa do filme. A constatação dessa especificidade no campo de trabalho do roteirista trás consigo um problema central em relação ao papel da escrita do filme que está ligado à relação palavra-imagem. É comum vermos associado a escrita de um roteiro com uma série de descrições de imagens para o filme (muito embora uma peça audiovisual não se resuma apenas ao conteúdo das suas imagens). É na descrição de imagens que se encontra o maior desafio para o roteirista. De fato, o roteiro, para ser cinematográfico, deve se ater apenas àquilo que está ao alcance do olhar, seu texto tem necessariamente de estar submetido a essa condição de descrever sempre alguma coisa que é dada a ver. No trabalho do roteirista, a recorrência a esse universo imagético ocorre em um nível elementar de sugestão de imagens. Grande parte dessas imagens está relacionada a um quadro expressivo dominado pelo ator (que personifica o personagem no filme) e por aqueles objetos de cena com função dramática. Além disso, soma-se a indicação, feita de modo sintético, do cenário onde a ação transcorre. Essa indicação aparece preferencialmente na rubrica inicial que traz a descrição dos componentes básicos da cena: cenário, personagens e suas respectivas ações e disposições espaciais. No caso do exemplo do roteiro de Jorge Furtado citado acima, vemos a movimentação de um personagem, André, por um espaço cenográfico elementar, os arredores de um supermercado no qual se encontra um terreno baldio, e a descrição de sua ação ao se livrar de uma grande soma de dinheiro. No caso dos objetos de cena com função dramática temos a mochila (que serve para esconder o dinheiro), o dinheiro (objeto principal da cena), uma garrafa de álcool e uma caixa de fósforos, todos servindo a ação dramática do personagem. Não temos a descrição de como esse personagem está vestido, seu figurino, qual a configuração exata da fachada do supermercado (se é grande, pequeno, cor da parede, luminoso, etc), de como é exatamente o terreno baldio (se é repleto de mato, mato alto, mato baixo, com lixo, sem lixo, etc), detalhes que vão aparecer na imagem do filme mas que não interessam ao roteiro. Adotando como referência de análise o modelo de roteiro literário, que antecede a escrita do roteiro técnico, portanto um roteiro que ainda não apresenta descrições de planos de câmera, a cada início de cena teríamos, como ponto de partida na construção dessa imagem mental que guiará a composição do quadro cinematográfico, algo equivalente a um plano geral, também conhecido como plano de situação, que estabelece de antemão o espaço cenográfico para o espectador. O domínio desse plano geral, que está mais submetido à noção de espaço cenográfico do que à de espaço cinematográfico, poderá ser quebrado por uma série de alusões imagéticas contidas no fluxo do texto do roteiro, às quais o 5
No contexto dessa análise, não estaremos trabalhando com esse rigor conceitual. Estamos considerando também como cena dramática cenas que descrevem situações não conflituosas. Serão consideradas dramáticas apenas por proporem a encenação de um determinado evento de uma história.
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diretor normalmente se atém no momento em que está cuidando da decupagem técnica. Retornando novamente ao exemplo acima, dois detalhes principais descritos na cena que poderiam atrair uma atenção especial da câmera seriam a movimentação do olhar do personagem (Ele olha para os lados), que ressalta sua apreensão, e o monte de dinheiro (notas de cem e cinquenta), objeto que domina toda a cena. Estaria assim contida no texto do roteiro a sugestão de dois cortes que quebrariam o domínio do plano geral ao inserirem dois planos próximos que dariam ênfase no olhar e no dinheiro. Não cabe ao roteirista fazer uma descrição detalhada de imagens, além de ser imprecisa, a descrição detalhada de cada quadro cinematográfico se estenderia por um número infindável de páginas sem encontrar, ao final, qualquer justificativa para o bom planejamento do filme.6 O quadro é outro quando essa sugestão de composição de imagens encontra na descrição de situações, dramáticas ou não, seu ponto de apoio. É na descrição de situações, vivenciadas por personagens, que se encontra o campo de total domínio para aquele que se utiliza da palavra para pensar o filme. Essas situações irão incorporar tanto a movimentação e a gestualidade dos personagens como o cenário e os objetos de cena, dando assim substância a um universo de ficção imaginado pelo roteirista. A situação colocada no roteiro será a base para se pensar na composição de cada plano cinematográfico, incluindo aí enquadramento e trabalho de câmera, momento em que a ocupação de um espaço cenográfico será transposta e ajustada às exigências de um espaço cinematográfico. A composição do quadro cinematográfico pode ser esboçada, em um momento posterior ao da escrita do roteiro, através da feitura de um storyboard, um mapa de filmagem composto por uma série de desenhos ilustrando os principais quadros do filme com as respectivas indicações de possíveis movimentações de câmera, atores e objetos de cena. A construção dos planos cinematográficos, contendo de forma detalhada todos os enquadramentos, trabalho de câmera, qualidade, incidência e intensidade de luz, etc, só se efetivará no momento da filmagem. Em outras palavras, a modelação do quadro imagético do filme é uma decisão de filmagem atribuída ao diretor com o auxílio de seu diretor de fotografia. É, pois, por um critério de segurança e de controle do universo de representação, que o campo de domínio do roteirista se concentra no da elaboração de cenas dramáticas e não no de planos de filmagem, de domínio do diretor do filme. No momento da escrita do roteiro literário, o apelo à visualidade, que obrigatoriamente deverá estar contido no texto, não está necessariamente ligado a uma visualidade tipicamente cinematográfica. A expressão visual do roteiro ainda é uma expressão da visualidade cenográfica. No que concerne à elaboração da cena, a preocupação central do roteirista é a de apresentar uma situação – e desdobrá-la em várias situações, sob o impulso de uma ação – e não a de descrever uma sucessão descontínua de planos. No roteiro literário, a descrição das imagens estará submetida à descrição da situação e não ainda às exigências do plano, constatação a que também chega Jean-Claude Bernadet, resultado da sua experiência com a prática da roteirização. Diz ele: “O roteiro não deve ser a descrição verbal de um filme que posteriormente o diretor executaria. Do roteirista se espera a construção da narrativa, a 6 Um exemplo da dificuldade de se descrever detalhadamente as imagens de um filme se encontra nas publicações que trazem, ao invés do roteiro, transcrições de filmes de importância histórica como por exemplo: RENOIR, Jean. La règle du jeu, nouveau découpage intégral. Paris: Le Livre de Poche, 1999.
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divisão em cenas, a descrição das ações, e os diálogos, a partir de que o realizador elaborará a sua direção.” (BERNADET, 2004: p. 13)
A cena entre o teatro e o cinema A predominância do espaço cenográfico na visualização dos elementos de cena do roteiro não cria um vínculo obrigatório desta com uma concepção de cena tipicamente teatral. Ao contrário, o modo de concepção e realização da cena, no roteiro, parte de um pressuposto que expressa uma diferença radical, na experiência da escrita, entre os textos cinematográfico e teatral. Falamos, mais precisamente, dos modos específicos com que os dois textos tratam do lugar da representação.7 A diferença entre escrever uma cena para o teatro e escrever uma cena para o cinema é determinada, a priori, por uma norma do estatuto de cada um dos enunciados. Tanto uma peça de teatro como um roteiro de cinema trás estampado em suas primeiras linhas de apresentação o meio ao qual o texto se destina. Ambos os textos propõem uma representação encampada por atores. No teatro, esta representação ocorre em um local privilegiado, o palco, que tem seus contornos claramente definidos para o espectador. Diante do palco, o espectador irá estabelecer uma distância segura. Essa distância deverá ter uma extensão mínima o suficiente para este consiga obter uma total visualização de todo o espaço cenográfico. O palco pode adquirir formas diversas, o que afeta diretamente a relação deste para com o espectador, da clássica polarização palco-platéia do palco italiano, às formas que buscam um maior envolvimento entre a cena e o público, como o caso do palco elisabetano ou de propostas ligadas ao teatro contemporâneo como aquelas diretamente influenciadas pelos escritos teóricos de Antonin Artaud. Esse espaço privilegiado de representação pode ainda reservar surpresas para o espectador no decorrer da apresentação teatral, como a da revelação de novos espaços, até então ocultos, que podem alterar uma percepção inicial da abrangência da construção cênica, ou de efeitos de luz que criam novas ambientações para a cena. Qualquer que venha a ser o caso, a percepção, por parte do espectador, do local de representação será sempre uma percepção distanciada e totalizante, comandada por um olhar que tem o domínio de todo o espaço cenográfico. Outro fator comum no teatro diz respeito à imobilidade do espectador. A distância de observação do espectador de teatro em relação à cena é uma distância fixa. O que equivale a dizer que o espectador mantém sempre um mesmo ponto de vista do local de representação. Todas essas relações impõem, ao dramaturgo, um modo de comunicar entre palco e platéia, o que poderíamos chamar de um modo da teatralidade. O teatro não admite o gesto pequeno, o detalhe, a intimidade. Se estas qualidades estiverem no conjunto de ambições do dramaturgo, serão alcançadas apenas de forma aproximada, não com a intensidade que observamos no cinema. Mais do que isso, a intimidade no teatro exige que se remova a representação do grande palco em troca de lugares menores que possibilite o contato próximo entre o ator e seu público, o que implica em uma sensível diminuição do número de espectadores por espetáculo.
7 Sobre o local da representação no cinema e no teatro ver BAZIN, André. O cinema, ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 146-147.
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Já o roteiro de cinema não trabalha com a mesma noção de palco, como local único e privilegiado da representação, mas com um espaço mais aberto sem limites claramente definidos, um lugar do mundo. Ao trabalhar com essa noção de lugar do mundo, o roteirista trabalha também com uma noção de onipresença. Ausente a figura do palco, como espaço geográfico que centraliza uma representação, fica desfeita as limitações espaciais que acomodariam a movimentação dos personagens em cena. Em vez de um espaço único (o palco) que será revestido por uma ou várias ambientações cenográficas, abre-se ao roteirista a possibilidade de se trabalhar com uma diversidade de espaços do mundo, cada um deles com sua própria ambientação cenográfica, em outras palavras, colar o espectador ao personagem e não ao espaço de representação, o palco. No espaço cenográfico do cinema (pensado ainda na maneira como este é tratado no roteiro) o espaço da representação possui tanto interesse quanto o espaço que está além. Para o espectador de cinema e, por contaminação, para o leitor do roteiro, tão real quanto o espaço que está diante de si, na tela, é o espaço que está fora da tela, mesmo que esse espaço nunca venha a ser revelado para ele. Tudo o que está fora de quadro é percebido como uma extensão do mundo que, embora não nos seja dada a olhar, é parte do espaço de domínio do personagem.8 À essa dispersão épica, que quebra com a concentração dramática do palco, soma-se a possibilidade de se trabalhar com uma relação de proximidade do espectador com a cena (o personagem e seu entorno). Ir a todos os lugares onde a história acontece e, mais do que isso, poder ter um contato íntimo com cada um dos personagens, perceber o gesto pequeno, o detalhe, aspectos que poderão ser ressaltados depois com a posterior inserção dos planos de filmagem. O planejamento de uma cena, no roteiro, leva em consideração um ponto de observação privilegiado, do espectador, que o coloca dentro do local da representação, dentro do cenário. Como consequência, a representação não precisa mais transpor uma distância para alcançar o espectador. A expressão física do ator não precisa ir além do espaço cenográfico ao qual ele está circunscrito, se comunica apenas com esse espaço. Em relação à expressão do ator teatral, cujo domínio se estende para além das dimensões do palco, a expressão do ator cinematográfico é uma expressão da intimidade, que encontra sua justificativa apenas dentro do universo da ficção. A constatação expressa aqui, referente ao lugar da representação, liberta o roteiro da dependência do texto teatral. Para aquele que trabalha com o texto dramático, se trata de dois campos de atuação com possibilidades expressivas distintas a serem exploradas. Para o cinema, a escrita de cenas dramáticas serve apenas para a organização textual do filme, ela existe, como autônoma, apenas na primeira etapa de roteirização. É uma descrição que é feita pelo roteirista para ser, posteriormente, picotada, na forma de diversos planos, pelo diretor. O plano se apropria dos elementos da cena e os re-configuram. Pela forma do recorte, o plano opera uma seleção dos elementos inscritos em um espaço maior. Eventualmente o diretor pode se valer de uma noção de equivalência (equivalência virtual!) entre plano e cena, fato comum no primeiro cinema em que a câmera se limitava ao papel de registrar, de uma posição fixa e passiva, o evento dramático em toda a sua duração. A cena dramática só terá função no período de pré-produção do filme. Servirá para criar uma ambientação cenográfica fundamental no interior da qual ocorrerá um acontecimento a ser registrado através das tomadas de câmera de acordo com as descrições de planos, 8 Sobre esse assunto ver: Nana ou “os dois espaços” em: BURCH, Noel. Práxis do cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
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encontradas no roteiro técnico. A cena trás a descrição do evento a ser registrado e não do “como” esse mesmo evento deverá ser registrado.
Referências bibliográficas BAZIN, André. O cinema, ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BERNADET, Jean-Claude. O caso dos irmãos Naves, roteiro original. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004. BURCH, Noel. Práxis do cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. FIELD, Syd. Manual do roteiro. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995. HOWARD, David; MABLEY, Edward. Teoria e prática do roteiro cinematográfico. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1996. PRADO, Décio de Almeida. Exercício findo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
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Sérgio Puccini é Mestre e Doutor em Multimeios pelo Programa de Pós-Graduação em Multimeios, IA/ UNICAMP. Professor do Instituto de Artes de Design da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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ENTREVISTA
Pedro Sena Nunes Lisboa/Faro, Março de 2010 ANA ISABEL SOARES*
Esta entrevista resultou de conversas video-telefônicas, leitura e releitura das perguntas e das respostas, ao longo de alguns meses de 2010. Ana Isabel Soares (AIS): Como relacionas o teu modo de realizar com o de produzir os teus filmes? É difícil ser realizador e produtor ao mesmo tempo? Pedro Sena Nunes (PSN): Como criador, sempre procurei produzir os meus projectos e produzi-os através de estruturas que edifiquei. Primeiro, com uma empresa que eu e os actores Miguel Seabra, Álvaro Lavin, Stefano Filippo e Júlio Salvaterra criámos em 1992, – o Teatro Meridional. Era um projecto dedicado às áreas do teatro e do cinema. Em 1997, nasce a A Avanti.pt, uma Associação fundada por mim, Laurent Simões, Rui Ribeiro, António Saraiva, José Mendes e Ilda Castro. Finalmente, em 2000 aproximei-me da Associação Vo’Arte, estrutura que ainda hoje produz grande parte dos meus projectos. Para responder mais concretamente à tua questão, nunca realizei sem produzir. Creio que a relação realização/produção começou aquando da minha formação, tanto no teatro como na fotografia e mais tarde no cinema. No curso de cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema [Lisboa] existiam apenas as áreas de som, produção, montagem e imagem; a área de realização era inexistente. Mas alguém tinha de realizar os filmes curriculares, e portanto acabei por realizar alguns dos filmes da escola, em grande proximidade com a área da produção. Vejo a produção como uma área absolutamente criativa e desafiante do próprio processo de criação. A realização é para mim, para além da produção, uma ideia de escrita. A escrita do projecto, a escrita da pesquisa, a pesquisa da própria produção. Tudo contribui para a estruturação da identidade do projecto. Esta é parte da visão que tenho da relação produção/realização e não consigo separá-las. É-me difícil receber um argumento para realizar e não começar imediatamente a pensar na produção. Para mim a produção é o desafio de fazer as coisas acontecerem. Existe na produção uma abordagem que sempre me interessou: o trabalho de equipa. Com a experiência dos últimos anos na Vo’Arte, este assunto tornou-se mais explícito. As equipas da Vo’Arte têm uma durabilidade curta, habituei-me a essa dinâmica. O apoio da directora artística, Ana
Rita Barata, tem sido determinante, já que inicialmente a sua aposta forte foi na produção de alguns dos meus filmes. Em qualquer dos casos, estou consciente de que me desgasto mais na produção dos meus projectos do que em toda a estratégia que implemento na realização dos filmes. Gosto do percurso da produção de A a Z, mas é um caminho ainda assim muito solitário… Há uma outra questão que se prende com o tempo de preparação de cada projecto. De facto, levo algum tempo a preparar as ideias para a realização. Gosto quando as ideias não dependem de prazos e compromissos contratuais; quando conquistam a sua maturação natural, adensam-se e respondem às questões necessárias. Contudo, as ideias na fase de pesquisa relacionam-se também com aspectos tecnológicos de cada processo, respectivas condições e época de desenvolvimento. Felizmente, posso olhar para trás e perceber que as coisas têm mudado muito, quer do ponto de vista do território das ideias, quer do desafio tecnológico, e cada projecto é sempre um desafio singular na promoção do ponto de vista e da sintonia entre o meu olhar e as componentes técnicas ao meu alcance. De que técnica estamos a falar? De um novo disco que me permita gravar o som digitalmente? De uma câmara que grava em cartão e que me permite operacionalizar a edição noutras condições e ritmo? De dispositivos de projecção de alta qualidade?
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No contexto pedagógico, costumo tratar a articulação entre áreas traçando geometricamente dois triângulos: um mais criativo e outro mais técnico. Os vértices do triângulo mais criativo são: a escrita, a realização e a produção. Este é um triângulo misterioso do ponto de vista da geometria, porque nele os vértices aproximam-se uns nos outros. Depois, há um triângulo técnico, cujos vértices são a imagem, o som e a pós-produção. Este triângulo técnico interessa-me tanto quanto o criativo, porque o cinema é a articulação dos dois triângulos. A partir do primeiro triângulo, proponho que se comece a desenhar o segundo. AIS: Se dizes que isso já vem da tua formação, é natural que o tenhas como hábito. PSN: Preocupo-me de facto com esta articulação. Passa por um desejo de controlo dos projectos – fascina-me a pressão dos processos, são etapas que também me dão prazer. Depois existe a relação com a equipa: cada colaborador tem as suas funções, delego desafios e tarefas concretas e concentro-me mais no essencial. Tudo se relaciona e creio que isso me ajuda a ter uma melhor noção sobre a equipa que estou a dirigir. AIS: Como defines essa equipa que trabalha contigo em cada projecto – é sempre a mesma? Quais são os teus critérios, ou o que tens mais em conta? PSN: A formação da equipa é essencial. Não acertei na equipa em todos os projectos. Inicialmente acreditei – e mais uma vez isto vem do tempo da minha formação – que seria normal, numa primeira etapa da vida profissional, fazê-la com os meus colegas de curso e outras pessoas com quem aprendi. Existe uma continuidade quando os grupos de trabalho são constituídos por colegas, não necessariamente colegas directos, da turma, mas daquele período inicial. Recordo que quando acabei o curso em Portugal estudei durante quatro anos em diferentes escolas na Europa, sempre fomentei contactos, interligações e intercâmbios internacionais. No início tive uma equipa sólida que durou alguns anos. Acontece que uma equipa dura o tempo do seu desejo de ser equipa. Chega o dia em que as pessoas querem procurar outras equipas. No início, habita um certo fascínio, uma vontade de colaborar juntos nos projectos, o desejo de mudar, a vontade de alterar o contexto do que está feito, deixar uma marca, firmar a nossa bandeira no território, declarar que estamos a fazer o que muitos não fizeram. Há um sistema energético emergente que nos motiva enquanto equipa. Essa primeira equipa, uma equipa muito consistente do ponto de vista da imagem, do som e da montagem, era uma equipa que me interessava e na qual eu investi, sabendo que todos investiram também nos projectos. Depois, chega o dia em que se entende, como eu entendi, que esta equipa não poderia durar para sempre. Porque realizadores, e inclusive produtores, de outra geração, tendencialmente mais velhos, também procuram novas energias e dinâmicas para os seus projectos e nesse sentido procuram colaboradores com outras visões. Por vezes procuram-se pessoas com pouca experiência de rodagem porque trazem consigo uma inquietude de querer aprender e fazer, mais do que quem já é experiente. Esta leitura fez-me perceber que a equipa que me acompanhava iria dar um passo diferente e adaptar-se a outras condições de produção. Para mim, para além da experiência acumulada, encontro o mesmo desejo de realizar, produzir, conquistar a novidade com a sensação de que é sempre a primeira vez que o estou a fazer. Existe um natural factor de desgaste das relações, percebe-se quando as piadas começam a não surtir efeito, começa a não ser positivo o trabalho e as refeições fora de
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horas, não se suporta as refeições leves Este lado ridículo das relações, torna-se o centro das conversas entre os elementos da equipa e eu não lido bem com esta forma de estar, os horários são para cumprir mas existem momentos absolutamente excepcionais. Hoje estou atento aos sinais que os colaboradores me dão, um registo minimal deixa-me apreensivo e começo a perceber que tenho algo para decidir… Mas gosto muito quando uma equipa, no seu desempenho e performance, atinge um equilíbrio em que com poucas palavras fazemos o que está previsto e mais algumas coisas que estamos a procurar. Acho extraordinário quando consigo explicar tudo. Alguns dos meus colegas puderam demonstrar as suas competências técnicas, que naturalmente vieram a explorar noutros projectos. Como sabemos, os realizadores não realizam filmes todos os dias. É fácil imaginar que um realizador passa bastante tempo a investigar entre um filme e o seguinte. Realizar implica um ritmo próprio. O mesmo pode ser diferente com os profissionais das áreas técnicas, tendencialmente estão ocupados com mais regularidade. Durante a primeira etapa, que durou oito a dez anos, tive uma equipa quase fixa. Percebe-se isso através das fichas técnicas dos filmes. Nos últimos dez anos passei a colaborar com equipas mais flutuantes, mais ajustadas ao perfil de cada projecto. A ideia de nos separarmos de determinados colaboradores é desgastante – é difícil digerir que alguns profissionais deixam de estar disponíveis para determinado projecto. Adiei projectos para esperar por determinado actor ou técnico. Hoje tenho a sensação de ter voltado ao início, procuro os colaboradores que respondem melhor técnica e esteticamente ao filme, com um grau de empenho, motivação e sentido de risco que procuro; crio assim uma nova equipa. AIS: Deixa-me colocar-te uma pergunta ainda relativa ao processo de produção: existem grandes discrepâncias entre o orçamento que imaginas ou estabeleces no início de uma produção e os custos no final dessa produção? PSN: É muito raro haver esse tipo de discrepância. Avaliamos um projecto num determinado valor e é esse valor que rondará o projecto no final. Não me recordo de alguma vez ter ultrapassado o valor orçamentado: talvez por essa razão goste tanto de produzir. Produzo um filme no país em que vivo, nas condições que existem. Promovo e procuro o meu caminho, sujeito-me às condições de produção que eu próprio implemento. Desse filme nascem muitas vezes outros dois ou três, é o fenómeno da multiplicação dos filmes. Invisto muito na preparação dos filmes, nunca paro! Por exemplo, o ano passado, integrado no projecto de filmes das províncias portuguesas – o Microcosmos – começámos a produzir um projecto novo, ainda sem apoios. Este filme será dedicado à província da Estremadura – com Fátima como título provisório. Investi neste projecto por iniciativa própria. Este ano [2011] vou continuar a etapa de pesquisa e de registo que iniciámos. Vamos também iniciar a angariação de apoios, mas o investimento inicial está feito. Este é muitas vezes o método que exploro. AIS: Voltando atrás – consegues perceber diferenças nos teus filmes, entre o início e estes de há dez anos para cá, que tenham sido geradas por essa distância entre uma equipa mais fixa e equipas mais flutuantes, ou não te apercebes disso? PSN: Consigo identificar bem essas diferenças. Inclusive tenho trabalhos em que se percebe que me virei muito mais para mim, talvez por defesa, para evitar perder o controlo do
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projecto. Ter alguém a fazer câmara nos meus projectos não é uma situação completamente linear. A questão da câmara é para mim importante, mas dou ainda mais importância ao som. A questão da câmara é uma questão do olhar, é a interpretação do que está a ser enquadrado, associado à composição. Isto faz com que faça também câmara nalguns filmes. Nesse sentido, noto diferenças claras entre os primeiros dez anos e estes últimos dez anos, porque estes últimos dez são feitos de mais experiências de câmara, promovidas pelas novas tecnologias. Em cada novo projecto tenho o prazer de procurar novas técnicas e estimulo energias desconhecidas, tornando por vezes o projecto mais frágil no confronto com o desconhecido. AIS: Por mais flutuantes que sejam as tuas equipas, no fundo estás a seguir um projecto inicial, o Microcosmos. Isso dá uma unificação ao teu trabalho. A ideia do Microcosmos, de um documentário por cada região de Portugal, é para continuar? É uma tentativa tua de encontrar uma ideia de “portugalidade”? PSN: Até hoje não tive muita coragem de usar a palavra “portugalidade”. Nem sei se a pronunciarei tão cedo. Talvez quando chegar ao final do projecto Microcosmos me sinta mais à-vontade para a usar. Neste momento, o que estou a construir é um pouco como o processo da biónica – estou a constituir uma pele do meu país, estou a criar um tecido que não existe, mas que nos dará o sentido da sua existência. Falo em criar no sentido de construir o olhar, de construir o real, tudo é uma construção. É o meu olhar sobre o meu país, onde, pouco a pouco, os tecidos se vão juntando uns aos outros até criar um mapa-pele. A ideia de mapear com o olhar e criar uma pele é um conceito que me interessa muito. É uma pele especial com diferentes densidades segundo os temas e as províncias. Uma pele que tem coisas que se escondem e escondem outras coisas a que as pessoas não têm acesso. Interessa-me por ser um caminho feito por camadas que é preciso desobscurecer. O Microcosmos é um projecto que prima pelas diferenças das províncias, pelas diferenças dos filmes. Cada província foi retratada por equipas bastante diferentes. Este é um projecto distante da lógica do seriado, não é formado por episódios formatados em termos de estrutura e duração, feitos com a mesma equipa, mantendo a mesma fórmula. No Microcosmos, cada projecto é singularmente muito distinto e próprio. O meu objectivo é saber que um dia todos os projectos se podem ligar através de relações pouco óbvias e que a sua análise permita exactamente descobrir sempre coisas surpreendentes por debaixo dessa pele. Recentemente, vi os filmes do Microcosmos quase seguidos, num Seminário de Realização que leccionei na licenciatura de Documentário em Abrantes e foi curioso perceber que existem muitas pontes e relações entre os filmes: sou eu, é o meu olhar. Os projectos mais frágeis são aqueles que acabam por dar menos gozo e mais trabalho. Sendo a equipa mais frágil, o resultado é também menos sólido, mas não desisto. Luto pela qualidade do projecto até ao limite do possível. Contudo, a minha vida profissional não se centra exclusivamente no Microcosmos. Há quatro ou cinco outros mundos que me interessam e acompanham. Quatro ou cinco arquipélagos. O Microcosmos é o principal e é o maior. Há um que são encomendas literais que eu aceito. Por exemplo: a Casa da Música ou a Fundação Calouste Gulbenkian convidam-me para fazer um documentário sobre determinado processo criativo e isso interessa-me, por várias razões, então aceito o desafio. Tenho um compromisso artístico, é certo, mas tenho a minha visão livre sobre o assunto. É um tipo de produção que me interessa desenvolver pontualmente.
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Tenho também uma zona absolutamente experimental, que não é um mundo nada literário, não é um mundo nada óbvio, naquilo que são as respostas que procuro. E depois existe ainda uma abordagem muito mais transdisciplinar, na qual habitam outras disciplinas, não exclusivamente o cinema, nem o vídeo, nem a imagem em movimento, nem a imagem fixa – é uma outra série de coisas que me interessam, do ponto de vista do cruzamento das linguagens, onde vou beber de umas coisas para nutrir outras. Existe ainda um outro capítulo, o da ficção – porque eu não abandonei a ficção, ainda que esteja mais distante. O Fragments Between Time and Angels [1997] é um documentário experimental com coisas ficcionadas pelo meio. Apesar de as pessoas considerarem que já fiz ficção há muito tempo atrás, eu faço ficção com muito mais frequência do que se sabe. Faço sobretudo, por exemplo, no acompanhamento de alguns projectos, até pedagógicos, onde dou por mim a corrigir, a aprender e a reaprender através de situações singulares e ricas dos alunos nos mais diversos géneros: do terror, à comédia, da ficção científica ao thriller, passando pelo drama. Envolvo-me em muitas actividades da ficção, inclusive na publicidade cultural que por vezes faço… a ficção está lá. Em suma, estariam aqui cinco núcleos: Microcosmos, encomendas, experimental, transdisciplinar e ficção – claro que o Microcosmos tem o destaque, até pela consistência dos próprios projectos, da sua densidade AIS: Se te disserem que fazes “documentários poéticos” (neste sentido, o Fragments… é talvez aquele que me recorda mais essa ideia) o que respondes? Identificas-te com isso? Está relacionado com o conceito de criação através da linguagem, quando há pouco te referias a uma linguagem? Pretendes contrariar uma certa secura documentarista, seja por experimentação, seja por invenção? PSN: Tudo isso me diz muito – acho que é uma expressão feliz com a qual me identifico. Ao mesmo tempo, a primeira coisa que me apetecia responder era que se me disserem que faço “documentários poéticos” direi “ainda bem” [risos]. Identifico-me com essa expressão. Reconheço dentro da lógica da minha acção um domínio da linguagem que é também uma procura incansável de uma certa escrita perfeita. Eu trabalho todos os dias na escrita. Por isso talvez me interesso tanto pelo ensino. Uma maneira de não parar é obrigar-me a continuar à procura, a escarafunchar, a estudar, a modificar, a pesquisar. Depois, associar a este elemento de linguagem o poder da própria criação – eu não conceberia estar no mundo de outra forma. Perante essa crueza, essa nudez, essa ideia de secura, não me sinto nada confortável. Não é uma coisa que me entusiasme. Também não quero criar sempre à volta de algo muito objectivo uma coisa a que não chamarei uma mancha poética, não chamarei um contorno folclórico, mas antes uma proposta de outras realidades que não as visíveis, procurar expor o inenarrável. Não quero inventar, mas poetizar o que existe. Reconheço que é um assunto muitas vezes subliminar e julgo que se relaciona com a dimensão poética ou criativa, que me interessa como desafio. O desafio é exactamente esse. Estabelecer um processo de registo da câmara como um olhar neutro e directo, isso eu não consigo fazer, ou querendo fazer de conta, ou querendo passar a ideia de que é como se não tivesse lá estado… Não: eu estava lá, eu envolvo-me! Tenho uma forma de criar e de inventar relacionadas com a minha estrutura emocional. Eu sou os filmes. O meu cinema não é arrogante, procuro comunicar harmoniosamente através do diálogo. Os filmes, pior ou melhor, passam a minha sensibilidade e
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projectam muito de mim. O cinema é uma linguagem na qual domina a subtracção de palavras. Nesse sentido, os meus filmes sugerem uma dinâmica emocional evidente. AIS: Em que sentido? PSN: Falo de linguagem, falo inclusive da linguagem do plano como o âmago do meu trabalho. O cinema não é um espelho do mundo, é um conversor que produz signos e significados. Quero pensar que o mundo que se vê através do plano no ecrã, não é o mesmo que se vê fora do plano e do ecrã. A linguagem cinematográfica, fundada pelo Griffith, conjuga a imagem fílmica com o texto. Existe um eixo discursivo que alia a imagem e o texto, mas defendo que a primeira etapa privilegie a subtracção do texto face à imagem. O cinema deve economizar a palavra, a criação passa pela síntese. Procuro dizer o máximo com os planos, com o mínimo de texto possível. Temos como poder, possibilidade, alicerce, a construção do plano. Para mim, o plano é a essência, esta é a defesa que faço no meu discurso e que todos os dias passo nas minhas aulas. Temos de se perceber bem o significado do plano, para podermos avançar. Olho para o plano como uma construção, que é uma constituição, que permite cortes. O plano exige a frieza justa do corte, um corte que anuncia a morte. Contudo, o plano tem um princípio, um meio e um fim, tem um corpo autónomo. É preciso olhar para esse princípio, meio e fim com uma projecção narrativa-emocional escrita pela câmara-olho. Os planos constroem-se com o olhar e com a câmara. Os planos constroem-se com emoção. O plano poderá estar mais perto da prosa ou da poesia, mas tem para mim uma vibração próxima da que tenho perante as coisas, e sobretudo, perante as pessoas que me rodeiam. A vibração passa para a câmara-olho, traduzindo melhor ou pior o assunto. As ideias para os planos são descartadas, comprimidas, analisadas, reconsideradas, revoltas, até restarem as suas qualidades essenciais. AIS: Falaste do poético e disseste que essa procura é alguma coisa que queres passar para o ensino; depois, referiste o plano e disseste que isso é muito importante, até no modo como ensinas. Como se ensina documentário? Se um plano é uma coisa que existe em documentário, existe em filmes de animação, existe em ficção, em que é que, quando ensinas documentário, um plano pode pertencer a esse género? Ou não tem que ser assim, e consideras uma espécie de unidade mínima do cinema, seja de que género for? PSN: Considero o plano como uma base estruturante, é a natura. Quando dou aulas de documentário, de cinema experimental ou de ficção, falo unicamente de cinema. Não faço grandes distinções dos géneros. Claro que na ficção entramos noutro registo – porque ao actor, seja profissional ou não, pedimos-lhe que construa a sua personagem, fazendo com que a câmara seja ignorada. O actor representa e faz de conta que não vê a câmara. Noutra abordagem, como é o cinema documental, pouco interessa se as pessoas olham ou não para a câmara, a relação com a câmara não é uma preocupação. São duas formas distintas de consistir. Além disso, podemos criar dois ambientes característicos no cinema: um ambiente realista e um ambiente imaginado. Dentro desses dois ambientes temos duas relações possíveis entre câmara e protagonistas. Mas aquilo que me interessa é a ideia da escrita, da escrita cinematográfica – e é aqui que entra a linguagem. A linguagem é complexa, é também uma aquisição, não temos por onde fugir. Basta ver o filme O Homem da Câmara de Filmar de Dziga Vertov, que é um filme estruturante, e perceber que Vertov criou
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um filme-enciclopédia viva do cinema: criou uma profunda desmontagem da linguagem cinematográfica. A linguagem cinematográfica e a própria gramática visual estão representadas na sua extensão neste filme-síntese. A seguir, procuro que se entenda que há um lugar de encontro que pode ser o documentário. Batalhei comigo mesmo durante um longo período da minha formação – tive uma formação inicial em Portugal apenas focada na ficção, em que a palavra documentário era inexistente. Era inexistente no sentido em que era esquecida, porque não era possível praticar, nem registar imagens/sons numa dinâmica documental. Na Escola de Cinema [ESTC], filmar significava trabalhar a escrita do argumento e dirigir com actores e eu procurei sempre outras propostas. Quando fui seleccionado para o I Curso Europeu de Realização em Documentário de Criação, deu-se um choque. Tive colegas de vários países com tradição no documentário, de outras escolas, algumas reconhecidas internacionalmente, e os alunos/colegas já traziam esta questão do documentário resolvida há muito tempo. Eu entrei no curso à procura de muitas respostas, mas não foi fácil, os meus colegas falavam de algo que muito me interessava. Desafiei-me para encontrar respostas para a palavra “documentário”. Percebi desde logo que pouco me interessavam as definições e as fronteiras; apreendi que o fascínio continuava no que já havia experimentado: um processo de ausência de limites entre a ficção e o documentário. O que me interessa é mesmo o resultado final, resolver de outras formas os processos intermédios. Passei a preocupar-me com o que faço e com os resultados que atinjo. Interessa-me explorar o meu ponto de vista com sentido ético e equilibrado. Persigo o equilíbrio. As minhas aulas têm estes objectivos. Porém, procuro disciplinar a criatividade do aluno, estrangulando o seu processo criador num sentido claramente pedagógico. AIS: O que queres dizer com isso? PSN: Estrangular pressupõe acalmar, bloquear, restringir, acreditar, sustentar. Ou seja, primeiro proponho aos alunos que peguem livremente na câmara e façam o que verdadeiramente lhes apetece. O resultado está normalmente distante, numa primeira fase, do domínio da linguagem e da técnica, mas conduz a intensidade do que cada um quer expressar. Gradualmente, fecho caminhos – esta é a ideia do estrangulamento criativo –, limito os resultados e conduzo-os a desenvolverem os mais diversos exercícios. São exercícios de contenção: exercícios num só plano, um plano com uma duração limitada, combinação de três planos, um plano-sequência, exercícios em que proponho que estes se resolvam em quatro planos, sendo que estão associadas palavras, signos, sons, etc… Proponho, por exemplo, que se ficcione uma acção simples: alguém sobe uma escada e fecha uma porta. Os alunos começam a dominar o sentido da planificação em conjugação com os seus ponto de vista. Procuro disciplinar o treino do olhar dos alunos. Estamos a muscular a interpretação das linguagens. O contacto vai-se operando de forma progressiva e lúdica. Fascina-me estar com pessoas que nunca tenham pegado numa câmara, ou que pegaram sabendo que apenas estão a registar imagens. Acredito que é possível disciplinar os vários passos da criação. Interessa-me o processo controlado, em pouco tempo, o aluno está a produzir, com as suas próprias ideias, uma imagem mais equilibrada estética e tecnicamente.
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O essencial é a escrita – escrever, escrever, escrever. Foi a minha proposta pedagógica na ETIC [Escola Técnica de Imagem e Comunicação], enquanto orientador pedagógico: quem não escreve, não pensa; quem não pensa, não pode filmar, é impossível e impraticável filmar sem escrever. AIS: Nas tuas aulas, então, fazes exercícios de escrita textual. PSN: Faço muitos exercícios de escrita. Na verdade, exploro várias escritas: textual, fotográfica, corporal, coreográfica, cinematográfica, escrita e leitura de espaço e tempo, etc… Proponho exercícios de escrita com o corpo: existem muitas pessoas que não podem filmar com a câmara, mas podem começar por “filmar” com o corpo e depois traduzem a experiência da sua percepção para o papel. Promovo um trilho duro na interpretação das suas palavras, proponho que explorem uma escrita visual, que ponderem as palavras, palavra a palavra. Depois sugiro que a interpretação desses mundos visuais se centre nas contrariedades que nascem da dificuldade de encontrar as palavras certas. Por vezes, precisamos de rescrever e rescrever o texto. Como é que essas traduções se operam? Tudo parte da ideia. A ideia ocupa um outro centro. A partir de um conceito subjectivo, que envolve sempre a questão do tempo e do espaço, e com o estrangulamento por perto, surge o rigor através da disciplina do desenvolvimento e do uso da linguagem. Assim, vou conseguindo com os alunos, manipular, dominar, descodificar, interpretar, produzir, reduzir, até chegar a uma matéria fílmica que começa a fazer sentido. Este método faz sentido para quem está disponível para o experimentar, e eu colaboro. Exploro um espaço de respeito integral, tudo gira à volta das propostas dos alunos: ideia, ponto vista, composição, relação som/imagem, montagem. Promovo um espaço de respeito entre mim e o outro. É óbvio que se alguém faz um trabalho e mo apresenta como um trabalho de câmara à mão, para além de vermos um plano feito com câmara à mão, podemos interpretar o ponto de vista através da tradução da imagem criada. Por exemplo, num plano-sequência as coisas podem complicar-se bastante – posso entender o conceito e o propósito, mas o resultado do plano poderá não ter sido atingido por completo devido ao facto de ter sido alguém que apenas há muito pouco tempo faz câmara. Existe uma parte técnica, física e emocional, que pode tornar o plano frágil. Portanto, o conceito que o aluno propõe pode ser estrondoso, mas pode não deixar ver tudo o que é suposto ver-se. Nesse ponto, sugiro parar e começar de novo, e enquanto não se perceber a importância do plano não serve de muito avançar. Por alguma razão um operador de câmara, por exemplo na BBC, tem seis anos de formação. Tento desmistificar a ideia de quem faz um curso de dez aulas sente-se no final capaz de resolver melhor os seus desafios. O mesmo se passa para quem faz um curso de dois anos e pensa que tudo está orientado. Este é um caminho de longo curso. Existe uma dimensão física que acompanha este moroso processo de evolução. Eu preciso de passar estas ideias aos alunos. Preciso que entendam que falo de cinema, de pulsação, de fisicalidade, de olhar, mas também de escrita, e que nós podemos escrever das mais diversas formas: com a cabeça, com a caneta, com o telemóvel, com a câmara do computador, com a câmara videográfica. Escrevemos com o que quisermos escrever! Escrita e mais escrita, num treino diário. É preciso escrever todos os dias, até à exaustão. Tudo passa pela análise constante, análise da escrita, escrita da análise, até percebermos que todos
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desesperamos nestes processos de decompor filmes, exercícios, propostas, etc. Mas caminhamos rumo a um desconhecido que muito me interessa. Muitas vezes, quando trabalho em ficção, faço o mesmo percurso com actores, tento encontrar o tal ponto de esgotamento. Sugiro que os actores ensaiem, voltem a ensaiar e ensaiem de novo, sabendo que não os estou a filmar – não os quero filmar – e, quando percebo que o actor está a ficar exausto com os ensaios, proponho que estamos a atingir um limite, então procuro fazer-me valer desse momento. É nesse desequilíbrio-limite que quero investir equilibradamente para agarrar a intensidade da rodagem. Invisto para que esse momento apareça, nada mais me preocupa. Com o aluno acontece-me o mesmo. Estrangulo construtivamente o seu processo criativo, não o deixando respirar – sufoco o desenvolvimento das propostas até ele começar a desejar atingir o rigor e principiar a entender a importância destes passos. Depois, é deixar as coisas correrem livremente e permitir que se instale gradualmente o domínio da linguagem e desenvolva a sua expressão artística. AIS: No fundo, é um modo de induzir a criatividade porque os empurra para o inesperado? PSN: Sim. Por exemplo, nas mais variadas experiências que tenho tido ao longo dos anos e na licenciatura que agora lecciono na área de Realização, no IPA (ligado ao grupo da ETIC), um curso novo ligado à produção multimédia interactiva, onde a realização ocupa um lugar particular. No geral, posso concluir que os alunos nem sempre lidam bem com a liberdade criativa. Muitos alunos funcionam melhor com balizas limitadoras dos exercícios. Outros encontram dificuldades quando desbravam o seu próprio mundo. Existe uma tentação natural de se partir para a narrativa clássica, para a pura ficção… “Escrever a História e escrever histórias provém de um mesmo regime de verdade”, diz Jacques Rancière. As ficções são recordações materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer. Os alunos têm de perceber que o cinema é uma fonte de motivação e de acção política, pode ser uma arma de propaganda. Enquanto não controlarem os seus pequenos passos, tudo pode ser grandioso se acreditarem que se trata de um complexo caminho que pode levar muito tempo a percorrer. E filmar é filmar com os seus defeitos, é a montagem que potencia a significação. Temos de acreditar na formação das imagens foto-cinematográficas como extensão da nossa própria vida. Creio que este choque termina muitas vezes na frustração e encaro essa frustração como o processo mais desafiante do ponto de vista pedagógico. Gosto de gerir a frustração dos alunos: só assim se avança, com métodos exigentes de auto-avaliação. Não é um processo fácil, mas é o meu maior desafio, ajudar a acreditar que é possível avançar. Desta forma, estou a colocar o centro da aprendizagem no cinema de autor, um cinema que comunica. Mas, não fujo a outros cinemas, não nego um cinema mais comercial, que vende. Somos livres de seguirmos as várias possibilidades existentes e criar mesmo novas estratégias de produção. Eu quero orientar minimamente os alunos na descoberta do seu ponto de vista e respectivas dinâmicas, ritmos, construções e comunicações da sua estrutura narrativa. Interessa-me o ensino da linguagem porque eu faço parte dela. A partir daqui os dados estão lançados para quem pretende seguir tanto a via autoral, como a comercial, sendo que o equilíbrio das duas fascina-me mais. Eu estarei com o mesmos objectivos a reagir com propósitos fundadores tanto a umas propostas como a outras.
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AIS: Volto um pouco atrás: quando foi que percebeste que sabias o que era o plano? Disseste que é coisa que pode levar seis anos, que não é coisa que se perceba em dois ou três anos. Tiveste algum momento na tua carreira em que percebeste que finalmente dominavas essa consciência? PSN: É engraçado, lembro-me de um plano que há muitos anos me entusiasmou muito construir. Fi-lo para o meu filme de ficção Eléctricos [1995], criei uma situação em que tinha pendurados várias tiras desenroladas com as palavras dos destinos e números das carreiras dos eléctricos [bondes] de Lisboa. Era um cenário fantástico onde estes elementos criavam um fundo de cruzamentos de destinos e sentimentos. Guardo este plano porque me emocionou, fi-lo com a equipa e com o actor João Reis, que demonstrava através da sua personagem um novo passo da certeza de ser guarda-freio. Na verdade, não me acontece com frequência, mas aquele tinha a dimensão de um cinema forte. O centro é a ideia e deste centro chegamos à essência, que é a escrita do plano. Contudo, são estas várias visões que produzem a minha ideia sobre o plano. Estávamos em 1994. Quando fiz o Fragments Between Time and Angels, provavelmente pela distância – estava longe do meu país, do quotidiano, da família, longe de uma série de referências, tinha outra disponibilidade – tive mais tempo para investir na construção dos planos. Percebi que precisava de equilíbrio para fazer um plano. Para além de o plano ser a unidade, a essência, a peça de um jogo complexo, o plano tem características e uma respiração própria que facilita a montagem. Sem esquecer um assunto que muito trabalhei, o edit paper, que consiste em escrever a própria montagem em papel antes de avançar para a montagem dos planos de imagem e som. AIS: Desde que começaste a ensinar, então, isso foi logo muito importante para ti? PSN: Quando comecei a ensinar não tinha isso tão presente, estava mais preocupado com a linguagem do que com a questão de fundo do plano. Hoje, acho que as condições são outras e a discussão central que me estimula é mesmo a construção do plano. Interessa-me defender e promover o conceito do “plano Lumière”, é um primeiro exercício que faço com os alunos, um plano de 56 segundos que se relacione com o quotidiano, com o que os rodeia, numa abordagem inicial mas intensa. Esta matéria criativa começou muito cedo, sem que lhe desse um nome muito claro. Comecei a ensinar numa época que coincidiu com o aparecimento do vídeo. Nessa fase comecei a fazer um exercício que ainda hoje me fascina e faço com regularidade: filmar e editar com a própria câmara. Esta ideia nasceu com as poucas condições de edição que os alunos tinham: não era fácil editar analogicamente, mais tarde mesmo os computadores não eram acessíveis, então esta foi uma solução prática que funciona bem. Facilita muito o processo de aprendizagem: podemos pensar, filmar e visionar uma base pré-editada, mas com razoável espaço de discussão. Em resumo, começo por dar grande liberdade aos alunos, com o objectivo claro de promover a disciplina do olhar; balizo e proponho várias possibilidades para uma melhor performance do processo de aprendizagem – por vezes pode passar por tentar “editar” o máximo dos planos na câmara. Desta forma, o plano passa, do ponto de vista da produção, a ter uma carga muito mais forte, porque construímos uma consciência mais profunda sobre o acto de escrita do mesmo, na preparação e na escrita com a câmara. Pensamos ainda na montagem porque temos de colar um plano com o seguinte e o desafio é ajustar o corte o melhor possível. Ainda hoje faço estes exercícios e obtenho resultados muito interessantes.
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AIS: Começaste a ensinar quando? E onde? PSN: Interessei-me pelo ensino do cinema há muitos anos. Depois de acabar o curso de cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa, recebi uma bolsa para estudar um ano no Centr Calassanç, hoje Escola Superior de Comunicação, Audiovisual e Cinema, em Barcelona. No final desse ano fui convidado para ficar como professor assistente na área de realização. Fiquei maravilhado mas não aceitei, queria continuar a estudar e a viajar. Sempre me interessou o ensino, tive muito cedo algumas experiências a leccionar. Complementei a minha formação em diferentes países da Europa. Acumulei experiências e explorei-as nos filmes e no ensino de cinema. Embora o cinema não se ensine, pratica-se. De regresso a Portugal, interessou-me a questão de saber como poderia contribuir para uma melhoria da oferta formativa a que eu próprio não tive acesso. Coisas simples e práticas. Em 1997 ensinei em Glasgow: fui convidado a regressar a Glasgow depois de ter filmado Fragments Between Time and Angels e fiquei ligado, numa fase, à Universidade de Edimburgo, mas muito mais à produtora Glasgow Film and Video Workshop. No entanto, as primeiras experiências foram em 1993, em Barcelona, embora tenha começado a leccionar mais cedo, nalguns projectos singulares, com outras práticas também fundadoras. Mais tarde as coisas começaram-se a solidificar, e entre workshops e pequenas intervenções, fui convidado a leccionar na Universidade de Essen, na Alemanha, conduzi um seminário numa licenciatura, comecei a gostar do desafio que o ensino encerrava. Depois aconteceu algo que desejei e procurei: o convite da Escola Superior de Teatro e Cinema para criar a base e leccionar a cadeira de Cinema Documental do curso de cinema. Este convite veio no seguimento do I Curso Europeu de Realização em Documentário, que fiz em articulação directa com a Escola. Recordo que até então não existia qualquer relação na Escola com o cinema documental. A partir de 1998, as coisas começam a ganhar uma dinâmica. Isto foi há sensivelmente treze anos. Paralelamente, e ao longo dos anos, acumulei outras experiências nas escolas: Fórum Dança, Escola Ana Wilson, Cem – Centro em Movimento, SOU – Escola de Artes Performativas, onde me convidaram para ensinar a relação do performer com a câmara e a área de produção/realização. Estas experiências foram-se somando a este projecto maior que desenvolvi na ESTC, onde leccionei a relação do actor com a câmara na área do Teatro, e de certa forma o oposto no cinema: documentário. Tenho tido imenso gosto por cruzar tantas e tão diferentes matérias fílmicas e laboratoriais. Em 2004, a directora da ETIC convidou-me para coordenar pedagógica e criativamente alguns cursos da escola. Desenhei e arquitectei vários cursos destas áreas, promovi a articulação entre teoria e prática. Na ETIC fui ainda director criativo e iniciei funções de director pedagógico da Escola. Sempre me interessei muito pelo ensino numa visão transdisciplinar e pude desenvolver esse projecto na ETIC com estratégias de relações nacionais e internacionais e formação de tendências artísticas para um ensino com objectivos de Excelência. Na formação de tendências, tem de ficar claro que não tendo a levar o aluno a fazer o que gosto ou aprecio, ou que acho que deve ser feito… Pelo contrário, provoco uma escuta do aluno, preocupo-me com o que se passa com o aluno, procuro a melhor aproximação possível. É uma aproximação. Não é uma colagem, não sou eu, mas é o respeito pelo mundo do aluno. O sentido pedagógico é também o mundo do apreço – e eu respeito.
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Se o aluno quer fazer um filme de terror, eu apenas quero estar ao seu lado. Será um filme que marcará uma tendência, uma perspectiva, e quero estar perto do processo criativo do aluno, sem o forçar a abandonar as suas ideias. Listo e discuto o equilíbrio do projecto. Estou desperto e disposto a seguir desafios coerentes com forte sentido experimental. Tento promover, como criador, na formação das minhas tendências, uma visão/promoção do olhar dos que me acompanham. Olho e questiono a necessidade, perante este mundo de imagem, no qual todos os dias se criam toneladas de imagens, qual é o meu lugar, o nosso lugar. Tento perceber o que nos distingue, como vejo e ouço um filme. Olho e penso num filme como um corpo que pulsa num determinado tempo, que apresenta riscos, despista, tem fragilidades. Tento perceber como me sinto e como penso no filme. Caminho obsessivamente na perspectiva de que estamos a narrar o que somos. Sem rigor, é impossível materializar uma ideia. Somos, sobretudo, visionários com rigor.
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Ana Isabel Soares é professora do PPF em “Comunicação, Cultura e Artes” da Universidade do Algarve, Portugal.
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ENTREVISTA
João Dias Lisboa, Fevereiro de 2010 ANA ISABEL SOARES*
Uma versão mais curta desta entrevista foi publicada em Novas & Velhas Tendências no Cinema Português Contemporâneo, CIAC, ed. Biblioteca da Escola Superior de Teatro e Cinema, 2010. Ana Isabel Soares (AIS): Fala-me do teu trabalho atualmente. João Dias (JD): Tenho três projetos a meio. A certa altura, achei que seria mais seguro avançar em várias frentes. O tempo de desenvolvimento de cada projeto é enorme e ter três foi a forma que encontrei de manter uma relação constante com o trabalho. AIS: Isso já depois de teres terminado o filme Operações SAAL.1 Há quanto tempo fechaste esse projeto? JD: O SAAL fechou vai fazer agora um ano. Houve várias versões: a primeira, de meia hora, foi apresentada na Universidade de Évora, num seminário organizado pelo João Gabriel [Soares]; no ano a seguir, na Trienal de Arquitetura de Lisboa já foi apresentada uma versão de oitenta e poucos minutos; só depois é que foi apresentado no DocLisboa, em 2007, onde obteve o prêmio de distribuição – a distribuição aconteceu em cinema em Maio de 2009, dois anos depois do prêmio. Esses dois anos permitiram-me fazer a versão final do filme, de cem minutos.
1
SAAL é acrónimo de Serviço Ambulatório de Apoio Local, um programa de habitação social em Portugal. O despacho do Governo que regulamenta o SAAL data de 6 de Agosto de 1974 e foi emitido durante o II Governo Provisório, poucos meses após a revolução democrática no país. Mais de dois anos depois, a 27 de Outubro de 1976, um despacho do Ministro da Administração Interna e do Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção (MHUC) suspende, mas na prática encerra definitivamente ao processo SAAL. Nesse despacho pode ler-se que “algumas brigadas SAAL se desviaram, de forma evidente, do espírito do despacho que as mandava organizar, actuando à margem do Fundo Fomento de Habitação (FFH) e das próprias autarquias locais”, que não tinha sido dada às Câmaras Municipais “a possibilidade do seu contributo, nem ao FFH […] solicitada a ajuda técnica conveniente para este tipo de operações, nem os terrenos se conseguiram com a celeridade que o processo impunha, nem o número de fogos construídos até esta data tem qualquer significado”.
AIS: Foi aquela que passou no cinema? JD: Foi exatamente a que passou nos cinemas. Portanto, acabou em Maio de 2009. Neste momento tenho os três projetos que estão a meio: já todos arrancaram, nenhum acabou. Estão em diferentes fases, cada um deles. Um é uma curta-metragem de ficção, que há-de acabar daqui a um mês, está rodado, estamos em montagem; outro é um projeto sobre turismo de massas, centrado na questão do Algarve, que está a ser desenvolvido em colaboração com o João Gabriel [Soares], e o arranque desse projeto está muito ligado à tese que ele apresentou em Itália. É um projeto muito dispendioso, que não podia ter sido feito somente com o meu voluntarismo e alguns tostões que conseguisse juntar. Primeiro, porque estou em Lisboa e aquilo é no Algarve; depois, porque é no Verão, ou seja: turismo. E tenho que andar por aqueles sítios onde um português ou alguém que viveu no Algarve nunca se lembraria de ir, aqueles sítios onde nunca vamos, e que são sítios muito caros. Filmar lá, mesmo com equipas muito reduzidas como a minha, de duas pessoas, é muito, muito caro: as pensões, uma loucura, a comida, uma loucura… Como em nenhum destes casos – neste do turismo no Algarve também não – tenho uma estrutura, se assim se pode chamar, de produção por trás, tenho uma série de problemas que de outro modo seriam resolvidos pela produção. A produção poderia, digo eu, arranjar as refeições. Por exemplo, almoços e jantares junto das Câmaras Municipais – em cantinas, organismos ligados à Câmara, o que fosse; dormidas em albergues. Portanto,
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não tendo essa estrutura de produção por trás, a parte do dinheiro que o produtor deste filme arranjou – adiantou 1500€ – usei-a imediatamente para filmar, que era a forma de garantir que o projeto ia para a frente. A idéia foi irmos logo, mesmo sem grande preparação de investigação, ir só lá para baixo, rapidamente para o terreno, para assegurar que o projeto seria feito. Tinha que fazer logo de início um núcleo de trabalho denso, para poder provar que o projeto era viável. AIS: Ou seja, esse projeto não tem um produtor. A quantia de que falas é uma quantia caseira… JD: É uma coisa caseira – este produtor arranjou-me este valor… Mas daqui a pouco posso falar-te dos produtores em Portugal. AIS: A questão é que estás a trabalhar sem produção, é isso? JD: Exatamente: mas porquê? Porque esta estrutura… – e sem querer dar uma má notícia sobre este produtor individualmente, porque o problema da produção é um problema geral de Portugal, que é um caso que eu conheço, mas não é o caso deste ou daquele. A verdade é que, das produtoras que estão a funcionar, muitas delas surgiram de realizadores que quiseram tornar-se produtores para poderem eles próprios filmar. Só que a certa altura é preciso aumentar a produtora criada. Ou seja, são produtores a meio gás. Portanto, não têm efetivamente uma estrutura de produção. Têm uma estrutura de produção que funciona enquanto chove o subsídio. Aí contratas temporariamente os assistentes de que precisas e a produtora tem existência, passa a ter existência efetiva. Quando o subsídio termina, a produtora entra numa espécie de hibernação. O que este produtor tentou fazer, pelo que percebi, porque gostava do meu trabalho, foi tentar segurar-me: criar logo um vínculo comigo, de maneira a que eu não fosse pôr o projeto noutro lado. Até porque acredito que ele de fato tem interesse – é uma pessoa que conhece o Algarve muito bem, portanto tem um entusiasmo pessoal. Então faz este truque. Claro que isto não é produção: foi arranjar 1500€, que é um valor quase absurdo para filmar. O filme é feito com duas pessoas, sem honorários, e esses mil e quinhentos já foram para pagar a gasolina, as deslocações, as refeições, umas cassetes… Como é um projeto dispendioso, entretanto, estamos a concorrer ao ICA, que até agora não conseguimos. Estou à espera até ao final deste mês de alguma notícia, mas não acredito muito. AIS: Estás a fazer as filmagens todas em digital? JD: Em HDV. Filmei As Operações SAAL em Mini-DV. Mas aquilo que estou a fazer depois d’As Operações SAAL já é muito diferente, mesmo em termos da abordagem visual, de como as filmagens decorrem, do que é que se filma – as coisas estão a ser feitas de forma diferente do SAAL, que era muito voluntarista, em que a pesquisa acontecia ao mesmo tempo que ia filmando. AIS: Como é que aconteceu o processo d’As Operações SAAL? Uma vez que estás a referir-te a diferenças entre esses dois momentos, seria interessante ver como é que foi um projeto e como estão a ser agora os outros, para se perceber exatamente qual é a tendência da tua abordagem. JD: O surgimento d’As Operações SAAL tem várias fases. E tem uma história provavelmente longa. Tenho que ir lá atrás no tempo… Há uma associação cultural, extinta neste
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momento mas que em 2006 estava a funcionar, e bem: era uma associação cultural que promovia eventos. Não sei descrever exatamente quais eram os objetivos desta associação, mas alguém dentro dela se lembrou um dia de promover um evento que comemoraria o primeiro concerto de rock em Portugal a seguir ao 25 de Abril. Decidiram organizar uma espécie de encontro com um jantar de convívio entre pessoas que tivessem estado naquele concerto. Eu não fazia ideia do assunto – nem sequer fui ao concerto, aliás, não estava cá (risos). Foi a 7 de Março de 1975, uns dias antes do golpe da Direita, do 11 de Março [no já inexistente Pavilhão Dramático de Cascais]. O ambiente estava ao rubro: era o MFA2 a cobrar bilhetes, era o MFA a fazer a vigilância – a certa altura entrou toda a gente. Então, havia este jantar e pediram-me (conhecem-me, é normalíssimo, eu trabalho como editor de vídeo e filmo, faço um bocadinho de tudo); perguntaram-me se eu podia organizar umas imagens para passar, para alimentar o convívio dos espectadores do concerto. E foi a primeira vez, isto em 2006, finais de 2005, que me foi feita uma encomenda, estritamente profissional, para filmar qualquer coisa, para fazer uma espécie de um projeto de filme. Eu estava desesperado por conseguir algum dinheiro para filmar, por começar a fazer uns testes, umas aproximações, e agarrei essa oportunidade. Não te sei dizer quanto é que foi, mas era muito pouco. O que decidi nessa altura foi que, como não havia imagens de arquivo, do concerto, faria um filme sem imagens de arquivo. Então fomos à procura das pessoas. Acabei por fazer um filme de vinte e cinco minutos, todo com base em depoimentos de gente que tinha estado no concerto; mais tarde juntei a esses depoimentos um conjunto pequeno de fotografias que surgiram entretanto, do concerto. Este projeto, que era para acompanhar um jantar de convívio, tornou-se num filme que acabou por ser editado em DVD e de que foram vendidos centenas de exemplares na FNAC. Chegou a estar em terceiro lugar no top de vendas da loja da FNAC em Cascais. Chama-se Genesis, Cascais 1975.3 Ora bem, foi um filme em que eu depositei muito de como já registar certas coisas. Tinha ideia de que era possível… Há certas coisas que eu acho que funcionam, vamos ver se elas funcionam. Isto correu tão bem que o filme saiu do âmbito desse jantar convívio e pagou-se a ele próprio. As vendas do filme, que foi editado com mais não sei quantos extras que a Extra-Muros [Associação Cultural para a Cidade em Portugal] tratou de conseguir, correram muito bem. A Extra-Muros ficou surpreendida com o acontecimento, entusiasmada, e pensaram em começar a promover documentários, que era fantástico. Tiveram essa ideia de lançar um programa de promoção de documentários. Não eram eles os produtores, mas promoviam, eram promotores dos projetos. O leit-motiv destes projetos era o documentário: queriam juntar dez realizadores e entregar a cada um deles um determinado tema: os documentários seriam sobre temas estruturantes da sociedade portuguesa decorridos naquele período a seguir ao 25 de Abril, até aos anos 80. Foram eles, a Extra-Muros, que elencaram uma série de ideias. Tinham por exemplo, o que deu origem ao projeto, o primeiro concerto rock em Portugal, que foi o concerto dos Genesis (se não me engano o último concerto deles com o Peter 2 Movimento das Forças Armadas. 3 “O Genesis é um filme que não integro na minha filmografia. Foi um filme muitíssimo condicionado. Posso falar dele, mas é um filme em que não considero que tivesse tido liberdade: estive muito condicionado, com um deadline marcado, e a certa altura perdi o filme.” (Nota de João Dias, posteriormente à entrevista.)
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Gabriel). Ora, elencaram essa série de temas. Um deles era o concerto do Léo Ferré, outro era o Canto Livre (estes encontros de Canto Livre que aconteceram até ao final dos anos 80, mais ou menos), outro era a Reforma Agrária, outro era sobre as Campanhas de Alfabetização, outro tinha que ver com os médicos, precisamente como com os professores, arquitetos, um programa em que os médicos vão para a província – e o SAAL. Dentro destes dez temas surge o SAAL. AIS: E era um realizador para cada tema, é isso? JD: Era um realizador para cada tema. Visto o meu filme sobre o concerto dos Genesis ter gerado confiança para eles se lançarem na promoção de um projeto deste gênero, acharam por bem que eu fosse o primeiro realizador a contatar. E recebo um telefonema do Mário Caeiro, uma das pessoas da Extra-Muros, que me diz “Então, João Dias, vamos arrancar com isto, temos aqui dez temas, vou-tos dizer”, e disse-me os dez temas – claro, quando ele me falou no SAAL eu agarrei imediatamente, porque o meu pai esteve envolvido no SAAL, portanto o SAAL era uma coisa que não me era estranha. E assim foi. Eles contataram um produtor, que não é exatamente um produtor, é uma pessoa que tem equipamento técnico disponível, o Abel Ribeiro Chaves, que tem uma loja de vídeo que está agora a fazer 25 anos, ali nos Restauradores; é um clássico do vídeo em Portugal. A verdade é que ele tem dado apoio a uma série de gente no início de carreira – em coisas que nos parecem muito simples: uma câmara, umas cassetes, um microfone. Bem, apresentaram-me ao Ribeiro Chaves, que eu já conhecia mais ou menos de lá ir à loja em nome do Edgar Pêra, com quem trabalhei. O Ribeiro Chaves arranja… – não tivemos apoio, não tivemos nada –, pôs do bolso dele à volta de 1500€, julgo que era isso, não sei se chegava a tanto, uns duzentos contos, mil Euros, e deu-nos cassetes, micros, tivemos uma câmara emprestada da assistente de realização, que era a Leonor Noivo, foi ela que cedeu a câmara, e a idéia era fazer um filme de meia hora. Ou seja, uma coisa do gênero daquilo que tínhamos falado em relação ao filme dos Genesis. Um média-curta metragem documental. O que eu faço com esse dinheiro é ir imediatamente para o Algarve, porque era onde eu em relação ao SAAL tinha os contactos mais estabelecidos, para onde era possível arrancar com o valor e com uma equipa de duas pessoas. Vou para o Algarve duas ou três semanas, ganho as entrevistas com o [arquiteto José] Veloso, com o [arquiteto] Lopes da Costa, ganho também a entrevista com o [projetista] Manuel Dias; com o [arquiteto] Moitinho já não foi possível, que já tinha falecido, mas de qualquer maneira o Manuel Dias levou-me a visitar um bairro dele. Portanto, vi e filmei imenso no Algarve. Cheguei cá a cima a Lisboa e tive condições para dizer “meus amigos, isto está aqui, eu já filmei isto e vou continuar a filmar isto até achar que acabou, sou eu que vou tomar esta decisão”. Portanto, essa idéia de começar a trabalhar logo e criar um núcleo de trabalho foi para poder fortificar uma posição de negociação. AIS: O teu modo de produção tem sido um pouco condicionado pelos contextos – é muito essa atitude de aproveitar uma brecha e de te instalares a filmar. Atiras primeiro e pensas depois? JD: Exatamente. Isso não foi uma decisão consciente. Não há programa. Aliás, no caso do SAAL, a certa altura, quando já estava próximo do final da montagem houve um script, um roteiro. Decidimos pôr o filme no papel, já perto do final, para nos distanciarmos do que já tínhamos filmado. Ao ser obrigado a escrever o filme
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consegui perceber em que pontos é que havia vazios, em que pontos havia cenas que não tinham razão para lá estar – no projeto de montagem não nos tínhamos apercebido, achamos que ritmicamente tudo tinha importância, mas quando passamos para o papel percebemos. Foi já muito próximo do final da montagem, para garantir que o que tínhamos feito na montagem estava certo. É uma reação até de alguém sem grande experiência, porque a minha vinda para o cinema é relativamente tardia – passei pela fotografia, fiz uma série de coisas. AIS: Não fizeste a Escola de Cinema? JD: Não fiz a Escola de Cinema. A minha formação é em fotografia. Sou fotógrafo. O que escrevo nos recibos das Finanças é “fotógrafo”. Isso que surge de forma não programada, passados dois anos percebo: há um padrão aqui. Neste momento é um processo assumidíssimo de trabalho, porque continuo a trabalhar assim. Ora o SAAL, não sei se tens noção do ranking de espectadores do filme. Houve muita gente – são mais de 1.600 espectadores só naquela sessão de cinema, no City Classic Alvalade, em Lisboa. Existem umas tabelas na net, que o Instituto de Cinema e Audiovisual disponibiliza, e em que se vê: esses 1650 foram para quantas sessões, e para quantas cópias? Uma cópia, para muitas sessões (creio que foram cinquenta e tal). Quando vês os outros filmes acima nesse ranking, têm sessenta cópias. Se vais ver na net, foi um blockbuster! Proporcionalmente, se formos ver, este filme, As Operações SAAL, pagou-se a si mesmo. Neste momento, o filme em que estou mais empenhado, que é sobre justiça de menores, surge de uma encomenda muito concreta: fazer o levantamento arquitetônico e paisagístico da Colônia Correcional de Vila Fernando em Elvas. É um trabalho com acompanhamento de uma historiadora e de um arquiteto, e estava incluído num programa mais vasto, de levantamento destas instituições que estavam agora a fechar – fecharam assim de seguida uma série delas, 40% do parque fechou de uma vez. Isto iria resultar num vídeo de 25 minutos, a ser apresentado quando o livro – que era o centro do projeto que eles tinham – a ser apresentado quando o livro fosse apresentado; viria um pouco a reboque da apresentação do livro. O que acontece é que, ao longo deste trabalho tive oportunidade de contatar com pessoas que desconfio que sejam neste momento as pessoas que em Portugal mais sabem sobre o assunto e sobre a justiça de menores em Portugal ao longos dos últimos cem anos. E comecei a relacionar-me com isto da mesma forma que me relacionei com o SAAL, ou seja: não tenho formação nessa área, venho de fora, venho, digamos assim, com um interesse de cidadão por estas coisas, com uma abordagem muito humilde, não tenho os instrumentos para perceber aquilo, mas com a intuição de que havia ali material para continuar a trabalhar no assunto. Portanto, tal como andei três anos a ler sobre arquitetura, que era como me tinha dedicado de forma sistemática, por curiosidade, em relação à justiça de menores gerou-se o mesmo acontecimento: neste momento desde há um ano e meio que a minha bibliografia de cabeceira são os livros relacionados com justiça de menores, instituições destas na Europa e nos Estados Unidos. Foi uma encomenda, são encomendas institucionais, sobre a qual achei que ali estava uma coisa que eu poderia fazer. Isto é assim porque é a única forma como eu consegui até agora trabalhar. Volto a lembrar que isto não surge de um programa, de uma decisão, de “as coisas deviam ser feitas assim”. É puramente reativo. Por uma questão muito simples: para mim, pessoalmente, é-me muito difícil não ter uma relação diria quase quotidiana com os instrumentos
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do meu trabalho, com o trabalho de montagem, com o trabalho de filmagem – sou uma pessoa que filmo, monto, e preciso de uma relação próxima. É-me muito difícil estar dois anos à espera para poder concretizar um filme. Portanto, mantenho os concursos ao ICA, mas é impossível ficar à espera – senão, não teria feito nada. AIS: Fala-me da tua experiência técnica. Há pouco referiste o teu trabalho com o Edgar Pêra. Quando é que começas a trabalhar como cineasta? Já trabalhavas no meio do cinema antes da encomenda do concerto? JD: Sim. Já tinha experiência de montagem e de filmar. Estudei fotografia numa escola profissional – fiz um curso profissional, 12o ano, nível 3, em fotografia. Quando esse curso acabou, estava o Edgar Pêra a filmar A Janela Marialva Mix. Eu saí da escola e soube disso; já tinha dois amigos que tinham entrado para lá e que me contaram que aquilo era fantástico, que eu podia ir para lá estagiar. Assim foi: fui estagiar na área de imagem, como assistente de imagem nesse filme do Pêra. A seguir, o filme do Pêra entrou em montagem e eu continuei a trabalhar na montagem, ainda como estagiário. A certa altura, criou-se mesmo um vínculo laboral, porque o Pêra e o Miguel Gomes da Costa, que na altura era produtor dele, criaram aquilo a que chamaram Akademia Luso-Galaktika, em que chegaram a estar quinze pessoas da minha idade (uns vinte e três anos) a trabalhar, não só n’A Janela, mas também noutros filmes (que o Pêra arranja sempre vários). Esta ligação com o Pêra foi uma escola fantástica que durou dez anos. Com intensidades diferentes, mas até ao último trabalho que fiz com ele foram dez anos de relação sistemática: todos os anos havia trabalho. Os primeiros quatro anos foram muito intensos – três, quatro anos muito intensos de trabalho com ele. Depois disso, por termos mantido uma boa relação, fui sendo chamado. Foi seguir passo a passo. AIS: Tinhas esse trabalho quotidiano… JD: O Pêra tem essa relação com os materiais – todos os dias sai de casa e vai para a mesa de montagem, ou pega na câmara e vai filmar. Tem uma relação muito visceral com os materiais. Foi um pouco aquela escola de fazer tudo: estamos todos em formação, temos uma paixão fortíssima por isto tudo, e fazemos tudo: montamos, filmamos, preparamos projetos. Se tive uma formação, se assim se pode chamar, em cinema, foi essa. Foi esse período com o Pêra. Sendo que os primeiros quatro, cinco anos, são mesmo de formação e os últimos cinco já assumidamente com lugares absolutamente identificados, seja como montador, seja como diretor de fotografia. A nossa relação termina quando eu próprio começo a filmar o Genesis. Quando fiz o Genesis percebi que era aquilo que queria, e depois desse filme lanço-me imediatamente para o SAAL, e desde essa altura tenho estado constantemente a trabalhar, tenho sempre um projeto para fazer. Continuo a trabalhar, para ganhar dinheiro para pagar a renda, essas coisas, continuo a trabalhar como montador, em direção de fotografia, em vídeo. Em película não trabalho ainda, que não me arrisco, é outra coisa – não tenho experiência para isso. Na verdade, o que quero é conseguir ocupar cem por cento do meu tempo nos meus projetos. Trabalho quase loucamente. É talvez um bocadinho de obsessão. Este percurso, ao mesmo tempo que tem algum valor, traz uma série de dissabores. Sou um autodidata – e o autodidatismo gera vícios. Para já, falta um acompanhamento rigoroso, numa fase de formação; geram-se imensos vícios de trabalho. Há coisas que hoje estou a tentar… – por exemplo, coisas que sinto que o pessoal que andou no
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Conservatório tem grande facilidade de fazer e em que eu tenho alguma dificuldade. Tenho alguma dificuldade em conceber um projeto. Não que tenha propriamente o problema de escrever. Vou dar um exemplo: quando pedem uma nota de intenções, passo três dias a tentar perceber o que é que escrevo: isto, isto, ou aquilo? Não é que não saiba o que é que lá ponho, mas destas três coisas, o que é que pertence à “nota de intenções”? Acho que quem fez o Conservatório resolve isso em três tempos – a malta da Escola. Porque aprendeu a fazer isso, fez todos os anos. E acho – agora faço uma auto-crítica – que provavelmente o fato de eu não ter tido nenhum subsídio tem a ver com o fato de não ter conseguido, de não ter percebido exatamente como é que se monta um projeto ganhador para um júri deste gênero. É preciso ter um pragmatismo, uma inteligência, uma esperteza, mas sobretudo pragmatismo, no momento de escrita. Porque não podes entregar uma coisa qualquer. Tem que ser uma coisa completamente pragmática, são profissionais que estão a ler aquilo, lêem aquilo na diagonal e topam logo: ou qualquer coisa ou nada. Ora, estou a ter algumas dificuldades durante o último ano. Entretanto, nos últimos dois anos passei por uma espécie de fase final de formação: comecei a trabalhar com o Pedro Costa. Além de uma relação regular, porque trabalhamos na mesma produtora, a OPTEC [Sociedade Óptica Técnica], que produz os filmes do Pedro Costa e que tem este espaço, onde ele trabalha e onde eu, numa outra sala, trabalho também diariamente, a OPTEC não me cobra renda para estar aqui, é um apoio que me estão a dar. A relação com o Pedro Costa, ainda por cima tendo vindo do Edgar Pêra, é uma coisa muitíssimo forte. Daí eu ter sentido que não é apenas a oportunidade de trabalhar com alguém cujo trabalho admiro e de quem gosto muito, mas é sobretudo a oportunidade de fechar um ciclo, de conseguir colmatar algumas lacunas na minha formação. Coisas que com o Pêra não eram possíveis, por variadíssimas razões – afinal, um é o Edgar Pêra e outro é o Pedro Costa, são um extremo e outro. Já aconteceu a oportunidade objetiva disto: já colaborei na montagem do Ne Change Rien. É uma parte da minha formação em que já me apercebi de uma série de coisas: coisas de que precisava e de que não tinha exatamente a noção de que precisava. AIS: Quando te referes a coisas que faltavam, estás a referir-te a coisas que faltavam nos teus projetos? A minha pergunta é: aquela aprendizagem que tens estado a ter, primeiro com o Edgar Pêra e agora com o Pedro Costa, transporta-la imediatamente para aquilo que queres fazer? JD: É uma coisa egoísta, num certo sentido, sim. Esta colaboração com o Costa é qualquer coisa de complementar em relação ao Pêra. Não sei como hei-de explicar a diferença entre eles… É uma diferença que existe como valor próprio entre os filmes de um e do outro. AIS: Não me interessaria tanto saber o que pensas da obra de cada um, mas saber o que é que tu, enquanto realizador, captas de um e captas de outro. JD: Tentarei ser muito factual. No trabalho de montagem, por exemplo. Falo de questões metodológicas. No Pêra há uma imersão brutal no material. É uma coisa muito, diria até, excessiva. É um trabalho de montagem muito, muito intenso. O trabalho de montagem é efetivamente feito na mesa de montagem. Dizer isto é redutor, claro, porque a obra, o estilo do Pêra, não se resolvem na mesa de montagem. Mas se pudéssemos ter os dois aqui a trabalhar, essa diferença seria muito visível. O Pêra testa muito na montagem. Faz
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várias versões na montagem. Por vezes temos que voltar à versão do mês passado, porque perdemos qualquer coisa pelo caminho. Acontece que o Pêra tem uma relação muito boa com a filmagem, com os materiais – ele sabe, ele monta. O Pedro Costa tem uma relação mais distanciada, mais fria, mais intelectualizada. Estou a falar disso com a idéia de que são coisas complementares uma da outra na minha formação. Por exemplo, em termos metodológicos, no trabalho de montagem, uma das coisas que o Costa me dizia era, “Larga isso. Olha, vai para casa dois dias, senta-te a ver um filme, e daqui a uns dias volta”. Isto era uma coisa que não existia no Pêra. Não existia porque não podia existir, porque o Pêra não trabalha efetivamente assim, e se fosse assim aquilo ruía. O Pêra trabalhava sempre com muitas pessoas, tinha, por exemplo, seis pessoas a filmar para ele e não podes dizer a essas pessoas para parar três dias, senão a máquina desmancha-se. É preciso entender a estrutura para perceber porque é que ele não o faz dessa maneira. O Costa – atenção, o Costa filma, é ele que filma. É elementar o que vou dizer, mas com o Pêra eu filmava com a câmara na mão e com o Costa, não é que tenha filmado com o Costa, mas por influência dele a minha relação com a câmara fixa, com o plano fixo abriu-se pela primeira vez. AIS: Se realizasses hoje As Operações SAAL, ou o Genesis, já farias de maneira diferente? JD: Faria, de certeza absoluta. E não digo que essa maneira diferente fosse consequência do meu trabalho com outro realizador; não seria só por isso, nem sei se isso seria o motivo principal. No SAAL acho, se for visto com alguma generosidade, percebe-se que as condições materiais de produção estão à vista. E essas condições materiais acabam por ser o próprio subtexto do filme, qualquer coisa que está presente e que o marca. Daí que, na apresentação do SAAL, tenha pedido alguma generosidade, para que compreendessem. Isto porque, desde que o SAAL foi apresentado em sala – apercebi-me disso há poucos meses – há um ano, tem sido apresentado em condições excelentes. Ou seja: de repente, aquele filme, na última apresentação, que foi no âmbito da Trienal de Arquitetura, no Teatro Camões na Expo, é mostrado com uma super projeção, com um som fantástico, uma platéia fantástica, tudo super requintado. E apercebi-me de que havia ali coisas que não batiam certo. Esta sofisticação de meios na exibição contradizia em tudo aquilo que tinham sido os meios da produção. Então, pensei sobre que especulações fariam as pessoas que estavam a ver o filme quando foi projetado daquela forma. Terá influência este contexto tão oficial, tão informado, com a presença do Delfim Sardo, de acadêmicos a dar respeitabilidade à ocasião… – qual a relação daquilo com a origem do filme? AIS: Mas tens a consciência de, no caso d’As Operações SAAL, o fato de ser um filme sobre o processo SAAL em particular fez dele um filme importante para os acadêmicos, pelo simples fato de que havia muito pouco material de análise sobre o processo. Havia a tese do [José António] Bandeirinha e pouco mais. JD: Sim, agora tenho – mas não o fiz com essa consciência. Sobretudo o que há quando arranco com o SAAL é a consciência de que não tenho conhecimento para lidar com aquilo; como é que vou entrevistar aquelas pessoas? Uma das primeiras entrevistas que fiz foi com o Bandeirinha. O Manuel Dias disse-me que havia uma pessoa em Coimbra que tinha feito uma tese sobre o SAAL e que era quem mais informação tinha coligido sobre o processo. Antes entrevistei o [arquiteto Nuno] Teotónio Pereira – tudo naquela ambição de querer afirmar o projeto, de querer convencer as pessoas que tinham de me
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dar espaço para poder trabalhar. Com o Bandeirinha também tinha o intuito de perceber melhor sobre o assunto. A primeira entrevista, então, foi ao Teotónio. Eu não tinha experiência de entrevistas, a não ser o que tinha feito no Genesis. Com o Teotónio, ainda por cima, punha-se a questão do antes do 25 de Abril. Levei uns dias a preparar notas para a entrevista do Teotónio. Cheguei lá com três páginas – a certa altura, digo-lhe “mas em 1959…”; ele diz-me, “ah, mas você está muito bem informado!”, e eu percebi que a entrevista ia cair ali, que tinha perdido o entrevistado. Mas tive o sangue frio de perceber isso e pus as notas de lado. Com a consciência de que não podia manter aquela atitude, que não era possível, porque não tinha conhecimento sobre aquilo e não queria fazer perder o tempo àquelas pessoas. Este episódio descreve bem aquilo que é o meu modo de trabalhar: o processo de investigação não está feito antes, de fato. O SAAL é a filmagem da investigação que fui fazendo. Quando vou filmar um bairro, não estive lá no dia antes. O que eu fiz foi ir ter com as pessoas diretamente e filmar. Nenhum arquiteto, nenhum técnico, no filme, é entrevistado duas vezes. São tudo coisas à primeira, sem preparação prévia. AIS: Nalgum momento da pós-produção pensaste que te fazia falta filmar mais? JD: No final, houve uma altura em que se fez um visionamento – pus o filme a passar, em vez de passar na linha de montagem, era em DVD, para nem sequer ter hipótese de parar e ir lá corrigir, para sermos obrigados a ver tudo de seguida. E aí aconteceu uma coisa que eu teoricamente já previa, e que faz sentido que tenha sido assim: tive que ir filmar mais, ao Porto. Fui mais uma semana filmar no Porto – o filme tem 100 minutos, aquilo correspondeu a 15%, foram mais ou menos 15 minutos que filmei dessa vez. Também porque não foi só acrescentar – quando chega novo material, é-se obrigado a repensar as coisas. AIS: Naturalmente, também deve ter havido material de que prescindiste… JD: No caso do SAAL isso deve ter sido a regra… Prescindi de imagens de arquivo, por exemplo. Nós filmamos à volta de 150 horas e ficou com 100 minutos. Mas o filme é uma das valências do projeto. Havia aqui, primeiro, uma angústia em relação aos arquivos. A percepção de que, ao longo de sessenta anos, no Porto, muito por força da presença da Faculdade de Arquitetura, das grandes figuras da arquitetura que estão no Porto, foi sendo feito um trabalho de preservação. Além do trabalho de teorização, nos últimos trinta anos houve algum cuidado em relação aos arquivos. Foram pequenos gestos que foram permitindo manter os arquivos. Não só os arquivos dos próprios arquitetos, que mais ou menos, salvo o caso do Veloso, que tinha uma relação muito mais despegada e ele próprio não sabia bem onde é que tinha os projetos da altura, no caso do Porto foi sempre feito algum trabalho em relação a esses arquivos: fotográficos, de filme, e de uma coisa importantíssima e que merecia um trabalho a fundo e que As Operações SAAL nem sequer aflorou, que é a imprensa das associações de moradores. Então, no caso do SAAL Norte as coisas estão mais ou menos centralizadas, em mãos de privados, nuns arquivos, e tal, mas do Porto para baixo é o caos. Há uma coisa que está dita pelo Bandeirinha: que quando foi ao INH não encontrou os projetos, não estavam lá! O trabalho do Bandeirinha incidiu muito sobre a tentativa de centralizar, de recuperar os projetos. Aquilo que é o espólio propriamente dito do SAAL. Só que, antes do projeto do arquiteto, há uma série de esquiços sobre a casa que o pescador não sei de onde gostaria de ter e que desenhou para mostrar ao arquiteto. Além desses desenhos, existem os registros fotográficos de todas estas operações, com as várias
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fases de obra, a imprensa de moradores, os projetos dos próprios arquitetos (nos quais o Bandeirinha se centrou), ou seja, todo este espólio “não erudito” – não fui eu que lhe chamei assim, foi um arquiteto a quem ouvi a expressão, que achei curiosa – estava disperso; boa parte dele está nas mãos de antigos dirigentes associativos, de associações que já não existem, porque nem todos os bairros mantiveram a associação, e se existem nos dossiês da sede social, foi porque acharam graça a manter aqueles documentos. Há, e tenho noção disso – apercebi-me disso logo no início, logo quando falei com as primeiras pessoas –, esse interesse pelos arquivos, muito pela fotografia, que a mim também me diz muito. A rodagem funcionava assim: chegava ao bairro, entrava já a filmar – não se chega lá com a câmarazinha no saco, a perguntar se se pode filmar; já estás a filmar no carro, sais do carro a filmar, se alguém questiona, não paras de filmar e a questão resolve-se logo ali. Não há aquele processo de chegar e pedir autorização. Se alguém diz que não se pode filmar, a gente baixa a câmara. Isto aprendi com o Edgar Pêra – chegas ao sítio e já vais a filmar, para dessacralizar a câmara, senão tu próprio estás a complicar, estás a dar uma importância terrível à câmara. Ora, então, chegamos ao bairro, encontramos alguém e perguntamos a essa pessoa onde é que haverá um dirigente da associação, alguém que converse, que saiba contar. É o que está no filme. Depois disto, e é o que não se vê no filme, faz-se a entrevista com a pessoa, arruma-se a câmara de vídeo e surge a câmara fotográfica digital. Depois da entrevista há duas coisas: vamos fazer uns planos fixos do bairro, aí a câmara vai para o tripé, já com as entrevistas feitas, e então vamos reproduzir material que esteja nas mãos: sobre uma mesa, nas casas das próprias pessoas, eu reproduzi… são milhares de ficheiros, três mil ou quatro mil ficheiros de reproduções de fotografias, de jornais, da imprensa dos moradores, completos. Não é uma reprodução digitalizada, mas a partir deste momento ficamos com uma cópia daqueles materiais históricos. Seja como for, as coisas estão a mudar. Há quatro anos atrás não havia nenhum movimento como há agora, em que até a Trienal de Arquitetura julgo que está a começar a interessar-se pelo SAAL e a levar aquilo a sério. Na altura ainda não tinha saído a tese do Bandeirinha, estava-se noutra fase. Aqui há um bocadinho de um espírito de missão, vindo da consciência de que me estavam a passar coisas pelas mãos que pode ser a última vez que vão passar pelas mãos de alguém, que este material vai desaparecer. Em relação ao fato de o SAAL se ter tornado um objeto importante no meio acadêmico, como dizes, não havia muita informação. Mas a importância que o meu filme pode ter para os acadêmicos, que possa ser uma marca mais duradoura, não é tanto o ter disponibilizado informação que antes não estava disponível. É ter vindo afirmar, de modo peremptório, aquilo que já estava presente no livro do Bandeirinha – que sai no mesmo ano em que sai o SAAL –, nomeadamente a idéia de que o processo SAAL é um acontecimento nacional e de que a única forma de se fazer justiça ao processo e perceber o que está academicamente por detrás dele é entendê-lo a nível nacional. Quer dizer, reduzir o SAAL ao SAAL Norte… é possível explicar o SAAL Norte, mas não é possível explicar esta pequenina folha A4, redigida pelo Nuno Portas, se não se entender o seu âmbito nacional. O filme As Operações SAAL, o filme que eu realizei é sobre esta folha A4. Começa logo com isso: num pequeno momento que em que se dá o contexto aproximativo do que era antes do 25 de Abril, e depois arranca com uma leitura do decreto, em voz-off. O filme é sobre como é que aquele decreto se foi desmultiplicando, ou renovando, reinventando, conforme as realidades específicas de cada uma das regiões do país. Acho que em termos acadêmicos era isto que era o mais importante.
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AIS: Pensando nos projetos que estás agora a fazer, nomeadamente este sobre justiça de menores e o outro sobre o turismo de massas, são tudo filmes que mostram aquilo que no início desta conversa referiste como o teu interesse enquanto cidadão. Parecem-me documentais de uma determinada realidade sociológica e até política… JD: E localíssima. AIS: Queria perguntar-te se isso faz parte do que queres mostrar, se é consciente, ou se, tal como o modo de produção, também foi acontecendo. Imaginas-te a fazer um cinema que não tenha alguma coisa a ver com o local, que não se relacione com a vida política das pessoas? JD: Não. Só posso filmar desta maneira, não vejo como poderia virar a agulha nos anos mais próximos. É uma coisa antiga que se começa a formar na infância, o resultado destes anos de vida, desde a relação com os meus pais, às relações com os meus primeiros amigos na adolescência, aos primeiros amigos mais velhos que tive no fim da adolescência – todos, por coincidência ou não, foram sempre batendo em situações em que se olhava muito para a realidade do país. Esta paixão tem uma linhagem: existe na literatura, existe no cinema; existem outras linhagens no cinema, na literatura portuguesas, que não são esta. Mas esta existe e é possível recompormos a história pegando só nesta malta. Em mim, é uma questão intuitiva, não é programática. Esta relação não vem na verdade de uma aprendizagem do cinema, não é uma reação a uma aprendizagem do cinema. É mesmo uma coisa natural. No caso do SAAL, era mais óbvio: havia coisas que percebi logo no início do filme, que me puseram um pouco num estado de alma quase de missão. É talvez um pouco arrogante da minha parte dizê-lo – com a experiência que tenho, dizer que tenho uma missão qualquer. Não tenho – mas havia algumas coisas em relação ao SAAL que me perturbavam bastante. Por exemplo, uma delas foi a questão do [arquiteto José] Veloso que, em 1976, quando acabou o SAAL, foi muitíssimo mal tratado. Não só o Veloso, mas o arquiteto Moitinho, que não tive oportunidade de conhecer. Fomos ver as declarações de alguns deputados do PSD na altura, no Parlamento, e havia ataques terríveis ao arquiteto João Moitinho; na cidade de Lagos em relação ao arquiteto Veloso. Além disso, também tive a consciência – qualquer leigo perceberia, não era muito difícil – que este decreto não é um decreto nacional. Um estudante de arquitetura diz-me que o SAAL é uma coisa dos arquitetos do Porto, que decidiram ir para os bairros trabalhar – mas os arquitetos do Porto já o estavam a fazer antes do 25 de Abril. As ilhas estavam cheias de malta. Aí houve logo qualquer coisa que me levou a uma concentração nos objetivos. Não sei explicar muito bem. AIS: É curioso, pois no cinema a única parte do SAAL que era conhecida era precisamente a do Sul, a de Lagos. O SAAL, para o cinema, não era do Porto. JD: Exatamente. Mas eu também tenho um problema em relação ao próprio filme do [António da] Cunha Telles: em muitos momentos o filme caiu num excesso. Por várias razões – aliás, tive oportunidade de o confirmar, já em algumas sessões em que o Cunha Telles apresentou o filme. Há quatro anos ouvi-o falar sobre aquilo e penso sinceramente que ele não estava a par de tudo. Estou convicto que o Cunha Telles não percebeu o que se estava a passar naquela altura – ou então não tinha condições do o perceber, porque o estava a viver. O SAAL, propriamente dito, passou ao lado no filme dele.
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Deixa-me só acrescentar o seguinte: sem que eu saiba exatamente porquê, sobre isso a que agora se chama localismo, sem que eu tenha total controlo sobre o que a palavra quer dizer, sinto sempre que é uma palavra muito próxima daquilo que eu faço, ou seja, reduzir a escala. Ao mesmo tempo que subscrevo o discurso internacionalista, há aqui uma coisa reativa: quando este discurso internacionalista se generalizou, quis ficar do lado da reação em relação a isso. Um pouco como perceber para onde está a ir a maré e tentar ir ao contrário. Em Portugal, muito à conta desta situação complicada em que estamos para se produzir filmes, houve uma idéia de que o exterior é que nos vai salvar, de que as antigas colônias é que nos vão salvar, que é a única coisa que nós temos ainda de relação cultural que possa interessar a quem esteja lá fora. E o país propriamente dito apagou-se para os jovens realizadores portugueses. Eu julgo que esta volta esteja ligada a uma situação de grande dificuldade, que tem a ver com a procura de bolsas de oxigênio para respirar. Então, viram-se para coisas que se pudessem exportar. E há em mim uma tentativa de reagir a isso – nem é contra, isso, mas para contrabalaçar, para estar no contrabalanço disso. AIS: A pergunta que te colocaria a seguir também tem a ver com uma certa internacionalização, mas mais das instituições de cinema. Apesar desse interesse localista, tens interesse em que os teus filmes sejam conhecidos lá fora? Programas isso? És tu que o fazes, ou é o produtor? Com funciona a tua relação com o exterior, dado que não é temática e não é estética? JD: Uma vez mais, não há programa. Neste momento não consigo fazer uma comparação do percurso do filme do SAAL com nenhum outro. Todo o processo é muito sui generis, há muito voluntarismo, muito trapalhão, com alguns erros. Estamos a tentar pô-lo nos festivais. Temos a OPTEC, esta produtora – mas não há uma produtora no sentido institucional do termo, uma situação em que haja uma pessoa que é o produtor, outra que é o assistente do produtor, e que descobrem onde é que estão os festivais… tive que ser sempre eu a fazê-lo. Aquilo que eu tenho na OPTEC é um acesso muito privilegiado a uma câmara, a um microfone, a uma cassete. É aquilo de que preciso. Tudo o resto depende da nossa força de vontade. Tenho as condições técnicas que é possível, além deste espaço onde me deixam estar, mas depende da boa vontade da OPTEC. O filme não esteve nunca nas mãos de um produtor. O mais canônico que houve com o filme foi quando a Midas, do Pedro Borges, decidiu distribuir o filme – foi aí que o filme entrou no circuito que conhecemos dos outros filmes: press releases, compactos para os jornais, lobby, pedidos de artigos sobre o filme, uma sala de cinema, uma notícia no Público – isso foi a Midas que fez, foi a distribuidora, que não é produtora, faz o trabalho de distribuição. Neste momento, o filme teve uma vida, por assim dizer, normal. AIS: Foi um processo de fato muito particular. E desde aí nunca mais se viu nada do que fizeste. JD: Desde o SAAL, não fiz mais nada – ou melhor, não tenho feito outra coisa senão trabalhar, nos tais três projetos, que ainda não estão terminados. AIS: Para quando prevês que os terás prontos? JD: Espero que na próxima ronda de festivais possa levar a curta metragem, que é de ficção. É a minha primeira ficção – houve outras tentativas, goradas.
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AIS: De quem é o argumento? JD: Sou sempre eu, mas neste caso, é uma adaptação muito livre do Robinson Crusoe. Está próximo do filme do Buñuel.4 O da justiça de menores creio que estará pronto daqui a um ano. A questão é saber porque é que é preciso estar tanto tempo à espera. Não sei explicar. Há pouco referi aquela dificuldade minha, de não saber conceber projetos – e então não vale a pena estar com lamúrias, sou eu que não os sei fazer. A curta fi-la com 5000€ que pedi emprestados e que terei de pagar; o de Vila Fernando teve um primeiro orçamento para fazer aquela primeira encomenda institucional, que foi feita – foram cerca de 3500€, foi um bom orçamento e recolhi muito material; aliás, a certa altura pus em causa a primeira encomenda, porque percebi que havia ali material para mais do que os tais 25 minutos. Depois acrescentei 2000€, que a Direção Nacional de Inserção Social decidiu atribuir ao filme. Já me disseram há uns cinco meses atrás que estava garantida esta verba, mas ainda não chegou. Ora, estou a demorar tanto tempo porque não tenho dinheiro. O SAAL, que foi feito ao longo de três anos, poderia ter sido feito num ano. O primeiro apoio financeiro que o SAAL conseguiu foi depois de já estar feito – o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana atribuiu 9500€ ao filme. Uma coisa absolutamente espantosa para todos aqui na OPTEC, até porque tínhamos problemas graves de direitos que tínhamos que pagar. A música do Zeca [Afonso], por exemplo. Já para não falar de imagens que apresentei na versão que passou no São Jorge, no DocLisboa, e que tive que retirar porque não tinha dinheiro para pagar. Eram imagens da NBC, que me cobrava 50€ por cada segundo utilizado e não permitia que utilizasse menos de um minuto. Eram as imagens que haveriam de aparecer no início. O que está agora são imagens do 1º de Maio, mas ali via-se o [Nuno] Teotónio Pereira a sair da prisão. Eram imagens à noite, com o pessoal a sair de Caxias, filmadas por americanos. Mas decidi logo que nem pensar, não pediria dinheiro emprestado para pagar aquilo. Essas imagens a 50€ o segundo foram substituídas por imagens a custo zero, de um arquivo pessoal, em Super8. Se paguei a do Zeca, confesso que perdi algumas noites de sono: num filme em que houve pessoas que trabalharam de graça, por amizade a mim, apareceu-me uma conta exorbitante por causa de um minuto da música que decidi pôr no filme. Mais uma vez, há coisas que não encaixam. Estive indeciso sobre se utilizaria ou retiraria a música. Não retirei, porque estruturalmente ela faz falta no filme. Se naquele momento retirasse aquela música do filme, isso implicaria reformular grande parte. Para contar o 11 de Março precisava da música do Zeca, “lá vêm os nossos soldados…”5 Se a tirasse, haveria trinta por cento do filme que iria ruir. Tinha que voltar à mesa de montagem, porque não era ilustrativa, a música era estrutural. Tive que os pagar. No fundo, o subsídio serviu para “legalizar” o filme, para poder comercializar o filme, para o podermos pôr à venda em DVD. Ainda não saiu, há-de sair, está a ser feito – aliás, o Pedro Borges, da Midas pediu ao ICA um apoio para distribuir o SAAL e não teve. Mais grave do que isso, pelo regulamento o filme estava impedido de receber esse apoio do ICA à distribuição, porque não 4 O curta-metragem Verão teve estréia no festival Indie Lisboa, em 23 de Abril de 2010, e recebeu o Prêmio Associação de Imagem Portuguesa – AIP/Kodak de melhor imagem para curta-metragem portuguesa (2500€ em película e participação no XVIII International Film Festival of the Art of Cinematography, em Lodz, na Polónia), pela fotografia de Daniel Neves. 5 Terceira de três canções para a peça de Richard Démarcy Barracas Ocupação, editadas no album Enquanto há Força, de José Afonso (Editora Orfeu, 1978).
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tinha sido objeto de apoio à produção. Foi o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana que me ajudou a pagar o filme. O filme agora vai para DVD e todo o dinheiro que daí vier será para pagar o filme – porque pretendo que se pague a ele mesmo. Estes filmes têm hipótese de se pagarem a eles mesmos, não dão prejuízo. Veja-se se algum filme produzido com dinheiro do FICA deu lucro. Impossível. Aqueles filmes não se pagam nunca. AIS: Estás a afirmar que o documentário, enquanto gênero, é um cinema mais viável? Ou referes-te em particular aos teus filmes? JD: Estou a referir-me a um formato, a uma maneira de produção – estes filmes pagam-se a si mesmos porque são mais baratos, porque há um acordo, uma justeza entre os objetivos e os meios. O Pedro Costa, aliás, falaria sobre isto melhor do que eu, pois tem dado exemplos de como as coisas podem ser feitas de uma forma mais ética. AIS: Para terminar, uma pergunta que em relação ao SAAL já é absurda, e para a qual já deste praticamente a resposta: fazes algum making-of dos teus filmes? JD: As Operações SAAL é um making-of, num certo sentido! Mas para a curta de ficção que estive a fazer agora, houve um amigo meu, que é fotógrafo, que esteve em várias sessões da rodagem e que fotografou a rodagem. Estou feliz por ter fotografias dessa rodagem, é sempre material útil. AIS: Poderia perguntar-te ainda sobre como preparas os orçamentos dos teus filmes, mas seria risível… JD: Exato [risos]. Por causa dos tais constrangimentos orçamentais é que o SAAL demorou tanto tempo – é que entre as filmagens havia interregnos sem dinheiro nenhum, em que não podia trabalhar. Isso gerou alguns problemas na montagem, comecei a ter uma relação pouco saudável com o processo de montagem. AIS: Porquê? JD: Porque com a rodagem parada eu não resistia e começava a montar o filme. Ora, é muito fácil uma montagem descambar, é muito fácil perderes o filme na mesa de montagem – tão fácil como perdê-lo na rodagem ou ainda antes de o ter rodado. Mas na montagem isso também se põe. No meu caso era mais grave ainda, porque era eu que o tinha que montar. Havia ali uma relação muito complicada entre mim e o material. Eu recolhi o material, eu entrevistei as pessoas, e agora vou montar este filme… precisava de uma distância que não tinha. Como o filme acabou por levar tanto tempo a fazer, em três anos eu mudei – um tipo muda um bocadinho. O filme começou por ser montado de uma maneira e agora a pessoa que vai montar a versão final já não é a mesma que tinha começado aquele trabalho. Canonicamente, não seria assim. Há um processo de montagem: a rodagem acabou, há mais uma coisa ou outra que tem que se filmar, mas acabou – então, mesa de montagem. Nós ainda fomos filmar uma entrevista do [arquiteto] Hestnes [Ferreira] – foi a única entrevista repetida. Fiz-lhe essa entrevista, mas o som ficou com um ruído impossível e por isso fiz-lhe novamente a entrevista. Neste filme sobre a justiça de menores, tudo isto que tenho dito sobre o SAAL, que é aprender fazendo, embora o esquema de produção se mantenha mais ou menos o mesmo, estou a trabalhar de outra forma, menos voluntarista, menos intuitiva. Estou a
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ter algum cuidado, estou a relacionar-me co o filme de uma forma totalmente diferente. Mesmo o resultado dos filmes é outra coisa. AIS: Então, já começaste as filmagens? JD: O do Algarve já o filmei. O de Vila Fernando também já filmei. No caso do de Vila Fernando, que é um documentário, não tenho uma única entrevista. Estamos num terreno completamente diferente. AIS: E no caso do turismo no Algarve, terás entrevistas? JD: O do Algarve é um projeto que eu já tinha começado a filmar quando o SAAL foi para o cinema. Tinha logo outra coisa para fazer. No momento em que comecei a pensálo, o projeto do Algarve ainda era um projeto que teria uma ou duas entrevistas, a dois ou três especialistas naquela área, oradores extraordinários. Não era esta coisa massiva do SAAL, mas ainda tinha. Era um material importante. Neste momento, esse projeto já tens dois anos e neste último ano percebi que as entrevistas eram uma coisa do SAAL e que agora quero fazer uma coisa diferente. Pelo menos agora há uma decisão programática. Nestes dois projetos em que estou a trabalhar os recursos são outros. A relação com o material é outra.
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Ana Isabel Soares é professora do PPF em “Comunicação, Cultura e Artes” da Universidade do Algarve, Portugal.
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PELAS SOMBRAS
ou o desvendar de um segredo de Catarina Mourão e Lourdes Castro ANA CATARINA PEREIRA*
Resumo: Na última edição do Festival Indie, em Lisboa, Catarina Mourão foi a vencedora do prêmio do público para melhor longa-metragem. Pelas Sombras é o retrato de uma artista plástica no quotidiano da sua casa e do seu jardim; ou a descoberta de como a obra de Lourdes Castro evoluiu para algo que não se pode pendurar numa parede de museu. Em entrevista concedida por e-mail, Catarina Mourão desvenda alguns dos segredos de um projeto intimista e pouco convencional. PALAVRAS-CHAVE: LOURDES CASTRO, CATARINA MOURÃO, PELAS SOMBRAS Throught the shadows, or the unveiling of a secret of Catarina Mourão and Lourdes Castro Abstract: In the last edition of the Indie Festival in Lisbon, Catarina Mourao won the Audience Award for best feature film. Throught the shadows is a portrait of an artist in her home and garden; or the discovery of how the work of Lourdes Castro has evolved into something that cannot be hung on the wall of a museum. In an interview by email, Catarina Mourão reveals some of the secrets of an intimate and unconventional project. KEYWORDS: LOURDES CASTRO, CATARINA MOURÃO, THROUGHT THE SHADOWS
Ana Catarina Pereira (ACP): A ideia de filmar Lourdes Castro não parece ter surgido de um impulso. Por quanto tempo se prolongou todo o processo criativo? Catarina Mourão (CM): A ideia de fazer um filme em torno da Lourdes Castro começou em 1997. Na altura, foi uma resposta a um convite da Valentim de Carvalho para fazer uma série de documentários sobre Artistas Plásticos. Nunca me interessei muito por este género documental – “O retrato do artista plástico”… Aliás, nas tertúlias que fazíamos antes da formalização da associação Apordoc, contestávamos muito este modelo de documentário, que parecia ser o único que interessava às televisões. Mas o projecto sobre a Lourdes Castro, continha já um twist que interrogava esse mesmo modelo. Apercebi-me que já há muitos anos que a Lourdes Castro não produzia arte no seu sentido mais convencional – não produzia objectos, coisas materializáveis (todas as exposições da Lourdes Castro mostravam trabalhos mais antigos) – e o desafio do projecto era perceber o que é hoje o quotidiano da Lourdes, o seu presente. De que é que ela se ocupa e de que modo as
Lourdes Castro
sombras continuam a ser o centro das suas atenções. O processo, com muitas paragens e momentos suspensos, durou cerca de 12 anos. ACP: Como começou a conhecer o trabalho da Lourdes Castro? CM: O meu primeiro contacto com o trabalho da Lourdes Castro foi aos 14 anos, quando a minha mãe me levou ao CAM (Centro de Arte Moderna), da Fundação Calouste Gulbenkian, para vermos um espectáculo de Teatro de Sombras, da autoria da Lourdes Castro e do Manuel Zimbro. Esse teatro marcou-me muito. Anos mais tarde, em 1992, vi uma exposição retrospectiva da Lourdes Castro, também na Gulbenkian, e aí mergulhei ainda mais no seu universo. ACP: Mas, como já disse, um dos seus objectivos foi precisamente fugir ao tradicional documentário sobre um artista plástico, com entrevistas a críticos e historiadores… CM: Sim, claramente. Essa fórmula não me interessava, como também não me interessava fazer um filme pedagógico, informativo. Com este filme, queria aprofundar temas e dispositivos que já tinha trabalhado noutros filmes: explorar a ideia de presente, do quotidiano, da repetição, para reflectir sobre o passado; explorar a ideia de microcosmo para reflectir sobre algo mais universal. A Lourdes Castro, artista plástica, era apenas um pretexto ou uma estratégia para falar de outras coisas mais universais e transcendentes ao universo das artes plásticas. Interessava-me muito mais reflectir sobre questões gerais e existenciais, como por exemplo: O que estamos aqui a fazer? O que significa isto de escolher um percurso? Como vivemos com as decisões que vamos tomando ao longo da vida? O que é, afinal, criar? O que é a arte? Como vivemos o envelhecimento e a solidão? Como é que a arte se funde com a vida? ACP: Para quem vive a correria e o stress do século XXI uma vida como a de Lourdes Castro pode parecer utópica, inquietante ou mesmo surreal. Qual foi a primeira percepção da Catarina? E aquela com que ficou no final do filme? CM: No início, o ritmo da Lourdes desconcertava-me, mas adaptei-me e percebi que esse mesmo ritmo teria de ser integrado na forma e metodologia do filme. As suas escolhas parecem, à primeira vista, utópicas, mas na verdade são visionárias. Há-de chegar um momento em que vamos perceber o que é essencial para a nossa felicidade. É claro que as opções da Lourdes são as opções da Lourdes; cada um deve encontrar as suas. O seu
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modelo de vida é o certo para ela. Mas não há dúvida que, da sua vida presente, podemos tirar algumas ideias para todos: a atenção dada ao que nos rodeia, termos tempo para vermos e pensarmos naquilo que nos rodeia, darmos mais importância à nossa relação com a natureza e o espaço que nos envolve. Acho que não é difícil chegar à conclusão que isto é que é qualidade de vida. ACP: Ao contrário da maioria dos portugueses, Lourdes Castro, com 80 anos de idade, não parece viver das memórias do passado, mas da beleza do presente que a rodeia. Isso impressionou-a? CM: O filme tenta perceber a importância que a Lourdes Castro dá ao presente embora, para ela, presente, passado e futuro constituam um todo: tanto o passado como o futuro estão, de certa forma, no presente. “Aqui está tudo” é uma frase gravada numa das pedras da Lourdes, que vemos no filme. O passado faz parte da vida da Lourdes quotidianamente, basta ver o seu imenso arquivo. E o futuro está lá também: Lourdes está sempre a antecipá-lo e a planeá-lo. A diferença é que não há nostalgia e há sobretudo uma enorme lucidez sobre a importância do presente. É nele que tudo se forma, é ele a génese de tudo. É no presente que se prepara o futuro. É o presente que se transforma em passado. ACP: Sentiu-se a invadir um paraíso ou a fazer parte dele? CM: Acho que é óbvio, no filme, que me senti envolvida nesse paraíso, mas sem abandonar aquilo que sou e o meu olhar que questiona. ACP: O documentário parece tirar das sombras uma artista a quem nunca foi prestada a devida homenagem. A Catarina quis colmatar essa falha? CM: De forma alguma. A Lourdes Castro pode não ter o reconhecimento mediático de outros artistas mas, no meio das artes plásticas em Portugal, ela é absolutamente reconhecida! O filme revela, antes de mais, uma postura e um quotidiano: o retrato de uma mulher, mais do que a obra de uma artista. ACP: Mas considera que o documentário deve ter funções sociais e educativas de dar a conhecer mundos que escapam à atenção dos media tradicionais? CM: Claro! Essa é também a função do Cinema e da Arte: levar-nos a conhecer novas realidades e, sobretudo, novos olhares sobre esta. Para mim, o Documentário não é diferente disto.
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ACP: Identifica-se com a forma de trabalhar da artista plástica, “no silêncio e no escuro”? CM: Completamente! Acho que hoje em dia as pessoas vivem obcecadas em divulgar todo e qualquer gesto que fazem. Muitas vezes, estão só a arrancar com uma ideia e já fazem questão de a divulgar, quando esta ainda está em germinação. Isto não faz sentido nenhum. Vivemos atulhados de informação que, na verdade, não tem qualquer interesse. E os jornais, obviamente, alimentam-se disto. É um ciclo vicioso. Acho que um projecto tem muito mais hipóteses de se desenvolver com coerência e profundidade se estiver protegido desta constante exposição. É como um bolo no forno: se estamos sempre a abrir a porta, este não cresce convenientemente. Ou como os bolbos de jacinto da Lourdes. Ainda assim, também temos de saber procurar ajuda quando estamos a trabalhar: por vezes os olhares distanciados são fundamentais… Mas isso faz parte do processo e surge cirurgicamente. ACP: Com quantas pessoas trabalhou directamente ao longo da realização deste documentário (som, fotografia, montagem, produção…)? CM: Foi com a Armanda Carvalho, directora de som, que eu partilhei todo o processo de rodagem. No início, o Filipe Alarcão fez câmara mas, na parte essencial da rodagem, o trabalho de câmara é meu. Foi uma experiência incrível. Eu já tinha feito câmara pontualmente nalguns projectos da Laranja Azul, mas nunca de uma forma tão intensa. No início estava muito insegura em relação a essa parte técnica, mas percebi que era importante, para a coerência deste projecto, manter a equipa reduzida ao mínimo. E a pouco e pouco comecei a sentir um grande prazer neste trabalho que se fundia muito naturalmente na realização. Os primeiros brutos foram para o lixo. O João Ribeiro, director de fotografia com quem tenho sempre trabalhado, ajudou-me muito: ensinou-me a trabalhar bem com esta câmara e, no fim, ajudou-me na étalonnage/correcção de cor. Na montagem trabalhei quase sempre sozinha, mas o Pedro Duarte (com quem trabalhei em outros filmes) teve também um papel fundamental. Juntos, pensámos numa primeira estrutura narrativa. Nessa altura, eu estava a viver em Itália e o Pedro foi lá ter comigo uma semana. Mais próximos de uma maqueta definitiva, o Pedro voltou a entrar e esteve comigo duas semanas. Na produção tive a ajuda pontual da Catarina Alves Costa, logo no início, para a montagem financeira do filme. No final, durante uma semana na pós-produção tive a ajuda da Patrícia Faria. Na verdade, a produção do filme foi da minha responsabilidade. Cada filme pede um modelo de produção específico, e o Pelas Sombras pedia claramente este.
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ACP: Quanto tempo durou o processo de montagem? Restou muito material que não chegou a utilizar? CM: Foram, ao todo, cerca de 12 semanas de montagem. Restou bastante material. Eu tinha cerca de 60 horas e foram utilizados apenas 83 minutos! ACP: Já sabe qual o percurso que este documentário irá realizar? Está prevista a estreia comercial ou a transmissão televisiva? CM: O filme passará certamente na RTP e em festivais. Será editado em DVD e, quem sabe, estreará em circuito comercial. Ainda não sei. ACP: E projectos para continuar a filmar? CM: Tenho muitas ideias e projectos mas, para já, estão mergulhados “no escuro e no silêncio”!
Estudou Música (Cons. Nacional Lisboa), Direito (F.D.Lisboa) e Cinema (Mestrado na Univ. de Bristol, Inglaterra). Fundadadora da AporDOC (Associação Portuguesa de Documentário); Fundadora da produtora de cinema Laranja Azul, em 2000 com Catarina Alves Costa. Filmografia: Fora de Água (1997); A Dama de Chandor (1998), Prémio Melhor obra Documental nos IX Encontros Int. de Cinema Documental da Malaposta; Prémio Melhor Argumento, no 8o Festival Internacional de Belgrado; Prémio Aurélio Paz dos Reis; Prémio revelação do cinema português (1998); Festival de Cinema de Turim, 1999; Festival Internacional de Gottingen, 2000; Festival du Nouveau Cinema et des Nouveaux Medias, Montréal, 2000; Desassossego (2004), Prémio Melhor Produção e Melhor Fotografia no DocLisboa, 2002, Les Ecrans Documentaires, Outubro, 2002. Estreia comercialmente em Lisboa e no Porto, em Maio de 2004; Festival CinePort, Brasil, Junho, 2005; Malmequer, o diário de uma encomenda (2005), transmissão ARTE FRANCE, Julho de 2003 e Setembro de 2003; RTP Canal 1, Dezembro de 2004; DocLisboa, 2004; À flor da pele (2006), Prémio melhor filme da competição internacional do festival Forum Doc, de Belo Horizonte; NAFA film Festival Copenhagen; Tartu World Film Festival; Indie Lisboa, 2006; Festival de Gottingen, 2006; Rencontres La Lucarne de Montréal; VI Festival of Visual Culture, Finlândia; Transmissão na RTP2, Outubro de 2007; Panorama, Lisboa S. Jorge, Fevereiro, 2008; Studio des Ursulines, Paris, Abril, 2008; Nuoro Sardinia Ethnographic Film Festival, September, 2008; A minha aldeia já não
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mora aqui (2006), Prémio do JÚRI FICC (Federação Internacional dos Cineclubes), no Festival Caminhos do Cinema Português, Abril, 2007; Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde, 2006; Beeld voor Beeld, Amsterdão, Holanda e Antuérpia, Belgica, Junho, 2007; ProvinceTown International Film Festival, Junho, 2007; Prix Europa, Berlin, Sepetmber, 2008; Planet on Focus – Toronto Canadá, Outubro 2008; No caminho do meio (2009), RTP2; Mãe e Filha (2009), Doc Lisboa 2009, competição; Pelas sombras (2010), Estreia na Fundação Serralves. Prémio do Publico para Melhor Longa Metragem e Prémio Signis – Indie Lisboa 2010; Prémio Melhor Filme Português – Festival TEMPS D’IMAGES for FILMS ON ART, 2010 – Prix “Hors Frontières” – Festival Traces de Vie, Rencontres du Film Documentaire, 2010. Também seleccionado para: New York Independant Film and Video Festival, 2010. Festival Indie 2010 – Mostra de Cinema Mundial – São Paulo Brasil. Muestra Internacional Documental, 2010, de Colombia. Mostra “Cineuropa” Santiago de Compostela, Centro Galego de Arte Contemporânea. – Cinema Alvalade – Lisboa, 11 de Dezembro de 2010. – Distribuição em DVD pelas Midias. – – – –
Lecciona de 2004 a 2008 no curso de Som e Imagem e no curso de Artes Plásticas da ESAD, Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Raínha, a partir de 2010 lecciona na Licenciatura em Cinema Documental da ESTA.
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Ana Catarina Pereira é Doutoranda em Ciências da Comunicação. Investigadora do Labcom – Universidade da Beira Interior. E-mail: <anacatarinapereira4@gmail.com>.
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EL CINE DE HOLLYWOOD DE LOS AÑOS VEINTE COMO MODELO HEGEMÓNICO
potencialidades, funciones, ventajas y desventajas del nuevo lenguaje. La voz de Horacio Quiroga en la nota “Los intelectuales y el cine de 1922” LAURA UTRERA*
Resumen: La reacción de los escritores por el cine en América Latina se inició a la par de las primeras proyecciones. Por una parte, la celebración de un arte moderno que permite capturar, registrar, proyectar y perpetuarse; por otro, el desencanto arrasador frente a un lenguaje que se vertebra en el avance feroz de una industria cinematográfica instrumentada por el capitalismo. Este trabajo reflexionará sobre estos asuntos y analizará la nota de Horacio Quiroga “Los intelectuales y el cine”, de 1922. PALABRAS-CLAVE: EL CINE DE HOLLYWOOD, LOS AÑOS VEINTE, HORACIO QUIROGA The cinema of Hollywood in the twenties as an overriding model: the potentiality, function, advantages and disadvantages of the new language. The voice of Horacio Quiroga through his 1922 article “The intellectuals of the cinema” Abstract: The reaction of writers to the cinema in Latin America was expressed with the very first projections. For some it was the celebration of modern art, while allows one to capture, register, project and perpetrate oneself; for other, a disenchantment provoked by the new language of the cinematographic industry. This essay will reflect on these matters and will analyze the article “Intellectuals and the cinema” (1922) by Horacio Quiroga. KEYWORDS: HOLLYWOOD CINEMA, THE TWENTIES, HORACIO QUIROGA
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a fundación de Hollywood como “fábrica de sueños” debe su genealogía al estallido de la primera guerra mundial. Antes de 1914, la producción fílmica de los Estados Unidos competía – en un joven mercado europeo – con los filmes cómicos franceses, los colosales filmes italianos, los dramas nórdicos. Si bien David Griffith fue quien contribuyó para que los estudios de filmación repartidos entre Nueva York y Chicago se trasladaran a las costas californianas, la fundación de Hollywood como tal fue obra de los Independientes entre los cuales se encontraban Carl Leammle con su compañía I.M.P. (Diablillo e Independent Motion Picture). Leammle dirigió sus ataques contra la empresa de Griffith llevando a cabo lo que se denominó la Guerra de las Estrellas, por medio de la cual, las actrices Florence Lawrence o Mary Packford dejaron de trabajar con Griffith para formar parte del elenco de la I.M.P.
(las estrellas fueron las más favorecidas con este asunto, pues se aprovecharon tanto de la batalla interna entre los Independientes (I.M.P., Sales Company, Magestic, Universal) como de la que impulsaron contra el trust comandado por la Biograph). Así fue como el Star System tomó el primer lugar de la escena económica en los estudios americanos. Y en 1913, Griffith se une a las filas de los Independientes y se reencuentra allí con otros dos realizadores que sumados a su producción serán quienes llevarán al cine norteamericano a su apogeo: Thomas Ince y Mack Sennett.1 Durante los diez años que transcurren entre 1914 y 1924, el cine norteamericano alcanza su mayor prosperidad. Las películas europeas no eran proyectadas ni en las casi veinte mil salas estadounidenses ni en las del resto de Latinoamérica donde entre el sesenta y noventa por ciento de las películas que se programaban eran yanquis. El cine ya se había transformado en una industria donde la inversión de doscientos millones de dólares por año igualaba esta empresa al resto de aquellas que dominaban la economía del país, como ocurre con la industria automotriz, la tabacalera, la petrolera, la metalúrgica, entre otros. Lo cierto es que estos inversores que ya habían apostado por las mega producciones al estilo de Griffith ahora ponían sus ojos sobre el negocio que representaban las estrellas, por medio del que se convirtieron en el instrumento y la marca de empresas (grandes compañías del cine como: la Paramount, Loew, Fox, Metro y Universal). De modo que, al estallido de la guerra europea se suma este fenómeno y es notable en cuánto se distancia el cine europeo (desde aquel primer impulso documentalista que nace en Francia, las escenas primitivas y las más estéticas) del movimiento artístico económico industrial que supo urdir Estados Unidos, dejando en claro que se ocupó de maquinar y disponer cautelosamente de un arte nuevo para la consecución de un gran negocio. Para decirlo con Sadoul, la estrella fue la fachada de Hollywood y el Star System la base de su dominación mundial. En cuanto a las actuaciones, el cine europeo contaba con una trayectoria importante: gran parte de los actores que formaban los elencos cinematográficos pertenecían al ambiente teatral. Tradición de la que Estados Unidos2 carecía y que si bien pudo haber sido uno de los obstáculos por el que algunos de los intelectuales que se ocupaban de cine – sobre todo en Europa – consideraban inferiores a los filmes americanos en cuanto a los europeos (sumado a la lectura crítica que hacían de los argumentos de las películas americanas, por ejemplo, la recepción negativa que tuvo Nacimiento de una Nación, de Griffith), esa falta de tradición teatral en los actores va a ser la que le proporcione al cine americano una importante distinción y la que lo encauce hacia la invención de la estrella de cine.3 Cabe advertir que si bien, la cristalización de la figura de la estrella se da simultáneamente en los Estados Unidos y en Europa (1913/14 – 1919), la canadiense Mary Pickford es la primera actriz convertida en estrella de cine americano y como advertimos es, precisamente, 1
Para una ampliación temática, sugerimos, el capítulo XI, “D. W. Griffith y la ascensión norteamericana” en Sadoul Georges. Historia del cine. I La Época Muda. Buenos Aires, Losada, 1956, p. 115-123. 2 Algunos actores norteamericanos pertenecían a incipientes compañías de teatro y muchos otros eran elegidos, en otros ámbitos, por su belleza o atractivo. En cuanto a este fenómeno, Edgar Morin advierte que: “La estrella se elabora en la vecindad de los nuevos héroes de filmes, que interpretan actores anónimos y necesitados”. (Morin, 1964: 10) 3 Morin sostiene que “nunca, en el teatro, se había destacado un actor hasta este punto [se refiere al alcance de la estrella de cine]. Nunca había podido un artista desempeñar un papel tan importante en el espectáculo y más allá de él… el cine ha inventado y revelado a la estrella”. (Los subrayados son nuestros, Morin, 1964: 9)
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Quiroga
Estados Unidos quien se dedica a la explotación y consolidación del star-system en el que el papel de la star será el motor de la gran maquinaria artístico-económica. La falta de tradición teatral mostraba, en algunos de los actores de cine americano, una cierta des-dramatización en los gestos en provecho de la configuración de “una forma de actuación cinematográfica”. Esto será de sumo interés para Horacio Quiroga quien a la hora de hablar de algunos de los hallazgos del cine americano, el gesto (ademán) propiamente cinematográfico será el tema de muchas de sus reseñas y, asimismo, un valor importante y definitorio a la hora de calificar una película porque de esta manera – y sin saberlo – Quiroga contribuye con las primeras reflexiones que sobre el asunto se estaban gestando en América Latina. Pensemos, por ejemplo, en la relevancia que cobrará el estudio de algunas de las técnicas cinematográficas; al reflexionar sobre el gesto, Quiroga advierte el manejo y el significado de aporte artificial pero real que viene de la imagen del cine, de los gestos de esos actores que colaboran en el artificio cinemático y que por medio de recursos técnicos significan de un modo diferente, esto ocurre con el empleo del close up, del primer plano, del flou, de los encuadres centrados, de los fundidos, etc. De acuerdo con esta percepción, el narrador manifiesta el poder de la cercanía de la imagen en movimiento, lo cual facilita la activación de nuevos imaginarios sociales “el plano de acercamiento, el plano americano, el primer plano, destruyen la distancia que separa en el teatro al actor del espectador y vuelven superflua a su vez la ostentación del gesto o de su mímica”. (Morin, 1957:170) En efecto, este va a ser un elemento clave en las notas sobre cine que Quiroga escriba durante los años 1918-1931 puesto que el rol del actor cinematográfico se definirá de acuerdo con las diferencias que éste presente con el actor de teatro tradicional. A partir de la Primera guerra mundial entonces, y de la mudanza de los primeros estudios cinematográficos que dejan Nueva York para poblar Hollywood, la “fábrica de sueños” se convierte en el locus real de concentración industrial cinematográfico de lo moderno, de lo económico, de lo masivo y de lo popular que comienza a satisfacer las demandas de un público que reclama – consumiendo – más y más películas. En este marco, América Latina representó el mercado estratégico y propicio para difundir y mercantilizar las producciones de Hollywood, hecho que estuvo acompañado de un copioso afluente de crónicas y críticas sobre cine que poblaron los diarios y revistas de entretenimientos, culturales y de interés general, consumidos por los ciudadanos de las incipientes metrópolis Latinoamericanas. Dicha escritura estuvo a cargo de artistas e intelectuales
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que, en sus países de origen, se preguntaban tanto por los alcances de un nuevo concepto de arte en el cine como por el inminente peligro de penetración cultural. Las relaciones de los intelectuales latinoamericanos con el cine de Hollywood fueron desde el comienzo muy difíciles. Sus crónicas delatan y acuden a un debate en permanente tensión. Mientras esto ocurría se visibilizaba un gran dilema, ¿qué les preocupa del cine y qué alcance nacional o internacional oculta esta inquietud para justificar la escritura de tantas reseñas cinematográficas? Algunos de estos intelectuales se preguntaban por el nuevo lenguaje estético de las imágenes, por la fuerza mimética de la representación que el nuevo dispositivo óptico ofrece, por el efecto onírico y mágico del cine en los espectadores, por la hegemonía cultural de las magnas producciones, por la influencia de las estrellas en el público consumidor, por la crisis del cine sonoro, por la cuestión ética – en la cual se discute la educación y el crimen –, y, sobre todo, por la posición jerárquica del cine con respecto a otras artes cultas o populares. Otros, despreciaban esta nueva manifestación por considerarla un simple entretenimiento de masas que distaba estéticamente de su hermano mayor: el teatro. El interés de los escritores por el cine en América Latina se inició a la par de las primeras proyecciones de la llamada “maravilla técnica” (cf. URBINA).4 Es la historia de la sorpresa continua a la que el ojo y el cuerpo parecen no estar preparados y que toma caminos diversos en las lecturas-escrituras producidas al borde de intereses bien diferenciados que negocian cambios epistemológicos, políticas culturales y estéticas del momento. Por una parte, la celebración de un arte moderno que permite capturar, registrar, proyectar y perpetuarse va de la mano del hallazgo de un pretexto técnico a la hora de escribir – cine como recurso imaginario – lo que provoca la emergencia de una nueva metodología invadida por el giro audiovisual en los modos de pensar los conceptos acerca del sueño, del artificio, de la magia, de lo real, de la afectación, de la técnica, de la belleza, de los lenguajes, de los espacios, de las geografías, de las construcciones, de las relaciones sociales, de la ceremonia; y que se corresponden con las transformaciones del espacio urbano. Dentro de este grupo podemos reconocer a Martín Luis Guzmán (Fósforo), Alfonso Reyes, Horacio Quiroga, João do Rio, José Monteiro Lobato, Roberto Arlt, Mário de Andrade, Jorge Luis Borges, Raúl González Tuñón, Nicolás Olivari, César Vallejo, entre otros artistas.5 Aunque, ciertamente, esta máquina de mostrar cosas es percibida también por los artistas, como aquella que muestra de un modo más nítido, más real, acaso que la escritura (cf. GÁRATE). Por otra parte, el desencanto arrasador frente a un lenguaje torpe que se vertebra en el avance feroz de una industria cinematográfica instrumentada por el capitalismo y, en consecuencia, el descrédito y la desconfianza en todo aquello que tenga un dejo de cultura de masa y que se leyó, desde algunos de los representantes de la intelligentcia, como la desilusión ante la pérdida de la integridad al pertenecer a la clase “intelectual”, vale decir, la carencia de ese lugar en el que Julio Ramos colocó al sector más orgánico de los intelectuales que creían en una función: la de conducir pedagógicamente a las masas: “el nuevo reino norteamericano 4 URBINA, Luis G. “El cinematógrafo” en El Universal, México, 23 de agosto de 1896. 5 El trabajo pionero en reunir algunas de las crónicas que artistas y escritores latinoamericanos escribieron sobre cine de Hollywood lo realizó Jason Borge en Avances de Hollywood. Crítica cinematográfica en Latinoamérica (1915-1945). Rosario, Beatriz Viterbo Editora, 2005. Otra especialista sobre el tema que ha trabajado con crónicas que no se encuentran en la compilación de Borge es Miriam Gárate en sus numerosas intervenciones que citamos en bibliografía.
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representa para los letrados latinoamericanos, advierte Ramos, una especie de erosión de su propio estado mediático”;6 como el resultado de la crisis de la cultura o como la humillante confesión balzaciana de las “ilusiones perdidas”. Y que, por cierto, era consecuencia también del consumo popular de las revistas ilustradas y de los folletines de difusión masiva que a la par del cine exponen el cambio en la idea de escritura y de lectura. Algunas de la crónicas sobre cine más significativas al respecto son: “Las cintas mediocres - efectos de la superproducción”, “Los intelectuales y el cine” (QUIROGA, 1922 y 1920), “Cinematógrafo y capitalismo” (REVUELTAS, 1940), “Magia y desencanto del cine” (SÁNCHEZ, 1943), entre otras.7 En otros sectores, en cambio, el cine representaba un signo problemático debido a que las proyecciones llegan a masas analfabetas que encuentran en ese cine un dispositivo que las entretiene y que las educa o consideran el fenómeno cinematográfico como provocación ante las polémicas del idioma y la estatización de coyunturas políticas, en las que el nuevo arte se convierte en un bastión privilegiado de ansiedades contrahegemónicas, étnicas y nacionalistas. El poeta mexicano Alfonso Junco, advierte estas cuestiones en la “El cinematógrafo y la invasión pacífica” (1929) aunque también a la par de estas valoraciones Gabriela Mistral, Quiroga y Afrânio Peixoto confían en la función pedagógica de la imagen. Dichas tensiones representan diferentes negociaciones ante el avance de la modernidad que aspira a representar, en cuanto a lo que le compete al cine como arte, dos actitudes bien diferenciadas: admiración y resistencia. En este sentido, las vanguardias esteticistas, bajo el pretexto del arte puro, respaldarán al cine europeo (con excepción de Charles Chaplin); las posiciones más radicales de las vanguardias defenderán el cine californiano a pesar de su amenaza geopolítica; los no vanguardistas estarán más preocupados por cuestiones de autonomía política e identidad nacional y, para los marxistas más radicales, los problemas y contradicciones que les pueda significar Hollywood se resuelve cuando el filme articula estética con compromiso político. Dichos intereses pueden recuperarse en los numerosos textos que se han producido a propósito del cine y en los que incluso sus aportes sobre teoría, como los que resultan de las reseñas de José C. Mariátegui, Francisco Ichazo, Olympio Guilherme, Horacio Quiroga pueden ser pensados a la par de los enfoques teóricos de Rudolph Arnheim, Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, André Bazin, entre otros.8 En las reseñas latinoamericanas, es posible rastrear tanto las singulares condiciones en las que se produjeron como la particular naturaleza del objeto crítico indagado, que, por cierto, en los albores del siglo veinte, aún no estaba definido como arte. La naturaleza de las intervenciones de estos artistas obedecen a las formas privilegiadas de participación pública, algunos eran periodistas, cronistas de matutinos que le contaban a la gente lo que veían en los cines, lo que experimentaban en las calles. Las crónicas cinematográficas encuentran puntos de contacto entre las prácticas específicas de estos artistas, concretamente, en el condicionamiento oculto que emerge cuando frente a la búsqueda de una definición para el cine se recurre a signos conocidos: el teatro, las políticas narrativas 6 Cf, RAMOS, 1990. 7 Compiladas en Borge, 2005. 8 Esta idea inicial la tomamos de Borge aunque a su serie europea incorporamos a Kracauer y en la latinoamericana, a Quiroga. Algunas de estas reseñas que responden a este cuestionamiento son: “Estética de la lente” (Ichazo, 1929); “Cinema e literatura” (1930), “A expressão facial ‘Made in USA’” (1928), “Questão de gosto…” (1930) de Guilherme; “Esquema de una explicación de Chaplín” (MARIÁTEGUI, 1928) y “La poesía en el cine” (1927), “Teatro y cine” (1927), “La vida en el cine” (1927) de Quiroga.
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en boga, las ideologías del relato, las técnicas narrativas en el arte de contar, etc.; por lo que muchos de ellos desconocen los límites disciplinares en la construcción teórica de un nuevo lenguaje estético, lo que equivale a decir que los textos producidos en este marco contribuyeron a la discusión imperante en el debate social y político de sus países. En el prólogo a Avances de Hollywood, Borge analiza cómo, por qué y de qué modo el cine norteamericano comienza a ser una interrogación que interpela a algunos intelectuales y cinéfilos letrados de Latinoamérica. Y en lo que respecta estrictamente a los temas que los desvelan, Borge sostiene que uno de ellos queda configurado en la amplia discusión sobre las diferencias entre las manifestaciones teatrales y las cinematográficas. Alfonso Reyes y Martín Luis Guzmán fueron quienes, tempranamente, en una nota de 1915, determinaron la desvinculación de estas artes y asociaron el cine con la novela de aventuras y con el folletín: “Del cine al teatro hay un largo trecho. Se acerca aquél de tal modo a la verdad física de las cosas, que de su seno han brotado, de carne y hueso, los personajes imaginarios de los libros de aventuras. (…) Hay sin embargo una diferencia esencial. En el folletín la acción va acompañada de la mala literatura; en tanto que en el cine, al desaparecer el verbo, se aleja el problema de estilo y queda sola la acción”.9 Desde sus inicios, el teatro y el cine fueron abordados por una importante afluencia de textos, reseñas y teorías. En Argentina existieron publicaciones que contaban con secciones dedicadas a teatro y a cine. Por ejemplo, en El imparcial, primera publicación especializada en cine, los críticos se preguntaban por su diferencia; en un comentario sobre las películas argentinas La borrachera del tango y La costurerita que dio el mal paso (mayo de 1923), el cronista sostiene: “Creyendo que el cine es un reflejo del teatro, imitan la borrachera y la pésima ristra, graciosos de circo y heroínas inverosímiles, que a nadie puede interesar porque nadie conoce, ni sus procederes de seres humanos, sino de arquetipo de confección (…)”. (El imparcial, 22 de mayo de 1923) El 10 de agosto de 1922, en la nota, “Los intelectuales y el cine” Quiroga comenta el descuido con el que algunos de sus colegas se refieren al nuevo arte. El artículo representa una suerte de paradoja, por un lado, repone una discusión urgente e interesante y por otro, goza de una llamativa imprecisión. Esto último, porque Quiroga utiliza la denominación “intelectuales” y dentro de ella ubica a todos los que no ven en el cine una nueva forma de arte: “Los intelectuales son gente que por lo común desprecian el cine”. Frente a este primer enunciado nos asalta una pregunta: quiénes son esos “intelectuales” o, mejor, si aquellos que no desprecian el cine y lo piensan como arte, formarían parte de una subcategoría de intelectuales o darían cuenta de un grupo. La nota de Quiroga no presenta nombres y se proyecta hacia una generalidad que queda detenida y determinada en la categoría “intelectuales” como lo hace la nota de la revista Clarté que Quiroga cita en esta reseña. Además, si la leemos a la luz de las crónicas sobre cine que escribieron otros intelectuales y artistas latinoamericanos de la época – que Quiroga no registra – es cierto que pasa por alto al menos dos cuestiones insoslayables: en primer lugar, el hecho de que en América Latina existían muchos cinéfilos que, como él, gustaron y publicaron sobre cine; en segundo lugar, estas notas en su conjunto comienzan a diseñar los prolegómenos de una teoría latinoamericana sobre cine. 9 “El actor cinematográfico” (1915) en GONZÁLES CASANOVA, Manuel (org.). El cine que vio Fósforo. México, Fondo de cultura, 2003, p. 133.
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Sin embargo, la falta de precisión de Quiroga se instala en la discusión acuciante habilitada por los debates ocurridos o por ocurrir a la largo y a lo ancho del territorio latinoamericano. En su estudio, Borge advierte que los artistas y cinéfilos latinoamericanos construyen formas de resistencia frente a los avances del cine de Hollywood. Éstas se manifiestan por medio de la escritura de crónicas periodísticas que o bien remiten a simples comentarios o bien representan verdaderos productos teóricos. Así como también, estas resistencias se perciben en los argumentos de novelas y cuentos sobre cine que podemos leer como el desafío, la interrogación, el homenaje, la interpelación, el arribo de valores emergentes frente a los avances hegemónicos, políticos y económicos de la cultura dominante que Estados Unidos, por entonces, comenzaba a ejercer en el territorio de América Latina y, en ese momento particular, a través del cine como fenómeno de masas, como novedad y entretenimiento.10 En este sentido, resulta interesante observar cómo el cine interpela a Quiroga, al punto de revelar la experiencia de un sujeto en el momento en el que el cine americano se imponía con vigor en nuestro territorio; como así también, interesa observar estos textos literarios como productos culturales que registran las ansiedades provocadas por la aparición de nuevas tecnologías modernas que América Latina reabsorberá y reelaborará desde la periferia. En la nota de 1922, Quiroga se refiere al vínculo de ‘fidelidad’ de algunos intelectuales con el teatro. Esta constancia (referida a poéticas de gusto) la pensamos como un denominador común en esta suerte de categorización que Quiroga hace del término “intelectuales”: Los intelectuales (…) suelen conocer de memoria, y ya desde enero, el elenco y programa de las compañías teatrales de primero y séptimo orden. Pero del cine no hablan jamás y si oyen a un pobre hombre hablar de él, sonríen siempre sin despegar los labios. (p. 286)
Además del énfasis puesto en la vinculación del intelectual con el teatro – cuestión relacionada con la posición ontológica del cine con respecto a otras artes –,11 esta cita muestra el carácter democratizador que imparte el cine pues la concurrencia de los “pobres hombres” a las salas de proyección arranca de los intelectuales una sonrisa socarrona. Tras una proyección de cine se despliega un “manantial democrático de arte” que haría peligrar la posición jerárquica de la que gozaba cierto sector intelectual “portador de grandes síntesis teórico-políticas”. (ALTAMIRANO, 1986: 2) La idea de democratización – el cine para los pobres hombres –12 representó para los que integraban el sector más 10 Utilizamos los conceptos ‘emergente’ y ‘residual’ propuestos por Raymond Williams en Marxismo y Literatura. Ambos, sólo pueden producirse en relación con un sentido cabal de lo dominante. Creemos que esta emergencia de valores observada en la resistencia de los artistas latinoamericanos frente a la irrupción del cine norteamericano es significativa tanto en sí misma como en lo que revela sobre las características de la cultura dominante de los Estados Unidos. (WILLIAMS, Raymond, “8. Dominante, residual y emergente” en Marxismo y Literatura (1977), Barcelona, Península/ BIBLOS, 2000, p. 143-149) 11 Borge argumenta que “el cine se hace digno de atención crítica por medio de una serie de negociaciones sobre su posición ontológica con respecto a otras artes” y explica además que esta posición nace con Alfonso Reyes y Martín Luis Guzmán (1916) cuando señalan que “el cine carece de tercera dimensión, igual que la pintura y a diferencia del teatro, la proximidad de la cámara puede llevar al espectador del cine más cerca del objeto, de modo que se crea una “máscara” en el sentido de que se establece una “relación fija entre una gesticulación especial y un estado de ánimo o un temperamento determinados”. (BORGE, 2005: 19) 12 La utilización del adjetivo “pobre” no puede ser circunstancial, vale decir, a Quiroga no le da lo mismo decir “pobre hombre” que simplemente “hombre”. Creemos que su elección responde a una demarcación
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conservador de la intelligentsia (sobre todo para los escritores-funcionarios que formaron parte de la política cultural dominante del Nuevo Estado) una garantía: la proliferación y el circuito del arte resueltos en un “público de pesado sentido común”, mentores responsables de la “cultura baja”: “los gustos y saberes del pobre comenzaban a definir un espacio propio, localizado en las antípodas de lo que la elite juzgaba respetable y prestigioso”. (ROMANO, 2004: 439) Dicha disputa no se sostiene sólo en los dictámenes sobre el cine de los años veinte sino que, como lo ha estudiado la crítica, a fines del siglo XIX y principios del XX, en Argentina acontece una importante revolución social protagonizada por nuevos estratos populares (criollos – inmigrantes – clase media) que crearon nuevas formas culturales de resistencia frente a una literatura, frente a manifestaciones político-culturales por las que este sector no se sentía representado. De modo que ante una clase refinada cuya literatura se quería culta y elegante (reguladores, por su parte, del ‘buen gusto’ y del estilo) emergen formas de resistencia: el cocoliche, el lunfardo, la canción orillera, el tango, el sainete. Consolidándose de ese modo dos grandes formas de producción cultural, en la que se revela un desprecio, pues los miembros de la intelligentsia degradaban las manifestaciones populares por considerarlas “cultura baja”. Pero también sucede una gran permeabilidad entre ambas facciones, tal como lo muestran los textos producidos en este marco. (ROGERS, 1998: 53, 54) Asimismo, y gracias a los primeros resultados del proyecto masivo de alfabetización, esta “revolución cultural” estuvo acompañada por una revolución en la lectura cuyas fuentes quedan consolidadas en el discurso periodísto-literario de las primeras revistas ilustradas: “porque era allí donde por primera vez se producía lo distintivo de la cultura del siglo XX: la coexistencia de palabras con imágenes, (…) la concertación del discurso literario con algunos otros – la información, la publicidad, el comentario de actualidad en diversos tonos, desde el humorístico o sarcástico predominante, hasta el amistoso y simpático – ocurría allí en un espacio circunscripto y con una dinámica desusada”. (ROMANO, 2004: 47-48) Borge sostiene que si de acuerdo al análisis de Julio Ramos el periodismo, antes de la intensificación del uso de los medios tecnológicos, había sido “un dispositivo pedagógico fundamental para la formación de la ciudadanía” el cine se “apropia” de este “poder pedagógico” y añade, asimismo, un empuje consumista en un público “bastante más amplio, tanto burgués como plebeyo”. Asimismo, la noción de democratización adquiere una mayor visibilidad en la actitud de Quiroga frente al público que se efectiviza por medio de los rumbos estéticos atravesados por su escritura: de una concepción del público que queda definida en la poética modernista de su primer libro Los arrecifes de coral y en las primeras publicaciones que realiza en revistas de Salto pasará a una concepción del público entendido como “soberano” notoria en los cuentos y reseñas publicados en revistas y diarios de gran tiraje. Este pasaje demuestra cómo Quiroga asimila la ideología democrática en el ámbito de la cultura: “en la pluralidad de caminos (…) puede seguirse su zigzagueante inserción en la nueva sociedad que en el Río de la Plata se iba forjando bajo el impacto inmigratorio y por el desarrollo –reflejo– de la potencialidad económica”.13 Ciertamente, por seguir citando a de clase social antes que a una mera circunstancia. Lo que proponemos se comprueba en el avance de la nota cuando Quiroga ilustra la asistencia a una sala de proyección y dice que el intelectual no podrá admitir un espectáculo del que la sirvienta y su hijo gozan tanto como él mismo. 13 RAMA, Ángel. “Prólogo” a Obras inéditas y desconocidas. Cuentos, Tomo IV, Montevideo, Arca, 1968,
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Rama, el cuentista “pretexta un complicado proceso de acomodación”, por medio del cual, en un primer momento, intentará resguardar una zona “pura”, para luego entregarse a las imposiciones editoriales del mercado que le reclaman más cuentos y artículos.14 La nota de 1922, entonces, se hace eco de esta idea de democratización que Quiroga encuentra en el cine y que, por su parte, lee en la reseña publicada en la revista Clarté, en la que la pregunta por el problema del cine en los tiempos modernos se resuelve a partir de su necesaria autonomía – que de alcanzarla, provocaría su desvinculación de las formas teatrales – y del papel primordial del intelectual en la tarea de las definiciones y escritura formal de una teoría. Ellos, al vilipendiar y despreciar el nuevo arte, dejan en manos de arribistas “este inaudito medio de creación”: … De este modo el cine anda aún en busca de su verdad conducida por los peores guías que podían hallar. Se la ha trabado con las viejas reglas de un teatro en crisis de renovación y de estilo. El cine no se ha libertado aún de esa funesta influencia. (p. 287)
Es necesario que el cine adquiera y encuentre su legítimo patrimonio para configurar un lenguaje propio. Para ello será primordial, por un lado, su despegue definitivo de las viejas reglas teatrales y por el otro, la invención de una gesticulación propia – ni excesiva ni violenta – y la escritura de leyendas breves – bajo la pluma ‘de un escritor de verdad’ – que garanticen la precisión en cada una de las escenas filmadas: “precisión sin palabreos ni engaños”. Importa menos la destreza para la actuación que la expresión innata de un par de ojos, de un rostro o de un cuerpo, bellos. Unos años más tarde (1936) y al igual que Quiroga, Edwin Panofsky advierte la relación de tímida condescendencia que las clases altas europeas establecieron con el cine: “Hasta hace unos pocos años la actitud más común entre personas prominentes desde un punto de vista social o intelectual estribaba en que uno podía confesar que le gustaban las películas estrictamente educativas como The Sex Life of the Polyp, o películas con “paisajes bonitos”, pero nunca una afición seria a películas de carácter narrativo”. (2000: 114) La discusión de los intelectuales con el cine popular de Hollywood se cobró numerosos trabajos, entre ellos, Adorno y Horkheimer en Dialéctica del iluminismo sostienen que el cine es emblemático de un barbarismo autoengañador, un híbrido algo monstruoso típico del gusto burgués y la maquinaria cultural capitalista. La película, especialmente en p. 8. En este sentido es interesante advertir que a Quiroga le costó aceptar inicialmente las imposiciones del mercado. Por caso, al margen de la publicación de artículos y cuentos en las revistas ilustradas, publica: Historia de turbio y Los perseguidos. 14 En términos políticos, Quiroga adhirió el orden democrático que impartió el gobierno de José Batlle y Ordóñez en el Uruguay, y en carta a su amigo Alberto J. Brignole sostiene: “(…) me interesa ahora, porque pasé la edad y época de la cobardía, siendo así que ahora no hay nada para mí más bello que la honradez-sinceridad en orden moral, y la democracia en orden político”. (QUIROGA, 2007: 170) E incluso, paralelamente a la publicación de las reseñas sobre cine, Quiroga publica en el diario La Nación la nota “La santa democracia” (1927) en la cual la define como: “(…) mucho más que un derecho a gobernar, es un estado de la conciencia. La libertad, la igualdad, la fraternidad son virtudes que no están al alcance de gobierno alguno. Pero pueden, como un constante ideal, alentar en el alma de los individuos. Y es a este estado del alma a lo que se llama democracia”. (QUIROGA, 1993: 125)
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las manos de Hollywood, amenaza con hacer colapsar las divisiones entre arte y entretenimiento, llevando a un debilitamiento de ambas formas. Situación que aún hoy sigue siendo problemática. El filósofo Stanley Cavell analiza la relación de los intelectuales con el cine popular de Hollywood en una entrevista que solo tiene dos años. Frente a la pregunta “–¿El desprecio de los intelectuales por el cine popular obedece a esa idea de “perfeccionamiento al alcance de todos”, como esa revaloración de la vida cotidiana?”, Cavell responde: “(…) Me parece que si ese “desprecio” es algo que comparten los intelectuales estadounidenses, se debe a cierto temor a que su credibilidad como intelectuales quede en tela de juicio si declaran su gusto por el cine”, en este marco, obsérvese la vigencia de la nota de Quiroga.15 En la nota de 1922, también se advierte que acaso en esta desvinculación del intelectual con el cine se esté cumpliendo “el conocido aforismo de estética por el cual todos los wagnerianos exclusivos silban sin cesar trozos de Verdi”. Desde 1880 hasta 1920, aproximadamente, la mayor parte de los intelectuales argentinos fue wagneriana debido a que la apelación a dicha estética les otorgaba ciertas jerarquías de prestigio diferenciales en la composición de la audiencia y les prefiguraba, al mismo tiempo, el lugar de legitimadores de ‘los misterios del arte’: “Las polémicas entre wagnerianos y antiwagnerianos (…) representaban las aspiraciones de unos intelectuales que, todavía gentlemen, buscaban un lugar social identificatorio”. (PASOLINI, 1999: 263) El término “intelectuales” al que Quiroga se refiere – como grupo que desprecia el cine – se va definiendo en el interior de esta polémica. Acaso el intelectual cultive furtivamente los solitarios cines de su barrio; pero no confesará jamás su debilidad por un espectáculo del que su cocinera gusta tanto como él, y el chico de la cocinera gusta tanto como ambos juntos. Manantial democrático de arte, como se ve…
El cine representa un espacio de apertura, de transformación, de multiplicidad y, sobre todo, de mezcla en la que el desconocimiento por el otro y su anonimato subvierten una costumbre muy arraigada en la elite cultural: en los teatros, fundamentalmente, en el Colón y en el Ópera, la elite sabía de antemano qué familias iban a ocupar los palcos, las tertulias y las cazuelas: “son las mismas gentes que se conocen personalmente o de vista, que saben recíprocamente quiénes son, cuáles son sus familias y sus medios”. (PASOLINI, 1999: 262) Y decimos espacio de transformación debido al papel del espectador que, a partir de las proyecciones de cine, participa de un modo diferente del espectáculo, pues emprende nuevas maneras de mirar-ver. Los espectadores de cine son sujetos que tienen el poder de concebirse otro, de crearse una personalidad ficticia, de soñar, de desempeñar un papel al que se atienen a pesar de su verdadera naturaleza. Papel que, por supuesto, les fue provisto por las estrategias imaginarias del cine. Las salas de los cines se convierten así en catedrales sagradas donde los espectadores adorarán a las estrellas en un ambiente abierto y democratizador del que podrán participar sin necesidad de saber idiomas ni de pagar un alto costo por las entradas (que además cuestan lo mismo para espectadores pertenecientes a diferentes clases sociales): “el público de cine, llamado demócrata porque paga barato su espectáculo, e inculto porque 15 BARDOTTI, Santiago. ¿Nos hace más buenos el cine?, en Ñ, Revista de Cultura, no 263, sábado 11 de octubre de 2008, p. 6-8.
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resiste a la seducción del escenario, prefiere ver las cintas naturales, sin luces ni trompetas, por el encanto que en él ejerce la realidad, blanca o negra, bonita o fea”. (p. 182) El 4 de noviembre de 1927, en la revista El Hogar, Quiroga retoma el tema y subraya – cinco años después – que ahora la clase intelectual aplaude en honor al cine pero que esto no le alcanza para comprender el valor del nuevo arte, “su ignorancia aún persiste” porque lo que este grupo festeja responde a una simple actitud snobista: El cine posee, como característica de nacimiento, su orfandad. Nació desprovisto de todo afecto, y no lo ha sentido sobre sí durante el transcurso de su breve y grotesca infancia. Queremos referirnos aquí al cariño de la llamada clase intelectual. Aún hoy perdura oculta en ella este aristocrático desdén por el patito feo. Y si bien en los actuales momentos dicha clase intelectual parece haber descubierto la existencia del cine y bate palmas en su honor, estamos dispuestos a creer que su ignorancia del cine persiste, y que su protección al nuevo arte es una simple actitud de snob. (p. 185)
El mismo año, Quiroga escribió “Los escritores en el cine. Una rápida entrevista a Horacio Quiroga”. Esta nota es una entrevista ficticia que firma con su seudónimo: Doctor Ignotus.16 En las respuestas que da a este supuesto entrevistador, Quiroga reitera textualmente los párrafos expresados en la crítica “Teatro y cine” que publicó en la revista El Hogar un mes antes. En ella, vuelve sobre este interrogante: las relaciones entre el intelectual y el cine, y refuerza sus apreciaciones diciendo que uno de los obstáculos por los cuales el intelectual no puede ver en el cine una forma de arte es el carácter popular de las proyecciones cinematográficas: Cuantas veces hemos solicitado a los compañeros sobre la capacidad dramática del cine, se nos ha respondido con frialdad ligera. Muchos de ellos ignoran de él todo, menos que se exhiben para el goce de sus sirvientas, películas de cow-boys. (…) Las más de las veces declaran que tal nuevo arte no pasa de un simple espectáculo populachero, con eficacia exclusiva sobre la gruesa psicología popular. (p. 356)
Otro elemento que Quiroga suma a este conflicto es el mutismo del cine: “Es que a la escena muda –nos dice- falta el elemento primordial de la manifestación y el análisis psicológico: la palabra”. Su ausencia representa uno de los elementos propios y definitorios de la escena cinematográfica: “En un arte de representación – dice Quiroga – como el teatro y el cine, ¿es acaso imprescindible el empleo de la palabra para todas las circunstancias?”. El cine no es un arte menor con respecto al teatro sino el “arte realista y mudo por excelencia”, mudo porque la falta de elocuencia lo hace un arte diferencial, y realista porque es la viva expresión de la vida (que se entiende como concepto primordial y específicamente narrativo). El cine mudo y melodramático de Hollywood se suma a una zona vapuleada por el sector de la intelligentsia, se suma al sainete, a las revistas de consumo popular (en las cuales Quiroga publicó sus reseñas y la mayoría de sus cuentos) y al tango.17 16 Compilada en Horacio Quiroga. Arte y lenguaje del cine, op. cit., p. 355-359. 17 En esta línea, resulta muy productiva la lectura de las notas “Tangos redentores” y “Los tres fetiches” que
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Fuentes primarias QUIROGA, Horacio. Arte y lenguaje del cine. Estudio preliminar a cargo de Carlos Dámaso Martínez, compilación de textos Gastón Gallo, con la colaboración de Denise Nagy. Buenos Aires: Editorial Losada S. A., 1997. QUIROGA, Horacio. Horacio Quiroga. Todos los cuentos (1993). Edición crítica. Coordinadores: Napoleón Baccino Ponce de León y Jorge Lafforgue. Madrid: Colección Archivos, Fondo de Cultura Económica, Segunda edición, mayo de 1996. QUIROGA, Horacio. Los trucs del perfecto cuentista y otros escritos. Selección, prólogo y notas: Beatriz Colombi y Danilo Albero-Vergara. Buenos Aires: Alianza Bolsillo, septiembre de 1993.
Fuentes secundarias QUIROGA, Horacio. Obras inéditas y desconocidas. Montevideo: Arca, 1968.
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Laura Utrera es Magíster en Literatura Argentina. Profesora Auxiliar en la cátedra “Análisis del Texto” de la carrera de Letras de la Facultad de Humanidades y Artes (UNR). Ha publicado reseñas, artículos y ensayos en las revistas especializadas internacionales y de su país. Es becaria de CONICET.
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O CAMPO DO FILME RELIGIOSO1 LUIZ VADICO*
Resumo: Neste artigo busca-se estabelecer o que é o filme religioso. Aqui se questiona a relação direta que comumente os pesquisadores fazem entre filme religioso e gênero religioso; e propõe-se que as diversas produções de assunto religioso sejam observadas a partir da idéia de Cmpo, com características próprias, no qual diversos gêneros se encontram reunidos. PALAVRAS-CHAVE: FILME RELIGIOSO, GÊNERO, CAMPO1 The field of the religious film Abstract: This paper seeks to spell out what a religious film is. We question the direct relationship which researchers often forge between the religious film and the religious genre; and propose that the diverse productions on religious matters be examined from the perspective of the idea of Field – a Field with peculiar characteristics, in which various genres converge. KEYWORDS: RELIGIOUS FILMS, GENRES, FIELD
1. Introdução Este trabalho nasceu com o intuito de possibilitar uma reflexão sobre um evento de nosso cotidiano, os filmes religiosos. Numa sociedade cada vez mais mergulhada nos produtos midiáticos, assoberbada pelo excesso de informação, se faz necessário conhecer melhor alguns dos seus produtos, refletir sobre sua produção e utilização. Bem, o leitor pode dizer, convicto: “Ora, eu sei o que é um filme religioso”. Sim, de fato, todos sabemos por experiência cultural o que é um filme religioso. Melhor dizendo, sabemos do que se trata, qual o seu assunto. Porque, de alguma maneira, ele nos toca e faz sentido para todos nós. Neste ligeiro equívoco, localizado entre reconhecer o que é e conhecer de fato o que é, caíram vários pesquisadores, pois em geral partiram para a análise 1
Trabalho originalmente apresentado ao Grupo de Trabalho “Fotografia, Cinema e Vídeo”, do XIX Encontro da Compós, na PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ, em junho de 2009, que sofreu ligeiras modificações, agregando e respondendo as críticas recebidas.
O milagre de Fátima, John Brahm, 1952
de alguns filmes, ou até mesmo de uma extensa produção, sem se perguntarem de fato qual era seu objeto. Este desconhecimento acabou por levá-los a algumas conclusões equivocadas em relação a esse produto midiático. Isto ocorre por que o filme religioso guarda características diversas das dos outros gêneros cinematográficos ou televisivos – como veremos adiante –, e isto passa despercebido se partirmos apenas de nossa experiência cultural. Além disso, quando pensamos em filme religioso, logo começamos a observar que este é composto por diversos gêneros. De imediato vêm à nossa mente os Épicos Bíblicos Hollywoodianos, como “Os Dez Mandamentos” (1956) de Cecil B. DeMille, “Rei dos Reis” (1961) de Nicholas Ray, em seguida a lembrança da infância nos remete a “Marcelino, Pão e Vinho” (1954), de Ladslao Vajda, ou à “Canção de Bernadette” (King, 1943), “O Milagre de Fátima” (Brahm, 1952), e assim por diante; mas aí, já saímos do épico e passamos ao melodrama. Logo conseguimos pensar nos inúmeros documentários produzidos para a TV, cujo assunto é a Vida de Cristo, O Santo Sudário de Turin, Maria Madalena etc. Novamente terminamos indo para outro gênero. Percebamos, então, que o Filme Religioso é um tanto quanto “escorregadio”: quanto mais nos aproximamos desta produção, notamos quão pouco conhecemos sobre ela. Quando desejamos conhecê-la, outras dificuldades se nos deparam. Quem escreveu sobre isso? Onde estão os livros e as informações? Elas são confiáveis? Quais os critérios utilizados? Por trás de questões tão simples quanto fundamentais, se esconde outro fenômeno importante. A nossa sociedade, nas últimas décadas, tem conhecido os diversos personagens da história religiosa através de produtos midiáticos, muito mais do que através da leitura da Bíblia, tida pelos jovens e leigos em geral como um texto difícil. Neste sentido, surgem outros aspectos relevantes, como: que imagem está sendo transmitida destes personagens? Que tipo de teologia está sendo elaborada? Qual a mensagem final que está sendo recebida pelo espectador? O quanto dela interessa para as diversas confissões religiosas? Qual o papel destas mesmas instituições em relação a essa produção?
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Relativamente aos filmes religiosos não conseguimos impor uma categoria única de estética, narratividade e formatação, tal é a massa de produtos diferenciados que estão recobertos sob o termo “assunto religioso”, o que coloca em questão desde o primeiro momento a definição de gênero. Outra dificuldade relativa a essas produções é que não contamos com muitos teóricos que as tenham analisado de forma acadêmica, (BABINGTON & EVANS, 1993, p. 09) pois durante décadas, algumas vezes por razões ideológicas, estes produtos midiáticos foram vistos como expressão do atraso, da censura, da religião institucional, e da repressão à liberdade de pensamento. A produção de filmes religiosos é inseparável da atuação dos religiosos na sociedade, quer sejam eles ligados a alguma instituição ou não. Além disso, essa produção se entrelaça e caminha passo-a-passo com a própria história do Cinema, muitas vezes nela intervindo, quer seja pela estética, narrativa, política ou censura. (VADICO, 2005) Tendo em vista tal imbricamento de fatores, pensaremos nas características gerais de toda essa produção, liberando-a das fronteiras do gênero e pensando nela como um campo. Melanie J. Wright, diretora do Centre for the Study of Jewish-Christian Relations e Fellow of Girton College, em Cambridge, no seu livro Religion and Film. An Introduction, de 2007, compartilha da opinião de Babington e Evans, expressa em Biblical Epics, quando afirma que faltam estudos acadêmicos adequados objetivando especificamente a relação entre filme e religião. Os trabalhos que existem são pontuais, muitas vezes voltados apenas para a relação teologia e filme, ou alguns dos aspectos relativos à religião – santidade p.ex.–, e a maneira pela qual são abordados pelo cinema. A pesquisadora também vê com bons olhos os trabalhos de Clive Marsh e Gaye Ortiz, além dos de William Telford, (WRIGHT, 2007: 05) mesmo que estes autores estejam relacionados à Teologia. Wright é uma entre os poucos que se preocuparam com a definição deste objeto de pesquisa, os filmes de assunto religioso. Reconhecendo a dificuldade de se categorizar plenamente a produção, ela cita uma breve caracterização realizada pelo pesquisador William Telford, sem, no entanto, buscar ela mesma novas definições: Em dois ensaios recentes Telford propõe uma taxonomia dos tipos de filmes que ele crê oferecem escopo para estudo. Estes são filmes que: (1) Fazem uso de temas religiosos, motivos ou símbolos em seus títulos; (2) Possuem narrativas que se referem à religião (abertura ampla para incluir o sobrenatural e o oculto); (3) Localizam-se no contexto das comunidades religiosas; (4) Usam a religião para definir os personagens; (5) Relacionam-se direta ou indiretamente com personagens religiosos (p.ex. o Buddha, ou anjos), textos ou locações (tais como céu ou inferno). (6) Usam idéias religiosas para explorar a experiência e transformação ou conversão das personagens; ou (7) Abordam temas e preocupações religiosos, incluindo questões éticas. (WRIGHT, 2007: 19)
Melanie observa com cuidado a definição numero (5) onde se tenta buscar uma relação indireta com o assunto, cita o filme La Passion de Jeanne d’Arc (Dreyer, 1928), como não se tratando de um filme religioso, e esta sua afirmação a nosso ver também merece cautela. Em sua argumentação, ela chega a citar a produção Indiana e discorda dos
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críticos que tendem a classificar toda a produção hindu pura e simplesmente como sendo Épicos Sânscritos, pois estes também possuem um forte liame com o sagrado. Observa que as formulações de Telford deixam muito a desejar no que diz respeito ao cinema iraniano, repleta de personagens femininas. E acha problemático o fato de que a relação sugerida por este priorize o filme narrativo, ou a narratividade, notando que, normalmente, os estudos da área de Cinema estão relacionados à estética. (WRIGHT, 2007: 19) Wright também questiona a posição dos teólogos, entre os quais inclui o pesquisador Clive Marsh,2 pois observa que alguns destes não dominam o assunto cinema, e em razão disso a sua contribuição é menor. Neste sentido, ela também se mostra contra os exercícios intelectuais de acadêmicos que procuram descobrir metáforas e figuras escondidas nos filmes, para simplesmente discuti-las. (WRIGHT, 2007: 23) Rejeita também a idéia de vincular os estudos de filmes e religião à teologia; reconhece a necessidade dos teólogos estudarem os filmes e se adequarem a estes teoricamente, no entanto, abordar apenas do ponto de vista da teologia é um equívoco, coisa com a qual concordamos. Apesar da postura crítica, a autora acabou optando por definir os filmes com os quais ela escolheu trabalhar, como sendo “religiosos”, e, para chegar a tal conclusão, verificou caso a caso, selecionando-os a partir de temas escolhidos previamente. (WRIGHT, 2007: 27) Melanie J. Wright tem razão ao afirmar que parte dos trabalhos publicados falha no quesito conhecimento de Cinema e Comunicação; muitos deles são feitos a partir do ponto de vista tão somente da Teologia (Clive Marsh, Barnes Tatum, p.ex.); ou, ainda estão apenas relacionados a um esforço de interpretação hermenêutico das metáforas e símbolos visuais empregados por diretores, neste caso geralmente “diretores autores” (Lloyd Baugh,William Telford, Paul Schrader, p.ex.). O desconhecimento das necessidades relativas às técnicas, estética e narrativas cinematográficas, prejudica sobremaneira a qualidade de uma análise fílmica, isto no que respeita a qualquer tema investigado. Sendo comum que aconteça o mesmo que nos bancos escolares de ensino fundamental e médio, os filmes são utilizados como ilustração, ou como exemplos; o que não permite um aprofundamento maior relativamente aos avanços estéticos e narrativos possibilitados pela específica exploração do tema religião pelo cinema. Voltemos as propostas de Telford citadas anteriormente. Comecemos por discordar de Melanie Wright quando esta questionou o item (5) proposto por aquele autor, “Filmes que se relacionam direta ou indiretamente com personagens religiosos (p.ex. o Buddha, ou anjos), textos ou locações (tais como céu ou inferno)”. Ela parece se equivocar ao tratar desta questão, William Telford está correto em sua proposição inicial, pois os filmes religiosos efetivamente possuem personagens relacionados direta ou indiretamente à religião. No entanto, Telford faz uma abertura desmedida, no que é prontamente acompanhado por Melanie, ele cita o “Budha”, enquanto ela vai em busca da presença do sagrado no cinema iraniano a partir das mulheres e questiona o termo “Épicos Sânscritos”. 2 As obras de Clive Marsh estão entre as mais citadas pelos pesquisadores. Professor do Department of Theology da University of Nottingham e também Secretário do Faith and Order Committee of the Methodist Church. Em Explorations in Theology and Film, um dos seus primeiros trabalhos, ele tecia algumas premissas fundamentais da sua linha de pensamento, mas ainda bastante situado entre cinema e religião, em Theology Goes to the Movies. Em An introduction to critical Christian thinking ele irá se preocupar assumidamente com a questão da teologia através dos filmes. Buscará sistematizar os grandes temas teológicos, como sacramentos, redenção, igreja, etc. relacionando-os com produções do cinema; neste livro, Clive Marsh chega a defender a idéia de que assistir filmes é sobretudo uma atividade religiosa.
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Maria Falconetti, A Paixão de Joana d’Arc, Carl Dreyer, 1928
Com esta abertura, podemos perceber que William Telford desejou estabelecer um conjunto de características que abarcassem toda a produção mundial que se abriga sob a rubrica filme religioso. Aí se encontra um erro evidente. Há uma grande massa de produtos midiáticos de assunto religioso produzida no mundo inteiro, no entanto, o fato de que se trata de um assunto que possui um nome em comum, não quer dizer que tudo aquilo que se abriga sob este possa ser tratado da mesma forma. O produto midiático religioso é pensado em função de religiões e práticas religiosas as mais diversas e em culturas também elas diversificadas, detendo sentidos e significados no mais das vezes distintos, e estas culturas diversas também afetam este produto e sua evolução. Em outras palavras, o filme religioso só o é porque “minha” cultura diz que ele é. Este item é fundamental para que compreendamos os diversos níveis de imbricamentos entre produtores e espectadores. Para uma imensa parcela da humanidade que vive no ocidente, um filme sobre o Budha, se trata apenas de um filme biográfico – nem hagiográfico,3 pois nossas questões relativas ao Sagrado são outras. O assunto e as personagens religiosas precisam ser socialmente reconhecidos como tais, ou seja, efetivamente detentores de certa sacralidade para aqueles que recebem essas imagens. Um importante indício disso é que estes filmes que tratam de sagrados e religiões “exóticas” não causam nenhuma polêmica, e geralmente nem fazem muito sucesso. Eles não nos afetam coletivamente, logo perdem uma importante função relativa aos filmes religiosos, como veremos adiante. Wright, no entanto, está com parte da razão ao questionar o critério narratividade utilizado por Telford, e ela prefere utilizar em seu trabalho a escolha mais típica da área dos estudos de Cinema, estética. Desejando avançar com a discussão, diremos que nem apenas estética e nem apenas narratividade, mas, forma, narrativa, estética e sociedade, pois são estes fatores que confluem para o surgimento, a recepção e a evolução do produto midiático religioso. Por isso a proposição inicial de Telford também merece crítica, pois parece um tanto quanto apressada, no item (1) ele diz: (são filmes que) “Fazem uso de temas religiosos, motivos ou símbolos em seus títulos”. Os filmes de assunto religioso, de forma evidente, possuem temas ligados ao religioso, mas podem ter ou não “motivos” ou “símbolos” em seus títulos. Os filmes que aqui nos interessam, possuem assunto e consequências religiosos. Ou seja, além do seu conteúdo evidente eles repercutem junto ao público e a instituições religiosas. É um objeto midiático feito com uma finalidade religiosa, e também através de uma mentalidade e comportamentos religiosos, sejam estes assumidos ou fragmentários, remanescentes de uma cultura religiosa de outrora. (ELIADE, 2001: 3
Hagiografia: gênero literário que trata da vida dos santos; a pesquisadora Pamela Grace chegou a criar o termo hagiopics (derivado de biopics – que é relativo aos filmes biográficos), com o qual tentou abranger todo o “gênero religioso”, vide: GRACE, Pamela. The Religious Film.
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Ingrid Bergman, Joana d’Arc, Victor Fleming, 1948
167) É um produto que não pode ser pensado sem este inequívoco diálogo que ele mantém com a sociedade. Desnecessário comentar todos os postulados sugeridos por William Telford, não que estejam todos equivocados, mas porque a raiz do problema parece se encontrar em outro lugar. Estendendo essa discussão para outros pesquisadores – referências bibliográficas da área –, notamos que o que está por trás das diversas proposições é a idéia de “gênero”. É a idéia de que existe um gênero religioso, um gênero como todos os outros, criados e elaborados pelos estúdios, para servir à sua indústria. E encaram este gênero como um conjunto de convenções e regras, narrativas e estéticas, da indústria cinematográfica, visando uma produção massiva. Alguns deles procuram angariar elementos, características, resíduos os mais diversos que permitam, descrever o gênero religioso, ou elaborar um conceito sobre este. Como vimos, é o caso de Wright, Telford, e como veremos é o caso de Pamela Grace. Pamela Grace publicou o livro mais recente sobre o assunto, Religious film (2009), onde defendeu a idéia de que os filmes religiosos podem ser abarcados num mesmo gênero sob a rubrica de hagiopics, o termo, mantido aqui em inglês por falta de boa tradução para o nosso idioma, é derivado do gênero Biopics – filmes biográficos – e do termo hagiografia, que é um gênero literário, que dito de outra forma é o mesmo que vidas de santos. Poderemos assumir sem maiores dificuldades o termo hagiografia fílmica ou filme hagiográfico. Grace pensa que o protagonista do filme religioso, ou o “herói religioso” – aqui numa relação direta com o herói do filme – é a razão de existência destes filmes, ou seja, contar seus feitos e palavras. Para que parte deste percurso de expansão do conceito de hagiografia para os filmes fosse possível a autora teria de abarcar com ele a vida de Jesus Cristo, no entanto, esta estória que produziu um gênero inteiro no cinema, não é assim classificável, porque Jesus não é santo, ele é considerado Deus, Filho de deus, parte da Santíssima Trindade. Além do mais nem todo filme de assunto religioso possui “santos” como seus protagonistas, por vezes possuem heróis completamente fictícios, como é o caso, p.ex., de Marcelino, pão e vinho/Marcelino, Pan y Vino (Ladslao Vajda, 1952), O Bom Pastor/Going May Way (Leo McCarey, 1944) e Os Sinos de Santa Maria/The Bells of Saint Mary (Leo McCarey, 1945), e todos os três estão bem localizados no gênero Melodrama. A maior dificuldade é que os melhores exemplos encontrados por Pamela Grace para suas idéias são Filmes de Cristo. Sentimos que a idéia de estabelecer uma relação entre a hagiografia e o filme que trata da biografia de personagens consideradas santas é importante e interessante. Pois
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Pablito Calvo, Marcelino pão e vinho, Ladslao Vajda, 1955
podemos assim verificar o que de fato sobrevive da hagiografia, típica literatura medieval que existe até os dias atuais, na produção midiática. Mas, há uma sutil diferença entre herói religioso e santo. No espaço desta sutileza, Pamela Grace, poderia enquadrar p.ex. a vida de Budha sem nenhum problema. Ele é de fato um herói religioso, ou um personagem religioso, no entanto, não é um santo; chamamos atenção aqui para o fato de que santo como se entende no ocidente, surgiu em razão da atuação da Igreja Católica, e existe um processo administrativo no Vaticano para que alguém possa ser considerado santo. Em outras palavras, a hagiografia não se ocupa de outros santos que não sejam os da tradição ocidental e daqueles efetivamente assim considerados pela Igreja Católica. Para estender este conceito seria necessário se levar em consideração todos os seus efeitos. Pamela Grace manteve uma relação mais estreita entre biopics e hagiopics, (GRACE, 2009: 02) mas estranhamente negligenciou a tradição hagiográfica, de onde, com certeza derivou o nome do gênero que ela deseja estabelecer; e de onde, temos certeza, viriam enriquecimentos mais alentadores. Bem, se desejarmos encontrar elementos estéticos e narrativos entre os diversos filmes produzidos ao longo de mais de um século de história das relações entre religião e cinema, conseguiremos traçar algumas linhas em comum. No entanto, a diversidade desta produção nos obriga a fazer algumas perguntas, como, p.ex., onde classificar A Canção de Bernadette/The song of Bernadette (Henry King, 1943) e Os Sinos de Santa Maria (Leo McCarey, 1945)? Ou então Uma Cruz à Beira do Abismo/The Nun’s story (Fred Zinnemman, 1959)? Certamente no gênero conhecido por melodrama. Por outro lado aquilo que aparenta ser um melodrama é na verdade um outro gênero, como p.ex., Rei dos Reis/King of Kings (Nicholas Ray, 1961), Jesus de Nazaré/Jesus of Nazareth (Zeffirelli, 1977), pois se tratam de Filmes de Cristo que obedecem parâmetros próprios de elaboração. As primeiras produções relativas a vida de Jesus Cristo, foram sobretudo filmagens de Peças da Paixão, e, neste caso, ficaremos entre registro ou documentário? Fora todas as produções contemporâneas encontradas nas TVs por assinatura, como A Tumba Secreta de Jesus (Jacobovici, 2007), Jesus Antes de Cristo (NatGeo, 2010),4 O Mistério do Santo Sudário (Reuben Aaronson, 2004)5 etc. Ora, para se abarcar o universo do filme religioso necessitamos de um outro conceito, um que inclusive abrigue o de gênero – e dê conta dos diversos gêneros que ele possui em si – e que ainda esteja no horizonte da produção de objetos midiáticos massivos.
4 A produção aqui aparece apenas como NatGeo, 2010, por que não foi possível encontrar o produtor ou diretor deste documentário, também conhecido em espanhol por “El Primer Mesías”, foi transmitido em setembro de 2010 pelo canal National Geographic. 5 Transmitido para o Brasil, inicialmente, em 2007 pelo Discovery Channel.
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Jenifer Jones, A Canção de Bernadette, Henry King, 1943
Após levantar, estudar e analisar uma extensa produção de filmes religiosos, bem como as referências bibliográficas fundamentais da área, notamos a necessidade de se pensar este conjunto de produtos como um campo, um campo de expressão e manifestação do religioso. A idéia surgiu a partir da constatação do Campo. É importante chamar a atenção para este fato. Não desejamos a priori aplicar a idéia de campo ao conjunto de filmes de assunto religioso, ao pesquisarmos nesta área e verificarmos a sua diversidade produtiva, dinâmica de mercado e instituições e os seus múltiplos gêneros, observamos que estes filmes obedeciam às necessidades afetivas e efetivas de expressão e manifestação religiosas, e não a regras de produção cinematográficas, mesmo tendo que com estas dialogar. Logo, as afirmações6 neste artigo estão baseadas em levantamento de centenas de títulos de filmes, com seus respectivos gêneros, e visionamento de boa parte desta produção. Realizamos dois levantamentos distintos. O primeiro em obras de referência, como: Babington & Evans (1993), Solomon (2001) e Kinnard & Davis (1992), o que resultou em 184 filmes, realizados para cinema, espalhados por entre Itália, França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, além de serem filmes reconhecidos como sendo de assunto religioso por pesquisadores da área, e que podem ser encontrados citados em obras de outros autores. O segundo levantamento foi realizado tendo em vista descobrir que produtos estavam disponíveis para o público em vídeo e DVD, verificamos diversos sites de vendas, os brasileiros foram: Livraria Cultura, Livraria Saraiva, Submarino, Lojas Americanas e Laserland. Continuamos o levantamento nos sites: Turner Brodcasting, TCM, Turner Classic Movies;7 onde conseguimos levantar cerca 439 filmes, muitos dos quais coincidiam com os filmes acessíveis no Brasil. Também foi importante para verificação de informações as mais diversas o conhecido site The Internet Movie Database, o IMDb.8 Estes levantamentos possuem não apenas um duplo critério, mas se constituem de dupla finalidade. Ao mesmo tempo em que colocam em números a produção midiática religiosa, possibilitam dividi-la nos diversos gêneros nos quais ela foi efetivamente produzida, e observar com exatidão os diversos temas e assuntos efetivamente tratados entre os inúmeros temas e assuntos religiosos disponíveis. E, além disso, parte deste levantamento se origina na produção que realmente está posta à disposição do público. Este último quesito 6 As análises partiram de nossa experiência com o produto midiático religioso, iniciada com a tese de doutorado A Imagem do Ícone – Cristologia Através do Cinema, e mais duas pesquisas realizadas no âmbito do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, SP. 7 Vide: http://www.tcm.com/index/. Site acessado ao longo de novembro de 2009. 8 Vide: http://www.imdb.com/. Site acessado ao longo de novembro de 2009.
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é bastante importante, pois a produção midiática só pode afetar e ser afetada pelas pessoas se ela circula, se é vista, em outras palavras se – por diversas razões – está no mercado. Então, como dizíamos anteriormente, para compreendermos esta massa de produções que se desenha como sendo o Campo do Filme Religioso, necessitamos esclarecer um pouco mais a noção de campo. Para tanto, nos apropriaremos de alguns conceitos do sociólogo Pierre Bordieau, não no sentido de sua aplicação pura e simples, mas sim para a melhor definição do objeto e, ao mesmo tempo, procurando readequá-los à realidade estudada. Neste sentido quando comentamos que os produtos midiáticos do Campo do Filme Religioso surgiram de uma práxis, muito mais do que qualquer política de produção ou intervenção, confluímos para a noção de Campo, como Afrânio Catani, comentando Bordieu, em seu artigo “Pierre Bourdieu: Um estudo da noção de campo”9 esclarece: “A prática é entendida como o ‘produto de uma relação dialética entre uma situação e um habitus’”. (BOURDIEU, P. Esquisse d’une théorie de la pratique, p. 178) Bourdieu chama de ‘situação’ à categoria que, progressivamente, irá receber a denominação de campo. Aqui, ele se refere a qualquer campo relativo às relações simbólicas entre microcosmos (campos diversos) e o macrocosmo formado pelo seu conjunto. Ao longo de nossa pesquisa verificamos que os produtos midiáticos de assunto religioso foram feitos, e se fizeram, nesta relação, entre o Campo Religioso e o Campo Fílmico, entendido este último como sendo o conjunto das práticas, teorias, e investimentos cinematográficos e televisivos. Estes produtos midiáticos de assunto religioso são resultado de uma prática, como pudemos notar. Eles nasceram de necessidades relativas ao mercado, à produção fílmica e ao diálogo com a sociedade. Ora, esta sociedade é permeada por um habitus, o religioso. Ou seja, possui crenças religiosas, formadas, sentidas e vividas ao longo de séculos, para Bordieu: O habitus é entendido como um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e estrutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente ‘regulamentadas’ e ‘reguladas’ sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro. (BOURDIEU, P. Le sens pratique. Genève, Droz, 1972, p. 175, apud. CATANI)
Este habitus, ao mesmo tempo que é nascido no Campo do Religioso, ele repercute nele mesmo, uma vez que são os sacerdotes, os detentores do capital religioso que são efetivamente cobrados para que mantenham, adequem e sustentem o habitus. Esta cobrança implícita nestas relações é feita pelos seguidores de determinadas igrejas e religiões, ao 9 Vide: CATANI, Afrânio Mendes, “Pierre Bourdieu: Um estudo da noção de campo e de suas apropriações brasileiras nas produções educacionais”. In: Actas dos ateliers do V Congresso Português de Sociologia: http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628ba6c00014_1.pdf, acessado em 24 de novembro de 2009; não é costumeiro, ao se pensar autores como Pierre Bordieu, que se utilizem textos comentados; tendo em vista a clareza de Catani, e mesmo a de Bernard Lahire, citado por este, preferi a sua objetividade à minha.
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internalizarem o habitus eles pedem que se o mantenha. Entramos nesta relação para que se compreenda, como se forma este diálogo entre sociedade, religião e cinema, e de certa forma, como essa luta é justa, justa para todos os envolvidos. Ela significa parte a manutenção do monopólio do conhecimento religioso pelas religiões institucionalizadas, parte a cobrança dos espectadores pela manutenção do habitus, e ao mesmo tempo, a sua busca pelos produtos midiáticos para a satisfação do mesmo, e, enfim a oferta destes produtos por parte dos produtores midiáticos, sejam confessionais, ou não. Mas, como se pode notar, só discriminamos o Campo do Religioso e o Campo do Fílmico, ou do Cinema se desejarmos, ainda não chegamos na relação que desejamos. Primeiramente, entendemos por Campo do filme Religioso essa coleção, este conjunto de produtos midiáticos de assunto religioso produzido ao longo de décadas e que ainda se produzem; segundo, este conjunto não é redutível a um gênero apenas, mas a vários.10 O que verificamos é que o Campo do filme Religioso está colocado entre estes dois outros, o Campo do Religioso e o Campo Fílmico, ou midiático, cada um com seu habitus. É entre as prementes necessidades destes dois Campos, que nasce e se sustenta o Campo do filme Religioso. Por isso que uma das suas características fundamentais é a luta ou o diálogo mais ou menos pacífico entre estes segmentos envolvidos. Vemos que nesta sua distinção ele não é tão tranquilo de se abordar quanto seria um gênero
10 Neste momento será instrutivo verificar como Bernard Lahire, em Reprodução ou prolongamento críticos?, citado por Catani, faz um apanhado objetivo e direto das idéias de Bordieu, nos dando uma noção efetiva de Campo: “– Um campo é um microcosmo incluído no macrocosmo constituído pelo espaço social (nacional) global. – Cada campo possui regras do jogo e desafios específicos irredutíveis às regras do jogo ou aos desafios dos outros campos (o que faz ‘correr’ um matemático – e a maneira como ‘corre’ – nada tem a ver com o que faz ‘correr’ – e a maneira como ‘corre’ – um industrial ou um grande costureiro). – Um campo é um ‘sistema’ ou um ‘espaço’ estruturado de posições. – Esse espaço é um espaço de lutas entre os diferentes agentes que ocupam as diversas posições. – As lutas dão-se em torno da apropriação de um capital específico do campo (o monopólio do capital específico legítimo) e/ou da redefinição daquele capital. – O capital é desigualmente distribuído dentro do campo e existem, portanto, dominantes e dominados. – A distribuição desigual do capital determina a estrutura do campo, que é, portanto, definida pelo estado de uma relação de força histórica entre as forças (agentes, instituições) em presença no campo. – As estratégias dos agentes entendem-se se as relacionarmos com suas posições no campo. – Entre as estratégias invariantes, pode-se ressaltar a oposição entre as estratégias de conservação e as estratégias de subversão (o estado da relação de força existente). As primeiras são mais frequentemente as dos dominantes e as segundas, as dos dominados (e, entre estes, mais particularmente, dos ‘últimos a chegar’). Essa oposição pode tomar a forma de um conflito entre ‘antigos’ e ‘modernos’, ‘ortodoxos’ e ‘heterodoxos’… – Em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm pelo menos interesse em que o campo exista e, portanto, mantêm uma ‘cumplicidade objetiva’ para além das lutas que os opõem. – Logo, os interesses sociais são sempre específicos de cada campo e não se reduzem ao interesse de tipo econômico. – A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposições incorporadas) próprio do campo (por exemplo o habitus da filologia ou o habitus do pugilismo). Apenas quem tiver incorporado o habitus próprio do campo tem condição de jogar o jogo e de acreditar n(a importância d)esse jogo. – Cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória social, seu habitus e sua posição no campo. – Um campo possui uma autonomia relativa: as lutas que nele ocorrem têm uma lógica interna, mas o seu resultado nas lutas (econômicas, sociais, políticas…) externas ao campo pesa fortemente sobre a questão das relações de força internas.” O que verificamos é que o Campo do filme Religioso também assim pode ser definido. Ele se sobrepõe a estes dois outros, o Campo do Religioso e o Campo Fílmico, ou midiático, cada um com seu habitus.
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cinematográfico qualquer, que pode possuir conflitos, mas que em geral se ateriam às oposições internas de seu próprio campo. Neste sentido, é importante perceber, que se Pierre Bordieu, faz uma relação interna a um determinado campo, que se divide em várias posições de poder (detenção do monopólio de um saber), (BORDIEU, 1974: 53) colocando nas suas polaridades as figuras dos “dominantes” e “dominados” veremos que essa classificação não é completamente válida no que respeita ao Campo do filme Religioso, onde há uma clara conflagração entre os diversos espectros envolvidos. Neste caso pensamos que a idéia de “dominantes” e “dominados” não reflete bem a situação. Os espectadores só são percebidos como “dominados” quando a produção midiática conflui para o seu habitus, que em relação inversa também é assim exigido por estes, em assim não sendo, eles reagem. À sua reação corresponde a dos realizadores não confessionais, por meio de desculpas, auto-censura ou bravatas via imprensa. Nesta mixórdia também se encontram os consultores religiosos que às vezes são muito mais compreensivos com os produtores cinematográficos do que o público ou do que outros segmentos sacerdotais do Campo do Religioso. Essa atitude, muito mais que dominação pura e simples está mais vinculada à idéia de resistência. Abaixo estabelecemos alguns quesitos que foram observados como estando presentes nos produtos midiáticos religiosos e cuja presença, número e constância podem mostrar efetivamente se um produto pertence ao Campo do Filme Religioso, pois apesar de tênues, este campo possui fronteiras. E, são estas fronteiras que permitem delimitar este objeto de estudo. O que nos tem guiado aqui é a busca de um conceito, uma resposta para a questão: Existe o gênero religioso?
As duas Fontes da Produção Na massa de produções podemos perceber de imediato dois tipos de produtores: os confessionais e os não confessionais. Os confessionais pertencem a uma instituição religiosa e servem aos seus propósitos. Os não confessionais são produtoras e estúdios que tratam de temas e assuntos religiosos esporadicamente, conforme suas necessidades de mercado e podem, às vezes, estarem mais próximos à conveniência de alguma instituição religiosa. Essas duas fontes originam toda a produção de filmes religiosos. Essa produção é bastante extensa, ela pode ser de diversos tipos: hagiográfica (vida de santos), documental, bíblica, edificante, familiar. Há um tipo de produção que não é religiosa na origem, mas conta com a aprovação dos religiosos filmes familiares, dos quais a Disney é, e foi, uma das grandes produtoras. É importante perceber que estas produções que recebem o selo de aprovação engrossam a estratégia religiosa de bem orientar os seus seguidores. A atuação dos religiosos existe, não enquanto uma estratégia única, mas um conjunto de estratégias que foram se alterando ao longo do tempo, trata-se, sobretudo, de uma ação social que visa manter – e, em alguma medida atualizar – a moral e os bons costumes, incentivar produtos que não ofendam a sensibilidade de seus adeptos e sugerir filmes, e produtos, que possam confirmá-los em suas crenças e valores edificantes. Os produtores não confessionais começaram a produzir filmes de temática religiosa sem a pretensão de fazer religião e sim de aproveitar um nicho de mercado. Um produtor não confessional, em geral, tem uma religião. E esta sua crença pessoal influencia também no conteúdo e na forma como irá fazer o filme, como é o caso dos conhecidos
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cineastas: Sidney Ollcott, Cecil B. DeMille, David W. Griffith, e George Stevens, entre outros. Ao desejarem fazer um produto que atingisse um determinado público passaram a utilizar consultores religiosos para adequá-lo ao público alvo, mas que não obstante essa adequação, ainda se tornasse atraente para o público em geral.
Filme Religioso, o que é e o que não é? Características do Campo Não se pode dizer que os filmes com temas e ou origem religiosa sejam um gênero propriamente dito, podem ser assim chamados genericamente, mas não obedecem em seu conjunto a regras ou formulações específicas. No que diz respeito ao que é fundamental em relação aos gêneros esses filmes se enquadram em maior ou menor grau, mas todos podem ser reconhecidos pelo espectador como em se tratando de filmes religiosos ou de assunto religioso, e nisso eles podem ser percebidos como um Campo de atuação e expressão do religioso. O que se pode dizer deles é que tratam de assuntos, pessoas, estórias, etc, relacionados ao sagrado ou à religião, e – como vimos anteriormente – possuem consequências. Estes filmes são, sobretudo, um tipo de produção. Tanto quanto os pornográficos,11 eles se definem como sendo um produto “outro”. Desde sua origem eles se descolam da produção profana. Seus produtores (religiosos ou não) os distinguem com um “selo”12 um sinal específico para designarem-no como sendo compatível com a moral, os bons costumes, e a didática do sagrado esperada pelos seus consumidores. Este tipo de produção não deseja apenas atingir um nicho de mercado que lhe é próprio. Muitos filmes com tema religioso foram feitos por produtoras não confessionais visando atingir um imenso público que por sua vez não tinha necessariamente vinculações religiosas. A partir da massa de produtos midiáticos levantamos algumas características que permeiam essa produção. Aqui se trata, sobretudo, de características e não de regras de produção às quais os filmes obedeceriam. 1 Tema ou assunto religioso, socialmente reconhecido como tal; (o que se deseja dizer com socialmente reconhecido é que aquele assunto toque e afete a sociedade para a qual ele é produzido, enviado e recebido. É necessário que este produto seja recebido de forma afetiva; em outras palavras, um filme cristão para uma coletividade cristã. E o mesmo se estivéssemos numa sociedade budista ou xamânica; é importante notar que não se trata de etnocentrismo puro e simples, mas de um ângulo de observação que exige um recorte). 2 A busca de despertar as emoções especificamente ligadas ao mundo religioso, como p.ex.: compaixão, arrependimento, esperança, etc., desejam também fortalecer a fé dos seus seguidores, ou até mesmo despertá-la; (da mesma forma que Noel Carrol propõe para o gênero de Horror, o sentimento de horror que ele 11 Essa comparação não visa causar nenhum choque, ela é feita tendo em vista os objetivos propostos pelos realizadores, a formatação e a proposta. 12 Por “selo” queremos nos referir não somente ao aval institucional agregado diretamente ao produto finalizado quanto também às indicações via revistas, púlpitos, e índex.
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deseja provocar como um dos seus quesitos fundamentais, [CARROL, 1999: 30] e da mesma maneira que o gênero comédia deseja provocar o riso, os filmes do Campo do Religioso desejam despertar sentimentos específicos relativos às crenças religiosas envolvidas). Toda essa produção possui alguma forma de Teologia a ela vinculada, seja através de intenções claras, seja através dos pressupostos teológicos dos seus produtores. Não podemos perder isto de vista: toda produção de origem religiosa é um produto teológico; (Clive Marsh, em seu artigo Film and Theologies of Culture, define Teologia de uma forma bastante simples e também contemporânea, pois relativizando as imensas implicações que essa definição poderia ter em âmbito religioso, buscou a sua aplicação em termos cinematográficos. Para ele, Teologia (Deus-Fala) é simplesmente o falar sobre Deus, distingue-a de duas formas a “fala sobre Deus” e a “Fala de Deus”. (MARSCH & ORTIZ: 1997, p. 22) A “fala sobre Deus” é simplesmente tudo o que se tem dito sobre o assunto. Basta escrever, pensar sobre Deus e, pronto, está se fazendo Teologia. Na outra ponta está a “fala de Deus” que são as interpretações dos textos religiosos, sejam eles a Bíblia, a Torá ou o Al Corão; e que tratam exclusivamente de direcionar a vida dos fiéis no sentido geral de suas religiões. Esta última trata em deixar claro o que “Deus está dizendo” para os homens). A participação de consultores religiosos em sua produção; ou vinculação a instituições de origem religiosa; (como veremos adiante, após as primeiras dificuldades sofridas pelos produtores cinematográficos com os representantes de algumas instituições religiosas, se tornou um hábito manter consultores das religiões que seriam diretamente afetadas pelo conteúdo dos filmes, o que nem sempre significou uma solução para o problema, no entanto, os consultores estão lá). A intenção da produtora ou do cineasta em fazer um filme que trate do sagrado. A conotação de “produto outro”, diferenciado, puro, adequado. Garantia da qualidade moral do conteúdo do filme. Às vezes essa garantia é dada por instituições religiosas, através de index, revistas, sugestões em paróquias, e outras indicações encontradas na propaganda dos filmes, quer sejam em seus traillers quer seja em seus cartazes. São militantes. Os filmes religiosos não causam indiferença; as pessoas gostam, não gostam, aceitam ou rejeitam, qualificam ou desqualificam, mas eles pedem resposta. Primeiramente por que são feitos para atingir o público, e este sabe disso; por isso a resposta, “sim” ou “não” ou “tanto faz”, mas sempre há uma resposta social ou individual para essa produção. É um produto que podemos chamar, resguardadas as devidas proporções, de militante, pois nem sempre se trata de militância ostensiva e óbvia.
Esses oito itens encerram em si as características gerais do Campo do Filme Religioso, podem ser tranquilamente reconhecíveis em qualquer produto midiático de assunto, intenção e consequências religiosos. Outras características específicas podem ser ainda rastreadas, no entanto, não são aplicáveis a este universo como um todo. Uma delas, p.ex., é a dos gestos relativos ao sagrado, o processo a que chamamos santificação ou sacralização. É importante notar, no âmbito das distinções, que uma boa parte dos filmes comerciais de nossos dias – que trazem tramas e sinais e símbolos do sagrado–, não se tratam de
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produções religiosas ou com algum fim religioso. Dois exemplos claros disso são os filmes Stigmata (Wainwrigth, 1999) e Dogma (Smith, 1999). Essas produções profanas – aqui o termo é utilizado em oposição ao religioso – podem ter o efeito de despertar no espectador o interesse pelo sagrado, no entanto, seu fim não é este. A sua intenção é lidar com o característico desconhecimento do público sobre alguns aspectos místicos de suas próprias religiões, ou lidar com o famoso sentido de mistério, ao fazerem-no podem acabar levando o espectador a se interessar pelo assunto; ou também, em sentido contrário, não sentir o menor interesse por aquela representação estereotipada dos símbolos religiosos. É preciso então separar, metodologicamente falando, o que são filmes religiosos dos que apenas trazem citações religiosas, ou que tangenciam personagens e fatos religiosos. Como foi dito anteriormente, os filmes religiosos têm no seu apriori de produção a “intenção” de ser um produto religioso. Essa intenção nem sempre significa que atinjam o efetivo resultado desejado, e não chega a ser surpreendente que Stigmata tenha conseguido despertar o interesse de muitos jovens pelo fenômeno da estigmatização, enquanto um filme da vida de São Francisco de Assis, primeiro estigmatizado, e que retrate o fato, não cause o mesmo efeito, como p.ex.: Irmão Sol, Irmã Lua/Fratello sole, sorella luna (1972), de Franco Zeffirelli.
Filmes de Autor Ainda relativamente às distinções, um tipo de produção que não se enquadra exatamente no Campo do Filme Religioso é o chamado “Cinema Autoral”. Aqui não abordamos essa questão de forma direta, mesmo não desconhecendo o fato de que ela é bastante cara para os estudiosos do Cinema. Não diminuímos a sua importância, tanto que algumas obras reconhecidamente autorais serão aqui citadas, como O Evangelho de São Mateus/Il Vangelo secondo Mateo (1964), de Pasolini, e O Messias/Il Messiah (1975), de Rossellini; e serão citadas de forma apropriada, pois quando uma produção que vem de um viés autoral ganha um aspecto que a torna um produto de massa, ela assim deve ser considerada. Obviamente analisando caso a caso. Fora o fato de que as duas produções acima citadas receberam financiamento de instituições e fundações de origem religiosa. Este tipo de produção escapa de várias das características gerais das produções do Campo do Filme Religioso, entre as quais se destaca a da finalidade, “falar a versão correta”. Ou seja, não é qualquer Teologia, mas aquela que é aceita ou adequada aos religiosos, considerados em todos os seus níveis. A percepção autoral relativamente ao Sagrado se se trata, acima de tudo, de uma visão pessoal e que não está em confluência com a percepção da maioria, deve ser verificada em particular. Às vezes elas se enquadram no Campo do filme religioso, às vezes não. Neste caso, tão importante quanto a intenção do autor será a forma como a sociedade recebeu o filme. É inegável a contribuição de cineastas como Ingmar Bergman, com filmes como O rosto/Ansiktet (1957) e O sétimo selo/Det sjunde inseglet (1956), as de Andrei Tarkovsky com Andrei Rublev/Andrey Rublyov (1969) e O sacrifício/Offret (1986), as de Pasolini, com La Riccota (1963), as de Buñuel, neste caso uma obra praticamente inteira. A religiosidade nos filmes de Rosselini e as suas percepções estéticas relativamente ao assunto são soberbas! No entanto, mesmo que elaborem Teologia, e tenham posição sobre o assunto, e façam
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Bradford Dillman, São Francisco de Assis, Michael Curtiz, 1961
contribuições às vezes sutis, às vezes completamente libertadoras, não se enquadram nas definições relativamente ao Campo do Filme Religioso, eles são outra coisa. Então, não se trata de negar sua importância ou papel na história do cinema e na produção do audiovisual, mas de adequação à proposta. A produção autoral está categorizada numa outra faixa, a dos Filmes que Dialogam com o Campo do Religioso. E, desta perspectiva têm a contribuir. Também ficam alinhados às produções que não possuem o efetivo desejo de contribuir com os Filmes do Campo Religioso, mas que dele dependem, como é o caso por exemplo de Dogma (Kevin Smith, 1999), O Exorcista (William Friedkin, 1973) etc. Em alguma medida, alguns filmes de autor podem ser pensados juntamente a uma outra categoria, os Filmes de Contra-posição, estes são produtos que possuem óbvios elementos do Sagrado, no entanto, também não se coadunam com o Campo do Filme Religioso, mas mantém um diálogo com essa produção ou com o Campo do Religioso, neste caso estão, p.ex, o já citado Dogma, A Vida de Brian/Life of Brian (Terry Jones, 1979), L’ Age d’Or (1930) e Via Láctea (Luís Buñuel, 1969) etc. São filmes que se propõem como obras de crítica a estes campos, e por isso mantém um diálogo com eles, no entanto, não querem, e não obedecem, suas regras. O que não quer dizer que interessem menos por isso, apenas estão numa outra instância. São filmes que desejam “incomodar”, causar alguma polêmica e vender por causa dela. Raramente possuem propostas teológicas mais elaboradas. Não se preocupam de fato em fazerem uma crítica bem alicerçada das instituições às quais se referem. Normalmente, suas críticas aparecem de forma ácida e estereotipada, sem espaços para nuances. Como vimos no início deste trabalho, trata-se de um erro evidente tentar colocar tudo aquilo que toca ao sagrado numa mesma categoria. Se eles não se encaixam no Campo do Filme Religioso, por todas as razões demonstradas até agora, eles se encaixam em outros lugares, e não vemos problema nisso. Há mais de um século de produção de filmes religiosos, eles estão contados entre os primeiros da história do Cinema, então para se pensar essa produção é necessário se lembrar de que ela é também sobretudo historicizada e historicizável, ela reflete transformações sociais, culturais e teológicas dos diversos momentos nos quais foi produzida. E é o quesito teologia o principal a diferi-la dos produtos profanos, pois mesmo quando os filmes religiosos desejam ser entretenimento eles ainda querem confirmar a fé do espectador, levá-la a quem não tem, informar sobre ela, posicionar-se diante dos valores do “mundo”,13 instigar o comportamento adequado dos fiéis em relação a este mesmo mundo, e delimitarem seu espaço de crença em relação a outras confissões religiosas. 13 Aqui a palavra “mundo” está sendo utilizada como o é entre os religiosos, em oposição ao sagrado, sig-
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Esses filmes podem ser categorizados e divididos nos mais variados grupos. Alguns desses grupos podem ser vistos como gênero, é o caso dos Filmes de Cristo, dos Documentários Religiosos e dos Filmes Épicos Bíblicos. Não obstante estas são categorizações bastante simples de se fazer, mas difíceis de se manter. Talvez, mais importante do que categorizar os diversos elementos constitutivos desta produção, seja perceber e observar a sua própria lógica, e esta repousa sobre a sua finalidade. A finalidade dos filmes religiosos não é apenas “falar do sagrado” pois “falar do sagrado” qualquer um pode, (MARSH & ORTIZ, 1997: 22) a sua finalidade é falar a versão correta, verdadeira, sobre o que é o “sagrado”. Para atingir este objetivo os produtores se utilizaram de vários gêneros fílmicos; jamais estiveram ao longo de toda a história do cinema preocupados em buscar uma forma cinematográfica que fosse apropriada para o sagrado. Em outras palavras, não se desenvolveu uma estética, um estilo, uma escola, uma formatação como sendo a mais “verdadeira” a mais “pura” ou a mais adequada para tratar do assunto. O que pode ser percebido como “forma” ou “característica” dessa produção é um resultado da práxis da realização, das referências, das citações, dos erros e acertos, do diálogo com a sociedade no momento de produção14 e de recepção. Então, encaremos com normalidade a “grita” religiosa diante de alguns produtos midiáticos, este jogo de forças é importante pois ele é parte integrante da constituição deste campo. Isto ocorre, entre outras razões, porque as instituições religiosas, no decorrer dos séculos, tiveram também uma práxis midiática. Portanto, não é de se estranhar que ao longo dos séculos XIX e XX, elas tenham paulatinamente se apropriado de todos os veículos de comunicação existentes. Se antes elas se comunicavam via púlpito, pela palavra escrita e pelas imagens nas igrejas e na arte em geral, sabendo também se apropriar das gravuras, da reprodutibilidade técnica das imagens, da Lanterna Mágica, do Cinema, do rádio, da TV, hoje elas também se encontram na internet.
Bibliografia BABINGTON, B. & EVANS, P. W. Biblical Epics. Sacred Narrative in the Hollywood Cinema. Manchester: Manchester University Press, 1993. BORDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1974. CATANI, Afrânio Mendes, “Pierre Bourdieu: Um estudo da noção de campo e de suas apropriações brasileiras nas produções educacionais”. In: Actas dos ateliers do V Congresso Português de Sociologia, 2008; site: http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628ba6c00014_1.pdf, acessado em 24 de novembro de 2009. KINNARD, Roy & DAVIS, Tim. Divine Images: A History of Jesus on the Screen. New York: Citadel Press – Carol Publishing Group, 1992. nifica dizer, profano, ou até mesmo laico. O “mundo” também possui um sentido metafísico, uma vez que ele também é responsável com suas inúmeras atrações por atrair o homem para si, em detrimento da sua relação com Deus. 14 Um bom exemplo de formatação dentro de um gênero que surgiu a partir da atuação religiosa são os documentários, quando vinculados a instituições religiosas ou a produtoras que delas se estendam. Vide sobre isso o artigo de Luiz Vadico, O Que diz a “Voz de Deus?” publicado na revista Doc On-Line, no. 01. Dezembro de 2006, que pode ser acessado no endereço eletrônico: http://www.doc.ubi.pt/01/ artigo_luiz_vadico.pdf .
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MARSH, Clive & ORTIZ, Gaye. org. Explorations in Theology and Film. Massachusetts: Blakwell Publishers Ltd., 1997. SOLOMON, Jon. The Ancient World in the Cinema. London/New Haven: Yale University Press, 2001. TATUM, Barnes. Jesus at the Movies. Guide to the First Hundred Years. Santa Rosa: Polebridge Press, 1997. VADICO, Luiz Antonio. A Imagem do Ícone – Cristologia Através do Cinema. Um Estudo Sobre a Adaptação Cinematográfica da Vida de Jesus Cristo. Campinas, SP: [s.n.], 2005. Unicamp/tese. VADICO, Luiz. “Os Filmes de Cristo no Brasil. A Recepção como fator de influência estilística”. In: Galáxia. No.11 (junho 2006) – São Paulo: PUC-SP – EDUC; 2006. WRIGHT, Melanie J. Religion and Film. An Introduction. London/New York: I. B. Tauris, 2007. Reimp. 2008.
Webliografia Actas dos ateliers do V Congresso Português de Sociologia, que pode ser acessado no site: http://www.aps.pt/cms/docs_prv/docs/DPR4628ba6c00014_1.pdf, acessado em 24 de novembro de 2009. IMDB, The Internet Movie Database. http://www.imdb.com/, acessado em novembro de 2009. Laserland. http://www.laserland.com.br, acessado em novembro de 2009. Livraria Cultura, http://www.livrariacultura.com.br, acessado em novembro de 2009. Livraria Saraiva, http://www.saraiva.com.br, acessado em novembro de 2009. Lojas Americanas e http://www.lojasamericanas.com.br, acessado em novembro de 2009. Luiz Vadico, O Que diz a “Voz de Deus?”. Revista Doc On-Line, no. 01. Dezembro de 2006: http://www.doc.ubi.pt/01/artigo_luiz_vadico.pdf, acessado em novembro de 2009. Submarino, http://www.submarino.com.br, acessado em novembro de 2009. TCM, Turner Classic Movies. http://www.tcm.com/index/, acessado em novembro de 2009. Turner Brodcasting, http://www.turner.com/, acessado em novembro de 2009.
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Luiz Vadico é professor da Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo. E-mail: <vadico@gmail.com>.
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SUJEITO E MEIOS PÚBLICOS NA COMUNICAÇÃO
SISTEMA PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO definição, o caso brasileiro e o desafio do financiamento
ISABEL ANDERSON FERREIRA DA SILVA*
Resumo: Pela primeira vez na sua história, a radiodifusão pública brasileira vem se estruturando a fim de conquistar o espaço que sempre lhe foi de direito, impedindo a sua significativa atuação em benefício social. Como consequência, herdamos a falta de legitimidade do sistema e a identificação feita pela sociedade de que mídia pública é mídia estatal. O presente trabalho situa o leitor no campo dos “sistemas públicos de comunicação”. Posteriormente, concentra-se no fator mais decisivo na garantia de realização se seus objetivos: a sua forma de financiamento. PALAVRAS-CHAVE: SISTEMAS PÚBLICOS DE COMUNICAÇÃO, FINANCIAMENTO Public Broadcasting: definition, the Brazilian system and the problem of financial support Abstract: For the first time in its history, Brazilian public broadcasting is being structured in order to occupy its rightful place – that of contributing significantly towards the benefit of all. As a result, we inherit the lack of legitimacy of the system and the widespread idea that public media is state-run media. This paper places the reader in the field of “public communication systems”. Moreover, this article focuses on the most decisive factor for ensuring that its objectives are realized: financial support. KEYWORDS: PUBLIC BROADCASTING, FINANCIAL SUPPORT
Introdução Este artigo inicia-se com a breve definição de sistema público de comunicação como um importante componente de uma determinada ordem social e de recorrência mundial. Em seguida, aborda a falta de legitimação sofrida pela questão no contexto brasileiro, bem como as suas causas, cujas raízes encontram-se no passado. Ao constatar que a garantia de um financiamento satisfatório e independente é imprescindível para definir e melhorar todos os outros componentes de um sistema público de comunicação, o trabalho concentra-se na exemplificação das diferentes formas de obtenção de fundos destes sistemas ao redor do mundo. Tratam-se de casos isolados e expostos a condições diferentes das nossas. Contudo, eles são capazes de mostrar distintas soluções orçamentárias com competência e criatividade, a ponto de desfrutarem de um
alto padrão de qualidade em sua estrutura técnica e na programação oferecida, além de uma boa reputação perante a sociedade. Com esta exposição de assuntos, o artigo tem o intuito esclarecer o equívoco que existe em relação à significação da radiodifusão pública brasileira, muitas vezes entendida, entre outros, como mídia institucional, consequência da nossa precária e multifacetária estrutura. Além disso, pretende indicar os exemplos dos mecanismos de financiamento mundiais a fim de desenvolver observações para o nosso caso, que vivencia pela primeira vez, através da recente criação da EBC, a possibilidade de dispor de um provedor midiático independente e unificado, digno da qualificação como “sistema público de comunicação”.
A comunicação pública Os sistemas públicos de comunicação consistem em órgãos complexos e estão presentes nos mais diversos países do globo. Para definir a comunicação pública, não existem conceitos fixos nem parâmetros impermeáveis, mesmo que a abordagem se restrinja a um único país. As influências dos fatores históricos, sociais e tecnológicos, em constantes mudanças, fazem do sistema público de comunicação um conceito mutante, sempre em processo de reinvenção de si mesmo. Antes de nos concentrar no caso do Brasil, é preciso entender este conceito como algo cuja ocorrência é mundial. Ao contrário do que por aqui se possa imaginar, este não é um termo atual. A discussão a respeito só ganhou forças em nosso país nos últimos anos,1 mas os sistemas de radiodifusão como prestadores de serviços públicos englobaram os formatos pioneiros de produção e veiculação de conteúdo para rádio e TV na maior parte das nações. 1
Devido à iniciativa federal na criação da Empresa Brasil de Comunicação – A EBC, em 2008. Ela surgiu como uma iniciativa de unificação do sistema público, previsto por lei desde 1966.
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O Coletivo Brasil de Comunicação Social – o Intervozes – publicou em 2009 o livro Sistemas Públicos de Comunicação no Mundo – Experiência de doze países e o caso brasileiro. Nele, encontramos os mais variados tipos de sistemas de comunicação considerados públicos em diversos países do globo, descritos por acadêmicos e profissionais que se dedicam com o tema no Brasil e no exterior. Entre as mais variadas e contraditórias definições para o órgão, é possível encontrar um marco, derivado da exclusão de um importante fator, presente em todas as caracterizações encontradas para defini-lo: O intuito de qualquer sistema público de rádio e TV de qualquer país ou região, dentro de qualquer contexto, é o de produzir conteúdo de mídia comercialmente independente para os mais diversos grupos sociais que venham a fazer parte da sua recepção. Em outras palavras, pode-se concluir que a definição de um sistema público de comunicação é aquele que não é comercial. Com isso, podemos dizer, não livre de controvérsias, que podem fazem parte de um mesmo agrupamento e gestão as emissoras de rádio e TV estatais, universitárias, comunitárias e independentes. Fora isso, há os órgãos de financiamento, produção e distribuição de conteúdo midiático que podem participar desta aliança. São empresas com diferentes fontes de financiamento, que desempenham distintos papéis sociais. Todas colaboram, porém, para a existência de alternativas aos sistemas de comunicação comandados pelo mercado consumidor. A diversidade de formatos dos sistemas atribui-se, entre outros, ao fato do surgimento de cada um deles ter sido particular, dentro de um próprio contexto. Foram as condições de cada sociedade que determinaram os interesses e as relações estabelecidas por seu sistema público de comunicação com o mercado, o governo e a população. Desta maneira, cada sistema – e, muitas vezes, cada emissora – foi definindo e modificando as suas características estruturais e ideológicas de acordo com o seu desenrolar dentro da história. Se definirmos o sistema público como a negação do comercial, é preciso, então, determinar a concepção de sistema comercial. Como uma emissora de rádio ou TV comercial entende-se, aqui, aquela que financia a sua produção exclusivamente através de atividades mercantis, seja pela venda de seus produtos midiáticos ou pela venda de seu tempo de programação para a inserção de anúncios publicitários. Tais emissoras possuem, portanto, o caráter do interesse privado e têm como objetivo primordial o lucro financeiro. Para isso, buscam atingir o maior número possível de ouvintes ou espectadores, oferecendo conteúdo programático predominantemente generalista, que busca entreter ao mesmo tempo o maior volume de público e pelo maior tempo possível, estimulando-o a consumir cada vez mais a sua mídia. Em contraponto, as emissoras públicas devem buscar, além da realização de outros compromissos, a diversidade na sua programação, a ponto de oferecer conteúdos audiovisuais de interesse a todos os grupos sociais de uma comunidade, inclusive aos minoritários.
No Brasil Ainda sobre a definição do sistema público, é preciso comentar o déficit de informação sobre o assunto no Brasil. Em 2008 foram estabelecidas a leis no 5.070 e no 11.652, que visam a constituição e instituição dos princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública pela
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Empresa Brasil de Comunicação – EBC. A empresa já oferece diferentes emissoras de rádio e um canal de televisão não-governamental, a TV Brasil, que se encontra disponível na televisão aberta em diferentes estados do país e na cidade de São Paulo, além dos provedores a cabo e satélite, sendo acessível à cerca de 50 milhões de espectadores. A lei de constituição do sistema público substitui a lei de 1966 e a lei de instituição prevê, não somente a autonomia em relação ao governo federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo, mas também participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira. Sendo assim, a empresa adquire a verba do Estado, mas possui a administração independente. Porém, basta digitarmos as palavras-chave “TV Brasil”, “sistema público” ou “EBC” em sites de busca na internet para encontrarmos páginas brasileiras que utilizam o termo “chapa branca” para defini-lo ou designar a idéia popular que se tem sobre ele. Ao contrário do que acontece na maioria dos países, até hoje no Brasil não há somente a
EBC ou outras poucas empresas de comunicação pública que administram e produzem as diferentes emissoras de rádio e TV do circuito não-comercial. Ainda existem muitos canais de radiodifusão considerados públicos que são geridos através de estruturas e empresas próprias. A primeira emissora de rádio que se enquadrou neste caráter surgiu na década de 1930 e a primeira da televisão só iniciou as suas transmissões no Rio no final da década de 1960. Nesta última época, as já fortes emissoras comerciais alegavam cumprir o papel de trazer informação, cultura e entretenimento à população. Apoiado nestas premissas, o governo brasileiro justificou a iniciativa da criação de emissoras públicas com o intuito de fornecer suplemento educacional para a adaptação dos cidadãos, já que, na ocasião, o país entrava em um processo de industrialização acelerado. Na década seguinte, no ápice da ditadura militar, o executivo federal passou a atuar como operador direto das emissoras. Nos anos 1980, com a tentativa de regionalização dos canais públicos de TV, houve uma série de irregularidades
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administrativas e explorações políticas. A resposta aos abusos veio nos anos 1990, com a adoção de políticas neoliberais pelas duas principais emissoras de televisão pública do país: A TVE do Rio de Janeiro e a TV Cultura de São Paulo. Elas visavam a diminuição da influência do Estado em suas empresas. A consequência foi a adoção de modelos de financiamento mais integrados às verbas publicitárias, que até hoje ameaçam os seus valores fundamentais e causam às emissoras uma perigosa dependência existencial. Como se vê, não é à toa que, no Brasil, os canais de rádio e televisão públicos são muitas vezes entendidos como sistemas estatais de comunicação. Só que este juízo culmina na crença de que, até hoje, o conteúdo de seus programas é necessariamente regulamentado por um órgão ligado diretamente ao governo, defendendo os seus interesses ou até mesmo produzido conteúdo em seu encargo. Tal interpretação pode agravar a já existente falta de entusiasmo de quem consome ou está propício a consumir o material audiovisual público. Tão grave quanto a indiferença é a desconfiança causada por este entendimento, sendo ela uma forte inibidora da habilidade de abrir-se para outras concepções de mídia, de ser capaz de se sentir estimulado, desafiado, atraído e entretido por novos formatos de programas de rádio e TV, de estar apto, desta maneira, de comparar e questionar, com mais clareza e parâmetro, os padrões estabelecidos pelas emissoras comerciais dominantes. A nova empresa de comunicação pública, a EBC, que tem o propósito de expandir e centralizar a administração de outras emissoras, promovendo um intercâmbio de conteúdo, enfrenta então um grande desafio quanto à sua legitimação. Em um país onde a mídia comercial é a referência maior e cujo valor foi ampliado através das suas décadas de existência, o costume audiovisual mercantilizado, já bem consolidado, aparece como o grande desafio das emissoras públicas em oferecer conteúdos independentes, de alta qualidade e aceitáveis pelo povo. Ou seja, parece ser um desafio muito grande, no caso do Brasil, a criação de conteúdos programáticos inteligentes e que não chamem apenas a atenção de uma elite intelectualizada, mas também que despertem o interesse e a curiosidade do ouvinte ou do espectador mediano, já tão moldado pelo rádio e pela televisão comercial. Porém, para que seja possível a realização de conteúdo midiático altamente qualitativo – em especial para a televisão – é preciso dispor de bons profissionais, de uma favorável estrutura administrativa, da disposição de estúdios e aparatos tecnológicos, das possibilidades de produção de projetos autônomos, além de eventuais compras de conteúdos altamente qualitativos do exterior, entre outras. Antes disso, para garantir que este conteúdo esteja disponível a uma grande gama de espectadores, é também preciso vencer uma série de barreiras estruturais e tecnológicas, dispondo assim de concessões de canais, da possibilidade de expansão física e do constante aprimoramento tecnológico. Simplificando, podemos dizer que para uma administração, produção e veiculação de qualidade, que por sua vez implicam em uma maior legitimação do sistema, é preciso uma estimável quantidade de dinheiro, sendo que este não acarrete na inclusão de compromissos institucionais ou privados. Mostra-se aí então, o maior dos desafios de todo e qualquer sistema público de comunicação: a sua forma de financiamento. O racionamento de gastos e a busca de alternativas fontes de renda são assuntos que estão sempre em pauta nas agências administrativas de comunicação pública em todo o mundo.
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Financiamento A partir da reflexão a respeito das condições necessárias para o alcance de um posto de qualidade pelo complexo de mídia pública, chegamos à conclusão de que o encontro das mais adequadas alternativas na captação de receitas implica na abertura de possibilidades para a melhora efetiva dos outros campos. É razoável partir do princípio de que a estrutura administrativa e a programação das emissoras públicas seguem exigências determinadas pelos interesses dos seus financiadores. Porém, os sistemas públicos mundiais alegam que o seu compromisso é diretamente com a sua sociedade. Sendo assim, para que existam tais emissoras, as respectivas sociedades – direta ou indiretamente – têm que pagar por elas. Portanto, para a imparcialidade e a garantia de realização dos seus objetivos sociais, a televisão ou a rádio pública não poderia ser financiada majoritariamente por anúncios comerciais ou por um órgão diretamente governamental. Abaixo estão brevemente descritas algumas formas de financiamento da mídia pública nas diferentes sociedades. Com elas, é possível refletir sobre alternativas para o caso brasileiro.
Diferentes formas de financiamento nos sistemas mundiais e a comparação com o Brasil Alguns países da Europa2 e o Japão, ao rechaçarem o abuso de poder do Estado através da mídia nos anos de guerra mundial, mudaram os seus sistemas de controle governamental para o controle público, adotando assim, no final dos anos 1940 ou começo dos anos 1950, o modelo britânico de comunicação. Portanto, estas nações possuem até hoje os sistemas de rádio e TV aberta financiados diretamente pela população, através de “impostos” específicos para a mídia. Sob a forma de taxa, o tributo é cobrado mensalmente por residência que possua um ou mais aparelhos capazes de receber os sinais transmitidos. Observamos que nestes países, a televisão é, desde seu surgimento, financiada de modo a prestar um serviço de utilidade pública à sociedade. As empresas de comunicação que constituem os sistemas são ainda hoje controladas por conselhos constituídos não somente por representantes nomeados por repartições e autoridades políticas, mas também – e principalmente – por aqueles profissionais que foram nomeados por serem altamente qualificados para as tarefas que lhe dizem respeito ou por serem representantes dos diversos grupos sociais, demográficos, étnicos e geográficos destes países. Com o direito à concessão de emissoras comerciais nos anos 1980, os sistemas em questão tornaram-se dualistas, apresentando, cada qual, uma gradativa competitividade entre os canais disponíveis. Após crises financeiras nos anos 1990, algumas destas emissoras públicas passaram a contar também com os fundos arrecadados pela venda de produtos audiovisuais e pela publicidade. Estes, porém, são ainda hoje estritamente controlados em sua quantidade e conteúdo e estão longe de ser a principal fonte de verbas das empresas.
2 Como a Alemanha, os países da Escandinávia, a França e a Inglaterra, considerada a “mãe” do modelo.
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Até hoje nestes países, tanto na rádio como na TV, os canais públicos tradicionais ainda mantêm a sua reputação e a liderança de público, mas a porcentagem cai ano a ano. Crescem problemas como a inadimplência da taxa de mídia e a dependência financeira comercial e estatal. Assim, cresce também o número de propostas de mudanças drásticas que buscam reverter o quadro. Apesar da falta de detalhamentos, pode-se afirmar que a descrição acima se encaixa na realidade de todos os diversos países mencionados. Constata-se, portanto, como a forma de financiamento define diversas diretrizes de um sistema de comunicação. Outra observação válida é a de como alguns sistemas públicos puderam representar um papel justamente contrário ao que lhes é atribuído aqui no Brasil: Eles foram instituídos com o princípio de impedir a influência estatal na mídia. Contudo, isto foi garantido através de uma forma alternativa de financiamento que, pela diferente decorrência histórica, não foi aplicada no Brasil no momento do surgimento da televisão e se torna impraticável depois da estabilização do forte sistema comercial no meio. Ainda pensando em imposto diretamente para a mídia, é possível citar o exemplo dos Estados Unidos, onde o sistema público desfruta de um bom status social, mesmo não tendo sido instituído com o modelo britânico de financiamento. O país aplica por lei uma taxação de 3 ou 4% do valor na compra nas lojas dos aparelhos de rádio e televisão, arrecadamento que é diretamente destinado às empresas públicas de comunicação. Porém, mesmo com o enorme poder de consumo norteamericano de bens duráveis, o valor adquirido com as vendas dos eletrodomésticos não representa uma parcela significativa na soma total dos gastos para a manutenção do sistema todo, sendo necessárias ainda outras fontes que colaboram no financiamento. Eficiência à parte, esta taxação dos Estados Unidos representa uma forma alternativa de seguir a mesma ideologia do modelo britânico: A de fazer pagar pelos custos das emissoras de TV e rádio públicas aqueles cidadãos que estão propensos a desfrutar do seu conteúdo. Pode ser considerada, portanto, uma maneira justa e objetiva de retribuição à prestação de serviço. Um pouco menos objetiva quanto ao pagamento direto pelo consumidor, porém, mais eficaz enquanto forma de captação de renda é a taxação fixa prevista nas contas de energia elétrica de Portugal. O arrecadamento destina-se direto às agências curadoras da mídia pública chega a ser a maior fonte de renda das empresas do grupo RTP. Leva-se também em consideração a isenção da taxa pelas residências cujo consumo de energia elétrica é extremamente baixo. Desta maneira, pode-se dizer que a forma de financiamento portuguesa parece ser uma entre outras boas sugestões de financiamento para a adoção pela mídia pública brasileira. Porém, é preciso enfatizar a necessidade anterior de campanhas de esclarecimento e conscientização da população sobre a importância da implantação do sistema no Brasil. Sem estar acostumado com a prestação de serviço público no meio da comunicação, é natural que o contribuinte desconfie e até se recuse a colaborar com a sua manutenção. Abordando agora uma particularidade do caso da França, o atual presidente da república assinou recentemente um decreto para incrementar os impostos pagos pela veiculação de campanhas publicitárias nas TVs e rádios comerciais. A taxa adicional destina-se diretamente às empresas públicas de comunicação do país, com o intuito de acabar com a veiculação dos filmes e spots comerciais das emissoras que as
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mesmas administram. O aniquilamento total de veiculação comercial pelos canais públicos pretende ser conseguido no ano que vem – em 2011. Porém, a iniciativa é alvo de crítica de alguns partidos e grupos sociais. Fazer com que parte do lucro dos grupos de comunicação comercial pague uma parcela dos gastos da comunicação pública parece ser uma forma efetiva de financiamento e deve ser levada em consideração, principalmente por um país como o Brasil, onde há uma grande concentração de renda pelos poderosíssimos grupos de comunicação comercial em detrimento da tentativa de consolidação do novo sistema público, ainda precário e totalmente descentralizado. Entretanto, não se pode omitir o ponto de vista que seria o dos grupos comerciais de comunicação. O tributo citado nos parágrafos acima, se cobrados aqui, poderia ser considerado injusto por prejudicar exclusivamente o setor privado da comunicação, sendo que outros prestadores de serviços privados no Brasil não arcam diretamente com despesas da manutenção de seus concorrentes estatais. Diferente é o caso da Colômbia, onde existe uma lei que define que as firmas privadas e as empresas multinacionais de qualquer natureza são obrigadas a pagar uma taxa que visa diretamente a garantia de coexistência das empresas estatais. Assim, como as empresas do sistema de comunicação do país vizinho são empreendimentos estatais, elas também se beneficiam de tal encargo. Sem dúvida, o maior problema que o país tem em seu sistema público de mídia é a constituição plena dos seus encargos administrativos por representantes políticos. Assim, apesar de dispor de uma situação financeira relativamente estável, o sistema de comunicação público colombiano responde por seus atos diretamente ao Estado, situação que devemos evitar.
Considerações finais Como é possível observar, um sistema de comunicação público é, para um país, tão importante quanto outras prestações de serviço que um governo ou uma sociedade civil deve providenciar. Cabem a ele várias tarefas exclusivas e de profunda relevância, tais como: amparar os cidadãos, informando-os sobre seus direitos e deveres na sociedade; fomentar a cultura, a democracia, a cidadania e a tolerância, defendendo também a integração social dos grupos minoritários; auxiliar na educação e na consolidação de valores universais; transmitir programas de utilidade pública; fornecer espaço para manifestações artísticas e de outras naturezas. Para que o sistema ofereça tudo aquilo que o fundamentou, é preciso que seja garantida uma forma de financiamento cujas exigências formais sejam direcionadas ao cumprimento do compromisso com a sociedade e para nada mais. Desta maneira, o financiamento não pode partir integralmente do governo. Ainda que existam mecanismos de leis que garantam uma independência administrativa, a receita unilateral implica em laços estritamente atados com o Estado e colocam o sistema público em uma situação existencial vulnerável. Também não é possível a dependência plena do capital publicitário, já que o intuito é oferecer uma alternativa ao sistema comercial. De acordo com exemplos dos outros países, citados ou não neste trabalho, pode-se concluir que a autonomia de um sistema público de comunicação é diretamente ligada ao equilíbrio de suas fontes de recurso. Nota-se também que os sistemas mais consolidados
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possuem uma maior quantidade de financiadores e, devido à crescente escassez de renda em seus sistemas dualistas, esta quantidade tende a aumentar. A consciência do papel social, ou seja, a legitimação do sistema público perante a população mostra-se como a iniciativa mais urgente para que possam ser dados outros passos em prol de consolidação. O fato da maior parte das iniciativas à rádio e TV públicas no Brasil serem tão recentes traz a desvantagem da adaptação dentro de uma sociedade na qual o costume visual (viciado) mercantilizado – reforçado através das décadas de supremacia do sistema comercial – é o padrão, muitas vezes considerado sinônimo de excelência. A excelência técnica, conseguida pelas empresas privadas através do grande domínio financeiro, é, muitas vezes, confundida com a excelência de conteúdo. Isto acarreta em uma maior dificuldade de conquista do público com formatos de comunicação mais exigentes, ainda mais com as – sempre rigorosas – restrições de orçamento. Contudo, pode-se dizer que a possibilidade de observação e de estudo dos caminhos traçados pelos sistemas públicos mundiais mais antigos e já consolidados é a vantagem de quem visa fortalecer um sistema em um diferente contexto, nos dias de hoje. É possível observar que todos os sistemas públicos fortes e bem-estruturados do passado estão drasticamente perdendo espaço para os novos sistemas comerciais. Isto pode parecer normal devido à diferença ideológica destes dois formatos, mas pode-se afirmar que os problemas acarretados pela adaptação aos novos tempos deixam as empresas públicas, nascidas para serem as concessões dominantes, com graves sequelas e com muitos outros problemas sem soluções. Com a estabilização de um sistema público em pleno século XXI, temos a vantagem de poder calcular com sensatez o espaço que lhe cabe ocupar, contando com um mercado cada vez mais fragmentado, bem como com a previsão do trabalho em plataformas sob constante adaptação tecnológica, tendo como exemplo a atual conversão para o sistema digital. Está aí outro fator que pode ser visto como favorável na criação de um novo sistema nos dias de hoje. Estamos em um momento de profunda convergência midiática. Sua nova estrutura deve englobar a atual condição crossmedia com diferenciais estruturais e ideológicos, fazendo-se presente ao consumidor através dos diferentes meios. Esta parece ser a hora certa para a quebra de padrões e convenções já estabelecidas há muitas décadas, o que reforça a disposição experimental do público e de abertura para o novo. Porém, é preciso haver a mobilização social que exija do governo a adoção de medidas que garantam o direito a uma moderna Lei de Comunicação de Massa, fundamentando assim, a mídia pública. O sistema precisa ser regulamentado e tutelado por lógicas ligadas ao público. A pressão social resulta na fiscalização. Só assim alguns problemas estruturais do seu mercado de comunicação, que vem de sua origem, poderão ser resolvidos.
Referências bibliográficas BOLAÑO, Cesar. A televisão brasileira na era digital - Exclusão, esfera pública e movimentos estruturantes. São Paulo: Paulus, 2007. INTERVOZES, Coletivo Brasil de Comunicação Social. Sistemas públicos de comunicação no mundo – Experiência de doze países e o caso brasileiro. São Paulo: Paulus, 2009.
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LEAL FILHO, Laurindo. A Melhor TV do Mundo – o Modelo Britânico de Televisão. São Paulo: Summus Editorial, 1997. LEAL FILHO, Laurindo. A TV sob controle – A Resposta da Sociedade ao Poder da Televisão. São Paulo: Summus Editorial, 2006.
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Isabel Anderson Ferreira da Silva é graduada em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, tem mestrado em mídias públicas pela Universidade de Bochum, na Alemanha. É doutoranda em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp.
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LOST
E A ERRÂNCIA DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO
MAURO EDUARDO POMMER*
Resumo: Para a subjetividade contemporânea, a noção de crise deixou de ser vivida em momentos específicos, para tornar-se um contínuo elenco de escolhas compulsórias e muitas vezes insuportáveis. Tanto no que toca à inserção social dos sujeitos, quanto no que se refere às suas vivências psicológicas, os efeitos dessa contínua aceleração dos atos cotidianos vêm se manifestando pelo deslocamento em relação aos papéis habituais dos indivíduos, gerando inclusive mudanças observáveis nas patologias predominantes. A enorme repercussão alcançada pelo seriado televisivo Lost, capaz de torná-lo referência social para muitos grupos na internet e modelo para novas produções audiovisuais, deve-se em parte à sua capacidade de tratar no campo simbólico essa interminável vivência de escolhas insuportavelmente dolorosas. Tendo o seu núcleo central de personagens continuamente dividido entre vidas presentes, passadas e, por vezes, paralelas, essa história constitui uma abordagem – nem sempre autoconsciente – da fragmentação espáciotemporal inerente à etapa pós-industrial do capitalismo. PALAVRAS-CHAVE: LOST, CULTURA PÓS-INDUSTRIAL, PAPÉIS HABITUAIS Lost and the wandering of the contemporary subject Abstract: The notion of crisis is no longer experienced in specific moments, and has become an endless roll of constrained and often unbearable choices. With respect to the social integration of subjects and their psychological experiences, the effects of the continuous acceleration of everyday acts are manifested by the displacement of the customary roles of individuals, leading to observable changes in the prevailing pathologies. The enormous impact of the television series Lost (so much so that it has become a focal point for many internet groups and a model for new audiovisual productions) is due in part to its ability to deal symbolically with though experience of unbearably painful choices. With its central core of characters continually torn between their present, their past and sometimes their parallel lives, this story is a perspective – not always self-conscious – on the spatio-temporal fragmentation inherent in post-industrial capitalism. KEYWORDS: LOST, POST-INDUSTRIAL CULTURE, ROLE PLAYING
V
ivemos um tempo onde a noção tradicional de “desdobrar-se” para atender às inúmeras solicitações da vida corrente, tanto nas atividades sociais quanto na vida pessoal, vem deixando de ter conotações metafóricas para englobar um conjunto de aspectos capazes de modificar tanto as práticas cotidianas
correntes quanto as representações mentais dos indivíduos. Trata-se da solicitada atenção a múltiplas tarefas simultâneas, da representação sequencial compulsória de papéis sociais distintos e, por vezes, antagônicos, do descontentamento permanente com seu status pessoal, induzido pela lógica perversa da sociedade consumista, e ainda da contínua deriva moral numa sociedade onde a ênfase desenfreada na produção econômica transformou o dinheiro na forma única de atribuição de valor. No campo das representações audiovisuais contemporâneas, esse desdobramento contínuo de personalidades tem assumido a forma recorrente de personagens que levam vidas duplas com uma naturalidade capaz de transformar tal tendência em nova norma, ou ao menos de transformá-la numa fonte de aspiração, de aparência socialmente “natural”. Mesmo sem enfatizar aqui os super-heróis – cuja existência dupla, envolvendo identidades secretas, aparece diegeticamente como condição de sua inserção na vida civil, paralelamente àquelas atividades onde se realizam pelo exercício de seus superpoderes –, pode-se notar que a vida dos personagens de alguns dos seriados televisivos de maior prestígio atualmente gira em torno da duplicidade de suas personalidades. Digno de nota, ainda no terreno do gênero fantástico, é a premissa de True Blood, série ambientada numa cidadezinha da Louisiana onde a convivência normalizada de vampiros e humanos, tornada possível graças à recente invenção de um tipo de sangue artificial sintético, permite o desvendamento naquele local da existência de um conjunto de humanos dotados de vidas paralelas enquanto seres mágicos, tais como mênades, metamorfos e fadas. Mas é também analogamente, agora em registro realista, que ocorre a inserção numa vida dupla do publicitário Donald Draper em Mad Men, o qual toma seu nome de empréstimo a um tenente morto na guerra da Coreia, encobrindo assim seu nebuloso passado, enquanto profissionalmente vive de inventar novos modos de comportamento (ou seja, personalidades virtuais) para os clientes das empresas a cujas contas atende. Em outro seriado, é o professor de química de Breaking Bad que, doente terminal de câncer e tendo se decidido a deixar um pecúlio para sua família bastante destituída de recursos, resolve abandonar seu segundo emprego numa lavadora de carros para consagrar-se à produção em grande escala de drogas ilícitas. Tendo sua nova atividade lhe trazido o contato permanentemente conflituoso com os barões do narcotráfico, ele paulatinamente se vê constrangido a desenvolver uma atuação de supercriminoso, enquanto preserva seu mal remunerado emprego de professor como fachada, e pena tentando manter em paralelo uma tradicional vida de família com sua esposa grávida e seu filho nascido com problemas genéticos. Seja no campo do fantástico, seja em representações realistas, o que a ficção audiovisual contemporânea está registrando pode ser caracterizado como uma aflição generalizada associada à necessidade de se desempenhar papéis pessoais e sociais excludentes, mas complementares. Fica retratada através da forma estrutural como tais personagens são construídos nessas ficções uma tendência deles verem a si próprios, e experimentarem suas vidas, como comportando internamente a seus psiquismos um outro personagem ficcional, no sentido de que a ficcionalização caracteriza-se ontologicamente por um afastamento “teórico” de si próprio, no sentido de ver-se de fora. Toda ficção é instauradora de um lugar do sujeito, que assim pode tornar-se foco de enunciação discursiva, eventualmente tomando a si próprio como objeto de exame, tornando-se parte também do “mundo”. O que franqueia a tais personagens desdobrados de si mesmos o ingresso na lógica da ficção é o fato de que a narrativa ficcional implica na inserção de um tempo
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diegético em um tempo cronológico discursivo, o qual por sua vez também comporta um caráter fictivo. Nos termos em que Käte Hamburger trata desse tema, tem-se que o Euorigem do suposto narrador delega seu lugar estrutural ao Eu-origem dos personagens. (HAMBURGER, 1986: p. 93) Uma modalidade particularmente sugestiva de tal desdobramento narrativo fundamental é o que encontramos na formulação do universo peculiar retratado na ficção seriada Lost, onde os personagens centrais têm não apenas seu passado reconstituído através de oportunos flashbacks, que contam situações não condizentes com suas vidas no presente narrativo, mas têm eventualmente seu futuro também destoante antecipado através de flashes ahead, para culminar com essas incongruentes vidas sucessivas sendo subdivididas em igualmente excludentes vidas paralelas, vividas em universos alternativos resultantes de cisões interdependentes no espaço-tempo. Sobreviventes de um acidente aéreo que os deixou perdidos numa ilha por semanas à espera de um resgate, movem-se num ambiente dotado de propriedades físicas extraordinárias, capazes de lhes dar uma vida totalmente nova, enquanto lutam pela sobrevivência e buscam encontrar respostas para os eventos paranormais que ocorrem continuamente à sua volta. Fica patente que tal tipo de desdobramento estrutural de personagens ficcionais constitui traço recorrente na estética contemporânea, e sinal de contato significativo dessas produções com a sensibilidade atual. Podemos registrar nessa temática frequente do desdobramento das personalidades um paralelo com os relatos efetuados por psicanalistas e psiquiatras acerca dos quadros mais comuns de perturbações afetivas e cognitivas na época atual. Por um lado temos um aumento avassalador dos afastamentos do trabalho por transtorno mental ligado a quadros de estresse e depressão, frequentemente associados à insônia e às crises de pânico. Quanto ao caso específico da depressão, o psicanalista Joel Birman, lembrando as posições de Guy Debord, correlaciona diretamente o uso corriqueiro da intervenção psicofarmacológica como sinal claro da inscrição desse tipo de tratamento “num projeto sociopolítico mais amplo, em que o incremento da performance das individualidades é a única coisa que interessa aos imperativos da sociedade moderna avançada”. (BIRMAN, 2009, p. 5) Com isso, os significados possíveis das oscilações de humor, da angústia e das demais formas de sofrimento psíquico ficam obliterados em nome de manter os indivíduos produtivos a qualquer custo pessoal: O que o sujeito possa estar balbuciando com tais dores psíquicas não há nenhum interesse em saber e nenhum espaço dialógico é aberto pela psiquiatria para que aquele possa se anunciar. A demanda de subjetivação foi, assim, abolida da prática psiquiátrica, em conjunção com a suspensão do discurso do paciente. (BIRMAN, 2009: p. 5)
Com efeito, a visão médica de que todo quadro depressivo requereria intervenção medicamentosa para promover a regulação dos neuro-hormônios no sistema nervoso central desconsidera o fato de que a chamada “posição depressiva”, confrontada aqui com a posição esquizo-paranóide, “seria fundamental para a produção simbólica e para o engendramento dos processos de subjetivação no psiquismo”. (BIRMAN, 2009: p. 5) O que coloca em relevo o papel da psicanálise para buscar oferecer “a possibilidade de transformar as perdas dos indivíduos em produção simbólica e novas formas de simbolização”. (BIRMAN, 2009: p. 5) Trazida para a situação geral encontrado nas personagens perdidas e ansiosas da ilha de Lost, essa necessidade premente de simbolização (dentro de um quadro potencialmente
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depressivo onde o pânico tende sempre a se justificar), retratada na incessante mobilização a que eles se submetem, parece conter um viés terapêutico, na busca de resolver confrontos e de traduzir em algum esquema compreensível – ou ao menos operacionalizável – a profusão de situações que sistematicamente desafiam seu senso comum e mesmo as leis científicas. A psicóloga Kelly Lambert, que também se posiciona contrariamente à cultura dos antidepressivos, relata ter encontrado evidências experimentais de que a própria atividade física contém em si mesma a capacidade de introduzir-nos num ciclo de recompensa adquirida pelo esforço, relacionado a “um circuito envolvendo prazer, movimento e solução de problemas”. (LAMBERT, 2009: p. 6) De modo que, com sua atitude de jamais desistir das coisas, e percorrendo incessantemente todos os recantos da ilha a partir de contínuos sinais de alarme, os personagens de Lost demonstram capacidade de escapar da depressão que os ronda. Simultaneamente, podemos constatar que sua luta incansável contra as ameaças concretas e contra o incognoscível opera como metáfora indisfarçável da agitação frenética em que se encontram metidos os indivíduos contemporâneos, às voltas com as inúmeras tentações de preencher o que se lhes apresenta como um vazio insuportável. Ocorre porém que esse vazio constitui não uma limitação a ser erradicada, mas uma função estruturante do sujeito, nos termos em que o conceptualiza Alain Touraine, refletindo sobre a questão do indivíduo contemporâneo pelo viés da sociologia. Touraine propõe que em princípio o sujeito é vazio, concebido na forma de uma luta de sobrevivência em face da enorme pressão da economia, do consumo, da cultura de massas […] mas nossa experiência central, criativa, é a distância de si a si, o caráter não-institucionalizável do sujeito. […] Essa distância insuperável de si é necessária para que haja um sujeito. (TOURAINE, 2004: p. 34)
Para concluir daí que: “O que está em jogo em nosso tipo de sociedade é a criação ou a destituição do sujeito”. (TOURAINE, 2004: p. 36) Nessa sociedade que pode ser caracterizada de “pós-industrial” ou “hiper-industrial”, ou ainda como a “sociedade da informação e da comunicação”, as demandas sobre o sujeito tendem a crescer incessantemente: “a partir do momento em que a produção da sociedade não é mais apenas técnica, mas também midiática, informacional, o espírito humano vê-se diretamente em face de si próprio”. (TOURAINE, 2004: p. 41) O sujeito como uma forma de recusa, uma postura contrária à violência, ao mercado e ao poder absoluto do Estado pode ser caracterizado ainda como uma luta contra a “lógica interna e racional dos sistemas”. (TOURAINE, 2004: p. 90) Entretanto, a luta contra as formas eventualmente perversas da racionalidade (quando esta se vê empregada para o domínio, e não visando a autonomia dos sujeitos sociais) carrega uma dura contrapartida na relação de si a si do sujeito contemporâneo. O psicanalista Charles Melman sinaliza aquilo que descreve como o advento de uma nova economia psíquica, em direção a um estado mental que representa “um estranho retorno ao que era a situação pré-cartesiana, de antes do aparecimento do ‘eu’ do cogito. Haverá vozes das profundezas, vozes diabólicas que o sujeito não reconhecerá como suas”. (MELMAN, 2008: p. 124) Razão pela qual o predomínio dos quadros neuróticos (próprio à sociedade da virada do século 19 para o século 20 europeus, época de repressão social ao comportamento em que a psicanálise se constituiu e se institucionalizou, em contraste com a permissividade da sociedade atual) vem cedendo sua primazia a quadros
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mais agravados de distúrbios mentais: “saímos da paranóia para entrar na esquizofrenia”. (MELMAN, 2008: p. 124) Na base desse processo encontra-se o poder avassalador da ciência em definir-se como o padrão conformador de nossa sociedade, requerendo a manutenção de um refúgio para o sujeito: Diante do progresso notável da ciência, a existência do inconsciente seguramente é um refúgio para a humanidade. É, por fim, o último lugar que fornece um abrigo para o sujeito, o coloca em posição de operar uma retirada, então, de lançar um olhar para o desenrolar de sua vida, de fazer sobre ela um julgamento e de ser capaz de tomar decisões […] É muito claro que o progresso da ciência nos “barra” como sujeitos […] A ciência está cada vez mais presente, exigente, galopante. É a organizadora, a companhia que regula o essencial de nosso mundo. Ela nos coloca numa situação em que cada vez nos é mais difícil nos afirmar, ser considerado como sujeito. (MELMAN, 2008: p. 131-132)
A noção que Melman propõe, acerca do barramento do sujeito pela ciência, pode ser encontrada no coração da proposta de Lost enquanto retrato de nosso tempo, por um lado como constatação acerca da deriva dos sujeitos incapazes de encontrar ancoragem segura no espaço-tempo (tal qual a simbólica ilha que habitam), mas também simultaneamente como forma reativa a essa deriva, através da constituição de uma narrativa resimbolizadora, capaz de induzir novos processos de significação. Eis portanto o tamanho do equívoco manifesto por muitos aficcionados do seriado, que desejavam e esperavam por “explicações científicas” definitivas ao final da série – e que confundem sua frustração diante de alguns aspectos obviamente desencontrados da história, próprios à relativa precariedade em termos de soluções de roteiro numa série de desenvolvimento inicialmente “aberto” (isto é, sem previsão acerca do número final de episódios), com a posição crítica de que seu final foi malfeito enquanto programa de TV, por ter deixado aos espectadores uma “solução” do enigma que de fato não o resolve, numa visão oscilando entre o existencial e o abertamente “religioso”. Essa insistência deliberada da história de entrar em outra chave é, ao contrário das críticas simplistas ao seu desenlace, totalmente consistente com seus pressupostos estéticos, ao fugir do papel ideológico que a ciência passou a desempenhar. Pois, como assevera Melman, A ciência desloca o sujeito do campo dos enunciados […] para situá-lo do lado da enunciação, do lado do “real”, no qual, então, vai se produzir esse fenômeno singular, essa espécie de milagre do inconsciente […] Isso, o inconsciente, fala. De diversas maneiras, por exemplo através dos lapsos, dos atos falhos, etc. […] Isso fala e, se é dotado de fala, é porque há ali, justamente, um sujeito, o sujeito do inconsciente, que é animado pelo desejo de se fazer reconhecer. (MELMAN, 2008: p. 133)
Mas, se vivenciamos uma etapa científica que permite e enseja essa expressão do inconsciente como parte integrante de nosso campo cultural, por outro lado
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É interessante constatar que, se o progresso da ciência permite hoje, a um sujeito, se expressar, este de jeito nenhum é o sujeito do desejo, é o sujeito da demanda ou o sujeito da necessidade. Justamente porque a ciência, com os méritos consideráveis que são os dela, é cada vez mais capaz de satisfazer – aparentemente – essas necessidades e essas demandas. […] Mas também, e sobretudo, a ciência demonstrará sua capacidade de “tratar” – de fazer calar! – o sujeito do desejo, esse sujeito inconsciente que nos ocupa, ao organizar da melhor forma o gozo sexual, de tal forma que ele possa ser assegurado à vontade. (MELMAN, 2008: p. 135-136)
Uma vez que o “sujeito do inconsciente” arrisca-se em nossa etapa civilizatória a perder sua sexualização, já que sua dinâmica pode vir a sujeitar-se a um processo de reificação pela transformação do desejo em demanda – isto é, o abandono de sua dinâmica enquanto linguagem, gerando sua substituição por pulsões não simbolizáveis – a hipótese da possível desaparição do sujeito do inconsciente na nova economia psíquica coloca diretamente sob escrutínio o campo da criação artística contemporânea: Então, o que virá se expressar nesse lugar do inconsciente poderá adquirir características perfeitamente multiformes, enigmáticas, estranhas, bizarras. […] o lugar que o fantástico ocupa, nos dias de hoje, no campo literário assim como no campo cinematográfico. Ora, podemos observar uma renovação das figuras que vêm suportá-lo, e num universo certamente dessexualizado. Essas figuras se tornaram muito mais estranhas e ameaçadoras que antes […] porque não se sabe o que elas querem, nem o que vêm fazer ali. Com frequência não se sabe por que desembarcaram ali, nem o que as interessa. Em outras palavras, estaríamos num época em que não é mais a resposta organizada por um pai que viria propor o gozo sexual […]. Poderíamos, eventualmente, ver, nessas novas configurações do fantástico, a emergência na cena da figura do Outro, mas de um “grande Outro” ao qual não se chega a atribuir uma qualquer expectativa, um qualquer desejo. O que provoca ainda muito mais medo. (MELMAN, 2008: p. 136-137)
Na ilha de Lost é a criatura bizarra conhecida como “Black Smoke” que desempenhará esse papel de “grande Outro”, enquanto ser de desígnios insondáveis, capaz de uma violência homicida tão incontrolável quanto inexplicável, em tudo correlata daquilo que Melman caracteriza como o terror oriundo de um imaginário dessexualizado e enigmático. Essa fumaça preta que ataca de forma intermitente os sobreviventes desde o primeiro episódio da série, para culminar num verdadeiro genocídio nos episódios finais, tem por móvel apenas seu intuito de encontrar meios de “deixar a ilha”, como se fica sabendo ao cabo de seis temporadas da história. Poder-se-ia dizer, metaforicamente, que ela almeja “sair do inconsciente” que a ilha representa, expressar-se enfim para além da violência insana, inominável. Essa fumaça flutuante, informe, constitui uma tradução artística espontânea mas poderosa enquanto imagem daquilo que Malman caracteriza como “o homem sem gravidade”, um tema central em seu pensamento:
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O sexo, até esse dia, se suporta pela falta e, simultaneamente, vem encarnar e representar nossa verdade subjetiva. Ele é a muralha, a proteção. A partir do momento em que você recusa a sexualidade […] faz emergir sujeitos liberados de qualquer gravitação, completamente aliviados de peso. […] O sujeito dessa nova economia psíquica gira ao redor do objeto sem nenhum estilo, […] sem nenhuma identidade segura, sem nenhuma personalidade. (MELMAN, 2008: p. 144)
Ao invés, contudo, dessa despersonalização constituir alguma forma de liberdade graças à perda das amarras afeitas aos laços sociais tradicionais, quando predominavam os interditos e o recalque coletivo por eles produzidos, tal deriva do sujeito gera uma outra espécie de servidão, pela nova obrigação de “se manter na corrida pelo gozo. […] O que se traduz, entre outras coisas, pelo cansaço e pela ansiedade”. (MELMAN, 2008: p. 173) A interminável disputa pela exploração da ilha de Lost ilustra à perfeição o desafio que nos é lançado quando ao destino civilizacional a ser dado ao terreno do inconsciente. No âmbito da história, três corporações (ao menos) travam uma luta de vida ou morte pela posse da ilha e de suas propriedades extraordinárias. Os “habitantes originais” da ilha, isto é, os primeiros a instalarem ali uma colônia no século 20, constituem no presente da história uma espécie de bando que impõe sua lei àquele ambiente, buscando de maneira inescrupulosa chegar a seus fins: impedir que novos ocupantes controlem a ilha. Grupo voltado à pesquisa genética, tem como objetivo maior descobrir por que nenhum bebê nascido na ilha é capaz de sobreviver. Para esse fim inclusive raptam alguns dos sobreviventes do acidente aéreo para realizar neles testes biológicos. São financiados por um misterioso organismo que tem por objetivo povoar a ilha e explorar comercialmente suas características miraculosas. Numa etapa pregressa da história, a ilha foi ocupada também por membros de uma outra entidade, a “Dharma Iniciative”, instituição de caráter aparentemente filantrópico, que estabelecera um conjunto de bases de trabalho, onde experimentos eram conduzidos no intuito de se procurar explicações científicas para as anomalias verificadas daquele ambiente. Esse grupo, obrigado continuamente a defender-se dos “habitantes originais”, acaba sendo exterminado por eles. O terceiro interessado em dominar a ilha é um poderoso homem de negócios, que retorna à ilha com um exército de mercenários, buscando explorar comercialmente as propriedades curativas do lugar, mas como competidor dos “habitantes originais”. Para isso não hesita em atacar militarmente os moradores da ilha, visando exterminar as populações existentes, para em seguida estabelecer ali sua empresa. Ou seja, toda a capacidade de redenção de que as vivências relacionadas à ilha (leia-se: ao inconsciente) se revelam capazes, é sistematicamente atacada e destruída com o objetivo explícito de submeter seus “dons” (suas dádivas, suas salvaguardas da saúde mental e do estágio civilizatório que atingimos) à sua realização comercial, isto é, à sua reificação. Assistimos ao longo de todo o conflito pela posse da ilha à contínua tentativa de submetê-la aos imperativos da exploração comercial, visando utilizar de suas propriedades aquilo que for redutível ao manejo científico. Mas, simultaneamente, inúmeras pistas são dadas no transcorrer da história, através do comportamento daqueles personagens que se batem para manter a ilha inacessível ao seu domínio pelos interesses comerciais, de que a “magia” de que a ilha é dotada não é passível de controle mecânico. A natureza incomum de sua constituição física a colocaria dentro de uma tipologia de “lugar” cuja manipulação externa implica não em seu controle,
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mas em sua destruição. Trata-se de uma “entidade” impossível de ser reduzida a categorias que lhe sejam meramente “exteriores”. Confrontar-se com o que há de “mágico” nessa ilha, implica em aceitar a submissão a essa impossibilidade. Assim, o diagnóstico que Melman aplica ao destino atual do inconsciente em nossa sociedade poderia ser lido à luz da metáfora representada pela ilha de Lost: A partir do momento em que o inconsciente não é mais sexual, o Real nada mais tem a nos “dizer”, a não ser nos comandar, funcionar no modo imperativo […] estamos num dispositivo psicótico, em que o que emana do Real só intervém como mandamento. […] O serviço inestimável que um pai pode prestar a sua progenitura é, efetivamente, fazê-la saber que há um impossível. Ele o faz valer, evidentemente, no campo da realidade, através da interdição do incesto. E é essa dimensão do impossível, assim apreendida, que se verifica nutridora do desejo […] está aí o sujeito condenado ao sintoma, a se resolver no fracasso, no cultivo do impossível. (MELMAN, 2008: p. 176)
A ilha é, então, impossível de ser dominada em termos econômicos, por não se poder compreendê-la. Ela constitui assim a forma de recusa mais evidente no desenrolar de toda a história, e desse modo acaba se tornando a personagem mais importante do seriado, ao revelar nessa radical negação aquilo que termina por permitir a alguns de seus habitantes tratá-la como um ser dotado de vontade própria, um “sujeito”. Refratária à sua reificação, a ilha opera como ponto de refúgio de uma economia psíquica que não se deixa transformar pela economia de mercado. Ela representa a fundação daquela parte secreta e definitiva que constitui o sujeito. O diagnóstico a que Melman chega de nossa sociedade completamente mercantilizada é bastante sombrio, em função da mutação cultural introduzida pelo liberalismo, que encoraja um hedonismo sem rédeas: Não é mais, por isso, uma economia psíquica centrada no objeto perdido e em seus representantes que é avalizada; ao contrário, é uma economia psíquica organizada pela apresentação de um objeto doravante acessível e pelo cumprimento, até seu termo, do gozo. […] Essa nova economia psíquica é a ideologia da economia de mercado. Essa ideologia é anônima, não tem responsável […] funciona num campo lógico em que não há mais impossível. Em outras palavras, o Real se tornou para cada um de nós uma dimensão de tal forma improvável que não sabemos mais distinguir realidade e virtualidade. (MELMAN, 2008: p. 180)
O fato de que na ilha de Lost cada um se depara com suas vidas alternativas – “outros” de si próprio, proliferações virtuais de vidas possíveis –, insere essa história diretamente dentro da problematização contemporânea do sujeito. Na vida prática, pode-se aderir a esse estilo de vida estressado e hiperativo, ou pode-se buscar resistir a ele, para o que a consciência de seu modo operatório constitui a única ferramenta que temos. O trânsito dos indivíduos de Lost entre tempos diversos – um passado, presentes “reais” e virtuais, e futuros alternativos – deixa patente o imbricamento da subjetividade tal como vivida atualmente com a percepção da temporalidade. A subjetividade encontra-se circunscrita por um conjunto de fenômenos decorrentes daquilo que se pode caracterizar
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como a atitude dominante de nossa época frente à experiência vivencial do tempo. Experimenta-se no cotidiano o resultado subjetivo daquilo que o antropólogo David Harvey descreve como a transformação moderna do tempo em espaço, na busca da eficácia produtiva e comercial, já que o espaço é dominável e administrável, ao contrário do caráter subjetivo intrínseco ao tempo. Tal transformação opera-se no quadro daquilo que Henri Lefebvre caracteriza como “a produção do espaço”, nas “dimensões do vivido, do percebido e do imaginado”. (HARVEY, 2009: p. 201) Lost funciona no interior de sua diegese como fusão no plano do gênero fantástico entre essas três categorias nomeadas, transitando entre vivências, percepções e imaginações de seus personagens, por vezes operando de modo sequencial, outras vezes de modo simultâneo. Nesse sentido, o conjunto da narrativa pode ser tomado como uma ordenação simbólica do espaço e do tempo capaz de ressignificar o vivido, fornecendo “uma estrutura para a experiência mediante a qual aprendemos quem ou o que somos na sociedade”, nos termos postos por Bourdieu. Que aponta como decorrência: “a organização do tempo e do grupo de acordo com estruturas míticas leva a prática coletiva a parecer o ‘mito realizado’”. (HARVEY, 2009: p. 198) Podemos perceber processo dessa natureza operando narrativamente na constituição da ilha como espaço mítico, em reação à modernidade na forma extremada em que suas características são atualmente experimentadas, pois: “a modernização envolve a disrupção perpétua dos ritmos especiais e temporais, e o modernismo tem como uma de suas missões a produção de novos sentidos para o espaço e o tempo num mundo de efemeridade e fragmentação”. (HARVEY, 2009: p. 199) A fragmentação constitui a forma básica da organização mental frente à compressão moderna do tempo-espaço, isto é, frente a “processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos”. (HARVEY, 2009: p. 219) Harvey coloca essa experiência de compressão espaço-temporal não como uma decorrência colateral do projeto da modernidade, mas como elemento estrutural desse próprio projeto, necessário à definição de um quadro espacial capaz de comportar o tipo de ação social que lhe é próprio: “A conquista e o controle do espaço, por exemplo, requerem antes de tudo que concebamos o espaço como uma coisa usável, maleável e, portanto, capaz de ser dominada pela ação humana”. (HARVEY, 2009: p. 231) A transformação do espaço em mercadoria contribui para uma crise de representação já constatável na arte do século 19, que transparece na literatura e na arte do período. É nesse espírito que Flaubert registra, em uma de suas cartas, que “a ideia do futuro nos atormenta, e o passado não nos deixa avançar. Eis porque o presente foge de nossas mãos”. (HARVEY, 2009: p. 240) No contexto de Lost assistimos à culminação desse processo: a percepção subjetiva exacerbada de uma espécie de simultaneidade espacial, num tempo em que os voos transoceânicos se tornaram corriqueiros, termina por enfraquecer o sentido localizado de causalidade no tempo. No interior dessa história isso se manifesta pelo ingresso num espaço particularizado, no qual um mesmo agente pode ser causa de fenômenos objetivos díspares. Por exemplo, a anomalia eletromagnética presente na ilha pode causar a queda de um avião ou inviabilizar o acesso a ela navegando-se pela bússola, mas revela-se também capaz de curar a infertilidade e de fazer um paraplégico voltar a caminhar. Porém essa mesma particularidade de circunscrição espacial, característica das vivências dos personagens incapazes de deixar a ilha, mostra-se habilitada a atuar no registro
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oposto – como convém à ambiguidade característica da narrativa mítica –, amplificando o senso causal enquanto vivência subjetiva, na forma de exercício individual do dharma, isto é, o sentido da retribuição positiva. O fato novo trazido à percepção dos personagens pela dinâmica da ilha – na contracorrente da espacialização temporal no interesse da aceleração produtiva – consiste em que a mobilidade de que a ilha é dotada (e que parece contradizer suas características geológicas) desconcerta a racionalização do espaço-tempo, que se tornou uma espécie de segunda natureza em nossa era, gerando com isso no campo do imaginário a renovação da possibilidade de uma liberdade subjetiva. No que tange às possibilidades de representação pela arte modernista da compressão operada no espaço-tempo, o diagnóstico de Harvey é o de que, se “a mudança da experiência do espaço e do tempo teve muito a ver com o nascimento do modernismo e com seus confusos vagares de um lado para outro da relação espácio-temporal”, (HARVEY, 2009: p. 256) pode-se inferir com propriedade que as formas estéticas pósmodernas constituem um tipo de resposta a um novo conjunto de experiências radicalizadas dessa espécie de compressão. Se o modernismo lidara com uma situação na qual a racionalização acelerada se sobrepunha ao arcaico, a característica central da condição pós-moderna está no fato de que o arcaico desapareceu do âmbito do capitalismo central, e começa a ser erradicado também nos países emergentes. Esse novo quadro de homogeneização abrangente comporta, pois, no imaginário atual, a figura metafórica dessa ilha onde possa ser recriado algo como um espaço de familiaridade pela própria delimitação espacial imposta, espaço esse capaz de promover o surgimento de lembranças contemplativas, atuando assim como “um gerador de um sentido de eu que está além da sobrecarga sensorial da cultura e da moda consumista”. (HARVEY, 2009: p. 264) O grupo de viajantes jogados à sua revelia numa ilha rebelde às determinações do espaço-tempo ilustra bem a noção apontada por Harvey de que a espacialidade disruptiva triunfa sobre a coerência da perspectiva e da narrativa na ficção pós-moderna […] Ao que parece, estamos condenados a viver assim, como personalidades cindidas em que a vida privada é perturbada pela promessa de rotas de escape para outra realidade. (HARVEY, 2009: p. 272)
Uma vista d’olhos no grupo dos personagens centrais de Lost permite-nos obter uma percepção global da radicalidade dessa desterritorialização que a narrativa lhes impõe, para poderem desacelerar suas vidas e se reencontrarem consigo próprios. Na ilha cada um deles desenvolve a oportunidade de viver aquilo que em sua vida anterior fora bloqueado, fosse por seu próprio desígnio equivocado, pulsões antissociais, por um temperamento desequilibrado, ou ainda por motivos alheios à sua vontade. Dessa forma, um médico deprimido pela contínua confrontação com seu pai alcoólatra, também médico e proprietário da clínica onde o filho atua, vê-se alçado à posição de líder do grupo de sobreviventes, e é obrigado a conviver com o eventual fracasso trazido por algumas de suas decisões equivocadas e com a contestação de outros sobreviventes – com o que é obrigado a descer do pedestal que criara para si como infalível salvador de casos clínicos dados como perdidos. Seu principal oponente no grupo é um vigarista profissional, hábil em arrancar dinheiro de mulheres crédulas, que na ilha colocará seu sutil conhecimento da natureza humana a
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serviço da subsistência do grupo em situações extremamente adversas. Oscilando entre o amor aos dois, uma fugitiva da justiça, que após ter matado seu padrasto ateando fogo à casa onde ele dormia, fora capturada na Austrália e estava no voo sendo extraditada de volta para os Estados Unidos. Na ilha, ela tem a oportunidade de colocar suas habilidades de sobrevivência a qualquer custo a serviço de uma causa mais ampla. Outro personagem que disputa com o médico a liderança é um ex-balconista de loja de ferramentas, que é “promovido” com sua chegada à ilha a guru dotado de ideias transcendentais alternativas acerca da natureza “mágica” do local, onde também exerce suas habilidades de especialista em sobrevivência na selva e no manejo de facas. Antes de chegar ali, ele se vira reduzido a uma vida de paraplégico numa cadeira de rodas, após um confronto físico com seu pai, que terminara por atirá-lo pela janela do quinto andar de um edifício. A origem da discussão consistira no fato de que, após ter sido procurado pelo pai a quem não conhecia – e que se tornara um homem rico –, o balconista concordara em doar-lhe um rim para livrá-lo da hemodiálise, para em seguida ser novamente abandonado pelo pai sem maiores explicações. A ilha, porém, com seu poder inexplicável, o cura tanto de seu mal moral quanto das sequelas físicas de sua confrontação “edipiana”. Outros personagens vivenciam igualmente uma completa renovação em suas vidas. Uma garota australiana grávida, que viajava a Los Angeles com o intuito de entregar seu futuro bebê para uma adoção pré-arranjada, termina por dar à luz na ilha a um garoto especialmente bem-dotado, dada sua capacidade de sobrevivência singular naquele ambiente hostil aos neonatos. Um mexicano-americano, deprimido por um conjunto de atributos que o colocavam à margem de uma vivência social gratificante – extremamente obeso, tímido, desajeitado com as mulheres – passara a viver numa condição bastante ambígua após enriquecer graças a um bilhete de loteria, fortuna que porém trouxera consigo um conjunto de tragédias pessoais à sua volta, fazendo-o sentir-se “amaldiçoado” pela fortuna. É na ilha que ele recupera sua dignidade pessoal, ao conseguir pouco a pouco impor-se ao grupo com sua ponderação durante as crises, seu senso de amizade, e suas surpreendentes habilidades de mecânico. Em meio a isso tudo, um mafioso coreano cansado da obediência cega a seu sogro e patrão, que fugia buscando vida nova na América, consegue na ilha recuperar o amor e a fidelidade da esposa, após ela tê-lo traído com o professor de inglês dela (língua que secretamente aprendia). Completando o núcleo central, de modo a não economizar no peso das desgraças e na grandeza das correlatas possibilidades de redenção, um ex-soldado iraquiano, torturador profissional no exército de Sadam
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Hussein, que põe igualmente a serviço da sobrevivência grupal seu vasto arsenal de táticas militares e de técnicas de obter informações através da coação dos adversários. Ocorre, porém, que essa nova chance na vida que toca a cada um deles não advém por algo que qualquer um tenha feito ou deixado de fazer, mas pelo insuspeitável chamado realizado pela “ilha” para que venham a atuar como “guardiões” de suas qualidades incomuns. Dentre todos os papéis alternativos que os sujeitos contemporâneos são insistentemente chamados a desempenhar, através do fascinante apelo da razão técnica aparentemente onipotente e onisciente, o mais importante é também o mais singelo: o de garantir a preservação de seu lugar subjetivo, sua capacidade de dizer não.
Referências BIRMAN, Joel. Os novos dependentes. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 out. 2009. Mais! p. 5. HAMBURGUER, Käte. Logique des genres littéraires. Paris: Seuil, 1986. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2009. LAMBERT, Kelly. Faxina contra o baixo astral. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 out. 2009. Mais! p. 6. MELMAN, Charles. O homem sem gravidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2003. TOURAINE, Alain. A busca de si – Diálogo sobre o sujeito. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
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Mauro Eduardo Pommer é Doutor em Arts et Sciences des Arts pela Université de Paris 1, PanthéonSorbonne. Coordenador do Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: <pommer@cce.ufsc.br>.
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FICÇÃO
BATOM GUSTAVO CARVALHO*
Primeiro dia. Acordei, como todos os dias, um pouco atrasada, só que desta vez um tanto mais mal humorada, um tanto mais descabelada, e um tanto mais ressaqueada. A noite anterior havia sido descomunal. Dez e quarenta e três da manhã, meu turno havia começado às nove. Seu Armelindo já havia me advertido que não haveria uma próxima vez. Lavei a cara, molhei a nuca, chacoalhei os cabelos em frente ao espelho, a maquiagem borrada nos olhos, resquícios de uma bela noite vazia, coloquei a primeira camiseta que vi, uma verde, sem soutien mesmo, a calça era a mesma que usei na noite anterior e nao tive forças pra tirar, me arrependendo gigantemente hoje, pois me fica a sensação de que meu sono pelo menos poderia ter sido melhor. Peguei minha bolsa, as chaves do meu fusca e saí. Sorrateiramente me vinha a sensaçao de ter esquecido algo muito importante, algo que me fazia sentir nua, uma nudez imprópria, uma nudez não devidamente depilada, uma nudez grotesca da média idade gorda e peluda. No primeiro semáforo olho de um lado, um sorveteiro negro e gordo com andar de criança de fralda e uma camisa vermelha linda, que me fez relembrar tempos de LSD, tempos que me remetem a coisas ruins pois nada de lá me restou, somente um diploma que de nada me serve. Olho do outro lado e repentinamente enxergo o movimento que me faltou antes de sair de casa, o passar do batom, a loira no volksvagen - trinta anos mais novo que o meu – pareceu-me trinta vezes mais sexy que eu. Sim, era isso, eu jamais saio de casa sem passar antes um batom, tenho de todas as cores, estilos e marcas. Existem mulheres que gostam de comprar sapatos, eu compro batons. Chego ao prédio e enxergo Margarida do café fazendo o meu turno na recepção, me senti violentada, pois além de não ter uns quatro dentes na boca e ter oito cores diferentes no cabelo, ela é uma mulher do tipo que fala imbigo. Fui direto até ela com cara de enguia, ela, fez cara de medo, sentiu-se ameaçada, mas o que aquela coitada poderia fazer? Nada, simplesmente adorei a sensação de poder e medo que causei na pobre. Para minha primeira conversa do dia até que me sai bem. – Marga, não se assuste querida, só vim pedir as contas.
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Esta fez uma cara de espanto que me pareceu mais de indignação, acho que pensava que não haveria outra solução, afinal eu já devia ter sido despedida. – Jura, querida? Vou sentir a sua falta. Querida, apesar de o significado desta palavra ser tão amigável, só consigo resignifica-la a partir de outra palavra: falsidade. – Me empresta um batom? – Claro, meu bem! Novamente senti a falsidade pulando daquela boca; não importa, só preciso do batom da vadia. E Marga se abaixa e me trás entre o indicador e o polegar um batom Vermelho escuro, cor de sangue batido, terrível. Na minha pele branca iria latejar grotesquice. Fechei os olhos com reprovação, apanhei o batom da mão dela, debrucei-me no balcão e vagarosamente e comecei o movimento que me faltou naquela manhã. Não me lembro da última vez que fiquei sem batom, provavelmente foi quando criança, quando não havia provado ainda da delícia de encostar em meus lábios tal textura colorida que me relaxava e me trazia luz nas reflexões. Esfreguei um lábio no outro, coloquei o batom na minha bolsa e fui até Seu Armelindo, sem anunciar, a secretária tentou chamar minha atenção, mas fui mais rápida. Abri a porta do escritório, lá estava Seu Armelindo com as pernas cruzadas e a cadeira caída para trás com as mãos postas na nuca. E um senhor, provavelmente aposentado, de certo da velha guarda de Armelindo, que vinha pedir dinheiro ou algum apoio qualquer. Os dois me olharam com cara de espanto também, estava num belo dia para fazer o que me dava na cabeça. Com certeza não seria tão objetiva, não fosse o esclarecimento que passar o batom me deu. O velho fez de levantar-se e eu disse: – Não!!! Ele ainda tentou, levantando a mão anunciando que ia falar, mas novamente eu fui mais rápida: – Só quero dizer algo que está entalado faz sete meses e nove dias. Vá pra puta que te pariu! A cara de ambos. Foi sensacional, Existem coisas que não se repete na vida, esta foi uma dessas, um dos momentos essenciais da minha existência. Virei-me logo em seguida e, sem ouvir nada além dos meus tamancos, parei e sorri com a maior satisfação que já senti. Como podia um dia começar tão mau e mesmo assim me fazer tão feliz. Deve ter algo a ver com o sangue batido que passei na boca. Tinha tudo isso dentro de mim há muito tempo. Quem diria que já fui humilhada por aquele velho. Liberdade e falta de dinheiro, uma nova busca e sem carta de recomendação desta vez. O fusca ficou parado na frente do hotel mesmo, entrada principal, e lá ficou azulão e ofegante, cansado também de tanto que aturou na sua mera vida de servente. Mas o que fazer agora? Pensei em passar o batom pra pensar, esclarecer minhas idéias, mas não,
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aquele batom já tinha se responsabilizado por demais venturas no meu fim de manhã. Entrei na primeira lanchonete, pedi um pastel e um suco de laranja, tudo por um e cinquenta. Pedi pra usar o banheiro, afinal tinha maquiagem borrada da noite anterior na cara. Surtei ao me ver no vidro da cozinha que dava na entrada do banheiro. Lavei a cara várias vezes, segurando o cabelo com uma das mãos até desistir e me deixar molhar, me sentir limpa novamente, e era tanta limpeza que desejava naquele momento que escarrei a ponto de me ouvirem do outro lado da lanchonete, mas não saiu nada, estava impregnada de sujeira interior, remorso, ressaca. Ao me lembrar da nacionalidade chinesa dos donos da lanchonete, ri, imaginando que não reprovariam minha atitude de escarro e ri e ri sozinha novamente sem ter e sem necessitar de alguém pra compartilhar. Devia ter escarrado na cara do velho babão, ou de repente melhor seria não, pois passaria vergonha com esse nada que cuspi. Comi, bebi e sorri para um bebê que sentava no colo da mãe, esta orgulhosa do filho o exibiu ainda mais, decerto achando que eu queria um pra mim. – Filhos? Tô fora! Quero é poder ser possuída cada dia por um macho diferente, sem que chorem na minha cabeça durante a noite, vomitem no meu vestido novo ou façam birra para ir ao parquinho. Não olhei mais pra criança, lembrei-me que naquela idade meu pai fugiu com uma vagabunda qualquer. Não que eu possa reclamar, meu pai foi o marido chifrudo da vagabunda. Sim, na minha casa foi assim, os cornos se acariciavam. E aprendi tão bem que dormi com um homem que me chifrava durante dois anos. Dormia com a vizinha, a açougueira, a faxineira do prédio, a da banca de jornal, e todas me cumprimentavam com um lindo sorriso nas manhãs quando eu passava acompanhada do desgraçado. Bendita mania que ele tinha de tirar fotos do ato sexual. Digo ‘Bendita’ porque foi tempo de recuperar as minhas fotos e de achar as das vagabundas. Pensei em me matar, mas não, fui pra um bar lá na Augusta, com os meus mais belos sapatos vermelhos, vermelhos sangue, da mesma cor do meu batom, dei pra três amigos, que conheci no tal bar, no meu apartamento, seria páscoa em breve, e o filho da puta me trouxe um ovo que comi o fim de semana todo, depois de expulsá-lo dali. Não teria a mesma frieza de acariar o meu corno, nem o corno de ninguém. Cheguei a querer outro pastel, mas de volta à vida de solteira não poderia jamais extrapolar neste tipo de comida. Voltei para pegar meu fusca antes que mandassem guinchá-lo, tinha a sensação de que ele era o meu único amigo vivo, vivo porque andava, do contrário seria morto como todo o resto. Olhei a todos ali fora como se não os conhecesse, continuava não tendo saco pra gente boazinha e burra. Só tenho um preconceito na minha vida e este é para com gente burra. Gente burra faz isso: leva malas, estaciona carros. Eu me valorizo como recepcionista, ex-recepcionista, desempregada, talvez recepcionistas também sejam burras, talvez seja por isso que cansei e que joguei tudo pro alto, porque não me enquadrava bem ali, o simples fato de me fazer uma mulher feliz nos ultimos momentos, me satisfez como os orgasmos que tive com os três rapazes, dos quais perdi as contas, mas não me esquecerei jamais. Peguei meu fusca e me mandei pela Imigrantes. Queria ver o mar, me lavar com água salgada, tirar a nhaca, ou seria uma maré de sorte? Belas idéias eu estava tendo. Guarujá. Top less, ninguém na praia, como eu não pensei antes em ir ver o mar numa segunda-feira? Queria me sentir livre daquela
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maneira, mas meus princípios me prendiam ainda. Coloquei a camisetinha verde novamente e fui nadar. Senti-me linda, feliz, completa comigo mesma. Dali podia avistar o fusca azul, meu único amigo. Deliciei-me. Voltei até a minha bolsa e tamancos. Coloquei os dois, quis experimentar a sensação de estar de tamanco na areia fofa e branca do Guarujá. Quase caí várias vezes, mas a classe tem de ser mantida, e meu andar era o andar mais belo, era o andar que conquistou três homens numa mesma noite e dois anos atrás havia conquistado um outro qualquer, um outro que eu havia escolhido. Quis chorar, mas não me coube, estava muito linda. Quis outras cores de batom pra me iluminar as idéias, mas só tinha uma, o vermelho sangue podre da Margarida. – Vai este mesmo! Passei o batom vermelho escuro, na minha pele branca no sol, a camiseta verde, meus cabelos pretos bagunçados e molhados, e senti-me sexy, achava que tinha visto aquela cena na tv, em algum lugar, em algum momento da minha vida, talvez fosse apenas um déjavu. Com grande dificuldade fui caminhando de bolsa e tamancos até o mar, queria esta sensação. Queria misturar o glamour da minha noite passada, com o calor do sol, a água fria do mar, queria todas as sensações, queria arrepiar-me, queria masturbarme, queria sentir dor, queria um LSD, queria a morte, e conforme queria todas essas coisas eu girava no mar, sem perder a bolsa, o batom, ou os tamancos. Olhei pra baixo na água e vi meu reflexo. EU estava realmente linda, mais linda do que já tinha me visto, e não era porque me assemelhava à beleza socialmente imposta das top models. Era porque pela primeira vez, em todos os meus vinte e seis anos, eu havia sido eu mesma, eu havia feito tudo o que queria, mas sabia que um dia isso poderia passar, e eu teria de viver como os outros de novo, com os outros de novo, e nunca me diverti tanto como naquele momento, o momento que antecedia o brilho mais lindo já vi. Peguei o batom novamente, no momento em que o passava em meus lábios ia descendo com o corpo, descendo e sentindo a água penetrar-me cada póro e passando o batom. Foi assim até encontrar minha boca na água. Quando vi o vermelho escuro no reflexo unido ao brilho do sol na água, deixei-me ir, eu para um lado e o batom cor de mim, cor de realidade para o outro, onde ele encontrou a praia e eu o infinito.
*
Gustavo Carvalho é contista, formado em sociologia pela UFSCar. E-mail: <gucarvalho0@yahoo.com>.
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SÓLITO GUSTAVO CARVALHO*
A
ultima coisa que me vi fazer foi pedir um martini de gin duplo. Encontrei-me sozinho durante a noite, em busca da mais óbvia das possibilidades, entre todas e todos os presentes, não havia ninguém que padecesse desse mesmo pensamento. Senti por um minuto que toda minha vida passou pela minha cabeça, sim, já tive noites brilhantes, semanas inteiras de sexo intenso, horas e horas com apenas minutos de descanso. Por que só agora me sinto assim? Por que neste momento de angústia, tudo o que encontro na minha pessoa é essa vontade tremenda de juntar-me a outro corpo, seja este qual for, suar junto, sentir os diferentes gostos, misturar salivas, ver os olhos anônimos tremerem de prazer? Sinto que sou sim um dos melhores, entrego toda a minha matéria, minha mente respalda todos os sentidos, minhas mãos torneiam cada curva, desenham a iluminação perfeita pro nosso bem estar. Um martini te faz pensar, dois, te levam aos braços da filosofia barata. Restam-me quinze minutos ou mais de caminhada para que sejam elaborados os pensamentos mais finos, menos desejados, mais enlouquecedores. Família, trabalho, escola, faculdade, judô, em qualquer ambiente eu busquei e encontrei o sexo. Já nesta noite, e na anterior e nas anteriores, encontro-me perturbado; em verdade não me encontro, simplesmente buscome. Sou fiel aos meus pensamentos inertes, mas a carne domina a minha ânsia, meus dedos tentam em vão tocar outros dedos. Estou um sólito vagante. Passos e mais passos, casais que se formaram por toda parte gemem em conjunto, formando um coral de andorinhas desmedidas e desafinadas. Quando em pares a perfeição é veiculada amplamente, é sentida, é ouvida. O tato. Os seios mais belos eu já dedilhei, a sensibilidade notada a olho nu, notada em mãos cruas eu já espalhei. Meus favoritos sempre foram os pequenos. Apesar de jamais renegar os outros. Na minha boca ainda existe o desejo de sentir o gosto advindo deste par aconchegante e entorpecente. Presas infalíveis do meu bom senso, da minha humanidade. Na minha casa, janelas e portas bem fechadas, decoração de alta linha, cama vazia, sinto-me marginalizado, chego a pensar em sexo a domicilio, quisera eu estar do outro lado e garantir meu sexo e meu dinheiro. Depois de alguns drinks, espero minimizar meu dia seguinte com água. Encontro-me com todos aqueles que padecem do meu
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sentimento, não têm o que fazer e bebem água ou fumam seus cigarros. Estou prestes a enlouquecer. O copo cai das minhas mãos trêmulas e pacíficas, incompletas nos seus sentidos. Imediatamente encaixo meus dedos nos meus cabelos passados do momento de cortar, faço do meu couro cabeludo um alvo certeiro, escorrego como num balé minhas mãos até meu peito e com fervor e vingança estouro os botões, sendo capaz ainda assim, de me unificar. Um ser, uma unidade. Chego ao banheiro, lavo meu rosto, molho meu coro cabeludo, levanto-me e vejo todo o desejo que existe em mim, pulando em chamas dos meus olhos, cercando todos os quereres impossibilitados. Toco meus labios, belos e carnudos, meu rosto latino, meu sorriso de canto. Sei que não existe como eu não ser desejado. Meu ego se eleva a pontos desconhecidos, meus pelos brilham e caminham em conjunto, organizados e leves. Preciso me olhar nu, retiro com pressa a minha camisa já aberta, tiro os sapatos, e minha calça de brim. Em minha pele morena meus pelos indicam o ponto mais egocêntrico. Coloco minha mão dentro da cueca, olhando de cima, e depois de frente para o espelho, e que cena pura e bela. Eu em minha magnitude, sem vergonha e sem pronúncias. Somente os vigores dos sentidos em unidade. Eu me toco, sinto-me, só eu, mais ninguém seria capaz de me completar sem surpresas ou redundâncias. Eu sei o que já vivi, eu sinto o que quero, eu não direi não a mim mesmo, por nada. Eu sou, eu quero, eu faço. Em segundos sinto o meu membro crescer e não há nada que me inspirasse a isso a não ser eu mesmo. Não seria um tanto gay ali sentir tesão? Obviamente não. Para mim é simplesmente poético. A minha fotografia em cores no espelho. Exibo-me e isso só aumenta a voracidade e a lucidez da minha libido. Sou capaz de trazer dos olhos as maiores proezas já vistas. Sou ignorante ao sentir meu prazer. Desta vez eu posso, o meu egoísmo é meu, e me mantém completo, estou uniforme. Começo um movimento lento e leve partindo direto da exibição para a completude do meu prazer, em cada ponto onde sentirei prazer eu toco, meu penis suplica pela eternidade. Tenho o dever desta submissão. Agora sou um gentleman e um cafajeste. Sou tudo o que sou sem papéis. Cuspo na minha mão, esfrego no meu pau e aumento a frequência dos movimentos, aumento e sinto pulsar o jorro não liberado. Sinto cada célula se colocar em campo, sinto todos os meus cheiros misturados, sinto todos meus sabores. Estou uniforme e meu prazer é inexorável a mim. Isto é algo que não posso jamais passar adiante. Entre movimentos e sentidos, designo a mim o direito do maior ápice de excitação já tido, uma entrega por inteiro sem espiões na janela. De três batidas do coração jorram três jatos de prazer imenso. O primeiro e o segundo que espirram no espelho, fazendo a minha imagem se desconfigurar e o terceiro no meu peito, poucas gotas que, como crianças, escorregam pelas curvas de um tobogan, na minha pele, nos meus pelos. Após o gozo, não há afetações de sentimentos, oscilancias de humores. Vejo-me esporrado, num espelho esporrado e, sem pensar, dou meu sorriso de canto, satisfeito. Sem necessidades de carícias ou jogos, vou me banhar.
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Gustavo Carvalho é contista, formado em sociologia pela UFSCar. E-mail: <gucarvalho0@yahoo.com>.
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CASA VAZIA WILTON J. MARQUES*
(I) Na casa vazia, não há fantasmas, só ausência… (II) No silêncio, a respiração torna-se grito. A casa, deserto vazio. (III) No cotidiano, a dor que corta e o silêncio sem explicação. (IV) O não-lugar em qualquer lugar. O olhar perdido, a resposta errada e o tempo que sempre passa. (V) O vento frio, a noite calma. E a lembrança (de outro tempo) refeita na memória. *
Wilton J. Marques é professor do Programa de Mestrado em Estudos de Literatura, do Departamento de Letras da UFSCar.
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ROTEIRO PARA UMA ANIMAÇÃO AMOROSA JOSETTE MONZANI*
são precisos dois corpos para se ter um todo frente com frente onde sobra aqui, falta ali onde falta aqui, sobra ali encaixes se perfazem o prazer-completude vai surgindo. flana-se pelo universo sem medo, sem frio, sem dor esbarrões são amortecidos pelas circunferências inferiores; a elipse superior impulsiona a ignição fechadura e chave-língua com língua deixar saltar o desejo único. frente e verso enganando os astros sem mostrar verso e anverso um foguetinho azul a caminho da eternidade onde a solidão desluz.
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Josette Monzani é professora dos Mestrados em Imagem e Som e em Estudos de Literatura, da UFSCar.
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SOLIDテグ JOSETTE MONZANI*
noite adentro pensamento vagante em paralelo distante o querelante jaz a enaltar sua f(voz)
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Josette Monzani テゥ professora dos Mestrados em Imagem e Som e em Estudos de Literatura, da UFSCar.
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VIAVERTIGEM MARCELO FERRETTI*
I Travado ali – no estreito atraso. Trancado em si – o quieto caos. Truncado o vir – em tantas pontes. O horário aqui rola em degraus. II precário é ser suspensa rua querer se atirar sentir suas mãos no chão. III Os corpos caem lentos rua em suspense: ensaio suicida sobre a Sumaré. Dão cabo ao desalento num tom circense, despem-se trapezistas nos cabos cabaré. Tantos medos nus pairando pelo ar. Uns corpos engolidos pelos metrôs vão, outros esculpidos cospem suor são.
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Também suspensos tensos nem sabem se são, calam tantos gritos crus surdos num porão: ninguém se conduz varando o dia noir. IV o fim da linha é aqui o véu da lida é sempre ali no fel da vida encardi o céu se rende tinge viavertigem cinge. V precário é ser concreto humano no meio de tudo onde tudo é mudo enlatado entre silenciosamente.
*
Marcelo Ferretti é doutorando em filosofia na Unicamp. Bolsista FAPESP.
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SINAL EM TEMPO REAL MARCELO FERRETTI*
1. Cuidado: torpe ao volante! Da sorte abusa angústia feroz costura. 2. Congado: trompa falante? Acorde sinistro klaxon satanás fratura. 3. Coitado: trôpego ante a morte sem paz. Em cacos de vidro supura. Contado: mais um na grua – aporte estatístico sangrado na foz da rua.
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Marcelo Ferretti é doutorando em filosofia na Unicamp. Bolsista FAPESP.
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IMAGEM, SOCIEDADE E FILOSOFIA
VIETNÃ
Entre a conversão do olhar e a conversão pelo olhar Um ensaio sociológico sobre religião JÚLIA MIRANDA*
Resumo: Este texto não se baseia em pesquisa empírica, teórico-metodologicamente orientada segundo os cânones da sociologia. Não reivindica, pois, o status de artigo científico. A autora opta por identificá-lo como um exercício, ou melhor, um “ensaio sobre o olhar”. É uma tentativa de “tradução intersemiótica”; um determinado registro discursivo e vernacular de recepção e apropriação de imagens; um exercício imagético na sua dupla acepção: mostra imagens icônicas através do registro fotográfico e remete a imaginários sociais na busca de elementos para uma sociologia do olhar, para uma análise sociológica da construção visual do cotidiano. PALAVRAS-CHAVE: VIETNÃ, RELIGIÃO, TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA VIETNAM. Conversion of perspective and by perspective: a sociological essay on religion Abstract: This essay is not based on empirical research, theoretical and methodologically oriented according to the canons of sociology. It does not claim, therefore, the status of a scientific article. The author chooses to describe it as an exercise, or, rather, as an “essay on perspective”. It is an attempt at “inter-semiotic translation”; a particular discursive and vernacular record of the reception and appropriation of images; an imaginary exercise in its twofold meaning – it shows iconic images through photographic records and refers to social imagery in the search for elements for a sociology of perspective, for a sociological analysis of the visual construction of everyday life. KEYWORDS: VIETNAM, RELIGION, INTER-SEMIOTIC TRANSLATION
S
erá possível ver nos templos e nas suas imagens o produto da cultura visual de um povo e de uma época, no que toca a sua relação com a transcendência, com o absoluto, com as divindades e demais entidades que povoam seus imaginários e suas práticas espirituais ou religiosas? Se assim é, eles podem ajudar a construir um pedacinho da história da religiosidade vietnamita, particularmente tratada neste texto, através daquilo que apresentam ao olhar. O visual aqui está representado por tudo aquilo que o olhar capta e reconstrói. Logo, o olhar de quem se situa na cultura visual produtora desses templos e imagens, mas também o olhar daquele que os contempla e interpreta, mesmo “de fora” dessa cultura.
A famosa e belíssima Baía de Halong, no norte do Vietnã
Pode-se chamar a esse exercício de “ensaio sobre o olhar”. É, de certo modo, uma tentativa de “tradução intersemiótica”,1 um determinado registro discursivo e vernacular de recepção e apropriação de imagens. Enfim, é um exercício imagético na sua dupla acepção: mostra imagens icônicas através do registro fotográfico e remete a imaginários sociais na busca de elementos para uma sociologia do olhar, para uma análise sociológica da construção visual do cotidiano. Do que “falam” os templos e suas imagens no Vietnã do século XXI? Será possível “ver”, através de sua contemplação e para além de edificações e esculturas como obras de arte ou como lugar e objetos de culto, um diálogo que remete às fronteiras estabelecidas de modo arbitrário entre Ocidente e Oriente? É esse o desafio que se coloca este ensaio.
Olhar “o outro” Na introdução à primeira edição francesa de O Orientalismo: o Oriente criado pelo Ocidente, desafiadora obra que Edward Said publicou nos anos 70 do século passado, Tzvetan Todorov lembra que “a história do discurso sobre o outro é aniquiladora. Desde sempre – diz ele – os homens acreditaram ser melhores que seus vizinhos; mudaram apenas as taras que lhes imputam”. Para Todorov, essa depreciação tem dois aspectos 1
O termo “tradução intersemiótica” vem de Jakobson e é aqui retomado na reflexão de J. C. Passeron. (1995: p. 289) Passeron lembra, porém, que Jakobson só se refere ao percurso que leva dos signos linguísticos aos não-linguísticos, deixando de fora o inverso, enquanto ele busca justamente pensar a possibilidade do trânsito contrário. Em Passeron, falar de imagens, no caso da pintura que lhe interessa, significa levar em conta que se muda não apenas o universo do discurso, mas o regime semiótico.
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complementares: o primeiro é que consideramos nosso próprio quadro de referência como sendo único, ou, pelo menos, o normal; o segundo é que constatamos que os outros, em relação a esse quadro, são inferiores a nós”. Nomear, isto é, utilizar conceitos para referirse a algo, é a primeira arma para submeter o outro, pois o transforma em objeto. Donde, ainda segundo Todorov, delimitar um objeto como “Oriente”, por exemplo, já é um ato de violência. (SAID, 2005: 8-9) Suas afirmações são absolutamente pertinentes no contexto de aproximação e de busca de conhecimento mútuos entre diferentes povos e regiões. Por que lembro essas reflexões? Talvez porque este ensaio resulta de décadas de fascínio, curtido à distância, pelo “outro oriental” e, particularmente, pelo sudeste asiático. Aquela região, chamada de Indochina pelos colonizadores franceses ali instalados no final do século XIX, corresponde, hoje, ao Vietnã, ao Laos e ao Camboja. A origem mais recente dessa atração eu posso identificar nas leituras e na lembrança indelével do filme Indochina, produção francesa de 1992. Também as constantes e a cada vez mais instigantes “visitas” à sociologia da religião de Max Weber vêm juntar-se a esse “chamado do Oriente”, de um modo peculiar ao meu habitus intelectual como socióloga interessada nos fenômenos religiosos. Num outro registro textual, as primorosas crônicas de Jorge Luis Borges (1985) sobre As Mil e Uma Noites acrescentam elementos à busca por uma compreensão mínima do que seja a aludida oposição entre Ocidente e Oriente. É preciso lembrar, conforme Said, a discrepância entre os usos desses termos, pois enquanto os norteamericanos chamam, mais comumente, de Oriente apenas o Extremo Oriente (China e Japão), os europeus baseiam sua tradição orientalista no lugar que a região ocupa na experiência da Europa, isto é, não apenas como um vizinho geográfico, mas como a região onde as nações européias mantiveram suas mais extensas, ricas e antigas colônias, onde foram fonte de civilizações e de idiomas. Ele é o rival cultural da Europa
Gênios guardiões
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e aquilo que a define por contraste, uma vez que a Europa é identificada como Ocidente, embora esse Oriente seja parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa. Já Borges destaca que das duas nações essenciais à compreensão de nossa cultura ocidental, Grécia e Israel, esta última é oriental, logo, “a cultura ocidental é impura, pois só é 50% ocidental”. E mais, do ponto de vista meramente geográfico, lembra ele, uma parte do Oriente é Ocidente na perspectiva dos gregos e romanos, pois só depois deles é que o Norte da África se tornou Oriente. “O orientalismo”, a orientalização do Oriente de que fala Said, pode ser concebido segundo formas que variam desde a cultura acadêmica – onde constitui uma especialidade de estudos intrinsecamente ligada ao estilo de pensamento fundado sobre a distinção ontológica e epistemológica entre Oriente e Ocidente – até um estilo ocidental de dominação e de autoridade. Assim, falar de orientalismo é falar essencialmente – mas não exclusivamente – de uma ação civilizadora francesa e inglesa, mas também norteamericana; de um projeto que inclui a totalidade da Índia e do Levante, assim como os textos e os países da Bíblia. (SAID, 2005) É preciso estar atento a essas nuances, sem esquecer que elas não tornam menos real a existência do Oriente, geográfico, histórico e imagético. Fui ao Oriente, melhor dizendo, à Indochina, numa tentativa de “inverter a mirada”, exercício que pode significar tanto o olhar para o Ocidente a partir do Oriente, com o foco, portanto, no Ocidente, quanto o olhar sobre o Oriente com os olhos do ocidental que busca relativizar a sua como única e correta grade de apreensão da realidade. Nada que se aproxime, por exemplo, da abordagem antropológica, ou mais precisamente etnológica, pois não é esse o caso. Trata-se, melhor dizendo, de uma “apropriação pelo olhar”. Durante um mês no Vietnã e no Camboja, sem conhecer os idiomas locais, vi que me sobrara o recurso da contemplação e da apropriação visual daquele “outro” longamente buscado. Trata-se, pois, de “um certo olhar”, influenciado temática e culturalmente. Minha referência é a pertença cristã-ocidental, forma de aproximação e única matriz de interpretação disponível de modo imediato. Não obstante, busco afastar-me de uma prática corrente no Ocidente: a de identificar religião, de modo universal, com a tradição judaico-cristã e de se referir à ciência, à religião, à literatura e à arte ocidentais como se encerrassem todas as formas do possível, de modo absolutizado. Gregório “O Grande” e sua fúria evangelizadora, sua convicção de que as imagens eram a bíblia dos iletrados, me vieram à lembrança. Certamente não busquei uma conversão pelo olhar, como ocorreu nas colônias portuguesas e espanholas da América, onde a Igreja Católica seguiu os ensinamentos do renomado Papa. Talvez estivesse mais próxima de uma conversão do olhar. Conhecendo bastante da sua história social e político-econômica, através do aprofundamento dos fatos que o ligam à China e à Índia, antes do século XIX e, depois, à França e aos EUA, optei por centrar minha análise sobre o Vietnã. Fui buscar em Baxandall (1991) a despeito da distância entre nossos propósitos, a inspiração para tentar entender a religiosidade vietnamita deste início de século XXI, observando os templos e suas imagens, nas regiões norte, centro e sul do país. Michael Baxandall, na instigante obra O Olhar Renascente, (1991) mostra que é possível, através da análise da pintura do século XV, construir uma história social e artística do “olhar” da época. Ele explica como as capacidades desenvolvidas ao longo de experiências da vida cotidiana de uma sociedade tornam-se parte determinante do estilo do
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Baía de Halong, no norte do Vietnã
pintor e conclui que “a história social e a história da arte formam um todo, cada uma oferecendo à outra, indispensáveis instrumentos de compreensão.” É preciso tornar estranho o familiar insiste o habitus intelectual do pesquisador. Curiosamente, neste caso, nem o fenômeno religioso pode ser considerado aquilo que é familiar, pois um dos grandes desafios é justamente entender o que isso significa para a tradição védica e seus herdeiros, para o confucianismo e o taoísmo, por exemplo. Ou seja, ao olhar cristão ocidental, tudo é mesmo muito estranho. Quem já não ouviu falar numa “religiosidade oriental”, assim mesmo, indefinida quanto ao sujeito e quanto ao predicado? Os imaginários ocidentais sobre o Oriente são riquíssimos, fantásticos, incluem, por exemplo, as “sabedorias orientais” e a “sensualidade” do seu povo e de suas práticas. Aí está uma forma de se referir ao “outro” de modo a estabelecer uma diferença, embora deixando claro o desconhecimento daquilo sobre o que ela se fundamenta, o que se explicita também na amplitude dos dois termos empregados. Mas, para não incorrermos nessa generalização fácil e nada esclarecedora, fixemo-nos no Sudeste Asiático e no Vietnã. A República Socialista do Vietnã situa-se na costa leste da península da Indochina, banhada pelo Mar da China. Estende-se do sul da China ao Golfo do Sião. A grande extensão territorial dá ao país uma caracterização bem distinta: a região norte, cuja maior cidade é Hanói, capital do antigo Vietnã do Norte e capital do país unificado em 1975; a região central, aquela onde se encontra a antiga cidade imperial de Hué, a desenvolvida Da Nang, a cosmopolita Hoi An, as exuberantes ruínas do império Champa e o sítio arqueológico hinduísta de My Son; e a região sul, cuja maior cidade é Ho Chi Minh, a antiga Saigon, que foi capital do Vietnã do Sul.
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A história do Vietnã registra, até o século XVIII, uma série de conflitos e disputas territoriais com a Índia e, particularmente, com a China (chamados de bárbaros). Os europeus se fazem presentes desde o século XVII. No século XIX cresce a influência francesa e várias regiões vão sendo submetidas até que em 1883 o regime de protetorado está consolidado em todo o país. Ele é estendido à Indochina em 1887. Em 1954, após a derrota dos franceses, que recebiam ajuda dos EUA, pelas tropas do Viet Minh (comunistas reunidos na Liga para a Independência do Vietnã), o país é dividido num Vietnã do Norte comunista e um Vietnã do Sul apoiado pelos americanos. No sul, Washington ajuda a abolir a monarquia e a instalar um governo republicano autoritário sob sua proteção. Em 1965, com medo que Saigon caia nas mãos dos comunistas, os EUA bombardeiam o Vietnã do Norte e iniciam uma guerra que dura oito anos. Enquanto isso, no Vietnã do Sul, depois de várias ditaduras militares passageiras, Nguyen Van Thieu é eleito presidente. As tropas americanas batem em retirada em 1973 e o país é reunificado sob regime comunista, em 1975. Somente em 1994 os americanos suspendem o embargo econômico e comercial e, em 1995, restabelecem os laços diplomáticos com o país. O Vietnã deste início de século XXI já mostra as mudanças do pós guerra fria, com a expansão da economia de mercado e a abertura aos investimentos estrangeiros. Agora são os chineses aqueles que marcam mais significativamente presença na economia vietnamita, ainda preponderantemente agrícola, ao lado de americanos e europeus. O turismo também vem sendo impulsionado e recebe tratamento profissional.
Sobre Imagens A busca pelo conhecimento científico das imagens tem percorrido caminhos que remontam ao século XVIII, com Baumgarten, Hegel, Kant e o pensamento sobre o belo e sobre os juízos estéticos. Ainda vinculada ao interesse pela arte, encontra em Erwin Panofsky2 as inovações que vão balizar os estudos, no Ocidente, desde os anos 20 do século passado. Estudioso do Renascimento, ele reatualiza um termo característico desse período, qual seja, “iconologia”, e traça as linhas gerais de uma nova abordagem dos fenômenos artísticos. Algumas vertentes epistemológicas e teórico-metodológicas lhe são contemporâneas e tratam mais especificamente das imagens, tais como a filosofia pragmática de Charles Peirce e a semiologia linguística de Ferdinand de Saussure onde vai beber Roland Barthes até o pósguerra. A esses autores Interessam mais propriamente as imagens e seus significados, do que as obras de arte, vez que nem toda imagem pode ser assim considerada. É possível fazer dialogar essas correntes? Penso que sim, se a intenção é compreender a dimensão simbólica e estética da construção social da realidade. Peirce trata dos processos de significação, num nível mais geral; de uma ciência dos signos. Ele identifica três tipos particulares de signos, quais sejam: o ícone, o índice e o símbolo, cada um deles mantendo relações particulares com aquilo que representam. Em todos os casos, o destaque é a dialética da presença/ausência. Os signos só são signos porque portam significado para alguém, num determinado contexto. Na forma como são percebidos, os signos 2 Panofsky, Erwin, é crítico e historiador da arte. Entre suas obras, veja-se, principalmente: La perspective comme forme symbolique et autres essais. Paris: Minuit, 1997 e L’oeuvre d’art et ses significations. Paris: Gallimard, 1969.
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Vishnu
desencadeiam um processo de significação e, logo, de interpretação, que depende da sua natureza, do contexto em que se manifestam, da cultura do receptor e de suas preocupações. (Apud JOLY: 2004) Interessado no estudo da arte Panofsky é mais específico e propõe um método de análise susceptível de identificar a estrutura e o sentido de uma obra, quaisquer que sejam; o autor, o período histórico e o contexto de produção. Avança, assim, em relação à filosofia e a história da arte. Ele chama a atenção para três níveis de observação: aquele relativo às categorias do senso comum, associadas a um conhecimento mínimo do contexto de produção da obra; o nível que permite interpretar corretamente os significados intencionais da obra e, finalmente; aquele que conduz à interpretação do conteúdo da obra, compreendendo a intenção artística do autor e indo além, para compreender o alcance simbólico universal dessa intenção, ou seja, em que a obra é representativa das principais significações simbólicas e das representações dominantes de sua época.
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Mais próxima de uma visão semiológica, Martine Joly (2004) chama a atenção para o fato de que, nessa classificação geral, a imagem ainda não aparece com um lugar próprio. Embora se assemelhe ao ícone, ela não possui um estatuto teórico. Peirce considera a imagem uma sub-categoria do ícone, juntamente com duas outras: o diagrama e a metáfora. Já que nós apreendemos o mundo com nossos cinco sentidos – diz Joly: “a imagem parece poder designar tudo e seu contrário; ela pode ser, não somente visual ou imaterial, fabricada ou natural, real ou virtual, móvel ou imóvel, sagrada ou profana, analógica ou numérica, mas também verbal, sonora, tátil ou olfativa. Assim, as imagens são múltiplas e a tarefa do teórico é a de construir modelos explicativos que abranjam todas essas formas”. É essa ambiguidade da imagem que me leva a ousar expandir o modo de concebê-la. Assim, um certo tipo de edificação (os templos) e de escultura (as imagens), é aqui considerado imagem materializada. Eles encerram a dialética da presença-ausência e re(a) presentam através de elementos visuais passíveis de apreciação estética, artística ou outra, de acordo com “o olhar” de quem os contempla. A fotografia é aquilo que confere materialidade ao olhar da autora e garante a comunicação com os interlocutores (leitores e visualizadores) distantes geograficamente das obras-imagens analisadas. Não se trata aqui de uma sociologia da fotografia e da imagem. Nem daquela proposta por Martins (2008), nem de outra qualquer. Penso já ter deixado claro o lugar das fotos na presente provocação: elas são o produto do olhar da pesquisadora que, como lembra Passeron, é um entre os possíveis, tanto porque remete a uma escolha do que registrar como a uma decisão sobre que elementos e/ou aspectos colocar em destaque. Nisso é como qualquer fotografia. Mas não se vai analisá-la tecnicamente. A sua gramática específica (luz/sombra, proximidade/distância, cor, ângulo etc.) não interessa. Tampouco sua qualidade artística. Não é a imagem fotográfica o objeto da análise, mas aquilo que ela presentifica e materializa de modo a cobrir a distância geográfica e, principalmente, histórico-cultural entre as imagens e o público. Ela é a forma encontrada para trazer o olhar da autora até seus interlocutores. Há, porém, que se buscar o estatuto dessa imagem e situá-la no discurso sociológico. Tentar deixar claro, na medida do possível, o que significa considerar a imagem fotográfica apenas como uma condição para esse discurso, bem como estabelecer aproximações e distanciamentos em relação às proposições mais frequentemente invocadas pelos trabalhos sobre imagens. Grande parte dos estudos sobre imagem reúne hoje artistas-cientistas sociais e cientistas sociais interessados na arte ou nas imagens (fotográficas, cinematográficas, videográficas etc). Eles estão nas universidades, nas bienais, nos museus e ateliês, e são muitas as ambiguidades (de posturas, de propostas, de terminologias) que se colocam no caminho, dificultando, entre outras coisas, o estabelecimento de fronteiras e a consequente necessidade de precisão e rigor. Por mais que esteja claro que fazer arte não é a mesma coisa que pensar a arte como objeto do conhecimento científico, vemo-nos os cientistas sociais, frequentemente as voltas, na universidade, com a “licença artística” (por analogia à licença poética) que cria uma profusão de termos sem a preocupação da referência a processos sociais que estejam na origem dos fatos que tornam pertinente essa nomenclatura. Veja-se, por exemplo, as expressões: documentário imaginário, documentário intimista, fotografia expressão, fotografia humanista, fotografia humanitária, fotoetnografia, cinema ao vivo, crise do real, ou mudança no regime de imagem verdade para citar apenas algumas maneiras de estabelecer semelhanças e diferenças entre práticas e produtos.
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Essa terminologia está sempre sendo enriquecida, dando muitas vezes a impressão, para os que buscam algum rigor teórico, de que atende a caprichos de autores. Atente-se ao fato de que se essa é uma característica do assim chamado universo das artes ou do campo dos estudos de imagem3 já mostra a imbricação entre as práticas acima apontada. O pastiche que caracteriza, entre outros elementos, as expressões da arte contemporânea chega assim às análises acadêmicas. No campo da sociologia, só interessada pelas imagens a partir das três últimas décadas do século XX, e mesmo assim muito mais voltada para a tentativa de dar contornos nítidos e consistência epistemológica e teórico-metodológica a uma “sociologia da arte”,4 novos caminhos parecem ir agora se abrindo para o que alguns chamam de “sociologia da fotografia e da imagem”, “sociologia visual”, “visual studies”, “sociologia da imagem”, “sociologia por imagens”, “documentário sociológico” ou “sócio-fotografia”. Os sociólogos perguntam-se como mostrar as imagens em ciência social e igualmente sobre as possibilidades de uma epistemologia visual.5 Prefiro pensar este ensaio como uma “sociologia do olhar”. As imagens não são documentos, no sentido de reforço do dito. Não ocupam o lugar da evidência, da ilustração, como no texto jornalístico. Também não são imagens sociológicas ou uma sociologia por imagens. O texto é motivado pelas imagens que, apreendidas fotograficamente, materializam o olhar da autora. O verbo busca “fazer falar o olhar”. Wittgenstein lembra, nas suas lições sobre estética (1992) que “ver” e “sentir” caracterizam uma atitude inadequadamente buscada através do que é verbalizável. Não estou aqui interessada numa apropriação exclusivamente ou mesmo principalmente estética. Cumpre lembrar que este ensaio tenta promover a “fala do olhar”, mas não ignora os limites da mudança de registro semiótico entre imagens e texto vernacular. Explico: as imagens aqui apresentadas são a fixação e materialização do olhar da autora para o contexto sociocultural vietnamita, procurando compreendê-lo. O verbal restringiu-se, nesse processo de apropriação por imagens, apenas às respostas fornecidas (por uma nativa culta) a perguntas formuladas pela autora, a partir da sua própria experiência e de suas intenções particulares. Não é uma sociologia da religião vietnamita (pois se desconhece o mínimo para fazê-lo). É mais uma análise sociológica de imagens religiosas, uma análise orientada pelos princípios básicos da sociologia da religião segundo os clássicos Weber e Durkheim, a partir do olhar cristão ocidental. Templos e imagens são o produto do trabalho, (BECKER, 1999) de uma série de práticas que têm na intenção religiosa as suas motivações. E sendo religiosas são também 3
Basta observar, particularmente, alguns Cursos de Comunicação Social e suas linhas de pesquisa sobre imagem. Neles, nota-se o recurso generalizado à filosofia e à estética, que permanecem como referência para os estudos sobre arte, a naturalização de expressões e certa “colagem” (sem distância crítica) à terminologia gerada pelos agentes do campo da arte no cinema, na fotografia e no audiovisual principalmente. 4 Algumas das mais relevantes contribuições são: BOURDIEU, P. La distinction, Paris, Minuit, 1979 e As regras da arte, São Paulo, Cia da Letras, 1996; BECKER, H. Les mondes de l’art, Paris, Duchamps Arts, 2006, e Propos sur l’art, Paris, l’Harmattan, 1999; HEINICH, N. La sociologie de l’art, Paris, La Découverte, 2004; PÉQUINOT, B. Pour une sociologie esthétique, Paris, l’Harmattan, 1993, e Sociologie des arts: domaines et approches, Paris, Armand Colin, 2009. 5 Utilizando essa variada nomenclatura e guiados pelos objetivos citados, pesquisadores acadêmicos e artistas de vários matizes se reuniram no Instituto de Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas, nos dias 28 e 29 de outubro de 2010, em um Colóquio de Sociologia Visual. Estão postos, assim, a importância da apropriação da imagem pelo fazer sociológico e o impreciso estado da arte nesse campo de estudos.
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Hoy An após as enchentes e furacões de 2009
políticas e econômicas. (WEBER) São práticas que remetem a imaginários sociais próprios do povo e da cultura vietnamitas.
Diálogos entre deuses e homens Quando, há 13 anos, ouvi falar do caodaismo, uma religião surgida no Vietnã sob domínio francês e que mistura o budismo, o confucianismo, o taoísmo, o cristianismo e o culto dos gênios com outras crenças “ocidentais” e “orientais”, as informações mais precisas que chegavam ao Ocidente mostravam um país onde o budismo representa menos de 50% da população, enquanto cresce o número dos sem religião e das novas expressões do cristianismo, e permanecem significativamente ativas as chamadas crenças tradicionais.6 O difícil, como se verá adiante, é imaginar o que sejam essas “crenças tradicionais”. Já se pode ver, assim, que o Vietnã é caracterizado por um rico campo religioso, plural e desafiador para qualquer “grade de análise” construída com base na ignorância religiosa comum ao Ocidente. Entre muitas outras obras que abordam o tema, lembre-se o mesmo Edward Said que mostra, em Cubriendo El Islam, (2005) a parcialidade e má fé dos profissionais e empresas midiáticas responsáveis pela divulgação dos fatos sobre o “oriente islâmico”; as distorções grosseiras originadas num profundo desconhecimento daquelas culturas e nações.7 O mesmo ocorre com o sudeste asiático. 6 Dados obtidos em conversas informais entre pesquisadores. 7 A obra original é Covering Islam e foi publicada em 1981, por Routledge & Kegan Paul.
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Referindo-se ao evangelismo colonial na África, André Mary (2009) o atribui a uma “hibridação dialógica” e chama a atenção para o fato de que ele representa uma elaboração interativa e circunstancial de crenças e práticas que torna sem sentido a busca de uma religião originária ou tradicional. (p. 96) Ora, o Vietnã parece ser, desde sempre, um rico exemplo desse diálogo, condição de possibilidade para se compreender as suas expressões religiosas contemporâneas. Essa construção interativa segue se fazendo ao longo dos séculos que marcam a chegada do islamismo (sécs. VII e VIII) e do cristianismo (sécs. XV e XVI) e, mais recentemente, vem dando origem a “novos cristianismos”8 na região. Os templos e imagens “falam” dessa interação; basta observá-los com o “olhar interessado” do pesquisador, olhar informado pela sociologia da religião. Os mais antigos textos religiosos de que se tem notícia na Índia, datam de 1500 a 800 a.c. São os Veda (ou sabedoria): preces e louvores a deuses, mas também especulações sobre a origem do mundo e sobre o sacrifício. Os Upanisad, que surgem entre 800 e 300, “pela primeira vez na história do pensamento colocam o homem como um microcosmo de igual estrutura que o universo ou macrocosmo”. (DELUMEAU, 1997) O hinduismo, termo criado pelos ingleses em 1830, seria oriundo de um outro conjunto de textos, o Smriti (tradução fundada sobre a memória), cuja data coincide com o início da era cristã. Nele estão as Leis de Manu, tratados de direito e deveres das castas e das idades da vida. Também contêm as duas grandes epopéias da Índia – o Mahabharata e a Bhagavad-Gita – e são referência para todos os povos da região e suas formas típicas de apropriação dessa tradição, inclusive os vietnamitas. Para Delumeau “o hinduísmo é ao mesmo tempo uma doutrina e uma mitologia. A doutrina coloca como ser supremo Brahma, que não criou o mundo ex nihilo, mas de quem o universo emana. Às vezes ele se recolhe e não há desenvolvimento cósmico, outras vezes ele se manifesta e o universo se mostra em sua plenitude. Existe, pois, uma sucessão, sem começo nem fim, de dias e noites cósmicas”. (p. 384) Os homens nascem para morrer e renascem para tornar a morrer. É a transmigração (samsara), e a lei que preside esses renascimentos é o karma, idéia que no princípio significava sacrifício e hoje remete à qualidade da existência, na medida em que ela é ou não conforme à justa ordem das coisas, ou ao dharma. O hinduísmo, portanto, não tem um fundador. Tampouco um credo comum, um clero ou algo que se assemelhe a uma instituição ocidental responsável por uma ortodoxia. Ele é interpretado e ensinado por mestres espirituais (os gurus), cada um a sua maneira. A rigor alguém nasce hindu e nada há nessa tradição que se aproxime de uma “conversão” no sentido cristão do termo. Os povos hinduizados o foram através de processos completamente estranhos a essa idéia. Inclusive os vietnamitas. Sem referência a revelações ou a um livro sagrado (como a Bíblia ou o Alcorão) os textos são, não obstante, tidos como de origem supra-humana. Os hindus crêem em uma força invisível e transcendente, Brahma, que se manifesta através de múltiplas divindades cultuadas em templos e lugares sagrados, e que são objeto de festas e peregrinações. As duas grandes figuras do hinduísmo, ao lado de Brahma, são Vishnu e Shiva, respectivamente força protetora da ordem cósmica e da desordem e recomeço. 8 A expressão é utilizada pelos pesquisadores do Centre d’Études Interdisciplinaires des Faits Religieux (CEIFR) da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris.
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Vishnu e Shiva têm muitos avatares, ou formas humanas que eles tomaram e que são até hoje cultuadas. Rama e Krisna são os principais avatares de Vishnu; Durga, Parvati e a amedrontadora Kali, o são de Shiva. No panteão hindu há lugar de destaque para as representações do espírito universal (a mãe). Assim, cultuam-se muitas deusas, como Devi e Laksmi, esta última deusa das luzes e da fartura. Ganesha, o poderoso deus destruidor dos obstáculos, meio homem meio elefante, serve como rico exemplo das representações imagéticas hindus e de suas particularidades. Filho de Shiva e Parvati, ele foi criado até uma certa idade, longe do pai que desconhecia sua existência. De volta a casa Shiva se defronta com o jovem que guarda zelosamente a intimidade do banho de sua mãe. Cheio de ciúmes ele lhe corta a cabeça. Desesperado ao saber que se tratava de seu filho, Shiva decepa a primeira cabeça que encontra e a coloca no filho que revive. No hinduísmo, cada divindade possui um atributo específico. Ganesha é considerado o deus do conhecimento e da inteligência. Não existe, como para a tradição cristã, uma ortodoxia doutrinária que identifica, particularmente através da interpretação autorizada de uma instituição, o que seria religião e o que seriam lendas, mitos ou folclore. Há uma extrema exuberância de narrativas sobre divindades nas quais sobressai o fato de que cada uma delas está ligada a qualidades particulares, apresentam virtudes e defeitos humanos sem que, por isso, sejam representadas de modo antropomórfico ou, pelo menos, numa maneira tida como “natural” pelos fiéis das três grandes religiões do Livro. Assim, na Indochina, Shiva pode ter cinco cabeças, um olho na testa, vários braços (sempre número ímpar) ou estar sentado em posição de lótus com a cabeça protegida por uma naja de 3, 5 ou 7 cabeças. Vishnu tem quatro braços, Ganesha tem cabeça de elefante, Laksmi, mulher de Vishnu, pode ter múltiplos membros, e cada um desses deuses e deusas tem
Gênios do passado, da prosperidade e do futuro
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íntima ligação com a natureza e com os animais, seja porque têm montarias próprias, seja porque a eles se ligam por outros meios. Assim, Shiva monta um touro e Vishnu tem por montaria o garuda, que é meio homem meio pássaro. Essa que identifico como a tradição Veda, ou o conjunto de textos cuja língua sagrada é o sânscrito e que lhe confere uma origem temporal, foi sendo apropriada por incontáveis povos da Ásia através de um “diálogo” com suas tradições e crenças. Assim, dessas múltiplas reelaborações de um conjunto riquíssimo de lendas, mitos, epopéias e contos, se nutrem as particularidades filosófico-religiosas do sudeste asiático que aqui interessa. Para os cambojanos, por exemplo, a origem do mundo está na mistura batida de um mar de leite (barratage de la mer de lait) pelos deuses. Desse mar saíram tanto Laksmi e o elefante de três cabeças, como as apsaras ou dançarinas sagradas. Ali, o hinduísmo é visto como tendo 33 céus. Aquele mais próximo possui sete níveis, no quarto dos quais habitam os asura, ou seja, as entidades do mal. Já o budismo, religião oficial e da quase totalidade do povo do Camboja, ensina que existem 26 céus.
Templo e pagode do Imperador de Jade no centro de Ho Chi Minh City. Taoismo + budismo + animismo
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O budismo chega ao Vietnã na mesma época que ao Camboja e ao Laos, isto é, ainda antes da era cristã. Vem da Índia onde, sob o Imperador Açoka, tem grande desenvolvimento, e se propaga no sudeste asiático a partir dos atuais Paquistão, Afganistão, Ceilão e Birmânia. Sua língua é o pali. Na China ele se expande a partir do século I, mas só se estabelece de fato no século IV. Da China o budismo chega à Coréia no século IV e ao Japão no século VI. Ao Tibet ele chega no século VII. Nascido dos ensinamentos do Buda aproximadamente no século V a.c., o budismo desaparece da Índia, seu país de origem, por volta do século XI, empurrado pelo hinduísmo e pelo islamismo. A Índia conta hoje com menos de 1% de budistas. É enorme a importância dos imaginários filosófico-religiosos da Índia e do hinduísmo sobre o budismo e, particularmente, sobre a figura do Buda. Ele não é um criador de religião, como Jesus ou Maomé, nem é único. Buda significa “o iluminado”, “o desperto”, aquele que atingiu o estado supremo de desprendimento das fraquezas da condição humana; o nirvana. O último Buda, Gautama (ou Sidarta) foi o 4o “iluminado” e é sua figura histórica que serve como referência para a literatura budista. Ele reúne ricas possibilidades de arranjos dos imaginários sociais da região. Para alguns autores Gautama seria um príncipe, (BORGES) para outros, como Delumeau, o mais provável é que tenha origem humilde, na tribo guerreira dos Sakyas, onde nasceu por volta de 566 (até 486) antes da era cristã. (id: p. 49) Ainda jovem ele deixa a família (mulher e filho) e vai viver de forma ascética, percorrendo a região nordeste da Índia. Sob uma figueira ele desperta para a verdade de seus nascimentos e vidas anteriores e faz da vida errante a busca pelo desprendimento das paixões, condição para enfrentar as quatro verdades sagradas: a dor, a origem da dor, o fim da dor e o caminho que leva a sua extinção. Diferentemente do hinduísmo, o Buda ignora as castas e os sacrifícios dos brâmanes; recusa-se a crer num deus criador, mas integra às suas prédicas a doutrina da migração de um corpo a outro, não da alma, pois ele não acredita em sua existência, mas do karma, espécie de organismo mental que transmigra um número infinito de vezes. Em suas caminhadas e sermões o Buda vai reunindo cada vez mais fiéis (monges e laicos) e chega mesmo a constituir comunidades de mulheres (monjas). Durante aproximadamente cinco séculos sua vida e seus ensinamentos são passados de uma geração a outra, de um povo a outro, através da oralidade. Somente vários séculos após sua morte essa tradição é registrada por escrito. Os textos mais antigos datam do início da era cristã e compreendem os sermões, as regras disciplinares para as comunidades e os elementos doutrinários. Existem duas principais e mais antigas tradições budistas: o Grande Veículo (Mahayana) e o Pequeno Veículo (Theravada). Este último, mais rigoroso, é o budismo do Ceilão (Sri-Lanka), Birmânia, Tailândia, Laos e Camboja. Já no Vietnã popularizou-se a tradição do Grande Veículo. O budismo Theravada destaca a vida nas comunidades (sanghas) de monges e de laicos para atingir o nirvana (estado de êxtase). A vida monástica e a prática da meditação são centrais nessa tradição. Esse budismo do Pequeno Veículo convive bem com outras crenças e cultos, pois não se mistura nem dá diretrizes para a vida fora da comunidade monástica. Assim, deuses hinduístas viraram figuras cultivadas no budismo. O budismo Mahayana, como na tradição vietnamita, surge já no início do primeiro século e segue outros textos. Seu princípio fundamental é a não violência. Acrescenta a ele a tolerância, o dom e a compaixão. Há no Grande Veículo uma dimensão que eu chamaria de coletiva. A salvação, quer dizer a superação do sofrimento, não é buscada somente “por” e “para” o adepto. Os “santos” da tradição Mahayana não permanecem no
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estado de nirvana enquanto todos não o alcançarem. Para exemplificar: aqueles que “despertaram”, que chegaram, portanto, ao nirvana, escolhem reencarnar para ajudar os demais. Eles são chamados de bodhiisatvas. O Grande Veículo também abandona o ateísmo inicial e promove uma deificação do Buda, ao qual atribui três corpos (humano, divino e cósmico). Torna-se religião popular, com templos, peregrinações e festas. Ele cultua os mais célebres bodhiisatvas. No Vietnã ele é a corrente budista que dialoga e interage com as demais tradições da região e se reconstrói na medida em que vai dando contorno a expressões nacionais de religiosidade. No seio do budismo do Grande Veículo várias grandes escolas foram surgindo, como o chan na China, mistura de budismo e taoísmo e o zen, no Japão a partir do século XII. No norte da Índia, no Tibet e na Mongólia, surge o budismo tântrico. Na China, no Tibet, na Mongólia, no Laos e no Camboja os regimes comunistas perseguiram o budismo e os budistas. No Vietnã a convivência tem outros contornos, como veremos adiante. Outras duas antigas e importantes tradições presentes nessa construção interativa da religiosidade vietnamita são o confucianismo e o taoísmo, ambos originários da China, hoje presentes através de distintos elementos no cotidiano religioso do país. O primeiro representa o pensamento do chinês Kong-Fu-Zi, que viveu no século VI a.c. e cujo nome latinizado pelos jesuítas portugueses nos séculos VI e XVII é Confucius. O confucianismo não surge como uma religião nem como uma revolução filosófica, vez que era conservador e voltado para um passado idealizado. Seu criador tinha interesses mais propriamente sociais e políticos. Ele busca restabelecer a velha sabedoria chinesa e promover o equilíbrio das forças yin e yang (masculino e feminino), que estão na origem de tudo. Também para o taoísmo esses princípios são indissociáveis. Os textos cujo conteúdo é atribuído a Confucius são redigidos por discípulos e datam de cinco séculos após sua morte. O fundador do confucianismo chegou a criar uma escola. Ele queria promover o governo ideal e passou anos buscando o príncipe que seguiria seus ensinamentos para, finalmente se dedicar aos cânticos e rituais. Afirmava nada conhecer sobre o além, embora não recusasse a idéia da existência de um, e pregava o cultivo de cinco virtudes: a cortesia, a magnanimidade, a boa fé, a diligência e a bondade. O confucianismo chegou a ser a doutrina dos imperadores da dinastia Han, no século III a.c., uma espécie de religião oficial e civil. A ênfase nos ritos fúnebres e no culto reservado aos soberanos, aos gênios locais e aos deuses do lar vai transformando o confucianismo em religião. O culto oficial a Confucius e os templos erigidos em sua homenagem completam essa caracterização. No Vietnã ele está presente no cotidiano das famílias de todos os segmentos sociais justamente nessas práticas cultuais. Quando o budismo chega à China, no século primeiro da era cristã, encontra, além do confucianismo, também o taoísmo. O primeiro era a religião dos soberanos e governantes enquanto o taoísmo era a grande religião popular chinesa. As origens do taoísmo são obscuras. Como o confucianismo ele seria uma escola filosófica, criada por Lao Zi no Século VI a.c. A palavra Tao significa a ordem e a totalidade do universo, assim como o caminho para a libertação. Delumeau afirma que “o taoísmo não tem sido somente uma filosofia, mas também uma religião da salvação individual, permeada de práticas mágicas que se espalharam desde o século II da era cristã, estabelecendo diferenças com o confucianismo”. (p. 404) Inicialmente mais uma doutrina filosófica, e mesmo assim seguida apenas pelos governantes chineses, o confucianismo não era incompatível com o taoismo. Assim, lembra
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Locais reservados ao culto dos ancestrais nos templos
Delumeau, o burocrata confucianista podia, depois de terminado seu trabalho, entregarse às práticas espirituais taoistas. Sob esse invólucro da religião popular taoista é que o budismo foi ganhando espaço na China. Para o taoísmo o universo não é obra de um criador, não há uma alma espiritual que sobrevive, com a personalidade do morto, mas ele prega a salvação individual, a imortalidade do corpo. No Tao se realiza a síntese dos dois princípios ying e yang que percorrem um ciclo cujas fases são representadas pela água, o fogo, a madeira, o metal e a terra. Esses elementos definem os cinco pontos cardeais e servem para classificar os órgãos do corpo humano. Essa cosmologia penetrou o pensamento chinês, influenciou a medicina e deu origem à acupuntura. O taoísmo estabeleceu inúmeras regras alimentares, práticas de higiene, técnicas respiratórias e ginásticas. Mas nem tudo é medicina no taoísmo. Ele tem um lado espiritual muito forte; crê em imortais celestes, que se uniram ao Tao, mas também em imortais terrestres que, dadas as suas boas ações, são conduzidos por dragões ao alto das montanhas ou às nuvens, onde vivem sem comer ou beber. Esses imortais são venerados como santos. O clero taoista é composto por monges que, como no budismo, vivem como ascetas e por laicos que exercem, de pai para filho, as funções de advinhos, exorcistas e médiuns. As cerimônias taoistas têm na queima de incensos e perfumes um elemento fundamental de culto. Essas quatro tradições espirituais, transformadas em práticas cultuais muito variadas vêm dialogando, há séculos, tanto nas sociedades onde surgiram como naquelas para onde se espalharam, com outras tantas crenças locais. No Vietnã, essa interação inclui também duas grandes religiões abraâmicas: o islamismo e o cristianismo.
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Stupas num pagode de Ho Chi Minh City
Os champa, remanescentes de um reino originariamente malaio-polinésio que se instalou no norte e centro do Vietnã eram hinduístas cultuadores de Shiva. Nos séculos IX e X adotam o budismo do Grande Veículo. A partir do século XV se tornam muçulmanos. São eles os representantes do islamismo no país. As marcas mais antigas de sua cultura estão na histórica região central vietnamita. Em Da Nang existe uma valiosa mostra de peças artísticas no Museu Champa. Não muito distante as ruínas arqueológicas hinduístas de My Son ainda oferecem uma idéia do resplendor desse povo. Hoje, “tangidos” pelo avanço do budismo e sua mistura com o hinduísmo, o taoísmo e o confucianismo, do cristianismo crescente, de práticas identificadas pelos vietnamitas mais cultos como crendices, supertições ou animismo, os muçulmanos vietnamitas se agruparam, na sua grande maioria, no extremo sul do país. Muitos vivem em casas sobre palafitas, no delta do rio Mékong. Suas condições de vida são muito precárias. Há uma mesquita que serve à devoção da população.
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É na região central do Vietnã que melhor se pode ver o passado desse povo: o remoto e aquele mais recente. O melhor exemplo é a cidade de Da Nang, tão massacrada pelos americanos e seus “desfolhantes laranja”, que ainda hoje só recebe visitantes de passagem, sobretudo para fruir as belezas do Museu Champa. Essa é também uma região muito vulnerável às enchentes que assolam o país todos os anos, muitas vezes acompanhadas de tempestades, furacões e tsunamis. O cristianismo teria chegado ao Vietnã nos séculos XV e XVI. É dessa época a presença de missões jesuítas portuguesas na China e nas regiões vizinhas. Foram esses europeus os responsáveis pela latinização do alfabeto local, contribuindo assim para a construção do idioma vietnamita na sua forma atual. Fato curioso e representativo do aludido diálogo entre religiões no Vietnã é a chamada “querela dos ritos”. Os jesuítas achavam que os rituais, principalmente o culto dos ancestrais, não constituíam uma religião e, portanto, não eram incompatíveis com o cristianismo, mas Roma condenou veementemente essa atitude. Hoje, já é possível ver, da região central rumo ao sul, templos católicos e mesmo uma comunidade católica estabelecida à beira mar. Seguindo essa direção, vão surgindo, em número crescente, os cemitérios mistos (budismo + catolicismo). No delta do Mékong, há até igreja flutuante, assim como escolas e templos de outras denominações cristãs.
As representações A simbologia expressa nas imagens esculturadas e em todas as representações não icônicas tem explicação apenas no interior desse universo filosófico-espiritual e guarda relação com os imaginários sociais, políticos e religiosos de cada povo. Imaginários que, como lembra Baczko, (1984) por vezes se esgotam, renascem outras tantas, e se transformam, sobretudo, em momentos de grandes conflitos que marcam a experiência coletiva. Há certamente significativas consequências desses rearranjos dos imaginários sobre as representações do Buda em todo o território asiático e, particularmente no sudeste. Elas variam de país a país, entre correntes (ou seitas, como diz Borges) e mesmo entre templos e pagodes. Delumeau lembra que a India antiga se recusa por longo tempo a representar o rosto de Buda, guardando apenas os símbolos: o trono vazio, as marcas das suas pegadas, a roda da lei e a figueira do despertar. Não se sabe ao certo se a primeira figuração surge nos meios helenísticos do Gandhara, ao norte do atual Paquistão ou nos meios indianos do Mathurâ na região banhada pelos afluentes do Ganges. Essas representações datam do primeiro milênio e surgem nos mosteiros. A partir do século V os artistas devem respeitar certas regras para sua representação: os cabelos são lisos ou ondulados em cachos ou presos num cocó, uma auréola atesta sua majestade, os olhos semifechados e as pálpebras pesadas expressam a meditação, a boca mostra um leve sorriso de compaixão, o lóbulo da orelha é espichado para mostrar que ele usava brincos, adereço de príncipe. Ele está sentado na posição de lótus e usa a túnica de monge. A posição das mãos é simbólica: a mão direita parece caída e toma a terra como testemunha. O Buda gordo surgiu na China. Há figuras magérrimas, que lembram o asceta, e há Budas femininos. As representações do Buda destacam suas qualidades, seus ensinamentos e as virtudes que devem guiar os adeptos. Hoje, no Vietnã, Budas “falam” do passado (velho), do presente (com crianças), do futuro (sorridente) e, da prosperidade. Ou, como no Museu de História de Ho Chi Minh, onde há uma sala reservada a diferentes representações
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do Buda, em esculturas e fotos de esculturas, elas identificam traços considerados característicos de vários povos. Assim: na Tailândia o Buda representa a finesse; no Camboja o recolhimento; na China a bondade; no Japão a felicidade e no Vietnã a generosidade. As comunidades budistas ou sanghas, embora em muito menor número que no Camboja, espalham-se por várias localidades do Vietnã e sua vida gira em torno dos templos e pagodes. Estes últimos abrigam os monges e são locais de formação de crianças e jovens para a vida ascética. No budismo Mahayana, ou do Grande Veículo, que floresceu no Vietnã, os monges não mendigam, como no budismo Theravada ou do Pequeno Veículo, religião de 99% dos vizinhos cambojanos. Eles vivem juntos nos pagodes e usam vestimentas de cor amarelo-laranja, que representa a morte para a vida. Os monges budistas são sepultados em túmulos especiais, chamados stupas. Essas edificações seguem o modelo escolhido pelo Buda para sua última morada e têm mais ou menos estágios dependendo da importância do morto. Nos pagodes existe uma área reservada para esses stupas. Aliás, é costume no país enterrar-se os entes queridos no terreno das próprias residências. Assim, mesmo os cemitérios ainda hoje se situam próximos a conjuntos de casas. A hora, a direção da tumba e outros detalhes referentes ao sepultamento são escolhidos por práticas de quiromancia ou pela sugestão de adivinhos, o que, para os vietnamitas cultos, significa dizer que são decididos por superstição que nada tem a ver com religião. Os ritos fúnebres, que estão diretamente relacionados com o culto dos ancestrais têm uma enorme importância entre os vietnamitas. Das 12 etnias que estão na origem desse povo, apenas uma não incorporou o culto. É frequente que no enterro, cópias de dinheiro e outros valores sejam jogados junto ao caixão para que os maus espíritos se distraiam e deixem o espírito do morto partir em paz. Também frequentemente o caixão
A colheita do arroz
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é rodado para que o espírito do morto se desoriente e não volte para casa. Os pequenos templos domésticos, do lado de fora das casas, onde os ancestrais são cultuados estão por toda parte no Vietnã. Ali são colocados alimentos (que nas festas são comidos pelas famílias), incensos e peças com grande força simbólica para a rememoração dos que ficaram. Os vietnamitas mostram o respeito aos mais velhos, nos mínimos detalhes, ainda em vida. Um exemplo disso está na arquitetura residencial que possui três andares. No térreo, mais baixo, e mais acessível, portanto, mora a primeira geração da família nuclear, isto é, os avós. No primeiro andar fica a segunda geração dos pais e no terceiro as crianças e jovens. Fruto da construção interativa de inúmeras e antigas culturas, com suas particulares visões de mundo, de imaginários, de crenças e de práticas cultuais, com uma enorme multiplicidade de entidades sagradas e de deuses, a história de enfretamentos e assimilações do “outro” que caracteriza o Vietnã vem dando origem, há séculos, a lendas e contos de uma riqueza só comparável à própria tradição oral desses povos. Dragões, princesas, fadas, gênios e divindades cuja representação icônica ou não, cujas qualidades e feitos ignoram no mais das vezes toda preocupação de leitura antropomórfica fazem parte do cotidiano daqueles que se orientam pelo conhecimento dito do senso comum, mas não estão distantes do conhecimento cultivado. Não seria possível separá-los, como na ciência ocidental. Do mesmo modo que seria inútil buscar definir, por oposição, o que é religião e o que é filosofia, o que é e o que não é religião.
Imaginários religiosos e políticos: construindo uma identidade nacional Os imaginários sociais se transformam segundo uma dinâmica própria a cada sociedade e as funções preenchidas por eles variam conforme diferentes momentos da experiência coletiva. Seguindo Backzo, (1984) lembrei, em trabalho anterior, (MIRANDA, 2006) que além das guerras e revoluções é possível identificar outras situações conflituais responsáveis pelos esgotamentos e ressurgimentos desses imaginários. A política e a religião implicam uma dimensão utópica, um espaço prospectivo de fronteiras movediças no qual se relacionam o cotidiano e as expectativas por ele criadas. A vida política dos vietnamitas nos últimos 100 anos serve de modo particularmente rico ao acompanhamento dessa dinâmica de rearranjos dos imaginários, que pode ser acompanhada quando se aproximam fatos políticos e religiosos. Tome-se, para isso, a convivência com os franceses colonizadores sob o regime de protetorado, a luta pela independência, a divisão do país entre o norte comunista e o sul sob influência norteamericana, a guerra contra os EUA e a posterior reunificação do Vietnã sob o regime comunista. Quanto ao campo religioso, observe-se particularmente o surgimento do caodaismo e os desenvolvimentos do cristianismo. No período referido, e mais especialmente nos momentos de enfrentamento direto com “os de dentro” e com “os de fora”, pode-se afirmar que as imagens exaltadoras dos objetivos a atingir e dos frutos da vitória procurada foram condição de possibilidade da ação das forças em presença. Em situações assim, “torna-se difícil separar os agentes e seus atos das imagens que têm de si próprios e dos inimigos, uma vez que se pode considerar que as ações são guiadas – de formas variadas – por essas representações, modelam nelas seus comportamentos e com base nelas mobilizam-se as energias e legitima-se
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mesmo a violência”. (MIRANDA: op. cit.) Os imaginários políticos guardam íntima relação com as práticas religiosas dos vietnamitas, tornando possível afirmar que neles se expressa, também religiosamente, uma idéia de nação e de nacionalidade. É o que eu gostaria de sugerir. O caodaismo surge como uma religião no sul (ela era proibida no centro e no norte do país) do Vietnã, em 1926 quando seu fundador Ngo van Chieu tem a primeira visão de Cao Daí (torre alta, ou alto terraço), na forma de um olho rodeado por uma nuvem rosa. O país vivia então a exploração do colonizador francês que fazia trabalharem os colonos da região sul, nas culturas do arroz, da borracha, do chá e na produção de minerais de zinco para exportação. Naquela região os franceses aboliram o sistema fundiário de pequenas propriedades e as substituíram por grandes formações rurais. As terras comunais desapareceram. Assim, nos anos 20, a desigual distribuição fundiária numa economia essencialmente agrícola e as taxas sempre maiores estabelecidas pelo sistema colonial criam as condições para o surgimento de movimentos contestatórios e de apelo nacionalista à frente de muitos dos quais estão jovens formados em Paris. Também nesse período surgem as idéias comunistas. Ho Chi Minh, o grande líder vietnamita, “pai da nação”, cria a liga revolucionária do Vietnã em 1925 e o Partido Comunista Indochinês em 1931. Esses fatos ajudam a perceber o surgimento da religião caodaista como só inteligível se referido ao contexto sócio-político. Ainda assim, os analistas se dividem entre os que vêem o caodaismo como um movimento de libertação nacional, os que consideram seus adeptos como um grupo de oportunistas motivados por interesses materiais e aqueles para quem o grupo é manipulado e dirigido para servir os interesses da França. O fundador do caodaismo era funcionário administrativo da colônia e tinha origem humilde; “o exemplo perfeito de administrador nativo que a França coloca a seu serviço”. (BANDIER) Os membros daquela que ainda é chamada de “seita” (armada) são administradores, proprietários de terra e empreendedores: uma elite burguesa. Abstenho-me de comentar as transformações no seio do caodaismo até os dias de hoje visto que não interessam a este ensaio preocupado particularmente em “ver” nas imagens caodaistas os símbolos desse imaginário que mistura as dimensões política e religiosa. No Vietnã o Tam Giao significa a longa história de integração de diferentes tradições espirituais, uma espécie de sincretismo que caracteriza a cultura vietnamita. Uma mensagem espírita de Cao Dai transcrita na Revue Caodaïste diz que “antigamente os povos não se conheciam e não dispunham de meios de transporte, eu fundei então, em diferentes épocas, cinco ramificações da Grande Via (Dai Dao)”. São elas: a religião do homem (confucianismo), a religião dos gênios, a religião dos santos (cristianismo), a religião dos espíritos (taoísmo) e a religião do Buda. O caodaismo seria a junção de todas elas. O confucianismo e o budismo estão enraizados na cultura vietnamita desde séculos enquanto os gênios são parte importante das religiões populares da Ásia e variam de acordo com sua origem: saídos da montanha, da terra ou dos rios. Os fiéis cultuam pedras e árvores (a essas práticas as pessoas cultivadas chamam animismo) e aos gênios dedicam templos e pagodes. O maior de todos os gênios, Khuang Thai Cong, faz parte do panteão caodaista, ao lado de heróis sino-vietnamitas, de personalidades da história e de escritores orientais e ocidentais como: Vitor Hugo, Chateaubriand e Joana d’Arc. Também presentes estão figuras revolucionárias vietnamitas e chinesas, assim como o próprio Lênin. Misturam-se assim, nesses símbolos humanos, os imaginários políticos da
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Grande templo caodaista no sul do país
submissão e da resistência, das culturas letradas do Ocidente e do Oriente e, bem significativamente, de uma construção da nacionalidade vietnamita através de idéias religiosas. Embora fascinante, sua análise foge aos objetivos deste texto. A evocação dos espíritos está presente desde sempre nas práticas espirituais dos vietnamitas e o caodaismo a integrou, enriquecendo-a com as contribuições do espiritismo e do teosofismo (facilitada pelas traduções de Alain Kardek e Madame Blavatsky) reservando-lhe destaque especial. O êxtase acompanhado de recebimento dos espíritos pelos médiuns tem promovido a comunicação com Jesus, Cao Dai, Victor Hugo, La Fontaine, Pasteur, Lênin, Aristide Briand, Shakespeare, Joana d’Arc e personagens que se sucederam à frente do caodaismo, entre outras. Quanto ao cristianismo, sua presença através de missões religiosas remonta, de modo mais consistente, aos séculos XV e XVI, quando os jesuítas, para levar avante o projeto de evangelização, acabam sendo responsáveis pela constituição de um idioma vietnamita baseado no alfabeto latino. Criam o moderno idioma do país. Os comunistas vietnamitas viram no cristianismo a presença do outro e, ao contrário do budismo, ele foi duramente perseguido. Antes da guerra contra os Estados Unidos o presidente apoiado pelos americanos era católico e queria transformar a sua na religião nacional. Seguem-se, no período, episódios de extrema violência, com fechamento de templos e em Hué, antiga capital imperial, um monge chega a se imolar em sinal de protesto, gerando um clima de muita agitação social. O budismo Mahayana professado no Vietnã tem uma dimensão coletiva em relação ao progresso espiritual e se aproxima da política comunista se considerada, por exemplo, a causa comum que está na base dessa ideologia. Isso sem que se deixe de lembrar a
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Símbolos do sincretismo caodaista
legitimidade religiosa do budismo e de suas construções interativas ao longo de séculos, como a religião do povo vietnamita enquanto o cristianismo católico representa o braço religioso do invasor. Já o culto comunista da personalidade mantém afinidade eletiva com o culto dos ancestrais, tão presente nas raízes confucianistas e integradas ao universo religioso-espiritual dos vietnamitas, para o qual o líder político e unificador da pátria Ho Chi Minh merece quase idêntica reverência que os mandarins e letrados. Apenas estes últimos são cultuados em templos enquanto aquele recebe homenagens no seu Mausoléu, não por acaso edificado ao lado do grande Templo da Literatura (confucianista) em Hanói. Ainda hoje é no sul do país que se observa uma mais significativa presença do cristianismo, e sempre na sua versão católica. Se ao longo da costa, entre as regiões centro e sul é possível ver algumas comunidades católicas e cemitérios que misturam símbolos do catolicismo àqueles próprios das demais crenças asiáticas, é na antiga Saigon (hoje Ho
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Chi Minh) que está edificada a Catedral Católica, única do país. Na praça em frente a ela, uma imensa imagem da Virgem Maria define o território. E como em qualquer outra sociedade onde as imagens de Maria estão sempre ligadas a relatos extraordinários também em Ho Chi Minh eles já começam a surgir. Há cerca de três anos, diz-se, a imagem chorou pelo olho direito e seu pranto foi interpretado como um pedido para que os homens parem de se destruir e abracem a paz. Curioso é ainda o fato de a cidade comemorar o Natal, transformado em festa internacional celebrada por católicos e budistas. Essa apropriação cultural da maior festa da cristandade, no entanto, não implica em feriado no dia 25.
Conclusões Assim, a borradura das fronteiras entre Ocidente e Oriente, aludida no início, não é um resultado planejado, mas uma daquelas consequências não previstas e/ou desejadas da “ação concertada” de atores sociais movidos por razões políticas, culturais, religiosas e outras. O que afirmo aqui é que ela é passível de identificação naquilo que os templos e as imagens religiosas oferecem ao “olhar” do outro de origem cristã ocidental. Sem um deus personalizado; acreditando em energias que tomam a forma antropomórfica nos esartzs – formas que nunca são totalmente humanas como vimos; cultuando igualmente o Buda, os mandarins e letrados de todo tipo, gênios, deuses e deusas, o Cristo e Maria esse universo espiritual lembra, entre outras coisas, que o homem é o único responsável pelos seus atos, que não há possibilidade de remediar erros. Apresenta-se ao olhar numa profusão de imagens e cores, de representações icônicas que remetem a qualidades e sentimentos ao mesmo tempo estranhos e desafiadores para o outro que, guardadas – felizmente – as diferenças, nem é tão outro assim. É isso que eu gostaria de afirmar.
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Júlia Miranda é professora titular da Universidade Federal do Ceará, coordenadora do Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política e pesquisadora do CNPq.
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KUHN, WITTGENSTEIN PARADIGMAS
E OS
JOÃO JOSÉ R. L. DE ALMEIDA*
Resumo: Em resposta a uma crítica de que o termo “paradigma” era usado em pelo menos 22 maneiras distintas, Thomas Kuhn esclareceu que via o conceito em apenas dois sentidos: de um lado, como relações de crenças, valores, técnicas, familiaridades etc, compartilhadas pelos membros de uma comunidade científica, e de outro, como um tipo de elemento dessa constelação, que são as soluções concretas de quebra-cabeças, modelos e exemplos que se substituem à formulação de regras explícitas para a solução de problemas futuros de uma ciência normal. Tomarei como base esta 2a visão de “paradigma” para delinear diferenças entre Kuhn e Wittgenstein. Trabalharei particularmente sobre as duas inferências mais problemáticas da proposta de Kuhn – a incomensurabilidade entre distintos paradigmas e o dualismo entre conteúdo e esquema conceitual–, porém focado na descrição da atividade de Lavoisier, dada tanto por Kuhn quanto por Wittgenstein. PALAVRAS-CHAVE: KUHN, WITTGENSTEIN, PARADIGM Kuhn, Wittgenstein and paradigms Abstract: In response to criticism that the term “paradigm” was used in at least 22 different ways, Thomas Kuhn explained that he understood the concept in only two ways: first, as relations of beliefs, values, techniques, etc. shared by members of a scientific community; second, as a kind of element of this constellation – the real solutions of puzzles, models and examples which replace the formulation of explicit rules for solving future problems of a normal science. I will focus on this second characterization of “paradigm” when outlining differences between Kuhn and Wittgenstein and on the two most problematic inferences from Kuhn’s proposal – the incommensurability of different paradigms and the dualism of content and conceptual framework – based on the description of the activity of Lavoisier offered by both Kuhn and Wittgenstein. KEYWORDS: KUHN, WITTGENSTEIN, PARADIGM
Uma teoria ainda influente Apesar de ser uma filosofia da ciência proposta há quase cinquenta anos, não há dúvida de que a discussão sugerida por Thomas Kuhn (1975) é a única, dentre as mais influentes explicações brindadas até os anos 60 (refiro-me especialmente ao Empirismo Lógico, de Carnap, e ao Falsificacionismo, de Popper), cujos pontos de vista podem suscitar
até hoje vivas polêmicas. (cf. BIRD, 2009; SHARROCK & READ: p. 1-2) É possível que a longevidade das suas descrições tenha a ver com a lógica mediante a qual a ciência foi estruturada em seu livro. Kuhn tem uma visão externalista, e por isso concebe a formação, a operacionalidade e a transmissão de conceitos científicos em conjunto com noções psicológicas gestaltianas e com ideias históricas e sociológicas, enquanto que os quadros metafísicos dentro dos quais o Empirismo Lógico e o Falsificacionismo demarcam e diferenciam o que consideram como atividade científica é exclusivamente internalista. A restrição a parâmetros metodológicos isolados do contato com o ambiente e elevados a um patamar universal, torna os últimos presas muito mais fáceis das suas próprias armadilhas lógicas. Não é difícil ver, por exemplo, que suas propostas estão impedidas de cumprir o que preconizam para teorias científicas, isto é, suas recomendações não são autoaplicáveis. O Empirismo Lógico não satisfaz as regras de correspondência para que a sua linguagem tenha sentido, e os chamados “enunciados básicos falsificadores”, pelo lado do Falsificacionismo, ficam de fora da exigência de falsificabilidade quando essas proposições devem funcionar como asserção negativa do modus tollens que nega uma hipótese científica. Desta forma, teríamos que aceitar que uma metafísica legisla sobre o que não pode ser metafísico, o que pode não ser um grande problema para muitos epistemólogos, mas para propostas demarcatórias, em particular, torna-se evidentemente um ponto embaraçoso. Mas não apenas isto, há também nessas propostas toda sorte de dificuldades e complicações para entender-se cabalmente o sentido de suas asserções epistemológicas. Muito do que ocorre em ciência não segue, por exemplo, a límpida distinção teórico-observacional prevista pelo Empirismo Lógico, e, por outra parte, afigura-se como uma crença injustificável uma certa ideia de “progresso” incutida no Falsificacionismo, ou seja, o fato de que a cada superação de uma teoria antiga estejamos mais sofisticados e mais pertos da verdade empírica. (cf. CHALMERS, 1999: p. 87-103) Evidentemente, arranjos ad hoc podem salvar tais dificuldades (e ao mesmo tempo deixar essas propostas um pouco mais complicadas), mas, mesmo assim, toda a elegante simplicidade e o impacto inicial das epistemologias demarcatórias perde-se no caminho sem que muitos dos seus supostos dogmas (analiticidade, representacionismo linguístico, verossimilhança, e outros) sejam examinados com mais cuidado. Kuhn, ao contrário do que ocorre como resultado do enquadramento de um cenário isolado pelas lógicas internalistas, não é presa fácil. Dentro dos amplos limites da relação entre uma linguagem organizadora e um mundo empírico organizável, consideram-se científicas as teorias que uma comunidade de pesquisadores aceitou como modelo de resolução de quebra-cabeças – fenômeno que Kuhn chama de “ciência normal”. Daí, temos não somente várias “ciências” descritas ao longo da história, mas também o concomitante fato de que uma defesa do internalismo não teria sentido diante do decurso de várias lógicas da investigação científica. Uma racionalidade científica compõe-se também, reivindica-se no livro de Kuhn, de valores adquiridos na cultura, tais como simetria, coerência, simplicidade em alguns casos, ou descontinuidades em outros casos; ela incorpora como metodologia uma maneira de enxergar os fenômenos através de anos de prática de ensino e aprendizagem entre mestres e alunos; elege como relevante somente uma circunscrição de problemas, ou uma região do domínio empírico, para serem focados e resolvidos, e outras não. De modo que a descrição de Kuhn estende-se aos vários casos de um amplo desfile histórico, e às distintas e até mesmo incomensuráveis relações entre conceito e experiência de cada caso de uma ciência normal. Sua intenção é recuperar entre todos
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eles alguns elementos constantes mediante os quais possamos compreender a ciência em geral como resolução de enigmas empíricos. E os elementos que Kuhn recupera em seu livro são termos como “anomalia”, “crise”, “paradigma”, e a diferença entre “ciência normal” e “ciência revolucionária”. Sua lógica, à diferença dos seus competidores dos anos 60, não é dada como uma abstração de casos, mas deve estar no interior dos casos. Examinar a lógica externalista de Kuhn requer muito maior sutileza, portanto, para entender cabalmente o sentido desses termos. Diferenciar o abstrato do concreto no tratamento da filosofia de Kuhn requer muito mais do que simplesmente igualá-lo a Feyerabend, tomar o conceito de incomensurabilidade diretamente como intradutibilidade, e rebater como incoerente um relativismo universal realmente inexistente em seu trabalho. (cf. DAVIDSON, 1973) A crítica a Kuhn deve descer aos casos que evoca.
O conceito em Thomas Kuhn Comecemos então pelo que o autor entende como “conceito”. Gansos, cisnes e patos, e a ordem das aves aquáticas, são ferramentas fundamentais para essa compreensão: “… vemos as penas da cauda de uma ave aquática alimentando-se de alguma coisa no leito de uma lagoa rasa”. (1975: p. 241) Conceitos no seu livro têm a ver com “exemplares” e “regras”. Ocorre neste exemplo um caso de aplicação problemática de regras. Podemos ter dúvida se a ave que enxergamos parcialmente, apenas pela cauda, é um cisne ou um ganso, problema que deve ser resolvido pela comparação das penas da cauda que vemos com as do ganso e as do cisne, que já aprendemos anteriormente que são de um determinado tipo, forma e cor. Essas regras pelas quais realizamos um reconhecimento são o resultado esperado de um processo de educação pelo qual distinguimos e classificamos alguns tipos de aves aquáticas. Observe-se que o autor não se preocupa tanto, à diferença das clássicas filosofias internalistas, em processos indutivos ou dedutivos de inferência hipotética que confirmariam a validade tanto de conceitos científicos como os da linguagem ordinária. Vige aqui, antes, uma interpretação da atividade conceitual ou de pensamento completamente diferente, como aplicação de regras, estas já assimiladas anteriormente, a casos. O que interessa no conceito não é se ele é uma representação mental ou uma habilidade adquirida, preocupações de ordem genética ou ontológica propícias para a justificação dedutiva e indutiva do tipo de inferência privilegiado pela escolha. Com o conceito, há lugar no livro de Kuhn para um processo abdutivo (dado o caso, infere-se a regra). O que importa na descrição da ciência não é exatamente a metafísica pela qual um determinado grupo a enquadrou, num certo momento da história, mas a lógica do reconhecimento dos fatos relevantes dentro desse esquema, ou, como ele mesmo diz, interessa “descrever essa forma de pesquisa como uma tentativa vigorosa e devotada de forçar a natureza a esquemas conceituais fornecidos pela educação profissional”. (idem, p. 24) O conceito, com suas regras, são uma peça da arbitrariedade ou do despotismo linguístico. Aquilo que vimos é, de acordo com as regras, ou um ganso ou um cisne. Se as regras não se encaixarem, ou melhor, se o caso não entrar no conceito, uma ameaça estaria intoxicando a atmosfera com a possível ocorrência de uma anomalia. (ib.: p. 77ss.) A atividade científica é baseada no pressuposto de que os cientistas sabem como é o mundo, e grande parte do sucesso do empreendimento de pesquisa deriva-se do fato
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de que os cientistas estão dispostos a defender esse pressuposto a quase qualquer custo. Paira na comunidade de pesquisadores a certeza de que a natureza pode ser enquadrada na estrutura proporcionada pelo modelo, (ib.: p. 192) certeza afinada por uma infinidade de aplicações cada vez mais precisas no decorrer do processo de investigação. O que se tem em foco não é o conceito isolado por paredes lógicas, mas, antes, um comportamento conceitual. Por isso mesmo é que novidades desconcertantes provenientes de casos empíricos particulares e especiais devem ser suprimidas para garantir a normalidade da pesquisa. Descobrir fatos novos não é de maneira nenhuma o propósito da ciência normal, já que toda ciência bem sucedida não tem achados, não quer ter achados, nem pretende formar novas teorias. (ib.: p. 77) No dia-a-dia da atividade de pesquisa, uma jovem aprendiz não apenas assimila o significado concreto de f=ma, equação proposta como uma regra do conceito de força. Ela também passa a reconhecer, com cada vez maior acuidade e acerto, casos em que o modelo se aplica, como a queda livre, o movimento do pêndulo, o giroscópio ou as oscilações harmônicas em ação recíproca. Inicialmente, é difícil entender como a fórmula pode ser usada em conjunturas e condições tão diferentes entre si. Os movimentos são bem mais complexos nos novos casos, o número de variáveis a derivar e integrar é bem mais amplo, e no começo ainda não se sabe muito bem quais são os elementos relevantes a se destacar. O que o estudante assimila, na verdade, é como estender a regra do primeiro caso aos demais, sem solução de continuidade. Exatamente a mesma coisa sucede nas outras áreas da ciência: o estudante não apenas passa a reconhecer os fundamentos da física subatômica, mas com o tempo pode distinguir numa câmara de vapor o rastro de elétrons e de partículas alfa. Ou poderá prever, com base na lei de Avogrado, o que resultará em termos moleculares da combinação de uma solução ácida e de uma solução base. E as exceções desses modelos – e sempre as há –, ou são incorporadas rapidamente às regras ou ficam aguardando uma explicação futura. Kuhn explica que, apesar do fato de que a atividade seja cumulativa e o empreendimento seja extremamente bem sucedido na ampliação contínua do alcance e da precisão das suas regras, as anomalias são presenças constantes na ciência normal. “Fenômenos novos e insuspeitados”, diz-nos o autor, “são periodicamente descobertos pela pesquisa científica”, (ib.: p. 77-78) e, de quando em quando, a ciência modifica-se. Mas esse fenômeno, conforme sugerimos, não é bem aceito dentro do padrão de normalidade, que é feito de modo a não deixar para trás resíduos incômodos. As anomalias, para a ciência normal, ou são escamoteadas ou devem ser incorporadas com urgência. O problema é que elas podem afetar decisivamente a continuidade das investigações não somente como desafio a superar ou enigma a resolver, podem transformar-se também em fator de crise: A emergência de novas teorias é geralmente precedida por um período de insegurança profissional pronunciada, pois exige a destruição em larga escala de paradigmas e grandes alterações nos problemas e técnicas da ciência normal. Como seria de esperar, essa insegurança é gerada pelo fracasso constante dos quebra-cabeças da ciência normal em produzir os resultados esperados. O fracasso das regras existentes é o prelúdio para a busca de novas regras. (ib.: p. 95)
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Pelo que a modificação na ciência apenas ocorre sempre como um processo revolucionário. Nesses casos, o padrão vigente é deposto e uma nova comunidade se forma pela incorporação das antigas anomalias a novas regras conceituais. A passagem, porém, de um modelo conceitual para o outro ocorre somente como conversão. Os cientistas da nova comunidade não veem o mundo mais da mesma maneira que os mais antigos, e mesmo nos casos em que um cientista do antigo modelo esteja persuadido pela nova forma de arranjo dos elementos empíricos, isto não significa que necessariamente esteja convertido. (ib.: p. 249-250)
Semelhanças de família Infelizmente, contudo, Kuhn está muito mais interessado em focalizar os casos que vão escapando às regras no decurso da história, do que manter-se fiel à regra de que o conceito deve ser descrito no caso. A introdução e a combinação do conceito de “paradigma” com o conceito de “conceito” é suficiente para desprendê-lo do concreto e deixálo pairando numa estratosfera abstrata, enquanto resíduos empíricos ficam pelo chão. A ordem das aves aquáticas continua servindo como ferramenta para esta evasão. Todavia, quando um mamífero como o coelho entra também nessa combinação metafórica, a linguagem, como diz Wittgenstein, já terá saído definitivamente de férias. Explica-se: diferentemente da intenção manifesta por Wittgenstein de evitar a generalização do conceito de “jogo” e deixar as regras sempre envolvidas com o caso, apresentada pelo emprego da noção de “semelhanças de família”, (cf. 2009: § 67) Kuhn serve-se da mesma imagem para dizer que o paradigma escapa a regras: A ciência normal é uma atividade altamente determinada, mas não precisa ser inteiramente determinada por regras. É por isso que… introduzi a noção de paradigmas compartilhados, ao invés das noções de regras, pressupostos e pontos de vista compartilhados como sendo a fonte da coerência para as tradições da pesquisa normal. As regras, segundo minha sugestão, derivam de paradigmas, mas os paradigmas podem dirigir a pesquisa mesmo na ausência de regras. (op. cit.: p. 66)
Conceitos derivam-se de paradigmas, e estes são, de fato, no livro de Kuhn, as fontes da padronização na ciência, não aqueles. Quem garante que as anomalias que restam da contínua aplicação do conceito de força, da teoria da combustão, ou da ordem dos planetas no sistema solar permaneçam inócuas ou, ao revés, tornem-se insustentáveis, é o mesmíssimo personagem, o paradigma – ocupando, entretanto, lugares e funções diferentes. No período anterior, ele reúne os pesquisadores em torno de um padrão de acerto e normalidade, e depois, ele congrega hereges dentro de uma nova ordem. Como se dá o jogo entre paradigmas e conceitos? Kuhn estabelece uma diferença entre conhecimento tácito e explícito, teoria que o autor assimila de Michael Polanyi. (ib.: p. 69) Os conceitos são considerados exclusivamente como conhecimento explícito, um know-that, mas o sucesso da investigação científica depende crucialmente do conhecimento adquirido através da prática, que, para o autor, não pode ser formulado explicitamente. Para isto, os paradigmas guiam a aplicação dos conceitos ou regras explícitas
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ao modo de um compromisso de grupo. Mas o mesmo fenômeno ocorre tanto para o conservador quanto para o revolucionário, pois este também se serve de um conhecimento tácito, ou de um know-how, para dirigir a aplicação de seus novos conceitos. Pois bem, este conhecimento prático, não formulável explicitamente, e composto de uma hierarquia de valores forjada na comunidade, de modelos e exemplares fornecidos por manuais de aprendizagem, de um conjunto de habilidades e técnicas assimiladas pela convivência e a familiaridade com os materiais, é o elemento que garante que um ganso seja reconhecido como ganso, e um cisne como um cisne. Mas também é o elemento que garante que entre um pato e um coelho não há similaridade possível, pois se tratam de paradigmas distintos, embora o domínio empírico seja o mesmo. (cf. ib.: p. 146) As anomalias, que no entender de Kuhn, somente aparecem contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma, (ib.: p. 92) são o resíduo que não se conta na ciência normal e que, por outra parte, são integrados no padrão defendido pela ciência revolucionária. Dito com mais acerto, os paradigmas são, na verdade, meios particularmente eficazes para induzir mudanças quando produzem, inadvertidamente, mediante seu jogo de aplicação de regras a casos, fatos que violam as expectativas. (ib.: p. 78) Essa quebra é assumida posteriormente dentro de uma nova maneira de enxergar os fatos, dentro da integração patrocinada por um novo compromisso de grupo, que harmoniza o domínio empírico com a apresentação de outras regras ou de outra configuração dos fatos na qual o anômalo se converte em esperado. No interior de um paradigma, entretanto, o reconhecimento de um caso normal é garantido pelo emprego da técnica de “semelhança de família”. Os pesquisadores sabem que é o mesmo jogo quando aprendem a identificar traços que marcam uma similaridade entre diferentes domínios do mundo empírico. Na realidade, eles devem aprender, com o tempo, a reconhecer um conjunto de atributos mais ou menos compartilhados pelo que assumem como sendo os membros de uma mesma classe, isto é, terão que a harmonizar a realidade com o padrão fornecido pelo conceito, posto que no contínuo empírico nem todos os supostos membros de uma classe terão compartilhado simultaneamente e exatamente as mesmas características. (cf. ib.: p. 69-70) Isto não acontece de verdade, ou, pelo menos, nem sempre acontece. A função do paradigma, na realidade, é a de ensinar a ver os fatos apenas sob um determinado aspecto. Mas a descrição da aplicação do jogo das semelhanças de família na atividade de reconhecimento e de padronização, não é, no livro de Kuhn, a de um conjunto de regras necessárias, tal como se dá com os conceitos. De fato, não há para ele regras possíveis neste processo, neste tipo de atividade que consiste na aplicação de padrões aos casos. Todavia, é exatamente por conceber conceitos como regras universalmente fixas que as anomalias escapam por debaixo da linguagem, e não exatamente contra o pano de fundo do paradigma, como ele mesmo diz, (ib.: p. 92) porque este, na verdade, tem que ser invisível. O processo também é semelhante nos eventos de mudança de paradigma. Dado que o conhecimento tácito não é formulável em regras, diante do mesmo domínio empírico dois grupos distintos veem animais diferentes: o coelho é sempre um coelho, e o pato é sempre um pato. Os cientistas têm diante de si apenas seus conceitos, mas o conhecimento tácito pressuposto pela mudança induzida pelo próprio paradigma está fora da linguagem.
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O caso da teoria da combustão A passagem da teoria da combustão para a descoberta do oxigênio é relatada por Kuhn precisamente como um longo processo em que antigas regras da química vão se tornando cada vez mais frouxas, em consequência do surgimento de uma boa quantidade de anomalias mal explicadas. Uma nova regulação vai surgindo pouco a pouco, até que os fatos inesperados da antiga forma de ver as coisas ficam amarrados como eventos previsíveis na nova química. (cf. ib.: p. 79-92) Com a demora desse tipo de processo, dificilmente se poderia precisar uma data na qual se poderia dizer que o oxigênio foi descoberto. E assim é porque o paradigma que explica a combustão dos materiais pelo flogisto é totalmente diferente da explicação que toma o oxigênio como fator essencial da reação de queima de um material. No primeiro caso, os materiais combustíveis teriam que conter flogisto, uma substância calórica, para que pudessem entrar em combustão; e, no outro caso, um elemento, o oxigênio, teria que ser subtraído da atmosfera para que o mesmo processo pudesse ser realizado. Num paradigma, alguma coisa se perde; no outro, alguma coisa entra na composição e reage. Por conseguinte, a anomalia mais comum no paradigma do flogisto era a de que certos materiais, como o magnésio, depois de queimados, teriam que perder peso, em vez de ganhá-lo, como realmente sucede. E o problema da visão sob apenas um dos aspectos, é como conseguir passar de um paradigma em que uma substância tem que sair de algum lugar para entrar em outro, para outro paradigma em que o importante não é o que sai nem o que entra, mas com o que uma reação pode ser desencadeada. Dadas formas de pensamento tão díspares, nada disso que se chama de “conversão” pode ser assim tão simples. Dificuldade com a qual Wittgenstein concordaria plenamente. Em Sobre a Certeza, o filósofo admite a possibilidade de conversão, mas também adverte: Lembre-se que alguém está algumas vezes convencido da correção de uma visão pela sua simplicidade ou simetria; isto é, são esses elementos que induzem alguém a sustentar o seu ponto de vista. A pessoa então simplesmente diz alguma coisa como: “É assim que tem que ser.” (1990: § 92)
Wittgenstein, contudo, à diferença de Kuhn, não tomaria os elementos “simplicidade” ou “simetria” como pressupostos que não fazem parte das regras, ou que estivessem fora da linguagem. Pelo contrário, ao mencionar a investigação de Lavoisier, diz que nem todas as proposições empíricas têm o mesmo status, algumas delas se tornam normas de descrição, de acordo com o caso. Portanto, as pressuposições de “simplicidade”, “simetria”, ou a de que “as coisas não podem acontecer de modo diferente em outra ocasião”, que normalmente não são mencionadas na hipótese, e conformam, como disse Kuhn, um conhecimento tácito, fazem parte, para Wittgenstein, da imagem de mundo essencial que fundamenta o conceito. (idem: § 167) Imagens de mundo são também, em geral, proposições empíricas, porém em função de fundamento para outras proposições empíricas. Aliás, uma grande monta de proposições transmitidas popularmente pela ciência, fatos geográficos, históricos e químicos que aprendemos desde a infância, são, para a maioria de nós, apenas crenças. (cf. ib.: § 170) Tais crenças, profundamente arraigadas em nossas atividades quotidianas e banais, formadas desde a mais remota infância, crenças que em conjunto conformam um tipo de mitologia contemporânea, (ib.: § 95) são sempre regras
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de jogo, e, como tais, não precisam ser explícitas. Na verdade, os sistemas tácitos que sustentam as hipóteses pertencem à essência dos argumentos ou dos conceitos. Eles não são, como parte do jogo, um ponto de partida para as hipóteses; ao contrário, as hipóteses e seus sistemas estão intimamente imiscuidos, e estes são os elementos nos quais aquelas têm a sua vida. (cf. ib.: § 105) Nas Investigações Filosóficas, (2009) Wittgenstein utiliza o termo “paradigma” (Vorbild e Paradigma) para designar porções ou recortes do mundo empírico que têm a função de fundamentar ou justificar outras proposições empíricas, unidades discretas que servem como modelo fixo com o qual comparações possam ser estabelecidas. (§§ 20, 50, 51, 55 e 57) Esses modelos são amostras escolhidas para desempenhar a função de meios de apresentação daquilo que se quer dizer por uma cor, uma medida, um movimento, um objeto, uma emoção etc.; são, portanto, partes legítimas e inseparáveis da linguagem. (§§ 16, 53 e 56) Sem tais amostras, ou sem tais “exemplares”, para usar o mesmo termo que Kuhn, muito daquilo que a gente quer dizer não poderia simplesmente ser dito: – “Pegue aquele bloco! Não o tijolo, o bloco, aquele ali!”. Ou: – “Você acha que ela está mesmo com dor de cabeça? Ela não parece alguém com dor de cabeça!”. Sem os exemplares, sem os padrões de comparação, as frases não poderiam ser corrigidas e não teriam significado. Em contraste com Wittgenstein, o grande inspirador de sua obra, Kuhn apenas lembrou-se das regras explícitas componentes dos conceitos, mas olvidou-se das regras tácitas atuantes nos paradigmas, que são partes fundamentais da linguagem.
O caso das anomalias Resta-nos, para concluir, indicar a grande perda da proposta epistemológica de Kuhn, resultante do seu esquecimento do papel fundamental da linguagem. Tratam-se das anomalias, os resíduos da aplicação das regras, que na sua obra representam o papel essencial de pivô das crises, e de elementos sobre os quais devotam-se as resoluções de quebra-cabeças dos novos paradigmas. Se tomamos o caso da “descoberta do oxigênio”, que a Kuhn, evidentemente, não interessa como descoberta, mas como sintoma, (cf. 1975: p. 80) podemos reparar esta perda. O sintoma é a evidência de que existe algo errado na imagem da ciência daquele momento. Os gases resultantes da combustão de um material são, no século XVIII, o sintoma de que há algo errado na imagem de que um corpo deve estar mais leve depois da queima. Se um corpo se queima, o ar deveria, então, conter todo o flogisto perdido na combustão. Denominar, porém, o oxigênio de “ar deflogistizado”, como Pristley, denota a resiliência de uma imagem de mundo e o desconhecimento do sintoma. De fato, o que Lavoisier anunciou na época não foi tanto a descoberta do oxigênio, mas a teoria da combustão pelo oxigênio, (ib.: p. 82) o que significa que a antiga imagem do mundo também permanecia vigente nas conclusões deste investigador. Pois bem, minha pergunta é como tratar como sintoma elementos que estão fora da linguagem? Ou, melhor formulado, como podemos aproveitar em favor da mudança de visão de mundo na ciência esses sintomas que são, na verdade, o prenúncio de uma revolução, senão colocando o que faz parte de um conhecimento tácito numa regra da linguagem para o esclarecimento da sua gramática? Pelo esclarecimento gramatical (WITTGENSTEIN, 2009: § 122) do conhecimento tácito que produz anomalias, facilita-se a possibilidade de visão das dificuldades de uma outra maneira, enseja-se a oportunidade de
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mudança, iluminam-se as conexões entre os conceitos científicos e os fundamentos das suas certezas, ou as suas mitologias, digamos assim, e pode-se, o que é mais interessante, trocar a descrição da estrutura das revoluções científicas, uma empreitada um tanto grandiosa e majestática, pelo tratamento dos problemas mais simples e quotidianos, mas longe de serem menos importantes, do comportamento conceitual na ciência. Um tipo de projeto de pesquisa que tira partido das vantagens lógicas de uma epistemologia externalista, mas que apropriadamente a reveste com as ferramentas da linguagem. Uma proposta de investigação que já tem sido feita de alguma maneira em outros lugares. (cf. WILSON, 2006) Uma reapropriação lógica do conhecimento tácito envolvido na investigação científica refuta imediatamente outras duas críticas relevantes a Kuhn, a da equivalência entre incomensurabilidade e intradutibilidade, e a de um consequente relativismo universal. (DAVIDSON, 1973) Pois não há como escapar do “terceiro dogma” se concebermos um dualismo entre esquema conceitual e conteúdo organizável, um dualismo entre o dado e sua interpretação, fato que se consuma quando Kuhn admite que regras derivam-se de paradigmas que estão fora da linguagem. (1975: p. 68) Se a incomensurabilidade só faz sentido como falha parcial de tradução, o que Kuhn admite, (ib.: p. 244-251) então há fator de comparabilidade entre duas visões de mundo. O que quer dizer, em outras palavras, que só há sentido em localizar diferentes visões de mundo sobre uma base linguística. Uma tribo de língua desconhecida, por exemplo, cujas atividades pareçam lógicas ou inteligíveis, mas na qual nos fosse absolutamente impossível traçar qualquer conexão regular entre os sons que emitem e o seu comportamento, não teriam, paradoxalmente, uma linguagem. (WITTGENSTEIN, 2009: § 207) É necessário para o nosso conceito de linguagem a constatação de uma regularidade. Este é o fator de comparação e a base para a tradução: temos que atribuir linguagem aos comportamentos. Outra coisa, entretanto, é presumir que há tradução sem falha. Persuasão, como vimos, não é conversão, e traduzir o conhecimento tácito depende muito mais de convívio e familiaridade do que de simples comunicação. Pois a linguagem, no sentido pleno em que a devemos tomar, comporta em suas regras, em seus jogos, os pressupostos tácitos daquilo que estamos tentando dizer e nem sempre conseguimos. Portanto, nosso problema não é o de encontrar uma “linguagem neutra” pairando acima das relativas visões de mundo, (KUHN, 1975: p. 247) uma mathesis universalis perfeitamente compreensível e comunicável, mas que solenemente ignora o contexto e o caso, para realizar uma tradução eficaz. Muito mais próximo da linguagem viva e efetiva é descrever corretamente a gramática concreta do caso, e iluminar, com isso, o conhecimento tácito que gera anomalias ou sintomas. Descrever uma linguagem, como diz Wittgenstein, é descrever uma forma de vida, (2009: §§ 19 e 23) descrever elementos comunicacionais e elementos não comunicacionais (amostras do mundo empírico, gestos, mitologias pressupostas, contexto histórico e social imediato) envolvidos num ato de proferimento. Nada disso quer dizer que tradução e comunicação sejam atividades simples e fáceis, ou, ao revés, que sejam impossíveis. Bem longe disso, toda sorte de dificuldade pode obscurecer a compreensão e tornar uma visão de mundo completamente opaca. Porém, este é justamente o sintoma, ou a anomalia, sobre a qual vale a pena trabalhar. Talvez, assim, a distância entre o que propunham Kuhn e Wittgenstein com o termo “paradigma” se reduzisse significativamente.
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Referências bibliográficas BARKER, Peter; CHEN, Xiang & ANDERSEN, Hanne. Kuhn on Concepts and Categorization. In: NICKLES, Thomas. Thomas Kuhn. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. BIRD, Alexander. Thomas Kuhn. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy: http://plato.stanford.edu/archives/fall2009/entries/thomas-kuhn/, acesso em 15/05/2011. CHALMERS, Alan F. What is This Thing Called Science? 3rd. ed. Queensland: University of Queensland Press, 1999. COLIVA, Annalisa. Was Wittgenstein an Epistemic Relativist? In: Philosophical Investigations 33 (1): p. 1-23, 2010. DAVIDSON, Donald. On The Very Idea of a Conceptual Scheme. In: Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association, vol. 47, p. 5-20, 1973. KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. SHARROCK, Wes & READ, Rupert. Kuhn. Philosopher of Scientific Revolution. Cambridge: Polity Press, 2002. WILSON, Mark. Wandering Significance. An Essay on Conceptual Behavior. Oxford: Clarendon Press, 2006. WITTGENSTEIN, Ludwig. Da Certeza. Tradução de Maria Elisa Costa. Lisboa: Edições Setenta, 1990. ______. Philosophical Investigations. Revised 4th edition. Translation: Anscombe, G.; Hacker, P. & Schulte, J. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009.
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João José R. L. de Almeida é professor de filosofia da Unicamp.
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a epistemologia da complexidade
DE GASTON BACHELARD A EDGAR MORIN1 ANDRÉ SANTANA MATTOS*
Resumo: O ensaio aborda as proposições epistemológicas de Gaston Bachelard e Edgar Morin, a partir da constatação de que a epistemologia não-cartesiana de Bachelard tem em seu cerne a problemática da complexidade, tomada posteriormente por Morin como emblema de sua epistemologia. Em seguida, é realizada uma apreciação mais crítica da questão da complexidade, articulando-a também a outros autores que trouxeram contribuições relevantes para a reflexão epistemológica. PALAVRAS-CHAVE: GASTON BACHELARD, EDGAR MORIN, EPISTEMOLOGIA DA COMPLEXIDADE 1 The epistemology of complexity: from Gaston Bachelard to Edgar Morin Abstract: The essay deals with epistemological proposals of Gaston Bachelard and Edgar Morin, based on the assumption that the non-Cartesian epistemology of Bachelard has at its core the problem of complexity, later taken over by Morin as the trademark of his epistemology. Then, the problem of complexity is dealt with from a more critical point of view of the problem, linking it to other authors who also brought significant contributions to the question. KEYWORDS: GASTON BACHELARD, EDGARD MORIN, COMPLEXITY
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á aproximadamente quatro anos vimos pesquisando propostas epistemológicas não-cartesianas ou epistemologias abertas surgidas ao longo do século XX, em um movimento de superação do paradigma cartesiano. A partir das proposições e contribuições de autores como Sigmund Freud, Gaston Bachelard, Pierre Bourdieu, Edgar Morin e Boaventura de Sousa Santos, procuramos, a partir de uma perspectiva interdisciplinar, pensar o fazer acadêmico na interface ciência-arteshumanidades. (COUTINHO; SANTOS, 2010)
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Este trabalho é um produto da pesquisa que vimos realizando no grupo CONES, sob a orientação da Profa Dra Denise Coutinho, a partir do projeto “Epistemologias não-cartesianas: exploração de modelos na interface artes-humanidades”. Gostaria de agradecer à professora Denise Coutinho e a Adalene Sales pela leitura e revisão do texto.
Dentre estes autores, destacaremos, para o propósito deste ensaio, Gaston Bachelard e Edgar Morin, pensadores franceses que não poderiam ser apresentados simplesmente como epistemólogos, devido às incursões que fazem em campos variados, e que compartilham o fato de não terem partido inicialmente da filosofia. Bachelard ensinou física e química, antes de iniciar seus estudos em história e filosofia da ciência, e mais tarde estendeu suas reflexões ao campo da poesia e da literatura. Morin, por sua vez, formou-se em história, geografia e direito; em seguida aderiu ao Partido Comunista e engajou-se politicamente na resistência francesa, por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Retomando a vida propriamente intelectual, após a guerra, estendeu seus estudos a campos diversos, como a filosofia e a sociologia, e vem construindo uma vasta obra de caráter transdisciplinar, articulada a questões políticas atuais, além de abordar temas menos usuais, como o cinema, uma paixão pessoal. Não obstante, o que nos interessa aqui, especialmente, são as contribuições destes dois autores à epistemologia contemporânea, no que diz respeito ao tema da complexidade. Em Morin, a complexidade se tornou uma bandeira, de modo que este tema é facilmente remetido ao seu nome e reconhecido como característico do seu pensamento — o pensamento complexo — e da sua proposta epistemológica — a epistemologia da complexidade. Já na epistemologia de Bachelard, este não é um tema que se apresenta com imponência, e talvez não faça sentir a sua presença e importância a alguns leitores. Quanto a nós, entretanto, ao prosseguirmos com os estudos sobre os dois autores, pudemos constatar que a questão da complexidade foi antecipada por Bachelard, e encontrase no cerne da sua formulação de uma epistemologia não-cartesiana. Esta relação entre os dois autores havia sido apontada anteriormente por Francelin (2005), que faz remontar a Bachelard as raízes da epistemologia da complexidade, desenvolvida por Morin. É bem sabida a grande influência de Bachelard no pensamento contemporâneo francês, especialmente a partir de autores como Georges Canguilhem, Michel Foucault, Louis Althusser e Pierre Bourdieu; (BARBOSA, 1996) entretanto, o nome de Morin geralmente não é listado entre estes. Iniciamos este ensaio, portanto, partindo das contribuições de Francelin (2005) e acreditando que, devido à fertilidade do tema, este ainda merece maior desenvolvimento.
Bachelard pensa a complexidade O tema da complexidade é abordado por Bachelard em dois aspectos, que podem ser distinguidos como a complexidade do real e a complexidade da filosofia da ciência. O primeiro tem uma presença marcante em sua obra e aparecerá apenas pontualmente em Morin. O segundo não ocupa um lugar central em sua epistemologia, mas reaparecerá como o principal eixo da obra de Morin. Antes de adentrarmos na questão da complexidade do real, vale um comentário sobre algumas dualidades que aparecem no pensamento epistemológico de Bachelard, que são, em termos gerais, a mesma dualidade sob diferentes denominações. Ele opõe o racional ao real, e diz que, enquanto o racional parte do simples, o real é caracterizado pela complexidade. Esta oposição toma formas variadas ao longo de sua escrita, e podemos expor aqui algumas: racional x real, pensamento x realidade, espírito x mundo, geral x pormenor, regra x exemplo etc. Em um dos pólos, encontram-se o racional, o pensamento, o espírito,
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as leis gerais, as regras, enquanto no outro pólo estão o real, o pormenor, a minúcia, o detalhe, a precisão, os exemplos, casos particulares. E nesse panorama se dá o movimento de aproximação do racional ao real, do simples ao complexo. (BACHELARD, 2004) A questão da complexidade do real, em Bachelard, já está plenamente elaborada no Ensaio sobre o conhecimento aproximado, sua tese de doutorado, defendida em 1927, e no Capítulo 7, “As leis aproximadas e os diversos problemas da simplificação na física”, Bachelard (2004) trata o tema com maior atenção. As leis aproximadas são o produto justamente do movimento do racional em direção ao real, que caracteriza a ciência, a qual parte das leis gerais, que se aproximam do real ao se “complicarem”: Os métodos de medida aceitam de imediato os objetos em sua complexidade e procuram esgotá-la no pormenor. As grandes leis científicas, por sua vez, começam nos pontos de vista a priori; ao se complicarem é que pretendem encontrar a complexidade do real. (BACHELARD, 2004: p. 95)
É dessa maneira que a ciência e suas leis vão tornando-se mais elaboradas, introduzem-se novos postulados e as relações tornam-se complexas, de modo que esta ciência “nunca será uma ciência de objetos, mas uma ciência de relações”. (ibid.: p. 183) Aproximando-nos do real, vemos que “a minúcia anda junto com a complexidade das relações. O real parece tornar-se cada vez mais solidário consigo mesmo quando se levam em conta todas as suas ligações”. (ibid.: p. 249) E Bachelard diz, ainda, que ao aprofundar a análise do real, “parece que lhe infligimos uma espécie de desmaterialização metafísica” e, se tomávamos antes a estabilidade como garantia da realidade, que segurança teríamos agora, se pergunta, diante do “infinito da complexidade unido à extrema mobilidade do infinitamente pequeno?”. (ibid.: p. 258) É a simplificação, portanto, que está na base da coerência e inteligibilidade de nossos esquemas racionais, e que pode levar ao engano de atribuir ao real uma natureza simples. É com relação a isto que Bachelard expressa sua surpresa: “E há quem se admire da simplicidade dos resultados depois de ter sido efetuada essa audaciosa simplificação na base do raciocínio!”. (ibid.: p. 111) A idéia de uma complexidade da filosofia da ciência será desenvolvida por Bachelard (1968) a partir de O novo espírito científico, de 1934, cuja introdução traz o título “A complexidade essencial da filosofia científica”. Ali, ele expõe os aspectos gerais de sua concepção de filosofia da ciência, a começar pelo debate entre racionalismo e realismo, ao qual Bachelard propõe uma superação, afirmando que não se pode tomar um dos lados, em absoluto, mas que qualquer filosofia da ciência deve agregar o diálogo entre o racional e o real. Expõe, também, a importância que a aplicação tem para a filosofia da ciência, que só a partir da confrontação com a sua aplicação experimental pode ser compreendida, ideia que seria desenvolvida mais amplamente em 1949, com O racionalismo aplicado. (BACHELARD, 1977) Dando continuidade à introdução de sua obra, Bachelard (1968) aborda a questão da objetivação. Para ele, a objetividade das ciências não é algo dado, mas algo a ser conquistado.2 A questão só pode ser compreendida como um movimento, o movimento de objetivação. Assim, explica Barbosa (1996: p. 112): 2 Cf. BARBOSA (1996), “A conquista da objetividade”, p. 89-132.
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Em Bachelard, o termo objetividade é substituído pelo termo objetivação. Como, para ele, não é possível haver uma coincidência entre o pensamento e a realidade e como, entretanto, na ciência, o objeto é construído, é a solidariedade entre o método e a técnica que realiza a objetivação.
Bachelard (1968) critica a idéia de unidade da ciência e afirma que “desde que o objeto se apresente como um complexo de relações é preciso apreendê-lo por métodos múltiplos”. (p. 18) E aqui reaparece o tema da complexidade: Se o real imediato é um simples pretexto do pensamento científico e não mais um objeto de conhecimento, será preciso passar do como da descrição ao comentário teórico. Esta explicação prolixa surpreende o filósofo que desejaria sempre que uma explicação se limitasse a desdobrar o complexo, a mostrar o simples no composto. Ora, o verdadeiro pensamento científico é metafisicamente indutivo; conforme mostraremos várias vêzes, êle lê o complexo no simples, diz a lei a propósito do fato, a regra a propósito do exemplo. (BACHELARD, 1968: p. 14-5)
Se bem entendemos a prosa bachelardiana, o “verdadeiro espírito científico” é uma referência ao seu “novo espírito científico”, ao qual ele contrapõe, no trecho, o espírito cartesiano. Desdobrar o complexo, “mostrar o simples no composto”, é uma referência às regras ou preceitos cartesianos expostos no Discurso do método, de 1637; (DESCARTES, s/d) a segunda regra refere-se justamente a essa decomposição, à divisão, à análise, e, uma vez que se tenha chegado aos objetos simples, a terceira regra recomenda a composição — partir dos objetos simples aos compostos. Poderemos então nos perguntar se a epistemologia cartesiana, inteiramente apoiada sôbre a referência às idéias simples, pode bastar para caracterizar o pensamento científico presente. Veremos que o espírito de síntese que anima a ciência moderna tem, ao mesmo tempo, uma bem outra profundidade e uma bem outra liberdade que a composição cartesiana. (BACHELARD, 1968: p. 22)
Esta síntese, que não pode ser igualada à composição cartesiana, deve ser compreendida no cerne da própria complexidade: “Que se ponha então uma vez mais em face desta epistemologia cartesiana o ideal de complexidade da ciência contemporânea; que se lembrem as múltiplas reações do nôvo espírito científico contra o pensamento assintáxico!”. (ibid.: p. 127) No sexto capítulo de seu livro, então, Bachelard apresentará a sua epistemologia nãocartesiana, que tomará a simplicidade cartesiana como principal alvo de críticas: Assim, falando de uma epistemologia não-cartesiana, não é sobre a condenação das teses da física cartesiana, ou mesmo sôbre a condenação do mecanicismo cujo espírito permanecia cartesiano, que pretendemos insistir, mas antes sôbre uma condenação da doutrina das naturezas simples e absolutas. (ibid.: p. 125)
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E continua as suas críticas à doutrina da simplicidade: Na realidade, não há fenômenos simples; o fenômeno é um tecido de relações. Não há natureza simples, nem substância simples; a substância é uma contextura de atributos. Não há idéia simples, porque uma idéia simples, como bem viu Dupréel, deve ser inserida, para ser compreendida, num sistema complexo de pensamentos e experiências. (ibid.: p. 130)
Como vemos, os fenômenos, os objetos, as naturezas, as substâncias, são permeados pela complexidade e pelas inter-relações, o que exigirá da ciência estas mesmas características. Em A formação do espírito científico, de 1938, ao comentar sobre o fazer científico e um de seus obstáculos epistemológicos, a “experiência primeira”, Bachelard (1996: p. 51) afirma: Tal teoria da racionalização discursiva e complexa tem, contra si, as convicções primeiras, a necessidade de certeza imediata, a necessidade de partir do certo e a doce crença na recíproca, que pretende que o conhecimento do qual se partiu era certo.
E, mais adiante, em outro trecho, após comentar a necessidade de uma psicanálise do conhecimento, no sentido de buscar a objetividade, Bachelard diz que essa pedagogia apurada “exigiria sociedades científicas complexas, sociedades científicas que, além do esforço lógico, fizessem um esforço psicológico”. (ibid.: p. 299). Em A filosofia do não, de 1940, veremos Bachelard (2009) formular as noções de racionalismo complexo e racionalismo dialético, para caracterizar o maior aprimoramento a que as ciências haviam chegado, e reúne estas noções sob a designação de surrationalisme.
Morin e a epistemologia da complexidade Morin reconhece em Bachelard, de fato, o pensamento da complexidade: “[…] houve um filósofo que falou da complexidade e, na minha opinião, muito profundamente: foi Gaston Bachelard em O Novo Espírito Científico”. (MORIN apud FRANCELIN, 2005: p. 106) Entretanto, afirma Francelin, (2005) “pode-se dizer que foi através de Morin que o pensamento complexo se desenvolveu”. (p. 107) O próprio Morin apresenta a sua proposta epistemológica num movimento de superação da epistemologia clássica, agregando contribuições de Bachelard e Piaget: A epistemologia complexa terá uma competência mais vasta que a epistemologia clássica, sem todavia dispor de fundamento, de lugar privilegiado, nem de poder unilateral de controle. Estará aberta para certo número de problemas cognitivos essenciais levantados pelas epistemologias bachelardiana (complexidade) e piagetiana (a biologia do conhecimento, a articulação entre lógica e psicologia, o sujeito epistêmico). (MORIN, 1999: p. 34-5)
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Refere-se, de fato, a uma “crise dos fundamentos”, e coloca em jogo a complexidade do real, que fora abordada de modo mais amplo por Bachelard: De toda maneira, na crise dos fundamentos e diante do desafio da complexidade do real, todo conhecimento hoje necessita refletir sobre si mesmo, reconhecer-se, situar-se, problematizar-se. A necessidade legítima de todo cognoscente, doravante, seja quem for e onde estiver, deveria ser: não há conhecimento sem conhecimento do conhecimento. (ibid.: p. 37)
É diante dessas questões, portanto, que Morin afirma a necessidade e importância da epistemologia – o conhecimento do conhecimento. Para conceber o conhecimento do conhecimento, Morin (1999) traz contribuições de diversos campos, agregando variadas perspectivas para se pensar o conhecimento. Uma delas é uma perspectiva neurobiológica, que toma o cérebro como aparelho que dá suporte às atividades do espírito: A originalidade do aparelho neurocerebral do homem, em relação ao de seus predecessores, consiste em dispor de uma complexidade organizacional que lhe permite desenvolver e transformar as computações em “cogitações” ou pensamento, através da linguagem, do conceito e da lógica, o que exige um campo sociocultural. (ibid.: p. 98)
Ele refere-se às “computações”, num nível mais elementar, em alusão às metáforas computacionais que se tornaram populares na tentativa de compreender as atividades cognitivas; em seguida, em um maior nível de complexidade, refere-se a propriedades emergentes, as “cogitações”, que passarão a demandar uma compreensão própria de campos como a psicologia, a lingüística, a sociologia e a antropologia. Vale observar, aqui, que vemos também em Bachelard uma preocupação semelhante, no sentido de recorrer a outros campos para compreender o fazer científico. Em primeiro lugar, com a psicologia do conhecimento científico, tema que atravessa suas reflexões epistemológicas, e com a psicanálise, que exerceu forte influência em seu pensamento;3 (BARBOSA, 1996) em segundo lugar, no nível sociocultural, Bachelard fala da cidade científica (cité scientifique), que estabelece as condições da produção científica; (ibid.)4 em terceiro lugar, faz alusões, bastante esporádicas, a aspectos neurológicos relacionados ao conhecimento — mais como um recurso literário, assim poderíamos dizer —, como num trecho onde diz que o prazer da curiosidade é “o mínimo de afetividade necessário para dar impulso à energia nervosa do conhecimento”. (BACHELARD, 2004: p. 248-9) Morin continua: Assim, lidamos com determinações bi-hemisféricas, portadoras de infradeterminações (biossexuais) e de sobredeterminações (socioculturais); 3 Bachelard (1996) fala de um inconsciente do espírito científico, um inconsciente a ser psicanalisado. 4 “É a cidade científica que vai constituir as bases da ciência. O sujeito racional pertence a uma cidade científica, ele deve respeitar as normas da cité. Em relação ao conhecimento científico, não tem sentido falar do sujeito individual.” (BARBOSA, 1996: p. 77-8)
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esse complexo de determinações, que se reforçam ou contrariam, variando segundo os indivíduos e as culturas, inscreve-se no mais íntimo e mais pessoal de nosso conhecimento. (MORIN, 1999: p. 113-4)
Desse modo, sua epistemologia complexa acolhe o postulado freudiano de múltiplas determinações e serve-se de uma grande diversidade disciplinar. Freud havia cunhado o termo “sobredeterminação” para referir-se justamente a uma forma de determinação não-linear, complexa. O conceito, apresentado a Breuer em 1893, viria a ser empregado largamente depois por autores como Bachelard, Althusser e Bourdieu. (COUTINHO, ALMEIDA-FILHO & CASTIEL, 2010) Morin, como vemos no trecho citado, também se apropriou do termo, remoldando seu sentido. Um dos desdobramentos do pensamento complexo de Morin insere-se na reflexão sobre a ética, no sexto volume do seu livro O Método: “A ética não pode escapar dos problemas da complexidade. Isso nos obriga a pensar a relação entre conhecimento e ética, ciência e ética, política e ética, economia e ética”. (MORIN, 2007: p. 15) Uma vez que as ações éticas, segundo as quais devemos orientar nossa conduta, têm no conhecimento um de seus parâmetros reguladores, será preciso incorporar a incerteza e a contradição para conceber uma ética complexa: (ibid.: p. 64) O pensamento complexo alimenta a ética. Ao religar os conhecimentos, orienta para a religação entre os seres humanos. O seu princípio de não separação orienta para a solidariedade.
O pensamento complexo depara-se com a fratura do saber, encontrando na “religação” o meio de corrigir este erro. Na ética complexa, por sua vez, o tema da religação parece encontrar o seu mais vívido habitat: “A ética é, para os indivíduos autônomos e responsáveis, a expressão do imperativo da religação”. (ibid.: p. 36) São bem diversas as imagens com que Morin vem expressar a interligação dos saberes, dos acontecimentos, das coisas do mundo, tais como a ideia de rede e a de tecido, e a vemos agora surgir sob a forma de “um lençol subterrâneo”, quando Morin fala como a ética atinge-nos a partir dos âmbitos do indivíduo, da sociedade e da espécie: [O imperativo da ética] origina-se numa fonte interior ao indivíduo, que o sente no espírito como a injunção de um dever. Mas ele provém também de uma fonte externa: a cultura, as crenças, as normas de uma comunidade. Há, certamente, também uma fonte anterior, originária da organização viva, transmitida geneticamente. Essas três fontes são interligadas como se tivessem um lençol subterrâneo em comum. (ibid.: p. 19)
A interligação destes três âmbitos da ética possibilita sua unificação, ao mesmo tempo que sua diversidade, e aqui Morin lança mão da imagem arbórea, para ilustrar esta conformação: […] a ética complexa é por ser, ao mesmo tempo, una e múltipla. Unifica no seu tronco comum e diversifica nos seus ramos distintos, auto-ética,
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sócio-ética, antropoética. Nessa unidade/pluralidade, a ética complexa ordena que assumamos eticamente a condição humana. (ibid.: p. 195)
Bachelard e Morin: uma apreciação crítica Esperamos ter deixado claro que a epistemologia de Bachelard não só antecipa a questão da complexidade, como a inscreve no cerne das suas críticas à epistemologia cartesiana e, desse modo, também a inscreve no cerne da sua epistemologia não-cartesiana. Tendo isto em mente, e reconhecendo que a filosofia da ciência possui uma “complexidade essencial”, (BACHELARD, 1968) não faria sentido que tardássemos a propor uma epistemologia da complexidade. E, ainda assim, se Bachelard não usa a complexidade para caracterizar sua epistemologia, fala de um “racionalismo complexo”, filosofia tributária da física relativista. (BACHELARD, 2009) Uma distinção entre os dois autores que abordamos aqui pode ser observada com certa clareza, e refere-se aos campos epistemológicos sobre os quais recai a atenção de ambos. A epistemologia bachelardiana atém-se, basicamente, à física e à química, além da matemática. É certo, porém, que seu grande interesse pela psicanálise e pela psicologia do conhecimento científico, enquanto recursos epistemológicos, além de sua incursão na poesia e na literatura, em sua obra noturna, fazem parecer injusta uma caracterização do seu pensamento a partir das ciências naturais. Entretanto, são estas o objeto de sua epistemologia, que toma como modelo evolutivo os desenvolvimentos da física das primeiras décadas do século XX. Diferentemente da concepção evolutiva bachelardiana, em Morin, a relação entre os diversos campos do saber se dá no sentido de uma religação, a qual deve corrigir uma fratura do saber. Isto é visto no modo como Morin procura agregar perspectivas e contribuições dos diferentes campos para compreender o conhecimento do conhecimento, ou qualquer outro assunto sobre o qual se detenha a sua atenção. Desse modo, faz um diálogo mais amplo entre as ciências biológicas e as ciências humanas, ou ciências sociais, não priorizando as ciências naturais estudadas por Bachelard, as quais são abordadas apenas na medida em que os fenômenos físicos subjazem aos fenômenos biológicos e sociais, que trazem maiores possibilidades de pensar questões que concernem ao humano. Podemos considerar Morin, de fato, um pensador humanista. Boaventura de Sousa Santos, (1989) que trabalha com a distinção entre as ciências naturais e as ciências sociais, dando ênfase a estas últimas e procurando reposicioná-las num cenário epistemológico dominado pelas ciências naturais, traz uma apreciação crítica da epistemologia bachelardiana que nos parece produtiva. Referindo-se a um movimento de desdogmatização da ciência, e procurando submeter a epistemologia a uma reflexão hermenêutica, Santos (1989) parte da construção epistemológica de Bachelard, por ter sido esta a que exerceu maior influência nos últimos anos e por representar o máximo de consciência dos privilégios da ciência, manifestando também os limites dos pressupostos sobre os quais se assenta, e criando, assim, mais opções à sua superação. De fato, na epistemologia bachelardiana, ao mesmo tempo em que temos uma visão crítica aguçada das características da ciência, temos também a manutenção de certos privilégios e de uma certa vaidade da ciência, na medida em que Bachelard procura preservar seus contornos e seu valor. Em parte da sua obra, por ele próprio denominada
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“noturna”, Bachelard nos apresenta os antípodas da ciência – a poesia, a imaginação, o devaneio –, e faz questão de afirmar a separação entre os dois domínios, preservando o valor de ambos. Se, no entanto, entre ciência e poesia, não há uma relação de dominação, um desequilíbrio de forças, no domínio científico quem reina é a física – e, mais especificamente, a física revolucionária do início do século XX –, ao lado de sua rainha, a química. Este reinado se constitui a partir da concepção de progresso científico, que leva à atribuição do mais alto valor à nova física que nos referimos, que passa a ocupar o lugar de modelo evolutivo. Isto deve tornar claras as complicações que estão manifestas na epistemologia de Bachelard, quando procuramos recursos, como o faz Santos, (1989) para pensar as ciências sociais, ou, poderíamos dizer, as humanidades. Entre ciência e poesia, as ciências sociais, ou ciências humanas, geralmente preferem reclamar um lugar entre as ciências, mesmo que o domínio da física as relegue a uma condição subalterna. É diante deste cenário que Santos refere-se a um “etnocentrismo epistemológico”, (ibid.: p. 63) denunciando o domínio das ciências naturais na reflexão epistemológica, que vinha caracterizando as ciências sociais a partir daquelas. Santos (1989) aponta, também, que a concepção de ciência presente na epistemologia de Bachelard reduz a dimensão pragmática da reflexão epistemológica. Esta preocupação com a práxis se inscreve numa concepção de transição entre paradigmas científicos, em que o paradigma vindouro caracteriza-se pela aproximação entre a ciência e o senso comum, de modo que, enquanto a ciência instrui o senso comum, este a envolve com o seu senso prático, resultando, assim, numa realização da phronesis aristotélica, isto é, sabedoria prática. Desse modo, temos, com Santos, a construção de uma “epistemologia pragmática”. (ibid.: p. 29) Morin (2007: p. 78) se refere, em termos semelhantes, à necessidade de uma “democracia cognitiva”: A ciência é um assunto sério demais para ser deixado unicamente nas mãos dos cientistas. Sabemos também que a ciência se tornou perigosa demais para ser deixada nas mãos dos homens de Estado. […] Daí a necessidade e a dificuldade de uma “democracia cognitiva”.
Le Moigne, (2007) ao discorrer sobre a “inteligência da complexidade”, em consonância com o pensamento complexo de Morin, também ressalta a importância da pragmática, juntamente com a ética. Se, anteriormente, no paradigma da ciência moderna, o conhecimento tinha um papel primordial, ao paradigma da complexidade cabe unir a epistêmica, a pragmática e a ética, sem que o saber seja tomado como fundamento, mas de modo que cada campo de reflexão sirva de apoio aos demais. Podemos contrastar esta concepção de Le Moigne, compartilhada por Morin, (2007) com o desdém de Bachelard pelo pragmatismo, filosofia a qual Santos (1989) tem em muito boa conta.
Considerações finais Desde a deflagração da idéia de complexidade como inerente às ciências, realizada por Bachelard, até os desenvolvimentos propostos por Morin e outros epistemólogos,
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vemos um movimento que, em geral, procura delinear uma renovação e superação daquilo que já nos habituamos a chamar de paradigma, seja referindo-se a um novo espírito científico, um paradigma da complexidade ou uma ciência pós-moderna. Dentre os autores que refletem sobre esta questão, encontraremos semelhanças e divergências, sendo que aqui procuramos ressaltar alguns pontos de contato entre Bachelard e Morin, não deixando de apontar também pontos de vista divergentes. Assim como Francelin, (2005) Le Moigne (2007) também expressa a ligação que aqui buscamos enfatizar: (p. 117) De hoje em diante, entendamos esta epistemologia não cartesiana que nos restitui, nos termos de G. Bachelard, “o ideal de complexidade da ciência contemporânea”, pela epistemologia da complexidade para exercer a nossa inteligência da complexidade sem primeiro a reduzir ao respeito das únicas prescrições metodológicas imperativas dos quatro princípios do cartesiano Discurso do Método (1637).
Se apontamos aqui a epistemologia da complexidade como ponto de convergência entre Bachelard e Morin, não é por isso, entretanto, que precisamos nos furtar a uma crítica desta denominação. A crítica de Bachelard à simplicidade cartesiana é precisa, e daí ele retira a importância com que provê sua idéia de complexidade. A epistemologia de Morin explora questões bem diversas, orientando-se a partir de princípios variados, os quais não são estritamente representados pela palavra ‘complexidade’, nem se referem necessariamente à complexidade bachelardiana. Noções como a da construção do objeto, delineada por Bachelard e retomada por Le Moigne, que dedica uma atenção especial às epistemologias construtivistas, não estão necessariamente implicadas na noção de complexidade. A importância da pragmática, afirmada especialmente por Santos, (1989) também não se inscreve nesta definição. Independentemente da definição, vemos, sem dúvida, um movimento de mudança nas ciências, nos diferentes tipos de saberes, nas epistemologias. O que talvez precisemos ter em mente é que essa mudança, por ser de fato complexa, necessita de uma avaliação a partir de diferentes perspectivas epistemológicas para ser compreendida, utilizada ou mesmo reavaliada.
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André Santana Mattos é mestrando em filosofia na UFSCar. Bolsista CAPES.
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Elementos ilustrativos (gráficos, tabelas, imagens, etc.) podem ser acrescentados e não serão computados na extensão máxima do texto. Os elementos ilustrativos podem ocupar duas páginas, no máximo. A obtenção dos direitos de imagem e de reprodução está a cargo do autor de cada texto e deve ser encaminhada no prazo de uma semana após a aprovação do texto para publicação. O título do trabalho deve ser centralizado, em negrito, apenas com a primeira inicial em letra maiúscula; o subtítulo (se houver) deve seguir a mesma recomendação. Na linha abaixo do título, deve constar o nome do autor, à esquerda, sem negrito. Junto ao nome do autor, deve constar, entre parênteses, a instituição com a qual tem vínculo, e também o tipo de vínculo, separado por vírgula (no caso de vínculo discente, deverá haver indicação se é em curso de mestrado, doutorado ou pósdoutorado). Em nota de rodapé, o autor deve incluir seu endereço eletrônico para eventuais contatos dos leitores. No transcorrer do texto, deve-se empregar o itálico para termos estrangeiros e títulos de filmes, livros e periódicos. Os títulos de obras audiovisuais e bibliográficas devem ser escritos apenas com a primeira inicial em letra maiúscula. Exemplo sobre filme: “Em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1963), a discussão em torno...”. Ressalva: a menção ao diretor/autor e ao ano deve ocorrer apenas na primeira vez em que a obra é citada. As citações de até três linhas devem contar no corpo do texto (Times New Roman, corpo 12), entre aspas duplas. Com mais de três linhas, devem ser destacadas do corpo do texto, sem aspas, em fonte Times New Roman, corpo 10, espaço simples, com recuo esquerdo de 4 cm. As notas explicativas, numeradas sequencialmente (sobrescritas, com algarismos arábicos), devem constar no final da página (rodapé), em Fonte Times New Roman, corpo 10, alinhamento justificado, mantendo-se espaço simples dentro da nota e entre as notas. As citações bibliográficas devem ser indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com os seguintes dados, separados por vírgula: sobrenome do autor em letra maiúscula, data da publicação, abreviatura de página, número da(s) página(s) – Ex.: (PASOLINI, 1975, p. 323-324). Elementos ilustrativos (gráficos, tabelas, imagens etc.) devem ser inseridos no texto, logo após serem citados, contendo a devida explicação em sua parte inferior (legenda), se necessário. As referências bibliográficas devem ser completas e constar no final do texto, obedecendo às normas da ABNT em uso. Não numerar as obras, empregar alinhamento justificado e espaçamento 1, mantendo-o entre uma obra e outra. Em caso de tradução, citar o tradutor, logo depois do título da obra. Ver os exemplos, a seguir.
livros e capítulos de livros: MANTOVANI, B. et al. Cidade de Deus: o roteiro do filme. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. PASOLINI, P.P. Abjurei a trilogia da vida. In: Últimos escritos. Tradução de Manuel Braga da Cruz. Coimbra: Centelha, 1977, p. 24-29. periódicos: AMELIO, G. Birth and death of a nation. Cineaste, New York, v. XXVIII, no 1, winter 2002, p. 19-20. MENA, F. Sob o sol do Recife. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23 dez. 2009. Ilustrada, Caderno E, p. 1. sites: VISCONTI, L. Rocco, un seguito di La terra trema. Disponível em: XXXXXXX. Acesso em: 8 dez. 2007. obras audiovisuais (por ordem alfabética) BAILE PERFUMADO. Lírio Ferreira; Paulo Caldas. Brasil, 1997, filme 35 mm. MANGUE NEGRO. Rodrigo Aragão. Brasil, 2008, video. Não serão analisados textos fora do padrão da revista. RESPONSABILIDADE: Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de responsabilidade do(s) autor(es).
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