Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 14. Número 26-27 (Jan-Dez/2012). São Carlos: UFSCar, 2012. Semestral ISSN 1517-0845 1. Humanidades - Periódicos. 2. Artes - Periódicos. I. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. CDU 168.522 (05)
ANO 14 – NÚMEROS 26-27 – JAN-DEZ/2012 CECH - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
Revista Olhar Ano 14 – Números 26-27 – Jan-Dez/2012 Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Administração Superior Prof. Dr. Targino de Araújo Filho Reitor Prof. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior Vice-Reitor Profa. Dra. Wanda Hoffmann Diretora do CECH Prof. Dr. Eduardo Baioni Vice-Diretor do CECH Coordenação Editorial Editores Bento Prado Jr. (in memoriam) Josette Monzani Júlio César de Rose CONSELHO EDITORIAL Conselho Executivo Antônio Zuim – DEd (UFSCar) Clarice Cohn – DA (UFSCar) João Roberto Martins Filho – DCSo (UFSCar) Lucia Williams – DPSI (UFSCar) Marina Cardoso – DA (UFSCar) Rejane Rocha – DL (UFSCar) Richard Simanke – DFMC (UFSCar) Suzana Reck Miranda – DAC (UFSCar) Tânia Pellegrini – DL (UFSCar) Wolfgang Leo Maar – DFMC (UFSCar) Conselho Consultivo Ana Paula dos Santos Martins Arley Moreno (Unicamp) Arlindo Machado (PUC/USP) Benedito Nunes (UFPa) in memoriam Bóris Schnaiderman (USP) Bruno Pucci (UNIMEP) Carlos Alberto Ribeiro de Moura (USP) Cecília Almeida Salles (PUC) Celso Castro (FGV) Cibele Rizek (USP – SC) Débora M. Pinto (UFSCar) Diléa Z. Manfio (UNESP – Assis) Fernando da Rocha Peres (UFBa) Fernão Ramos (Unicamp) Flavio Loureiro Chaves (UFRS) Franklin Leopoldo e Silva (USP) Gilmar de Carvalho (UFC) Haroldo de Campos (in memoriam)
Irene Machado (USP) Isabel Limongi Batista (UFPR) Ismail Xavier (USP) Jerusa Pires Ferreira (USP/PUC) João Carlos Salles (UFBa) Jorge de Almeida (USP) José Euclimar X. de Menezes (UC – BA) José Leon Crochik (USP) Lucíola Paixão Santos (UFMG) Luís Cláudio Figueiredo (PUC) Luís Roncari (USP) Luiz R. Monzani (Unicamp) Manoel Carlos Mendonça Filho (UFSE) Marcius Freire (Unicamp) Marcos S. Nobre (Unicamp/Cebrap) Maria Aracy Lopes da Silva (in memoriam) Maria das Graças de Souza (USP) Maria de Lourdes Siqueira (UFBa) Maria Helena Pires Martins (USP) Maria Irma Adler (Unicamp) Maria Lúcia Cacciola (USP) Maria Magdalena Cunha Mendonça Maria Ribeiro do Valle (UNESP – Araraquara) Maria Sílvia Carvalho Franco (USP/ Unicamp) Marilena S. Chauí (USP) Mauro Pommer (UFSC) Nara Maria Guazelli Bernardes (PUC – RS) Newton Bignotto (UFMG) Oswaldo Giacóia Jr. (Unicamp) Oswaldo Truzzi (UFSCar) Paulo Micelli (Unicamp) Renato Mezan (PUC/Sedes) Roaleno Ribeiro Amâncio Costa (Fac. de Belas-Artes – Salvador) Roberto Romano (Unicamp) Rubens Machado (USP) Saulo de Freitas (UFJF) Sérgio A. Franco Fernandes (UFRB) Toshie C. Nishio (UFSCar) Urânia Tourinho Peres (SPsiBa) Zélia Amador de Deus (UFPa) Consultores Internacionais Aleksandra Jablonska (UNAM – UPN – México) Catherine L. Benamou (University of Michigan – USA) Esther Jean Marteson (Londres)
Jorge Mészáros (Sociologia – Inglaterra) José Serralheiro (Página da Educação – Portugal) Sônia Stella Araújo Oliveira (Universidad Autônoma del Estado de Morelos – Cuernavaca/México) Vania Schittenhelm (pesquisadora – Londres) Assessores Márcia Patrizio dos Santos Mark Julian Cass Massao Hayashi Jornalista responsável Hugo Leonardo Castilho dos Reis Equipe Técnica Redator-Assistente: Hugo Leonardo Castilho dos Reis Projeto Gráfico: Vítor Massola Gonzales Lopes Editoração e Arte Final: Vítor Massola Gonzales Lopes Capa: Rafael Chimicatti Impressão: Departamento de Produção Gráfica – UFSCar Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es). Permitida a reprodução parcial ou integral dos textos, desde que mencionada a fonte. Permuta e solicitação de assinaturas: CECH/UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
Editorial
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econhecida já como uma área autônoma e produtiva entre os pesquisadores e críticos, as literaturas africanas de língua portuguesa tem sido o alvo de importantes reflexões e objeto de cuidadosos e relevantes investigações na atualidade. Temas como a viagem, a alteridade, a mestiçagem, a memória, a oralidade, os diferentes patrimônios culturais imateriais e as subjetividades de gênero, dentre outros, tem figurado na pauta das discussões em torno dos distintos sistemas literários que compõem o continente. Percebendo a importância destes estudos e sua repercussão nos meios intelectuais, a revista Olhar deste ano abre um espaço frutífero de diálogos e interrogações com diferentes pesquisadores, oriundos de diferentes núcleos de pesquisa e participantes de distintas gerações na história da consolidação da área no Brasil. Da mesma forma como múltiplo e rico é o continente, aqui, também, as perspectivas analíticas são diversificadas, desde uma abordagem mais ampla e panorâmica até uma centralização mais detida sobre um aspecto específico. Em quase todos, em vista disso, percebe-se uma espécie de viagem pelas diferentes literaturas e seus autores, e a riqueza temática que têm a oferecer aos olhares investigativos. Como é de costume na composição do elenco autoral de ensaios inseridos na revista, revezam-se, aqui, pesquisadores recentes da área, já visivelmente interessados – basta perceber aquilo que começam a produzir –, colocando-se na condição mesmo dos “mais novos”, daqueles que, no desenvolvimento do seu pensar, não recusam e não abrem mão de dialogar com os investigadores que há mais tempo se dedicam aos estudos literários dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). São estes os nossos “mais velhos”, que aqui também comparecem para dar uma contribuição inconteste das suas linhas de pensamento, a quem também, de certa forma, homenageamos como reconhecimento sincero pela generosidade com que enriquecem o nosso Dossiê de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Capa: Rafael Chimicatti
http://www.behance.net/chimicatti https://picasaweb.google.com/chimicatti
Aos leitores, desejamos que também compartilhem um pouco desta viagem múltipla e rica das Áfricas aqui apresentadas. E, sem querer roubar o prazer, esperamos que a experiência se constitua um pouco daquilo que Mia Couto, escritor moçambicano, muito sabiamente, afirmou sobre o continente africano: uma viagem de encantamento sobre esta terra marcada pelas diferenças e pelas mestiçagens, “que a tornam mais diversa e, por isso, mais rica”. Ainda nesta edição, a Olhar, na sequência de sua tradição em contemplar os diálogos interdisciplinares, traz artigos e resenha nos quais a literatura e o teatro, a filosofia e a psicanálise, a filosofia e a psiquiatria, o cinema e a sociedade, a pedagogia e a política, por exemplo, encontram-se mesclados em debate. Ao lado destes, contamos ainda com a presença das belas fotos de Rafael Chimicatti e João Henrique Telarolli Teresani a pontuar uma vez mais o convívio do verbal e do não-verbal neste espaço. Busca-se na Olhar estabelecer per si uma espécie de rito de atualização de ideias e ideais intra e intermuros acadêmicos, e, nesse agir, tem-se procurado difundir os saberes e resguardar nossa humanidade (tão em crise nos dias atuais), na direção do dizer sobre a casa de G. Bachelard: A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. (A poética do espaço)
Assim, apesar das dificuldades inerentes à manutenção de um periódico acadêmico, a Olhar – já em seu 14o ano – continua sua trilha na qual vocês, colaboradores e leitores, são parceiros incondicionais. Só temos a desejar novamente, portanto: boa leitura e boa viagem para todos! Jorge Valentim (editor convidado, organizador do dossiê de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa)
Josette Monzani e Julio César de Rose (editores da Olhar)
Sumário DOSSIÊ LITERATURAS AFRICANAS 10
“A beleza do mundo é a diversidade”: representações do feminino na ficção de Paulina Chiziane Danielle Danelli
26
(Re)construindo passados: memória e identidade em O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa Emily de Carvalho Pinto
40
O século XX e os influxos de sistematização na literatura angolana (contribuição para uma história da literatura angolana) Inocência Mata
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“Ouvir e compreender a música do mar”: cadências e insularidades na ficção cabo-verdiana – uma leitura de A verdadeira dimensão, de Vasco Martins Jorge Valentim
66
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Sujeitos em viagem pela alteridade Laura Cavalcante Padilha
Aporias em Cabo Verde: masculinidade e justiça social em Marginais, de Evel Rocha Mário César Lugarinho
86
97
José Eduardo Agualusa: um vendedor de passados Renata Flavia da Silva
Literatura cabo-verdiana em língua portuguesa e processos identitários Simone Caputo Gomes
Sumário 116
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141
149
162
176
As personagens de Pirandello: memória, história e narrativa Berilo Luigi Deiró Nosella
O desfecho do descobridor Ana Cristina Falcato
Nietzsche e a “história natural da moral” Pedro Paulo Pimenta
Charles Robert Anon & Alexander Search: filosofia e psiquiatria Cláudia Souza e Nuno Ribeiro
Heidegger, Freud e uma visita ao humanismo Vitor Orquiza de Carvalho
Lugares artísticos improváveis: olhares cinematográficos para banheiros e suas complexidades psicossociais Ludmila Helena Rodrigues dos Santos
191
Traços da solidão: análise do processo de criação da personagem no curta-metragem Tempestade Daniela Ramos de Lima
205
O trabalho interdisciplinar visando à construção de valores na prática pedagógica: limites e possibilidades Jéssica Aline Tardivo, Ana Rita Brásio Simões Corsato, Anaely Kamilla Vaccari Ribeiro, Eliane Nicolau Silva, Thalita Quatrocchio Liporini
234
Educação do funcionalismo público em tempos de “Brasil para todos” Manoel Mendonça Filho
257
A irrealidade no cinema contemporâneo. Matrix & Cidade dos Sonhos Josette Monzani
DOSSIÊ
LITERATURAS AFRICANAS
“A beleza do mundo é a diversidade” representações do feminino na ficção de Paulina Chiziane DANIELLE DANELLI*
Resumo: Neste artigo, propormos uma análise do romance O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane, através de uma leitura cujo foco principal se concentra na percepção de traços pós-coloniais. Nosso objetivo será demonstrar como a narrativa representa o papel da mulher na sociedade moçambicana, discutindo dois importantes temas culturais: a poligamia e a mestiçagem. Neste sentido, procuraremos mostrar como a escritora Paulina Chiziane, sendo uma mulher moçambicana negra, (re)escreve em sua narrativa o papel da mulher, sem abrir mão de criticar determinadas práticas tradicionais que minam os sujeitos femininos. PALAVRAS-CHAVE: ESCRITA FEMININA, POLIGAMIA, MESTIÇAGEM, IDENTIDADE “The beauty of the world is the diversity”: representations of women in the fiction of Paulina Chiziane Abstract: In this article, we propose an analyse of O alegre canto da perdiz, a novel by Paulina Chiziane, through a reading with a principal focus on the perception of post-colonials aspects. Our objective will be to demonstrate how the narrative depicts the role of the women in the Mozambican society, discussing two important cultural themes: the polygamy and the “mestiçage”. In this way, we will show how Paulina Chiziane, being a black Mozambican woman, (re)writes in her narrative the role of the woman and criticizes traditional practices that undermine the female subjects. KEYWORDS: FEMALE WRITTING, POLYGAMY, MESTIÇAGE, IDENTITY
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odemos determinar que o romance O Alegre Canto da Perdiz, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, ponto central de nossas reflexões, relata de forma ímpar questões pertinentes da sociedade moçambicana. É evidente que seu ponto forte é a questão do papel que a mulher exerce dentro do cenário africano, denunciando as diversidades existentes entre os sexos. Mas, além disso, apresenta-nos de forma sagaz o contexto histórico, político e social em que a mulher moçambicana (e africana) está inserida, assim como toda a problemática envolvida nessas questões, e a função destas dentro de um universo cosmogônico.
Pode-se tirar desse romance, a incontestável denúncia de uma sociedade que foi, incessantemente, coagida por uma cultura dominante, na tentativa de sufocar discursos, transformando estes em periféricos. Sem entrar no mérito da questão de heranças deixadas pelo sistema colonial, é importante destacar que, mesmo que a língua do colonizador seja utilizada na escrita do romance, podemos entender que o mesmo instrumento que antes serviu para reprimir, também serviu e ainda agora serve para denunciar, não só o que aconteceu no período da colonização, mas também o que acarretou após ela. Um destes aspectos a serem apontados é o da hibridização, entre a imagem do colonizador e do colonizado, projetada para dentro de Moçambique no período pós-colonial, que promove, no interior do país, uma certa fragmentação identitária. Esse cenário influencia na literatura que vem, nesse momento, contestar algumas falhas presentes na época atual, buscando uma afirmação da identidade cultural. A escrita histórico-social apresentada por Paulina Chiziane no romance O Alegre Canto da Perdiz mostra que são muito dispares as diferenças existentes em África, no que tange, não só à cultura e à etnia, mas também, e de suma importância, às ideologias que transitam entre o colonial e o pós-colonial, acarretando “problemas das mais variadas ordens, sobretudo, os de ordem familiar, social e afetiva” (VALENTIM, 2009, p. 151). Sendo assim, é difícil encontrar uma resposta única para a questão da identidade em África, daí ser mais pertinente pensar em identidades existentes, uma vez que este continente é tão extenso em tamanho, quanto é em diversidade cultural, étnica, política e social. Nas sábias palavras do escritor moçambicano Mia Couto, em sua palestra “Que África escreve o escritor africano?”, qualquer tentativa de homogeneizar todo um continente marcado pela diferença, pela mistura de raças e pela confluência de etnias, está fadada a um resultado parcial, comprometido e distorcido, pois, para o ficcionista, a “África não pode ser reduzida a uma entidade simples, fácil de entender e de caber nos compêndios de africanistas. O nosso continente é resultado de diversidades e mestiçagens” (2005, p. 60).1 Pensando em diversidades culturais, duas temáticas se destacam com afinco na obra em questão: a poligamia e a mestiçagem. A começar pela poligamia, tornada mais familiar através da cultura muçulmana, vale ressaltar duas diferenças primordiais: a questão do poder aquisitivo do homem e a situação em que a mulher lhe é concedida. Nesta cultura, como bem explica Paulo Granjo (2005, p. 26-27), ao homem, que deseja possuir uma multiplicidade de mulheres, só é permitido fazê-lo se puder sustentá-las de maneira digna e sem diferenciação. As mulheres, apesar de serem escolhidas pelos maridos, são recebidas de maneira nobre, tanto pelo homem, quanto por sua família.
1 Interessante observar que, nos estudos atuais, muitos já começam a relativizar a expressão no plural “Literaturas Africanas de Língua Portuguesa” e começam a preferir expressões designadoras dos sistemas literários em foco, ou seja, Literatura Angolana, Literatura Moçambicana, e assim por diante. Não queremos, aqui, entrar no mérito desta questão, mas é evidente que uma postura como esta acentua mais ainda o caráter das diferenças e das heterogeneidades.
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Interessante observar que, num certo extrato da cultura moçambicana, devidamente representado no romance, acontece um fenômeno justamente contrário: ao homem, mesmo que não tenha poder aquisitivo suficiente, lhe é dado o direito de ter uma gama infindável de esposas, podendo, sim, fazer distinção entre elas. Outra diferença crucial é a mulher vista não como uma esposa, mas como uma moeda de troca por sua própria família. As palavras da personagem Delfina, na passagem a seguir, exemplificam perfeitamente o contexto da mulher moçambicana, que, para sobreviver numa sociedade controlada por um poder masculino, precisa aprender a lidar com situações muito diversas, já que, para tentar se livrar da condição de objeto, ela pode usar a tática do casamento como uma arma a seu favor: Porque o amor não precisa de leitura nem escrita. Parir um filho não exige escola. Agarrar um homem rico é uma questão de táctica e não de matemática. Prender o homem na cama é uma questão de magia e sabedoria. Viver bem é uma questão financeira. (…) O mais importante para uma mulher não é um diploma, mas a sorte na vida e a táctica de caçar um homem que sirva. (…) Na sua terra a mulher é peça que se compra e se vende. Selo de contrato. Moeda de troca. Hipoteca. Multa. Sobrevivência. Ela também foi usada pela própria mãe, na infância distante. Entregue aos brancos das lojas a troco de comida (CHIZIANE, 2008, p. 242-243).
Num primeiro momento, a mulher é vista apenas como um objeto de barganha, algo que seja possível tirar-se proveito, e se não for, é vista como dívida e prejuízo. Baseado neste excerto, também é possível chamar a atenção à posição de aceitação e submissão que a mulher assume frente a essa cultura. É evidente o movimento cíclico que acontece nessa sociedade, a mãe faz com a filha o que foi feito com ela. Ainda que, nesse processo, houvesse ocorrido a amputação de sua alma, não poupa o futuro da filha. Isto poderia ser explicado pela questão da sobrevivência, pois, mesmo que as mulheres sejam “abatidas e subjugadas pelos homens” (ADEDEJI, 2007, p. 412), estar ao lado destes é resistir em uma sociedade patriarcal, permeada por gritantes distinções entre o feminino e o masculino. Mas, um aspecto que chama a atenção nesta atitude da personagem Delfina ao entregar a virgindade da filha, Maria das Dores – aliás, nome por demais significativo, pelo que sofre como vítima de um sistema a que não se ajusta ou aceita – a Simba, seu antigo amante, é a rasura operada nas próprias performances tradicionais, que entendiam o casamento como um evento importante e merecedor de todos os cuidados e atenções na sua realização e celebração. Ora, se levarmos em consideração a prática tradicional, descrita por Sobonfu Some, sobre a união matrimonial em África, poderemos perceber uma nítida ruptura na atitude da personagem Delfina, no momento em que entrega a sua filha, movida por pensamentos bem diferentes daqueles descritos nos ritos de casamento: 12
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Na África, acreditamos que cada um de nós vem para este mundo com um propósito. Eventualmente, esse propósito determina com quem nos relacionamos. Certos propósitos são similares. Outros são muito parecidos. Dentre estes, procuramos a possibilidade de um relacionamento. Selecionar parceiros é tarefa dos anciãos, que, como conhecem todas as pessoas na aldeia e o propósito de cada uma delas, são os mais bem equipados para compreender quem pode combinar com quem na comunidade. Essa tarefa requer grande confiança e põe muita responsabilidade sobre os ombros dos anciãos. Se um casamento não funciona, eles têm de encontrar uma forma de corrigi-los por meio de rituais. (…) Os casamentos não são arranjados ao acaso. Se, por exemplo, unirem duas pessoas cujos propósitos se chocam, elas poderão se matar. Os anciãos têm de analisar se a energia dos dois é compatível, se eles têm possibilidade de conviver em harmonia, se o propósito de vida de um está alinhado com o do outro (SOMÉ, 2003, p. 80-81).
Comparando, portanto, as duas posturas diante da prática do casamento, poderíamos dizer que o intuito de Paulina Chiziane, ao tratar a questão da poligamia em Moçambique, além de questionar o papel e a posição da mulher, com poucas possibilidades de escolha nesse corpo social, a não ser driblar o próprio código vigente, é evidenciar a hipocrisia existente numa sociedade, que permite ao homem conservar várias esposas sem poder sustentar ao menos uma. Isto sem falar na completa despreocupação da personagem Delfina, que leva apenas em consideração a manutenção social da filha, deixando de lado toda uma prática tradicional, talvez, por conta, de sua concentração na comodidade material. A exposição desse problema faz refletir, segundo Patrícia Rainho e Solange Silva, sobre uma “mudança da estrutura social moçambicana e da necessidade que existe de reorganizar essa sociedade, os seus valores e padrões” (2007, p. 525). Outra temática importante a ser destacada é a questão da mestiçagem, nem sempre bem vista por certos estudiosos do continente (os chamados “africanistas”, apontados por Mia Couto no seu já citado texto). Por essa razão, mesmo que houvesse relacionamentos inter-raciais, eles não eram bem vistos ou mesmo aprovados socialmente. Na obra, essa questão é tratada por duas vertentes importantes: o embranquecimento da população (trazendo consigo a possibilidade de ascensão social) e a negação da própria raça. As palavras pensadas de Delfina mesclam, de maneira enfurecida e rancorosa, essas duas concepções: Por culpa da minha mãe que me fez preta e me educou a aceitar a tirania como destino de pobres e a olhar com desprezo minha própria raça. Por culpa do Simba, meu amante e teu marido, que
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me alimentou de feitiços e fantasias destrutivas. Por culpa da natureza que me deu beleza sobre todas as mulheres. Por culpa do José, pobre e preto, que me alimentava de farinha e peixe seco, enquanto eu, Delfina, queria bacalhau e azeitonas. A culpa é do Soares, que me elevou aos céus e me largou no ar. A culpa foi minha. Por ter desejado ser o que jamais poderia ser. A culpa é do mundo, que me ensinou a odiar (CHIZIANE, 2008, p. 44).
Observamos nessa passagem o sentimento de rejeição da personagem quanto à sua raça, posto que esta só traz elementos negativos ao seu destino: pobreza, feitiços e traição. Ou seja, todo o infortúnio vivenciado pela mulher moçambicana se deve ao fato de ter nascido negra. A única esperança dessas mulheres seria o casamento com um branco. Nas palavras de Serafina, agora direcionadas a filha, Delfina, podemos observar a desvalorização da raça negra, perante a ideologia de superioridade do branco, intrínseca na concepção da personagem: – Riqueza no preto é sorte, no branco é destino. Antes um branco pobre que um preto rico. (…) És linda, filha, mereces melhor sorte. És uma negra daquelas que os brancos gostam. Tens lábios gordos com muito tutano, cheios de sangue, cheios de carne. Sobrancelhas fartas como novelos de seda. Dentes de marfim e olhos de gata. Tens o peito cheio e um traseiro de rainha, bem modelados e recheados. Vais desperdiçar todo esse tesouro nas mãos de um preto! (CHIZIANE, 2008, p. 98-99).
Negando a própria etnia e acreditando que as gerações vindouras aspirariam a uma vida mais digna se tivessem a pele mais clara, a fala de Serafina sustenta a teoria de que o embranquecimento da população resultaria em uma melhor expectativa de vida. Assim, ela busca para a filha um casamento inter-racial, enxergando no futuro de Delfina uma salvação para o seu próprio passado. A questão da mestiçagem traz um embate entre gerações, na medida em que, de acordo com Nestor Canclini, “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2008, p. xix). Logo, a cultura local, que antes havia sido sufocada pelo colonizador, poderia correr o risco de também ser apagada agora pelas relações interraciais. No caso do romance, a relação se daria entre uma mulher negra, naturalmente submissa, e um homem branco, de natureza dominadora, que facilmente suprimiria as práticas culturais da parceira, comprometendo a perpetuação dos mitos e ritos moçambicanos, preservados na figura dos anciãos, por exemplo.
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Mas, o momento, em que tal mistura inter-racial é representada de maneira mais evidente, encontra-se nas duas experiências passadas por Jacinta, a filha mestiça de Delfina. Num primeiro momento, descobre-se alvo da rejeição e da fraqueza do pai, que a nega diante das perguntas do seu chefe (“És a vergonha de nossa classe, Soares, és um cafre. Por esse andar os brancos todos vão andar para aqui de tangas”; CHIZIANE, 2008, p. 245). Diante desta primeira decepção, vem a certeza de que não há lugar para ela no lado dos brancos, ainda que seja filha de um, e descobre que a violência social atinge diretamente aqueles que são frutos de uma mestiçagem racial: O pai foi expulso daquele gabinete com muita arrogância pelo homem que parecia ser o chefe. Por ter uma filha com uma negra. O pior de tudo foi descobrir que o pai nem teve coragem de dizer que ela era sua filha. Renegou-a. Descobriu também, nesse dia, que o seu pai era fraco e não a amava tanto como dizia (Ibidem).
Mas, se o pai não tem a coragem de afirmar publicamente tal união inter-racial, por outro, ao ver-se diante do gesto de declaração pública, agora, feita pelo avô negro, a jovem Jacinta faz uma descoberta mais aterrorizante. De vítima de uma violência social, vê-se como vítima de uma violência física, já que o seu avô é espancado por um policial branco que os viu passeando pela rua (“Um policial branco viu-os e espantou-se. Um preto com uma criança branca, nos confins do subúrbio? Chamou-os. Indagou.”; Ibidem, p. 246). Ao presenciar a morte do avô, que pereceu “açoitado por ter uma neta de outra raça” (Ibidem), a personagem Jacinta funciona como uma espécie de indagação sobre o próprio fenômeno da mestiçagem, pois, se este é um dado perceptível na sociedade moçambicana, isto não quer dizer que ele ocorra necessariamente de forma pacífica e bem resolvida. Pelo contrário, a indagação e a interrogação constantes da personagem relativizam o papel legado a este sujeito que pertence, ao mesmo tempo, a duas instâncias raciais diferentes, mas em nenhuma delas encontra o seu espaço: Foi a partir desse momento que começou a olhar em volta. E viu que os negros eram muito negros. Que os brancos eram muito brancos. Diante dos pretos chamavam-lhe branca. E não queriam brincar com ela. Afastavam-na, falavam mal da mãe e diziam nomes feios. Diante dos brancos chamavam-lhe preta. Também corriam com ela, falavam mal da mãe e chamavam-lhe nomes feios. Um dilema que crescia na sua cabecinha: afinal de contas qual é o meu lugar? Porque é que tenho que me ficar entre as duas raças? Será que tenho que criar um mundo meu, diferente, marginal, só com indivíduos de minha raça? (…) Era estranho viver numa casa
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de todas as raças. Fazia-lhe confusão absorver o comportamento de pretos e de brancos em simultâneo (Ibidem, p. 247-248).
Longe de pintar um quadro idealizado e pacífico de uma sociedade multicolorida e inter-racial, Paulina Chiziane opta pela relativização, pela interrogação e pelo questionamento da formação cultural multifacetada do contexto moçambicano. Da negação do pai (branco) à violência contra o avô (negro), Jacinta vai descobrindo dolorosamente o seu lugar-entre nesta sociedade, configurando-se, neste sentido, como uma daquelas “personagens-pêndulos”, que, na interessante definição de Silviano Santiago, transitam “entre um lugar e o outro, sem pertencerem definitivamente a um ou outro lugar” (2006, p. 204). Ou seja, como fruto de uma mestiçagem, de uma mistura inter-racial, Jacinta torna-se uma espécie de sujeito em trânsito, marcado pela diferença e pelo caráter híbrido. Ora, o mesmo Silviano Santiago vai nos ensinar que “o híbrido é sempre fascinante” (Ibidem, p. 196). Talvez, daí, apesar do desassossego despertado pela forma de abordagem do tema, estas personagens femininas não percam a sua condição de seres fascinantes, pelo que despertam de interrogação e questionamento. E tocando no próprio caráter híbrido, é relevante ressaltar, também, como este se faz presente na própria elaboração do tecido narrativo, já que, ao mesmo tempo, o leitor se depara com um contexto social moçambicano complexo e multifacetado, a partir das gerações femininas de Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta, também se verá transportado para um tempo mítico, de origens milenares, a partir da inserção de narrativas míticas, que tentam dar conta dos primórdios do continente e da própria humanidade. Logo, é importante ressaltar, aqui, a importância do mito dentro das sociedades africanas. São por meio deles que as tradições vão se perpetuando através dos tempos, nas figuras das crianças e dos anciãos, por exemplo, como bem nos lembra Nsang Kabwasa, […] a velhice é um etapa da existência humana a que todos aspiram, pois a crença na sobrevivência, na continuidade da vida e no culto dos antepassados privilegia os anciãos. (…) Assim como a criança está destinada a ser adulta, o adulto velho, o velho antepassado; o antepassado com força vital renascerá para completar o círculo de vida do universo. […] Assim, a infância é um período de aprendizagem, um período muito físico durante o qual o desenvolvimento espiritual está em gestação. A maturidade é um período produtivo no qual o homem alcança o equilíbrio físico e espiritual. A velhice é a idade da sabedoria, do ensinamento, e não do descanso (1982, p. 14-15).
Neste sentido, acreditamos que Paulina Chiziane utiliza essas representações dentro do romance para promover um feliz encontro entre passado e presente, entre ancestralidade 16
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e modernidade. Na obra, não só aparece a figura do ancião, como esta é colocada em uma focalização feminina, na figura da velha senhora, mulher do régulo, a quem as mulheres da tribo recorrem, depois de encontrar Maria das Dores nua, no rio, numa visão inquietante e incômoda, que desestabiliza a harmonia social e o equilíbrio do lugar. É, portanto, diante da sabedoria desta mais velha, que a narradora, inclusive, descreverá numa atitude de respeito e celebração, já que “a voz da mulher do régulo era chuva fresca. Tinha o poder de serenar multidões. Era o poder das ondas mansas embalando as embarcações na valsa da brisa” (CHIZIANE, 2008, p. 20). O recurso de utilizar uma figura feminina, em uma função muitas vezes desempenhada pelo masculino,2 faz-nos refletir se a autora não estaria intentando, aqui, apontar para uma mudança de valores dentro da sociedade moçambicana, numa tentativa de representar certas mulheres dessa esfera como agentes de uma transformação ideológica, colocando-as em posições sociais de maior visibilidade, visando assim uma projeção mais positiva dentro desse corpo social. Desta forma, poderíamos pensar que, à priori, a escritora assume uma posição feminista acerca do papel da mulher dentro da sociedade moçambicana. Entretanto, não podemos cair numa armadilha essencialista, confundindo uma possível postura da autora. Neste sentido, cabe aqui fazer uma breve distinção entre a escrita feminista e a escrita no feminino. De acordo com o panorama geral desenhado por Thomas Bonnici (1999, p. 198-199), o feminismo teve os seus primeiros vestígios a partir do século XVIII, com a escritora inglesa Mary Wollstonecraft, primeira mulher a defender a igualdade entre os sexos. No século XX, já concretizado com o direito ao voto às mulheres e batizado como movimento feminista, surge Virginia Woolf com uma perspectiva crítica, sócio-política e ideológica, que questiona os padrões impostos pela sociedade patriarcal ao papel destinado às mulheres. A partir destes dois casos pontuais, não será difícil observar que as literaturas feitas por mulheres, nesse contexto, possuíam um tom quase que panfletário, no sentido de mobilizar as mulheres para que estas levantassem a bandeira da igualdade entre os sexos. Mas, é bom sublinhar que, em África, temos um panorama muito diferente do da Inglaterra. Enquanto nesta, ao longo do século XX, as mulheres se dedicavam a lutar por uma uniformidade, muitas mulheres africanas se não se destinavam, viam-se diretamente envolvidas e inseridas nos conflitos, tais como a luta pela independência de sua pátria (no caso de Moçambique, a libertação frente a Portugal, ocorreu em 25 de junho de 1975) e, posteriormente, as guerras civis, que tinham por objetivo definir, entre os partidos internos, qual deles assumiria o poder. Dentro desse paradigma, seria imprudente afirmar que a escrita de Paulina Chiziane seja ortodoxamente feminista, ainda que possua ecos dessa 2 Não estamos aqui afirmando que o papel de sabedoria do ancião seja unicamente desempenhado por sujeitos masculinos, mas, é inegável que em muitos títulos das literaturas africanas, o homem aparece representado como principal agente desta função. A título de exemplo, citamos os personagens: o mais velho Kalumbo (O desejo de kianda, de Pepetela), a mais velha (“Estória da galinha e do ovo”, Luuanda, de Luandino Vieira), o velho Ulisses (A verdadeira dimensão, de Vasco Martins), dentre outros que poderiam ser aqui também elencados.
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vertente. As suas obras “acabam por funcionar como porta-vozes” de uma sociedade antes marcada, como bem sublinha Inocência Mata, por “assimetrias da posição das mulheres, das desigualdades e discriminações, isto é, a subalternidade social, cultural e psicológica” (2007, p. 422). Portanto, acreditamos ser mais adequado apontar a escrita de Paulina Chiziane como um discurso no feminino, uma vez que este “representa um universo ficcional visto, vivido e sentido por uma mulher” (RAINHO & SILVA, 2007, p. 520). Frente a isso, pode-se afirmar também que a escritora compõe seus textos com a finalidade de “construção de um pensamento sobre a necessidade de tornar visíveis questões sociais cujos agentes são femininos” (MATA, 2007, p. 423). Ou seja, a escrita de Paulina Chiziane tem como propósito evidenciar a posição da mulher dentro da sociedade moçambicana, objetivando uma reflexão da mesma a respeito da sua condição no interior desse sistema social, sendo este caracterizado pela […] condição subalterna da mulher: do casamento forçado ao lobolo, da dureza da guerra, com o seu corolário de violações e fragmentação psicológica e identitária, ao estatuto da amante e concubina, da marginalização, institucional e social da mulher à a de seus filhos nascidos em condições que as “leis da família” feitas à margem dessoutras das sociedades tradicionais que realmente vigoram, da submissão aos mais repressivos rituais de subserviência conjugal e de viuvez (como o kutchinga ou o levirato) à desproteção social e institucional a que a mulher é atirada devido a hipocrisia do Estado e da sociedade (MATA, 2007, p. 437).
Neste encadeamento de idéias, além do questionamento, há também uma busca por respostas acerca do papel da mulher dentro da sociedade moçambicana, em uma tentativa de subverter os valores patriarcas, predeterminados dentro desse sistema social, predominante em Moçambique. Vale, portanto, destacar que “existe a representação de uma consciência feminina que se reconhece através do seu discurso e que consegue, através do mesmo, uma desmistificação dos valores de preservação do masculino em detrimento da preservação do feminino” (RAINHO & SILVA, 2007, p. 525). Se, realmente, a preservação do feminino é uma das linhas de força da ficção de Paulina Chiziane, então, cabe aqui recuperar “uma das lendas de criação do mundo a partir da ação efetiva e ativa do sujeito feminino” (VALENTIM, 2009, p. 147), para sublinhar, a importância da mulher também dentro da cosmogonia africana, e mencionar, inclusive, a tentativa de destruição do poder da mesma pelo homem. A história se repete. As lendas antigas se reproduzem e se materializam. Lendas dos tempos em que Deus era uma mulher e governava o mundo. Era uma vez…
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Há muito, muito tempo, a deusa governava o mundo. De tão bela que era, os homens da terra inteira suspiravam por ela. Todos sonhavam em fazer-lhe um filho. A deusa, tão maternal e tão carinhosa, jurou satisfazer o desejo de todos os homens do mundo. Mandou dizer, pela voz do vento, que numa noite de lua haveria dança. Que ela desceria à terra no seu carrossel dourado para que as mãos humanas pudessem, finalmente, conhecer a macieza de sua pele. O momento chegou. Banhou-se, perfumou-se e usou os melhores ungüentos. Subiu aos picos do Monte Namuli, tirou o manto e dançou. Nua. Para que todas as mulheres invejassem os seus encantos. Chamou os homens um a um e agraciou-os com sua divina dança. Engravidou de apenas um, afinal não tinha poderes para parir o universo inteiro. A descoberta dos seus limites foi fatal. Todos ficaram a saber que afinal a deusa era uma mulher banal e o divino residia no seu manto de diamantes. Descobriram ainda que era feita de fragilidade e tinha a humildade de uma criança. Os homens sitiaram-na. Roubaram-lhe o manto e derrubaram-na. Tomaram o seu lugar no comando do mundo, condenando todas as mulheres à miséria e à servidão. Esta é a origem do conflito entre o homem e a mulher. É por isso que todas as mulheres do mundo saem à rua e produzem uma barulheira universal para recupera o manto perdido (CHIZIANE, 2008, p. 220-221).
De acordo com Maria G. de Miranda, esta é uma das passagens mais exemplares do romance, posto que “aborda uma temática relacionada ao feminino, sem deixar de estabelecer ligações entre a situação da mulher e os costumes de seu país” (2009, p. 6). Aqui, salienta-se a importância da mulher africana, relacionando sua figura ao mito, algo tão caro a esta cultura, e evidenciando, de forma singular, o prestígio que esta mulher deveria possuir nesta sociedade. Ou seja, pontuando a ação feminina na criação primordial e genesíaca do mundo, Paulina Chiziane não estaria sublinhando a subjetividade feminina como corolário da efabulação de O alegre canto da perdiz? Segundo Inocência Mata, […] a expressão da subjetividade feminina – da mulher enquanto ser humano em primeiro lugar e como tal com os seus desejos (espirituais, afectivos, culturais e sexuais), e frustrações, as suas aspirações e sonhos, as suas alegrias, admirações, dores e sensações – de que a alma da mulher, com os seus juízos subjectivos,
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toma consciência, consciência de si enquanto mulher e enquanto ser humano (2007, p. 432).
Podemos constatar, portanto, que Paulina Chiziane enfatiza a “importância das mulheres que emergem como sujeitos da mudança e protagonistas da (sua própria) modernidade” (OWEN, 2008, p. 162). Em outras palavras, são essas mulheres de O Alegre Canto da Perdiz que expõem um universo marcado por desconformidades, e que tentam conscientizar, de maneira singular, que o papel social da mulher pode e deve ser outro, diferente mesmo do que se coloca em um certo discurso tradicional que, no romance, pode ser localizado nas falas e nos pensamentos de Serafina, mãe de Delfina. Ao perceber as intenções da filha e dos seus anseios, que rasuram um lugar-comum de subserviência feminina, a mãe chega mesmo a pensar: “a mulher não tem asas, nunca consegue transpor a fronteira entre o céu e a terra” (CHIZIANE, 2008, p. 83). E a diferença estabelecida entre as duas pode ser entendida como uma forma de desestabilizar um papel pré-condicionado da mulher dentro de um contexto eminentemente masculino. Daí que a fala de Delfina articula esta forma resistente de pensar, porque, enquanto mulher, não aceita as condições sociais a que é submetida: “Um dia vou mudar o meu destino, a mãe vai ver. Esses pobres pretos ver-me-ão surgir das cinzas coroada de ouro. Com o mundo na palma de minha mão, cravejado de diamantes. A mãe verá esse dia, eu juro!” (CHIZIANE, 2008, p. 82). Voltando, portanto, à representação das origens, sob a égide de um poder feminino, ao retomar esse mito, é possível pensar que Paulina Chiziane procura sublinhar a importância das mulheres em diferentes papéis desempenhados no cenário social moçambicano, desde tempos remotos, fazendo-as, portanto, superar certas condições pré-determinadas, como o de mera gestora da sociedade, e representando-as como seres detentores de todo o poder de criação. Nas palavras do médico, destinadas à personagem Maria das Dores, por exemplo, fica nítido o poder criador da mulher, como também a sua função metafórica da própria terra: Nos olhos do médico, a imagem de uma mulher terra, onde assentam todas as árvores e todas as raízes. Árvores com flores, sem flores, arbustos, ervas, frutos. Sonha. Corpo de mulher. Sobre ti. Sol e sorriso. Rio e sangue. Amargura. Flores em arco-íris. O princípio, o fim, o universo inteiro (Ibidem, p. 58-59).
Não seria de todo imprudente, portanto, afirmar que esta é a grande contribuição da mulher num contexto africano e moçambicano. Ela é responsável por gerar todo um continente, e dessa forma tudo aquilo que está sobre esse continente, tanto físico, quanto ideológico, mesmo que este último tenha sido comprometido pelo colonizador: – Quem é tu? – insistiam as mulheres furiosas.
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As pessoas gostam muito de identidades. Chegam a exigir uma certidão de nascimento para uma pessoa presente. Haverá melhor testemunha do que a presença para confirmar que nasci? – Por que estás nua? A mulher nua esta demasiado cansada para responder. Demasiado surda para ouvir. Desespera-se. Quantas forças uma mulher deve ter para carregar a tortura, a ansiedade e a esperança, quantas palavras terá a oração da eterna clemência a um deus desconhecido, cuja resposta não virá jamais? (Ibidem, p. 14).
Nesse excerto, é possível notar a mulher representando o continente africano, nu, numa nítida remissão à sua condição de espaço violado durante séculos pelos colonizadores. Profanado em termos econômicos, por ter toda a sua riqueza retirada do país e levada para outras nações, sem que estas dessem algum retorno, no que tange a melhorias educacionais e infra-estruturais ao país. Desflorado, por ter toda uma nação entregue aos desejos de outros, e quando, finalmente, tornaram-se livres da opressão, ter um país totalmente desestruturado, agora em uma luta interna, novamente focada em atender a individualidade, sacrificando a coletividade. Uma nação torturada, com filhos torturados, ansiando uma refutação que não vem. Enfim, um país contaminado por culturas que tentaram sufocar a identidade de toda uma nação. Dessa forma, podemos olhar a escrita no feminino, de Paulina Chiziane, como um discurso que também visa pensar uma identidade moçambicana, livrando-se do conceito de colônia e encontrando o significado de nação e de identidade nacional, que atinge um “equilíbrio entre o tradicionalismo e a adaptação da tradição às exigências de um mundo cujos mecanismos de regulação ultrapassam os limites dos sujeitos dessa tradição” (MATA, 2003, p. 54). O texto de Paulina Chiziane busca justamente esse equilíbrio, utilizando as mitologias africanas, pondo em evidência temáticas fundamentais para a descoberta de uma identidade moçambicana, livre de influências dominadoras. Assim, faz uma releitura dos mitos, absorvendo-os no presente, de maneira que estes causem uma reflexão acerca da situação atual de Moçambique. Nas palavras de Inocência Mata, […] o contexto discursivo dessas metaficções historiográficas representa possibilidades de releituras do passado, expressões de reinterpretação para, moldá-lo às exigências das interpretações eficazes e iluminar segmentos sociais, idéias e eventos históricos antes na opacidade (Ibidem, p. 60).
Interessante observar que a ensaísta são-tomense utiliza-se de uma nomenclatura alinhada à estética pós-modernista para tentar dar conta de sua leitura da ficção de Paulina
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Chiziane. Se, por um lado, a metaficção historiográfica, de acordo com os pressupostos de Linda Hutcheon (1991),3 pode servir como um instrumento analítico de auxílio no entendimento do diálogo entre história e ficção, em O alegre canto da perdiz, por outro, é bom assinalar que tal categoria não é suficiente, por si só, para caracterizar o romance de Paulina Chiziane como pós-moderno, ou que exista definitivamente uma estética pósmoderna em África ou em Moçambique. Antes, entendemos, aqui, que o procedimento adotado por Inocência Mata reafirma as propostas de Laura Padilha, quando esta aponta que […] há alguns pontos que, se não nos permitem buscar uma pósmodernidade em África, possibilitam-nos deparar, nas manifestações culturais que lá encontramos, com certos vestígios de um saber pós-moderno. Tal saber mais e mais nos leva a pensar nas fissuras, nas rasuras, nas contradições de um tipo de saber anterior que não tem mais como sustentar-se depois que se chegou a tantos limites e que se reconhece a força das fronteiras, dos contatos e das margens… (2002, p. 322).
Logo, tais personagens femininos já indicariam algumas dessas fissuras e rasuras, dentro do próprio contexto social moçambicano, representado no romance de Paulina Chiziane. Mais, essa maneira distinta de representar a figura feminina leva o leitor a refletir no relevante papel que ela desempenha nestas sociedades. Nas culturas africanas, a mescla entre tradição e modernidade pode ser vista, por exemplo, no aproveitamento que certos textos ficcionais operam com fenômenos culturais típicos dessas regiões, tais como a música, o canto e a dança, elementos peculiares desse sistema, pois remetem à tradição oral (antes sufocada pelo colonizador), fonte de saber e criação, força vital de sobrevivência e responsável pela manutenção da cultura através dos séculos. Estes elementos também nos reportam à figura da mulher, que se expressa de maneira ímpar através deles, pois, segundo Jorge Valentim, “o canto e também a dança, expressões artísticas importantes nas sociedades africanas, unindo-os todos na e através da palavra e redimensionando no espaço da ficção uma manifestação singular de uma subjetividade essencialmente feminina” (2009, p. 22). Em O Alegre Canto da Perdiz, a expressão oral fica evidente já no título, através do sintagma Canto. Ao utilizar esse termo, carregado de significação dentro dessa sociedade, 3 No seu conhecido estudo Poética do Pós-Modernismo, Linda Hutcheon vai defender que, “a ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico” (1991, p. 147). A autora mostra, portanto que sobre uma antiga visão homogeneizadora de um passado (outrora) incontestável, a metaficção historiográfica procura, “por meio de sua paradoxal combinação entre a auto-reflexividade metaficcional e o tema histórico”, relativizar e “problematizar tanto a natureza do referente como a relação dele com o mundo real, histórico, por meio de sua combinação paradoxal da auto-reflexibilidade metaficcional com o tema histórico” (Ibidem, p. 38).
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Paulina Chiziane aposta numa união entre o mítico e a construção da noção de identidade moçambicana, apresentando-nos situações conflitantes que tem, em seu núcleo, a figura da mulher em África. Neste sentido, concordamos com Jorge Valentim, quando afirma que, neste romance de Paulina Chiziane, O canto da perdiz, neste sentido, funciona como uma espécie de ligação entre dois eixos: um mítico, onde repousa a paisagem original e milenar de uma África feminina, telúrica e mítica; e outro (ficcionalmente, é claro) referencial, onde encontram-se as mulheres de seguidas gerações, em meio a um cenário colonial e póscolonial, marcado por guerras, separações, pactos desfeitos, promessas não cumpridas, choques e conflitos culturais (2009, p. 140).
Ainda por esse viés, do diálogo com a tradição, focados nas personagens femininas, podemos destacar a seguinte passagem do romance: Dizem que tudo aconteceu como num conto de fadas. Dizem que certa noite incubava os mistérios do mundo e o planeta girava numa velocidade nova. Na densa escuridão ouviu-se uma perdiz com forma de mulher cantando gurué, gurué! O mundo inteiro se espantou porque só as corujas cantavam noite. O canto da perdiz numa noite sem lua era mau agouro. Muitos abandonaram os quartos, e com tochas acesas tentaram iluminar o céu para testemunhar o insólito. Viram uma imagem difusa muito perto das nuvens. Seria mesmo perdiz? Era uma mulher com voz de perdiz, ululando triunfos no miradouro do mundo, dançando nua no ponto mais alto do monte. Espalhando pela atmosfera cheiro de erotismo, de sexo, cheiro de pornografia cafreal. Os olhos do mundo perguntaram ao mesmo tempo: – Quem és tu que galgas as encostas do monte com a leveza da luz e ululas triunfos nas montanhas da glória? – Eu sou a Delfina, a rainha! (CHIZIANE, 2008, p. 222).
No excerto em questão, Paulina Chiziane representa a mulher através da figura de uma ave, que, segundo a tradição, quando canta a noite é sinal de agouro, de que algo ruim pode acontecer. Não se trata, na verdade, de uma perdiz, mas de uma mulher, que traz consigo o erótico, o sensual e o sexual, transformados, pelo contexto, em elementos nocivos. Mais uma vez, a autora nos coloca frente à tradição, que, antes deturpada pelos olhos contaminados de uma tendência colonialista, agora é redimensionada em valor
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genesíaco, de origem não só das terras moçambicanas e do continente, mas do próprio mundo, tornando-se, portanto, centro de toda uma cosmogonia. Dessa forma, o romance O Alegre Canto da Perdiz, permeado de vozes femininas, aborda de maneira pontual certas questões, que se constituem relevantes para a percepção de representação da identidade moçambicana, amputada, durante anos, não só pela presença do colonizador, mas também pela herança deixada pelo mesmo. Com esta aposta ficcional de Paulina Chiziane, agora, reivindica-se um espaço no centro para aquela que sempre pousou as margens. A mulher, portanto, passa a ser lida como semente do mundo, tendo como elemento desencadeador o canto (termo presente no próprio título da obra em questão), que também se faz conto nas mãos e nos olhares habilidosos de uma genuína contadora de histórias.
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Danielle Danelli é mestranda em Estudos de Literatura pelo PPGLit (Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura)/UFSCar, onde vem desenvolvendo projeto de pesquisa, com foco na produção de escrita feminina em Moçambique, a partir da ficção de Paulina Chiziane.
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(RE)CONSTRUINDO PASSADOS
memória e identidade em O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa EMILY DE CARVALHO PINTO* O passado é um rio que dorme e a memória uma mentira multiforme [JOSÉ EDUARDO AGUALUSA. O vendedor de passados.]
Resumo: O presente ensaio tem como objetivo propor algumas reflexões em torno da reescrita da tradição e da reconstrução da história angolana dentro do romance O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa, a partir da análise alguns recursos ficcionais, tais como o uso da memória e a repaginação das identidades, e da constatação estética de formulações pós-coloniais. PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA ANGOLANA, PÓS-COLONIALIDADE, MEMÓRIA (Re)building past: memory and identity in The seller of past, by José Eduardo Agualusa Abstract: This essay proposes some reflexions about the rewriting of tradiction and the reconstruction of Angolan history in the novel O vendedor de passados, by José Eduardo Agualusa, starting from the analyses of some fictional resources, such as the use of memmory and the repaginating of identities, and the aesthetic finding of post-colonial formulations. KEYWORDS: ANGOLAN LITERATURE, POST-COLONIALITY, MEMORY
1. Reflexões iniciais Publicado no Brasil em 2004, o romance O Vendedor de Passados, do angolano José Eduardo Agualusa, traz, como o próprio título nos mostra, um personagem que tem como ofício criar e vender novos passados àqueles que já tinham um futuro assegurado, ou seja, integrantes de uma nova burguesia (empresários, governantes, fazendeiros e generais, dentre outros) e que desejavam obter, em suas famílias, nomes de pessoas ligados à nobreza e à cultura. É importante destacar que a obra é narrada em um momento1 posterior à 1 Vale ressaltar que após anos de dependência em relação a Portugal, somente no dia 11 de novembro de 1975 Angola conquista independência, depois de uma sangrenta e dolorosa guerra contra o país colonizador. Logo depois, o país
independência e ao longo período de guerras civis que marcaram Angola. Dessa maneira, encontramos a representação de uma nação que passa por um processo de reconstrução, e, para pensar este processo, é preciso refletir sobre a identidade como algo híbrido, mestiço e multifacetado. Para entendermos quais estratégias discursivas são utilizadas na reconstrução da identidade de uma sociedade pós-colonial, é necessário antes explicar o significado do termo e como trabalharemos com tal conceito. O termo pós-colonialismo pode ser entendido de duas maneiras: a primeira, no sentido cronológico, ou seja, a situação depois da independência dos países, antes colonizados. No caso do romance em questão, o recorte detém-se em Angola, país colonizado por Portugal. Ou seja, pensando o termo neste sentido, não será difícil contextualizar o texto de José Eduardo Agualusa como obra produzida exatamente neste período pós-1975, em que, segundo Inocência Mata, “o ‘pós’ do significante ‘colonial’ refere- se a sociedades que começam a agenciar a sua existência com o advento da independência” (MATA, 2003, p. 45). A outra maneira de conceber o termo é pensá-lo como “uma nova visão da sociedade que reflecte sobre a sua própria condição periférica, tanto a nível estrutural como conjuntural” (Ibidem, p. 39), ou seja, não necessariamente vinculado a uma condição cronológica rígida. Se o entendermos dessa forma, observaremos que o termo não tem uma relação obrigatória com o tempo pós-independência, posto que, ainda […] dele decorra, pode entender-se o pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a sua existência após um processo de descolonização e independência política – o que não quer dizer, a priori, tempo de independência real e de liberdade, como o prova a literatura que tem revelado e denunciado a internalização do outro no pós-independência (Ibidem).
Sendo assim, podemos entender a descolonização portuguesa como um processo que, segundo Inocência Mata (2003), não aconteceu de um momento para o outro e tampouco rompeu definitivamente com os discursos hegemônicos. Nesse sentido, observamos, então, um processo de reconstrução do país, que pensa a identidade como algo constituído por várias partes e de distintas maneiras. Negar, portanto, qualquer uma delas significaria cair num estado de exclusão e mutilação da própria diferença que a caracteriza. A partir dessa perspectiva, não podemos ignorar que o colonialismo português sofrido pelas colônias acabou em 1975, com o fim da guerra e a conquista da Independência. Porém, não determinou o fim da dependência social, uma vez que, naquele momento, o vivenciou anos de guerra civil, pois os partidos – MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola), FNLA (Frente Nacional de Libertação de Angola) e UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) – que lutaram pela independência, tinham ideologias políticas contrárias.
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sistema capitalista estava ganhando espaço no mundo. O que nos leva a notar que, além do jogo de poder fora do país, o mesmo acontece dentro de Angola, já que o poder passa às mãos de uma elite política angolana, resultando numa espécie de repaginação da figura de Próspero. Se antes de 1975, este era desempenhado pelos portugueses, após esta data, ele é assumido por essa elite detentora do poder. Dessa forma, é importante dizer que essa relação de poder entre Próspero e Caliban2 é muito tênue, pois quem agencia o (antigo) lugar do colonizador é (agora) quem responde pelo poder. Esse novo código a que nos referimos acima, segundo Boaventura de Sousa Santos, pode ser considerado “um conjunto de práticas (predominantemente performativas) e de discursos que desconstroem a narrativa colonial, escrita pelo colonizador, e procuram substituí-la por narrativas escritas do ponto de vista do colonizado” (SANTOS, 2006, p. 233). No entanto, essa prática não pode ser vista de forma dialética como o discurso colonial propunha, neste sentido, o pós-colonialismo pensa em uma relação híbrida entre colonizador e colonizado, uma vez que ambos “não são independentes um do outro nem são pensáveis um sem o outro” (Ibidem, p. 235), e a exclusão de uma das partes culminaria numa falibilidade no ato de se pensar a busca identitária. Para o pós-colonialismo, ainda que este tenha em muitos pontos uma semelhança de intenção com a literatura anticolonial, a ruptura se dá na mobilização de “estratégias contra- discursivas que visam à deslegitimação de um projeto de nação monocolor em todos os sentidos” (Ibidem, p. 57). Dessa maneira, o pós-colonialismo, com este projeto de rasura, procurava mostrar a alteridade e a hibridez como elementos formadores e consolidadores da nação, muito diferente daquele projeto colonizador que apagava as diferenças em nome de uma homogeneidade monopolizadora. Ora, para que esse discurso revigorador da heterogeneidade e da diferença seja construído, Inocência Mata nos aponta alguns artifícios utilizados para a sua formulação e consolidação. Na tentativa de sublinhar uma crítica ao colonialismo, é necessário incorporar o discurso deste, reescrevendo e repaginando as identidades culturais. Podemos observar esse artifício no romance O Vendedor de Passado, de José Eduardo Agualusa, em que o personagem Félix, um albino, possui como ofício vender passados já prontos. De acordo com o narrador, ele “estuda os jornais enquanto janta, folheia-os atentamente, e se algum artigo lhe interessa assinala-o a tinta lilás com uma caneta. Termina de comer e então recorta-o com cuidado e guarda-o num arquivo” (AGUALUSA, 2004, p. 15). O vendedor utiliza esses artigos para dar um novo passado à elite angolana, porque esta precisa possuir algum nome importante em sua família. Por este viés, notamos como o próprio título do 2 Termo utilizado por Boaventura de Sousa Santos que faz alusão à peça teatral A Tempestade de Shakespeare. Em seu texto, “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”, Boaventura joga com a peça do autor inglês em que Próspero, visto como o colonizador, encontra a terra já habitada, mas a toma para si e assume o poder, ainda que nela more Caliban, o colonizado. Valendo-se desta dicotomia, o crítico português procura mostrar como o processo colonizador lusitano em África aconteceu de maneira sui generis, já que, em relação a uma Europa plenamente desenvolvida em termos bélicos e industriais, Portugal não possuía todas as prerrogativas necessárias para desempenhar o papel de Próspero, cabendo-lhe, portanto, a submissa posição de um Caliban.
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romance (O Vendedor de passados) aponta para a ideia de que o passado pode ser vendido/ comprado como se fosse um produto. Assim, vemos a apoderação, a (re)elaboração e a venda do mesmo, na tentativa de reescrever uma história individual, que, lido num processo metonímico, bem poderia ser estendido à esfera coletiva da nação. No processo de reescrita do passado, notamos que este não é baseado nos discursos coloniais ou anticoloniais, em que ambos excluem uma das partes, colonizado ou colonizador, respectivamente. O que se pretende é (re)construir identidades visivelmente marcadas por uma hibridação, já que os personagens-clientes José Buchmann e o Ministro, mostrados ao longo da narrativa, possuem familiares de várias nacionalidades. Seu primeiro cliente, batizado por Félix como José Buchmann, ainda que, no seu novo passado, possuísse avôs angolanos nascidos na “vila de São Pedro da Chibia (Província da Huíla no Sul do país)” (Ibidem, p. 41), e seu pai fosse proveniente do mesmo lugar, sua mãe é uma artista americana chamada Eva Miller. Já o segundo, o Ministro, passa a ter um avô paterno, Alexandre Torres dos Santos Correia de Sá e Benevides, um importante carioca que ajudou Luanda do domínio português. Dessa forma, observamos que há, ainda e já no passado de cada um deles, a construção de uma individualidade heterogênea e plural, construída a partir de memórias pessoais pertencentes a um plano coletivo, já que aquela se constrói a partir da reapropriação de escritos com caráter documental, tais como jornais e revistas, além de gravações. Se observarmos a reescrita individual, no romance de José Agualusa, quando José Buchmann chega à casa de Félix, a única informação que se tem é sobre a sua profissão de fotógrafo de guerra. Ele pede não apenas uma memória e um passado, mas também uma identidade. Para compreendermos como a construção da identidade do personagem é feita, é necessário, antes, observar como ela pode ser entendida num contexto pós-colonial. Segundo Boaventura de Sousa Santos, […] a identidade pós-colonial, ao romper com a distinção clara entre a identidade do colonizador e a identidade do colonizado, tem de ser construída, para o centro hegemónico, a partir das margens das representações e através de um movimento que vai das margens para o centro. É este o espaço privilegiado da cultura e do crítico pós-colonial, um espaço-entre, liminar. Trata-se de um espaço de fronteira, de extremidade ou de linha da frente onde só é possível a experiência da proximidade da diferença. É neste espaço que é construída e negociada a diferença cultural. A diferença cultural subverte as ideias de homogeneidade e uniformidade culturais na medida em que se afirma através de práticas enunciativas que são vorazes em relação aos diferentes universos culturais de que se servem (2006, p. 236-37).
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Por este viés, é possível entender que, somente a partir da percepção e da compreensão da diferença cultural, das trocas estabelecidas e das experiências fronteiriças, uma identidade heterogênea e plural poderia ser estabelecida, sem esquecer, porém, o fato de que, como sublinha Inocência Mata, “o desvelamento da diferença e da heterogeneidade, do plural e do diverso terá de pressupor a contextualização histórica de identidades, a sua historicização, para que esse movimento (…) não resulte em encravamentos socioculturais e legitimação de hegemonia” (MATA, 2007, p. 39). Assim, por este viés, a construção da identidade do personagem José Buchmann pode ser compreendida como um processo que se inicia já na formulação do seu nome, pois, a seu pedido, quem o (re)batiza é Félix, e continua na construção de uma história para o seu novo passado, como descrito anteriormente. Porém, o mais interessante de se observar é que José, ao longo da narrativa, não passa incólume a esta nova condição, posto que assume essa nova identidade e passa a viver como tal. É possível notar, inclusive, a constatação surpreendente do narrador ao contar: […] vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim um estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém, se fechar os olhos para o passado, se o vir agora, como se nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele – aquele homem foi José Buchmann a vida inteira (AGUALUSA, 2004, p. 65).
Essa mudança é observada quando o narrador observa que o estrangeiro “não é o mesmo homem que entrou nesta casa, seis, sete meses atrás. Algo, da mesma natureza das metamorfoses, vem operando no seu íntimo” (Ibidem, p. 59) e nos descreve a transformação sofrida pelo estrangeiro: Em primeiro lugar está a mudar de sotaque. Perdeu, vem perdendo, aquela pronúncia entre eslava e brasileira, meio doce, meio sibilante, que ao princípio tanto me desconcertou. Serve-se agora de um ritmo luandense, a condizer com as camisas de seda estampada e os sapatos deportivos que passou a vestir. Acho-o também mais expansivo. A rir, é já angolano (Ibidem, p. 59-60).
Para que, em José Buchmann, ocorram essas mudanças de aspectos físicos, como a maneira de se vestir e o modo de rir ou pronunciar as palavras, o personagem precisou buscar na realidade externa referências que autentiquem a identidade criada. É quando José viaja a Chibia para visitar a campa de seu pai, trazendo consigo várias fotos (Ibidem, p. 60), ou, ainda, quando vai à procura do final da história de sua mãe que, até então, apenas tinha conhecimento de que ela nunca mais regressara da Cidade do Cabo (Ibidem, p. 42). Nessa busca por seu novo passado, ele percorre os Estados Unidos e África 30
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do Sul e, ao regressar, traz consigo uma aguarela assinada por Eva Miller, um maço de fotografias que representava lugares pelos quais a artista havia passado e um recorte do jornal O Século que noticiava a sua morte. Vale lembrar que essa busca é forjada, como nos conta o narrador, sobre um sonho no qual conversa com José. O fotógrafo é questionado a respeito da existência da campa de seu pai e contesta: “Existe. Havia algumas campas destruídas, e entre elas, por que não?, a do meu pai. Mandei fazer a lápide” (Ibidem, p. 190). Ainda sobre a criação falsa de seu passado, ele afirma que: Encontrei-as [as aguarelas] realmente num antiquário, na Cidade do Cabo, uma loja fabulosa, que vende de tudo um pouco, de jóias a álbuns de fotografias, passando por velhas máquinas fotográficas. Eva Miller é um nome comum. Deve haver no mundo algumas dezenas de pintoras de aguarelas com esse nome. A breve notícia da morte dela, n’O Século de Joanesburgo, essa sim, inventei-a eu, com a ajuda de um velho tipógrafo português, meu amigo (Ibidem, p. 190).
Ou seja, ele próprio manipula todas essas provas sobre seu passado, para que Félix acredite em sua biografia, pois “se ele acreditasse nela toda a gente acreditaria. Hoje, sinceramente, até eu acredito” (Ibidem, p. 190). Dessa maneira, a partir do reconhecimento e da aceitação dos outros, ele, José, consegue se afirmar em sua própria (e nova) identidade. Fato que se apresenta de forma relevante é o de que o narrador dessas histórias é uma osga e, como este nos conta, teve uma vida de ser humano antes de habitar esse novo corpo: “Tenho vai para quinze anos a alma presa a este corpo e ainda não me conformei. Vivi quase um século vestindo pele de um homem e também nunca me senti inteiramente humano” (Ibidem, p. 43). Se observarmos atentamente, ao longo do romance, o narrador também passa por um processo de transformações, já que, antes de transmutado numa osga, ele era um ser humano. No momento em que narra, ele já habita o corpo de uma osga, mas, no final, com a sua morte, esta posição narrante é assumida por Félix, que passa a escrever um diário: “Decidi começar a escrever um diário, hoje mesmo, para persistir na ilusão de que alguém me escuta. Nunca mais terei um ouvinte como ele. Acho que era o meu melhor amigo” (Ibidem, p. 197). Porém, a osga narradora só se assume como tal, quando Félix passa a conhecer a sua existência. Neste sentido, não seria possível pensar que, assim como José, a osga só ganharia uma identidade a partir do olhar do outro, neste caso, do albino sobre ela? Outra marca pós-colonial importante pode ser constatada no recurso ao insólito dentro do texto, como bem nos mostra Inocência Mata (2003). Aqui, tal aspecto se instaura quando uma osga – que, antes, era um ser humano – assume a posição de narrador dentro do romance. Dessa maneira, o insólito pode ser entendido a partir da ideia de ser a “(única?) lógica possível de uma realidade que, de tão absurda, não é explicável a partir
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da lógica do real. Através de construções simbólicas, alegóricas e de conteúdo insólito, intenta-se recuperar o sentindo da realidade” (MATA, 2003, p. 69). Ou seja, somente uma osga poderia explicar essa realidade absurda em que vivem os personagens do romance – que poderiam, talvez, representar uma realidade coletiva mais ampla, o país inteiro? –, como nos mostra o narrador na voz de Félix: Luanda está cheia de pessoas que parecem muito lúcidas e de repente desatam a falar línguas impossíveis, ou a chorar sem motivo aparente, ou a rir, ou a praguejar. Algumas fazem tudo isso ao mesmo tempo. Umas julgam que estão mortas. Outras estão mesmo mortas e ainda ninguém teve coragem de as informar. Umas acreditam que podem voar. Outras acreditam tanto nisso que realmente voam. É uma feira de loucos, esta cidade, há por aí, por essas ruas em escombros, por esses musseques em volta, patologias que ainda nem sequer estão catalogadas. Não leve a sério tudo o que lhe dizem. Aliás, aceita um conselho?, não leve ninguém a sério (AGUALUSA, 2004, p. 162).
Inclusive, o presidente do país busca fugir dessa realidade incomum, fazendo com que outras pessoas, parecidas com ele, assumam seu lugar, como nos é analisado nas gravações realizadas por Félix e Ângela Lúcia (filha de José Buchmann): […] ficaram a tarde toda entretidos naquele jogo. Ao fim de cinco horas, era já noite fechada, tinham identificado pelo menos três duplos – o da verruga, um outro com uma ligeira calva, e um terceiro que, jurava Ângela, tinha nos olhos um plácido brilho de mar (Ibidem, p. 168).
Como podemos observar, tudo no país imaginado, inclusive o governo, não é de verdade. Dessa forma, notamos que José Eduardo Agualusa, por meio de seu narrador, tece uma critica a essa sociedade que não aceita seu passado e, portanto, cria-os, fantasiando, inclusive, o governo e o presidente. Essa crítica fica mais evidente quando Edmundo Barata revela de maneira contundente: “temos então um presidente de fantasia. (…) Isso eu já suspeitava. Temos um governo de fantasia. Um sistema judicial de fantasia. Temos, em resumo, um país de fantasia” (Ibidem, p. 160).
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2. O papel da memória na (re)construção de passados Como visto, o personagem Félix do romance O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa, utiliza-se de artigos, notícias, reportagens e depoimentos guardados, para vender um novo e inventado passado ao personagem José Buchmann, bem como a outros clientes da elite angolana. Tal processo de recuperação da memória e releitura de dados e documentos bem pode ser entendido, metaforicamente, como uma forma de resgatar pedaços e fragmentos de uma história de Angola, antes relegada ao silenciamento. Devemos, primeiramente, atentar ao fato de que o passado pode sobreviver de duas maneiras: nos mecanismos motores ou nas lembranças independentes. Sobre este fenômeno, o filósofo francês Henri Bergson explica em sua obra Matéria e memória: […] a operação prática e conseqüentemente ordinária da memória, a utilização da experiência passada para a ação presente, o reconhecimento, enfim, deve realizar- se de duas maneiras. Ora se fará na própria ação, e pelo funcionamento completamente automático do mecanismo apropriado às circunstâncias; ora implicará um trabalho do espírito, que irá buscar no passado, para dirigi-las ao presente, as representações mais capazes de se inserirem na situação atual (BERGSON, 2010, p. 84).
Para fazer com que esses passados sobrevivam é necessário, portanto, recorrer à memória. Ainda, segundo Bergson, existem dois tipos: a memória-hábito e a imagem- lembrança, que possuem as funções de repetir e de imaginar, respectivamente. Ecléa Bosi, em Memória e sociedade – Lembranças de velhos, explica sobre essas duas memórias de que trata Bergson: […] De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado (BOSI, 2005, p. 48).
Ora, diante dessas duas memórias explicitadas acima, Bergson conclui no seu estudo que a imagem-lembrança parece ser “a memória por excelência, [já a memória-hábito] é antes o hábito esclarecido pela memória do que a memória propriamente” (BERGSON, 2010, p. 91). Assim, o serviço da memória por excelência constitui-se no ato de registrar
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[…] todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam; ela não negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e data. Sem segunda intenção de utilidade ou de aplicação prática, armazenaria o passado pelo mero efeito de necessidade natural […] nela nos refugiaríamos todas as vezes que remontamos, para buscar aí uma certa imagem, a encosta de nossa vida passada (Ibidem, p. 88; grifos nossos).
Podemos então concluir que armazenar os fatos da vida cotidiana e dos acontecimentos já situados num tempo passado é inerente à própria função da memória, sendo a ela que recorremos, sempre que necessitamos nos lembrar de algo. No entanto, tal exercício não está isento de transformações. A memória – como nos mostra o decorrer da própria História – sofreu processos significativos, uma vez que, nas sociedades orais, por exemplo, havia a função específica de guardar conhecimentos importantes e as histórias coletivas de cada grupo. Segundo Jacques Le Goff, a evolução da memória está unida ao surgimento e propagação da escrita, pois “não é unicamente uma atividade nova de organização do saber, mas um aspecto da organização de um novo poder” (LE GOFF, 1990, p. 436), uma vez que, ao longo dos tempos, classes e grupos lutam para deter o comando da memória, buscando escapar do esquecimento. Observamos que, com o desenvolvimento da escrita (e sob uma perspectiva hegemônica), as histórias orais perderam a legitimação e a credibilidade, já que apenas as escritas, na modalidade acadêmica ou não, eram válidas. Notamos que esse fato também ocorreu no continente africano, principalmente nos países colonizados, cujas sociedades eram essencialmente orais, e que, com a chegada do colonizador, lhes foi imposto o processo da escrita. Esta, dentro de um plano de ocupação e colonização, acaba por se configurar como um instrumento de imposição de poder, como bem nos lembra Manuel Rui, em um de seus textos mais conhecidos: A partir dai, comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mais tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também sistematicamente no texto que fazias escrito intentavas destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence (MONTEIRO, 2008, p. 27).
Ora, com a entrada da escrita em cena, a história acadêmica ganhou espaço por um tempo, porém, como nos mostra Beatriz Sarlo, ela tem seus próprios métodos, suas restrições formais e institucionais e se preocupa mais com “regras internas do que com a busca 34
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de legitimação externas” (SARLO, 2007, p. 14). Talvez, por esse motivo, as histórias orais e os testemunhos voltaram a ganhar espaço, ainda mais em sociedades que vivenciaram silenciosamente anos de conflitos armados e de guerras. Ainda que discutindo questões acerca da América Latina, o que escreve Beatriz Sarlo (2007) pode ser facilmente transferido para o contexto angolano, já que, com a independência do país (1975), a história passa a ser (re)contada por vozes de sujeitos, (antes, colocados na condição social de marginais). Estes que foram ignorados, excluídos e silenciados, agora exigem outros métodos e escutam alguns destes discursos de memória: jornais, cartas, orações, conselhos, conversas e notícias. Com isso, é possível encontrar um ponto de consonância entre a produção ficcional angolana no contexto pós-colonial e a prática de valorização da oralidade, posto que, com bem sublinha Beatriz Sarlo, “a história oral e o testemunho restituíram a confiança nessa primeira pessoa que narra sua vida (…) para conservar a lembrança ou reparar uma identidade machucada” (2007, p. 19). Assim, notamos que as memórias, individual e coletiva, voltam a ter credibilidade e passam a ser legitimadas, frente às memórias escritas por uma pequena elite que detinha o poder até então. Interrogada esta pretensa hierarquia (o predomínio valorativo do escrito sobre o oral), o que antes era considerado um procedimento marginal ganha o estatuto de gesto central, constituindo-se num instrumento eficaz para a repaginação da história atual, a reconfiguração de novos projetos identitários e a observação atenta de uma trama efabulatória das diferenças. Além de como entendemos a memória, como instrumento eficaz para a conservação e a recuperação do passado, é preciso, ainda, nos determos ao fato de que a memória, para ser posta em cena, precisa de sujeitos que façam uso dela e com ela estabeleçam relações estreitas. Bergson, por exemplo, em seus estudos, concebeu a memória, para além de um estatuto instrumental de operacionalização, percebendo-a por um viés também espiritual, como sublinha Ecléa Bosi: O método introspectivo conduz a uma reflexão sobre a memória em si mesma, como subjetividade livre e conservação espiritual do passado, sem que lhe parecesse pertinente fazer intervir quadros condicionantes de teor social ou cultural. A memória é, para o filósofo da intuição, uma força espiritual prévia a que se opõe a substância material, seu limite e obstáculo (BOSI, 2005, p. 54).
Percebemos, portanto, que, em seu estudo, Henri Bergson lança a proposta de discutir a relação entre memória e matéria/cérebro, não incluindo os sujeitos que fazem uso da memória e tampouco as relações sociais e/ou culturais entre esses sujeitos e os fatos lembrados. No entanto, em estudos posteriores, como os de Maurice Halbwachs, em A memória coletiva, por exemplo, observamos que a memória não pode ser considerada apenas espiritual ou individual, ainda que seja algo vivenciado numa dimensão de isolamento
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e solidão, porque, na realidade, como contesta Hallbwachs, “nunca estamos sós. Não é necessário que os outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem” (1990, p. 25). Diante da citação acima, notamos, então, que essa memória individual depende das relações que o sujeito tem “com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo” (BOSI, 2005, p. 54). É, a partir destas estreitas relações, que o indivíduo se reconhece dentro dos meios sociais e culturais dentro dos quais se vê inserido. Logo, ficamos a nos interrogar se este processo não encontra uma consonância com o procedimento do personagem José Buchmann, de O Vendedor de passados? Não é ele que assume a memória individual dada e construída a partir de outros sujeitos, como as histórias de sua família e através das relações, estabelecidas fora da realidade externa da narrativa, com seus parentes, ainda que de maneira inventiva? Interessante observar tal operação na construção ficcional do personagem, já que, em contrapartida, a memória do indivíduo e a dos outros sujeitos, dificilmente, se confundem, posto que não seria possível lembrar aquilo que não foi vivido ou sentido em determinado tempo. Pensando, portanto, na memória coletiva, podemos afirmar que ela é arquitetada a partir das relações entre as memórias de cada indivíduo, como bem esclarece Maurice Halbwachs: A memória coletiva, por outro, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela evolui segundo suas leis, e se algumas lembranças individuais penetram algumas vezes nela, mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência pessoal (HALLBWACHS, 1990, p. 53-54).
Ou seja, as memórias individuais ajudam na construção de uma memória coletiva, seja ela da esfera da família, de um grupo ou até mesmo de uma nação. Interessante observar o encontro de perspectivas, no tratamento deste tema, de Hallbwachs com as de Jacques Le Goff (1990), por exemplo, para quem a memória coletiva seria também um instrumento de construção de uma identidade coletiva e comunitária. Neste sentido, como não perceber o jogo de tramas identitárias tecidas por José Eduardo Agualusa? A identidade angolana, construída na efabulação de O Vendedor de Passados, se, por um lado, se constitui como algo fabricado e vendido, por outro, ao mesmo tempo, evidencia-se como algo extrema e ricamente inventivo, pois o personagem Félix Ventura vende passados mais “interessantes” e “melhores” àqueles que buscam o seu ofício de inventor destes tempos pretéricos imaginários. Apesar de sua condição de matéria comprada, é bom sublinhar que essas memórias individuais compradas, ao se relacionarem com outras – inclusive as dos próprios compradores –, criam uma memória outra, também de caráter coletivo. 36
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Essa coletividade efabulada abrange não apenas a elite angolana, mas também a população, uma vez que a segunda não pode manipular as histórias e as memórias como faz a primeira, ou, pelo menos, não possui os mecanismos e o poder econômico para tal operação. Notamos esse fato no romance, no diálogo entre Félix e o Ministro, em que este deseja renomear o Liceu com o nome de um carioca que é descendente de seu novo avô: – Este é o seu avô paterno, Alexandre Torres dos Santos Correia de Sá e Benevides, descendente em linha directa de Salvador Correia de Sá e Benevides, ilustre carioca que em 1648 libertou Luanda do domínio holandês… – Salvador Correia?! O gajo que deu o nome ao liceu? – Esse mesmo. – Julguei que era um tuga. Algum político lá da metrópole, ou um colono qualquer, por que mudaram então o nome do liceu para Mutu Ya Kevela? – Porque queriam um herói angolano, suponho, naquela época precisávamos de heróis como de pão para a boca. (…) – Porra! Quem teve a estúpida idéia de mudar o nome do liceu?! Um homem que expulsou os colonialistas holandeses, um combatente internaciolista de um país irmão, um afro-descendente, que deu origem a uma das mais importantes famílias deste país, a minha. Não, cota, isso não fica assim. Há que repor a justiça. Quero que o liceu volte a chamar-se Salvador Correia e lutarei por isso com todas as minhas forças. Vou mandar fazer uma estátua do meu avô para colocar à entrada do edifício. Uma estátua bem grande, em bronze, sobre um bloco de mármore branco. (…) (AGUALUSA, 2004, p. 120-21).
É possível também observar, por meio do diálogo acima, uma crítica direcionada a um processo controlador de informações e (por que não?) da própria história, posto que a memória coletiva passa a ser construída através da manipulação e de um jogo de poder, já que quem está à margem da sociedade não pode tomar decisões nas histórias a serem deixadas para as gerações futuras. Ou seja, até a história coletiva, deixada como herança para tempos futuros, não acabaria sendo alvo do silenciamento imposto pelas classes dominantes, cabendo unicamente a elas a execução de uma voz possível nos discursos oficiais? Conseguimos constatar também que essas memórias coletivas estão em constantes mudanças, já que “a menor alteração do ambiente atinge a qualidade íntima da memória” (BOSI, 2005, p. 55), bem como nos é demonstrado no exemplo acima, em que uma modificação no espaço – o nome do Liceu ou a colocação da estátua – pode alterar a memória coletiva. Assim, o narrador expõe que, agora, acredita, por meio de Félix, que o passado
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pode ser mudado: “o passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terrível, e lá ficará para sempre. (Eu acreditava nisto antes de conhecer Félix Ventura)” (AGUALUSA, 2004, p. 59). Dessa maneira, fica a sugestão para o leitor de que o passado pode não ser um elemento estável e que o mesmo igualmente poderá ficar guardado em nossas memórias da maneira como aconteceu (ou, quem sabe, como poderia ter acontecido?). Bosi, retomando a fala de Halbwachs, afirma que: […] lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual (BOSI, 2005, p. 55).
Nessa perspectiva, podemos notar que o passado e, consequentemente, a memória podem ser repensados e reconstruídos conjuntamente com elementos que se encontram em nosso presente. Se, por um lado, ele pode estar sujeito a certas manipulações do poder, de outro, é possível servir como fonte de criação e de repaginação de tempos pretéritos, propiciando, assim, novas efabulações e novos jogos identitários. Diante das abordagens realizadas e encerrando as nossas breves reflexões, retomamos a epígrafe que se encontra no romance O Vendedor de Passados, “O passado é / um rio que dorme /e a memória uma mentira /multiforme”, de Dora, a Cigarra, para, assim, pensar o passado comparado a um rio em movimento, que se mistura com outros elementos encontrados no caminho, possibilitando o torna-se outra coisa. Comparados os dois – o passado e a água –, notaremos que esta, dependo do recipiente que for colocado, adapta-se e adquire outras formas, permitindo (como o próprio passado) uma saudável e criativa repaginação.
Referências bibliográficas AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004. BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad.: Paulo Neves. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. HALL, Stuart. Da diáspora. Org.: Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. HALLBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad.: Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990. LE GOFF, Jacques. “Memória”. In: História e memória. Trad.: Bernardo Leitão et alii. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 423-483.
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Emily de Carvalho Pinto é licencianda em Letras (Português-Espanhol) pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), é bolsista de Iniciação Científica da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Atualmente, vem desenvolvendo projeto de pesquisa intitulado “Reconstruindo passados: memória e identidade cultural na literatura angolana pós-colonial”, sob a orientação do Prof. Dr. Jorge Valentim.
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O SÉCULO XX E OS INFLUXOS DE SISTEMATIZAÇÃO NA LITERATURA ANGOLANA (contribuição para uma história da literatura angolana)1 INOCÊNCIA MATA* […] um ano não é função dos anos vindouros. É um bom ano se nele estão presentes os germes que começam a crescer, porque desses íntimos nascimentos poderá sair o futuro; é feliz se decanta e aperfeiçoa o que recebeu dos anteriores. ÁNGEL RAMA
Resumo: Se a publicação em 1934 de O Segredo da Morta (depois da sua existência folhetinesca em 1929), de António de Assis Júnior, é um marco importante da literatura angolana, por este poder ser considerado o último representante dos “intelectuais angolenses”, será com Óscar Ribas que a vertente documentalista destes primeiros tempos, inaugurada por Alfredo Troni com Nga Mutúri, ganha uma dimensão de etnografismo ficcional, de conhecimento da Terra, embora de forma diferente do posicionamento ideológico das gerações anteriores. Porém, qualquer estudo histórico que intente uma periodização da literatura não descarta a dimensão social e política das transformações históricas, que a literatura acaba por assimilar no conjunto da sua produção. Assim, é importante reflectir sobre o lugar das coordenadas que levaram à conceituação e ao reconhecimento do sistema literário angolano e o lugar de Óscar Ribas nesse processo. PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA ANGOLANA, SISTEMA LITERÁRIO, ALFREDO TRONI, ANTÓNIO DE ASSIS JÚNIOR, ÓSCAR RIBAS1
The twentieth century and the influxes of systematization in the literature of Angola (contributions to a history of angolan literature) Abstract: If the publication in 1934 of O segredo da morta (after its feuilletonistic existence in 1929), by Antonio de Assis Júnior, is an important landmark in Angolan literature, for this can be considered the last representative of the “Angolan intellectuals”, it will be with Oscar Ribas that the documentalist aspect of these early times, inaugurated by Alfredo Troni with Nga Muturi, wins a fictional ethnografysm dimension, of knowledge of the Earth, although differently than the ideological positioning of previous generations. But any historical study that bringing a periodization of literature does not rule out the social and political dimensions of historical transformations tha the literature ultimately assimilate in the whole of its production. 1 Este texto é um alargamento da intervenção sobre “O tempo de Óscar Ribas e os influxos da sistematização literária angolana”, apresentada na Conferência Internacional sobre a Vida e a Obra de Óscar Ribas, no âmbito das comemorações do Centenário de Óscar Ribas (Ministério da Cultura, Luanda, 17-19 de Agosto de 2009). Texto ampliado para este dossier em junho de 2012, em Macau.
Thus, it is important to reflect about the place of the coordinates that led to the conceptualization and the recognition of the Angolan literary system and the place of Oscar Ribas in this process. KEYWORDS: ANGOLAN LITERATURE, LITERARY SYSTEM, ALFREDO TRONI, ANTÓNIO DE ASSIS JÚNIOR, ÓSCAR RIBAS
1. Na esteira de uma feição nativista Na sua Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido afirma, logo na introdução, a conveniência de distinguir entre […] manifestações literárias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização (CANDIDO, 1975, p. 23).
Ao estabelecer como princípio de interpretação do fenómeno literário a sua relação com a sociedade, a cultura e a civilização, o crítico brasileiro dá a nota de que qualquer estudo histórico que intente uma periodização da literatura não deverá descartar a dimensão social e política das transformações históricas, que a literatura acaba por assimilar no conjunto da sua produção. No caso da literatura angolana (sintagma que não deve confundir-se com “literatura em Angola”), de que urge fazer uma história para além de produtivas panorâmicas, as propostas de Robert Scarpit, Antonio Candido e José Aderaldo Castello, por exemplo, talvez ajudem a perceber a dinâmica da existência de um sistema que, mergulhando as suas raízes ainda na primeira metade do século XIX, apenas encontrará sistematicidade a partir do século XX, embora os influxos desse processo já se notem a partir dos anos 1880. Com efeito, seja de intenção literária ou de pendor informativo, jornalístico ou ensaístico, essa produção oitocentista vai laborando, larvarmente, na construção de um campo literário marcado pela convergência ideológica de um sentimento de pertença a um espaço comunitário (o espaço angolense) e pela regularidade, duas coordenadas que intervêm na construção de uma literatura cujo início sempre foi de uma intensa conflitualidade e prenhe de ambiguidades históricas, ora temperada pelo nativismo ora pela ideologia nacional(ista). Começando por entender o nativismo como sentimento de adesão ao mundo africano (natureza e gentes, costumes e hábitos), esta adesão não se esgotou, porém, no enlevo pela visão do exterior, senão também se constituiu como um dado indiciador do
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sentimento pátrio que, já na primeira metade do século XX, resultaria numa africanidade irresolúvel que a “geração da Mensagem” actualizaria na sua produção. Com efeito, para Mário Pinto de Andrade, […] o nativismo era o termo pelo qual o segmento intelectual dos “filhos da terra” exprimia o sentimento colectivo de serem os portadores dos valores culturais dos seus países, o signo da sua identificação e o ponto de encontro das aspirações a uma futura autonomia, se não independência (ANDRADE, 1997a, p. 73).
Porém, porque ainda não são “autorizados” os estudos sobre este período da literatura angolana, as perspectivas sobre o nativismo, sobretudo da área dos estudos das literaturas latino-americanas, podem ser um bom ponto de partida, em particular as propostas teóricas de Cornejo Polar, Ángel Rama e de Álvaro Santi, estudiosos que falam, respectivamente, da “experiência” dos nativismos peruano, uruguaio e brasileiro (gauchesco). O que é transversal nessas perspectivas diacrónicas é que o nativismo é visto como o resultado de um processo de consciência da diferença conducente a uma autonomização estéticocultural por via de “arquétipos literários” que se vão consolidando “através da invenção de uma linguagem e de uma tonalidade expressiva” (RAMA, 2008, p. 51). Embora sob uma perspectiva diferente, e na contramão de outras produções no mesmo espaço geográfico, é ao reflectir sobre o lugar das coordenadas que levaram à conceituação e ao reconhecimento das produções de Angola que se impõe falar do lugar, no processo de constituição do sistema literário angolano, de António de Assis Júnior (18771960) e de Óscar Ribas (1909-2004), epígonos do nativismo angolano. No entanto, dadas as ambiguidades estéticas e ideológicas da sua produção, não é tarefa fácil encontrar um só lugar para estes escritores na longue durée do processo literário angolano. Isso porque se por um lado Óscar Ribas, que começou a escrever logo na segunda década do século XX (Nuvens que Passam, 1927), não apenas não se fixou num género literário (e, neste contexto, inclui-se no cardápio dos géneros literários o ensaístico), como atravessou o século a escrever, tendo o seu último livro publicado em vida o primeiro de poesia, Cultuando as Musas, em 1992. Esse longevidade etária e autoral concede-lhe um lugar original na literatura angolana, mesmo se comparado com António de Assis Júnior, anterior em geração etária, mas não literária. Com efeito, se a publicação em 1934 de O Segredo da Morta (depois da sua existência folhetinesca em 1929), de António de Assis Júnior, é um marco importante da literatura angolana, será com Óscar Ribas que a vertente documentalista destes primeiros tempos, inaugurada por Alfredo Troni com Nga Mutúri, ganha uma dimensão de etnografismo ficcional, de conhecimento da Terra, que doravante será representada como sujeito colectivo e como uma comunidade cultural particular. É este facto que faz de Óscar Ribas um pioneiro partícipe do processo fundacional da ficção angolana, ao lado de Assis Júnior e de Castro Soromenho. 42
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Por outro lado, se da bibliografia de Óscar Ribas consta uma obra como Resgate de uma Falta (1929), em que Angola não surge nem como espaço de motivação (apesar da referência à personagem que fez o serviço militar na “Colónias” – entenda-se africanas), o autor envereda por uma escrita programaticamente etnográfica, de reconhecimento cultural, no momento em que a ideologia colonial começa a ser incrementada, nomeadamente com a acção da Agência-Geral do Ultramar. É importante considerar a acção desta instituição que promovia concursos incentivando à produção colonial, regulamentados pela portaria Portaria no 6.119, de 1926, cujo parágrafo 1o assim considera: “Será sempre preferida a literatura na forma de romance, novela narrativa, relato de aventuras, etc. que melhor contribua para despertar, sobretudo na mocidade, o gosto pelas causas coloniais.” Nas primeiras décadas do século XX pode dizer-se que a obra de Óscar Ribas cumpre esse desígnio – um desígnio que então o novo Regulamento do Concurso de Literatura Ultramarina2 consignava através da promoção da literatura literatura colonial e/ou ultramarina. Até porque Uanga, uma obra de 1951 que o próprio autor classificou como romance “folclórico”, é trespassada por uma visão decorrente da ideologia colonial segundo a qual os usos e costumes são apresentados como pertencendo a uma cultura cujo grau de “evolução” é ainda precário, ainda que a intencionalidade se possa descobrir elevatória, como no seguinte trecho: Mesmo que o alembamento seja pura especulação, como se afigura à luz da contemporaneidade, a seu favor ainda se ergue ponderosa razão: um costume como outro qualquer. Ao invés do que muita gente supõe, o alembamento não pertence ao domínio exclusivo das baixas camadas dos aborígenes de África. Para estímulo do trabalho ou não, também vigorou em antigas sociedades da nossa civilização. Na Lombardia, por exemplo, existia o morgincape – prémio da virgindade (RIBAS, 1985, p. 57-58).
Não admira, pois, que o autor tenha considerado o seu romance um retrato do “ambiente dos indígenas de Luanda”, no qual “predomina o feiticismo”. Essa visão eurocêntrica das manifestações culturais das gentes da Luanda oitocentista não dominuem, porém, a intensa adesão do autor à terra, de que resultaram obras de pesquisa folclórica, etnográfica e linguística. Na verdade, mesmo considerando que Uanga não seria um exemplo de literatura colonial (ou ultramarina), por se tratar de um romance que apresenta o mundo africano na sua dimensão de sujeito cultural – aliás, tal como em Homens sem Caminho (1942) ou Noite de Angústia (1939), de Castro Soromenho, que em 1941 ganhou o prémio 2 O novo Regulamento do Concurso de Literatura Ultramarina data de 4 de Janeiro de 1954 (que substituiria o de 1932) e contemplava prémios nas modalidades de: novelística, poesia, história e ensaio (sociológico, etnográfico ou de outros temas relacionados com a vida do homem e conhecimentos afins).
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de literatura colonial com o último romance – a obra de Óscar Ribas participa dessa dupla faceta de escritor de fronteira (temporal e não identitária): por um lado, um dos precursores da moderna ficção angolana e, por outro, um celebrado escritor cuja obra se apresenta “um documentário da sociedade negra inculta” na sua variegada dimensão.
2. As produções fundacionais e os influxos de sistematicidade Razões políticas, tanto as cozinhadas entre a metrópole e seus aliados (de que a Conferência de Berlim é um facto importante) quanto as temperadas na própria metrópole (a proclamação da República em 1910, o golpe de Estado de 1926, a Ditadura Militar e a Nova Constituição de 1933 e as consequências políticas daí decorrentes no que concerne ao processo civilizatório) tiveram sérias repercussões na colónia de Angola (e em outras, obviamente). No entanto, na colónia vivia-se um período de intensa efervescência intelectual e cultural sendo uma das faces visíveis dessa actividade o início das sistematizações das (até então meras) manifestações literárias. Com efeito, Não basta haver obras literárias, boas e bem sucedidas, para que exista uma literatura. Para conquistar tal denominação, as distintas obras literárias, bem como os movimentos estéticos, devem responder a uma estrutura interior harmônica, dotada de uma continuidade criadora, de um desejo de futuro, de uma vida real que responda a uma necessidade da sociedade na qual funcionam (RAMA, 2008, p. 49).
Essa estrutura interior, dotada de um desejo de futuro, tornou-se bem visível no contexto da história do colonialismo português, temperada nos meandros do Estado Novo português, em que se dá o surgimento de um discurso literário pautado, a partir dos finais do século XIX e princípios do século XX, pela publicação, na metrópole e na colónia, de obras de intenção literária que convergem para a formação de uma literatura marcada pela espácio-temporalidade angolana. E é então que se erige a obra fundacional da ficção angolana o romance O Segredo da Morta, publicada em 1934, por aquele que pode ser considerado o último representante dos “intelectuais angolenses” (também autor do Dicionário Kimbundu-Português) acontece depois de um hiato na regularidade da produção escrita, em termos de obra significativa, pela “geração de 1880”. Esta é, porém, a segunda obra deste activista político, que pagará com uma “prisão de carácter militar”, mesmo antes do golpe de 28 de Maio de 1926, a veleidade de uma constante e corajosa intervenção cívica, de que resultou o “opúsculo” intitulado Relato dos Acontecimentos de Dala Tando e Lucala (1917), narrativa ensaística em que o autor dá testemunho de uma Revolta dos Nativos,
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acontecimento importante para o movimento nativista que ainda na primeira metade do século XX iria transformar-se em movimento nacionalista. Assis Júnior é, portanto, herdeiro das portentosas “gerações” das últimas décadas do século XIX (1880-1890), do jornalismo opinativo e literário – cuja designação, embora consensual, é polémica – que podem considerar-se precursoras do processo nacionalista angolano que se sistematizará, cerca de quatro décadas depois, com outros predicativos, a ideologia nacionalista da cultura no “Movimento dos Novos Intelectuais de Angola” (1948): “o momento alto do nativismo será” – diz Mário Pinto de Andrade – “atingido nas primeiras décadas do século presente [século XX], em que os escritos de protesto encontraram uma materialização nas associações de carácter político (ANDRADE, 1997a, p. 73). Nessa altura (o dealbar do século XX), nomes importantes a que se junta o de Assis Júnior convergem nessa incubação do sentimento de pátria, categoria que nos períodos subsequentes será consubstanciada discursivamente também a partir do paradigma estético: como lembra Ángel Rama, “uma criação estética [é aquela] que promove o desenvolvimento histórico de uma sociedade, graças ao conjunto de escritores que atuam nela e a ela se dirigem” (RAMA, 2008, p. 49). Para trás ficara uma intensa e programática actividade jornalística, cultural e ensaística (científica) da elite dos “filhos do país”, designação abrangente em termos de pluralidade étnica e sociocultural. Trata-se, também, de uma designação que não ignora que a visão cultural desse grupo sobre as populações africanas ainda seria marcada por uma determinação hierarquizante – concentrada na dicotomia civilizado/gentio – que releva de seus escritos e da sua poesia: para tomarmos como exemplo a criação estética, note-se que tanto em “Uma Quissama” quanto em “Kicôla”, de Cordeiro da Matta, não existe uma identificação entre sujeito enunciador e sujeito poético, com o qual aquele empatiza sem dúvida, mas com o qual não se identifica, erigindo-se, pelo contrário, o sujeito enunciador a mediador do diálogo entre os dois agentes provenientes de sistemas sociais, para os aproximar nas suas diferenças de gestos, espaços e normas de socialização, como neste já referido poema bilingue (kimbundu-português), “Kicôla”: – “Eie, ngana, úarimûca, “o senhor é muito esperto” queria dizer, decerto; uzúella câla ûa cûca!… (…) Depois falei-lhe ao ouvido e me respondeu: – “Kicôla!” – “não pode ser!… Ai! que tola! por quem o foi proibido?!”…
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O mesmo autor, Cordeiro da Matta, a quem Mário António considera, “o pai da literatura nacional angolense”, que sobre si diz: “[…] nunca houve em Angola um nativo que tomasse tanto a peito o estudo das tradições e da língua vernácula como o modesto autor deste livrinho3 o tem feito, sem outro fim senão contribuir com o seu pouco para civilização da sua terra (apud ANDRADE, 1997a, p. 52; grifo meu). Interessante é notar a clara assunção da posição social desses agentes, entendendose esse lugar como decorrente do sentido de “espaço social” de Bourdieu, de múltiplas dimensões a partir do qual esses “filhos da terra” se definem: contribuir com o seu pouco para civilização da sua terra. Seja como for, pode dizer-se que neste aspecto não é clara a gestão que os “filhos da terra” (ou “filhos do país”) fazem da coexistência dos dois referenciais civilizacionais (ideológicos, em última instância), que não raro são apreendidos e processados de modo hierarquizante, num jogo perverso entre público/privado, tradição/modernidade, cultura/folclore, numa altura em que a política colonial do assimilacionismo tomava corpo e se sistematizava através de uma terminologia judicativa com intuitos discriminatórios, embora a sua regulamentação aparecesse muito mais tarde. Por isso há quem a considere, como fez Mário Pinto de Andrade em Origens do Nacionalismo Africano (1997a), uma elite proto-nacionalista, sobretudo se a compararmos com a verve marcadamente independentista da geração que lhe herdou a feição reivindicativa, a geração dos “novos intelectuais”, a dos poetas-políticos: tanto em Mensagem – A Voz dos Naturais de Angola (1950-1951, apenas dois números), da Associação dos Naturais de Angola, quanto em Cultura (2a série, 1957-1961, 13 números), da Sociedade Cultural de Angola, incitava-se, segundo Mário Pinto de Andrade, “os jovens a redescobrir Angola em todos os sentidos através de um trabalho colectivo e organizado, exortava a produzir para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações positivas válidas, exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica natureza, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo colonialista. Tudo deveria basear-se no sentido estético na inteligência na vontade e na razão africanas” (ERVEDOSA, 1979, p. 102). Esse percurso de consciencialização cultural com repercussões na escrita literária, que remonta a 1849, ano da publicação de Espontaneidades da Minha Alma, aquela que é considerada a primeira manifestação de intenção literária no espaço territorial de Angola, e primeira cuja autoria é de um natural desse espaço,4 assim como, ainda no século XIX, teve seguimento em trabalhos de intenção literária5 de Eduardo Marecos (1836-1879), Juca, 3 O “livrinho” a que se refere o autor é: Philosophia Popular em Provérbios Angolenses (Lisboa: Editora António Maria Pereira, 1891). 4 Por isso atrás ficou referido que não se trata de literatura produzida em Angola, se não aquela que se considera angolana. 5 Note-se que não se pretende traçar o percurso de consciencialização nacional(ista), razão pela qual esta reflexão não cita outros textos de intelectuais incontornáveis como José de Fontes Pereira, Mamede Sant’Ana e Palma, Arcénio de Carpo ou João Ignacio de Pinho e, já no século XX, António Joaquim de Miranda, Francisco Castelbranco ou Augusto Tadeu Bastos, entre outros intelectuais que fizeram a diferença pátrida nas últimas décadas de oitocentos e nas primeiras de novecentos.
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a Matumbolla: Lenda Africana (1865); Alfredo Troni (1845-1904), Nga Mutúri: Cenas de Luanda (1888, primeiramente em publicação folhetinesca, em 1882); Cordeiro da Matta (1857-1894), Delírios (1887); e Pedro Félix Machado (1860-1907), Scenas d’ África: Romance Íntimo (1880/1892), O Filho Adulterino (2a edição: 1892) e Sorrisos e Desalentos (1892). Vale, no entanto, não esquecer que essa espácio-temporalidade não é sempre uniforme: ora ela é rarefeita (como em Scenas d’África), ora plena, como em Nga Mutúri que, embora o subtítulo indique uma localização espacial, mapeia a deslocação que levaria a uma “Luanda crioula”, expressão de Mário António para referir um espaço social mestiço que, no entanto, nunca pretendeu expandir a toda a área geográfica de Angola;6 e, mais tarde, já no século XX, como em O Segredo da Morta, de António de Assis Júnior, como já se viu. Assim, por ocasião do dealbar do século XX, a existência de uma literatura produzida em Angola por naturais daquele território era já uma realidade, considerando-se que estas obras não esgotam o corpus das obras então aí produzidas. É que também há textos que, mesmo não sendo textos de intenção literária – um critério que, embora actualmente contestado pelos “estudos culturais”, é muito importante para a consideração do “campo literário” – convergem para este rastreamento, pela transformação do “local da cultura” (H. Bhabha) em “local da diferença” (M. Seligman-Silva): isto é, fazer dialogar e significar a constelação de diferenças a partir das quais o paradigma identitário se construiu. Esse corpus diferenciador também se constitui com textos dispersos publicados em revistas e jornais, com especial destaque para os Almanachs, mas também com obras como Philosophia Popular em Proverbios Angolenses (1891), de Cordeiro da Matta, História de uma Traição (1911), de Pedro da Paixão Franco, ou Relato dos Acontecimentos de Ndala Tando e Lucala [1917], de António de Assis Júnior, entre alguns outros textos, sobretudo os de Luz e Crença e Voz de Angola Clamando no Deserto,7 de 1901, considerados mais informativos do que fazendo o uso estético da língua.8 Mário Pinto de Andrade sintetizou do seguinte modo essa transição: […] era um momento de transição, um momento em que uma geração chegava ao fim – a geração que tinha combatido a colonização, lutado por valores de defesa, a que eu chamo a corrente nativista, na literatura e também na política, que se integrou no movimento panafricanista, em Portugal, que passava por Portugal, que tinha feito jornais, tinha transmitido uma ideia, que tinha tido um discursos nacionalista. Esta geração terminava, envelhecia. Uma outra geração dava os primeiros passos (ANDRADE, 1997b, p. 44). 6 Ver: Luanda, “Ilha” Crioula, Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1968. 7 Para além destas obras, outras há referidas, porém não lidas, que, em todo o caso, convinha não esquecer, como as de Cordeiro da Matta, a saber: O Loandense da Alta e da Baixa Esfera, Repositório de Coisas Angolenses (que julgo existir no Arquivo Histórico), 114 Contos Angolenses, Cronologia Angolana e o romance O Doutor Gaudêncio. 8 Ver nota 4.
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3. Coordenadas ideológicas do reconhecimento do sistema literário Ángel Rama considerava, num texto de 1960, que o sistema literário uruguaio então com cerca de 150 anos, teria funcionado “de modo fragmentário e com extrema precariedade”, afirmando mais adiante que, no entanto, poderia “ser considerada uma literatura orgânica, sendo possível diferenciar períodos condicionados aos diferentes momentos históricos da realidade do país (RAMA, 2008, p. 51). Ora, cem anos medeiam a publicação de Espontaneidades da Minha Alma (1849) e o surgimento de Mensagem (Luanda, 1951), período em que Maurício de Almeida Gomes apela à invenção e à construção da poesia/literatura de Angola: Encostai o ouvido atento ao coração do novo negro, escutareis só vós, poetas da minha terra, que estais por nascer, aquilo que para outros é segredo defeso, mistério da esfíngica, malsinada alma negra. criai ânimo, ganhai alento,, e vibrantemente cantai a nossa terra!
É preciso forjar a poesia de Angola! Essa nova poesia será vasada em forma candente sem limites nem peias, diferente!… (…) Uma poesia nossa, nossa, nossa! - cântico, reza, salmo, sinfonia, Que uma vez cantada, Rezada, Escutada, Faça toda a gente sentir Faça toda a gente dizer: É poesia de Angola!
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E, todavia, a recepção dessa produção como angolana começara a verificar-se, desde o século XIX, por via de uma convergência de coordenadas feita de uma regularidade temática e uma vinculação sociocultural e física que vão doravante ser uma constante na produção de intenção literária. Talvez não se possa falar então de “arquétipos literários”, categoria acima referida, mas não me parece temerário falar de tradição. E é neste sentido que se pode considerar, a partir da segunda metade do século XIX, um funcionamento sistémico, no sentido em que José Aderaldo Castello o entende, tanto em Manifestações Literárias da Era Colonial (1960) quanto, muito mais tarde, em A Literatura Brasileira: Origens e Unidade (1999) e que Antonio Candido assim explicita referindo-se aos “denominadores comuns que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase”, em citação que recupero do início: Estes denominadores são, além das características internas, (língua tema, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes de seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece, sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de interpretações das diferentes esferas da realidade (CANDIDO, 1975, p. 23-24).
No caso angolano, como se construíram esses denominadores na capacitação orgânica da produção literária de Angola? Tratando-se de um país colonizado, o estudo da formação da literatura tem de se fazer em relação com o processo de formação histórica da nação enquanto “comunidade imaginada” e o da construção do sentido da nacionalidade angolana e sua validação político-ideológica. Na verdade, deveria dizer da passagem da ética angolense, da autonomia, à ideologia angolana, da soberania. É que, não sendo o colonialismo apenas um sistema político, é sobretudo um sistema que privatiza a cultura e a instrumentaliza na perspectiva do colonizador com vista à subalternização da cultura do colonizado – daí Bernard Mouralis falar em ideologia colonial, cuja função é a de explicar e justificar os determinismo internos e externos que tornam legítima a situação colonial (MOURALIS, 1984, p. 21), expansão substantiva da categoria “cultura colonial” conceptualizada por Aimé Césaire tanto em Discours sur le Colonialisme (1955) quanto em “Culture et colonisation” (1956). Assim, parece um equívoco considerar que os primórdios da literatura angolana decorram
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do resultado somativo de manifestações escriturais, literárias ou outras, de portugueses metropolitanos e colonos. Afastando-me dessa linearidade substantiva e temporal, estou convencida de que a literatura angolana, no seu processo de diferenciação em relação ao “local da cultura” portuguesa, afirma-se pela reivindicação de espaços socioculturais e físicos e até geográficos e tempos históricos da metrópole. Isso significa que não se pode falar de literatura neste período sem estabelecer uma relação com a produção intelectual angolense oitocentista e o critério nativista que determinou essa efervescência cultural e o lugar daquelas comunidades interpretativas nesse processo cujas ideologias sociais são compartilhadas e a partir das quais são legitimadas através de leituras “autorizadas” das produções literárias, ensaísticas e jornalísticas. Na verdade, esse grupo – essas comunidades – actuam também como mediadores culturais, como atrás já foi referido. Neste contexto, para além de elementos assimilados da tradição literária europeia, que decorrem do legado português e que poderão estabelecer uma “intercomunicabilidade literária” (José Veríssimo) com Portugal e até com o Brasil, a literatura angolana não é o resultado da transplantação para um novo espaço, Angola, da expressão literária portuguesa, revigorada com/pela cor local. O critério nativista, de que se deduzem inferências ideológicas na captação do particular, convoca, teleologicamente, à originalidade e à autonomia, através de temas e motivos cujo enfoque substantivo é a terra e as gentes, as paisagens e os costumes, os eventos históricos e sociais, que revigoram a consciência nativista e impulsionam o espírito nacional. Tais influxos da relação homem/terra são visíveis nos títulos e subtítulos das obras, tais como Juca, a Matumbolla: Lenda Africana, Nga Mutúri: Cenas de Luanda, Scenas d’ África, O Segredo da Morta – Romance dos Costumes Angolenses ou Uanga, que o próprio autor classificou como romance “folclórico”. Aliás, será Óscar Ribas a exponenciar essa apetência de busca de conhecimento da terra, no seu trabalho etnográfico, tanto de cariz recolectivo quanto reflexivo e criativo: Ilundu: Espíritos e Ritos Angolanos (1958), Misoso I, II, III (1961, 1962, 1964), Alimentação Regional Angolana (1965), Sunguilando: Contos Tradicionais Angolanos (1967), entre outras publicações mais tardias sobre os usos e costumes de Angola, como Temas da Vida Angolana e suas Incidências (1987), e um anunciado Dicionário de Regionalismos Angolanos. Assim, porque é de literatura que se fala, outra coordenadora definidora de sistema tem a ver com a significação e o reconhecimento de determinadas constantes estéticas da produção literária. São essas constantes que pela sua regularidade e seu efeito configurador do sentido angolense permitem lê-las como marcas do nativismo. Enfatizo a palavra reconhecimento reportando-me tanto ao binómio de Bourdieu de que o existir identitário pressupõe não apenas a diferença, mas o reconhecimento dessa diferença, como ao facto de que essa categoria, o reconhecimento, remete para elementos simbólicos de determinado espaço geográfico, valores culturais que funcionam como “marcadores, ou diferenciadores, mais espirituais e afectivos do que materiais (valores, crenças, religião, práticas e relações sociais), substituindo os símbolos que tradicionalmente fazem o elo social da nação segundo o modelo ocidental: o hino, a bandeira, as 50
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datas históricas, os cerimoniais e os monumentos” (MATA, 2010, p. 64). Não por acaso dirão os autores da revista Mensagem (Luanda), significativamente apenas de dois números (em 1951 e 1952), que “tudo deveria basear-se no sentido estético na inteligência na vontade e na razão africanas” (apud ERVEDOSA, 1979, p. 102). A expressão desse sentido estético seriam as marcas que vão desde a construção textual com recurso a um instrumental de apetência etnografista, decorrente da adesão ao mundo angolano, de que narrativas como Nga Mutúri O Segredo da Morta e Uanga são exemplos a um discurso encobridor de uma intencionalidade afirmativa de uma comunidade imaginada. Outra marca é o sentido particularizante do modo lírico – entendendo modo segundo o seu duplo alcance: como forma de expressão (a “efusão”, de que fala Alphonso Reys), como se vê em Delírios; e como forma de conteúdo, referindo a atitude do emissor perante a vida, perante o universo que cria e perante si próprio. Na verdade, não sendo o lírico não é apenas o modo preferido da representação poética e expressão do lirismo amoroso, mas ainda da representação do universo angolano, tal se pode constatar na descrição pessoalizada e por vezes intimista dos espaços em narrativas como O Segredo da Morta, cuja coordenada fundacional, como toda a narrativa, é a temporalidade. Outra coordenada é a existência de um público leitor, ou, na expressão de Stanley Fish, de uma “comunidade interpretativa”, categoria acima referida que permite perceber os condicionantes sociais que orientam a recepção das obras. Estas funcionam como termo do fenómeno comunicativo em que o significado (a interpretação) é construído no interior do contexto cultural e como conteúdo da consciência dos membros dessa comunidade. É que convém aqui enfatizar as dimensões sociocultural e histórica da literatura, a par da sua dimensão fundacional, a estética, para se perceber que não se trata apenas de trabalhar a produção sem ver a eficácia extratextual dessa produção que iria mudar a feição da “cultura literária” em Angola e o seu lugar no contexto da identidade cultural angolana. Está-se, aqui, próximo da noção de recepção como a propõe Locha Mateso (na sua distinção entre recepção e crítica da literatura africana, trabalho a que se propõe em La Littérature Africaine et sa Critique ), recorrendo, para se explicar, às propostas de Tassou Kazaro e de Franco Meregalli: Les deux mots entretienent des rapports d’équivalence – ils réfèrent à la notion de public – mais non d’égalité. La réception concerne l’analyse de la destinée historique de l’oeuvre: voir comment une l’oeuvre et son auteur ont été accueillis ou reçus à travers un espace-temps dterminé. “La critique est (…) une réception appliquée qui ‘utilise la lecture pour une opération ultérieure’” (MATESO, 1986, p. 8).9 9 As duas palavras conservam relações de equivalência – elas se referem à noção de público – mas não de igualdade. À recepção concerne a análise do destino histórico da obra: “ver como uma obra e seu autor foram acolhidos ou recebidos ao longo de um espaço-tempo determinado. A crítica é (…) uma recepção aplicada que ‘utiliza a leitura para uma operação ulterior’.”
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4. Em jeito de conclusão: parâmetros de uma história literária em Angola Não julgo temerário assinalar três obras como pilares do processo de sistematização literária em Angola, dos finais do século XIX aos princípios do século XX: Ngá Mutúri, O Segredo da Morta e Uanga. Com efeito, se a publicação em 1935 de O Segredo da Morta (depois do aparecimento folhetinesco em 1929) de António de Assis Júnior, é um marco importante da literatura angolana, por este poder ser considerado o último representante dos “intelectuais angolenses”, será com Óscar Ribas (com Uanga) que a vertente documentalista destes primeiros tempos, inaugurada por Alfredo Troni com Nga Mutúri, ganha uma dimensão de etnografismo ficcional, de conhecimento da Terra, embora de forma diferente do posicionamento ideológico das gerações anteriores do século XIX. Com estas três obras, o nativismo literário angolano solapa a dimensão da experiência (da mediação cultural) para ir assimilando a vivência do sujeito escrevente. Uma diferença temperada – ou, talvez, condicionada – pelo efeito do hiato na produção literária, advindo do aniquilamento, na 1a década do século XX, da elite intelectual angolense e suas actividades culturais e políticas, que se seguiu à geração de Luz e Crença. Esse período coincidiu – ou foi determinando por – com a implantação das estruturas coloniais e do Estado Novo: entre o Congresso Colonial (1910), o golpe de Estado de 1926 e o Acto Colonial (1933), as autoridades coloniais e, em especial os governos dos Altos Comissários, instituições que forjaram a ideologia cultural do colonialismo português cuja face mais singular é o Estatuto do Indigenato. Destes acontecimentos se formaram corpora de ideias que iriam marcar a feição assimilacionista do colonialismo português, com repercussões na retórica de enunciadores, tanto autorais como textuais, em enunciação, muitas vezes, prenhe de um eurocentrismo nem sempre disfarçado. Faceta de que a obra de Óscar Ribas e Castro Soromenho não ficou imune, e que este autor iria solapar com a sua trilogia de Camaxilo.
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Inocência Mata é doutora em Letras e com Pós-doutoramento em Estudos Pós-coloniais (Postcolonial Studies, Identity, Ethnicity, and Globalization) pela University of California at Berkeley e pela London School of Economics. É professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na área de Literaturas, Artes e Culturas. É membro do Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa e da Association por L’Étude des Literatures Africaines (sediada na França), e Sócia Honorária da Associação de Escritores Angolanos. Autora de obras da área de Literaturas Africanas, dentre elas: Laços de memória & outros ensaios sobre a literatura angolana (2006); A literatura africana e a crítica pós-colonial: reconversões (2007); Ficção e história na literatura angolana: o caso de Pepetela (2010); Polifonias insulares. Cultura e literatura de São Tomé e Príncipe (2010); além de organizadora de obras da mesma temática, tais como When things came together. Studies on Chinua Achebe (2009, com Don Burness e Vicky Hartnack) e A mulher em África (2010, com Laura Cavalcante Padilha), dentre outras.
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“OUVIR E COMPREENDER A MÚSICA DO MAR” cadências e insularidades na ficção cabo-verdiana – uma leitura de A verdadeira dimensão, de Vasco Martins JORGE VALENTIM* Este texto é para Simone Caputo, que, numa certa tarde de 2000, em meio a uma aula na UFRJ, entrou em sala, saudou a todos com um sorriso cabo-verdiano e, diante de uma turma boquiaberta, cantou a sua aula com o tempero do Arquipélago e com a cadência de uma morna. – Escuta com atenção – dizia o velho – escuta com atenção o mar, deves ouvi-lo em silêncio, à noite, se puderes. À noite é melhor, a terra dorme. No mar nasce por vezes uma música longínqua, um murmúrio, uma música deslumbrante que nunca será tocada por outro instrumento que não seja o mar. Se algum dia ouvires essa música, ela dar-te-á a paz que necessitas. [VASCO MARTINS. A verdadeira dimensão.]
Resumo: A partir de uma compreensão de recursos musicais específicos, dentre eles os conceitos de cadência e ritmo, o ensaio propõe uma leitura do romance A verdadeira dimensão (1990), de Vasco Martins, sublinhando determinadas representações sociais, sem excluir a sua costura de um viés artístico refinado na efabulação de certas situações, como o êxodo forçado, as relações afetivas e o modo de ser e estar no mundo do sujeito cabo-verdiano. A exemplo de certas matrizes líricas, presentes em algumas mornas, o escritor (que também é músico e maestro) parece dar uma outra dimensão do cantar cabo-verdiano, redimensionando-o na percepção e na representação do espaço do Arquipélago. PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA CABO-VERDIANA, REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS, DIÁLOGOS CULTURAIS “Listening and understanding the music of the sea”: cadences and insularidades in the fiction of Cape Verde – a reading of The real dimension, by Vasco Martins Abstract: From an understanding of specific musical features, including the concepts of cadence and rhythm, the essay proposes a reading of the novel A verdadeira dimensão (1990), by Vasco Martins, emphasizing certain representations, not excluding its artistic refined sewing in the fictionalization of certain situations, such as the forced exodus, the affective relationships and the way of being in the world of the Cape Verdean subjects. The example of certain lyrical matrices, present in some mornas, the writer (who is also a musician and conductor) seems to give another dimension of the Cape Verdean singing, resizing the perception and representation of space of the Archipelago. KEYWORDS: CAPE VERDEAN LITERATURE, SPATIAL REPRESENTATIONS, CULTURAL DIALOGUES
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o se propor uma leitura de certas representações culturais em textos literários cabo-verdianos, a parada em alguns aspectos artísticos e musicais é quase sempre uma necessidade imperiosa. Isto, talvez, porque alguns objetos de atenção como a culinária, a produção agrícola do milho, os comportamentos, a língua do cotidiano (o crioulo), as danças e os seus ritos preparatórios, as tríplices relações entre os indivíduos, o mar e a terra insular, a prática da pesca, a espera pela chuva e o olhar agônico sobre a estiagem, os ritmos, as múltiplas formas de canto e a morna constituem fontes de referência e códigos eficazes para dar conta das multiplicidades culturais do Arquipélago. Estudos como os de Simone Caputo Gomes (2008), Fernando Arenas (2007 e 2010) e Vasco Martins (1993), por exemplo, dentro deste elenco de opções, sublinham as relações estabelecidas entre o sistema literário cabo-verdiano e as manifestações artísticas e culturais do Arquipélago, procurando não apenas referendar as redes intertextuais e multidisciplinares encontradas nos diálogos entre poesia, ficção, pintura e música, mas também, e sobretudo, vislumbrar a multiplicidade e a pluralidade como marcas fundantes da produção literária e intelectual das Ilhas. Na ficção cabo-verdiana produzida ao longo do século XX, vale lembrar, há casos significativos onde a morna, canção típica do Arquipélago, figura como um elemento relevante para a configuração e a consolidação efabulatórias de certos personagens ilhéus, como, por exemplo, um certo Guarda Toy, músico, poeta popular e cantador de mornas, responsável pelo exercício artístico que dará a propulsão criadora da própria trama ficcional, no conhecido conto de Manuel Lopes “Galo cantou na baía”, ou, ainda, um certo Chico Afonso, do romance Hora di bai, artista popular, mornista, espécie de alter ego de seu criador (Manuel Ferreira), personagem que, na trama, canta a dor da partida e a saudade da terra natal. Artista atento e participante das ocorrências intelectuais e culturais do Arquipélago das últimas duas décadas, herdeiro dos referidos autores acima e leitor de suas obras, Vasco Martins, músico, maestro, compositor, poeta, ensaísta e ficcionista cabo-verdiano, também construirá a sua representação das paisagens e das passagens das Ilhas, no romance A verdadeira dimensão, publicado em 1991. Vale lembrar que, no mesmo ano, o cenário literário cabo-verdiano é marcado pela publicação da antologia Mirábilis – de veias ao sol, com toda uma geração de novíssimos poetas revelados no período do pós-74, grupo, aliás, de que o autor também toma parte, já que naquela publica seis dos seus poemas.1 Com este
1 Com recolha, organização, seleção e apresentação de José Luis Hopfer Almada, a antologia Mirábilis de veias ao sol é lançada com a proposta de procurar representar uma “realidade total sinónima, pois, do mundo da humanidade.” Nas palavras do seu organizador, “a realidade total a que tendo o conteúdo desta antologia é a da cabo-verdianidade nas suas múltiplas facetas (aliás, inesgotáveis quando temas da poesia), inserida na contemporaneidade do nosso tempo e nos seus característicos mal-estar e busca de novos horizontes, novas existências para o homem. Nesse sentido, são os poetas antologiados portadores de uma autenticidade simultaneamente cabo-verdiana e simultaneamente universalista” (1991, p. 23). Com esta proposta de reler temas e aspectos tradicionais da crioulidade do arquipélago, reúnem-se um grupo de poetas que começam a colocar em pauta novas perspectivas e novas concepções de antigos e conhecidos temas desta
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novo conjunto de escritores, segundo Simone Caputo Gomes, “as questões consideradas como tradicionalmente ligadas à crioulidade ou cabo-verdianidade são retomadas em outro contexto, sob novos ângulos, visando a conjugação de aspectos nacionais e universais” (2008, p. 138). Sensível a esta nova corrente de idéias em ebulição, Vasco Martins parece também apostar na releitura de aspectos tradicionais da sociedade ilhoa nas malhas de sua ficção, sobretudo, quando elege para protagonistas da trama, membros de uma família tipicamente cabo-verdiana, encrustada nas terras insulares de São Vicente, todos eles marcados por um profundo sentimento de isolamento, de uma espécie de insularidade individual, que os faz buscar dentro de si próprios o porto seguro onde desembarcar. Longe de ser confundido com um aniquilamento da consciência, com um comportamento alienante ou um egoísmo umbílico, tal sentimento insular pode ser entendido como um meio de expressão por onde o sujeito cabo-verdiano deixa extravasar a sua condição identitária. Neste sentido, Adolfo, o bravo e o “maior pescador de tubarões das ilhas” (MARTINS, 1991, p. 71), encontra conforto no isolamento do mar, na pesca e na sensação de aventura libertária que a sua relação com as águas salgadas e as correntes oceânicas suscitam. Pela perspectiva deste personagem, o narrador põe em evidência o trânsito entre as ilhas, a busca por um horizonte mais largo, que acaba por revelar a demanda pela verdadeira dimensão do homem. Somente pela experiência da travessia de Santo Antão a São Vicente, o personagem passa por uma espécie de rito de ultrapassagem, tornando-se definitivamente um homem do mar: Adolfo tinha ido de S. Antão para S. Vicente, quando toda a gente também fugia à terra ressequida e sem vida. As chuvas demoravam, no ar havia um cheiro acre a terra queimada, os gritos perdiam-se nos vales sem esperança. Os vales eram no entanto majestosos, a ilha era misteriosa. (…) Como nunca estivera no mar, o mar foi para ele, e apesar do enjôo, um elemento estável e seguro como todas as coisas que não se conhecem a fundo. Conhecendo-o a fundo, põe-se em dúvida essa estabilidade. Os pescadores, homens experientes, desconfiam do oceano, e há muitos que, com medo dele, aprendem a nadar. O bote, pedaço de madeira flutuante, é para o pescador a continuação de um pedaço de rocha. Só em cima do bote se sentem seguros, e ao caírem ao mar em geral morrem afogados por desconfiarem e não acreditarem nessa água azul, de um azul penetrante como o céu no mês de Novembro. sociedade. Na antologia, de Vasco Martins, publicam-se seis poemas, a saber: “Um pássaro”, “Manhã submersa”, “Meus hábitos minha vida”, “Por que me prostituis, noite…”, “X – O homem do mar” e “VI – Adormecem as aves da tarde”.
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Para Adolfo, a travessia do Canal ficou-lhe marcada para sempre na memória. Foi nessa viagem que resolveu ser pescador, abandonar a terra, estava cansado de terra ressequida que nem era sua, cansado de esperar a chuva que nunca vinha, ou quando vinha nunca era a tempo, o milho já secava ao calor de um sol amarelo e doente (Ibidem, p. 23-24).
Da terra para o mar, portanto, Adolfo parece ganhar as dimensões de uma ilha, realmente. Cercado também pela água salgada, o pescador recolhe-se do seu cansaço e opta por uma relação com o espaço aquático. Assim, do “tratar a terra das encostas dos montes do Sul” (Ibidem, p. 24), o personagem passa a conviver com o oceano, tirando dele o seu sustento e, com ele, aprendendo as lições de sobrevivência. Neste trânsito, muito argutamente, o personagem passa a ser concebido pelo signo da ambiguidade, e esta acaba por ser transferida também para o filho mais novo, já que, é com o pai, que Manuel aprende o respeito pelas forças oceânicas e pelos seres vivos que nele habitam e também o contato com a terra, apreendendo a sua pertença com o húmus telúrico de onde tirava a sua força: “[…] quando o homem da terra se torna homem do mar torna-se necessariamente ambíguo, uma dupla personalidade estranha. Quando Manuel atingiu dois anos, Adolfo sentiu necessidade da energia da terra. […] Manuel, pequena figura nos ombros do pai, via um mundo novo, a terra renovava-se, as rochas eram enormes figuras de guardiões da terra” (MARTINS, 1991, p. 22). Joana, sua esposa, personagem alegórica das angústias das mulheres das Ilhas, configura em si o drama social dos que transitam pelas margens e, no silenciamento de sua condição, permanecem e vivem. Descrita como alguém que, “com o andar dos anos, soube guardar para si a angústia de ser mulher, a secura da vida” (Ibidem, p. 51), Joana trancase no próprio espaço da casa, fazendo dela não apenas a sua morada, mas uma espécie de espaço intransponível, onde os sentimentos e as sensações não chegam a alcançar a liberdade da expressão direta. De acordo com o narrador, a dimensão desta personagem residia numa atitude de distanciamento e de sufocamento dos seus próprios anseios: Os lamentos de uma mulher que procurava intimamente uma esperança fugidia, um sonho, embora não soubesse muito bem qual seria. (…) A personalidade de Joana era vincada pela pobreza pela qual optou, era uma mulher distante, com harmonia distante. Guardava para ela os segredos mais íntimos, uma vez quis desabafar com a filha antes dela partir com Toy, mas não conseguira. Negara também, muitas vezes, fazer amor com o Adolfo pela necessidade de se sentir ela própria, sentir o seu próprio corpo, só, distante, ela mesma (Ibidem).
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Ora, não há como não observar a consonância de pensamento do autor na construção da sua personagem com aquela ideia, veiculada em muitos textos de autoria feminina, de que a mulher se reencontrava consigo própria e com o seu corpo.2 Aqui, no caso de Joana, o seu corpo parece ser a terra e a ilha por encontrar, espaço onde ecoaria a sua verdadeira dimensão, ainda marcado por uma ambígua expressão de liberdade, já que nele (no corpo) percebe a “necessidade de se sentir ela própria”, e, ao mesmo tempo, uma insularidade enclausuradora, evidenciada pela sensação de estar “só, distante, ela mesma.” Interessante observar que, na sua trajetória, ela sufoca o choro nos momentos de partida dos filhos, suporta em silêncio as aventuras extra-conjugais do seu marido e não se abstém do seu papel de esposa e de mãe, enfim, recolhe os seus sentimentos e apenas os extravasa na companhia da tamareira: “Era a árvore mais bela das redondezas ou talvez da ilha inteira, Joana sentia orgulho nisso, regava-a todos os dias e fizeram-se amigas íntimas, Joana confidenciava os seus segredos, a tamareira só ouvia, não tinha segredos para dizer, era uma árvore bela e serena” (Ibidem, p. 69). Fincada no quintal e plantada, como ela, na terra de São Vicente, a tamareira acaba por estabelecer com Joana uma relação íntima da solidão, posto que, como sua confidente, a árvore acolhe as esperanças desta mulher, que parecem residir numa atitude expectante diante daquilo que vê, diante da vida e do tempo passageiros. Dos filhos do casal, Dudui, o irmão mais velho, é o arquétipo do viajante, aquele que vaga por ilhas e por outras terras, que vê nos iates encostados nos portos “um veículo de evasão, a possibilidade de sair da monotonia da ilha, das mesmas caras, das mesmas discussões, da rotina de ser simplesmente ilhéu” (Ibidem, p. 31), mas que, diante de uma constante necessidade de trânsito, entre terras e mares, é preso por tráfico de drogas e, desencantado por uma paixão mal sucedida, permanece numa atitude expectante, aguardando o retorno de uma mulher dinamarquesa, que jamais lhe responde ou dá sinal de vida. Já a filha, Alícia, encantada com a ascensão social proporcionada pelo enriquecimento rápido do marido, o negociante Toy, isola-se da família, numa atitude explícita de negação da sua origem, buscando depois na gestação de um filho, a esperança de poder recuperar uma intimidade familiar perdida: Toy, como de costume, só voltaria a altas horas da noite, ela decerto que estaria a dormir, nunca ela se sentira tão só perdida na varando enorme, de onde podia ver o mar, esse mar que ninguém já ligava por tanto o ver. Nessa noite de brisa do sul teve saudades da mãe, 2 É de Simone Caputo Gomes a defesa de uma escrita feminina em Cabo Verde sob o signo da liberdade e do tratamento temático de assuntos, antes silenciados pelo cânone historicista. Para a pesquisadora, “Depois de 1975 e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a voz feminina, silenciada pela História da Literatura em Cabo Verde, tem propiciado o aparecimento de uma temática centrada na mulher, em suas ocupações, preocupações, dilemas e novas posturas (cumplicidade, curiosidade, liberdade, loucura, bruxaria, bebedeira, lesbianismo, prostituição, maternidade precoce, violência conjugal, abuso e prostituição infantis, pedofilia, machismo são linhas constantemente desenvolvidas pelas autoras) (GOMES, 2008, p. 155).
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pôs-se a pensar na família de quem se desligara tão levianamente. O que o dinheiro podia fazer, abandonar a mãe que tanto amava, o pai que a compreendia, os irmãos que a cumprimentavam sem a verem, o marido, o marido já com amante por aí, já gordo, e que só via dinheiro à sua frente, parecia que tinha feito um pacto secreto com o diabo, quem saberia? (Ibidem, p. 108).
Somente com a conscientização do afastamento e as consequências do desligamento com os seus entes queridos, a personagem consegue perceber que a sua existência, fora do âmbito da família, perdia completamente a própria razão de ser e colocava em xeque o seu reconhecimento como mulher e como pessoa. Concluindo com um certo ressentimento que, “ao negar desde o princípio o convívio com os pais, negava a sua própria existência, a solidão não terminaria com o dinheiro” (Ibidem), Joana não consegue atingir seus objetivos, permanecendo num duplo estado de espera: primeiramente, pelo filho que não gesta e nem gera, em seguida, pelo convívio familiar que não recupera. Por fim, Manuel, o filho mais novo, sobre quem o narrador nutre uma atenção especial desde o início da trama, parece representar alegoricamente uma nova geração de jovens cabo-verdianos, agora movida por uma sede de saberes que os leva a nutrir um espírito de aventura, de querer conhecer outras terras, outras culturas, outros mundos, e, ao mesmo tempo, vê-se confrontada com a necessidade de evasão, diante da convocação para integrar a tropa do exército e sair da ilha para guerrear numa batalha que não é a sua. Inevitável e revelador, portanto, é o vaticínio da voz narrativa, quando da sua reflexão, no instante do nascimento de Manuel, principia a trama de A verdadeira dimensão: Que é a vida senão uma sucessão de factos, onde os destino dita as suas leis mais estranhas? Na vida tudo é imprevisível, quem nasce cego pode um dia ver o arco-íris com todas as suas cores, e quem nasce com os dois braços pode um dia morrer só com um numa guerra qualquer. Os factos sucedem-se ao ritmo da terra e não há nada nem ninguém que possa mudar esta dança instável (Ibidem, p. 15).
Nas malhas ficcionais, Vasco Martins parece apostar na construção de trajetórias que vão escrevendo seu próprio destino, independentemente de haver deuses que intentem interferir ou outras causas externas que produzam algum tipo de efeito colateral. Diante da inexorabilidade da sucessão do tempo e dos fatos, o homem passa a escrever a sua história pelas linhas imprevisíveis da vida. Gosto de pensar, neste sentido, que atenção especial dada ao personagem Manuel configura mais que uma representação ortodoxamente local e puramente cabo-verdiana. Através do personagem jovem, que descobre o desejo e o amor nos encontros com Lena, que saboreia os temperos da terra nas cachupas preparadas pela mãe, que percebe a sintonia com o pai, no momento da despedida final,
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e que experimenta a amizade solidária com um mais velho, com quem aprende saberes livrescos e conhecimentos também para a vida, Vasco Martins costura um bordado onde o que está em causa não é apenas a expressão cultural do homem do arquipélago, mas, localizado nesse espaço e a partir daquela, intenta investir sobre a verdadeira dimensão do ser humano, sua sensibilidade de observar e absorver os fatos e as situações do cotidiano, redimensionando o seu estar e ser no Arquipélago, para uma esfera mais ampla do estar e ser no mundo na sua condição universal, afinal, como bem nos lembra o narrador: “A verdadeira dimensão de um homem também está em reflectir e diferenciar entre o bem e o mal” (Ibidem, p. 37). Reflexão e discernimento são instaurados, portanto, ao longo dos percursos de cada um dos membros desta família. Adolfo no rito de passagem no mar que o transforma em pescador, Joana no seu pacto introspectivo com a tamareira, Dudui com a amarga experiência da espera por um amor que nunca retorna, Alícia na sua reclusão social e, por fim, Manuel na sua inesperada despedida, no êxodo forçado diante da possibilidade de morrer numa guerra inaceitável. Todos eles passam por esse processo de reflexão, de questionamentos e de discernimento de suas inevitáveis condições. Mas, A verdadeira dimensão é mais que um romance de cores locais sobre a condição universal do homem, é também um romance que investiga as relações dos sujeitos entre si e destes com o seu meio social, geográfico e cultural. Neste sentido, o texto de Vasco Martins constitui-se uma revisão de aspectos tradicionais do Arquipélago, sobretudo, no que diz respeito ao tema da evasão. Esta, agora, longe de figurar naquele antigo dilema do “querer partir / e ter que ficar” (BARBOSA, 2002, p. 73), apresenta-se como uma necessidade imperiosa diante de uma situação-limite – a “evasão de uma engrenagem que não podia tolerar” (MARTINS, 1991, p. 102), afirmará o narrador –, a de confrontar-se com a partida para uma guerra, que, mesmo não mencionada ao longo do texto, poderia evocar, a princípio, a guerra colonial, mas, diante da percepção de uma saída abrupta de “jovens que iam combater e morrer por nada, os interesses eram outros, de estrangeiros desligados das ilhas, da sua ilha, desligados da raça e dessa força íntima de sobreviver, desligados enfim do azul do oceano imenso” (Ibidem, p. 100; grifos meus), o autor acaba por redimensionar o sentido do conflito armado, preferindo não o nomear nem o localizar temporalmente. Deste modo, bem poderia ser entendida como a Segunda Guerra Mundial, mas, diante do drama que se constrói no interior do jovem em plena consciência da sua condição e das consequências de sua partida para a batalha, Vasco Martins opta por pintar um conflito fora de uma dimensão temporal definida, redimensionando-o numa situação-limite universal. Confrontado pela violência iminente, só o homem poderia reescrever os rumos imprevisíveis dos seus passos, o que definitivamente acontece quando este parte clandestinamente das Ilhas, sem que seja revelado o seu destino final. Outra releitura perspicaz do autor cabo-verdiano sobre as peculiaridades culturais de sua terra, para além da evasão, encontra-se na dimensão e na repercussão da morna, dentro do imaginário coletivo dos povos do Arquipélago. Acredito que, aqui, o texto de 60
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Vasco Martins propicia o salutar encontro entre as mãos do músico e do compositor com as do ensaísta, autor de obras seminais como A música tradicional cabo-verdiana I (A Morna), de 1988. Se, realmente como nos faz crer o autor, “para se compor uma morna, é necessário um instrumento polifónico, sobretudo quando se deseja algo original e de facto novo” (MARTINS, 1988, p. 19), então, acredito que, aqui, o leitor pode encontrar uma chave de leitura para perceber a verdadeira dimensão musical da arte de compor prosa de ficção deste maestro. Composto em capítulos curtos, todos com uma estrutura quase que autônoma entre eles – já que, isoladamente, recuperam histórias e casos ocorridos e vivenciados nas Ilhas –, Vasco Martins parece imbricar motivos cantantes, como certas incidências estróficas das mornas, em episódios narrativos que vão construindo uma espécie de cadência melódica e harmônica entre eles, posto que, se em cada um dos capítulos, é possível reconhecer uma melodia temática autônoma, dirigida pela voz do narrador que se cola à perspectiva dos personagens privilegiados, é na conjugação harmônica de todos eles que o escritor compõe uma espécie de releitura e de representação dessas outras paisagens cabo-verdianas. Interessante observar que, se na trajetória dos membros desta família, o isolamento, o ensimesmamento insular, o desejo de evasão ora em busca de aventuras, ora como válvula de escape de contingências externas, as relações dos indivíduos com a terra e o mar e os sentimentos de amorabilidade já delineiam os modos de ser e de estar no mundo, peculiares do cabo-verdiano, também vale lembrar que tais temas figuram no elenco motívico das mornas, como bem sublinhou Manuel Ferreira, na sua conhecida A aventura crioula. É o reconhecido pesquisador que também afirma categoricamente que, para além de se constituirem uma autêntica forma de expressão da identidade cabo-verdiana, as mornas “não vivem de motivações gratuitas” (FERREIRA, 1973, p. 180). Logo, ao pontear todos estes temas melodicamente ligados aos percursos de cada um dos personagens, em capítulos curtos e de autonomia flagrante, mas, de cuja junção e interligação harmônicas depende a verdadeira dimensão deste romance, fico a me perguntar (e creiam que se trata muito mais de uma interrogação do que uma afirmação!) se tal recurso não seria uma maneira outra, diferente, nova e original – como propunham os mirabílicos – de ler temas tradicionais, bem como formas já experimentadas de trabalhar e fazer dialogar os discursos literário e musical? E, acreditando nesta possibilidade, até que ponto a tessitura de A verdadeira dimensão não estaria em plena consonância com certas prerrogativas conhecidas pelo seu autor e referendadas pelas iniciativas criadoras da geração de Mirábilis? Em prefácio à antologia, José Luis Hopfer Almada frisa que “a opção pela literariedade dos textos permite a erupção de diferentes tendências estéticas e diversas posturas face á questão humana do Homem Cabo-Verdiano” (1991, p. 24). E tal confluência de novas perspectivas criadoras seria a responsável pela manutenção de uma “abordagem sempre inovadora, actualizante e criativa, isto é, autêntica, pois a autenticidade, sendo, primeiramente, pessoal e demonstrativa de
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uma individualidade própria, carrega sempre consigo signos de inovação, de uma visão própria, cabo-verdiana no fundo” (Ibidem). Neste sentido, o texto ficiconal de Vasco Martins não poderia estar inserido nesta tendência do início dos anos de 1990 de criar novas perspectivas sobre temas tradicionais, novos sabores valendo-se de conhecidos temperos? No romance A verdadeira dimensão, há um episódio em particular que permite tal sugestão ao leitor. O momento em que Toy busca nas mornas e no violão uma forma de expurgar as suas falhas e os seus delitos como homem de negociatas. Revisitando o personagem fixado nas páginas de Manuel Lopes, Vasco Martins retoma o tema musical da arte de compor as canções cabo-verdianas e redimensiona-o na sua perspectiva de artista mirabílico: Toy, o negociante mais jovem da baía, nunca deixou de fazer uma serenata, de tocar em horas mortas o seu violão, que estimava muito. Ao tocar, nas noites tépidas, sentia-se amarrado a nostalgia ligeira, cantar uma morna na janela de alguém pelo prazer de tocar, tocar com um grupo fiel de amigos, som de violão rompendo a brisa, rompendo corações. (…) A música, mais do que uma necessidade espiritual, era a necessidade de se fazer limpo, sabendo que nenhuma nota, por mais bela que fosse, por mais bela que fosse a morna, nunca o vazio poderia sair do seu peito, a música não limpa o negrume dos negócios ou da alma (MARTINS, 1991, p. 81-82).
Pela arte da música, pela performance das mornas, Toy buscava assim uma forma de expurgar algo que, na realidade, não poderia eliminar, o “negrume dos negócios” e o dinheiro fácil que lhe trazia ostentação e riqueza. As suas atitudes na esfera do cotidiano acabavam por motivar a sua arte, numa vã tentativa de limpar o que, em plena consciência, sabia que estava longe da irrepreensibilidade. Longe, portanto, de representar o canto da morna como algo de teor alienante, Vasco Martins aposta naquele não distanciamento do teor lírico das canções com determinadas reflexões sobre questões sociais, como sublinhava Manuel Ferreira (1973, p. 183). Se a morna, aqui, permite a figuração de um gesto de expurgo de ordem social, não seria, portanto, possível, vislumbrar nesta recriação ficcional de Vasco Martins a construção de uma subjetividade lírica no discurso narrativo, aliada a uma consciência criadora de transferência de uma angústia e de um “sofrimento social para a dor da morna amorosa?” (FERREIRA, 1973, p. 183). Lida por este viés, compreende-se a postura do narrador, ao dar a cada um dos personagens uma dimensão melódica individual, que, unidas, conseguiriam perfazer a harmonia composicional de A verdadeira dimensão. Neste capítulo, conclui o narrador:
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Um acorde de lá menor era o escudo protector de Toy, para Alícia era a ostentação, para Adolfo a pesca desenfreada aos tubarões, para Manuel os encontros com o velho homem, para Dudui o sonho de Leda, para Joana uma tamareira bela e distante. Em todos a mesma música, os mesmos acordes cintilantes de sentimentos escondidos, a procura de um sonho escondido na vida (MARTINS, 1991, p. 82-83).
Cada um dos personagens, portanto, parece guardar a sua parcela melódica, o seu “acorde de lá menor”, para a composição harmônica do romance. Cada um tenderia a manter uma consonância com a autêntica expressão musical do Arquipélago, cada um deles com um fio melódico distinto para exprimir a sua verdadeira dimensão, mantendo, porém, uma espécie de aliança harmônica no expressar-se individual. A cada um daqueles passos de reflexão e discernimento, conforme sublinhamos inicialmente, dá o narrador uma condição musical tonal, como que possibilitando, assim, a leitura do romance de Vasco Martins tanto pelo viés do diálogo interdiscursivo entre instâncias culturais pertencentes ao elenco cabo-verdiano, quanto pelo do diálogo intertextual com outras obras que também contemplaram os estreitos laços entre literatura e música. Neste sentido, se, em Manuel Lopes, “a morna veio do mar” (1984, p. 13), em Vasco Martins, a morna parece surgir do mar, pela parte melódica dos personagens que com o espaço aquático mantém uma relação inextrincável, e colar-se à terra e aos próprios corpos dos habitantes do arquipélago, que com ele mantém uma ligação telúrica, capaz de dar conta da expressão identitária de cada um, encontrando, assim, consonância com o pensamento de Fernando Arenas, quando sublinha que a música popular cabo-verdiana (onde a morna estaria inserida) constitui um “terreno privilegiado para a exploração da identidade nacional e da cultura” (2010, p. 46). Mas, para além das angústias, das ânsias, das solidões, das esperas e dos gestos expectantes, há também a constatação da solidariedade e da amizade. Diante do drama do êxodo forçado de Manuel, cria-se entre o jovem personagem e Ulisses, o mais velho, o homem que se recolhe em São Vicente, depois de uma desilusão amorosa e faz dessa ilha a sua Ítaca, uma relação de amizade alicerçada no diálogo, na busca de saberes, nas leituras compartilhadas de livros guardados, na sintonia de sensações e sentimentos e na intimidade da troca de confidências, de medos e de sonhos. Também ele isolado, abandonado pela mulher, Ulisses é o marinheiro aportado sem uma Penélope que desfaça os fios e os refaça numa atitude de espera contínua. Ele é o mais velho, personagem que alegoriza os saberes tradicionais, agora passados para o seu mais novo, na esperança de que este consiga dimensiona-los numa perspectiva revigoradora. Colando seu olhar e sua voz aos do personagem, o narrador revela nos instantes finais da trama que, mesmo depois de passados tantos anos da partida de Manuel, Ulisses sensivelmente percebera que aquele rapaz “que tanto amava aprendera enfim a ouvir e
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compreender a música do mar” (MARTINS, 1991, p. 148). Só depois desta constatação, numa das cenas mais comoventes do romance, o velho adormece na praia, indicando um desfecho que evoca a espera, a serenidade e a certeza de ciclos completos e ritos iniciáticos concluídos, ou, ainda, a continuidade da vida e o aprendizado contínuo na formação da verdadeira dimensão do homem. Deste modo, “ouvir e compreender a música do mar”, como sugere o narrador, tornam-se gestos necessários não apenas para perceber os modos de ser e de estar no mundo do sujeito ilhéu, mas também para apreender, a partir da realidade cabo-verdiana, comportamentos, atitudes e sentimentos essencialmente universais. Com este romance de 1991, seu autor deixa registrada, portanto, a lição salutar de que se há, sim, uma música, ela não reside apenas no mar, mas parece dele emanar e colar-se à terra e aos corpos, confundindo-se, muitas vezes, com a própria essência da morna, sedimentada e cadenciada nos fios ficcionais de A verdadeira dimensão. Vislumbrando, portanto, novas configurações de ser e estar no mundo do sujeito cabo-verdiano, e criativos e autênticos modos efabulatórios de representa-las, Vasco Martins aposta na solidariedade e na inequívoca relação afetiva do homem com o seu espaço, o seu meio e os seus convivas para se chegar à verdadeira dimensão não apenas de sujeitos cabo-verdianos, mas, acima de tudo, de cidadãos do mundo. Só assim, parece-me, que nós, leitores, poderemos também (quem sabe?) “ouvir e compreender a música do mar”.
Referências bibliográficas AAVV. Mirábilis de veias ao sol. Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos. Recolha, organização, seleção e apresentação de José Luis Hopfer Almada. Praia/Lisboa: Instituto Caboverdiano do Livro/Caminho, 1991. ALMADA, José Luis Hopfer. À sombra do sol. Praia: Grafedito, 1990. ARENAS, Fernando. Lusophone Africa: beyond Independence. Minneapolis: Minnesota University Press, 2010. ______. “Para lá da Sodádi: nota sobre o campo cultural da música popular caboverdeana.” Comunicação apresentada no III Encontro de Professores de Literaturas Africanas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. BARBOSA, Jorge. Obra poética. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002. FERREIRA, Manuel. A aventura crioula. 2a ed. Lisboa: Plátano Editora, 1973. GOMES, Simone Caputo. Cabo Verde: literatura em chão de cultura. São Paulo: Ateliê, 2008. LOPES, Manuel. Galo cantou na baía e outros contos. Lisboa: Edições 70, 1984. MARTINS, Vasco. A música tradicional cabo-verdiana – I (A morna). Praia: Instituto CaboVerdiano do Livro e do Disco, 1988. ______. A verdadeira dimensão. Linda-a-velha: ALAC, 1991. ______. “Ventos alíseos”. In: Révue Noire. Praia: Bleau Outremer, 10 sept-nov. 1993.
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VALENTIM, Jorge. “Mornas e música: ressonâncias culturais cabo-verdianas na escrita ficcional e ensaística de Manuel Ferreira”. In: SECCO, Carmen Tindó; SALGADO, Maria Teresa & JORGE, Silvio Renato (org.). África, escritas literárias: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Angola: UEA, 2010, p. 127-138.
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Jorge Valentim é professor Doutor de Literaturas de Língua Portuguesa (Sub-áreas: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Literatura Portuguesa) do Departamento de Letras da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), onde também atua como coordenador do GELPA (Grupo de Estudos Literários Portugueses e Africanos). Autor do livro A quintessência musical da poesia: Rodomel. Rododendro, um poema sinfónico de Albano Martins (Porto: Campo das Letras, 2007), também é de sua autoria ensaios e artigos publicados no Brasil, em Portugal, na Espanha e em Angola.
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Sujeitos em viagem pela alteridade1 LAURA CAVALCANTE PADILHA* Ouvi dizer que as teorias viajam e, quando chegam aos lugares, são transformadas, transculturadas […] Algumas vezes, entretanto, as teorias não viajam. E, quando isso acontece, a diferença colonial as torna invisíveis para as teorias dominantes e universais que podem viajar e têm passaporte para atravessar a diferença colonial. [WALTER MIGNOLO. Histórias locais / Projetos globais.]
Resumo: O tema da viagem constitui um dos aspectos fundantes para se pensar as literaturas africanas de língua portuguesa. Partindo da leitura de alguns textos ficcionais de diferentes momentos da literatura angolana (O segredo da morta, de Assis Júnior; Rioseco, de Manuel Rui; O quase fim do mundo, de Pepetela, dentre outros), teceremos algumas reflexões em torno do referido tema e como esta perspectiva móvel torna-se relevante para se perceber aspectos culturais particulares, que sublinham a alteridade e a diferença dos sujeitos deste sistema literário. PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA ANGOLANA, VIAGEM, ALTERIDADE, CARTOGRAFIAS CULTURAIS Subjects traveling by the alterity Abstract: The theme of the travel is one of the foundational aspects to think about the African literatures of Portuguese language. From reading some of the fictional texts of different moments of Angolan literature (O segredo da morta, by Assis Júnior; Rioseco, by Manuel Rui; O quase fim do mundo, by Pepetela, among others), we will weave some thoughts around this theme and how this perspective becomes relevant to perceive particular cultural aspects, emphasizing the otherness and the difference of this literary system subjects. KEYWORDS: ANGOLAN LITERATURE, TRAVEL, OTHERNESS, CULTURAL CARTOGRAPHIES
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processo de colonização, ou a colonialidade, pensada como relação política, se instaura a partir de uma viagem marítima, aliás, magistralmente inscrita em nossos imaginários leitores, e no espaço de língua portuguesa, por aquela voz poética do quinhentos que, depois de cantar os “barões assinalados” assim se dirige a seu rei, no canto primeiro, estrofe 15, de Os Lusíadas:1
1 Versão em língua portuguesa do original “Subjects on a Voyage through Alterity”. In: Victor K. Mendes (Org.), Remembering Angola, Massachusetts: University of Massachusetts Dartmouth, 2010, p. 163-173.
E enquanto eu estes canto, e a vós não posso, Sublime Rei, que não me atrevo a tanto, Tomai as rédeas vós do Reino vosso: Dareis matéria a nunca ouvido canto. Comecem a sentir o peso grosso (Que polo mundo todo faça espanto) De exércitos e feitos singulares De África as terras e do Oriente os mares (CAMÕES, 1980, p. 74).
Por outro lado, o desejo de descolonização, quando grita a sua urgência nas então colônias portuguesas em África, vai encontrar, na ficcionalização de viagens pela terra, um dos seus mais fortes paradigmas simbólicos. Tal viagem por “dentro” parece querer ligar o próprio aos outros de si mesmo e não mais pensar os outros trazidos pelo mar sem fim, em clara expansão do ocidente. Por essa nova viagem, ou contra-viagem, pela alteridade, os produtores textuais africanos, e vou ficando com Angola principalmente, de certo modo respondem às perguntas que se fazem os navegantes lusíadas, quando encontram a “gente estranha” da “cor […] verdadeira / Que Faeton, nas terras acendidas; / Ao mundo deu, de ousado e não prudente.” (Ibidem, p. 83 e 82). As perguntas são, e as destaco: “Que gente será esta? (em si deziam) / Que costumes, que Lei, que Rei teriam?” (Ibidem, 45, p. 82). Buscar uma resposta para tal questão fundante não pode prescindir da abertura de uma outra espécie de arquivo cultural onde avultam outros costumes, guardam-se outras “leis” e de onde emana a força de outros “reis”. Uma das principais seções do arquivo cultural africano é, sem qualquer sombra de dúvida, aquela onde se conserva a tradição oral, pois tal tradição, como consabido, é um dos elementos mais importantes quando se consideram os suportes da cultura ancestral africana. Pensar tal dominante oral não se confunde, no entanto, com o ver os povos africanos como ágrafos, mas insistir na força de todo um conjunto semiótico que encontra, para além da expressão escrita, outros modos de significar, como Simon Battestini já largamente comprovou em Écriture et texte: contribution africaine (1997). São esses modos de identificação que dão, ao fim e ao cabo, o contorno da face identitária de tais povos. Por ela a alteridade se afirma como diferença, permitindo-nos conhecer, citando Homi Bhabha, “conteúdos e costumes culturais pré-dados” (1998, p. 63), que pouco ou quase nada têm a ver com aqueles utilizados pelo ocidente branco-europeu como argamassa de seu alicerce simbólico-cultural. Viajar, pois, pelos textos orais significa uma tentativa de conhecer esse outro arquivo, regido por uma outra lógica. Tal arquivo, sempre silenciado no jogo de apagamentos do processo colonizatório, acaba por oferecer aos produtores de bens simbólicos africanos uma oportunidade de reatualizarem – e eles o fazem com muita frequência e de forma
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instigante – o legado de sua memória ancestral. Um dos elementos constitutivos desse arquivo pelos quais se negociam novos sentidos no espaço romanesco angolano, tomado aqui como objeto mais direto de meu olhar-leitor, é a representação de sujeitos em viagem, viagem, aliás, que nada tem a ver com aquela outra que dá origem ao processo colonizatório. Tais sujeitos, com uma recorrência exemplar, buscam o reforço de seu próprio local de cultura, para com e por ele demarcar os limites de sua diferença.
1. A força ritual da nomeação Começo por lembrar que a viagem faz parte intrínseca dos ritos iniciáticos, pois, para cumpri-los, o(a) neófito(a) deve deixar seu mundo conhecido – família, aldeia, senzala, quimbo, etc. – para realizar sua passagem para uma nova condição social, quase sempre em outros espaços como os de florestas, beira-rios, savanas, ou, mesmo, aldeias distantes onde vivem seus futuros iniciadores. De volta, já iniciado(a), o(a) jovem, por exemplo, nos rituais de puberdade, ganha um novo e definitivo nome, deixando de ser um(a) mero(a) figurante na vida comunitária, como descreve Honorat Aguessy (1980), por exemplo. O gesto de nomeação e/ou o obter um nome significa, no dizer de outro estudioso dessas culturas, Alassane Ndaw, “o ato pelo qual um homem conclui um verdadeiro pacto de paz e fraternidade” (1983, p. 163). O gesto de nomeação se faz, por isso mesmo, traço recorrente em modernos textos ficcionais africanos, cujo veículo principal de expressão é o português. Não por acaso, na novela As aventuras de Ngunga de Pepetela (1980), o menino protagonista, ao encerrar sua viagem para o conhecimento, e invertendo um pouco o sentido dos antigos ritos, nos quais o iniciado recebia seu nome de um mais velho, pede que a menina o nomeie. E ela o faz na cena que a seguir recupero. Diz Ngunga a Uassamba: “Escolhe o meu novo nome”. A seguir, completa o onisciente narrador: “Uassamba pensou, pensou apertando-lhe a mão. Encostou a boca no ouvido dele e pronunciou uma palavra. Mas fê-lo tão baixinho que o barulho da chinjanguila a cobriu e só Ngunga pôde perceber.” (1988, p. 81). Cumpre-se, assim, a última etapa de sua iniciação, pois o nome é uma espécie de templo do ser. Como materialidade, ou em sua natureza mesma de objeto palpável do conhecimento, também o romance africano, de modo geral, e o angolano, de forma particular, se fazem eles próprios um pacto de nomeação. Dizendo-se, ele diz a diversidade cultural que o gera e que, por sua trama, também se gera. Torna-se um rito iniciático, espécie de viagem de ida e de volta, com o leitor dela participando como um convidado especial da cerimônia ritualística pela qual se reforça um “verdadeiro pacto de paz e fraternidade”, repetindo Alassane Ndaw. Tal convite para a participação do leitor, no sentido de se fazer um companheiro na viagem iniciática do texto, ganha forma concreta na solução narrativa de Vou lá visitar pastores, de Ruy Duarte de Carvalho (1999). Neste romance, o narrado resulta da 68
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gravação em cassetes do que o narrador vivenciou em seu deslocamento para o território cuvale, ou seja, na sua tentativa concreta de conhecer, como angolano que é, um pouco dos outros de si mesmo, no caso, o povo pastoril cuvale. No plano diegético, a gravação objetiva recuperar, para um amigo que não aparece para acompanhá-lo na viagem, tudo o que aquele narrador viu, ouviu, experienciou, enfim. No plano da grande enunciação, contudo, é um modo de inclusão do leitor na roda da “contação” do texto e na viagem por este mesmo texto encetada, a fim de que se possa conhecer mais de perto os pastores e, por extensão, a própria terra angolana que necessariamente só pode ser pensada em sua densa multiplicidade etno-cultural. Diz então o grande enunciador, já na pele de seu narrador: “Era a maneira de tentar ajudá-lo […] a alargar o contacto com o que buscava. Não chegou a aparecer e mais tarde transcrevi essas cassetes. Divulgo agora os salvados, são a viagem do texto” (CARVALHO, 2000, p. 11). A transcrição referida pelo narrador deve ser lida como um modo possível de tradução do outro, no caso e em um primeiro nível, da forma de organização do mundo cuvale. Em um nível mais profundo, no entanto, o que se traduz, repito, é Angola, em uma de suas várias versões étnicas. Não por acaso, ao final do primeiro parágrafo da obra, o narrador enuncia que objetiva dar “o sentido da colocação geográfica […] para fazer sentido” (2000, p. 15). Procura-se, por essa ação demarcadora, uma maneira de reforçar o próprio ato de nomeação de uma cultura sempre elidida pelo olhar redutor do outro. Responde-se, em certo sentido, às perguntas dos navegantes que não sabiam que gente era aquela e também não conheciam os seus códigos culturais de base, nos versos representados pelos significantes “costumes”, “Lei” e “Rei”, em jogo de maiúsculas alegorizantes.
2. As viagens em vários tempos Pelo até aqui exposto, penso não ser por acaso que tantos produtores literários angolanos tenham tentado encontrar modos de representação da cultura na qual se formaram e que os formou. Mohamadou Kane assinala que a originalidade das obras africanas reside justamente no fato de que os escritores acabam sempre por mimetizar a sua dupla herança, ou seja, a tradicional e a moderna, quase sempre com ênfase para a primeira (cf. Roman africain et traditions. 1982, p. 79). É o que se dá, por exemplo – e aqui vou fazendo uma volta temporal necessária – com António de Assis Júnior, quando ele propõe o enigma do seu romance O segredo da morta, em 1929. Em tal texto, o romancista, pela voz de seu narrador, convida o leitor a viajar, em sua companhia, pelas terras do Dondo, de Pungo Andongo, Cambo Camana, etc, onde não um rei, mas uma mítica rainha, a Jinga, ou Nzinga Mbandi, impôs as suas leis e deixou as suas marcas que, como sabemos, ultrapassam o corpo da história e criam o do mito que não se deixa apagar. Invertendo o paradigma da colonialidade, o imaginário de Assis Júnior substitui o mar pelo rio Kuanza e as naus, pelo pequeno barco a vapor
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onde, em plena viagem, nasce uma das protagonistas do romance, Elmira, ou, no nome da terra, Kapaxi, ela própria uma reatualização ficcional da Jinga. Não por acaso, igualmente, o tempo escolhido pelo produtor romanesco é o do fim do século XIX e início do XX, quando o desejo de angolanidade começa a ganhar vulto. Nesse momento, a voz dos “naturais de Angola” se faz ouvir, ecoando o desejo de emancipação da então colônia, como tantos estudiosos da história e da cultura angolanas sobejamente apontaram. Tal proposta de inversão do paradigma ocidental se apresenta, de outra parte, no plano diegético – com as várias viagens que o produtor encena – e no discursivo, ao atualizar todo um manancial da tradição oral angolana, propondo uma espécie de brincadeira narrativa de mostra-esconde das mais criativas na história literária do país. O romance se faz uma camuflagem de missossos, makas, malundas e adivinhas, ou seja, de formas narrativas tradicionais. Elas, assim, por sua tessitura, viajam do oral para o grafado em letra, ganhando nova e surpreendente roupagem, como várias vezes o afirmei. Em eco com o texto de 29, e que por isso mesmo foi aqui convocado, outro angolano, Arnaldo Santos, setenta anos depois, em A casa velha das margens (1999), reatualiza o tapete temático de O segredo da morta. Por isso mesmo, convida o leitor para acompanhar a viagem de seu personagem, Emídio Mendonça, mulato, que retorna a Angola, sendo quase assassinado, como o pai português o fora. O espaço das ações romanescas, em princípio, é o mesmo, o Dondo, representando-se também a região de Massangano, bem como várias povoações das margens do rio Kuanza, com incursões para as terras dos quissamas, ou seja, o Songo. Terras, nas palavras do texto, “áridas e sem vegetação”, onde tomavam forma “estranhos mitos” que faziam de seus viventes, seres de “feitio […] belicoso e exaltado” (1999, p. 110). Por isso mesmo, a mãe do protagonista, oriunda dessa terra, se chama Kissama. O tempo é também o século XIX, em seus finais, com a importância histórica já aqui assinalada. Não por acaso, o poeta Cordeiro da Matta, um dos ícones das viagens pela alteridade, se torna personagem do romance de Santos, sendo apresentado como “chefe da primeira divisão de Calumbo”, em 1889, ano que se torna muito significativo, se pensamos que os textos já canônicos do poeta, “Kicôla” e “Uma quissama”, por exemplo, são respectivamente de 1888 e de 1891. Trança-se, nesse sentido, o final do século XIX ao do XX, quando o romance de Arnaldo Santos se escreve, ecoando o de Assis Júnior. Revisita-se a sociedade angolana daquele tempo em que ganhou corpo a Geração de 1880, justamente a de Cordeiro da Matta e, com ela, um movimento de problematização político-cultural que pensou a angolanidade como um ideal a ser alcançado. Com Santos, na viagem que se faz pelo espaço e também pelo tempo, abrem-se as portas da velha casa do que, um dia, se chamou Angola. Tal casa foi sempre posta à margem pela ocidentalização redutora e, já agora, neste nosso novo tempo, por um de seus contrafortes, a chamada globalização, e pelas várias vias por ela abertas, o neocolonialismo entre elas. Trava-se agora, como antes, um duro embate contra os que são classificados como periféricos. Há um esforço no sentido de que as 70
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diferenças desapareçam, razão pela qual aquela mesma margem – onde se coloca tudo que se é incapaz de compreender – se apresente como um não-lugar, absolutamente arcaico e sem qualquer valor ontológico e cultural. Ora, como velho, margem e local, no alicerce cultural africano tem outra dimensão ética e simbólica, o romance A casa velha das margens vai na contra-corrente, exaltando as diferenças, praticando o exercício da inclusão, enfim, rasurando os vazios e silêncios impostos pelos agentes da dominação histórico-cultural. Para tanto, esforça-se por traduzir vozes, já soterradas, no momento em que lhes dá vida nova, pelo gesto de sua criação artística. Tal gesto, por outro lado, insiste em resgatar formas da tradição oral para com elas, de certo modo, abalar o edifício romanesco de seu tempo. Reaparecem os missossos, as makas, as malundas, enquanto as adivinhas retecem todo o tecido ficcional. Contornam-se, nesse embate, os termos do que Boaventura de Sousa Santos chama de “sociologia das ausências”. Com tal gesto inclusivo, denunciam-se “os silêncios e as ignorâncias que definem as incompletudes das culturas, da experiência e dos saberes”, citando Santos, em parceria com João Arriscado Nunes (2003, p. 26). Assim reconfigurada, “a casa velha das margens” se oferece como abrigo dos imaginários outros e das cartografias identitárias que os sustentam. São muitos, portanto, os romances a encenarem sujeitos em viagem por sua alteridade ou, em outras palavras, sujeitos em busca do reconhecimento do seu corpo cultural em diferença e que, por isso mesmo, é um corpo que significa. Vale sempre lembrar que a diferença cultural não se deve tomar como sinônimo de qualquer essência aninhada no colo dos princípios. Seguindo a lição de Bhabha, sabemos que tal diferença é sempre “uma construção de sistemas de identificação cultural”, devendo ser entendida, ainda nas palavras do ensaísta, como “processo de significação através do qual afirmações da cultura e sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade” (1998, p. 63). Ruy Duarte de Carvalho, por seu turno, reforça tal postura no texto já aqui apontado e por muitos considerado um não-romance, por situar-se em uma zona de fronteira, atravessada pela antropologia, etnografia, história das idéias, etc. Esse atravessamento faz do romance um objeto genericamente mestiço e, para uma parte da crítica, uma obra incatalogável. Ele afirma, em dado momento do romance e pela voz do narrador, que, ao encenar, pela palavra, o universo pastoril dos cuvale, quis realizar, e transcrevo sem economia o trecho: […] uma aventura pessoal que me situa, em plena recta final do século XX, a pouco mais de dois anos da viragem do milênio e cercado pelo rumor histórico da globalização, empenhado mas é em decifrar os termos da resolução […] de uma cultura milenar que todos os dias se reafirma actualizando, desenvolvendo, no presente, uma estratégia de integração total entre o meio que lhe assiste, as
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pessoas que a compõem e o ‘impalpável’ que a envolve, sem no entanto poder descurar nunca a relação com um exterior que a nega e a longo termo acabará por inviabilizá-la? (2000, p. 357-8).
O desejo de reafirmar, por conseguinte, a cultura pela solução artística de uma ficcionalidade também em diferença, tentando dar uma forma de expressão, e volto ao atrás citado, a “uma estratégia de integração total entre o meio que lhe assiste, as pessoas que a compõem e o ‘impalpável’ que a envolve”, leva o romancista a escavar o terreno onde se implantaram as estacas do próprio gênero romance, como demonstra uma série expressiva de produções africanas. Nelas, os paradigmas narrativos da tradição oral e o modelo discursivo “batizado” pelo ocidente com o nome de romance encontram-se, como se fossem rio e mar. Cria-se, pelo bulício das águas do conhecimento, uma expressão, reitero, mestiça, pensando com Serge Gruzinski (2001), que sacode as amarras do gênero. É o que fez, no Brasil, João Guimarães Rosa, ao recriar as veredas do sertão das Gerais, pelas quais uma outra fala caminha em diferença: fala da natureza; dos homens; dos mitos, dos ritos e conflitos sociais. Surge, então, Grande sertão: veredas (1956), um marco na cultura literária brasileira, com a voz de Riobaldo a comandar a festa da “contação”, ou seja, a desdobrar os seus “causos” ao mudo interlocutor, máscara de todos nós, seus leitores. Com sua voz, “lugar sertão se divulga: é onde pastos carecem de fechos […] O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho” (ROSA, s/d, p. 7). Voz e letra a se contaminarem, corporificando o que não tem limite nem tamanho. No universo cultural africano, a ele voltando, os narradores da letra vestem, com frequência, a pele dos ancestrais contadores e desmobilizam, por assim dizer, a fixidez do escrito aprisionado pelo papel, viajando pelas veredas da oralidade, como se o texto soltasse a sua própria voz. Viagem do escrito, que é gesto de nomeação da alteridade, e, como já disse, uma forma de iniciação. Vários são, pois, os romances encenadores de viagens, no espaço literário de Angola. Listá-los todos seria tarefa vã. Lembro, dentre tantos possíveis, o último de Boaventura Cardoso, Mãe, materno mar (2001), incrível missosso contemporâneo, como já observado por Carmem Lúcia Tindó Secco, no prefácio da obra. Neste romance, o personagem Manecas faz uma viagem, a de sua própria iniciação na cultura de sua terra, durante quinze anos – repare-se aí se projeta simbolicamente um rito de puberdade – partindo do Malanje para chegar a Luanda, onde veria o tão sonhado mar. Trata-se de uma longa viagem para o conhecimento, tanto do sujeito, quanto de seu local de cultura. O trem é a metáfora da história de Angola de hoje, flagrada em seu próprio movimento e em algumas de suas contradições e enfrentamentos sócio-culturais e mesmo ideológicos. Também gostaria de citar, nesta minha própria viagem de leitora, Rioseco (1997), romance de Manuel Rui Monteiro, no qual acompanhamos o encontro dos viventes do rio – Noíto e Zacaria –, com os do mar, Mateus e o filho, não por acaso chamado Kuanza. Na obra, protagonizada principalmente por uma velha, Noíto, se retece a tradição antiga, 72
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comandada por um corpo de anciã, cujos coração e mente são de uma quase menina. Tudo, neste texto de Manuel Rui, joga o jogo milenar da tradição, com a memória do saber antigo a engravidar o presente e a recriar Angola, como diz Lourentinho, personagem de Luandino Vieira, em seus máximos sinais. O múltiplo se inscreve nele e o encontro dos próprios – os que vieram do rio – com os outros de si mesmos – os que vivem no e do mar – mostra muito bem isso. Todos são angolanos e o que devem aprender, simbolicamente, são os conhecimentos e segredos responsáveis pela multiplicidade cultural que os enforma. Vamos encontrar esta simbólica do rio e do mar também em De rios velhos e guerrilheiros 1. O livro dos rios (2006), romance de retorno de Luandino Vieira à cena da escrita literária de Angola. Nele, um sujeito em crise, de vários nomes – Kapapa, na qualidade de neto; Diamantininho, como filho; e Kene Vua, auto-denominação ao se fazer guerrilheiro – se quer transformar em rio, recusando-se a ser escravo e dizendo: “Em amnistia geral de minha vida, digo mais: também eu, um dia vou ser rio” (2006, p. 98). Para sê-lo, vira as costas para o mar de Luanda, deixa o barco do português Lopo de Gavinho (nome antigo e simbólico, a lembrar os dos velhos marinheiros e sua chegada às terras outras) e toma o caminho do maquis, indo para o terreno da luta e fazendo sua viagem pelos rios de sua pátria, sempre vias abertas para o conhecimento, porque também “cicatrizes abertas na pele da terra angolana” (idem). Mas ele não desconhece o ou se recusa a ser mar, pois sabe que “naquelas lágrimas do Kwanza, ali nasciam os oceanos”, daí dizer – “Sombras das águas no fundo do mar, eu vi” (2006, p. 115). De novo, um sujeito em viagem a tentar entender os segredos do mar, “escurentado” (idem), e a querer beber as doces águas do maior dos rios de Angola, de nome Kwanza, como o menino de Rioseco, e que o guerrilheiro chama de “minha mãe”, algumas vezes. Interessante é pensar que, ao decidir mudar de nome, ele se quer chamar Kalunga, que sabemos ser a denominação do senhor guardião dos mortos, mas também significa mar. Rio e mar se alimentam mutuamente, como a tradição e a modernidade, parceiras da mesma viagem pela alteridade angolana. Não seria possível dar por findo este meu texto sem aludir a um deslocamento proposto por Pepetela que, no caso e no plano da representação, deixa Angola para encenar espacialmente outros lugares africanos, neles resgatando todo um conjunto de diferenças identitárias. Tal deslocamento se dá em O quase fim do mundo (2008), romance catástrofe, na melhor tradição do cinema americano, em que não há destruições, vítimas em decomposição, e tudo decorre em calma, pois não existem aqueles efeitos especiais que o cinema nos oferece. Narra-se, na obra, o desaparecimento da quase totalidade dos seres vivos da terra – homens e outros animais –, só dos primeiros restando, dentre outros, uns poucos habitantes da cidade pelo ficcionista criada, desde Muana Puó (1969). Trata-se de Calpe que é, desse modo, deslocada de Angola para a região dos grandes lagos africanos, onde todos falam o suaíli. Os demais personagens de origens diferentes são um masai, uma somali, um etíope, um sul-africano e até mesmo uma pesquisadora americana que estuda
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as formas de amar dos gorilas, a lembrar a figura histórica de Dian Fossey, pesquisadora do comportamento dos mesmos gorilas. O grupo, por peripécias várias, decide fazer uma viagem rumo à Europa, para chegarem aos Estados Unidos e também para procurarem sobreviventes e talvez acharem a causa do cataclisma. Ficam em terra alguns personagens e os outros partem, tomando o Nilo e seus afluentes como rota a ser seguida pelos dois aviões. Invertem-se, com isso, talvez dois fatos muito importantes e que sempre separaram o ocidente do que este percebia ou entendia estar dele excluído. A rota atlântica de que fala Camões e ainda a índica por ele contada desaparecem, com os oceanos definitivamente deixados de lado, principalmente a via principal do Atlântico, ao mesmo tempo em que o sul se faz, no jogo efabulativo e ideológico, o ponto de partida para a “exploração” do norte ou para a possibilidade de um seu novo descobrimento. Não vou aqui contar o romance, mas apenas esclarecer que a história da África se inverte, o que fica claro quando a historiadora Ísis, uma somali, com pertinência, insiste que os viajantes devam parar três dias para visitar Karnak e Luxor, no Egito. Ela argumenta, em defesa de sua teimosia cultural e epistêmica, pela qual se dá a inversão daquela história: “Só um idiota recusaria a ocasião de ver a sala hipostila mandada construir por Seti I […] No Vale dos Reis estão os túmulos dos faraós dessa época fabulosa em que um Estado africano era o mais poderoso e avançado do mundo” (2008, p. 302). Não é preciso, a meu ver, ir mais além. Apenas informar que essa inversão da base histórica hegemônica de sustentação do ocidente branco e judaico-cristão implode e o sul encontra a sua significação, sempre elidida. Por isso, na Europa só ficam dois viajantes e todos tomam o caminho do torna-viagem para Calpe, embora os sustentáculos da dominação não se desfaçam, já que se estava “a construir uma nova humanidade com a gente que havia e todos os processos valiam” (Ibidem, p. 381). Torna-se importante grafar essa nova história, e é o que faz o narrador principal, Simba Ukolo, máscara do próprio romancista. Ele diz, fechando o contado: “Gravei em cera de lágrimas espalhadas sobre montanhas de névoa eterna. Vai por isso durar muito tempo, até poder ser lido, um dia” (Ibidem, p. 382). O importante, no caso, não é essa referência à leitura, mera possibilidade, mas o reforço da emoção – daí as lágrimas –, em que se dá o gesto da nova contação ficcional. A escrita, em qualquer língua que se desse – e lembramos que os habitantes da floresta não falam o suaíli –, não possibilitaria a viagem para o conhecimento dos sujeitos de leitura que, desse modo, jamais seriam capazes de compreender a força da história que se conta e da emoção que a move. A leitura dos romances angolanos produzidos nos últimos quinze anos revela que outras cartografias identitárias, históricas e culturais neles se plasmam – e cito Boaventura de Sousa Santos mais uma vez – “nas margens das representações e através de um movimento que vai das margens para o centro” (2002, p. 33). A viagem por “mares nunca dantes navegados” encontra os caminhos de dentro da terra, com seus rios a se fazerem seus máximos sinais e a contarem as estórias que tomam seu lugar à volta de outras fogueiras da história. A episteme africana, assim, passa a ganhar passaporte para atravessar 74
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fronteiras que antes, aqui voltanto a Walter Mignolo, e a epígrafe, lhe estavam interditadas pela falta desse mesmo passaporte, agente impeditivo de suas viagens. Os romancistas, por saberem disso, apostam no sentido de suas travessias, sempre as vendo como um pacto com sua alteridade, pela qual suas faces se projetam no grande écran da história de nosso tempo em que, infelizmente e para muitos, ser um outro em diferença ainda é motivo de muita indiferença.
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Laura Cavalcante Padilha é professora Doutora Emérita do Instituto de Letras da UFF (Universidade Federal Fluminense), é autora dos livros Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do século XX (obra vencedora do Prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional, 1995) e Novos pactos, outras ficções (Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2002), e organizadora de obras como A mulher em África (Lisboa: Colibri, 2007, com Inocência Mata) e Lendo Angola (Porto: Afrontamento, 2008, com Margarida Calafate Ribeiro). Além de reconhecida pesquisadora e professora da área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, é também pesquisadora nível 1B do CNPq.
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Aporias em Cabo Verde
masculinidade e justiça social em Marginais, de Evel Rocha MÁRIO CÉSAR LUGARINHO* […] e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente [AL BERTO. “Prefácio para um livro de poemas”.]
Resumo: Marginais, do autor cabo-verdiano Evel Rocha, é uma narrativa que, além de questionar o estatuto da masculinidade na ordem de gênero, abre espaço para a emergência de identidades de gênero não normativas. A obra, ainda, impõe discussões acerca de vários temas contemporâneos, ao mesmo tempo em que atualiza temas tradicionais da literatura cabo-verdiana, tais como a insularidade, a morabeza e o evasionismo, iluminando-os à luz da justiça social e da globalização econômica. PALAVRAS-CHAVE: FICÇÃO CONTEMPORÂNEA, LITERATURA CABO-VERDIANA, MASCULINIDADES, JUSTIÇA SOCIAL Aporias in Cape Verde: masculinity and social justice in Marginais, by Evel Rocha Abstract: Marginais, the recent novel by Evel Rocha, a Cape Verdean author, is a narrative that, in addition to questioning the status of masculinity in the gender order, opens space for the emergence of nonnormative gender identities. The work also requires discussions about various contemporary issues, at the same time it updates the traditional themes of Cape Verdean literature, such as the insularity, the morabeza and the evasionism, enlightening them under the prism of social justice and economic globalization. KEYWORDS: CONTEMPORARY FICTION, CAPE VERDEAN LITERATURE, MASCULINITIES, SOCIAL JUSTICE
O
desenvolvimento dos estudos sobre a masculinidade e o masculino deve a Raewin Connell (nascida Robert Connell), professora da Universidade de Sidnei, grande parte de seu desenvolvimento, na medida em que foi a partir de suas reflexões que esses estudos ganharam volume. Connell partia do pressuposto de que a exclusiva atenção às mulheres e à feminilidade não poderia, por si só, colocar em pauta a discussão da ordem de gêneros. A masculinidade, que ocupa o centro da cultura, poderia ser relativizada e historicizada, na medida em que o mesmo procedimento era realizado frente à sua contraface, a identidade feminina (CONNELL,
1985, p. 260-261). Assim, Connell definiu masculinidade como sendo o conjunto de práticas dadas a partir da posição ocupada por homens nas relações de gênero, acrescentando que, usualmente, há mais de uma masculinidade. Daí ter se tornado consenso falar em “masculinidades” e não em “masculinidade” (CONNELL, 1995, p. 188). No entanto, das diversas masculinidades observadas por Connell, ganharia relevo o conceito de “masculinidade hegemônica” e que corresponderia a um ideal de masculinidade – no senso comum o “homem verdadeiro”, o “homem perfeito”, o “homem superior”. Ao seu lado, existiriam as masculinidades não hegemônicas e que estariam em relação de subordinação, cumplicidade ou de marginalização em relação à hegemônica (CONNELL, 1997, p. 39-43). A relação de subordinação seria dada a partir do processo de dominação de grupos sobre outros grupos, como o de homens heterossexuais sobre homens homossexuais, cujas práticas redundariam na violência e discriminação legalizadas e no abuso sexual. Vale ressaltar que não apenas os homossexuais estariam em relação de subordinação, porque esta seria prática usual quando se observasse, no mundo do trabalho, por exemplo, outras diferenças a partir de classe, etnia, nacionalidade etc; a relação de cumplicidade pode ser observada em relações estabelecidas em torno de instituições sociais que demarcam relações de poder, como o casamento e o próprio patriarcado, nos quais as relações familiares concorrem para a preservação e manutenção do poder em torno daquele(s) que o exercem. E, por fim, as relações de marginalização nas quais são visíveis os processos explícitos de exclusão, seja por etnia, classe social, origem nacional ou regional, ou mesmo orientação sexual. De maneira geral, o pensamento de Connell redundou na construção de uma dicotomia mais funcional, na medida em que as formas não-hegemônicas tendiam a se confundirem, quando cruzadas com as características de classe, etnia, nacionalidade etc. É por essa via, que Miguel Vale de Almeida pôde, acompanhando Connell, apontar o aparecimento de várias masculinidades. A partir das transformações das relações de gênero e do caráter móvel e contingente da relação entre masculinidade, homens e poder, as identidades masculinas poderiam ser percebidas a partir da inter-relação dos conceitos de “masculinidade hegemônica” e “masculinidade não-hegemônicas”, estratificando também as relações sociais para além das formas tradicionalmente consideradas, como as de classe social ou etnia. A masculinidade hegemônica se constituiria ao lado do poder político estabelecido, do poder econômico, do controle social, enfim, do poder sobre os corpos que a ela se submetem, estabelecendo padrões de comportamento e de relações entre gênero. Vale de Almeida, contudo, coloca em suspenso o conceito de hegemonia para compreender as diversas masculinidades na medida em que verifica que as relações entre os estratos sociais são atravessadas pela chamada solidariedade de gênero, que se atrela às
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relações de poder. Aqueles que se colocam no lugar do masculino1 (homens ou mulheres biologicamente considerados) defendem uma “ordem de gênero”, que se confunde com a ordem social – a esse procedimento, a solidariedade de gênero, denominou-se de homossociabilidade.2 O desenvolvimento da modernidade, intimamente relacionado ao desenvolvimento do capitalismo, faz do burguês (homem de negócios e estadista) seu paradigma, mas também o faz soldado e oficial do exército nacional. O progresso (científico-tecnológico e, por conseguinte, econômico) reconheceu o homem moderno como o indivíduo do sexo masculino esvaziado de suas formas tradicionais de identificação (a força física, a coragem, a honra e a virilidade), para se constituir a partir de novos elementos baseados na força de trabalho (físico ou intelectual), no corpo atlético e na juventude, nos empreendimentos comerciais e na capacidade de acumulação de capital, no domínio das paixões e no cavalheirismo, etc (MOSSE, 2000, p. 23-31). Entretanto, o projeto da modernidade para a identidade masculina foi sendo posto em causa, fosse pela instituição do sufrágio universal, fosse pela formulação de novas relações de trabalho no capitalismo e pelas sucessivas crises do capital, fosse pela insurgência das classes e dos grupos sociais dominados, fosse pela subversão e alteração da ordem de valores que sustentavam a sociedade burguesa. O processo deu à luz novas possibilidades de identidades que passaram a relativizar a identidade masculina hegemônica constituída na modernidade. Não apenas porque outras identidades emergiram, mas porque paulatinamente o Estado, juridicamente e politicamente, como apontara Hegel ao tratar da família, passou a chamar para si as ações que estavam destinadas aos indivíduos do sexo masculino, proprietários de terras, burgueses e/ou, mais tarde, proletários. Se o pai e o marido, evocando o pater familias, ainda podiam dispor, durante grande parte do século XIX, do destino da esposa e dos filhos, a justiça do estado moderno, ao fim daquele século e durante o século XX, passou a reger as relações de intimidade no espaço privado e no espaço público, quando estendeu às mulheres e filhos não casados o
1 É por esse motivo que Vale de Almeida traduz a expressão de origem inglesa “men’s studies” para estudos sobre a masculinidade, visto que a palavra masculinidade abrange os atributos culturalmente específicos e não se detém numa identidade social baseada numa construção social da natureza, que sobreporia sexo e gênero. 2 Homossociabilidade é um conceito que se desenvolveu a partir da crítica literária, quando Eve Kosofsky Segdwick, em sua obra Between men: english literature and male homosocial desire (1985), descreveu as relações de solidariedade de gênero entre homens em obras da literatura inglesa dos séculos XVIII e XIX, o que instituía uma “ordem de gênero”, isto é, a manutenção das identidades masculina e feminina para além dos prejuízos que atos como o adultério, a homossexualidade, o afeminamento, a idade avançada ou a impotência pudessem provocar na estabilidade dessa ordem. Para Emerson Inácio (2002), a homossociabilidade “seria a rede de relações, baseadas no patriarcado, que regulam o comportamento masculino de maneira a estabilizá-lo e hierarquizá-lo pela instauração de uma interdependência/solidariedade para que o patriarcado seja sempre intermediado pelas barreiras do tipicamente masculino”. No âmbito das Literaturas de Língua Portuguesa, José Carlos Barcellos (2007) observou que a obra de Eça de Queirós, em quase toda a sua extensão, é exemplo flagrante desse conceito, da qual se destacam as últimas páginas de O primo Basílio, quando Sebastião, informado pelo adultério cometido por Luísa com Basílio, preocupa-se, sobretudo, não com a chantagem sofrida por Luísa, mas em preservar Jorge e sua posição social de varão e esposo.
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direito à cidadania, à gestão de propriedades e finanças, à educação e ao voto, definindo leis específicas que regularam as relações familiares e de trabalho. As exigências da modernidade à masculinidade se inscreveram mais profundamente na identidade de gênero na medida em que as formas de resolução das adversidades entre grupos e indivíduos se encontram diametralmente opostas. Se a guerra, interna ou entre estados, era levada a cabo para demonstrar a superioridade de um grupo sobre o outro, a guerra, na lógica burguesa e capitalista, é o negócio lucrativo que distribui dividendos entre aqueles que nela investem financeiramente e que, por reforço, satisfaz com doses de violência os elementos identitários masculinos da tradição que se deseja suplantar. Sob essa perspectiva, a identidade masculina, desde o advento da modernidade, se encontra em crise permanente. Apesar de se adequar aos novos tempos (regidos pela lógica do capital), recorre, também, às formas tradicionais de sua constituição (a lógica bélica). E, se for acrescentada à transformação da identidade feminina, que recusava as formas fixas dos papéis sociais desempenhados (mãe, esposa e filha), a emergência de outras identidades baseadas na orientação sexual, como a dos homossexuais, pode assinalar uma crise ainda mais profunda que pontua a identidade masculina desde o alvorecer do homem moderno. O que restava ao homem, senão reconhecer uma crise em que a modernidade inscreveu a masculinidade? Por se constituir em crise, a identidade masculina, hoje, pode se desdobrar em inúmeras possibilidades, dissolvendo a sua condição paradigmática para se instituir em dimensões diversas. Ou seja, ser homem não é mais uma característica do indivíduo dada pela classe, etnia, orientação sexual, religião ou mesmo pelo sexo biológico: é uma identidade construída entre as diversas outras identidades com que se confronta. Dessa forma, os estudos de gênero reconhecem que a atenção à identidade masculina é devedora do processo que a tornou problemática e claudicante, porque a tradição onde se formulou foi esvaziada de sentido. É por essa busca de sentido que se observa o aparecimento na Literatura, em especial naquelas que se constituem nos espaços pós-coloniais, de obras que, sob vários aspectos, trazem à cena contemporânea a crise do masculino. Cabe ainda ressaltar que a denominada crise do masculino pode ser amplamente verificada quando se deram, no âmbito dos estudos de gênero, sucessivas cisões que desestabilizaram esse campo, conformando-o na diversidade em que hoje se encontra. No fim dos anos 1970, na esteira dos movimentos sociais norte-americanos e das reformulações sucessivas que o feminismo norte-americano atravessava (fosse na esfera das políticas sociais, fosse na esfera universitária), a emergência do que se denominou gay and lesbian studies, seguidos pelos queer studies e, mais recentemente, pelos men’s studies foi, efetivamente, o alargamento das áreas de ação dos estudiosos de gênero para além do feminino. No entanto, a abolição dos binarismos e das identidades fixas de gênero não resolveria definitivamente o problema da diversidade e da emergência de novos sujeitos discursivos, que desde a década de 1970, ganhavam visibilidade desde a contracultura.
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A partir desse quadro, somos levados a observar que as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa não ficou alheio a esse processo social e cultural que os estudiosos do gênero apontavam e que representava mais uma crise à modernidade. Os paradigmas das representações de gênero foram questionadas e problematizadas, quando não desconstruídos a fim de não apenas se superar as práticas e estruturas sociais do colonialismo, mas também os modelos que as diversas tradições locais impunham aos novos estados e nações. O escândalo inicial que foi a publicação de Niketche, de Paulina Chiziane, bem demonstra o problema que as relações de gênero, quando desnaturalizadas, impõem à própria ordem que as institui – já que a obra de Chiziane evidenciava a tensão entre a tradição da poligamia e a ordem ocidental da família nuclear. Sem dúvidas, Niketche, reconhecida aqui como não apenas a obra em si, mas também as polêmicas geradas no âmbito das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, encenava as encruzilhadas culturais dos povos de Moçambique. No em tanto, mais recentemente, algo diferente despontou na Literatura Cabo-verdiana e, por conseguinte, no conjunto das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Marginais, de Evel Rocha, publicado em 2010, narra a vida de um jovem criado às margens de uma sociedade em transformação. Iniciada em 1977, ano de nascimento de Sérgio, a narrativa chega à sua morte, em 1999. O pano de fundo é o processo de constituição do estado nação cabo-verdiano e a crescente urbanização de sua população. O espaço narrativo é a Ilha do Sal, centro turístico, polo de atração de grandes investimentos internacionais. Narrado em primeira pessoa, o relato consiste nas memórias de Sérgio Pitbull, supostamente entregues ao autor após um encontro casual. Com tipos em itálico, a narrativa principia pelo encontro, quando somos apresentados ao protagonista, já em adiantada situação de risco social e degradação física. Ao receber os manuscritos, o autor expressa o seu juízo, atribuindo à narrativa um sentido de urgência: “Este é um livro que muitos jovens deste país gostariam de ter escrito” (ROCHA, 2010, p. 13). Em Marginais, a noção de espaço é privilegiada, porque, como as personagens, constitui-se também à margem da cidade, já que é o espaço das periferias urbanas, não exatamente um espaço geográfico específico, mas como um espaço “subterrâneo”, onde se assentam as cidades idealizadas (v. FREITAG, 2002). No espaço geográfico, a Ilha do Sal, são evidentes os influxos modernizadores da globalização. Sérgio Pitboy transita da cidade subterrânea e periférica aos centros de povoação burguesa e de atração turística da ilha, instalando-se na condição de marginal. Mas, apesar da situação social de risco, Sérgio mantém o sonho de habitar aqueles centros e constituir-se no espaço social aburguesado, seja formando-se em Direito, seja como jogador de futebol em Portugal, seja como cantor de rap. Os sonhos de sucesso profissional e social são os fios que o atam aos anseios maternos, ao reencontro almejado com a mãe, que experimentará a imigração anos após o seu nascimento. No entanto, sua marginalização social continuada, como
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um processo inexoravelmente descendente, o leva a se confrontar, naqueles espaços, com situações limites que pulverizam todos os seus anseios de ascensão. Apesar de poder ser remetido ao modelo do romance de formação, na medida em que acompanha, através do recurso da memória, o desenvolvimento físico, sexual, psicológico e social do protagonista, Marginais escapa às formas canônicas. Facilmente poderíamos recorrer a Charles Dickens (David Copperfield, 1850) ou a Mark Twain (Tom Sawyer, 1876), a fim de compará-lo e encontrar-lhe seus “modelos” narrativos. No entanto, Marginais estaria mais próximo de narrativas mais contemporâneas, como a do cubano Pedro Gutierrez (El Rey de La Habana, 1999), ou dos brasileiros Jorge Amado (Capitães de Areia, 1937), Ferréz (Capão pecado, 2000) e, mesmo, do romance reportagem de Celso Athayde, MVBill e Luis Eduardo Soares (Cabeça de porco, 2005). Ao contrário dos exemplos extraídos da literatura do século XIX, nesse conjunto de narrativas não há orientação ofertada às personagens pelo modelo social burguês, pelo contrário, o leitor é apresentado, sem mediações, ao universo das populações das periferias das cidades, onde a fome, a violência e a inexistência de um poder público que organize o espaço já predestinam cada personagem antes mesmo de seu nascimento, como acontecera com as irmãs de Sérgio, mortas poucos dias depois do nascimento. Nesse sentido, Marginais é uma narrativa que facilmente se insere na tradição literária cabo-verdiana dos tempos coloniais, pelos mesmos elementos que a singularizam nesse conjunto. Sua novidade consiste no espaço, que não oferece mais sentido, como acontecia na produção mais tradicional. Se a terra, tanto na geração claridosa, quanto naquelas que lhe seguiram, oferecia sentido a um anseio de identidade nacional autônoma, em Marginais essa mesma terra perde o seu estatuto privilegiado – espaço geográfico onde a nação se concretiza. A terra é esvaziada de sentido na medida em que a nação é representada por um Estado indolente e incapaz de ser a entidade política e jurídica que deveria promover a estabilidade social, a justiça e a felicidade, com políticas efetivas de inclusão e socialização. Em Marginais, o estado é cartorial, “pertence” às classes mais abastadas, e o exercício do poder público apenas garante a estratificação e a perpetuação de condições de injustiça, já que as faces apresentadas, a escola, a polícia ou o poder judiciário, garantem apenas a manutenção do status quo. Aos “marginais” não são oferecidas oportunidades de escaparem ao “sistema”, restando-lhes o crime, o tráfico e a prostituição. Alternativas são opções idealizadas e usuais como o esporte ou a música. Por isso, no espaço narrativo da Ilha do Sal – apesar de suas fronteiras geográficas e sociais internas bem demarcadas – os “marginais” transitam invisíveis. Para o conjunto da Literatura cabo-verdiana, em que pesa a miséria característica dos espaços sociais tradicionais daquela literatura, a narrativa de Rocha não introduz um quadro social novo. Marginais ressignifica os grupos sociais, não apenas por sua atualização temporal, mas, principalmente, porque a partir deles emergem discursos que se confrontam com a ordem social e no qual se verifica uma violência cotidiana e endêmica, desde os espaços domésticos até os aparelhos de segurança do estado – porque não há limites para a sua prática. 82
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Em Marginais estão colocados os temas tradicionais da literatura nacional, como o evasionismo, a insularidade, ou a morabeza – mas todos postos em função do espaço marginal e da condição social experimentada pelas personagens. Evadir-se das ilhas não é opção, é apenas sonho e fio de esperança; o isolamento é condição atávica; e a morabeza é subvertida pela cotidiano. A solidariedade, que garantiria a estabilidade social, política e cultural, só é experimentada entre os indivíduos que compartilham algumas experiências porque localizados num mesmo grupo específico, identificados por idade e proximidade social, geográfica e/ou afetiva, ou seja, a gangue urbana, como sugere Gary T. Barker (2008). Mas se o marcador de classe social, nessa narrativa, é instrumento para a verificação de exclusão – resta aos indivíduos em situação social de risco, como verificara a antropóloga Sofia Aboim (2004) ao tratar dos homens de Maputo, o marcador de gênero. Para as parcelas marginalizadas das sociedades, ser homem, ou mulher, e ser reconhecido como tal, é o recurso possível para a individuação e o destaque social almejado. O reconhecimento passa indubitavelmente pela manifestação de caracteres físicos, pela iniciação sexual e suas práticas e, também, pelo desconhecimento de regras e desafios aos parâmetros sociais burgueses que organizam as cidades modernas. Sérgio deseja crescer, tornar–se adulto, e concretizar os desejos maternos, entretanto esbarra em obstáculos que vão desde o fracasso escolar e a experiência amorosa incerta e esvaziada de sentido – “desaprendi a amar” (p. 109), dirá quando mais adulto – até a prática sexual limítrofe ao seu senso de masculinidade. Na adolescência, apaixonou-se pela professora Izilda, mas diante dela era incapaz de apresentar-se como homem, um aluno bem sucedido, e ser por ela reconhecido para além de sua condição social subalterna. Nas memórias de Sérgio, Fusco é personagem que ocupa lugar privilegiado por sua ousadia, pelo poder de sedução e por suas performances desafiadoras frente aos dispositivos de repressão com que se depara. Sergio nunca rejeitara Fusco – a não ser inicialmente, provocado pelo discurso religioso –, ao contrário, além da amizade, ambos passaram a compartilhar suas intimidades. Em Marginais, a prática sexual é naturalizada, inclusive as homossexuais. Além da amizade com Fusco, a relação que, por volta dos seus vinte anos, Sérgio mantém com Valdomiro/Mirinha é reveladora. Se, num primeiro momento a prática de relações homoeróticas foi motivo de curiosidade e de iniciação sexual, Sérgio, mais adulto, é atravessado pelo afeto por Mirinha, mesmo quando submetido à compaixão. Sérgio insiste em não saber amar, em não se interessar por quaisquer envolvimentos que lhe induzissem a um romance. Além disso, em Marginais, a sexualidade naturalizada, é experimentada através de estupros e violações, principalmente praticada pelos aparelhos estatais de segurança. A trajetória de Sérgio, mais do que a sua busca por ascensão social, concentra-se na valorização das relações oferecidas pelos afetos e, também, por um senso de justiça que busca o reparo da (des) ordem social. Após a morte de Mirinha, Sergio se confronta também com a morte de Mirna, com quem também desenvolvera uma intensa relação de afeto que, apesar de ter sido de duração mais longa e mais perene, fora idêntica àquela que
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mantivera com Mirinha – ou seja, comovido por compaixão, nega continuamente qualquer referência ao amor. A morte de Mirna, que se tornara prostituta e vivera “servindo” aos mais ricos da Ilha, se dá após a sua descrição em flagrante decadência física, tendo realizado inúmeros abortos e com a certeza de alguma DST não identificada pelo narrado. Mirna morre só, numa cama de hospital. A narrativa de Marginais encerra com o seu retorno às mãos do autor, que, novamente, em tipos itálicos, informa que Sergio foi encontrado morto, alguns dias após o Natal de 1999, com um corte profundo no pulso. Em suas mãos, um papel escrito a lápis, continha o seguinte poema: No princípio era a corrupção e a corrupção era deus. A corrupção estava no princípio com deus. Todas as coisas foram feitas pela corrupção E sem ela, nada do que foi feito se fez (ROCHA, 2010, p. 223).
A narrativa de Evel Rocha, exposta de maneira resumida, revela-se como manancial para questionamentos acerca dos vários sentidos a que a crítica literária se acostumou, em sua tradição, ao ler o conjunto das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Rocha, com seus Marginais, subverte esses sentidos ao dar relevo, no que toca à cultura e à sociedade cabo-verdianas, a personagens que estão longe dos estereótipos – sem pudores, os vícios, os crimes, as transgressões, a miséria, a fome, a desigualdade, a injustiça comparecem na narrativa. O narrador, enfim, que não se anima pela utopia e, por isso, não se alinha a nenhuma outra produção anterior. Nem a terra, nem a nação, nem a sua população, são capazes de oferecer algum sentido que escape ao fatalismo da corrupção enunciada no poema deixado pelo protagonista de Marginais. Resta aos marginais, de Evel Rocha, no entanto, um sentido de justiça social que emanaria dos juízos de Sergio Pitbull, resgatados do senso comum, e que se assenta sobre o seu senso de masculinidade. A leitura da narrativa de Evel Rocha impõe-nos uma tentativa vã de resposta à pergunta de Gayatri Spivak em seu já clássico artigo “Pode o subalterno falar?” (SPIVAK, 2010). A perspectiva nada otimista da socióloga indiana, da impossibilidade do acesso ao discurso pelos subalternos, encontra respaldo nessa narrativa, em que as personagens estão presas a inexorabilidade das categorias de classe e gênero – é preciso lembrar que o discurso de Sérgio é mediado pela narrativa do “autor” que acolhe seus manuscritos e os coloca em circulação. A subversão, da ordem social ou da ordem de gênero, é ação já prevista pelos dispositivos de controle que se adensaram no mundo globalizado e pósmoderno. Não haveria, assim, saídas àqueles que transitam pela narrativa de Rocha, a não ser, possivelmente, o acesso ao discurso. A realização de Marginais, o jogo discursivo da narrativa, a sua própria construção é a resposta à urgência com que o autor e o narrador sublinharam a própria narrativa desde as suas primeiras páginas. Ao se tornar narrativa e literatura, Sergio pode circular livremente. 84
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Referencias bibliográficas ABOIM, Sofia. “Masculinidades na encruzilhada: hegemonia, dominação e hibridismo em Maputo”. In: Análise Social, vol. XLIII (2.º), 2008: 273–295. BARKER, Gary T. Homens na linha de fogo: juventude, masculinidade e exclusão social. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. FREITAG, Bárbara. Cidade dos Homens. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. SPIVAK, Gayatry Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010. ROCHA, Evel. Marginais. Praia: ASA/Gráfica da Praia, 2010.
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Mário César Lugarinho é professor Doutor da FFLCH/USP (Universidade de São Paulo), atuando na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Nome reconhecido na crítica especializada dos estudos culturais e da teoria queer, foi um dos membros fundadores da ABEH (Associação Brasileira de Estudos da Homocultura), em 2001. Autor do livro Manuel Alegre: mito, memória e utopia (Lisboa: Colibri, 2006), também assina importantes ensaios publicados no Brasil, em Portugal e nos Estados Unidos. Desde 2001, é bolsista de produtividade em pesquisa (nível 2) do CNPq.
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JOSÉ EDUARDO AGUALUSA um vendedor de passados
RENATA FLAVIA DA SILVA* Fenômeno individual e psicológico […], a memória liga-se também à vida social […]. Esta varia em função da presença ou ausência da escrita […] e é objeto da atenção do Estado que, para conservar os traços de qualquer acontecimento do passado […], produz diversos tipos de documento/ monumento, faz escrever a história […], acumular objetos […]. A apreensão da memória depende deste modo do ambiente social […] e político […]: trata-se da aquisição de regras de retórica e também da posse de imagens e textos […] que falam do passado, em suma, de um certo modo de apropriação do tempo […]. As direções atuais da memória estão pois profundamente ligadas às novas técnicas […], de manipulação da informação, do uso de máquinas e instrumentos […], cada vez mais complexos. [JACQUES LE GOFF. História e memoria.]
Resumo: Em O vendedor de passados (2004), José Eduardo Agualusa retoma, mais uma vez, a História de Angola, a história dos anos difíceis do pós-independência. A obra questiona e denuncia não só a manipulação da história a favor de determinado grupo, mas também a edificação de uma memória celebrativa que respalda, com fatos do passado, o presente traumático; problematiza a compreensão do passado e do presente ao construir, alegoricamente, personagens que defendem o direito legítimo – e democrático – de lembrar e de esquecer. Este artigo busca desenvolver uma leitura do romance, privilegiando, dentre outros aspectos, a ficcionalização da história ou a naturalização da ficção e sua utilização pela sociedade que a engendra. PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA, HISTÓRIA, MEMÓRIA José Eduardo Agualusa: a salesman of past Abstract: In O vendedor de passados (2004), José Eduardo Agualusa resumes, once again, the history of Angola, the story of the difficult years of post-independence. The work questions and reveals not only the manipulation of history in favor of a particular group, but also the building that supports a memory celebration, with events of the past, this disorder; questions the understanding of past and present to the building, allegorically, characters who defend the legitimate right – and democratic – to remember and forget. This article intends to develop a reading of the novel, focusing, among other things, the fictionalization of history or the naturalization of fiction and its use by the society that engenders it. KEYWORDS: LITERATURE, HISTORY, MEMORY
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historiador francês Jacques Le Goff destaca, no fragmento acima, a característica social da memória e a capacidade de “produção” de uma história que atenda aos objetivos de preservação do poder. A apropriação do tempo por parte de alguns toma, por extensão, a vida de outros. Tal característica
serve de base para a construção alegórica arquitetada por José Eduardo Agualusa, em seu romance O vendedor de passados. Nosso objetivo, no presente artigo, é desenvolver uma leitura da obra que possa evidenciar a construção da memória por meio de um mercado de vestígios e recordações de um passado, real ou imaginário. Ao problematizar a sacralização do discurso histórico, a narrativa nos apresenta as trajetórias de personagens que transitam numa Luanda semidesperta, fruto dos anos difíceis em que os sonhos não se realizaram e os pesadelos, modificados, ocupam, ainda, seu lugar. Félix Ventura, o homem que trafica memórias, fabrica também sonhos e, com isso, acena, com seu cartão de visita, para a possibilidade de ser outro, de modificar o que se acreditava imutável: o passado. Félix tem como clientela uma nova elite angolana, desejosa de gloriosos antepassados, heróicas ascendências que atribuíssem uma aparente respeitabilidade a seu presente. Esse ofício incomum é a saída encontrada para escapar da marginalidade e da loucura numa sociedade voltada para o lucro e a aparência. Os passados fictícios imaginados por ele dão falsas genealogias a “falsos” governantes. Um mercado novo que se faz necessário dada a necessidade de heróis que tragam ao presente a aura perdida após a Independência. Mas ao contrário do que se pode imaginar, este comércio de memórias imaginadas não impossibilita a emergência do passado dito “real”, pois “onde parece dizer a verdade descobre-se a mentira e, em outras circunstâncias, é a mentira que insinua a verdade” (LINS, 1990, p. 165). Uma ficção, portanto, que revela o que a realidade dissimula, pois “onde há luz, há sombras” (AGUALUSA, 2004, p. 128). Ao apresentar o passado como algo a ser produzido e consumido, Agualusa extrapola o espaço da ficção e lança a dúvida sobre a memória celebrativa da história oficial, sobre até que ponto essas recordações não seriam organizadas a favor de determinados interesses ou ideologias, como mercadorias expostas intencionalmente na vitrine. Reorganizar memórias pode ser, também, uma forma de reorganizar o poder; refazer, ainda que por intermédio da ficção, a rememoração do outrora a partir da visão do presente. As personagens que figuram na narrativa apresentam, quase todas, uma característica comum aos novos tempos retratados no romance: a inadequação, uma sensação de não pertencer ou fazer parte daquilo que as rodeia. Traduzem, deste modo, os conflitos vivenciados pelos homens contemporâneos, não só angolanos, mas de qualquer país, partidos e fragmentados. Incompletas, mutiladas, essas personagens aspiram a uma nova completude, daí desejarem o passado para reorganizarem seu presente, daí a vontade de modificar, ainda que por meio da imaginação, aquilo que lhes desagrada ou que deve ser suprimido de suas memórias individuais ou coletivas. Estas novas identificações transformam-se ao longo do tempo e ao sabor da narrativa. Como “um barco subindo o rio” (Ibidem, p. 79), o tempo corre pelas páginas do romance, possibilitando ao leitor contemplar reflexos da história encontrados nas memórias e recordações das personagens. Essa contemplação não representa necessariamente uma ida ao passado, mas a verificação da presença deste no romance, através de dilemas éticos e morais
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(SANTOS, 1993, p. 74). Evidencia os conflitos da sociedade angolana contemporânea, os traumas deixados pela guerra, o desencanto com os ideais utópicos da revolução, o desajuste com o progresso, a história do país ainda por contar, enfim, questionamentos e indagações pertinentes, sobretudo àqueles que passaram pela experiência traumática da colonização. O tempo da narrativa é, portanto, marcado pela transitoriedade e pela fugacidade das coisas. A fantasia, nesse caso, pode preencher os espaços vazios deixados pela triste realidade que cerca as personagens do romance. Carentes de algo que as norteie e conforte, buscam na ficção uma suposta “completude” perdida, ou, por um motivo menos nobre, dar a sua atual condição uma aparente respeitabilidade. Acredito que sim, tão carentes de um bom passado andamos nós todos, e em particular aqueles que por essa triste pátria nos desgovernam, governando-se (AGUALUSA, 2004, p. 108). — Porque queriam um herói angolano, suponho, naquela época precisávamos de heróis como de pão para boca. Se quiser ainda lhe posso arranjar um outro avô. Consigo documentos provando que você descende do próprio Mutu ya Kevela, de N’Gola Quiluange, até mesmo da Rainha Ginga. Prefere? (Ibidem, p. 120).
Essa necessidade de novas identificações evidencia, no discurso romanesco, uma ausência que se faz presente e notadamente problemática para a progressão da história. O silêncio, a falta deixada pelo que foi suprimido no passado, faz ecoar um coro de vozes perdidas ao longo do caminho que impossibilitam às personagens continuar suas vidas sem deixar de olhar para trás. “Dói-[lhes] na alma um excesso de passado e de vazio” (Ibidem, p. 40). É a “ausência que tece” (SANTIAGO, 1976, p. 26) a trama narrativa e seus inúmeros desenlaces. A narrativa, tal qual um tecido, tem sua dobra, sua margem; aquilo que se esconde nesta dobra ainda está lá, faz parte do próprio tecido. As vidas vividas pelas personagens no passado ainda fazem parte de suas trajetórias no presente e, fatalmente, nortearão suas escolhas no futuro. O clamor das vozes silenciadas se ergue, na narrativa, metaforicamente por meio de um dos símbolos nacionais: as acácias rubras da independência. As flores, que já foram gloriosas, se transformam num fruto dos anos difíceis vividos pelo povo angolano: “No quintal, no lugar onde Félix Ventura enterrou o corpo estreito de Edmundo Barata dos Reis, floresce agora a rubra glória de uma buganvília. […] Debruça-se para o passeio, lá fora, numa exaltação – ou numa denúncia – à qual ninguém presta atenção” (AGUALUSA, 2004, p. 181). Assim como a flor excede o espaço do quintal e alardeia sua condição de testemunha da história, o espaço onde a narrativa se desenvolve excede o mapa1 de Angola apresentado, 1
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Referimo-nos ao mapa apresentado na página VI do romance.
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paratextualmente, no início da narrativa. Como uma pista falsa, esse mapa localiza um ponto que vai bem mais além do território compreendido pela República Popular de Angola, uma vez que representa lugares de projeção de conflitos sociais evidenciados na narrativa. Todos os múltiplos lugares citados na narrativa corroboram para a construção de um espaço privilegiado onde o passado corre como um rio. “Em seu trabalho secular, o rio é veículo de transporte”, carrega consigo histórias vividas ou sonhadas. “Entretanto, quando chega o verão chuvoso, o rio solidário acolhe a tempestade e transforma-se nela […]. Tudo desce com a tempestade do rio” (HISSA, 2002, p. 22), tudo vem à tona. A canção escolhida por Félix para compor a trilha sonora do crepúsculo ilustra os frágeis limites do “sono e da vigília” ambientados no romance: Nada passa, nada expira/ O passado é/ um rio que dorme/ e a memória uma mentira/ multiforme.// Dormem do rio as águas/ e em meu regaço dormem os dias/ dormem/ dormem as mágoas/ as agonias, dormem.// Nada passa, nada expira/ O passado é/ um rio adormecido/ parece morto, mal respira/ acorda-o e saltará/ num alarido (AGUALUSA, 2004, p. 04).
As vozes do passado caladas ao longo da história habitam a fronteira entre o passado e o presente. Nesse espaço “entre lugares” encontra-se “o vago: a ausência. A ausência é questionada pela memória ou pelo desejo: algo que não é presente; algo que nunca foi enquanto poderia ter sido” (HISSA, 2002, p. 35). Memórias de uma infância não vivida, lembranças de uma família que se perdeu, recordações de outra vida já vivida, um vazio deixado como um breve instante de felicidade ou como uma eterna condenação. Essa ausência rememorada ou arquitetada projeta, simultaneamente, no discurso romanesco uma presença, que, sob várias roupagens, permeia toda a obra: o poder sobre a memória e o esquecimento. Afinal, uma narrativa sobre memórias é também uma narrativa sobre o poder; tem em seu âmago uma conotação política, dadas as condições em que estas recordações são resgatadas ou esquecidas. O poder sobre os homens passa pelo poder sobre a informação e a comunicação. Os esforços para controlar essa memória são, inúmeras vezes, feitos através da negação, pura e simples, do uso de eufemismos ou da propaganda ilusória (TODOROV, 2002, p. 136-8). A narrativa de O vendedor de passados destaca seu resgate intencional – a serviço de alguns – ironizando a construção do discurso histórico e desconstruindo a memória celebrativa da independência: Assim que A Vida Verdadeira de Um Combatente for publicada, a história de Angola ganhará outra consistência, será mais História. O livro servirá de referência a futuras obras que tratem da luta de libertação nacional, dos anos conturbados que se seguiram à
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independência, do amplo movimento de democratização do país (AGUALUSA, 2004, p. 140).
Félix Ventura em seu incomum ofício de “vendedor de passados” detém a chave para satisfazer a memória desejante dos homens; daqueles que buscam não só um novo passado, mas uma nova identidade, uma nova vida. A construção alegórica da narrativa a reveste de humor e leveza ao tratar de uma das questões mais frequentes na literatura atual: a identificação do sujeito na contemporaneidade. Mais que uma construção metafórica, a alegoria traz em si o sentido de progressão, de processo, uma sequência de momentos que leva a uma problematização mais profunda das questões acerca da memória e de sua importância na construção da identificação que se tem hoje dos angolanos e de seu país. A ambiguidade e a multiplicidade de sentidos por ela gerada “instala[m]-se onde o efêmero e o eterno coexistem intimamente” (BENJAMIN, 1986, p. 247). Ao unir a volatilidade das recordações à suposta estaticidade do passado, Agualusa multiplica as possíveis versões da história de Angola criando, no romance, um comércio de vidas imaginadas, uma forma diferenciada de construção narrativa pela qual Félix é responsável: “– Acho que aquilo que faço é uma forma avançada de literatura –, confidenciou-me. – Também eu crio enredos, invento personagens, mas em vez de os deixar presos dentro de um livro dou-lhes a vida, atiro-os para a realidade” (AGUALUSA, 2004, p. 75). A realidade à qual Félix se refere é percebida pelas personagens por meio de construções metafóricas, de discursos e cenas que mascaram e iludem aqueles que os vivenciam. A visão que se tem a partir do discurso romanesco é de não confiabilidade, pois as histórias narradas trazem ecos de outras histórias, de outros tempos, como uma progressão de imagens na qual a memória se faz presente de múltiplas formas. — Costumo pensar nesta casa como sendo um barco […]. – Félix disse isto e baixou a voz. Apontou num gesto vago os vagos livros: — Está cheio de vozes, o meu barco (Ibidem, p. 24). A memória é uma paisagem contemplada de um comboio em movimento. […] São coisas que ocorrem diante dos nossos olhos, sabemos que são reais, mas estão já tão longe, não as podemos tocar. Algumas já estão tão longe, e o comboio avança tão veloz, que não temos certeza de que realmente aconteceu. Talvez as tenhamos sonhado. Já me falha a memória, dizemos, e foi apenas o céu que escureceu (Ibidem, p. 153).
As constantes alusões à ambiguidade do olhar e das interpretações por ele suscitadas evidenciam, na narrativa, o conflito entre o real e a ficção, ou melhor, entre a aparência e
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a realidade das coisas. O jogo de espelhos da narrativa ilustra este conflito por meio das visões distorcidas das personagens, reais ou inventadas, retratadas no romance: As paredes da minúscula sala, as paredes do único quarto, as paredes do estreito corredor estavam cobertas por espelhos. […] Eram artefactos de feira popular, cristais perversos, concebidos com o propósito cruel de capturar e distorcer a imagem de quem quer que se atravessasse à sua frente. […] Havia espelhos capazes de iluminar uma alma opaca. Outros reflectiam não a face de quem os encarava, mas a nuca, o dorso. Havia espelhos gloriosos e espelhos infames (Ibidem, p. 45).
O Ministério da Informação de um suposto país, citado em um sonho por José Buchmann, reafirma o desejo de atribuir à realidade uma nova forma de organização a partir de um engenhoso universo de ficção, uma vez que aquela não satisfaz as expectativas dos que dela fazem parte. Como mais uma dobra na trama discursiva, o fato atribuído a um país qualquer do Pacífico remete à própria criação romanesca, instalando-a num cenário metaficcional: Contou que numa ilha do Pacífico, onde vivera alguns meses, a mentira era considerada o mais sólido pilar da sociedade. O Ministério da Informação, instituição venerada, quase sagrada, estava encarregue de criar e propagar notícias falsas. Uma vez à solta entre as multidões essas notícias cresciam, adquiriam formas novas, eventualmente contraditórias, gerando amplos movimentos populares e dinamizando a sociedade (Ibidem, p. 143).
A auto-referencialidade percebida na narrativa, alerta também para a possibilidade de se criar um universo ficcional que ultrapasse os “limites” instituídos por seu criador; é a criatura assumindo seu próprio rumo, dentro do universo romanesco. Félix Ventura vende vidas que arquiteta num exercício de imaginação dentro de um cenário histórico real – ao menos, dentro da narrativa. Enredado em seu próprio universo ficcional, Félix vê-se incapaz de distinguir até onde vai sua criação, mesmo sabendo tratar-se de um jogo: — Você inventou-o, a esse estranho José Buchmann, e ele agora começou a inventar-se a si próprio. A mim parece-me uma metamorfose… Uma reencarnação. Ou antes: uma possessão. O meu amigo olhou-me assustado: — O que quer dizer? — (…) Ele torna-se mais verídico a cada dia que passa. […]. — É um jogo. Sei que é um jogo. Sabemos todos (Ibidem, p. 73).
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Uma ficcionalização que toma ares de verdade. Alegoricamente, a narrativa por meio da “reunião, no romance, de personagens de ficção e personagens históricos também pode ter uma função na problematização da natureza do sujeito no sentido de que ela ressalta a inevitável contextualização do eu na história e na sociedade” (HUTCHEON, 1991, p. 116). Na contemporaneidade da sociedade de consumo, a memória é um dos produtos que se vende bem. Os mercadores da memória são os mesmos que vendem também identidades, costumes, pertencimentos.2 Ao adquirirmos um produto, compramos juntamente um estilo, uma “tribo”, uma história em comum – muito mais volátil porque pode ser substituída por outra recém-lançada. Com isso as memórias anteriores vão sendo suprimidas ou misturadas a outras vendidas em larga escala, é o comércio vil da “pós-modernidade”. “As identidades coletivas, que outrora eram ‘dadas’ sem problemas, de forma ‘natural” e espontânea,3 devem agora, por assim dizer, ser artificialmente produzidas” (BAUMAN, 1999, p. 79; grifos nossos). Essa compra do passado desvela a manipulação da história, geral ou particular. Segundo o historiador Jacques Le Goff, a memória […] é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder (1996, p. 476).
Lembrar, nesse caso, assume o status de resistência ao poder. A canadense Linda Hutcheon, em suas análises acerca da problematização da história nas narrativas ditas pós-modernas, afirma que “parece haver um novo desejo de pensar historicamente, e hoje pensar historicamente é pensar crítica e contextualmente” (HUTCHEON, 1991, p. 121). O passado é visto com os olhos do presente. A violência dos tempos atuais e os avanços da tecnologia figuram também, no romance, como fatores de contribuição para a demanda destes novos sujeitos. Félix tem como cliente um homem sem rosto e sem passado, desejoso de uma nova identificação, de um novo eu, que possa suplantar o passado desfigurado por uma cirurgia imposta por aqueles que detêm o poder sobre a aparência das coisas. Todavia, o que poderia parecer uma condenação perpétua transforma-se em libertação: — Vê este rosto? – O homem indica com ambas as mãos o próprio rosto. — Pois não é meu. […]
2 Utilizamos aqui o termo pertencimento como uma tradução ao termo inglês belongness. 3 Ressaltamos que, em seu texto, Zygmunt Bauman refere-se às sociedades anteriores à Era Moderna. Embora a afirmação seja discutível em relação à espontaneidade das identificações coletivas, o que desejamos frisar, aqui, é a artificialidade e a condição de “artigos de consumo” que tais identificações adquirem na contemporaneidade.
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— Roubaram-me o rosto. Aliás, como explicar-lhe?, roubaram-me de mim. Um dia acordei e descobri que me tinham feito uma operação plástica. […] Podiam ter-me morto. […] Talvez pensem que estou mais morto assim. […] Esta situação transformou-me num homem livre (AGUALUSA, 2004, p. 185-6).
Desfazer o passado é absolutamente impossível. “É através da sintaxe do esquecer – ou do ser obrigado a esquecer – que a identificação problemática de um povo nacional se torna visível” (BHABHA, 1998, p. 226). O romance relata os conflitos já vividos e que ainda permanecem como obstáculos à fluidez do tempo presente. Retrata em imagens recorrentes de dor e de morte, as memórias sujas de sangue que saem das sombras à luz da narrativa. São personagens presas “na ambivalência da identificação paranóica, alternando entre fantasias de megalomania e perseguição” (Ibidem, p. 99), vide as trajetórias do Ministro da Panificação e Laticínios, como também a do ex-agente – ou “ex-gente” como o próprio se denomina – Edmundo Barata dos Reis, tal qual espelhos ora gloriosos ora infames de um mesmo passado refletido na narrativa. As personagens José Buchmann, ou Pedro Gouveia, e Ângela Lúcia representam o “encontro secreto, marcado entre as gerações” (BENJAMIN, 1994, p. 223), como um apelo do passado para que a história seja revisitada e, finalmente, redimida. Em busca dessas memórias esquecidas à força da dor e do poder, pai – fotógrafo de guerra, crepuscular – e filha – colecionadora de luz, como opostos que se completam – reconhecem que em suas novas vidas nada lhes foi concedido, “tudo tem que ser adquirido, não apenas o presente e o futuro, mas também o passado…”; entretanto, “não tendo recebido nada, não se deve nada” (BAUMAN, 1999, p. 166), podem, agora, recompor os fragmentos espalhados em suas trajetórias. Portanto, ao expor a comercialização de memórias produzidas intencionalmente, a narrativa possibilita a “re-ordenação” dos fragmentos do passado, livres agora do eixo do discurso hegemônico, a fim de dar novas versões às histórias vividas por suas personagens. José Eduardo Agualusa, em O vendedor de passados, estabelece a memória como o espaço privilegiado de sua crítica à sociedade angolana e, por extensão, a outras sociedades contemporâneas, sobretudo aquelas que passaram pela experiência da guerra e da opressão. Os cenários móveis da memória evidenciam a dúbia aparência das coisas, a fluidez com que as certezas se esvaem à medida que as cenas do passado são iluminadas pela luz do presente. Contudo, essa ambiguidade não é um aspecto negativo ressaltado na narrativa, pelo contrário, pois “a ambivalência é o limite do poder dos poderosos. Pela mesma razão, é a liberdade daqueles que não têm poder” (BAUMAN, 1999, p. 190); portanto, de acordo com Bauman, é a outra face da moeda. Agualusa não altera o passado, mas, ao dar a este uma versão diferente, doa ao futuro uma possibilidade ainda não dada, ou antes, negada às personagens. O desejo de ser outro, de modificar as trajetórias, é também o desejo de se alterarem as práticas de dominação sobre este vasto território, o da memória. O poder que incide sobre as pessoas e as coisas
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dentro de um determinado espaço físico pode, muitas das vezes, exceder esse espaço, pois as acompanhará ainda que mudem de paisagem externa; suas memórias sobrevivem presas aos escombros do passado, quer pela presença deste, quer por sua ausência. “Nada simplesmente termina, nenhum projeto jamais é concluído e descartado” (BAUMAN, 1999, p. 287), permanece, ainda que apenas nas lembranças, presente nas ruínas da história. A resistência à manipulação da memória dá-se, muitas vezes, pela imaginação e pelo sonho que vêm preencher as lacunas deixadas pelo esquecimento voluntário ou não. A forma escolhida para suprir tais lacunas, entretanto, traz à tona conflitos éticos e morais relacionados à natureza do discurso e sua utilização. Félix vê-se a meio caminho entre a falsidade ideológica e sua “forma avançada de literatura” (AGUALUSA, 2004, p. 75): Explicou que pretendia fixar-se no país. Queria mais do que um passado decente, do que uma família numerosa […]. Precisava de um novo nome, e de documentos nacionais, autênticos, que dessem testemunho dessa identidade. O albino ouvia-o aterrado: — Não! –, conseguiu dizer. — Isso eu não faço. Fabrico sonhos, não sou falsário… (Ibidem, p. 18).
A separação entre realidade e invenção transforma-se em passagem, trânsito entre dois meios. O que era fronteira torna-se via de acesso que possibilita um novo olhar, problematiza as relações de dominação propondo uma inversão de papéis, “um exercício interessante é tentar ver os factos através do olhar da vítima” (Ibidem, p. 39). Para isso, é preciso saltar o muro e seguir na direção da floresta ainda desconhecida, penetrar nesses espaços da memória, no “mundo do permanente vir-a-ser e da ausência pulsante” (HISSA, 2002, p. 35) retratados no romance. A ficção construída por Agualusa apresenta, portanto, novas versões para fatos antigos, modificando o foco e a interpretação, (re)contando a história a fim de alterar as opções de um futuro ainda em aberto. A narrativa sobre o comércio de lembranças fingidas – tecidas em torno de outras supostamente reais de um tempo de tortura e opressão – questiona e denuncia não só a manipulação da história a favor de determinado grupo, mas também a edificação de uma memória celebrativa que respalda, com fatos do passado, o presente traumático. Critica, por meio do discurso romanesco, um tempo presente no qual as acácias rubras que deveriam enfeitar os bustos dos heróis tombados pela independência não passam de flores de plástico, artigos fúteis de uma sociedade de consumo. A narrativa alerta para o perigo da naturalização dos discursos, questiona os sentidos congelados da história. A aparência que se tem hoje nem sempre corresponde ao que se foi, é preciso tentar ver, através das ruínas, o momento em que estas ainda não o eram; ouvir no silêncio as vozes que foram caladas. Eulálio, num capítulo intitulado “Ilusões”, dialoga com o leitor acerca das falsas impressões geradas a partir de um único momento:
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Olhando para o passado, contemplando-o daqui, como contemplaria uma larga tela colocada à minha frente, vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim um estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém se eu fechar os olhos para o passado, se o vir agora, como se nunca o tivesse visto antes, não há como não acreditar nele – aquele homem foi José Buchmann a vida inteira (AGUALUSA, 2004, p. 65).
À imagem da tela parada no presente opõem-se, na narrativa, as imagens do comboio em movimento e do rio que segue seu curso. A narrativa sugere que se acompanhe o fluxo da memória como a fluidez de um rio. A moldura da tela impede que se vá além ou aquém da cena retratada, é preciso seguir o rio que constantemente se transforma, trazendo em suas águas fragmentos de suas instáveis margens. É através destas reminiscências que a apropriação do tempo passado suprimido, voluntária ou involuntariamente, se torna possível, não um tempo estático e finito, mas um tempo sempre presente. O romance apresentado por José Eduardo Agualusa, em 2004, traz para a contemporaneidade da literatura angolana a construção alegórica de um comércio de identificações que problematiza a compreensão do passado e do presente, trajetórias de sujeitos históricos presos na ambivalência da “pós-modernidade”. Oprimidas e opressoras, suas personagens defendem o direito legítimo – e democrático – de lembrar e de esquecer. Todorov, no já citado Memória do mal, tentação do bem, afirma que […] convém evitar ‘cair na armadilha do dever da memória’ […]. O passado poderá contribuir tanto para a construção da identidade, individual ou coletiva, quanto para a formação de nossos valores, ideais, princípios – desde que aceitemos que estes últimos sejam submetidos ao exame da razão e à prova do debate, em vez de querer impô-los simplesmente porque eles são os nossos (TODOROV, 2002, p. 207).
Corremos o risco, portanto, de nos perdermos nesta jornada. A trilha entre a banalização do passado – como mercadoria a ser consumida – e a sacralização – como redenção e remissão de todos os males – é uma tênue linha traçada no registro ficcional. É o caminho que nos leva à leitura de O vendedor de passados como uma narrativa crítica que subverte os conceitos de história e memória a fim de traduzir, no discurso romanesco, as modificações nos sistemas que escrevem e interpretam os fatos da contemporaneidade. Agualusa retoma, em sua narrativa, a problematização do processo de construção nacional angolano. Inserido no contexto global e movido ainda pela questão fundamental de sua escrita – a identidade – busca, no romance, um espaço de re-elaboração de um discurso nacional que dê conta da pluralidade e ambivalência da sociedade angolana atual. Na
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construção alegórica da narrativa acerca da memória, sua construção e sua utilização, lembrar e esquecer tornam-se parte do mesmo processo de identificação, permitindo que as personagens reconheçam, nesse jogo de espelhos, os reflexos do passado e as visões do futuro.
Referências bibliográficas AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Trad.: Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1986. ______. Magia e técnica, arte e política. 7 ed. Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad.: Myriam Ávila et alii. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. HISSA, Carlos Eduardo Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 2002. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Trad.: Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LE GOFF, Jacques. História e memória. 4. ed. Trad.: Bernardo Leitão et al. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1996. LINS, Ronaldo Lima. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. SANTIAGO, Silviano. (Supervisor). Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. SANTOS, Myrian. “O pesadelo da amnésia coletiva: um estudo sobre os conceitos de memória, tradição e traços do passado”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, no 23, ano 8, out. 1993, p. 70 a 84. TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem. Trad.: Joana Angélica D’Ávila Melo. São Paulo: Arx, 2002.
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Renata Flavia da Silva é professora Doutora do Instituto de Letras da UFF (Universidade Federal Fluminense), onde vem desenvolvendo projeto de pesquisa intitulado “A literatura angolana e seus espaços ficcionais: representações da contemporaneidade”. Autora de artigos e ensaios publicados no Brasil e em Portugal, organizou com Laura Cavalcante Padilha a obra De guerras e violência – palavra, corpo, imagem (Niterói: EDUFF, 2011).
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Literatura cabo-verdiana em língua portuguesa e processos identitários SIMONE CAPUTO GOMES*
Resumo: A presente pesquisa pretende demonstrar como a literatura cabo-verdiana em língua portuguesa tem contribuído para formar gerações de falantes, assim como tem funcionado como meio de tradução e preservação das vivências e do patrimônio imaterial crioulo no arquipélago e na diáspora. Embora muitas vezes proibidos pelos colonos, expressões musicais e coreográficas de escravizados e camponeses como o funaná, a tabanka e o batuque, revitalizados no período pós-independência, foram, no entanto, preservadas e registradas incessantemente pela literatura em língua portuguesa, adensando fios da cabo-verdianidade. Nossa câmera enfocará breves cenas nas quais escritores cabo-verdianos, por meio do exercício com a língua portuguesa, apropriam-se do patrimônio musical crioulo como estratégia para resgatar a singularidade de sua cultura. PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA CABO-VERDIANA EM LÍNGUA PORTUGUESA, PATRIMÔNIO IMATERIAL, IDENTIDADES Cape Verde literature in portuguese language and identity processes Abstract: This research aims to demonstrate how the Cape Verdean Literature in Portuguese Language has contributed to form generations of speakers. It has also functioned as a means of translating and preserving lived experiences, as will as the creole intangible heritage in the archipelago and in the diaspora. Although often prohibited by settlers, musical and dance expressions of slaves and peasants as funaná, tabanka and batuque, revitalized in the post-independence period, were preserved and continuously registered in the literature in Portuguese Language, densifying the threads of Cape Verdeanness. Our camera will focus on snapshots in which Cape Verdean writers, through the exercise with the Portuguese Language, appropriate creole musical heritage as an strategy to rescue the uniqueness of their culture. KEYWORDS: CAPE VERDEAN LITERATURE IN PORTUGUESE LANGUAGE, INTANGIBLE HERITAGE, IDENTITIES
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projeto que atualmente desenvolvo tem sua origem mais remota em minha pesquisa de Mestrado, realizada entre 1975 e 1979 na Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro, pioneira no país e no panorama internacional como trabalho acadêmico na área de “Estudos Cabo-verdianos de literatura e cultura”, segundo depoimento do saudoso Prof. Manuel Ferreira e, por este motivo, escolhida como obra inaugural da coleção TESE do Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1993. A partir da defesa desta dissertação sobre a obra poética em língua portuguesa do cabo-verdiano Daniel Filipe e a recuperação de raízes tradicionais crioulas que seu texto empreendia, passei a estudar a literatura e a cultura daquele país africano, perfazendo hoje trinta e seis anos de apaixonante trabalho. Dessa longa investigação, apresentarei aqui apenas a ponta do iceberg, para demonstrar como a literatura cabo-verdiana em língua portuguesa tem contribuído para formar gerações de falantes, assim como tem funcionado como meio de tradução e preservação das vivências e do patrimônio imaterial crioulo no arquipélago e na diáspora. A relação da literatura cabo-verdiana em língua portuguesa com a cultura imaterial identitária – que traduz conhecimentos, experiências, vivências e informações de caráter sociocultural, econômico e técnico que se vêm transmitindo boca a boca, de geração a geração e que constitui o substrato comum a todos os nacionais – tem norteado minhas incursões no estudo das expressões culturais cabo-verdianas, sobretudo no que toca às relações de força entre a língua portuguesa e a língua cabo-verdiana na sociedade crioula. Isso porque, na nação global que Cabo Verde configura, desde o seu nascimento (como produto de mestiçagem e hibridação cultural entre europeus e africanos deslocados de suas terras natais pela máquina colonial para ilhas desabitadas) até os dias de hoje (em que a relação entre os cabo-verdianos que vivem na diáspora e no arquipélago é quase de 2 para 1), a língua portuguesa propõe-se como língua oficial e internacional, “espaço aberto” de grande importância na afirmação identitária da cabo-verdianidade. Inicialmente opressora durante o período colonial, a língua lusa vai se tornando “parceira” ao lado do crioulo (hoje denominado língua cabo-verdiana), com o qual convive desde menos de cinquenta anos do achamento da ilha de Santiago (1460), segundo António Carreira (1972, p. 344). O “proto-crioulo” funcionava então como meio de comunicação de emergência entre a maioria negra trazida da costa ocidental da África,1 atendendo ora à imposição de o escravizado entender-se com o senhor branco na língua deste (DUARTE, 1998, p. 15), ora ao objetivo de resistência dos escravizados africanos face aos colonizadores portugueses. O proto-crioulo representava, assim, uma adaptação da língua portuguesa à gramática das línguas faladas pelas etnias dos africanos trazidos para a ilha. A língua portuguesa, por sua vez, foi capaz de se afirmar como espaço de diálogo, de tolerância das diferenças e de inter-relacionamento, como propõe Manuel Veiga (2004, p. 65), tornando-se patrimônio assumido, “filho adotivo muito estimado” (Ibidem, 101), ao lado 1
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Com suas línguas oeste-africanas.
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do “crioulo” identitário, “filho gerado muito amado”, língua do cotidiano cabo-verdiano, da casa, da família, do amor, das tradições, do imaginário coletivo. Complementa o ilustre linguista (VEIGA, 2004, p. 67) que a capacidade de aceitação da diversidade torna a língua portuguesa mais universal, mais rica e mais original face às outras línguas europeias de colonização e o prestígio de que hoje desfruta no Brasil e nas Áfricas resulta de “nela podermos, em comunhão com outras expressões linguísticas, ouvir a voz das nossas respectivas pátrias”. Amílcar Cabral, um dos expoentes da política cultural, ressaltava que o grande legado deixado pelo colonizador foi a sua língua e, em Cabo Verde, o português, utilizado há mais de quinhentos anos, além de fonte de enriquecimento lexical, é o idioma oficial por sua funcionalidade tecnológica, administrativa e científica, cultural e de intercomunicação com o mundo externo ao arquipélago. “Se houve momentos em que a língua portuguesa era espada que feria […], hoje ela está sendo chuva que rega os nossos campos, água que dessedenta a nossa sede, ao lado da fonte matricial insubstituível que é o Crioulo”, constata Manuel Veiga (2004, p. 68). O futuro da língua portuguesa em Cabo Verde projeta-se na sua capacidade de manter uma equilibrada convivência com a língua materna, pois que, na situação atual de diglossia que ainda predomina no arquipélago, necessária se faz uma política de construção de um bilinguismo2 real, que diminua o fosso existente entre a língua de prestígio do ensino, da comunicação social, dos tribunais e mesmo da literatura escrita – o português – e a língua veicular, materna, suporte das manifestações tradicionais, da música, das estórias orais. Tornar a língua portuguesa (atualmente codificada e descodificada por uma elite) cada vez mais funcional no campo informal, promovendo sua progressiva interiorização pelas massas cabo-verdianas, e dar à língua cabo-verdiana falada por essas massas um estatuto co-oficial de utilização em situações formais de comunicação possibilitará a esta assumirse plenamente como sujeito do espaço identitário e ainda conceder-se à língua portuguesa uma dimensão parceira maior à medida que conquista o universo falante cabo-verdiano no arquipélago e na diáspora. A assunção do bilinguismo na produção literária para a infância (confira-se o livro A tartaruga Luana e a passarinha Luna na formação das ilhas de Cabo Verde, de Ivete Santos, 2011), que até pouco tempo era veiculada apenas em português, demonstra o caminho de paridade pretendido para aquelas línguas em Cabo Verde. Como ainda enfatiza Manuel Veiga, a língua cabo-verdiana, dos escravizados e de seus descendentes, é marca e substância de identidade do “mundo que o mulato criou”, legenda proposta por Gabriel Mariano, poeta e antropólogo:3 nasceu com o povo caboverdiano e, juntamente com ele, resistiu como instrumento e símbolo da identidade e de unidade nacionais. Em Cabo Verde, observava Jorge Amado em uma de suas viagens, 2 Hoje, o bilinguismo é reduzido ainda a uma elite letrada e somente nas modalidades faladas das línguas portuguesa e cabo-verdiana, porque a maioria dos letrados não escreve em crioulo. Na verdade, o colonizador esmerou-se em tornar bilíngue apenas uma minoria destinada a desempenhar funções subalternas na Administração. 3 Expressão extraída do título de um capítulo da obra Cultura caboverdeana: ensaios, 1991. Este mulato cabo-verdiano tinha, muitas vezes por herança do pai europeu branco, grande poderio econômico, com ascensão vertical, à diferença das demais colônias.
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“a vida decorre em crioulo” (AMADO, Jorge. Apud. DUARTE, 1998, p. 19). Contudo, a elevação concreta da língua cabo-verdiana a um estatuto oficial não poderá, entretanto, “fazer-se em detrimento do português” (DUARTE, 1998, p. 21), que deverá ser ensinado como língua segunda, obrigatória, na opinião dos pesquisadores Dulce Almada Duarte (1998, p. 257) e Manuel Veiga (2004, p. 109-110). E isto porque o português é a língua escrita e de escolarização do país, embora 90% das crianças a utilizem pela primeira vez na escola. Outros complicadores se acrescentam a este no que toca à aprendizagem: a língua portuguesa é uma língua segunda em Cabo Verde, aprendida como se materna o fosse; a pouca exposição do aluno à língua portuguesa no cotidiano e a reduzida instrumentalidade desta para fins utilitários ainda dificultam seu aprendizado como língua segunda. Porém, enquanto não se sedimente o crioulo (língua cabo-verdiana) como língua escrita, a língua portuguesa seguirá como instrumento provisório de escolarização (DUARTE, 1998, p. 133). Assim, a implementação e sedimentação do ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita da Língua Cabo-verdiana)4 no ensino, a veiculação da língua nacional cabo-verdiana como substância e como meio de transmissão de conhecimentos (transversalidade) ao lado da língua portuguesa como veículo prestigiado de comunicação com o exterior configuram estratégia que conduzirá ao tão esperado bilinguismo real, para que os caboverdianos possam expressar em plenitude as suas identidades culturais. O texto da revisão constitucional de 1999, no seu Artigo 9o, já estabelecia: “1. É língua oficial o Português. 2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa. 3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las.” Dessa forma, hoje, a língua cabo-verdiana tem o estatuto de língua oficial em construção. Acrescenta Manuel Veiga que “finalmente, se um dia ele [o português] chegar a conquistar o estatuto de língua de língua nacional e materna” (VEIGA, 1997, p. 64) dever-se-á, introduzir, para seu ensino, a metodologia de língua primeira. Minha investigação atual debruça-se sobre o papel da língua portuguesa como parceira cultural cabo-verdiana e como formadora de gerações de falantes cabo-verdianos de português espalhados pelo arquipélago e pelo mundo. E sobre o lugar de destaque desempenhado pela literatura em língua portuguesa para a difusão e preservação da cultura crioula. Para demonstrar minimamente essa parceria, em procedimento paradigmático do trabalho que realizo, coloco agora em diálogo o poema de Corsino Fortes (1986, p. 31-32) e a composição Nhá terra escalabróde,5 morna de Daniel (Nhelas) Spencer, simbólica da expressão musical produzida em Cabo Verde:
4 Aprovado experimentalmente por cinco anos pelo Decreto-Lei no 67/98 de 31 de Dezembro de 1998 e aprovado, pelo Conselho de Ministros de Cabo Verde, em decreto-lei que o institucionaliza, em 22 de janeiro de 2009. 5 VARELA, Tomé (1994, p. 60). Tradução da morna de Nhelas: Pureza mora/ Na minha terra escalavrada/ Na nossa morna, coladeira/ Funaná e batuque.
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Entre sons de violão & viola Sons uterinos da ilha que nasce E consanguíneos do tambor que ama. […] Naquel fosfre de morna polvra de koladera E exploson de funaná (Corsino Fortes). Pureza ta morá Na nha terra escalabróde Na nôs morna, coladera Funaná e batuque (Nhelas Spencer).
No campo da Literatura, majoritariamente produzida em língua portuguesa em Cabo Verde, é possível constatar que os escritores crioulos têm utilizado o intercâmbio com o discurso musical identitário como recurso para expressar a cabo-verdianidade. O poema “Colina de pedra”, de José Luís Hopffer Almada, parece responder ao canto crioulo de Nhá terra escalabróde, evidenciando, em língua portuguesa, a ponte entre as duas formas de arte: […] ouvi este som dolente repercutindo a saudade da minha alma às minhas almas ancestrais dos degredados e negreiros A morna é um crepúsculo de lágrima desta súbita e antiga recordação […] O funaná é uma remota e dolorosa saudade de outros horizontes e nele circulam o negro e o negreiro no imenso rio da farsa sobre a ilha Eia estrangeiros ouvi ainda o batuque, o cola, a coladeira, o landum oh a música da tabanka (ALMADA, 1990, 44-45; grifos meus).
Vasco Martins, maestro, compositor, escritor cabo-verdiano, descreve as principais modalidades da música crioula, ao sabor dos ventos alíseos (MARTINS, 1993, p. 44), destacadas tanto pelos poetas Corsino Fortes e José Luís Almada quanto pelo compositor Nhelas Spencer.
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Resultam do cruzamento das culturas africanas, europeia e sul-americana:6 a tabanka7 da ilha de Santiago (ritual, repetitiva, com búzios soprados em contraponto, tambores e cornetas de latão), os ritmos da festa do pilão na ilha do Fogo (o pilão de cuchir o milho utilizado também como instrumento musical), a coladeira (exuberante, sensual, com traços da cumbia e da música afrocubana), o batuque da ilha de Santiago (uma griot africana faz o solo ou finason, mulheres executam o coro, acompanhado de percussão nas coxas, com panos e bolsas de plástico), o funaná8 (ritmo mais veloz e marcado, acompanhado da harmônica e do ferrinho), e a morna nostálgica ilha da Boavista, com seus acordes sincréticos (originários da modinha brasileira cruzada com lundum, fado, samba, fox-trot e mambo). Sob o ponto de vista cultural, em meio à diversidade das ilhas, a língua cabo-verdiana, a culinária, a literatura de língua portuguesa e a música constituem importantes fenômenos unificadores. Passo a focar minha câmera, a partir daqui, em breves cenas nas quais escritores caboverdianos, por meio do exercício com a língua portuguesa, apropriam-se do patrimônio musical crioulo como estratégia para resgatar a singularidade da cultura cabo-verdiana. Selecionarei nesta oportunidade, dentre as manifestações identitárias, a morna, canção popular do arquipélago e traço de união dos cabo-verdianos espalhados pelo mundo, a coladeira e o batuque, por sua recorrência em textos literários de língua portuguesa. Eugénio Tavares e os músicos Luís Rendall, Francisco Xavier da Cruz (B. Léza), Jorge Monteiro (Jótamont), Manuel de Jesus Lopes (Manuel d’Novas) já demonstram o intercâmbio existente entre poesia e música nas suas mornas interpretadas por Cesária, Titina, Arlinda Santos, Celina Pereira, Tetê Alhinho, Lura, Mayra, Bana, e Ildo Lobo, entre outros. Desde os nativistas Eugénio Tavares e Pedro Monteiro Cardoso, autores de Mornas, cantigas crioulas (1932) e Folclore caboverdiano (1933), até nossos dias, a modalidade musical tem assumido na Literatura Cabo-verdiana em língua portuguesa um lugar privilegiado. “Mornas passam cantando as crioulas trigueiras” (CARDOSO Apud FERREIRA, 1989, p. 162), nas Hespérides de Pedro Cardoso. Quando o Galo cantou na Baía (1936) o nascimento da morna 6 Sobre a circularidade do texto literário brasileiro, das modinhas e do Carnaval em Cabo Verde conferir depoimento de Orlanda Amarílis (1999, p 142). Conferir ainda Vasco Martins (1989, p. 46), quando afirma a notável influência da Modinha brasileira no que chama de “Morna preliminar”. 7 Uma hipótese sobre a origem da tabanka é a festividade de Santa Cruz, a 3 de Maio. Nesta data, os senhores de escravos em Santiago, movidos por um certo fervor cristão, davam folga aos seus escravos e toleravam os festejos da cruz como símbolo da liberdade do homem. As festas podiam durar dias. Os negros escravizados, numa espécie de teatro de rua, caricaturavam a sociedade colonial, representando governantes, oficiais, eclesiásticos, tudo eivado de ridículo. Documentos dos finais do Séc. XIX e da primeira metade do Séc. XX constatam a proibição das tabankas, por serem consideradas motivo de desordem pública ou manifestação gentílica praticada por “pretos” (pejorativo de negro, no vocabulário do colonizador) e escravos libertos. 8 É expressão musical de camponeses, que se apropriaram, com outro propósito (profano) e rendimento, do acordeão diatônico trazido pelos religiosos para o arquipélago para acompanhar as missas. Com coreografia tipicamente africana de pares colados sensualmente, cantado em crioulo, mal nasceu, foi logo submetido ao isolamento e à rejeição pelo colono e por uma burguesia urbana que via nele a expressão musical de camponeses cujas festas acabavam em pancadaria. Na década de 1980, com o regresso a Cabo Verde de Carlos Alberto Martins (Katchass), o funaná foi revalorizado. Katchass fundou o grupo Bulimundo e os instrumentos tradicionais foram substituídos pela guitarra, violas baixo e ritmo, teclado, bateria e pela voz de Zeca di Nha Reinalda. A aceitação do funaná por todas as camadas sociais é hoje um fato e deriva do trabalho determinado de Katchass junto a músicos e intérpretes de Santiago.
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na lira de Toi era o núcleo do conto de Manuel Lopes. Contos cabo-verdianos de Manuel Ferreira elegiam a Morna (1948) como título, assim como o romance Hora di Bai (1962). Nos anos noventa, Mornas eram as noites (1994) das protagonistas dos textos de Dina Salústio. Um diversificado percurso da relação morna-literatura em língua portuguesa se vai assim delineando. Pontuemos suas variações por meio de alguns solos. A “Morna”, para Pedro Cardoso era “Lídima filha, pois, da Trova lusitana!/ Traduzindo a alegria e a “dor da nossa raça”./ Em ritmo polariza a Alma caboverdiana!”9 No Arquipélago (1941) de Jorge Barbosa, o “Irmão” (título do poema) se identifica na morna que parece que é o eco em tua alma da voz do Mar e da nostalgia das terras mais ao longe […] o eco da voz da chuva desejada, o eco da voz interior de nós todos, da voz de nossa tragédia sem eco! (BARBOSA Apud FERREIRA, 1989, p. 166)
Incitando o poeta cabo-verdiano Daniel Filipe, criado em Portugal, e outros poetas lusos à viagem às ilhas, Barbosa acrescenta: “Que venham ouvir/ a alma do arquipélago/ cantando mornas!” (BARBOSA, 1993, p. 56). Ovídio Martins, ao celebrar em poesia a chegada da “Chuva em Cabo Verde”, centraliza a festa na morna tocada e dançada: Festa nas Ilhas Soluçam os violinos choram os violões nos dedos rápidos dos tocadores […] Nas ruas nos terreiros por toda banda as mornas unem os pares nos bailes nacionais Mornas e sambas mornas e marchas mornas mornadas (MARTINS Apud FERREIRA, 1989, p. 228-229).
“Galo cantou na baía”, conto que dá título ao livro de Manuel Lopes, é paradigmático, na série literária cabo-verdiana, no que toca ao diálogo entre as artes literária 9
Ibidem, p. 158. “Morna”, poema de Folclore caboverdiano.
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e musical, assim como ao trabalho que a língua portuguesa opera sobre o patrimônio cultural crioulo. Encaixado no processo de produção do texto de Lopes, em língua portuguesa, o Guarda Tói, poeta popular, compõe uma morna em crioulo cabo-verdiano, motivada estrofe a estrofe pelo canto do galo na madrugada. A filosofia do “mornador brabo” é revelada por um narrador que cola a sua boca à de Tói, traduzindo a imagem clássica da Vênus para a cultura crioula: “a morna veio do mar. Como Vénus […] surgiu pura e nua das espumas do mar […], é a protectora do amor, porque foi à sua sombra que os nossos avós armaram casamento e o farão também os filhos dos nossos filhos” (LOPES, 1984, p. 13). O trabalho poético de Tói, inspirado pela atmosfera marinha, será movido por uma força propulsora: o canto do galo que anuncia a madrugada e, com seu bater de asas, conduz a procura da poesia ao encontro do poema, grafado em crioulo: — Ahn! Cantar de galo, galo canta na baía! […]. Se fosse rouxinol ou cotovia, como nos livros, mais poético seria. Mas não temos cotovias, temos é galo. […] Qualquer um que o ouve cantar, fica sabendo que a manhã não tarda, o sol vem perto. Toi declama: “Galo cantâ na baía…” assim mesmo na língua sabe da nossa terra… […] A segunda quadra irrompe inteirinha, numa catadupa de palavras e música […]. Era o nascimento de Vênus. Morna salgada, morna de mar (Ibidem, p. 36-7. Texto em crioulo com grifos meus).
Nos bailes (dentre os quais é citado no conto o do Tolentino, histórico baile nacional), Tói é tratado com reverência semelhante à dispensada aos famosos intérpretes e compositores de mornas, sambas e modinhas em voga na época: Salibânia, personagem verídica do mundo musical crioulo, qualifica a arte do Guarda Tói como comparável à do famoso poeta e músico Eugénio Tavares, referência cabo-verdiana para a morna amorosa da Brava e sua evolução. Ao sabor do grogue, a comunidade espera ansiosa para deleitar-se com a mais nova criação de Tói, enquanto Jack vai registrando, com caligrafia apurada, a letra da morna. “GALO CANTÂ NA BAÍA” para que surja a manhã. A Vênus-morna nasce e aos poucos se completa, com cabeça, tronco e membros. Poema salgado feito de música e palavra. Pintor, músico, poeta, Manuel Lopes, um dos fundadores da revista e da “idade do ouro” da Literatura cabo-verdiana – a Claridade – anuncia, neste conto, a luz da manhã que permitirá “ver” a cultura crioula com um outro olhar e sob uma nova perspectiva, que não nega a herança imagética européia recebida pela via da colonização e do Liceu de S. Nicolau, mas desloca-o para o contexto ilhéu. “O Nascimento de Vênus” de Sandro Boticelli, quando associado por Manuel Lopes à criação do Guarda Tói, faz tramitar para o chão do arquipélago uma representação pictórica paradigmática de ideologias vigentes na antiguidade clássica e, especialmente, no Renascimento, normatizadoras do conceito de Beleza. A cena da Vênus-Afrodite emergindo 104
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das espumas (aphros) do mar (Anadiômene) numa concha levada à praia pelos ventos, que Botticelli retrata inspirado na pintura de Apeles e no relato de Hesíodo, parece ser traduzida pelo artista cabo-verdiano como a morna que nasce do mar, transportada pela concha (ilha) ao sabor dos ventos alíseos. O lirismo neoplatônico expresso na tela de Botticelli concebe a fruição da beleza e da sensualidade da deusa da criação segundo a adoção de uma atitude contemplativa, de admiração estética. Desta forma, Afrodite-Vênus alça-se a paradigma da perfeição totalizante, imago da Beleza que, como representação da condição feminina, acaba por resultar num impedimento vivencial que reduz a mulher a um objeto estático. Aliando esse ícone clássico à imagem do galo e ao que ela representa na memória coletiva dos povos (a vigilância, a criatividade, a ressurreição,10 o macho e o poder),11 arriscamos uma aproximação plausível do processo sincrético operado por Manuel Lopes neste conto: a morna, impulsionada pelos ventos alíseos (que corresponderiam aos deuses eólicos), no contexto de poder da lira masculina de Tói (o Guarda, o vigilante, o “galo”), pode ser traduzida como a criação-criatura que convoca à contemplação da beleza perfeita. Deslocada para outro contexto – o da escritura de autoria feminina que nasce depois da independência –, a relação morna-Vênus propiciará novas leituras, até contrapontísticas, dos conceitos de arte, cultura e beleza. Os textos produzidos por mulheres cabo-verdianas tenderão a afastar-se desta esfera da Venustas (ou Absoluta Beleza), derivação do Uno absoluto que a Vênus renascentista representa, e a aproximar-se da assunção de atitudes e comportamentos que trazem a imago para o campo da ação na realidade. O livro de contos de Dina Salústio, Mornas eram as noites (1994), retrata o surgimento da morna no contexto cotidiano da mulher cabo-verdiana, a partir de um mote: “… de como elas se entregaram aos dias”. Depois de 1975 e, sobretudo, a partir de 1990, a voz feminina, silenciada pela História da Literatura em Cabo Verde, tem propiciado o aparecimento de uma temática centrada na mulher, em suas ocupações, preocupações, dilemas e novas posturas (cumplicidade, curiosidade, liberdade, loucura, bruxaria, bebedeira, lesbianismo, prostituição, maternidade precoce, violência conjugal, abuso e prostituição infantis, pedofilia, machismo são linhas constantemente desenvolvidas pelas autoras). A “necessidade de publicar as inúmeras histórias de mulheres”12 e de homenagear a mulher do povo, heroína do cotidiano, é referida por Dina Salústio em entrevista sobre o livro que lança um outro olhar sobre a maneira de criar e retratar a cultura e a arte em Cabo Verde. Entendendo a morna como música de identidade, o título do livro, Mornas eram as noites pode ser traduzido como “Música eram as noites” e música de mulheres, aliando 10 Segundo a tradição persa, o galo desperta a aurora e convoca a humanidade a saudar a perfeição sagrada. 11 O galo como símbolo de poder em comunidades lusitanas. Na Grécia antiga, era oferecido ao deus Príapo (filho de Dionísio e Afrodite), para garantir a virilidade e a fertilidade masculina. 12 Entrevista concedida a esta pesquisadora na cidade da Praia, a 12 de novembro de 1994, inédita.
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identidade nacional e identidade de gênero. Vale lembrar que a morna denominada “preliminar” era cantada, em crioulo, apenas por mulheres, com solista e coro femininos, replicando a estrutura cantada do batuque. O metaconto “Álcool na noite”, ao focalizar o tema do vício das mulheres com lentes também femininas, revisita a estrutura musical da morna preliminar, agora em língua portuguesa: De lá das bandas do cemitério uma voz canta uma morna. Tudo normal se a voz não parecesse sair dos intestinos de algum bicho em vez de uma garganta humana, por muito desafinada que fosse. Era de uma mulher, reconheci com mais cuidado. Aliás, eram as vozes de duas mulheres. A segunda faz coro com obscenidades e a desarmonia, o desleixo transparecido e o despudor agridem os ouvidos. […] Vêm-se aproximando. E estão bêbadas. […] Sinto raiva. […] vergonha, humilhação e revolta. E pena (SALÚSTIO, 1994, p. 46-47. Grifos meus).13
Como é possível constatar, a morna-Vênus do conto de Manuel Lopes, já cabo-verdiana, mas ainda no âmbito da ideal perfeição clássica, adentra e se adensa na realidade crioula: o riso das galinhas, nos textos de Dina Salústio, também acorda Cabo Verde, em pé de igualdade com o canto do galo. Em coro com Salústio, que, segundo Daniel Spínola, “inaugura uma nova forma de comunicar e um novo modo de percepção do mundo” (SPÍNOLA, 1998, p. 205) na ficção cabo-verdiana, sacudindo o leitor frente a situações estagnadas, outras vozes se fazem ouvir, fundando-se em outras expressões musicais e rituais do patrimônio imaterial cabo-verdiano. O retrato de Augusta pintado por Fátima Bettencourt em Semear em pó (1994) também explora a interação entre os discursos literário e musical, agora tomando como ritmo propulsor a coladeira, modalidade que acelera o andamento quaternário da morna para o binário. A sensual empregada doméstica revela em seu canto (ou “Secreto compasso” das coladeiras, título do conto) as suas paixões, que acabam em gravidez e filhos sem pai. A língua cabo-verdiana das coladeiras introduz-se no texto em língua portuguesa, numa convivência plástica e eficaz: Toda ela era energia pura, os pés descalços não paravam quietos, com os braços roliços abraçava o próprio busto num visível esforço para se conter. Irradiava dela uma chama que na época eu não soube compreender mas agora não me surpreende que se mantivesse acesa e nítida nas minhas lembranças de muitos anos atrás. […]
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Conferir a estrutura da morna tradicional, com uma mulher solista acompanhada por um coro feminino.
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Minha mãe, meio desconfiada de tanta alegria de viver, resmungava contra o conteúdo duvidoso de algumas músicas de sua preferência. Até que um dia ela não apareceu no trabalho e mandou uma prima avisar que estava passando mal por causa da gravidez. […] — Logo vi que havia mouro na costa! Bem que sempre embirrei com aquela cantiga que ela não tirava da boca “esse frio cum tem na corp ê só bô sô ê q’ta trame ele”! Imaginem uma cantiga destas com o calor que tem feito! (BETTENCOURT, 1994, p. 34). 14
Fátima combina, com mestria, tragicidade e humor, objetivando a crítica social: […] o homem que arranjou levou-a para Santo Antão e pô-la a trabalhar na estrada onde apanhou uma tuberculose. […] Acabou morrendo, deixando o primeiro filho pois o segundo se fora por conta de uma diarreia ao sol e ao vento das estradas do Porto Novo. A minha mãe tomou conta do garoto e criou. É um dos meus irmãos adoptivos. Vive na Suécia, dedica-se à música nas horas livres, um gosto que certamente apanhou quando boiava no útero materno (Ibidem, p. 36. Grifos meus).
O batuque (batuku), ritual essencialmente feminino da ilha de Santiago (onde se encontram as raízes mais profundas das manifestações culturais ligadas ao passado escravocrata), constituirá também importante manancial para os textos literários em língua portuguesa. Associa canto, percussão e dança em ambiente de festa ou, como na sua origem, de liberação e relaxamento dos escravizados, num canto do terreiro, depois de um árduo dia de trabalho. Segundo a tradição, animava todos os momentos importantes da vida cabo-verdiana e o espaço do batuque era, sobretudo, montado durante as cerimônias de casamento, batismo e festas no meio rural de Santiago. “Quando nasci (1897), o batuque já existia”, afirma Nha Gida Mendi, famosa batucadeira e cantadeira de finason. Considerada pelo investigador Tomé Varela como a mais culta de todas as finadeiras,15 assim define o batuque: “Num restaurante, primeiro serve-se o prato principal e em seguida passa-se à sobremesa. A sambuna (ou tchabéta, sinônimo de percussão) representa o prato principal e o finason, a sobremesa”. Numa sessão de batuque, é assim que acontecem as coisas. A festa começa com a sambuna e acaba com o finason, entoado por uma mais velha, que transmitirá, com sua voz áspera e sua arte de improvisação, a sua crônica da existência, sua pedagogia social, os conselhos morais, por meio da filosofia dos provérbios, críticas, paródias ou recomendações. As cantadeiras de finason são remanescentes 14 O texto em crioulo, negritado, é verso de música tradicional que quer dizer: “esse frio que eu tenho no corpo só tu consegues tirar”. 15 Outras damas do batuque são Bibinha Kabral, Chica Leal, Emília Borges, Xinta Barros, Miranda Tavares, Pandonga.
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dos griots africanos, guardas da memória coletiva e Nha Nacia Gomi (Inácia Gomes) é a representante máxima do finason, tradicionalmente acompanhado apenas pela cimboa (ou por palmas) e praticada por um grupo estrito de iniciados. Para executar a tchabéta (pã pã ou galeom), as mulheres sentam-se em círculo e colocam um pano enrolado entre as pernas, para simular a percussão do tambor. Até há bem pouco tempo, utilizava-se o pano bicho (ou pano terra) que os portugueses chegaram a utilizar no continente africano como moeda de troca na compra de escravos. Porém, devido ao seu elevado preço (aproximadamente cinco mil escudos cabo-verdianos, ou seja, cerca de metade do salário de uma trabalhadora rural), muitas mulheres substituíram-no por um pedaço de tecido qualquer, uma pequena almofada ou um saco de plástico cheio de jornais. Uma dançarina ocupa o centro da roda e, no auge da sambuna ou tchabéta, executa o torno (torção do corpo e requebro característico das nádegas). Uma sessão de batuque assemelha-se ao ritmo do ato sexual: inicia-se lentamente e a tchabéta se vai acelerando, até que se chega à parte sagrada, segundo Tomé Varela, em que o canto do finason é executado por uma solista (a finadeira dá conselhos, transmite provérbios ou emite críticas sociais), acompanhada pelo coro do resto do grupo. Não se pode falar do finason sem evocar Nacia Gomi, a mais criativa de todas as finaderas: tinha catorze anos quando cantou pela primeira vez em público depois de desafiada por uma cantadeira mais velha e experiente. Depois do finason, no êxtase da sambuna, uma jovem ao centro executa o torno, com um pano à volta da cintura para destacar os movimentos dos quadris, braços em direção ao céu. Bate-se com mais força. “Rapica tchabeta!”, entoa o coro. A mulher mexe a cintura, cada vez com mais força. “Da ku torno!”, incentivam os assistentes. O ambiente aquece e a excitação é geral. As pessoas à volta da roda gritam e aplaudem. Ressalte-se que o romance O escravo, de 1856, considerado a primeira obra literária de temática cabo-verdiana e produzido ainda no período colonial por José Evaristo de Almeida, nascido em Portugal, já tem um capítulo dedicado à descrição do batuque e intitulado “O Torno”. O essencial do enredo do romance decorre no ano de 1835, num cenário próximo de Monteagarro, onde se preparou a malograda insurreição anti-escravocrata protagonizada por um grupo de escravos. Pretendiam os mentores da insurreição extinguir definitivamente a sociedade escravocrata, matando os senhores brancos e tomando conta da ilha de Santiago. Denunciados, os cabeças do movimento foram condenados e, depois, mortos com arcabuzes, como comprova António Carreira em Cabo Verde - Formação e Extinção de uma Sociedade Escravocrata. As ocorrências de Monteagarro são precedidas, em 1822, pela revolta dos Engenhos, que inaugura, na senda da revolução liberal portuguesa e da independência do Brasil, um ciclo de revoltas. Esses e outros levantes expõem as fissuras do período de desagregação da sociedade escravocrata e os tempos de emergência do liberalismo monárquico e, depois, do republicanismo, de clara marca nativista em terras de Cabo Verde. A intriga urdida por Almeida tece-se de fios da cabo-verdianidade nascente, não somente pelo cenário político, cultural, geográfico e racial em que se insere (a colonização, 108
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a língua crioula, os costumes, a flora, a toponímia, o confronto de raças e a mestiçagem), mas também pelos costumes tradicionais afro-negros a que dá visibilidade, sobretudo o batuque, manifestação de resistência na ilha berço da cabo-verdianidade, Santiago, sufocada e silenciada pelo colonizador, mas revitalizada no pós-independência como ritual identitário. Como ressalta Baltasar Lopes em Chiquinho, pela boca do narrador: Todo mundo gosta da dança do badio, que se entusiasma e mete na festa um batuque […] ata um pano na cintura e põe torno […]. A sala está em África pura, sol na achada e paisagem de savana, com macacos cabriolando. O badio leva todo mundo consigo na viagem de regresso de séculos (LOPES, 1986, p. 106).
Observemos como um narrador português, na sua língua e com reservas, a princípio, quanto à manifestação cultural que registra, acaba por se encantar com o batuque no romance O escravo: […] os sons pouco harmoniosos de três guitarras – que estavam em completo desacordo entre si – foram serenar aquelas almas, cujas molas – gastas e enfraquecidas pelo hábito de sofrer - não podiam dar impulso a pensamentos de força […]. Forma-se a roda: trinta ou mais bocas femininas se abrem e dão liberdade às vozes, que elas possuem de uma extensão a causar inveja ao mais abalizado barítono; – mas a música! A música era infernal! Sem cadência, sem harmonia e sem gosto […]. os sons das guitarras não podiam ouvir-se; mas à falta desse, um outro acompanhamento mais positivo, mais igual e mais conforme ao canto, vinha casar-se a este, de maneira a torná-lo mais alegre – mais estrepitoso – […] Este acompanhamento compunha-se do bater das mãos sobre os panos, que cada uma passara por sobre as coxas, amarrara junto às curvas, e, com a separação dos joelhos, esticara qual pele em afinado tambor. E esse bater tinha uma cadência toda sua, uma toada para a qual não achamos comparação que a explique: em quanto que uma das mãos caía com regularidade – extraindo do pano sons compassados e secos, a outra fazia ouvir um tremido, uma espécie de rufo, que é onde está toda a delicadeza do xabeta. Este alarido convida uma delas a saltar para o centro do círculo, o qual se vai estreitando a ponto, que mal deixa espaço preciso para as evoluções da rainha do momento. Vê-la-eis então medir o compasso com o corpo, cingir o pano à cintura, juntar-lhe aí as pontas em nó, que desata logo, com uma indolência perfeitamente
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representada. Vê-la-eis – dizemos – torcer-se, requebrar-se, impor aos quadris movimentos – demorados no princípio – mas que vão progredindo, exaltando-se à proporção que – de mais em mais – se acelera o compasso do xabeta. E quando o ente preferido – aquele sobre quem ela emprega os seus olhares – grita com um entusiasmo de possesso ripundá xabeta […] o xabeta assume um crescendo furioso; e ela – amarrando o pano de maneira a deixar esculpidas as formas do corpo – levando as mãos umas vezes à cintura, outras ao ar, onde faz ouvir os trincos dos seus dedos – olhando alternadamente o céu e a terra – ela se inclina, se dobra, se eleva, se torce, se volta, se arqueia, tudo com agitação febril – com transportes frenéticos – com furor vertiginoso – com movimentos tantos, tão rápidos e lúbricos; que julgareis nela a lascívia personificada! (D’ ALMEIDA, 1989, p. 78).
Ao descrever a cena em que Luiza, a escrava, não esconde o “prazer do batuque” (“uma das poucas distracções concedidas aos escravos”) e se entrega aos “requebros do torno […] com um frenesi vertiginoso, com toda a ânsia de um delírio febril” (Ibidem, 52), o narrador, ao final da performance da escravizada, qualifica a sua arte não mais como “lascívia”, mas como “poesia”: O xabeta já começara a fazer-se ouvir, e Luiza conservava-se imóvel com os olhos – que ela possuía rasgados, e de uma expressão magnífica – fitos em João. (…) Luiza começara o torno com a languidez e indiferentismo próprio de quem não cura do que está fazendo. […] Delirando ao excesso da ventura – deslumbrada pelas chamas de amor, que acreditou ver relampejar nos olhos do escravo – fechou as pálpebras, e dançou com arrebatamento, delírio e paixão. Oh! mas o que nas outras era lascivo e prosaico, nela tornava-se voluptuoso e poético! (Ibidem, p. 79-80).
Atualmente, o ritual telúrico feminino do batuque apresenta-se mais em palco do que de terreiro, com as batucadeiras em semicírculo, utilizando garrafas de plástico para percussão. E o ciclo do ritual raramente é executado na sua íntegra originária – langor-êxtase-prazer trazido pela experiência –, que mimetizava a curva do ato sexual, da cadência lenta ao êxtase do torno e ao ensinamento do finason. O ciclo composto de: solo (finason)tchabeta-torno-finason assemelhava-se aos ciclos da vida e da fecundidade. Resistência e liberação depois de um dia de exploração, violência e trabalho duro, impulso pagão sobrevivente às restrições da igreja católica (não batizava ou casava praticantes do batuque), tradição negra proscrita em língua proibida (o crioulo). Eis a síntese 110
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do batuque, provavelmente a forma musical que mais define as raízes cabo-verdianas (GONÇALVES, Carlos Filipe, 2006, p. 16), que provavelmente se estendia a várias ilhas no século XIX, e que resiste, do tempo dos escravos, até nossos dias. De música/manifestação “de preto”, “não-civilizada” a manifestação identitária, revigorada no pós-independência, eis o ciclo histórico do batuque. Na atualidade, é a poesia de língua portuguesa um dos principais redutos de preservação do batuque. Como repete, em refrão, Corsino Fortes: “E o batuque não para/nas nossas ancas de donzela” (2001, p. 75-79). Utilizando a palavra como pedra, em poemas experimentais de estilo arquitetônico (à maneira de João Cabral de Melo Neto, um de seus poetas preferidos), Corsino reiteradamente transporta o batuque e sua estrutura (finason, tchabéta) para a cena dos poemas: o finaçom nos conduz ao frigorífico da cultura das terras do fim do mundo À guerra da pobreza No metrônomo do batuque E ao dente de ouro da tabanka No mênstruo das salinas […] E ao kolá kolá da morança e da melancolia que salta & bate bate & une As coxas d`África às ancas da Macaronésia E dão o grão a hóstia o jazz Da(s) nossa(s) genealogia(s) (Ibidem, 239).
Onésimo Silveira, para construir “Um poema diferente” para o povo das ilhas, abandona os “gemidos de homens desterrados”, “o quadro dos filhos sem mãe”, “as palavras estranguladas nas grades do silêncio” e busca a “seiva nascendo no coração da ORIGEM” – “Um poema com batuque e tchabéta e badias de Santa Catarina/Um poema com saracoteio d` ancas e gargalhadas de marfim” (2008, p. 128). Dialogando com Onésimo, Jorge Barbosa, conforme a proposta da geração da Claridade, mergulha as mãos que escrevem na árida terra crioula, tal qual O delírio do batuque no terreiro! Vadias de Santiago contorcionando,
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espasmando os ventres no ritmo quente do batuque – essa dança ancestral!… (2002, p. 39).
Vera Duarte, para fechar o círculo de textos literários em língua portuguesa que me propus a apresentar, assumindo o princípio feminino do ritual, diz ao homem amado o que Luiza, em outra linguagem, mais primal, tentou revelar ao escravo João, no início do ciclo de batuque textual que ora retomamos: Quando em êxtase cavalgo pelas estepes agrestes do teu corpo perfeito bô ê nha ômi […] E quando meu corpo renascido suadamente repousar sobre o teu ouvirei o som distante de um batuque original nas batidas do teu coração e em teu ventre liso e marinho abrirei uma clareira luminosa onde dançarei nua e voluptuosa essa dança tão africana de alegria de amor e de júbilo Bô ê nha ómi Bô ê nha ómi (2001, p. 69-73).
Em suma, pelo que tenho procurado demonstrar, a música e os rituais de fertilidade têm sido resgatados pelos textos literários cabo-verdianos em língua portuguesa como seiva produtiva de preservação da tradição e de afirmação da identidade. Embora muitas vezes proibidas pelos colonos, como o funaná, a tabanka e o batuque, revitalizados apenas no pós-independência, as expressões musicais e coreográficas de
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escravizados e camponeses foram, no entanto, preservadas e registradas incessantemente pela literatura em língua portuguesa, adensando fios da cabo-verdianidade. O som dos navios negreiros celebrado em “Ritmo de Pilão” por António Nunes, o murmúrio da poesia do povo no “Violão” de Jorge Barbosa, a música como ousadia na “Viola partida” de Maria Margarida Mascarenhas, a dolente morna de Zinda no conto de Ivone Aída, o frêmito das tabankas da poesia de Canabrava, o som distante do batuque original d’O Arquipélago da paixão de Vera Duarte16 nos permitiriam continuar nossa melopéia, com um coro de tantas vozes e ecos, indefinidamente.
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Simone Caputo Gomes é professora Doutora da FFLCH/USP (Universidade de São Paulo), onde também é Coordenadora da área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Autora do livro Cabo Verde: literatura em chão de cultura (São Paulo: Ateliê, 2008), além de ensaios e artigos publicados no Brasil, em Portugal, na França e nos Estados Unidos, é uma das mais conceituadas pesquisadoras brasileiras e responsável pela difusão e divulgação da cultura e da literatura cabo-verdianas. Em 2007, em reconhecimento às suas relevantes atividades acadêmicas e ao seu incansável esforço na propagação cultural e artística do Arquipélago, recebeu a Medalha Ordem do Vulcão, condecoração máxima outorgada pelo Presidente da República de Cabo Verde.
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Fotografia de Rafael Chimicatti
AS DE
PERSONAGENS PIRANDELLO
memória, história e narrativa1 BERILO LUIGI DEIRÓ NOSELLA* Paris muda! Mas nada na minha melancolia Mudou! Novos palácios, andaimes, blocos, Antigas alamedas, tudo para mim se torna alegoria, E minhas caras lembranças são mais pesadas que rochas. Baudelaire
Resumo: O presente artigo traça um desenho dos principais debates sobre a modernidade dramatúrgica presentes na obra Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello. A partir dos conceitos/categorias de Experiência, História e Alegoria, procura-se analisar a posição do narrador e do sujeito moderno enquanto tema e forma dramática.1 PALAVRAS-CHAVE: TEORIA LITERÁRIA, LITERATURA MODERNA ITALIANA, LUIGI PIRANDELLO E WALTER BENJAMIN The characters of Pirandello: memory, history and narrative Abstract: The present work sets out a picture of the main debates about the modern dramaturgy present in Luigi Pirandello’s piece Six characters in search of an author. Through the concepts/categories of Experience, History and Allegory the role of the narrator and the modern individual as theme and dramatic form are analyzed. KEYWORDS: LITERARY THEORY, MODERN ITALIAN LITERATURE, LUIGI PIRANDELLO AND WALTER BENJAMIN
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emória, História e narrativa. Noções que nos levam de passagem por esse texto. A questão central para nós é a dramaturgia; dentro deste universo, nos interessam as personagens, “seres” que habitam esse mundo das histórias; e, por fim, também como uma personagem, o narrador como elemento central da modernização das formas narrativas da linguagem escrita e cênica. Narrador e narrativa, elementos da “memória humana” que nos conta, no tempo, um pouco da
1 O presente artigo é fruto da pesquisa de mestrado “‘Um buraco no céu de papel’: o moderno na dramaturgia de Luigi Pirandello”, realizada no Programa de Estudos Pós Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, sob orientação da Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira. A referida pesquisa foi realizada com apoio da CAPES, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil.
verdade fantasiada de todos nós. Nesse percurso nos utilizaremos da obra Seis Personagens à Procura de um Autor (1921) de Luigi Pirandello e procuraremos, através de breve análise dessa obra, compreender pela sua configuração formal a passagem da figura metafórica da retórica clássica para uma “ideia metafórica” em Fontanier, e, numa aproximação (transformação também) desta ideia metafórica para alegoria de Walter Benjamin, compreender essa transformação como elemento de passagem para uma literatura moderna.
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Paul Ricoeur, em sua obra A Metáfora Viva, aponta, logo na apresentação, como a retórica clássica de Aristóteles define a metáfora a partir do “nome”, tendo a palavra como unidade de base: “Foi ele (Aristóteles), com efeito, quem definiu a metáfora para toda a história ulterior do pensamento ocidental, na base de uma semântica que toma a palavra ou o nome como unidade de base” (RICOEUR, 1983, p. 5). Mais à frente, nos mostra como Fontanier, em Les Figures du Discours (1830), amplia o campo de ação metafórico da palavra, do nome para a ideia, mesmo sem se distanciar da palavra, para ele ainda base única da expressão falada: “O pensamento compõe-se de ideias e a expressão do pensamento pela fala compõe-se de palavras” (RICOEUR, 1983, p. 81). É como se a metáfora pudesse, a partir de então, se expressar como uma ideia, dada pela junção de “palavras ideias”. O sentido é, relativamente a uma palavra, o que a palavra nos faz entender, pensar, sentir pela sua significação; e a sua significação é o que ela significa, isto é, aquilo de que ela é signo, que ela assinala. Mas o sentido também se diz de toda uma frase, algumas vezes mesmo de todo um discurso (FONTANIER apud RICOEUR, 1983, p. 83).
Como o próprio Ricoeur nos esclarece, Fontanier define a metáfora como uma forma de se “apresentar uma ideia sob o signo de uma outra ideia mais impressionante ou mais conhecida” (RICOEUR, 1983, p. 94). Pensar na metáfora como ideia metafórica, e não apenas como um instrumento semântico ou uma figura linguística, nos aproxima da noção de alegoria apresentada por Walter Benjamin como a figura de linguagem moderna. Se a metáfora é dizer uma coisa sobre o signo de outra coisa, a alegoria seria “dizer o outro”. Sergio Paulo Rouanet, em sua introdução à Origem do Drama Barroco Alemão de Walter Benjamin, esclarece: “Etimologicamente, alegoria deriva de allos, outro, e agoreuein, falar na ágora, usar uma linguagem pública. Falar alegoricamente significa, pelo uso de uma linguagem literal acessível a todos, remeter a outro nível de significação: dizer uma coisa para significar outra” (BENJAMIN, 1984, p. 37). A alegoria benjaminiana é a alegoria barroca alemã. É a figura literária capaz de expressar a ruína do mundo, enquanto passado presentificado e capaz de decifrar em seu status de figura literária “o espelho da própria rigidez emperrada da história” (KOTHE, 1976, p. 29), apresentando sempre o indício de uma perda. “A visão alegórica do mundo vê a vida a partir da morte. Não, porém, como uma simples inversão. É mais correto dizer que ela tem uma sensibilidade aguçada no sentido de perceber a morte existente na própria vida” (KOTHE, 1976, p. 42). Ao se apropriar da ideia de um objeto, por exemplo, e se utilizar outro para expressá-la, o alegorista barroco mata esse primeiro objeto. A morte seria então conteúdo, mas também o princípio estruturador da alegoria, e através desse sentido ela se ligaria à história. A morte é também princípio estruturador do conceito de história-destino do barroco, apropriado por Benjamin, uma vez que o destino das coisas enquanto história é a morte. Seguir em 118
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frente na história é seguir para a morte, aquilo que é vivo ontem, hoje estará morto, e o vivo hoje, morto estará amanhã. O que se apresenta aqui é uma crítica à noção de progresso, compreendido com um dado positivo no “sentido” “para frente” do caminhar histórico. Tal sentido positivo desenvolveu-se fortemente no século XIX com certo entusiasmo frente à segunda revolução industrial e a mecanização das formas produtivas. A noção positiva de “sentido histórico”, também se apresenta em dados momentos do pensamento marxista do século XIX, século do cientificismo e do positivismo. E é a essa noção que recaem grande parte das críticas dos marxistas do século XX. Pensar num sentido é pensar numa direção, que no caso marxista é a revolução ou superação histórica do capitalismo, portanto, “sentido” está ligado à noção de progresso, que, obviamente, está ligada a uma visão racional científica do mundo. O progresso acontece a partir do avanço técnico. Le Goff, por exemplo, coloca a questão do “sentido histórico” como um dos seis grandes problemas para a historiografia contemporânea. A dialética da história parece resumir-se numa oposição – ou num diálogo – passado/presente (e/ou presente/passado). Em geral, esta oposição não é neutra, mas subentende, ou exprime, um sistema de atribuição de valores, como por exemplo, nos pares antigo/moderno, progresso/reação. Da Antiguidade ao século XVIII desenvolvese ao redor do conceito de decadência uma visão pessimista da história, que voltou a apresentar-se em algumas ideologias da história no século XX. Já com o Iluminismo, afirmou-se uma visão otimista da história a partir da ideia de progresso, que agora, na segunda metade do século XX, experimenta uma crise. Tem, pois, a história um sentido? E existe um sentido da história? (LE GOFF, 2003, p. 8).
Para grande parte do pensamento do século XX – após as experiências da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, o fascismo e o nazismo, a bomba atômica, a guerra fria, as revelações do fracasso do comunismo soviético stalinista – a “crença” em um “sentido histórico” positivo, ou seja, no progresso, mostrou-se com um grande perigo, precisando ser revista. Isso mesmo em certas tentativas de preservação de algum “sentido histórico”, pregado como necessidade urgente de novos rumos, de “mudança de sentido”, como cremos ser o caso de Walter Benjamin, que afirma que o “caminhar para o socialismo” não é um caminho assegurado, pois nossa história é um caminhar para barbárie: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN, 1994, p. 226). Nosso passado nos revelaria um presente e um futuro de catástrofes; mesmo a revolução não seria um “sentido histórico” natural, mas sim uma ação necessária para exatamente parar o progresso: “Marx havia dito que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira
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completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência” (BENJAMIN apud LÖWY, 2005, p. 9394). Tal atmosfera, se por um lado poderia levar pensadores preocupados com o futuro a rever a ideia de “sentido” e de “progresso”, mesmo afirmando a necessidade de mudanças; levou outros a afirmar que “não há mais amanhã”, que a história cegou ao Fim. Impossível não pensar numa boa dose de reacionarismo no pensamento sobre o fim da história, afinal, independente dos argumentos, a possibilidade de transformações no mundo estaria de antemão descartada2. A novidade de tais pensamentos está na ideia de interrupção do “sentido”, no primeiro caso, na necessidade de interrupção para procura de novas possibilidades de sentido; no outro, na impossibilidade de qualquer sentido. A primeira nasce, nos parece, da crise que a noção de “sentido histórico” sofre no século XX, mas sem descartar que é preciso transformar o mundo historicamente. Para tal, é imprescindível uma revisão da noção de tempo histórico. Não mais o tempo do progresso – passado x presente / tradicional x moderno –, o tempo cronológico, linear – dos eventos, dos acontecimentos –, mas um tempo histórico de nível profundo, mais lento, o tempo das transformações reais. É o que vemos acontecer com as personagens de Pirandello em Seis Personagens à Procura de um Autor: A MÃE – Não, acontece agora, acontece sempre! O meu tormento não é fingido, senhor! Estou viva e presente, sempre, em todo momento do meu suplício, que se renova, vivo e presente, sempre. Mas aqueles dois pequenos, ali, o senhor os ouviu falar? Não podem mais falar, senhor! Ficam agarrados em mim, ainda, para manter vivo e presente o meu tormento – mas eles, de per si, não são, não existem mais! (PIRANDELLO, 1999, p. 225).
A mãe, enquanto personagem, na obra de Pirandello, é só presente. Sua vida não tem passado nem futuro, a não ser como suposição narrativa. Também a alegoria enquanto significação é a estabilidade presente, como um congelamento do momento, afastando a possibilidade imanente de morte do devir histórico. Traria em si, a alegoria, a possibilidade da salvação? Afirmaria que apenas enquanto traz em si a possibilidade da ruína histórica. Ela tem em si o presente, apenas enquanto carrega consigo o passado, morto pelo presente, e o futuro, morte do presente. Modernamente, Benjamin enxergará essa estrutura alegórica em relação ao mundo capitalista da mercadoria, como afirma Jeanne Marie Gagnebin: “A visão alegórica está sempre se baseando na desvalorização do mundo aparente. A desvalorização específica do 2 Isso, sem levantarmos o debate sobre as diferenças de significação entre os termos revolução e progresso x novidade e melhor, e quando e porque essas diferenças desapareceram. Afinal, como nos alerta Hobsbawm, é exatamente papel da História uma “advertência útil contra a confusão entre moda e progresso” (HOBSBAWM, 1998, p. 42).
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mundo dos objetos, que representa a mercadoria, é o fundamento da intenção alegórica em Baudelaire” (GAGNEBIN, 2004, p. 39). Essa alegoria do mundo da mercadoria permaneceria intimamente ligada à história, uma vez que a ruína da alegoria enquanto ruína do mundo aparente significa nossa fragmentação em relação ao passado. Se o presente é a morte do passado e o futuro a morte do presente, o presente só existe pelo passado e o futuro pelo presente. Portanto, o mundo capitalista, ao engendrar essa ruína do mundo aparente pela aceleração desenfreada do progresso e do consumo, nos deixaria sem passado. É essa morte do sujeito clássico e esta desintegração dos objetos que explicam o ressurgimento da forma alegórica num autor moderno como Baudelaire. Benjamin vê no capitalismo moderno o cumprimento desta destruição. Não há mais sujeito soberano num mundo onde as leis do mercado regem a vida de cada um, mesmo daquele que parecia poder-lhes escapar: do poeta. Baudelaire reconhece que não pode mais ser o poeta independente, voz lírica cantando num mundo que o respeita na sua divina inspiração. É o famoso motivo da perda da auréola do Spleen de Paris, um motivo retomado por Benjamin na sua Teoria da perda da aura. A grandeza de Baudelaire consiste, segundo Benjamin, em ter tematizado esta transformação em mercadoria de todo objeto, inclusive da poesia, dentro do próprio poema (GAGNEBIN, 2004, p. 39).
A possibilidade de resgate de nossa relação com o passado enquanto tradição se apresenta no conceito de Erfahrung (Experiência). Erfahrung vem do radial fahr que significa percorrer, atravessar uma região, e Erfahrung tem esse sentido exato de algo para ser contado através de uma experiência vivenciada, observada do real. Erfahrung é a experiência narrada, experiência transmitida, tradicionalmente, do passado, coletiva e oral, capaz de nos “desalienar” em relação à história. Materializa, conscientiza e coletiviza nosso passado, e, consequentemente, nosso presente. Sabia-se muito bem o que era experiência: as pessoas mais velhas sempre a passavam aos mais jovens. De forma concisa, com a autoridade da idade, em provérbios; ou de forma prolixa, com sua loquacidade, em histórias; ou ainda através de narrativas de países estrangeiros, junto à lareira, diante de filhos e netos. Mas para onde foi tudo isso? Quem ainda encontra pessoas que saibam contar histórias como devem ser contadas? Por acaso os moribundos de hoje ainda dizem palavras tão duráveis que possam ser transmitidas de geração em geração como se fossem um anel? A quem ajuda, hoje
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em dia, um provérbio? Quem sequer tentará lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1986, p. 125).
A crise da narração na sociedade contemporânea apresenta exatamente a desintegração de nossa relação com o passado, com a história. A incapacidade de narrar do homem contemporâneo, a sua incapacidade de contar sua história coletivamente e construir sua Erfahrung é o grande indício para Benjamin de nossa estagnação histórica, expressa na alegoria moderna, fundamentalmente em Charles Baudelaire e Franz Kafka. A obra dramática, enquanto obra literária, pertence sempre ao passado, uma vez que quando se lê, o momento da escrita já passou. Estaria então toda obra literária morta no presente? Não, se não pensarmos a história linearmente, e sim, como nos propõe Benjamin, como uma ruína a ser resgatada, presentificada. Benjamin não está dizendo que o passado deva ser revivido, mas sim percebido, devemos tomar consciência dele para tomarmos consciência de nosso presente e, portanto, sermos capazes de construir um futuro. Num presente que contenha em si seu passado e seu futuro, não somos impelidos como vazios, inconscientes, à frente. Essa presentificação do passado se dá pela Erfahrung, pela construção de uma tradição ou sabedoria que só pode ser objetiva, ou seja, só se realiza através da narrativa oral por esta se configurar como um ato coletivo. Portanto, a metáfora e a literatura se apresentam como ruínas de um passado, portadoras de um presente e, consequentemente, de um futuro. A literatura representaria a “… retomada do passado, mas ao mesmo tempo – e porque o passado enquanto passado só pode voltar numa não identidade consigo mesmo – uma abertura sobre o futuro, inacabamento constitutivo” (GAGNEBIN, 2004, p. 14). Retomemos a obra de Pirandello. Trata, a peça Seis Personagens à Procura de um Autor, exatamente da impossibilidade de narrar, a impossibilidade de contar a história de uma família de Seis Personagens, que por serem personagens não podem viver, existir, sem a narrativa. Também nós precisamos da narrativa, é ela que nos liga temporalmente à realidade, à história (nossa história). Esvaziamo-nos da vida ao não contarmo-la mais. Mas as Seis Personagens encontram sua existência. Pirandello transforma a não história, a não ação, em uma peça de teatro, utilizando-se da narrativa. Assim, essa obra poderia ser apontada como portadora da restituição da Erfahrung? Dialeticamente, na própria dissolução da Erfahrung estaria a possibilidade de uma nova Experiência? Se sim, o autor só consegue realizar essa inversão dialética através da forma, ao atingir o palco, e incorporar a narrativa, própria da poesia épica, como elemento principal da poesia dramática. No caso, o que Pirandello está aqui realizando não é apenas um jogo formal, mas sim articulando de forma interessada a tradição com a contemporaneidade, demonstrando esteticamente o esfacelamento histórico a que a nossa realidade está sujeita. A forma melodramática apresenta-se para o século XIX italiano como uma expressão fundamental de sua literatura. O processo de renovação formal do drama moderno, infligido pela epiciza-
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ção do drama a partir da experiência naturalista,3 emperraria as possibilidades formais do melodrama. Porém, o poder da tradição não se vence tão facilmente, perpetrando, num salto para o presente, o atraso histórico italiano.4 A multiplicidade, ou fragmentação, interior do homem, tema central e recorrente nos contos, nos romances e nas peças teatrais pirandellianos, reflete o vazio deste homem contemporâneo, mas sem abandonar suas raízes presentes nas causas históricas desse vazio. O jogo se estabelece entre passado-presente e presente-perda do passado. E é nos palcos que Pirandello encontra o espelho perfeito para refletir este vazio interior específico. O PAI – O drama, para mim, está todo aí, senhor – na consciência que tenho, de que cada um de nós – veja – julga ser “um”, mas não é verdade – é “muitos” senhor, “muitos”, segundo todas as possibilidades de ser que estão em nós – “um” com este, “um” com aquele – diversíssimos! E com a ilusão, no entanto, de ser sempre “um para todos”, e sempre este “um” que acreditamos ser, a cada ato nosso (PIRANDELLO, 1999, p. 203).
Esse vazio, do homem que pode ser muitos e pode ser nenhum, é expresso na impossibilidade do conteúdo dramático, a vida não pode nem mesmo ser representada. No segundo e terceiro atos dos Seis Personagens isso se torna claro nas passagens em que a ação “vivida” pelas personagens é interrompida pelo diretor a fim de fazer com que ela se torne representável por seus atores. Mas qual é a cena real, o drama dos “Personagens Fictícios”, vivido (em ficção) por eles, ou o representado pelos “Personagens Reais” (atores), apresentado no palco? O PAI (com dignidade, mas sem arrogância) – Uma personagem, senhor, pode sempre perguntar a um homem quem ele é. Porque uma personagem tem verdadeiramente uma vida própria, marcada por suas características, pelas quais é sempre “alguém”. Enquanto um homem – não estou falando do senhor, agora – um homem assim, genericamente, pode não ser “ninguém”. O DIRETOR – Pois é! Mas o senhor pergunta isso a mim, que sou o Diretor! O Diretor da Companhia! Entendeu? 3 Sobre o processo histórico de modernização do drama no final do século XIX e início do século XX, ver Szondi, 2001. 4 “Mais importante ainda era o caráter marginal da pesquisa formal de Pirandello em relação à tradição europeia realista da crise do drama. Aquilo que Alcântara Machado considerou como uma teatralidade “à margem de todos os tempos” pode ser lido como verificação de que Pirandello demonstrava ser praticável um caminho de modernização alternativo em relação à história do drama realista. Diversamente de outras tentativas épicas, como a dos autores franceses e alemães, a crítica de Pirandello não decorria do aprofundamento das contradições entre a forma dramática e a sondagem da realidade. Sua ultrapassagem fazia um salto direto do melodrama romântico para o vanguardismo literário” (Santos, 2002, p. 56).
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O PAI (quase em surdina, com melíflua humildade) – Somente para saber se realmente o senhor, tal como é agora, se vê… como vê, por exemplo, na distância do tempo, aquele que o senhor era antigamente, com todas as ilusões que o senhor alimentava então; com todas as coisas, dentro do senhor e ao seu redor, como lhe pareciam então – e eram, realmente eram para o senhor! Pois bem – pensando novamente naquelas ilusões, que agora o senhor já não alimenta mais; em todas aquelas coisas que agora já não lhe “parecem” mais como “eram” em outro tempo; não sente que lhe falta, já não digo estas tábuas do palco, mas o chão, o chão sob seus pés, argumentando que, da mesma forma, “este” como o senhor se sente agora, toda a sua realidade de hoje, tal como é, está destinada a parecerlhe ilusão, amanhã? O DIRETOR (sem ter entendido muito bem, no aturdimento da argumentação capciosa) – E daí? A que conclusão pretende chegar com isso? O PAI – Oh, nada, senhor. Faze-lo ver que se nós, (apontará novamente para si e para as outras Personagens) além da ilusão, não temos outra realidade, seria bom que o senhor também desconfiasse de sua realidade, desta que o senhor hoje respira e toca em si, porque – como a de ontem – está destinada a se lhe revelar ilusão amanhã. O DIRETOR (decidindo-se a levá-lo na piada) – Ah, muito bem! E acrescente, ainda por cima, que o senhor, com esta peça que vem aqui representar para mim, é mais verdadeiro e real do que eu! O PAI – Mas isso sem dúvida, senhor! (PIRANDELLO, 1999, p. 229).
Então o espelho se forma, graças à presença, em verdade, de um terceiro personagem oculto no texto literário: o “Personagem Espectador”. Somos colocados em nosso lugar e, ao mesmo tempo, questionados em relação a ele. Espectadores, reais, alheios à “brincadeira” que se realiza no além boca de cena, ou nas páginas daquele livro, aos nomes e às ideias ali expressos (impressos), nos vemos questionados desta realidade, somos colocados como Personagens também. Personagens do palco da vida. E como personagens, somos capazes de viver nosso drama? A ENTEADA – Não estou nessa! Não estou nessa! O que é possível em cena vocês dois combinaram juntos, lá dentro, obrigada! Entendo muito bem! Ele quer chegar logo à representação (carregando) de seus tormentos espirituais; mas eu quero representar o meu drama! O meu! O DIRETOR (aborrecido, sacudindo-se ferozmente) – Oh, enfim, o seu! Não há somente o seu, desculpe! Há também o dos outros! O
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dele – (apontará o Pai) – o da sua mãe! Não é possível que uma personagem se coloque, assim, tão à frente, e se sobreponha às outras, tomando conta da cena. É preciso conter todas num quadro harmônico, e representar aquilo que é representável! Eu também sei muito bem que cada um tem toda uma vida própria, por dentro de si, e que gostaria de pô-la para fora. Mas o difícil é justamente isto – fazer vir para fora só aquele tanto que é necessário, em relação com os outros; e mesmo naquele pouco dar a entender toda a outra vida que permanece dentro! (em tom bonachão, conciliatório) Ah, muito cômodo seria, se cada personagem pudesse, num belo monólogo, ou… sem mais… numa conferência vir despejar diante do público tudo o que lhe ferve por dentro! (PIRANDELLO, 1999, p. 223-224).
O drama em potência se apresenta como o substrato da experiência coletiva (passada) vivida pelas personagens, a fragmentação dessa coletividade por uma individualidade interior os impede de viver seu drama, ou como diz Benjamin, de narrar sua história como história (também) de outros. Impediria a “Experiência” benjaminiana. Incapazes de nos apropriarmos de nosso passado, de presentificá-lo, estamos fadados ao vazio, a sermos máscaras pirandellianas nos modificando nesse caminhar involuntário para frente… até que não nos reconheçamos mais! Ainda como solução formal, Benjamin5 propõe a literalização da cena dramática a fim de atingir o distanciamento necessário à recuperação da objetividade totalizadora da narrativa, enquanto elemento restaurador da experiência perdida, da fragmentação apresentada na alegoria barroca. Pirandello realiza o processo inverso, dramatiza o literário, passa do conto à dramaturgia desmascarando a impossibilidade narrativa do sujeito contemporâneo. Somos personagens em busca de um autor a representar nossa incapacidade de narrarmos coletivamente nossa história. Se no texto literário de Pirandello é possível a leitura apenas de um jogo metalinguístico, no palco ele se distancia pela presença viva e pela convivência física do real e do ficcional. A metáfora se realiza e nos apresenta o jogo metalinguístico (ou metateatral) como espelho de nós mesmos, de nossa realidade. … o que caracteriza a literatura moderna, segundo Benjamin – muito próximo neste item ao jovem Lukács – é a consciência aguda do tempo, ou melhor, da temporalidade e da morte. A modernidade entretém uma relação privilegiada com a antiguidade, não porque esta última pudesse servir de modelo ou de antimodelo, mas porque a antiguidade, passada e ultrapassada, manifesta com 5 Ver no texto O Autor como Produtor, de Walter Benjamin, o conceito de literalização e reificação da obra de arte (Benjamin, 1994).
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força uma propriedade essencial a ambas: sua fragilidade, sua caducidade comum, aquilo que Benjamin chama de Gebrechlichkeit. É porque o antigo nos aparece como ruína que o moderno, igualmente fadado a uma destruição próxima, se parece tanto com ele” (GAGNEBIN, 2004, p. 49-50).
Ao se apresentarem ao grupo teatral que ensaia, os seis personagens se apresentam ao leitor como uma realidade que não pode mais ser “encenada” no palco de nosso mundo atual. A obra de Pirandello é a metáfora de nosso mundo dividido, múltiplo. Seis Personagens à Procura de um Autor é a “metáfora viva” formal, esteticamente válida, de nossa tragédia moderna, ou seja, é o retrato formal de nossa fragmentação enquanto sujeitos, de nossa esquizofrenia moderna. Pirandello apresenta já no início do texto uma crítica à sua dramaturgia, através do personagem do Diretor, como uma dramaturgia excessivamente abstrata, sem vínculo com a realidade, como uma dramaturgia de experimentação formal a qual a plateia não entende. Sabemos que essa não pode ser uma crítica sincera, afinal é dirigida a ele mesmo, trata-se muito mais da apresentação da incompreensão da própria crítica ao aspecto profundamente realista de sua obra. Pirandello tem sido, graças a seu estilo, muitas vezes interpretado como um autor fantástico, um autor de sonho, quando na verdade ele se aproximaria muito mais do realismo das fábulas de Brecht, devendo muito ao verismo de Giovanni Verga, mesmo sem deixar de ser um precursor do absurdo (só absurdo pois retrata nossa realidade absurda) de um Beckett. E, a guisa de conclusão, sendo Pirandello um autor essencialmente moderno, poderíamos afirmar que a dramaturgia moderna nos apresenta um novo realismo, metafórico talvez? E mais, a própria experiência dramática moderna do final do século XIX e início do século XX, anterior à primeira guerra, dos textos de Ibsen, de Tchekov, de Hauptmann, e do próprio Pirandello, nos serviria como esse passado a ser reificado enquanto a semente utópica que replantada no solo presente nos dará novos e diversos frutos? Para além das respostas que aqui se ensaiam, resta a crença de que esse sentimento utópico moderno, ainda não sufocado por Auschwitz e a 2a Guerra Mundial, é essa semente que não morreu, mas sim deu como frutos o melhor de nossa literatura contemporânea, num jogo de resistência a um futuro nada promissor, como não o foi para estes homens do final do século XIX e início do século XX.
Referências bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 7a ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. ______. Documentos de Cultura/Documentos de Barbárie. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1986.
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Berilo Luigi Deiró Nosella é professor adjunto do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto-UFOP, onde atua na área de Análise e História do Texto e da Cena teatral. Graduado em Imagem e Som pela UFSCar, Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP e Doutor em História e Historiografia do Teatro pela UNIRIO.
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O desfecho do descobridor ANA CRISTINA FALCATO*
Resumo: Neste trabalho explora-se o estatuto artístico do romancista, a partir de um salutar cotejo com aquele que uma escultora contemporânea, Louise Bourgeois, em diversos livros de entrevistas e testemunhos, a si própria se adscreve. Defendemos que, tal como o escultor pode ser tentado por diferentes formas de armadilha que a Imaginação criativa lhe lança como reptos, assim o romancista deve poder estar de sobreaviso para a armadilha que constitui o assalto local da narrativa. A partir da leitura de uma obra de Milan Kundera, A Arte do Romance, de conteúdo muito pouco técnico sobre a técnica do Romance, exploram-se os potenciais criativos da Imaginação, num entendimento desta que se mede com a faculdade da Imaginação Transcendental kantiana, para dela vigorosamente se demarcar. Teorizar sobre o Romance ou teorizar sobre a Escultura constituem necessários exercícios infrutíferos, tanto quanto o manejo de uma teoria da Imaginação Transcendental o pode ser para tomarmos consciência do que a Imaginação faz na construção formal do objecto ou na construção fantasmática do objecto narrativo. PALAVRAS-CHAVE: ROMANCE, ESCULTURA, NARRATIVA, IMAGINAÇÃO, IMAGINAÇÃO TRANSCENDENTAL The outcome of the discoverer Abstract: Our main target in writing this paper was to explore and try to define the artistic status of the Novelist, when compared with the self-ascribed role of a counterpart status by a contemporary sculptor, Louise Bourgeois. In the paper we propose that much like the sculptor can be tempted by different sorts of “trap” laid by the imagination as challenges, so the novelist should be on the lookout for a similar sort of trap laid by the narrative. Departing from a reading of Milan Kundera’s The Art of the Novel, which explores in a rather untechnical way the technique of Novel writing, different potential outcomes of an artistic use of the Imagination have been explored, in a way of understanding it that is compared and settled against the Kantian faculty of Transcendental Imagination. Theorize about the Novel as well as theorize about Sculpture are necessarily vain efforts, only comparable with how little help a theoretical approach to the transcendental
faculty of Imagination can be to us in understanding pre-theoretically what is the role of the imagination in the formal construction of an object or in the phantasmagorical construction of a narrative object. KEYWORDS: NOVEL, SCULPTURE, NARRATIVE, IMAGINATION, TRANSCENDENTAL IMAGINATION
1. De como aproveitar uma Armadilha If a person is an artist, it is a guarantee of sanity. He is able to take his torment. (Louise Bourgeois, Destruction of the Father, Reconstruction of the Father)1 Unir a extrema gravidade da pergunta e a extrema leveza da forma, essa a minha ambição de sempre. E não se trata de uma ambição puramente artística. A união de uma forma frívola e de um tema sério desvenda os nossos dramas (tanto os que passam nas nossas camas como os que nós representamos no grande palco da História) na sua terrível insignificância. (Milan Kundera, A Arte do Romance)2
O caminho quotidiano pelo desvio dos afazeres pode, por vezes, anunciar um atalho. E o atalho, essa tentação (aparentemente) mais curta e acessível, que diminui o desgaste, pode colocar o ser humano ao nível do rato, ante o queijo preso numa mola de ratoeira. Tal como o pobre roedor, assim qualquer um de nós pode ser induzido a confundir a farpa com a familiaridade e, dessa forma, forçar o destino a esperar mais um pouco. Esta é uma forma de parto (involuntário) para o Artista, o mais perigoso dos recém-nascidos. Acaba de trocar um caminho sinalizado por um atraente beco; doravante, perderá o apoio de garantias mínimas e está habilitado a ganhar o combate de uma geografia escassa. Deve – como, aliás, o homem do caminho previsto – dotar a sua viagem de infra-estruturas básicas e de amparos contra a Sorte. Tem a remota chefia da Arte como tutela contra (alguns) riscos, muito embora só possa reivindicar e lutar junto, com e contra a Imaginação. Um dos seus possíveis “desvios formais” é o romance. Como destaca Milan Kundera, de uma forma plástica e adaptada a leituras multiformes de um mesmo fenómeno criativo e histórico – a arte do romance europeu e os percalços do seu atalho formal –, o discurso do Romance plana sobre a relatividade de cada certeza e ainda sobre a insustentabilidade dessa condição. Sem o olhar omnipresente do Deus cusano, ao homem que optou pelo fragmento des-axiologizado como casa habitável, cabe uma corda que suporte o peso e os estragos 1 In Louise Bourgeois. Destruction of the Father, Reconstruction of the Father (writings and interviews, 1923-1997). Edited and with texts by Marie-Laure Bernadac and Hans-Ulrich Obrist, London: Violette Editions, 2000, “Self-expression is sacred and fatal”, fragmento 49, 227. 2 In Milan Kundera. A Arte do Romance, Lisboa: Dom Quixote, 2002, 115.
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que o seu andar provoca e os esgares da ironia complacente do mundo das coisas e do próprio “riso de Deus”, a pátria sonora de todos os auto-expatriados.
2. Gigantes Enjaulados O génio é – em primeiro lugar: saber submeter-se à inspiração, absolutamente – em segundo lugar: saber regular essa inspiração. (…) Apogeu de passividade e de actividade. (Marina Tsvetaeva, L’Art à la lumière de la conscience)3
Mesmo as mais inóspitas viagens têm o selo da vontade. Trata-se, da forma como penso este nome nesta frase, de uma adesão a um apelo, de uma anuência ante uma oferta. De um “sim”. No capítulo da obra supracitada de M.Tsvetaeva, pacificamente intitulado “Le Génie”, também se coloca a vontade na geografia dos motivos da inspiração. Diz-se, entre forças de extremo, que “não há génio sem vontade, mas ainda o há menos (ele ainda está mais ausente) sem inspiração”.4 Acrescenta-se, a preencher o negativo da in-definição: A vontade é essa unidade, junta a meios infinitos de inspiração, graças à qual a inspiração se torna infinita (realiza a sua infinidade) e sem a qual é igual a zero (…).5
Se é narrativamente representado como um tipo muito peculiar de “voluntário à força”, em casos descontínuos de uma guerra humanamente situada, não será, por certo, por falta de resistência íntima ou de avisos exteriores (vulgo, “sinais”), que o artista cai na armadilha auto-induzida: Louise Bourgeois dá-o como caso perdido para a cura. Porque “curar” é [apenas] diluir um coágulo, desfazer uma dor, distrair um facto, uma evidência. Sem aproveitar o reduto embrionário de forma que a dor significa, podemos sempre voltar a senti-la, que nunca passará de um incómodo. Se for solicitado que se elaborem pontes ou contiguidades de sentido entre as respostas de uma artista plástica e as de um escritor de romances, no mesmo registo autointerpretativo ou de confronto exterior com os próprios passos (um espelho, por exemplo), deslocaremos o focus da atenção para o que fica das afirmações de ambos (novo conhecimento arrancado aos escuros afins):
3 In Tsvetaeva, Marina. L’Art à la lumière de la conscience. Traduzido do russo e apresentado por Véronique Lossky, Paris: Le Temps qu’il fait, 1987, 14. 4 Idem, p. 16. 5 Idem, p. 16.
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Realmente, é preciso compreender o que é o romance. Um historiador conta-lhe acontecimentos que se passaram. (…) O romance não examina a realidade, mas sim a existência. E a existência não é o que se passou, a existência é o campo das possibilidades humanas, tudo o que o homem pode vir a ser, tudo aquilo de que ele é capaz.6 A parte criativa do cérebro obedece a leis antagónicas. Por isso, ao invés de listar todos os factos, procura agrupar, reunir coisas que nunca antes tinham estado juntas! Nunca! Isso é o inventivo, o lado verdadeiramente criativo do cérebro.7
O possível é o “barro”, matéria-prima ainda informe da narrativa. Pode nunca sair do amorfo de uma matéria não cingida; pode não conseguir ser mais do que um desperdício criativo. É, no entanto, muito pouco relevante que se anteveja no último degrau da sua destinação. É quase violento querer dar-lhe nomes, como configurar o pó a uma jaula. Porque o pó é sempre o potencial móvel. Tal como defendia Demócrito, o átomo último da realidade é indecomponível – assim, está apto a resistir a todas as fragmentações, por ser o último reduto de todos os compostos. Nada o ameaça e a sua vida de pó cola-se à eternidade. Por Imagem ou por Conceito, a Obra é um lançar de pó (antes agrupado) no tempo lento do Universo. O artista, expulso que foi do Paraíso, morre em qualquer altura.
3. O desfecho do Descobridor As pessoas dizem muitas vezes que a Estética é um ramo da Psicologia. A ideia é a de que, quando estivermos mais avançados, todas as coisas – todos os mistérios da arte – serão compreendidos através de experiências psicológicas. Por muito estúpida que a ideia seja, é mais ou menos isto. (Ludwig Wittgenstein, Aulas sobre Estética)8
A rudeza clara deste parágrafo encerra, não obstante, uma “tese” tão comum quanto combatida (nalguns casos, menos tangíveis, meramente esbatida), entre autores que, desde pontos de vista críticos díspares, autonomizam a própria Estética (enquanto corpus teórico mais ou menos disciplinado, desde os princípios do manual de Baumgarten utilizado nas aulas de Kant) de toda uma parafernália de “considerações-satélite” do domínio da Arte – enquanto produção objectiva de obras – ou da Psicologia. 6 In Milan Kundera. A Arte do Romance. Opus cit., 58. 7 In Louise Bourgeois. “You have to be pigheaded”, A Conversation with Louise Bourgeois, February 1994; By Christiane Mennicke. Akademie der Künste, Berlin: 2003, 189. 8 In Wittgenstein, Ludwig. Aulas e Conversas. Lisboa: Cotovia, 1998, 41.
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O próprio Milan Kundera, no livro em que trata da “estética do romance”, encarada como uma arte que tem a missão de “descobrir uma nova parcela da realidade”, nunca antes sondada, começa o seu segundo texto (dos sete que compõem o ensaio), uma entrevista, justamente intitulada “Conversa sobre a Arte do Romance”, com a peremptoriedade destas afirmações: … os meus romances não são psicológicos. Mais precisamente: estão para além da estética do romance que normalmente se chama psicológico. […]; Depois de terem chegado ao fundo, que é a exploração pormenorizada da vida interior do eu, os grandes romancistas tiveram de começar a procurar, consciente ou inconscientemente, uma nova orientação. […]; O romance não é uma confissão do autor, mas uma exploração do que é a vida humana na armadilha em que se tornou o mundo.9
O porto provisório do “Descobridor-que-Inventa” joga com todos os riscos do acontecimento. É transitório e irrepetível; não se cola à vida; não a descreve. É por isso que é tão importante ouvir a aterragem, não passar em branco a bomba-relógio da imaginação, entre os escombros do mundo visto e a cara boquiaberta da pura invenção (já sabemos como aqui a “mais pura das invenções” é a descoberta de continentes reservados). Foi Kant quem, na Crítica da razão teórica, viu a Imaginação como esse baldio em repouso, que pode precipitar o Novum pela aliança de dois mundos que não se sabem encontrar sozinhos. Se virmos em profundidade a superfície das definições e o trabalho conjugado das suas articulações, então vemos como Sensibilidade, Entendimento, Imaginação Transcendental e Razão não têm entidade própria, fora do jogo das faculdades – no fundo, longe da acção, na prateleira dos conceitos, em que a sua simples enumeração poderia cair. “A fusão do sonho e da matéria” em que a escrita romanesca se concretiza, é toda uma casuística fora da história (no fundo, a correr ao seu lado, sem lhe prestar grande atenção), que não se cola ao regime dos factos, sem deixar por isso de os ver. Esse é o instante de materialização de um ponto órfão de qualquer esquemática causa-efeito: um poema, um romance, um quadro ou uma escultura, um filho. A sucessão das descobertas (e não a adição do que foi escrito) faz a história do romance europeu. […] É nesse sentido que compreendo e partilho a obstinação com que Hermann Broch repetia: Descobrir aquilo que só um romance pode descobrir, é a única razão 9
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In Milan Kundera. A Arte do Romance. Opus cit., 41.
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de ser de um romance. O romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência, é imoral.10
O desfecho do Descobridor pode ser o naufrágio fatal, o erro evitável pela razão, a perda de assento no tribunal dos factos, o lapso de atenção à realidade, a paranóia. Quase seguramente (quase nunca) é a terra prometida do caso arquivado, em dossiers, telas ou posfácios. Simboliza um marco na estrada, que pode orientar o vaivém do tempo: A auto-expressão é sagrada e fatal. É uma necessidade. Se uma pessoa é artista, isso é uma garantia de sanidade. Está apta a tomar o seu próprio tormento.11
Nas imediações do génio, a razão imaculada, o motor imóvel da sequência das coisas – a loucura inaplicada, a cabra-cega do Acaso: mas presa; configurada pelas mãos (pela alma). Não terá aspirações burocráticas, mas acaba de conquistar um escravo (um veículo).
4. Fora da Régua do Tempo Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva em que as coisas não nos aparecem como é costume, porque nos aparecem sem a circunstância atenuante da sua fugacidade. (Milan Kundera, A insustentável Leveza do Ser)12 Os poetas não inventam os poemas O poema está algures lá atrás Há muito, muito tempo que lá está O poeta não faz senão descobri-lo. (Jan Skacel)
Aquilo que, em primeiro lugar, define uma cronologia, é a amputação. É como algo que renunciou a um dado ambiente, para se tornar mais rápido. Os factos são pospostos a régua e esquadro no papel branco, numa alquimia de informação imaculada e de “higiene descritiva” à prova de inspecção. A História não é apenas uma cronologia, mas também cresce ao lado de uma régua. Quando experimentamos organizar os dados mais recentes que o cérebro e os sentidos processaram para o nosso conforto, isto é, quando fazemos (curtas ou mais remotas) retrospectivas, há um lapso nervoso bastante automático, uma jogada limpa da chamada memória a curto prazo, e todo um “vazio estilístico” que, creio, corresponderá ao nosso próprio 10 Idem, 18. 11 In Louise Bourgeois. Destruction of the Father, Reconstruction of the Father (writings and interviews, 1923-1997). Edited and with texts by Marie-Laure Bernadac and Hans-Ulrich Obrist, London, Violette Editions, 2000, 227. 12 In Milan Kundera. A Insustentável Leveza do Ser. Lisboa, Dom Quixote, 2005, 11.
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potencial de “arrumação” dessa narrativa desfragmentada que temos entre mãos. O mesmo é dizer, um “episódio de vida”, olhado pela régua do tempo, mas deixado em liberdade. Ora, sem precisar de ter em consideração as regras teóricas dos filósofos, o ser humano sabe que a liberdade é uma espécie de castigo que nem todos conseguem aproveitar. Estar apto a levar o seu “tormento” pela mão, exige algo muito próximo da mais cerrada disciplina. (Fingir que o mundo tem coordenadas justas e precisas, limites intransponíveis e proibições demarcadas, quando a única barreira do campo visual é a falsa linha do horizonte). Será que existe uma única lei do esquema dedutivo que nos permita extrair, com segurança, a certeza de que estamos à frente de um artista, alguém capaz de olhar pelo génio, resistindo à aniquilação que o seu ser em estado puro representa? É demasiado pouco, aquilo que temos. É tão generalista como a régua do tempo. (E o exercício em jogo, aqui, é o de tentar ver para fora da moldura). O romance e a escultura reclamam agora a visão alienígena do exterior à rede Eles são sobreviventes à normalidade e não sentem saudades. O homem deseja um mundo em que o Bem e o Mal sejam nitidamente discerníveis, porque nele há o desejo inato e indomável de julgar antes de compreender. Sobre este desejo são fundadas as religiões e as ideologias. Estas não se podem conciliar com o romance a não ser que traduzam a linguagem de relatividade e de ambiguidade dele para o seu discurso apodíctico e dogmático. Exigem que alguém tenha razão. […] Neste “ou então – ou então” está contida a incapacidade de suportar a relatividade essencial das coisas humanas, a incapacidade de olhar de frente a ausência do Juiz Supremo. Por causa desta incapacidade, a sabedoria do romance (a sabedoria da incerteza) é difícil de aceitar e de compreender.13 É por isso que o sucesso me chegou tão tarde – porque eu estava sempre fora da sincronia; fora da sincronia dos anos, mas não estava fora da sincronia com a história. (…) O ciclo da história é muito mais longo. Tens que tomar o teu tempo e ter a coragem de dizer “não” ao hoje, em função do amanhã e dos dias seguintes. […] Os assuntos são temporários. O artista permanece, mas os assuntos são temporários e nós saltamos de um para o outro.14
13 In Milan Kundera. A Arte do Romance. Opus cit., 20. 14 In Louise Bourgeois. “You have to be pigheaded”, by Christiane Mennicke. Opus cit., 188.
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A “sincronia com a história” não é um parente próximo do eterno retorno, mas é a aprendizagem da espera (de um Godot para Outro), incapaz de se entediar com a longa estrada desconhecida, porque filtra cada detalhe (um malmequer, um pirilampo, o traço contínuo, a nuvem lenta, a expressão inverosímil, o risco ao lado) como a decisão mais grave ao Sentido. Uma declaração de amor ao Átomo, por ser o reduto último do Vário.
5. Aprender a Ganhar Corpo (ou: Uma Arma Espacial) Publicam-se os livros com os caracteres cada vez mais pequenos. Estou a imaginar o fim da literatura: pouco a pouco, sem que ninguém se dê conta disso, os caracteres diminuirão até se tornarem totalmente invisíveis. (Milan Kundera, A Arte do Romance)15 Parece-me que a Beleza é um exemplo daquilo a que os filósofos chamam reificação, olhar para uma abstracção como uma coisa. (Louise Bourgeois, Destruction of the Father, Reconstruction of the Father)16 A Abstracção significa muito! Porque na abstracção as coisas não são óbvias. Eu gosto disso. Aí, o sentido está escondido (…). A minha obra não é explícita – eu não sou descritiva! Sou muito mais pelo segredo [do que pela descrição] e quero muito mais do que isso. (Louise Bourgeois, “You have to be pigheaded”)17
“Res”: mais de “Coisa” que de “Substância”. “Transformar algo numa coisa”, seria a profanação mais próxima do mote filosófico invocado pela artista. Teremos, inclusive, o direito vocabular e mesmo conceptual de entender o processo de Reificação como o contraponto simbólico da Abstracção (exibir ≠ esconder). Metamorfoseada nas obras (escritas, a partir da escultura) de Louise Bourgeois, vem a ideia pregnante de que, em tudo o que houver para saber de si, para ver e para entender, a sua obra é o único testemunho credível. E, contiguamente, como também evoca a artista amiúde, o único “sistema” que escapa ao uso finalístico do raciocínio ou da História (como caminho para um desfecho que não descobre) é o artístico, onde não saímos do campo do pontual, do detalhe que se vê, da corporalização do inerte, num tempo de lapsos e fragmentos. Falámos atrás da importância do pó e do poema “escondido algures lá atrás”. Contámos com o depoimento de Milan Kundera, num esquisso de palavras-chave (de outras palavras-chave) do seu vocabulário romanesco e dos coutos até onde o mal-entendido pode ir: 15 In Milan Kundera. A Arte do Romance, opus cit., 144. 16 In Louise Bourgeois. Destruction of the Father, Reconstruction of the Father (writings and interviews, 1923-1997). Opus cit, 358. 17 In Louise Bourgeois. “You have to be pigheaded”, by Christiane Mennicke. Opus cit., 191. (Tradução livre, devido à dificuldade de fazer corresponder directamente em Português algumas expressões em inglês utilizadas pela autora).
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A trama meditativa do romance é sustentada pela armadura de algumas palavras abstractas. […] Um romance não é senão, pareceme, uma longa busca de algumas definições fugidias.18
Se ligarmos estes esforços (vãos) de reunir pó alheio numa caixa própria – cujo fabricante é o autor deste texto –, ficamos com o assentimento face à brevidade de algumas (muitas) expressões a-conceptuais (quantas vezes, drasticamente realistas) e o poder da reminiscência de outras vidas, de destinos (directos) infinitamente empobrecidos, face a tudo aquilo que seria possível fazer com a escassez tipográfica de uma Crítica da Razão Pura. Louise Bourgeois diz, num aforismo de Destruction of the father, Reconstruction of the father, que «as emoções são fontes de conhecimento; expressões da nossa relação com a vida e que se configuram no nosso corpo. São formas de compreensão». E, o que mais roubou ao homem de Königsberg qualquer coisa como oito anos da sua vida para encontrar a chave de um enigma profundo, que dispôs todas as suas peças num tabuleiro redondo e ordenou: “Agora, resolve-me!”, terá sido o arrepio por ver expandida em importância teórica a força, já irresistível, de uma entidade “impura”, de um voluntário das diatribes filosóficas. Talvez a única dica (a mais pesada, a mais importante) que faltasse para a entrega do Filósofo ao xeque-mate desse tabuleiro, fosse um simples sinal geográfico: a chave das chaves está fora ou está dentro deste quintal? Qualquer coisa como: “terei que inventar uma estrela nova ou bastar-me-á com dilatar as funções de um dos meus planetas íntimos?” No caso contado, a chave não abriu, apenas ligou a gratuitidade do pó desconexo. Não impediu o desastre de uma cisão sempre iminente, mas antes deu a hibridez do seu corpo polimorfo à incapacidade de associação dos data e do “computador humano”. Portanto, talvez seja prudente imputarmos à invenção a demora de Kant em publicar o seu tabuleiro redondo. Só que, infelizmente para a audácia do pensador, esse corpo alienígena, que traria consigo a resposta edipiana à Esfinge magnânima, acertou no futuro como a maçã de Páris que, ao invés de dar mais maçãs, deu a guerra de Tróia como rebento. A androginia da Imaginação Transcendental é a causa próxima da sua ignomínia ante a Pureza da Razão e dos tabus sobre os seus potenciais estragos no tribunal da ordem teórica, se a simples “imaginação doméstica” dos homens não encontrar um reduto mesurado para a sombra da sua monstruosidade. Trazer uma Imagem consigo é mais feroz do que ter uma Ideia: a Imagem não cabe escondida em lado nenhum; para esconder a Ideia, basta não abrir a boca.
18 In Milan Kundera. A Arte do Romance. Opus cit., 146.
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6. Ruir ou “Ser Ruído”. Apologia do In-Concluso Tomas o acontecimento entre mãos e, activamente, manipula-lo, com o fito de sobreviver. […] Existe um desejo constante de manipular, em vez de ser manipulado. Eu não tenho Ego; sou o meu trabalho. (Louise Bourgeois. Destruction of the Father, Reconstruction of the Father)19 O destino vampiriza-nos, pesa-nos, é como uma grilheta de ferro atada aos nossos tornozelos. (Milan Kundera, A Arte do Romance (da Definição de Destino20)) Tenho horror a ouvir o bater do meu coração, que me lembra constantemente que o tempo da minha vida está contado. (Milan Kundera, A Arte do Romance (da Definição de Ritmo21))
Talvez o aspecto mais intrigante de uma tentativa de aproximação (forçada, com algo de “postiço” para uma primeira leitura) entre aquilo a que já chamei um “romance de romance” (poderia ter dito “escultura de escultura”), ou seja, entre um conjunto de asserções de tipo auto-interpretativo e de teor bastante filosófico (“algo” de/sobre “algo”), de uma escultora e de um romancista, que ilustram discursivamente a sua própria obra (sem falar de si), sem utilizar o Eu como veículo de acesso ao universo das respectivas criações, diga respeito à forma – mais ou menos afim – como conseguem traduzir num registo “conceptual” uma forma de pensamento e um conjunto de vivências, originariamente tão surdos à teoria e a qualquer formulação discursiva que se “limite” a falar deles, sem os ser. Ou seja, o nervo desta cisão é a capacidade (ainda) expressiva com que um mesmo sujeito “transpõe” para um registo mais argumentativo aquilo que, por princípio, é o “Sagrado da Auto-Expressão”. A meticulosidade que ambos investem neste “registo de segundo grau”, assenta numa espécie de assentimento à prioridade daquilo que está a montante de todas as justificações, ou seja, na conquista ontológica que a obra faz ao vazio, antes dos discursos. E, se emprestam a plasticidade da “imagem que não cabe em lado nenhum” à forma (precária) das ideias contaminadas por essa força quase animal, é a expensas daquilo a que Louise Bourgeois chama a “fé” do artista na sua obra, a luta feroz contra o Arquivo: A minha arte é arte porque eu o afirmo e prová-lo-ei. […] Não preciso que o mercado me diga se isto é arte. Eu sei. E isso chama-se fé.22
19 In Louise Bourgeois. Destruction of the Father, Reconstruction of the Father (writings and interviews, 1923-1997). Edited and with texts by Marie-Laure Bernadac and Hans-Ulrich Obrist, London, Violette Editions, 2000, 173. 20 In Milan Kundera. A Arte do Romance. Opus cit., 147. 21 Idem, p. 167. 22 In Louise Bourgeois. “You have to be pigheaded”, by Christiane Mennicke. Opus cit., 193.
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Por isso é tão significativo o tom de sugestão do título da obra já citada de Marina Tsvetaeva: A Arte à luz da Consciência. “A luz da consciência” é a apologia do artista contra a indiferença do tempo e as leituras desviadas (vulgo, vítimas da intenção) para os alvos finalísticos de que a Arte está isenta. A Consciência é, pois, mais uma correcção “ortopédica” de um estrago já causado, do que um esclarecimento de primeira mão. No livro de Tsvetaeva pode ler-se: Desta forma, a obra de arte é como uma obra da natureza, mas que deve ser esclarecida pela luz da razão e da consciência.23
Se, para o artista, a maneira de evitar “ser ruído”, engolido pela doação interesseira do génio, que anda à procura das mãos que não deixem cair os piores tormentos, mas os façam passar pela Expressão, é a de “manipular para não ser manipulado” (ou antes de o ser), então a obra de arte também é uma luta contra o desgaste, a perda paulatina da cor e do coração dessa parcela da existência a suplicar atenção. Expressar o dom, como uma forma de saída da energia bruta desde o fundo de um vulcão a dormir (muito, muito próximo daquilo a que Louise Bourgeois chama o apelo da “Concavidade”) até à “fatalidade” da pedra esculpida – ou do Personagem, uma das possibilidades da arte escultórica da narrativa –, é um zelo pela permanência (“Le dur désir de durer”), pela teimosia em ser presente. Tal como no romance – a prosa encenada através daquilo a que Kundera chama os “Egos experimentais” (=personagens) –, na pedra, como no poema, na pauta, no écran ou dentro do cérebro, em forma de esboço plausível, o resultado obtido é mais uma prova de que “a vida (também) é assim”, ou seja, com os meandros precisos de (mais esta) narrativa situada. Escrever e Esculpir são formas de “desfloramento” de algo que está na sombra e se envergonha. Ao extrair da penumbra essa “coisa”, fica claro que optámos por ela e, doravante, seremos tanto mais zelosos de si, quanto a certeza de que “essa coisa” continuará a ter um comportamento tímido e envergonhado, mesmo sob os holofotes da ribalta nos corredores da História. Cada “narrativa” pertence ao seu primeiro Descobridor: […] as coisas importantes têm de ser contadas. Narrar é preciso. Mas não é suficiente ouvi-las; é preciso conduzir a própria vida de acordo com alguma delas.24
… Que é também o primeiro Obstinado da sua vida recente: 23 In Tsvetaeva, Marina. L’Art à la lumière de la conscience. Opus cit., 11. 24 In Daniel Innerarity. A Filosofia como uma das Belas-Artes. Lisboa: Editorial Teorema, 1995, 121.
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O que mais fará o artista, senão defender a sua obra? Tem que defender a sua obra! Eu faço sempre isso! É uma parte do ser artista, em que tens que ser obstinado e dizer: “Não querem aceitar isto, mas vão querer! Porque eu cuidarei disto e mantê-lo-ei! É como com as tuas crianças!25
… E o Pastor dos sonhos que o seu próprio corpo expeliu: O Romancista não liga muito às suas ideias. […] Não está fascinado pela sua voz, mas por uma forma que persegue, e só as formas que respondem às exigências do seu sonho fazem parte da sua obra.26
Desde uma aproximação quase geográfica e pouco permeada pelo engodo discursivo, dir-se-ia que o nosso Descobridor (o Romancista-Escultor) não é do tipo dos que procuram, mas dos que acham. E esse encontro sensível – aestético – com o Inefável do mundo real, é uma limpeza do campo visual, um apurar das retinas simbólicas de todos os sentidos para (receber) a parcialidade da sensação, esculpida parcelarmente em histórias “Sentir tudo de todas as maneiras”, mesmo o risco de ser só por esta vez. Ao fim e ao cabo, a vida é tão violenta como a morte.
Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Lisboa: Cotovia, 1999. BOURGEOIS, Louise. “You have to be pigheaded”, a Conversation with Louise Bourgeois, February 1994; By Christiane Mennicke. Berlin: Akademie der Künste, 2003. ______. Destruction of the Father, Reconstruction of the Father (writings and interviews, 19231997). Edited and with texts by Marie-Laure Bernadac and Hans-Ulrich Obrist. London: Violette Editions, 2000. ______. Paulo Herkenhoff in conversation with Louise Bourgeois transcribed and edited by Thyrza Nichols Goodeve. London: Phaidon, 2003. BROCH, Hermann. Création littéraire et connaissance. (pref., ed. Lit. Hannah Arendt; trad. Albert Kohn). Paris: Gallimard, 1966. INNERARITY, Daniel. A Filosofia como uma das Belas-Artes. Lisboa: Editorial Teorema, 1995. KANT, Immanuel. Critique de la Faculté de Juger. Trad. De A. Philonenko, Paris: Vrin, 1979. KUNDERA, Milan. A Arte do Romance. Lisboa: Dom Quixote, 2002. ______. A Vida não é aqui. Lisboa: Dom Quixote, 2002. 25 In Milan Kundera. A Arte do Romance. Opus cit., 170. 26 In Milan Kundera. A Arte do Romance. Opus cit., 170.
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______. A Insustentável Leveza do Ser. Lisboa: Dom Quixote, 2005. TSVETAEVA, Marina. L’Art a lá lumière de la conscience. (traduzido do russo e apresentado por Véronique Lossky). Paris: Le Temps qu’il fait, 1987. WITTGENSTEIN, Ludwig. Aulas e Conversas. Lisboa: Cotovia, 1998.
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Ana Cristina Falcato é professora do Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade Nova de Lisboa (IFL/FCSH). E-mail: aniusca@hotmail.com.
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Nietzsche
e a “história natural da moral”
PEDRO PAULO PIMENTA* Para Thelma
Resumo: Trata-se de examinar a noção de “história natural da moral”, em Nietzsche, a partir de uma comparação crítica com a concepção humiana de “história natural da religião”. PALAVRAS-CHAVE: MORAL, RELIGIÃO, GOSTO, SENSIBILIDADE, HISTÓRIA Nietzsche’s “Natural history of morals” Abstract: The article suggests some points of contact between Nietzsche’s “natural history of morals” and Hume’s “natural history of religion”. KEYWORDS: MORALS, RELIGION, TASTE, SENSIBILITY, HISTORY
O
título desta nota se refere ao projeto delineado por Nietzsche em Para além de bem e mal, livro que oferece, entre outras coisas, uma “Contribuição para história natural da moral” – tão mais necessária pelo estado precário da filosofia nesse domínio: Na Europa de hoje, a sensibilidade moral é tão sutil, tardia, múltipla, excitável, refinada, quanto a “ciência da moral” que lhe corresponde é ainda jovem, incipiente, tosca, rudimentar – um atraente contraste, que às vezes se faz visível e toma corpo na pessoa mesma de um moralista. Considerando aquilo que designa, a expressão “ciência da moral” resulta demasiado arrogante e contrária ao bom gosto: o qual é sempre gosto antecipado pelas palavras mais modestas. […]1
1
Nietzsche, Para além do bem e do mal, 186. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Tentemos compreender essa noção de “história natural da moral” a partir da abertura do § 2 da primeira dissertação da Genealogia da moral, que, na tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, leva o título “Bom e mau, bom e ruim”: Todo o respeito, pois, pelos bons espíritos que possam reinar nesses historiadores da moral! Mas o que é certo, infelizmente, é que o próprio espírito histórico lhes falta, que eles foram desamparados precisamente por todos os bons espíritos da história! Todos eles pensam, como já é velho uso de filósofos, de modo essencialmente a-histórico: disso não há dúvida nenhuma. A incompetência de sua genealogia da moral vem à luz logo no início, quando se trata de averiguar a proveniência do conceito e juízo de bom (…).2
A essa consideração inicial se segue uma operação cujos procedimentos são familiares para o leitor de Nietzsche. Toma-se um lugar-comum filosófico – no caso, a origem do juízo de bom na constatação do útil, proveniente do hábito – e demonstra-se, de modo implacável, que é ingênuo ou mal-intencionado querer enredar, numa mesma noção, duas coisas opostas, os sentimentos ardorosos dos juízos de valor e a frieza do cálculo de utilidade. A “estimativa do valor” das ações humanas mostraria, para os psicólogos ingleses (leia-se Bentham e Mill), ou antes, confirmaria uma “espécie de prerrogativa do homem em geral”. Legitima-se assim uma abstração, a natureza humana, a custo de se recobrir uma verdade mais primordial e incômoda: “o direito dos senhores, de dar nomes, vai tão longe, que se poderia permitir-se captar a origem da linguagem mesma como exteriorização de potência dos dominantes”.3 Haveria muito a dizer acerca desse ponto, que constitui apenas uma passagem, que recortamos de um argumento mais extenso, denso e intricado, do que dá a entender esta nossa consideração, mais superficial. Mas, como o tema é a história natural da moral, é nesse ponto que nos deteremos, para ver o que implica, no quadro de uma genealogia da moral, o esboço de uma empreitada como essa e quais os seus pressupostos filosóficos mais gerais. Se voltarmos ao texto supracitado, encontraremos nele o eco de uma crítica que se torna comum no século XIX, de acordo com a qual os moralistas, mais especificamente os que escreveram em língua inglesa, para sustentar uma visão cândida do motivo das ações humanas, lançariam mão de uma abstração, a despeito do empirismo que professam, que lhes permitiria remeter toda e qualquer ação aos “princípios da natureza humana”, manancial sem referência histórica, molde a partir do qual as próprias determinações históricas iriam se constituindo empiricamente. Com essa astuciosa manobra, os moralistas 2 In: Nietzsche: os pensadores vol. 32, p. 307. Seleção de Gérard Lebrun e tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974. 3 In: Nietzsche: os pensadores vol. 32, p. 307-08.
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reencontrariam, invertendo os termos da metafísica clássica, o malfadado “sentido natural” das coisas, no qual se fundam conformismos de toda espécie. A imputação de ausência de “espírito histórico” explicaria, em todo caso, o desfecho lamentável do moralismo no utilitarismo e o esquecimento, com o perdão da palavra, dos motivos mais instintivos que levam o mais forte a se aproveitar da fraqueza dos outros para lhes impor a sua verdade, particular e contingente, que nada tem a ver com as piedosas generalizações daqueles que falam em natureza humana. É preciso que nos detenhamos, por um instante, no sentido disso que Nietzsche às vezes, embora nem sempre, entende por “histórico”. Um bom começo pode ser o § 2 do capítulo I de Humano, demasiado humano, intitulado – “Defeito hereditário dos filósofos”: Todos os filósofos têm em si o defeito comum de partirem do homem do presente e acreditarem chegar ao alvo por uma análise dele. Sem querer, paira diante deles “o homem”, como uma aetrena veritas, como algo que permanece igual em todo o torvelinho, como uma medida segura das coisas. Tudo o que o filósofo enuncia sobre o homem, entretanto, nada mais é, no fundo, que um testemunho sobre o homem de um espaço e tempo muito limitado. Falta de sentido histórico é o defeito de todos os filósofos (…) Mas tudo veio a ser; não há fatos eternos: assim como não há verdades absolutas. – Portanto, o filosofar histórico é necessário de agora em diante e, com ele, a virtude da modéstia.4
Correndo o risco de simplificar, diríamos que o senso histórico ao qual Nietzsche se refere, como a virtude que falta aos filósofos, não é o reconhecimento de que a história como processo é que vem a constituir, no século XVIII burguês, a ilusão de uma síntese do espírito intitulada “natureza humana”; bem diferente disso é a “modesta” constatação de que o homem é um devir, não uma totalidade em busca de seu próprio sentido, e que cabe ao filósofo, uma vez desvencilhado de suas abstrações, se debruçar sobre algo fugidio, em que mal se nota uma essência ou um telos. Portanto, a relativização proposta por Nietzsche, por ocasião de uma Genealogia da moral, não redunda no estudo da história e dos motores que a propelem, mas sim no estudo das ações humanas referidas ao homem como objeto histórico, isto é, relativo a uma sucessão limitada de tempo e espaço. Em suma, trata-se de uma relativização dos valores humanos, não de sua universalização no teatro da história. Essa perspectiva nos permite compreender uma “história natural da moral” em termos relativamente simples, como o exame minucioso das estruturas, entendidas em sentido orgânico, que facultam a origem e a consolidação dos preconceitos dos homens. É o 4
In: Nietzsche: os pensadores vol. 32, p. 100.
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que mostra o § 186 de Para além de bem e mal, inserido no capítulo que propõe contribuições à espécie de exame à qual nos referimos: Em toda “ciência da moral”, até agora, faltou, por estranho que isso possa soar, o próprio problema da moral: faltou a suspeita de que aqui há algo de problemático. O que os filósofos denominavam “fundamentação da moral” e exigiam de si era, visto à luz correta, somente uma forma erudita de boa-fé na moral dominante, um novo meio de sua expressão, portanto um estado de coisas no interior de uma determinada moralidade e até mesmo, no último fundamento, uma espécie de negação de que essa moral possa ser captada como problema: – e, em todo caso, o reverso de um exame, decomposição, dúvida, vivisecção dessa mesma crença!5
Debruçando-se acerca das crenças humanas e buscado seu fundamento num princípio qualquer – quer se trate da natureza humana dos empiristas, quer, como agora, do transcendental kantiano –, parece nunca ter ocorrido aos investigadores da moral se indagar a respeito da condição de possibilidade do seu próprio discurso, da enunciação capciosa em que eles apresentam o problema da moral, que já recobre, de saída, o que mais importa saber. A imagem sugerida nessa passagem não deixa dúvida de que a tarefa, doravante, é examinar qual a crença do próprio moralista que o impele a elaborar uma filosofia da moral, nos mesmos termos de uma anatomia. A palavra utilizada por Nietzsche é vivisecção: o exame dos tecidos e estruturas de um corpo desprovido de vida.6 De fato, a história natural é uma disciplina que na modernidade se define por analogia, e até mesmo se confunde com a prática da anatomia. E alguns filósofos modernos perceberam que poderia ser interessante uma aproximação de método, que permitisse à filosofia se tornar algo como uma “fisiologia do entendimento”.7 Coube, entretanto, a Hume, a honra de consagrar a história natural como disciplina da filosofia moral, e justamente a propósito de um exame genealógico da origem das crenças religiosas. Em sua célebre História natural da religião o filósofo escocês se pronuncia da seguinte maneira acerca do tema da obra:
5 In: Nietzsche: os pensadores vol. 32, p. 287. 6 A expressividade metafórica inscrita na prática anatômica, por contraposição àquela do exame de sintomas no corpo vivo, examinada por Foucault, se resume na concisa fórmula: “Uma clínica dos sintomas procura o corpo vivo da doença; a anatomia só oferece o cadáver”. In: O nascimento da clínica, p. 147. Tradução de Roberto Machado. 6a edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. É interessante pensar que Nietzsche tem em vista essa acepção ao se referir às filosofias precedentes: corpos mortos, que não se confundem com o impulso vital que eles insistem em negar. 7 A expressão se refere ao “método histórico” apregoado por Locke, Ensaio, introdução, § 8. Ed. P. H. Nidditch. Oxford: University Press, 1978.
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A questão concernente à origem da religião na natureza humana põe algumas dificuldades. A crença num poder inteligente invisível sempre foi difundida na raça humana, em todos os lugares e épocas; mas talvez não seja tão universal que não admita exceção, e as idéias que ela sugere talvez não sejam tão uniformes. (…) Ao que parece, esse preceito não brota de um instinto original ou de uma impressão primária natural, mas, ao contrário, daquela mesma espécie de instinto que desperta amor-próprio, afecção entre os sexos, amor pelos filhos, gratidão e ressentimento, que encontramos universalmente, em todas as épocas e nações, com um objetivo determinado e preciso a ser perseguido inflexivelmente. Os primeiros princípios religiosos são posteriores, e, além de facilmente pervertidos por acidentes e causas variadas, em alguns casos sua operação pode ser perturbada pela concorrência de circunstâncias extraordinárias. Quais princípios despertam a crença original, quais acidentes e causas direcionam a sua operação, tais são os objetos da presente investigação.8
Vemos assim que a filiação do projeto sugerido por Nietzsche – uma história natural da moral – se encontra explicitamente em Hume, que, ao propor uma história natural da religião, reafirma, acerca da moral, aquele mesmo preconceito que mais repulsa causa ao filósofo alemão: a saber, a recorrência universal dos mesmos princípios da ação humana. Com um fator adicional: pois é curioso observar como, a despeito de Nietzsche, o apelo de Hume a essa universalidade se dá por meio da análise histórica, de eventos que mostram como, no decorrer dos tempos, se desenrola, para o espectador filosófico, no teatro da história, a constituição desse manancial de princípios instáveis e oscilantes ao qual damos o nome de “natureza humana”. Ora, é a partir da inserção histórica da noção de natureza humana, que só é universal na medida em que a experiência permite, que Hume elabora sua própria e implacável genealogia das crenças religiosas, que remontam à ignorância e ao medo ou à presunção e ânsia de poder, e encontram sua mais perfeita expressão na superstição ou no entusiasmo. Voltando agora a Nietzsche, encontraremos uma evocação dos procedimentos de Hume no § 111 de Humano, demasiado humano, intitulado “Da origem do culto religioso”. Observe-se, contudo, que o estilo é outro, o que faz toda diferença: Se nos reportamos aos tempos em que a vida religiosa florescia em seu máximo vigor, encontramos uma convicção fundamental que 8 História natural da religião, “Introdução”. In: The natural history of religion and Dialogues concerning natural religion, p. 25. Ed. Colver & Price. Oxford: Clarendon Press, 1976.
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agora não mais partilhamos e em virtude da qual vemos fecharemse para nós todos os portais da vida religiosa … Naqueles tempos ainda não se sabe nada de leis naturais; nem para a terra nem para o céu há um ter-de; uma estação do ano, o brilho do sol, a chuva, podem vir ou deixar de vir. Falta, em geral, todo conceito de causalidade natural.9
Tais homens, desprovidos de imaginação, são levados por suas paixões. Mas, longe de constituir um mundo desolado e sem interesse para o homem civilizado, é nesse estágio que encontramos a “convicção fundamental” que conduzirá por fim ao estabelecimento de uma ordem: “o homem é a regra, a natureza o desregramento”. Se hoje essa convicção nos parece estranha, diz Nietzsche, é porque “reconhecemos, com Goethe, na natureza, o grande meio de aquietação da alma moderna”.10 As diferenças entre o estilo de Nietzsche, declamatório e destemido, e o de Hume, sereno e contido, explicam porque essa passagem pode ser interpretada, entre outras coisas, como uma versão mais bombástica da História natural da religião. Seja como for, a afinidade entre esses autores, de personalidades e convicção incompatíveis, parece-nos certa, embora surpreendente. É o que confirma a conclusão desse mesmo raciocínio de Nietzsche: Em suma, o culto religioso repousa nas representações da feitiçaria entre homem e homem; e o feiticeiro é mais antigo do que o padre. Mas repousa, do mesmo modo, sobre outras e mais nobres representações; pressupõe a relação de simpatia de homem a homem, a existência de boa vontade, de gratidão, de atendimento aos suplicantes, de contratos entre inimigos, de prestação de penhores, de direito à proteção da propriedade.11
A sociabilidade é anterior, na natureza humana, à supertição e ao entusiasmo, e é mais forte do que estes. Com base nessa explicação, poderíamos ser levados a inferir que a implicância com os filósofos desprovidos de sentido histórico não se aplicaria, ao contrário do que parece, ao caso de Hume. E parecer-nos-ia natural encontrar, nos textos mobilizados em torno da noção de uma “história natural da moral”, um ar de família que nos devolveria, da turbulência das páginas de Nietzsche, ao clima temperado e ameno daquela filosofia que quis unir, no século XVIII, em nome da virtude social, o raciocínio profundo à exposição elegante.
9 In: Nietzsche: os pensadores vol. 32, p. 108. 10 In: Nietzsche: os pensadores vol. 32, p. 108-09. 11 In: Nietzsche: os pensadores vol. 32, p. 110.
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Todavia, essa inferência é desautorizada abertamente por Nietzsche, que na seção 252 de Para além de bem e mal nomeia Hume como acusado no inquérito contra a filosofia inglesa. Não são nenhuma raça filosófica, esses ingleses: Bacon representa um atentado ao espírito filosófico, Hobbes, Hume e Locke, um rebaixamento e uma desvalorização do conceito de “filósofo”, por mais de um século. Contra Hume se ergueu e avultou Kant; Locke foi aquele de quem Schelling pôde dizer, je le méprise; na luta contra a bestificação anglo-mecanicista do mundo estavam de acordo Hegel e Schopenhauer (também Goethe) […] O que falta e sempre faltou à Inglaterra [é] autêntica pujança da espiritualidade, autêntica profundidade do olhar espiritual, ou, numa palavra, filosofia. […]12
Na sequencia desse texto, Nietzsche explica a superficialidade da suposta filosofia inglesa pelo caráter “sombrio, sensual, brutal (…) e rústico” do inglês, que, “por isso mesmo”, precisa mais do cristianismo do que o caráter do alemão, mais propício à filosofia. Não se vê bem como essa acusação atingiria o refinado David Hume, escocês de maneiras e hábitos franceses. Em todo caso, o projeto de aliar profundidade e elegância nada mais seria, para Nietzsche, do que a mais alta traição do espírito de profundidade que pertence à verdadeira filosofia (que, na idade moderna, é alemã), uma estratégia que permitiria ao pseudo-filósofo contornar o desafio de fundar uma verdadeira ciência da moral com belas palavras e muito “bom gosto”. Percebe-se assim que a diferença de tom e de estilo entre Nietzsche e Hume, esses dois praticantes da história natural filosófica, mais do que uma contingência, é índice de uma desavença mais profunda, um bom exemplo das incompatibilidades entre o Século das Luzes e a época imediatamente posterior, da qual somos os herdeiros.
Referências bibliográficas FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6a edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. HUME, D. História natural da religião. In: The natural history of religion and Dialogues concerning natural religion. Ed. Colver & Price. Oxford: Clarendon Press, 1976. LOCKE, J. An essay concerning human understanding. Ed. P. H. Nidditch. Oxford: University Press, 1978. 12
Nietzsche, Para além do bem e do mal, 252.
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NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. NIETZSCHE, F. Nietzsche: os pensadores vol. 32. Seleção de Gérard Lebrun; tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
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Pedro Paulo Pimenta é professor do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP, autor de A imaginação crítica. Hume no Século das Luzes (Azougue Editorial, 2012).
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CHARLES ROBERT ANON ALEXANDER SEARCH
&
FILOSOFIA E PSIQUIATRIA CLÁUDIA SOUZA* NUNO RIBEIRO**
Resumo: De entre as diversas personalidades literárias que Pessoa criou Charles Robert Anon e Alexander Search são aquelas onde a produção de textos filosóficos e psiquiátricos adquire um maior alcance, não só pelo volume de escritos relativos a essas temáticas assinados por estas duas personalidades, mas também pelo relevo desses textos para a caracterização de ambas. No espólio de Fernando Pessoa encontra-se uma multiplicidade de fragmentos e de projectos destinados a produções filosóficas e psiquiátricas concebidas como textos a ser atribuídos a estas duas personalidades. Mas as semelhanças entre Anon e Search estendem-se muito para além do mero facto de estas ambas assinarem textos de filosofia e psiquiatria. Muitos dos documentos presentes no espólio de Fernando Pessoa encontram-se assinados simultaneamente por estas duas personalidades. Assim, partindo de uma análise dos diversos documentos do espólio pessoano pretendemos traçar uma caracterização das prosas de Charles Robert Anon e Alexander Search. PALAVRAS-CHAVE: FERNANDO PESSOA, FILOSOFIA, PSIQUIATRIA, PERSONALIDADES LITERÁRIAS Charles Robert Anon & Alexander Search: philosophy e psychiatry Abstract: Among the several literary personalities created by Pessoa, Charles Robert Anon and Alexander Search are those in whom the production of philosophical and psychiatric texts is most relevant not only because of the amount of writings concerning philosophy and psychiatry created by those personalities, but also because those texts are crucial to the characterization of both. Pessoa’s Archive contains multiplicity of fragments and projects conceived as parts of philosophical and psychiatric productions of these two personalities. Many documents contained in Pessoa’s Archive are simultaneously signed by Anon and by Search. Thus, through the analysis of the multiplicity of documents present in Pessoa’s Archive we’ll try to characterize the prose of Charles Robert Anon and Alexander Search. KEYWORDS: FERNANDO PESSOA, PHILOSOPHY, LITERATURE, LITERARY PERSONALITIES
N
o final de um poema inglês de carácter semi-humorístico intitulado ELEGIA [ELEGY] [BNP/E3-78B - 55r],1 Fernando Pessoa deixa-nos a seguinte indicação: C. R. Anon id est Alexander Search.
Esta indicação, relativa à assinatura do poema, permite-nos concluir dois aspectos: primeiro, que existe uma estreita ligação entre a criação literária de Charles Robert Anon e a de Alexander Search; segundo, que Pessoa pretendia deixar clara a ligação entre estas duas personalidades pré-heteronímicas. Com efeito, ao longo do espólio de Fernando Pessoa existem múltiplos documentos que são partilhados por estas duas personalidades. Por um lado, encontramos uma pluralidade de folhas em que é possível identificar simultaneamente a assinatura de Anon e de Search, a maioria das vezes com a rubrica de uma destas duas personalidades no rosto e com a rubrica da outra no verso. Por outro lado, em alguns dos cadernos de Pessoa existe a colaboração simultânea destes dois pré-heterônimos. Mas a ligação entre estas duas personalidades estende-se muito para além da assinatura simultânea de documentos e a partilha de testemunhos do espólio de Fernando Pessoa. Na caracterização que nos é deixada nos diversos fragmentos em que Pessoa realiza uma descrição destas duas personalidades e nos projectos que lhes destina encontramos inúmeros elementos que possibilitam estabelecer a equiparação entre Charles Robert Anon e Alexander Search. De entre esses diversos elementos a constante preocupação com a filosofia e a psiquiatria é um dos que mais une estas duas personalidades. Com efeito, num caderno datável de cerca de 1906 [BNP/E3, 144C2, 5v a 6r] encontrase um fragmento em inglês intitulado Excommunication [Excomunhão], que se constitui como um de resumo biográfico de Charles Robert Anon: Excomunhão não casado, excepto em momentos excêntricos
1 Os documentos aqui citados pertencem ao espólio de Fernando Pessoa que se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal.
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Eu, Charles Robert Anon, ser, animal, mamífero, tetrápode, primata, com placenta, macaco, catarrino, homem; dezoito anos de idade, não casado (excepto em momentos excêntricos) megalomaníaco, com laivos de dipsomania, degenerado superior, poeta, com pretensões a escritos humorísticos, cidadão do mundo, filósofo idealista, etc etc (para poupar mais dores ao leitor). Em nome da, VERDADE, CIÊNCIA e FILOSOFIA, sem sineta, livro e vela, mas com caneta, tinta e papel, Passo uma declaração de excomunhão a todos os padres e todos os sectários de todas as religiões do mundo. Excomungo-vos. Danais-vos todos. Assim seja. Razão, Verdade, Virtude por Charles Robert Anon. [Excommunication not married, except at odd moments I, Charles Robert Anon, being, animal, mammal, tetrapod, primate, placental, ape, catarrhyna, man; eighteen years of age, not married (except at odd moments) megalomaniac, with touches of dipsomania, dégénéré superior, poet, with pretensions to written humour, citizen of the world, idealistic philosopher, etc etc (to spare the reader further pains). In the name of TRUTH, SCIENCE and PHILOSOPHIA, not with bell, book and candle, but with pen, ink and paper, Pass sentence of excommunication on all priests and all secretarians of all religions in the world. Excomunicabo vos. Be damn’d to you all. Ansi-soit-il. Reason, Truth, Virtue per C[harles] R[obert] A[non]]
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Este excerto, para além de se constituir como uma auto-psicografia humorística de Anon aos dezoito anos de idade, revela-nos também múltiplos aspectos da caracterização da produção desta personalidade, assim como dos interesses e preocupações que se lhe encontram associados. Neste texto encontramos a explícita menção à preocupação com a filosofia. Charles Robert Anon elabora explicitamente uma excomunhão “Em nome da VERDADE, CIÊNCIA e FILOSOFIA” [BNP/E3, 144C2, 6r: “In the name of TRUTH, SCIENCE and PHILOSOPHIA”], denominando-se como “filósofo idealista” [BNP/E3, 144C2, 5v: “idealistic philosopher”]. Para além disto, as referências à megalomania, à dipsomania e a caracterização de si próprio como degenerado superior, mostram que a personalidade de Anon não é alheia ao interesse pela terminologia psiquiátrica. Com efeito, no espólio de Pessoa é possível identificar um conjunto de projectos relativos a obras de filosofia e de psiquiatria que abrangem os mais diversos temas. Os textos intitulados Teoria da Percepção [BNP/E3, 25 – 58r: Theory of Perception] e Sobre os Limites da Ciência [BNP/E3, 28-99v: On the Limits of Science] são apenas dois exemplos desses interesses. A fabricação da personalidade de Alexander Search é de igual forma conforme ao interesse pela filosofia e pela psiquiatria. Num documento do espólio de Pessoa em cujo verso encontramos a rubrica de Alexander Search, lê-se: Milhares de teorias, grotescas, extraordinárias, profundas, sobre o mundo, sobre o homem, sobre todos os problemas que pertencem à metafísica atravessaram o meu espírito. Tive em mim milhares de filosofias das quais – como se fossem reais – nem mesmo duas
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concordariam. Todas as ideias que tive, se tivessem sido escritas, teriam sido um grande investimento na posteridade; mas, devido ao carácter muito peculiar do meu espírito, mal a teoria, a ideia me surgia logo desapareceria, e imediatamente depois de ter desejado ardentemente sentir isso, não me lembrava de nada – absolutamente de nada do que poderia ter existido. Assim a memória, como todas as minhas outras faculdades, predispunha-me a viver num sonho. [Thousands of theories, grotesque, extraordinary, profound, on the world, on man, on all problems that pertain to metaphysics have passed through my mind. I have had in me thousands of philosophies not any two of which – as if they were real – agreed. All the ideas I had if written down had been a great cheque on posterity; but by the very peculiar character of my mind, no sooner did the theory, the idea struck me that it disappeared, and after I ached to feel that one moment after I remembered nothing – absolutely nothing of what it might have been. Thus memory, as all my other faculties predisposed me to live in a dream.]2
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AAVV, Pessoa Inédito, p. 402. [BNP/E3, 15B3 – 12].
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Este testemunho é exemplificativo do interesse de Search pela filosofia. A assinatura que Pessoa nos deixa dessa personalidade no verso do documento onde se encontra redigido este texto mostra-nos que a preocupação com a temática filosófica, mais ainda, com a multiplicidade de filosofias constitui um dos núcleos centrais da fabricação deste pré-heterônimo. Porém, cingindo-nos a este documento, ficaria ainda por responder em que medida Search é uma personalidade animada pela psiquiatria. A preocupação de Search pela psiquiatria viria a encontrar reflexo no caderno intitulado Livro da Transformação ou livro das tarefas (Transformation Book or Book of Tasks) [BNP/E3, 48C-3r], onde Pessoa nos apresenta uma breve descrição biográfica de Search, acompanhada de uma lista de obras correspondentes a tarefas a serem realizadas por esta personalidade. Nessa ficha biográfica lemos: Alexander Search. Nascido a 13 de Junho, 1888, em Lisboa. Tarefa: todas as que não provenham dos outros três. 1. “O Regicídio e a Situação Política em Portugal.” 2. “A Filosofia do Racionalismo.” 3. “A Perturbação Mental de Jesus.” 4. “Delírio.” 5. “Agonia.”
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[Alexander Search. Born June 13th. 1888, at Lisbon. Task: all not the province of the other three. 1. “The Portuguese Regicide and the Political Situation in Portugal.” 2. “The Philosophy of Rationalism.” 3. “The Mental Disorder(s) of Jesus.” 4. “Delirium.” 5. “Agony.”]
Nesta ficha biográfica elaborada por Pessoa encontramos, para além dos dados biográficos de Search, a conjugação de títulos de obras de carácter filosófico e de carácter psiquiátrico a serem atribuídas a esta personalidade literária. O título A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] é representativo de um dos mais significativos interesses filosóficos de Pessoa. Com efeito, ao longo do espólio de Fernando Pessoa existe uma multiplicidade de documentos destinados a um projecto relativo ao sentido e à natureza do racionalismo. Esse projecto passou por diversas fases e teve vários títulos. A Filosofia do Racionalismo [The Philosophy of Rationalism] foi justamente um desses títulos. A Perturbação Mental de Jesus [The Mental Disorder(s) of Jesus] é, por outro lado, representativo do interesse de Pessoa pela psiquiatria. Este título terá sido sugerido pela leitura do livro La Folie de Jesus de Binet-Sanglé [CFP, 1-9], de que consta um exemplar em língua francesa na Biblioteca Particular de Fernando Pessoa.
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No entanto, os títulos referidos na ficha biográfica de Search são apenas alguns dos exemplos de obras filosóficas e psiquiátricas atribuídas a esta personalidade de Pessoa. Ao longo do espólio de Fernando Pessoa existe – com a assinatura deste pré-heterônimo – uma multiplicidade de outras obras de filosofia, como por exemplo A Natureza Interna das Faculdades [BNP/E3, 23 – 18 a 19: The Internal Nature of the Faculties] e o Ensaio sobre a Ideia de Causa [BNP/E3, 154 – 99 a 100: Essay on the Idea of Cause], e de psiquiatria, como é o caso do Ensaio sobre o Impulso [BNP/E3, 15B2 – 73: Essay on Impulse]. Todos os elementos que temos vindo a apresentar permitem-nos concluir que há uma afinidade de fundo entre estas duas personalidades no que respeita à criação de textos filosóficos e psiquiátricos. Contudo, a afinidade entre Anon e Search existe, desde logo, numa etapa anterior à produção dos textos de filosofia e de psiquiatria. Nas listas de leituras presentes no espólio de Pessoa é possível encontrar um ponto de contacto entre estas duas personalidades. No espólio de Fernando Pessoa existe um caderno intitulado “Nº I.1. Charles R. Anon” [BNP/E3, 13A – 2r], que, para além de inúmeros escritos e projectos filosóficos, contém ainda uma extensa lista de leituras que é antecedida pela seguinte indicação: Livros Sobre Ciência e sobre Filosofia. [Books On Science and on Philosophy]
Nesta lista, provavelmente contemporânea das leituras realizadas por Pessoa na Biblioteca Nacional e, por conseguinte, datável de 1906, encontramos justamente a
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intersecção dos interesses relativos à filosofia com as leituras de psiquiatria. Com efeito, para além das referências a livros de filósofos como Aristóteles, Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz, Kant, Schopenhauer, Hegel e Bergson, existe a menção de importantes estudos e autores da ciência psiquiátrica como por exemplo Ribot, Lombroso, Féré e Nordau, assim como inúmeras outras referências literárias relativas ao evolucionismo, de que On the Origin of Species de Darwin [BNP/E3, 2r] constitui um exemplo. Todas estas referências viriam a ser retomadas nas listas de leitura de Search. Com efeito, no espólio de Pessoa encontramos um caderno com a seguinte indicação [BNP/E3, 144H – contracapa]: Alexander Search. Setembro, 1906. Filosofia etc. [Alexander Search. September, 1906. Philosophy etc.]
Este caderno, que é datado de Setembro de 1906 e, portanto, contemporâneo do caderno de Anon, contém uma lista de livros alfabeticamente ordenada de “A” a “Z”, na sua
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maioria relativos à filosofia e à psiquiatria. Nele são retomadas e, em alguns casos, ampliadas as referências presentes no caderno de Anon, relativamente ao qual são acrescentados novos títulos e novos nomes. Por exemplo, no caderno de Anon encontramos as seguintes referências a Lombroso [BNP/E3, 13A, 4r]: √ Lombroso: “L’Homme Criminel.” √ Lombroso: “L’Homme de Génie.” √ Lombroso et Ferrero: “La Femme Criminelle et la Prostituée.” √ Lombroso & Laschi : “Le Crime Politique et les Révolutions.”
Estes títulos são retomados no caderno leituras de Search, como se pode ver pelas referências presentes nesse caderno [BNP/E3, 144H – 20r e 20v]: 4. Lombroso: “L’Homme Criminel.” (2vol) 4. [Lombroso] et Ferrero: “La Femme Criminelle et la Prostituée.” 4. [Lombroso] et Laschi : “Le crime politique et les révolutions” (2 vol.) 4. “L’Homme de Génie.”
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A estas referências Pessoa acrescenta, no caderno de Search os seguintes títulos de Lombroso [BNP/E3, 144H – 20v]: 4. “L’Anthropologie criminelle et ses récents progrès.” 4. “Nouvelles recherches d’anthropologie criminelle et de psychiatrie.” 4. “Applications de l’anthropologie criminelle.”
As menções a Lombroso constituem apenas um exemplo do tipo de referências que são retomadas do Caderno de Anon e ampliadas no de Search. Muitos outros poderiam ser referidos. Assim, todos estes aspectos permitem-nos concluir que a fabricação de Charles Robert Anon e de Alexander Search comungam de um fundo comum, de que a produção filosófica e psiquiátrica constitui uma evidência, sendo, portanto, duas personalidades cujo conhecimento da prosa contribuirá para a ampliação do estudo de um Pessoa ainda por conhecer.
Referências bibliográficas LOPES, Teresa Rita (org). Pessoa Inédito. Lisboa: Livros Horizonte, 1993. LOPES, Teresa Rita. Pessoa por Conhecer. Volumes I e II. Lisboa: Editorial Estampa, 1990. PESSOA, Fernando. O Marinheiro. Edição de Cláudia Souza. Lisboa: Ática, 2010. RIBEIRO, Nuno. Fernando Pessoa e Nietzsche: o pensamento da pluralidade. Lisboa: Verbo, 2011.
Anexos [Anexo A] On the limits of science3 [BNP/E3-28 – 99v] C. R. Anon
3 Publicado pela primeira vez em: Teresa Rita Lopes, Pessoa por Conhecer, Vol. II. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 181-182.
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On the limits of science. Empirical investigation can lead to nothing, for it is based upon an illusion – as a coherent illusion, but none the less on an illusion. When I say can lead to nothing, I mean it cannot be made the basis of a philosophic system. Idea of immortal life not horrible. It would be horrible if it were immortal life, of body and mind together. Immortal life of the soul alone is not horrible but natural and pleasing to it.4 [Anexo B] Theory of Perception [BNP/E3-25-58r] Theory of Perception. Let5 us consider, say, my perception of a table, and let us attempt to find what is the process of my thought in the perception. We find there to be the action of our mind: Previously, I know what a table is; this idea is in me, rooted. When I see this6 thing before me, my conception of a table passes out of me into the object, which is similar, of a generality, to it. My thought returns to me bearing with itself a articularized idea of a table – the table that I see before me. Thus thought, after passing through the object7 binds object to itself, as a particularization of thought. C. R. Anon.
4 <I am in receipt of your letter of the 10th instant for which I thank you very much.> Attention. __________ Letter to Mr. O’Grady. Letter to R. P. A. Letter to Prior dos Martyres. Letter to Mr. <Belcher> Helcher. 5 <It> Let. 6 see <an> this. 7 itself <the conce> [m a] particularized idea of a table – the table that I see before me. Thus thought, after passing through the <cat> <other> object.
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Cláudia Souza é doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É investigadora do Instituto de Estudos sobre o Modernismo da Universidade Nova de Lisboa. Editora do livro O Marinheiro de Fernando Pessoa com inéditos do espólio pessoano (Ática, 2010). Tem muitos artigos publicados sobre aspectos relevantes do espólio de Fernando Pessoa. Organizou em Maio de 2011 o “Colóquio Internacional Nietzsche, Pessoa e Freud” ao lado de Eduardo Lourenço, Paulo Borges, Nuno Ribeiro, entre outros. E-mail: <claudiasouzzza@hotmail.com>.
** Nuno Ribeiro é actualmente responsável pela pesquisa do espólio filosófico de Fernando Pessoa. Autor do livro Fernando Pessoa e Nietzsche: o pensamento da pluralidade (Verbo, 2011) e editor do livro Canções de António Botto (Guimarães, 2010) que contam com documentos inéditos do espólio pessoano. Publicou diversos artigos e capítulos de livro sobre o espólio filosófico de Fernando Pessoa. É investigador do Instituto de Estudos sobre o Modernismo da Universidade Nova de Lisboa. Organizou em Maio de 2011 o “Colóquio Internacional Nietzsche, Pessoa e Freud” ao lado de Eduardo Lourenço, Paulo Borges, Cláudia Souza, entre outros. E-mail: <nuno.f.ribeiro@sapo.pt>.
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Heidegger, Freud e uma visita ao humanismo VITOR ORQUIZA DE CARVALHO
Resumo: Neste artigo estudamos aspectos do humanismo a partir das ideias de Heidegger e Freud. Procuramos apontar algumas implicações decorrentes de uma interpretação do pensamento desses autores acerca do movimento cultural em questão. O nosso exame permitiu dar significado a uma ressonância entre as ideias desses dois pensadores, o que nos levou a considerá-los como dois daqueles que não colaboraram com o projeto humanista de tentativa de doutrinação do espírito humano. Ao final, indicamos uma aproximação entre Heidegger e Freud no sentido de percebê-los como autores que enxergaram além da pretensão humanista de desvelar verdades sem se preocupar com as limitações humanas. PALAVRAS-CHAVE: HUMANISMO, HEIDEGGER, FREUD Heidegger, Freud and a visit to humanism Abstract: In this article we study aspects of humanism based on the ideas of Heidegger and Freud. We attempt to point out some implications of an interpretation of the thought of these authors about the cultural movement in question. Our examination allowed us to give meaning to a resonance between the ideas of these two thinkers, which led us to consider them as two of those who did not cooperate with the humanist project of attempted indoctrination of the human spirit. At the end, we indicate a connection between Heidegger and Freud in order to perceive them as authors who saw beyond the humanist claim to uncover truths without worrying about the limitations of mankind. KEYWORDS: HUMANISM, HEIDEGGER, FREUD
Introdução Neste artigo estudamos alguns aspectos do humanismo a partir das idéias de dois grandes pensadores da atualidade: Martin Heidegger e Sigmund Freud. Sem nos determos em seus impasses teóricos, procuramos apontar algumas implicações decorrentes de uma
interpretação do pensamento desses autores acerca do movimento cultural em questão. O nosso exame permitiu dar significado a uma ressonância entre as idéias desses dois pensadores, o que nos levou a considerá-los como dois daqueles que não colaboraram com o projeto humanista de tentativa de doutrinação do espírito humano. Buscamos examinar a Carta sobre o humanismo (1947/1991) de Heidegger e tentamos delinear a sua crítica ao assunto. Apontamos as suas razões para considerar esse projeto como algo sem sentido e apresentamos o seu caminho de desconstrução das intenções dos humanistas. Depois dessa retomada, procuramos refletir acerca da relação entre Freud e o humanismo. A partir de um artigo de Erich Fromm, em que ele afirma que a psicanálise é um discurso do humanismo, buscamos refletir se as intenções de Freud realmente condizem com os ideais pressupostos por essa doutrina. Ao final, indicamos uma aproximação entre Heidegger e Freud no sentido de percebê-los como autores que enxergaram além da pretensão humanista de desvelar verdades sem se preocupar com as limitações do homem.
Heidegger sobre o humanismo: o homem perdido na casa do ser? O que levou Heidegger, um dos maiores pensadores do último século, a participar de um programa tão nefasto como o nazismo? Imaginamos que esta pergunta deve ser feita pela maioria daqueles que se arriscam a compreender a profundidade do pensamento desse filósofo. Ora, não por acaso, já que se trata do homem que fez ressurgir a pergunta sobre o ser, que revisitou os gregos para revelar o perigo da técnica e que denunciou que a Filosofia poderia estar encaminhada ao seu fim. Mas, qualquer que seja a resposta para essa pergunta, o fato é que a sua adesão àquela ideologia aconteceu. A sua aventura política, entretanto, não escapou de uma punição, visto que, após a guerra, ele foi proibido de lecionar nas universidades, o que não o impediu, supostamente, de disseminar suas idéias por outros meios, como teria ocorrido quando, em 1947, respondeu a carta despretensiosa de um amigo francês, Jean Beaufret. A mensagem chegou a Heidegger acompanhada da seguinte pergunta: “Comment redonner un sens au mot humanisme?” Em sua resposta, o filósofo não demora a dizer que aquilo que o mundo teria visto nas últimas décadas, período de duas guerras devastadoras, seria uma demonstração do que o humanismo poderia oferecer, e, assim, a seu ver não haveria como devolver sentido a uma palavra que nunca teria recebido um sentido verdadeiro. Na carta em questão, portanto, a tarefa de Heidegger é a de pensar um sentido apropriado que possa corresponder com aquilo que exige àquilo que exige palavra humanismo. Em uma tentativa de exposição deste significado, procuramos aqui reunir alguns aspectos do caminho traçado por Heidegger naquela carta. Nesta, o pensamento é apresentado como o modo pelo qual o homem leva à plenitude a relação entre o ser e a sua essência. Também no pensamento se encontra o acesso
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à linguagem, que é reconhecida como a casa do ser. Logo, o pensamento e linguagem tornam possível a aproximação ao ser. Mas isto não basta para que o homem consuma1 o ser, ainda que este e aquele sejam vizinhos na mesma morada. São os poetas e os pensadores que deveriam guardar essa habitação e cuidar do ser, no entanto, Heidegger diz que foi a antagonista “Metafísica que se apoderou, muito cedo, da interpretação da linguagem, na forma de “Lógica” e “Gramática”” (p. 1, 1947/1991). A consequência desse apossamento, que teve o seu início com Aristóteles e Platão, foi que o pensar escapou das mãos dos seus guardas e foi aprisionado pelo τέχνη (tékhne), pelo pensamento técnico que estaria “no serviço do fazer e do operar” (Idem). Porque o pensamento se tornou um associado da técnica, a Filosofia erroneamente se cegou ao se permitir a se tornar uma aspirante à Ciência, de tal modo que perdeu a sua essência quando não percebeu que, paulatinamente, a Lógica a infiltrava. Por isso, o pensamento se afastou de sua tarefa originária, a saber, o pensar acerca do ser: Desde então [quando o pensamento se associou à técnica], a “Filosofia” está constantemente na contingência de justificar a sua existência em face das “Ciências”. Ela crê que isto se realizaria da maneira mais segura, elevando-se ela mesma à condição de uma ciência. Este empenho, porém, é o abandono da essência do pensar. A filosofia é perseguida pelo temor de perder em prestigio e importância, se não for ciência. O não ser ciência é considerado uma deficiência que é identificada com a falta de cientificidade. Na interpretação técnica do pensar, o ser é abandonado como o elemento do pensar. A “Lógica” é a sanção desta interpretação que começa com a Sofística e Platão. Um tal julgamento assemelha-se a um procedimento que procura avaliar a natureza e as faculdades do peixe, sobre a sua capacidade de viver em terra seca (HEIDEGGER, p. 2, 1947/1991).
O problema da perda da essência do pensar por este viés é que se antes da irrupção do pensamento técnico já não era uma tarefa simples, agora a possibilidade de “escutar o ser” é muito menor. De tal modo que o pensamento não é mais um aliado da Filosofia para abrigar o ser e permitir a sua aproximação do homem. Ao contrário, ao perder a sua essência, a Filosofia, assim como as Ciências, se tornou mais uma atividade do homem: “Não se pensa mais; ocupamo-nos de “Filosofia”” (HEIDEGGER, p. 4, 1947/1991). Mais uma atividade que, não diferente das demais, procura se exibir para ser vista e ouvida pelo público e que procura a validade de suas verdades na opinião do público. Isto, alerta 1 Consumar significa desdobrar alguma coisa até à plenitude de sua essência; levá-la à plenitude, producere (HEIDEGGER, p. 01, 1947/1991).
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Heidegger, ocorre pela adoção do radicalismo contido no sufixo “ismo”, o qual é essencial para que seja promovida “a ditadura da opinião pública” (Idem). Logo, como a linguagem é a casa do ser, entende-se que essa não quer2 mais proximidade com o seu proprietário, pois se modificou a favor do pensamento impregnado pelo τέχνη e pôs-se a operar a favor daquela ditadura. O apelo da opinião pública atingiu a Filosofia e ela não hesitou em responder, uma vez que se permitiu a se tornar uma constituinte da Metafísica moderna ao ser posta como um “instrumento de dominação sobre o ente” (HEIDEGGER, p. 6, 1947/1991). Deste modo, ao invés de ser reveladora da verdade do ser, a linguagem se associou à necessidade explicativa de encontrar causas e efeitos. Seria até possível dizer que esta Filosofia explicativa engana o homem, pois, por meio dela, ele passa a pensar que está na proximidade do ser quando, na verdade, ele não estaria apto a escutá-lo mesmo que se a ele fosse devolvida a essência da linguagem: Caso o homem encontre, alguma vez, o caminho para a proximidade do ser, então deve antes aprender a existir no inefável. Terá que reconhecer, de maneira igual, tanto a sedução pela opinião pública, quanto a impotência do que é privado. Antes de falar, o homem deve novamente escutar, primeiro, o apelo do ser, sob o risco de, dócil a este apelo, pouco ou raramente algo que resta a dizer. Somente assim será devolvida à palavra o valor da sua essência e o homem será agraciado com a devolução da casa para habitar a verdade do ser (HEIDEGGER, p. 6, 1947/1991).
Por meio desse pano de fundo, Heidegger pode afrontar o entendimento acerca do humanismo. Diz-nos ele que, em última instância, o humanismo é “meditar e cuidar para que o homem seja humano e não desumano, inumano, isto é, situado fora da sua essência” (p. 6, 1947/1991) e que “todo o humanismo se funda, ou numa Metafísica ou ele mesmo se postula como fundamento de uma tal Metafísica” (HEIDEGGER, p. 8, 1947/1991). Mas a Metafísica aqui não é compreendida como um juízo fora do espaço e do tempo, como o quis Kant, e sim como o movimento do homem de se arraigar em uma apropriação do ente para se relacionar com o ser – o que acaba por afastar a verdade deste. Em uma perspectiva histórica, o filósofo diz que a origem dessa expressão pode ser remontada aos romanos, os quais incorporaram a concepção grega de παιδεία (Paidéia) e a traduziram como humanitas. Os romanos entendiam que “o homo humanus contrapõese ao homo barbarus” (HEIDEGGER, p. 7, 1947/1991), e, por isso, o participante do humanismo seria aquele instruído nas boas artes - o educado. Já no humanismo ressurgido na 2 Para Heidegger, “querer” significa: “Encarregar-se de uma “coisa” ou de uma “pessoa” na sua essência significa: amá-las, querê-las. Este querer significa, quando pensado mais originariamente: dom da essência” (HEIDEGGER, p. 4, 1947/1991).
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Renascença, reconhecido no movimento cultural dos séculos XIV e XV, não encontraríamos diferenças em relação ao do período romano, com a ressalva de que neste a oposição não seria em relação aos bárbaros, mas aos góticos da Idade Média (HEIDEGGER, 1947/1991). Assim, em geral, historicamente a essência do homem residiria no estudo do humano – “studium humanitatis” –, ou seja, no redescobrimento dos gregos para a educação e diferenciação do que não é humano. Além do histórico, Heidegger destaca outra forma de humanismo, no qual “(…) a humanitas do homo humanus é determinada a partir do ponto de vista de uma interpretação fixa da natureza, da história, do mundo, do fundamento do mundo, isto é, do ponto de vista do ente na sua totalidade” (p. 8, 1947/1991). Sendo este igualmente um humanismo metafísico, o filósofo o ilustra ao trazer o modo pelo qual a essência do homem é fixada e determinada em três de seus discursos expressivos, a saber: no Marxismo, no Cristianismo e no Existencialismo. De modo resumido: no primeiro, a essencia do homem é encontrada e fixada no “homem social”. Heidegger diz que, para Marx, “é na “sociedade” que a “natureza” do homem, isto é, a totalidade das “suas necessidades naturais” (alimentação, vestuário, reprodução, subsistencia econômica) é equitativamente equilibrada” (p. 7, 1947/1991). No Cristianismo, a essencia do homem estaria fixada em sua própria diferenciação com Deus (Deitas), já que “ele é, sob o ponto de vista da história da salvação, homem como “filho de Deus”, que, em Cristo, escuta e responde ao apelo do Pai” (Idem). Quanto ao Existencialismo, o qual também não escapa de ser considerado como um discurso metafísico, o filósofo diz que a concepção de existencia de Sartre não estaria de acordo com aquela que ele expressa em seu pensamento, uma vez que ele a entende como actualitas, o que quer dizer que o seu significado remete à “realidade efetiva” e não propriamente à “verdade do ser”. A escolha por esses três discursos não teria ocorrido ao acaso, especialmente o último, uma vez que Sartre, na publicação do seu livro O ser e o nada, em 1943, evidencia que suas idéias estavam gradualmente sendo associadas àquelas do pensamento de Heidegger. Este, por sua vez, aproveitou a correspondência em questão para deixar claro que, quando falou em ex-sistencia, em seu célebre Ser e tempo (1927), a sua intenção não era a de se aproximar do pensamento metafísico que acompanhava o termo desde a Idade Média. A sua proposta, ao contrário, era a de colocar a ex-sistencia como “o estar postado na clareira do ser” (HEIDEGGER, p. 10, 1947/1991), e isto quer dizer que a sua Ontologia miraria a compreensão do ser como distinto do ente. A ex-sistencia, pensada extaticamente, não coincide, nem quanto ao conteúdo, nem quanto à forma, com a existentia. Ex-sistencia significa, sob o ponto de vista do seu conteúdo, estar exposto na verdade do ser. Existentia (existence) quer, ao contrário, dizer actualitas, realidade efetiva, em oposição com a pura possibilidade da idéia. Ex-sistencia nomeia a determinação daquilo que o homem é
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no destino da verdade. Existentia permanece o nome para a efetivação daquilo que uma coisa é, enquanto se manifesta na sua ideia” (HEIDEGGER, p. 13, 1947/1991).
Não obstante, outro aspecto ressaltado em relação à identidade dos discursos do humanismo é que nestes há a pressuposição da essência do homem como “animal rationale”.3 Isto quer dizer que determinam esta essência apenas a partir da relação do homem com o animal e não buscam o que há de singular em sua humanitas, como supostamente estaria prescrito no conceito de humanismo. O equívoco desses discursos residiria em sua confiança de que seria possível revelar o ser em suas interpretações do homem a partir dos entes, ao passo que o resultado disto seria precisamente o contrário: um afastamento da verdade do ser. Não quer dizer que Heidegger recuse inteiramente a relação entre homem e animal, mas seu argumento é o de que, quando o humanismo encerra a essência do primeiro em sua animalidade, as suas investigações não ultrapassam os limites da Metafísica, e quando esta busca apreender a essência de algo, ocupa-se em dizer o que isto ou aquilo é. Porém, o que o homem é não pode ser resumido à sua organicidade, mas o que ele é reside em sua ex-sistência, em sua distinção de pensar e habitar na casa do ser – e é por isso que ele tem um papel central na compreensão da verdade do ser.4 Deste modo, a apreciação de Heidegger indica que no humanismo o homem não foi capaz de capturar a sua essência e, por isso, esse projeto teria fracassado. A sua carta, no entanto, não é concluída sem uma reflexão para apontar as possibilidades de um humanismo que fosse guiado por preceitos distintos daqueles que teriam sido malsucedidos. Claro que nesse novo humanismo a superação do pensamento técnico e, sobretudo, da Metafísica seria indispensável, mas o desafio central estaria no estabelecimento da relação entre o homem e o ser. No humanismo metafísico o homem é reconhecido como o “senhor dos entes”, já em um humanismo que procuraria a essência do homem em sua humanitas, ou seja, no local que reside sua verdadeira essência, Heidegger diz que o homem se tornaria o “pastor do ser”. Teria o cuidar do ser como a sua ocupação e assim assumir-se-ia na sua “condiçãode-ser-jogado” na clareira da verdade do ser para diminuir a distância paradoxal que separa o ser do homem. O paradoxo dessa relação se daria porque, embora o homem seja o mais próximo do ser, ele enxerga apenas os entes: O ser é mais longínquo que qualquer ente e está mais próximo do homem que qualquer ente, seja este uma rocha, um animal, uma obra de arte, uma máquina, seja um anjo de Deus. O ser é o mais 3 O homem é tomado como animal rationale. Esta determinação não é apenas a tradução latina da expressão grega ζφου λόγου έχου, mas uma interpretação metafísica” (HEIDEGGER, p. 9, 1947/1991). 4 “A linguagem é a casa do ser; nela morando o homem ex-siste enquanto pertence à verdade do ser, protegendo-a” (HEIDEGGER, p. 18, 1947/1991).
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próximo. E, contudo, a proximidade permanece, para o homem, a mais distante. O homem atém-se primeiro e para sempre apenas ao ente (HEIDEGGER, p. 16, 1947/1991).
Mas, diante desse paradoxo: como poderia o homem se aproximar do ser? Como seria possível superar a compulsão de procurar suas verdades nos entes? E, ainda, teria como superar a invasão da τέχνη e da Metafísica, se por meio desses por tanto tempo o homem julgou-se seguro e amparado? Ora, caso optássemos por seguir as diretrizes que provavelmente estariam nas respostas de Heidegger, então não nos surpreenderíamos, visto que, desde o início de sua carta, o filósofo aponta o caminho: o pensar, o meditar. Dissemos, amiúde, que no pensamento o homem se encontra com a linguagem e, assim, habita a casa do ser.5 Seria somente no âmbito do pensamento que o homem poderia se livrar de seu vício de entificar o mundo, e, quando sóbrio, poderia ir ao encontro de sua essência, ou seja, de sua ex-sistencia. Nesse sentido, não seria na pesquisa – seja ela teórica ou prática –, na mensuração científica, ou na práxis de modo geral que o homem conseguiria revelar a verdade do ser. Haveria sim uma ação para esse propósito, mas o agir desta ação não consumiria nenhum tipo de energia externa, porque este agir seria precisamente o pensar.6 Portanto, na visão de Heidegger, o verdadeiro humanismo só seria possível se o homem fosse capaz de se desapegar daquilo que ele mais parece se orgulhar. Desapegar-se de sua Ciência, de sua Filosofia e de todo o conhecimento que por muito tempo confiou como verdadeiro. O humanismo metafísico teve a chance de mostrar a as suas limitações, cabe agora ao homem do futuro se apropriar do pensamento do futuro, o qual tem a inadiável condição de perguntar pelo ser.
Freud e o humanismo: o Eu súdito em sua residência? Fromm inicia o artigo Humanism and Psychoanalysis (1963/2011) por meio de um breve panorama sobre como o humanismo foi concebido historicamente, desde o cristianismo até o pensamento de filósofos da modernidade – como Leibniz e Spinoza. Faz isso para em seguida afirmar que a Psicanálise de Freud é um discurso do humanismo, mas o apreço que tem por esta palavra não parece ser o mesmo que vimos na carta de Heidegger: 5 O próprio Heidegger percebe que esta idéia se torna repetitiva em seu texto, mas isto não seria por acaso: “A única tarefa do pensar é trazer à linguagem, sempre novamente, este advento do ser que permanece e em seu permanecer espera pelo homem. Por isso, os pensadores essenciais dizem sempre o mesmo. Isto, porém, não quer dizer: o igual. Não há dúvida que eles só o dizem a quem se empenha em meditar sobre eles” (HEIDEGGER, 1947/1991, p. 44). 6 “O pensar atenta para a clareira do ser, enquanto deposita o seu dizer do ser na linguagem como habitação da exsistência. Deste modo, o pensar é um agir. Mas é uma agir que, ao mesmo tempo, supera todas as práxis, não pela grandeza dos seus resultados nem pelas consequências da sua atuação, mas através do mínimo do seu consumar destituído de sucesso” (HEIDEGGER, 1947/1991, p. 42).
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O pensamento mais importante e fundamental do humanismo é a idéia de que a raça humana – humanidade (humanitas) – não é uma abstração, mas a realidade: que em cada indivíduo toda humanidade está contida; que cada homem é todo homem; que cada indivíduo representa toda humanidade e, por isso, todos os homens são iguais não em suas contribuições [gifts] e talentos, mas em suas qualidades humanas básicas (FROMM, p. 1, 1963/2011, tradução nossa).
Em sua perspectiva, no humanismo o homem teria encontrado a igualdade como a sua característica mais fundamental e o projeto não teria fracassado porque teria encontrado a “fé no homem; em sua possibilidade de desenvolver estágios mais elevados; na unidade da raça humana; na tolerância e na paz; e na razão e no amor como as forças que permitem ao homem se auto-realizar para se tornar o que ele pode ser” (FROMM, p. 1, 1963/2011, tradução nossa). No mesmo rumo, a Psicanálise seria humanista porque, por meio dela, Freud teria contribuído ao entendimento do homem quando permitiu que este fosse enxergado em sua totalidade, i.e, ao englobar tanto a sua racionalidade, quanto a irracionalidade: Em primeiro lugar, não se pode esquecer que Freud considerou a psicanálise não apenas como uma terapia para a cura das neuroses, ela era também uma teoria sobre o homem; e, além disso, era um movimento de reforma aos moldes do espírito do humanismo Iluminista, com o objetivo de capacitar o homem para controlar a irracionalidade de sua natureza por meio da razão e da autoconsciência [self-awareness]. Este objetivo Freud expressou por meio das palavras “Onde era Id, há de ser Ego” [Where there is Id there shall be Ego] (FROMM, p. 5, 1963/2011, tradução nossa).
Mas a “questão central” que permitiria pensar a Psicanálise desse modo seria encontrada no seu método de “desvelar [uncovering] o inconsciente” (FROMM, p. 5, 1963/2011, tradução nossa). Como Freud encontrou uma maneira de penetrar as defesas e tratar as neuroses, Fromm diz que ele conseguiu também perceber o papel da repressão no estabelecimento da vida social. Essa seria fundamental para que os indivíduos conseguissem lidar com os tabus sociais e fossem aptos a aceitarem a discrepância entre o interesse de alguns membros (a elite) da sociedade e os da grande massa. Entretanto, já próximo do final de seu texto, Fromm deixa entender que Freud teria sido limitado ao pensar que o homem somente sucumbiria à repressão porque possui internalizado o medo do pai e da ameaça de castração. Para Fromm, ao contrário, haveria um medo de “caráter mais profundo e social: o homem não tem medo de nada mais do que cair no ostracismo, estar isolado, sozinho. Na verdade, o isolamento completo e incondicional é equivalente
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à insanidade” (FROMM, p. 6, 1963/2011, tradução nossa). Portanto, em seus preceitos, Fromm supostamente diria que a Psicanálise não só seria uma disciplina do humanismo, como ela poderia ser ainda mais se as suas contribuições pudessem ir além do indivíduo e procurassem pensar o âmbito social. A nosso ver, não seria complicado mostrar que Freud apresenta a Psicanálise como uma disciplina na qual o homem encontraria auxílio para lidar com sua vida na civilização.7 Seria possível revisitarmos seus textos para procurarmos fazer com que sobressaíssem aqueles momentos em que esse “otimismo” é revelado. Mas, nos parece que esse lado confiante não é o único que transparece em seus escritos, e se apenas este for destacado, corremos o risco de ocultar outra notória interpretação de sua visão de homem. Por julgarmos que Freud não quis oferecer uma forma de salvação por meio da Psicanálise, tentaremos indicar que, embora seja evidente a sua proximidade com o humanismo, existe outra perspectiva em sua obra que deve ser relembrada e que poderia até denunciar um ponto de ressonância com os argumentos vistos na crítica de Heidegger. Para tanto, inicialmente salientamos a frase de Freud que Fromm utiliza para retratar o objetivo humanista do primeiro: “Onde era Id, há de ser Eu”.8 Como se sabe, esta frase foi utilizada como alicerce pela Psicologia do Ego norte-americana, em que os seus autores aproveitaram o que Freud diz em seu texto A dissecação da personalidade psíquica (1933b/2010) para levarem às ultimas consequências o argumento de que: o propósito da Psicanálise seria o de fortalecer o Eu e afastá-lo dos instintos do Id.9 O repertório da técnica dessa Psicologia, consequentemente, se fundou na idéia de que a ação do terapeuta deveria mirar a dominação do Id pelo Eu. Ora, ao relermos o contexto em que Freud pronuncia tal frase, parece que o pensamento dessa Psicologia faz sentido: E bem podemos imaginar que certas práticas místicas tenham êxito em alterar as relações normais entre os setores da psique, de modo que a percepção, por exemplo, seja capaz de apreender coisas nas profundezas do Eu e do Id que lhe são inacessíveis de outra forma. Pode-se tranquilamente duvidar, no entanto, que essa via conduza às verdade últimas das quais se espera a salvação. Mas admitimos que os esforços terapêuticos da psicanálise adotaram uma abordagem semelhante. Sua intenção é, realmente fortalecer o Eu, torná-lo mais independente do Super-eu, ampliar o seu âmbito de percepção e melhorar sua organização, de maneira que possa
7 Em vários de seus textos ele mostra essas idéias, entre eles podemos destacar O mal-estar na civilização (1930) e Acerca de uma visão de mundo (1933a/2010). 8 Reproduzimos aqui o modo pelo qual Paulo César de Souza a traduziu no Volume 18 (2010) de sua nova tradução das obras completas de Freud. 9 Optamos por traduzir os conceitos freudianos do mesmo modo que fez este tradutor, ou seja: Trieb por instinto, ao invés de pulsão; Es por Id, ao invés de Isso; Ich por Eu, ao invés de ego; e assim por diante.
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apropriar-se de novas parcelas do Id. Onde era Id, há de ser Eu (FREUD, 1933b/2010, p. 223, grifos nossos).
Ainda que pareça que neste trecho Freud apresente algo que possa ser entendido como uma espécie de solução cabal para o conflito psíquico, conjecturamos que interpretá-lo desse modo talvez possa não corresponder com a intenção do autor. É como se os norte-americanos da Psicologia do Ego, juntamente com Fromm, fizessem uma leitura superlativa daquilo que Freud provavelmente tentou relativizar. Em alemão, a frase diz: “Wo es war, Soll Ich werden“. A gramática nos diz que o “Soll” provém do verbo sollen e é equivalente ao verbo dever no português (e shall no inglês, como utilizou Fromm para traduzi-lo). No caso da frase, o termo é apresentado na forma de subjuntivo,10 o que torna o seu sentido mais próximo de uma suposição, ou de uma especulação, do que de uma obrigação ou necessidade. Então, ao invés da passagem ser compreendida como uma possibilidade – em que o Eu deveria se apropriar do Id, mas não há como sabermos se de fato conseguiria –, nos parece que é interpretada como um comprometimento inevitável desta apropriação. Pensamos que se Freud quisesse ter obtido esse segundo sentido provavelmente teria dito: “Wo es war, Müss Ich werden”, porque o “Müss”, que no português também significa dever, carregaria a entonação imperativa que permitiria pensar a Psicanálise como um tipo de técnica infalível do homem. É verdade que na mesma citação Freud diz que a “intenção” da Psicanálise é a de fortalecer o Eu, mas não concordamos que sua escolha por essa palavra tenha sido uma tentativa de profetizar que o Eu fatalmente domesticaria os instintos do Id.11 Inclusive, podemos ver no mesmo texto que ele reconhece que as exigências ao Eu lhe impõem uma vida complicada e que muitas vezes a sua fraqueza se torna visível diante de suas tarefas: Desse modo, impelido pelo Id, constrangido pelo Super-eu, rechaçado pela realidade, o Eu luta para levar a cabo sua tarefa econômica de estabelecer a harmonia entre as forças e influências que atuam nele e sobre ele, e compreendemos por que tantas vezes não podemos suprimir a exclamação: “A vida não é fácil!” (FREUD, p. 221, 1933b/2010).
Nesse sentido, ao dizer que “o desenvolvimento ideal do homem como um ser racional e independente era a mira do humanismo freudiano” (p. 5, 1963/2011, tradução nossa), 10 Na gramática do alemão esse modo de subjuntivo é conhecido como Konjunktiv II, o qual: “Expressa um ponto de vista, dúvida, medo, esperança – em resumo, tudo aquilo que não for um fato. Pode também ser considerado como a contrapartida do modo indicativo” (GRAVES, p. 111, 1990, tradução nossa). 11 Em O mal-estar na civilização (1930/2010), o próprio autor nos diz que esta não seria a sua vontade: “Assim me falta o ânimo de apresentar-me aos semelhantes como um profeta, e me curvo à sua recriminação de que não sou capaz de lhes oferecer consolo, pois no fundo é isso que exigem todos, tanto os mais veementes revolucionários como os mais piedosos crentes, de forma igualmente apaixonada” (FREUD, p. 121).
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Fromm parece ocultar um dos argumentos mais expressivos do pai da Psicanálise: “o Eu não é o senhor em sua própria casa” (FREUD, 1917/2001, p. 135, tradução nossa). Além de uma conclusão metapsicológica, pensamos que essa frase implica no entendimento de que há uma desordem na vida mental e que, por isso, o homem não é tão poderoso como desejaria. Por meio da cisão do psiquismo, a Psicanálise descentra o sujeito e dá um lugar à irracionalidade, corroborando assim a idéia de que o homem sempre se encontrará em um campo de batalha contra seus instintos. Mas isso não quer dizer que Freud tenha se arriscado a dar um palpite acerca do resultado final desse conflito, uma vez que ele próprio reconhece a desvantagem que o Eu deve suportar. Ao olharmos para a concepção de mente erigida por Freud – principalmente a que ficou conhecida como segunda tópica –,12 percebemos que, a seu ver, o homem não tem um lugar privilegiado em termos de vida psíquica. Ainda que seja evidente que Freud considera a Psicanálise como um recurso para lidar com os adversários do Eu, não nos parece que ele aceitaria a idéia de que o homem poderia radicalizar-se para superar as condições impostas por sua natureza. Pensamos que esse tipo de projeto, Freud reconheceria como uma ilusão: Diz-se que em certas regiões felizes da Terra, onde a natureza oferece prodigamente tudo o que os homens precisam, existem povos que têm uma vida de mansidão, em que são desconhecidas a coerção e a agressividade. Tenho dificuldade em crer nisso, gostaria de saber mais a respeito dessas criaturas felizes. Os bolchevistas também esperam fazer desaparecer a agressividade humana, garantido a satisfação da necessidade materiais e, de resto, instaurando a igualdade entre os membros da comunidade. Considero isso uma ilusão (FREUD, p. 430, 1932/2010).
Lembramos, então, que o estatuto do conceito de ilusão é fundamentado na Psicanálise a partir da seguinte constatação: porque o homem não tem condição psíquica para lidar com a idéia de que é desamparado e de que a sua vida é transitória, procura alternativas que não condizem com a realidade para realizar o seu desejo de amparo e de imortalidade. Como a satisfação desses desejos não é possível, Freud diz que o futuro dessa e de qualquer ilusão é fatalmente a desilusão (FREUD, 1927/2001). A Arte, a Filosofia e principalmente a Religião são todas interpretadas por ele como tentativas de sublimação de desejos narcísicos e infantis, em que nelas o homem procura conhecimentos que não condizem com a realidade. Diferente de Heidegger, no entanto, Freud demonstra grande estima à Ciência, isso porque, segundo ele, essa seria a única que poderia dar ao homem 12 Na qual, a partir do texto Más allá del principio de placer (1920/2001), Freud divide o aparelho psíquico em três instâncias: Eu, Super-eu e Id.
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conhecimentos que são passiveis de verificação no mundo real. Entretanto, vale dizer que, apesar de sua confiança na Ciência, em alguns textos do final de sua obra, como Provenir de una ilusión (1927/2001) e O mal-estar na civilização (1930/2010), Freud deixa claro que, qualquer que seja o projeto que o homem se envolva, incluindo a Ciência, a sua salvação não está garantida. Com isso em mente, o desenrolar do raciocínio que perpassa a exposição das idéias feita nesse tópico nos leva a cogitar que, além de não ter intencionado participar do humanismo com a Psicanálise, Freud possivelmente consideraria esse projeto como mais uma de nossas ilusões.
Considerações finais Apesar de Heidegger não mencionar o nome de Freud na Carta sobre o humanismo (1947/1991), poderíamos imaginar que, caso fosse consultado, o filósofo não o absolveria de suas críticas e possivelmente iria dizer que a Psicanálise seria mais uma representante do humanismo metafísico. O que permite esta suposição é a releitura de seus Zollikon Seminars (2001/1987),13 nos quais Heidegger se posiciona decisivamente contra às idéias de Freud. Grosso modo, mostra-se decepcionado com este por ter pensado que a Ciência seria a única que poderia abarcar a mente humana, por ter pensado que seria possível explicar o homem por meio dos instintos e que, por meio destes, poderia explicar a relação entre mente e corpo. Além disso, o acusa de ter sido cartesiano por ter adotado a cisão sujeito-objeto nas suas explicações, e neo-kantiano por ter pensado que a sua metapsicologia daria conta de explicar aquilo que se situa fora da consciência (HEIDEGGER, 1987/2001). Portanto, essas críticas, somadas a outras, levam o filósofo à seguinte conclusão: A abordagem básica de Freud [explicação genético-causal] está longe de [providenciar] uma direção fenomenológica. Ela nega especificamente a determinar o caráter de ser dos seres humanos [Seinscharakter], [o caráter] do ser humano que radicalmente articula o seu ser humano com a linguagem (HEIDEGGER, p. 282, 1987/2001, tradução nossa).14
Assim, à luz das idéias de Heidegger, Freud seria mais um que não se preocupou em perguntar pelo ser e que se escorou no pensamento dos entes para “explicar” o homem. Isto já parece o suficiente para especularmos que, na visão do filósofo, o psicanalista seria mais um humanista; e até poderíamos estudar quais dos critérios da Carta… (1947/1991) seriam 13 Como se sabe, entre 1959 e 1969, Heidegger proferiu uma série de seminários para psiquiatras suíços na casa de seu amigo Medard Boss. Nesses, abordou temas da psicologia, psicoterapia e psiquiatria para discuti-los a partir de sua própria filosofia. 14 As explicações entre colchetes são dos tradutores para o inglês.
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mais adequados para ajustar as idéias de Freud, mas este exercício não nos parece necessário para sustentarmos esse nosso julgamento. Mesmo porque o nosso alvo não é o de avaliar Freud a partir de Heidegger, e nem o inverso.15 Para além dos impasses, intencionamos indicar uma similaridade em seus pensamentos que incide no entendimento do humanismo. Constatamos na carta de Heidegger que no humanismo o homem perdeu a essência do pensar ao se escorar no τέχνη, e, a passo largo, se afastou do ser. Para este filósofo, seja na Renascença ou no Iluminismo, seja no tempo dos gregos, dos romanos ou na Idade Média, houve sempre uma tentativa metafísica dos teóricos de limitar a essência do homem e pensá-la como um meio de salvação. Por não perceberem a importância da pergunta pelo ser, deixaram de lado a essência humanitas do homem e almejaram procurá-la em sua animalitas. A consequência disso foi que se equivocaram ao pensar que estavam próximos da verdade, quando, no fundo, só se afastavam dela. Depois de um breve exame para compreendermos o motivo que leva Fromm a considerar a psicanálise como uma disciplina do humanismo, procuramos contestá-lo ao dizer que, em sua obra, Freud não procura estabelecer uma forma de salvação por meio de suas descobertas. Por mais que tenha sido partidário da Weltanschauung científica, ele não parece ter tido a intenção de assegurar que o homem poderia superar os seus obstáculos psíquicos. Ao contrário, por propor uma natureza mental além da consciência, ele destrona o seu desejo de soberania.16 Isso nos levou a julgar que o humanismo não seria um projeto adequado para inserir o seu pensamento e a sua disciplina, pois nos parece que esse estaria mais próximo daquilo que Freud concebeu como ilusão. Agora, tendo em conta a nossa exposição, finalizamos destacando uma metáfora utilizada tanto por Heidegger quanto por Freud. Vimos ambos empregarem a casa em um sentido figurativo para dizer que o homem está afastado de sua própria verdade: se para o filósofo o homem mora na casa do ser e não tem habilidade para consumi-lo, no pensamento do psicanalista, o Eu não é o senhor de sua residência porque está coagido pelos instintos. Mesmo que em ocasiões diferentes, o âmbito semântico que essas metáforas da casa almeja designar não nos parece distante, pois os dois pensadores apontam que o homem está mais próximo de uma evicção do que de uma apropriação de sua habitação. Assim, apesar de haver um abismo entre os seus pressupostos, os aspectos que trabalhamos em suas idéias levam-nos a cogitar uma ressonância em relação à sua desconfiança na ambição de doutrina que o homem revela em grande parte de seus projetos de conhecimento. O uso 15 Certamente, essa avaliação seria mais complicada, porque, como se sabe, em nenhum momento Freud se manifesta diretamente em relação à Heidegger. No entanto, podemos ver no posfácio do Zollikon Seminars (1987/2001) que o tradutor para o inglês, Richard Askay, traz uma citação de Binswanger em que este, ao mostrar à Freud um de seus textos sobre as idéias de Heidegger, obteve a seguinte resposta: “Nele [no texto de Binswanger] eu fiquei encantado como a sua bela prosa, sua erudição, o escopo de seu horizonte, o seu tato para discordar… Mas, naturalmente, eu não acredito em uma palavra que você diz” (FREUD apud HEIDEGGER, p. 308, 1987/2001, tradução nossa). 16 É interessante lembrar que Freud considera a sua descoberta do inconsciente como o terceiro golpe no narcisismo da humanidade. Os outros dois teriam sido quando Copérnico postulou que a Terra não seria o centro do universo e quando Darwin demonstrou, por meio da Teoria da Evolução, que não somos tão diferentes dos animais quanto gostaríamos (FREUD, 1917).
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da casa para indicar a ausência de domínio, rumo e certeza sobre a vida interior parece nos alertar que seja no humanismo, ou em qualquer outro “ismo”, a verdade não parece algo que possa ser capturada do modo que almejaria grande parte dos pensadores.
Referências bibliográficas FREUD, S. (1917). Una dificultad del Psicoanálisis. In: Obras Completas (J. L. Etcheverry, trad.). Vol. XVII. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1920). Más allá del principio de placer. In: Obras Completas (J. L. Etcheverry, trad.). Vol. XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1927). Porvenir de una ilusión. In: Obras Completas (J. L. Etcheverry, trad.). Vol. XXI. Buenos Aires: Amorrortu, 2001. ______. (1930). O mal-estar na civilização. In: Obras completas (P. C. Souza, trad.). Vol 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ______. (1932). Por que a guerra? In: Obras completas (P. C. Souza, trad.). Vol 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ______. (1933a). Acerca de uma visão de mundo. In: Obras completas (P. C. Souza, trad.). Vol 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ______. (1933b). A dissecação da personalidade psíquica. In: Obras completas (P. C. Souza, trad.). Vol 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FROMM, E (1963). Humanism and Psychoanalysis. Tuebingen: The Literary Estate of Erich Fromm, 2010. Disponível em: <http://www.erich-fromm.de/data/pdf/1963f-e.pdf> Acesso em 08 Julho. 2011. GRAVES, P. G. (1989) German Grammar. Nova York: Barron’s Educational Series, 1990. HEIDEGGER, M. (1947). Carta sobre o humanismo. (R. E. Frias, trad.). São Paulo: Moraes, 1991. ______. (1987) Zollikon Seminars. (F. Mayr; R. Askay, trad.) Evanston: Northwestern University Press, 2001.
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Vitor Orquiza de Carvalho é graduado em psicologia e especialista em filosofia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Mestrando em Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista Fapesp. E-mail: <carvalhovitor@hotmail.com>.
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LUGARES ARTÍSTICOS IMPROVÁVEIS
olhares cinematográficos para banheiros e suas complexidades psicossociais LUDMILA HELENA RODRIGUES DOS SANTOS*
Resumo: Este artigo avalia o imagético e representatividade de um espaço significativo nas relações cotidianas: o banheiro. Analisamos imagens deste local em expressões artísticas distintas, privilegiando abordagens cinematográficas que retratem o uso de drogas. O recorte traz os filmes “Requiem para um sonho”, “Eu, Christiane F.-13anos, drogada e prostituída”, “Kids e“Trainspotting”. Buscamos consonâncias de significados que representem tal local como privilegiado em cenas que personagens se degeneram e, paradoxalmente, como contraponto de purificação, o que dialoga com as depravações físicas e psicológicas desta abordagem. PALAVRAS-CHAVE: BANHEIRO, DROGAS, SIMBOLOGIA Unexpected artistc places: cinematographic looks at restrooms and their psychosocial complexities Abstract: This article evaluates the imagery and the representativity of a significant space in everyday relationships: the bathroom. We analyze images from this site in different artistic expressions, privileging cinematic approaches that portray drug use. The cut brings the movies “Requiem for a Dream”, “I, Christiane F.-13, drugged and prostituted”, “Kids” and “Trainspotting”. We seek consonances of meanings representing such a location as privileged characters in scenes that degenerate and, paradoxically, may be purified, which dialogues with the physical and psychological depravity of that approach. KEYWORDS: BATHROOM, DRUGS, SYMBOLOGY
P
ensar o banheiro como local significativo e de interação de corpos, cheiros, intenções, impressões é algo tão cotidiano, que a problematização ou ainda e reflexão dos símbolos e significados deste espaço muitas vezes nos escapa de encará-los com a densidade que seus símbolos possuem. O que é o banheiro senão um local de impressões paradoxais? Lugar de pureza e impureza, permissividade e repressão, privacidade e exposição… Por ser um espaço simbólico, suas representações impactam na arquitetura, nas expressões artísticas, nas relações pessoais.
Este artigo busca esta interface entre o banheiro, seus significados e simbologias urbanas, e para tal busca um levantamento do significado deste local nas expressões artísticas, centrando-se especialmente em imagens difundidas em filmes, mas perpassando sua simbologia nas artes plásticas. Uma primeira impressão importante, que contextualiza o banheiro como lócus significativo, pode ser ilustrado por um evento polêmico que traz a tona o universo das artes plásticas à luz da arte conceitual: a exposição de Marcel Duchamp de um mictório. Duchamp foi o responsável pelo conceito de ready made, que é o transporte de elementos da vida cotidiana, que não possuem reconhecimento artístico, para as artes. Em vez de tornálos objetos artísticos, ele os considerava prontos e os exibia como obras de arte.
Marcel Duchamp, A fonte1.
A Fonte, uma das obras mais polêmicas e conhecidas de Duchamp (a qual ele assina sob o nome de “R. Mutt”, possivel de se ver ao lado da peça), se baseia, pois, no conceito de Ready Made: Os Ready-Made são objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los, converte em obra de arte. Ao mesmo tempo este gesto dissolve a noção de obra… […] O readymade não postula um valor novo: é um dado contra o que chamamos de valioso. É a crítica ativa: um pontapé contra a obra de arte sentada em seu pedestal de adjetivos. A ação crítica se desdobra em dois momentos. O primeiro é de ordem higiênica, um asseio intelectual: o ready-made é uma crítica ao gosto;o segundo é um ataque à noção de obra de arte (PAZ, 2002, p. 23).
Pensada inicialmente por Duchamp para figurar entre as obras a serem julgadas para um concurso de arte , a escultura foi rejeitada pelo júri, uma vez que, na avaliação deste, não havia nela nenhum sinal de labor artístico. Com efeito, trata-se de um urinol comum, 1
Imagem retirada do endereço eletrônico: <http://fashionblend.files.wordpress.com/2009/06/afonte.jpg>.
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branco e esmaltado, comprado numa loja de construção e enviado ao júri. A despeito do significado artístico ou ainda das explicações psicanalíticas, nos interessa porque tal objeto carrega em si significados que o tornam possível de ser ícone de um movimento crítico artístico. Poderia ser outro objeto? Mas qual a representatividade deste objeto para ser escolhido dentre as inúmeras possibilidades para este mesmo fim? O objeto carrega em si significados compartilhados? Trazer o movimento do Ready Made e a importância do uso de um mictório como um questionamento estético que visa indagar o significado da obra de arte, não busca reduzi-lo a um gesto isolado e sim pensar os sentidos deste gesto, apropriando-se deste objeto específico – que não só é de uso cotidiano como seria, por exemplo, uma panela –, mas traz algo de íntimo, compartilhado, de antiestético, de visceral – opondo-se a um conceito puro e uma singularidade associada ao seu uso. Este ato de problematizar o objeto introduz um movimento que tentaremos neste artigo: o de refletir o banheiro, suas interações, seus objetos, sua representatividade. Para entender tais questões é necessário reunir algumas impressões sobre este local, seus usos e sentidos subjetivos e compartilhados, os quais tentaremos ilustrar trazendo alguns filmes de temática específica: o uso de drogas, e associando os temas recorrentes neste tipo de enredo com o imagético deste ambiente. Ao refletirmos acerca do banheiro, vemos a ligação deste e sua especificidade a um discurso que evoca a evitação das necessidades fisiológicas e as partes “proibidas” do corpo, determinando sentidos e comportamentos específicos, como é o caso dos ditos populares, como o que diz que “menino que brinca com fogo faz xixi na cama”, ou ainda a designação informal de uma situação de sorte inesperada ou de um “vacilo” não calculado como uma “cagada”. Tais exemplos remetem às impressões, sensações e conceituações que temos a respeito do que é expelido do nosso corpo, ou da partes do corpo que devemos evitar – também denominadas de partes marginais: “é lógico que os orifícios do corpo simbolizem os pontos mais vulneráveis. A matéria que sai por estes orifícios é, evidentemente, marginal. Cuspo, sangue, leite, urina, fezes, lágrimas, ultrapassam os limites do corpo pelo simples fato de serem segregados” (DOUGLAS, 1976, p. 89). Esta perspectiva também abrange o fato de que o “corpo negado” e o que lhe é excretado são intocáveis, inexprimíveis e, porque não, inconfessáveis. Mas até que ponto, em que situações e em quais lugares temos tais proibições mais ou menos latentes? No filme “Requiem para um sonho”, direção de Darren Aronofsky, há uma imagem de que ilustra bem a importância do lócus especifico para tratar do “expelido” e para “expelir” o que guardamos em nossas entranhas. O filme trata de vícios generalizados – drogas variadas (cocaína, maconha, ácido lisérgico, anfetaminas) e ainda alguns vícios tolerados como: comida, televisão… E apresenta como a conexão sonhos e drogas se desenvolve durante o filme em drogas e realizações e termina em vício e degeneração. Uma abordagem típica deste recorte temático.
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A cena que nos interessa diz respeito à fase de decadência de um dos personagens. Marion, menina rica e bonita, sonhava em ter sua própria grife de roupas e, alimentava tal sonho a base de drogas (tanto para nutrir seus devaneios como para se financiar através do tráfico realizado por seu namorado). Quando se vê sem as mesmas, viciada e solitária – sem companheiro, sem amigos, sem sua grife de roupas e em crise de abstinência – decide prostituir-se para conseguir a droga. O momento de reflexão e de sofrimento por conta de tal decisão se dá no banheiro de seu apartamento. Aqui o banheiro da casa é o local do particular, por isso o conflituoso vivido subjetivamente tende a ser associado a este ambiente. Trata-se do particular do particular, algo em camadas, lugar da exposição de si para si. Por isso é no banheiro que a personagem encara a si e a seus dilemas. É de lá que ela toma coragem e liga para o indivíduo que troca drogas por sexo. Neste recinto que ela decide se “depravar”, se humilhar, “chegar ao seu fim”. Depois de se prostituir, é neste ambiente que a vemos tentando se purificar e extravasar seu asco, seu lapso de consciência, em uma cena em que toma banho e grita mergulhada na água da banheira (um grito abafado, na água, sufocante). Vemos como a questão do puro e impuro é vivida, neste local específico – principalmente ao que tange a questão da sexualidade feminina e pureza. O grito abafado no banheiro é interno, um pedido desesperado de limpeza, a consciência de que estava suja.
Trainspotting.
É comum a imagem do banheiro (privado) ser associada em filmes como local de purificação, e, como exemplo extremado desta característica, é possível evocar a imagem de uma cena recorrente: a mulher que sofreu algum tipo de violência sexual, tomando banho, chorando e limpando-se (tanto os ferimentos como simbolicamente) da agressão sofrida no chuveiro. É interessante ressaltar que, geralmente os filmes desta temática especificada, o uso de drogas, possuem uma cena impactante no banheiro. Assim também o é no filme Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, no filme Kids2, Trainspotting – Sem limites, entre outros do mesmo gênero. Trataremos destes títulos numa perspectiva comparativa buscando 2
As referências dos filmes constam na filmo-bibliografia.
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ressaltar esta simbologia do banheiro e como está em consonância com nossas vivências e nosso significado cotidiano. Se seguirmos uma ordem cronológica e uma linha que traça o perfil destes filmes, desde uma abordagem cinematográfica do tema de drogas, até recursos de filmagens específicos deste gênero, temos o filme Eu, Christiane, F., 13 anos, drogada e prostituída como um importante percussor da temática das drogas, considerando sua repercussão e audiência na época em que foi lançado. Uma atmosfera sombria, confusa e uma trilha sonora frenética (de David Bowie) o integram. A ligação com o banheiro e suas funções é expressa desde a primeira fala da personagem, a saber: “A podridão está em toda parte é só dar uma olhada… Mas o mau cheiro é pior nas escadas dos prédios. O que as crianças podem fazer quando querem ir ao banheiro? Até o elevador vir já sujaram as calças e apanharam. Por isso, preferem fazer nas escadas”.3 Desta forma, a presença do banheiro como local significativo é explicitado pela aparição constante deste ambiente desde primeira idéia expressa até a última cena em que a protagonista aparece tendo uma overdose de heroína em um banheiro público. Como o filme trata de uma degeneração progressiva de Christiane, há várias cenas que ligam este estado degradado da personagem com a atmosfera íntima, pessoal, confessional, fétida e orgânica que o banheiro expressa. A primeira vez que a personagem tem contato com drogas, aos 12 anos, a cena se passa no banheiro de uma boate de Berlim. Seu primeiro “pico” – a primeira vez que usa heroína injetável- foi num banheiro público da Estação Central, e, nesta mesma estação ela tem a heroína roubada pelo homem que a ajudou a injetar sua primeira dose, numa cena memorável em que ele pula a cabine onde ela se trancara para injetar a droga, a rouba, vai para frente do espelho e injeta a seringa já preparada na jugular – sob horror de uma senhora que presencia tudo. Em sua primeira overdose, ela é encontrada pela mãe no banheiro de sua casa. Neste mesmo lugar sua irmã mais nova fuma maconha e toma banho compartilhando intimidades cotidianas com a protagonista no dia do seu aniversário de 14 anos. Entre idas e voltas o filme trata de vícios e limites extrapolados e o local preferencialmente retratado é o banheiro.
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Fala retirada da primeira cena do filme tal qual expressa pela legenda.
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Esta tendência se mostra de forma distinta no filme Kids, que trata de uma juventude completamente sem limites, sem valores, sem culpa. Como o filme trata o caos e este é retratado como um excesso de liberdade, ele não se prende a um espaço físico. As cenas expressam o movimento dos personagens, então os quadros se modificam, mas o caos é instaurado em todos os lugares: na rua onde é permitido urinar, comprar drogas, roubar, na mercearia, no apartamento dos amigos, no quarto das meninas, no hospital, no taxi, na boate, na festa e nos banheiros. O banheiro deixa um pouco esta tendência do local do degradado, pois o filme quer mostrar isso de maneira aberta e generalizada. Temos um movimento de procura que se dá por parte da personagem protagonista que no começo do filme tem uma imagem “pura” diante de tanta depravação. Ela apenas havia tido uma relação sexual com o protagonista masculino do filme – que é um especialista em “desvirginar” meninas. Ao acompanhar uma amiga que foi ao hospital fazer um exame de HIV (Sigla em inglês da Síndrome da imunodeficiência adquirida) descobre por acaso que se tornou soro positiva após esta iniciação, e então vai atrás do antigo parceiro para lhe contar. Por isso não há só um cenário, é um filme em movimento, que procura e traz dramas existenciais. É durante esta busca que esta personagem perde totalmente o controle de si, quando vai a uma boate, e lá vai ao banheiro acompanhada de um amigo – que quer lhe mostrar a proporção de adeptos do sexo grupal que acontecia ali naquele ambiente. Neste banheiro depravado que ela toma uma pílula – não especificada – que lhe deixa totalmente alucinada, fora de si, distante de seu propósito. O amigo que lhe dá a droga lhe diz que ela se sentiria no céu em alguns segundos, e na verdade, o filme mostra o movimento inverso, terminando com uma cena dela desmaiada em função do entorpecente e sendo estuprada – no lugar onde finalmente ela encontra o antigo namorado que estava tendo relações com mais uma menina virgem no quarto. Sua saga foi em vão, e acaba com a contaminação generalizada – da menina virgem pelo garoto, do estuprador (colega) pela menina com boas intenções. O amigo que estupra a personagem também aparece no banheiro nas cenas anteriores, bêbado, drogado, conversando com um amigo desmaiado ao lado da privada. O banheiro representa neste cenário o local da depravação coletiva e ao mesmo tempo do da degeneração final dos personagens em diferentes instâncias.
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O filme Trainspointting – sem limites foi lançado em 1996; dirigido pelo britânico Danny Boyle, também diretor do filme vencedor do Oscar no ano de 2009: “Quem quer ser um milionário”. Polêmico, Trainspointting recebeu muitas críticas pela forma como mostra um grupo de jovens dependentes de drogas, mas virou referência pela linguagem, o uso de “câmeras nervosas”, pelas cenas “absurdas” que se aplicam perfeitamente ao universo de deterioração pessoal dos personagens. Em vários momentos esta deterioração é manifestada pela presença de fezes numa analogia que ultrapassa o simbólico para falar literalmente dos significados drogas versus dejetos do corpo – sempre expressando a falta de controle, a ruína pessoal. Uma das cenas mais impactantes do filme neste sentido é protagonizada pelo personagem principal, Renton, na qual em um momento de fissura por drogas ele compra um supositório de ópio, na tentativa de diminuir a necessidade de heroína, droga da qual tenta se livrar no decorrer do filme. Logo após introduzir as cápsulas no reto, ele passa por uma crise de dor de barriga e corre para o banheiro de um pub. Obviamente, o banheiro do lugar representa já o grau de decaimento do protagonista, o que é trazido à pauta pela narração do personagem, onde se figura a diferença do banheiro “real” e do qual ele gostaria de frequentar neste momento, com todas as simbologias de um banheiro considerado bom para o uso: “Imaginei um banheiro enorme, privadas douradas com mármore branco, tampa de marfim e água da descarga puro Channel 5, e um criado me passando um papel higiênico de seda. Mas, no meu estado, qualquer coisa servia”.4 O próximo quadro apresentado é o personagem entrando no banheiro com a legenda “pior banheiro da Escócia”. O banheiro é exageradamente nojento, desde o piso até o chão imundo, úmido, fétido. A privada de fato representa a antítese do desejo do personagem, mostrando que a realidade é degradante e está de acordo com o modo de vida do protagonista. Mas coerentemente com a narração de Renton, ele não tem escolha e evacua ali mesmo. Entretanto, com o movimento de expelir as fezes, naquele lugar que expele pessoas que não estão em estado de profundo desespero, o personagem elimina também as cápsulas de ópio que havia acabado de comprar, e, no auge desta narrativa de absurdos, Renton começa a mexer na privada onde se encontram fezes e dejetos dele e de outros frequentadores – uma vez que o ambiente representa a contaminação de forma visualprocurando os supositórios. Ele não só procura como “mergulha” na privada na sua busca improvável. Nesta hora há a perspectiva do personagem ilustrada que passa da escória ao ato de heroísmo de resgatar o que se procura atravessando as diversidades. O fim da cena é Renton saindo do Pub todo molhado e fétido, mas com ar de vitorioso.
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Fala retirada de forma literal da legenda do filme.
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Trainspointting.
No filme há outras cenas que retratam o banheiro e a intimidade típica do local. Assim o é na parte que a namorada do personagem Spud (personagem secundário e cômico) relata no banheiro para a amiga que já está no relacionamento há seis semanas e ainda não tinha feito sexo com o mesmo. Diz que faz parte de uma teoria que ela leu na revista (Cosmopolitan), relata a dificuldade e ao mesmo tempo o prazer de ver o sofrimento do parceiro. Paralelamente, a amiga discorda da eficiência da “teoria” e fala que não deixaria de aproveitar o melhor que o namorado tem para oferecê-la. Conta episódios particulares do relacionamento, que vão sendo intercalados pelas diferentes visões dos parceiros. O interessante desta cena é que a conversa particular entre as amigas se dá no banheiro e já a dos homens se dá na mesa do bar. Uma tendência vivida no nosso cotidiano, que diz respeito aos gêneros e aos ambientes confessionais. É sabido que o banheiro de uso público segue certas especificações fruto desta ética que o prevê como local de privacidade e de certos detalhamentos sanitários. Há divisórias que garantem a individualidade e preservam a intimidade do usuário, mas, paradoxalmente o expõe a vigilâncias minuciosas de outros olhares, que frequentam o banheiro, que esperam sua vez para utilizá-lo. Esta dicotomia é expressa de forma latente nos filmes analisados, mas ela também faz parte do nosso discurso acerca do banheiro. Daí o impacto e a agressividade da cena do filme Christiane F. que o viciado adentra a cabine fechada para roubar heroína da personagem. Isto representa mais que um ato de abstinência, significa extrapolar limites, desrespeitar fronteiras. O horror do ato não é somente pelo uso da droga – que é retratado de maneira tão agressiva e desesperada –, ocorre também pela quebra de uma ética que se espera que as pessoas tenham no banheiro que é respeitar o espaço individual das cabines, lugar de intimidade, privado. O banheiro então reflete a dicotomia privacidade versus exposição. Valores que expõem o evitamento que devemos ter das nossas secreções do corpo, que devem ser parte da intimidade: intimidade esta que não deve ser compartilhada ou exposta, pois é vergonhosa, indelicada, deve ser disfarçada, desodorizada, desinfetada, individualizada e separada. Tal intimidade relativa ao banheiro reflete uma tendência urbana, a de
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individualizar os espaços dos toilets. O banheiro urbano diferencia-se da “casinha” rural, da cisterna externa. É fruto de um planejamento sanitário que traz o banheiro para dentro da residência, que faz com que os dejetos humanos sejam captados e tratados por um sistema de esgoto. Assim temos que as imagens de fezes, os dejetos em geral, a sujeira do ambiente e o próprio banheiro, sua significação e acesso – pois há uma diferença de percepção entre banheiro privado, da nossa casa ou de acesso limitado e banheiro público ou de acesso irrestrito como o caso de banheiros de bar, de rodoviárias, de mercados, de ônibus de viagens, etc. – nos trazem o confronto da dicotomia acesso restrito versus acesso ilimitado com as categorias de pureza e impureza expressas por Mary Douglas (além da idéia de vigilância), e, a partir de tal confronto é possível compreender como que certos banheiros nos remetem à idéia de impureza, de contaminação, que nos leva a manifestar sensações como asco, náuseas e evitação. A cerca de tal questão a autora constata: […] As nossas idéias sobre a impureza estão dominadas pelo nosso conhecimento dos organismos patogênicos. No século XIX descobriu-se que as bactérias transmitem doenças. Esta grande descoberta esteve na origem da evolução mais radical da medicina. Transformou de tal maneira a nossa existência que hoje nos é difícil pensar na impureza sem evocar de imediato o seu caráter patogênico (DOUGLAS, 1976, p. 30).
É ainda interessante destacar o lócus específico destas representações, o banheiro situado na cidade, a cidade aqui como palco de interações e que tem a “intensificação da vida nervosa como fundamento psicológico”.5 Isto quer dizer que, a vida em, e a interação com, um círculo mais amplo produzem, uma consciência de personalidade maior que aquela que surge em um círculo mais estreito; isto acontece, acima de tudo, porque é precisamente através da alteração de sensações, pensamento e atividades que a personalidade se documenta (SIMMEL, 1971 apud FIGUEIRA, 1981, p. 98). Dentro desta premissa, nossa reflexão mostra a interface destas expressões artísticas apresentadas com estudos de antropologia urbana, em função de significarmos o banheiro como local – representativo e representado – desta situação específica em que as subjetividades se interagem e se expressam na cidade, resguardadas pelo anonimato e privacidade do ambiente. A respeito da expressão da subjetividade na cidade moderna, George Simmel nos fala da intensificação da vida nervosa na cidade, que torna seus habitantes cada vez mais sensíveis aos choques, confusões e desordens que os atinge através da proximidade e do contato mais imediatos com homens e sucessões de acontecimentos e informações. 5 A respeito da questão da intensificação da vida nervosa como fundamento psicológico típico de ambientes urbanos, ver Simmel (2005).
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Tais características que podem aparentar em uma impressão inicial como dissociação, são na verdade apenas uma de suas formas elementares de socialização no ambiente urbano. Viver na cidade grande supõe sempre estratégias de sobrevivência em meio à concentração – estratégias que são, o mais das vezes, comportamentos estilizados. E é neste cenário que se dá a tensão entre o individualismo quantitativo e o individualismo qualitativo: tanto do indivíduo que é igual e livre como do indivíduo que é diferente e único. Neste sentido, a cidade grande e moderna é vista como campo de batalha, de prova e de experimentos da moderna individualidade (SIMMEL apud WAIZBORT, 2000). E o banheiro é concebido como local arquitetonicamente planejado para a preservação individualidade. A temática do caos, da degeneração pessoal, das relações extremadas, do entorpecente, enfim, dos estados psíquicos e o resultado das interações destes egos só poderia ser retratado na cidade. Mas não qualquer cidade: a metrópole e sua infinidade de relações e possibilidades. A cidade grande olhada como totalidade e não o olhar do partilhado, do reconhecível, do bucólico – pois a metrópole traz em si várias instâncias, inclusive partilha sentimentos de comunidade dependendo do enfoque das relações. Pensar a representação disso nas artes, enfocando o banheiro como local destas relações, sob um recorte temático que trata de drogas, é perpassar estas questões e refletir a respeito das relações na cidade, da esfera das subjetividades, de como o acadêmico e as expressões artísticas dialogam para ilustrar e analisar estas realidades: […] Não há mais análise social que possa fazer economia dos indivíduos, nem análise dos indivíduos que possa ignorar os espaços por onde esles transitam. Um dia, talvez, virá um sinal de outro planeta. E, por um efeito de solidariedade, cujos mecanismos o etnólogo estudou em pequena escala, o conjunto do espaço terrestre passará a ser um lugar. Ser terráqueo significará alguma coisa. Enquanto se espera, não é certo que as ameaças que pesam sobre o meio ambiente bastem para isso. É no anonimato do não-lugar que se experiementa solitariamente a comunhão dos destinas humanos. Haverá, portanto, espaço amanhã, talvez já haja espaço hoje, apesar da aparente contradição dos termos, para uma etnologia da solidão (AUGÉ, 2005, p. 110).
É inquietante como o universo do banheiro se abre a um olhar mais atento, para mostrar as relações que existem e são próprias deste local. E as impressões tipicas deste espaço e algumas de suas intenções expressas, se encontram tanto nas artes como tentamos
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mostrar neste trabalho – cinema, literatura, performace, artes plásticas, entre outras, como no cotidiano e nas ferramentas que utilizamos como meios de expressão em geral. Na internet é possivel encontrar endereços eletrônicos como www.banheirofeminino.com. br – que descreve situações e se fundamenta exatamente nestas impressões do banheiro, expressas e tratadas muitas vezes de maneira clichê para apresentar relatos cômicos, eróticos, intimos, de gênero… Como por exemplo o caso do espaço de discussões eróticas chamado: “pergunte ao tio da limpeza”. Há ainda comunidades no orkut que marcam encontros presenciais (muitos de cunho sexual) nos banheiros masculinos, prática comum de se notar nestes banheiros expressas através de grafitos encontrados nas portas. Trata-se pois, da expansão desta prática para um universo mais amplo, mantendo contudo o banheiro como local do ousado, do íntimo, da fantasia. Estes são apenas exemplos de como este local e sua representação são temas essenciais para entender as dinâmicas de interação de nosso tempo. E quando tratamos de interação no momento que vivemos, lidamos com estudo de subjetividade, de relações entre pessoas e grupos, de principios classificatórios, de um repertório discursivo, de um universo simbólico, de interações e diálogos com as mais diversas áreas de conhecimento. Daí esta tentativa de enxergar e utilizar as artes como metodologia de análise do mundo que vivemos, acreditando que a ciência e a arte devem estar a serviço da afirmação da vida, o que extrapola e congrega áreas do conhecimento. Cremos assim nos aproximar de algumas propostas que dizem respeito a uma abordagem criativa, que aproxima a academia e a abordagem artística, não na perspectiva de canonizar a arte, mas de “criativizar” e diversificar a abordagem científica como na proposta de Felix Guattari de uma “ecosofia mental”: A ecosofia mental, por sua vez, será levada a reinventar a relação do sujeito com o corpo, com o fantasma, com o tempo que passa, com os “mistérios” da vida e da morte… […] Sua maneira de operar aproximar-se-á mais daquela do artista do que a dos profissionais “psi”, sempre assombrados por um ideal caduco de cientificidade (GUATTARI, 2006, p. 16).
Com isto, o autor busca “desfazer todas as referências e metáforas cientistas para forjar novos paradigmas que serão de preferência ético-estéticos”… (GUATTARI, 2006, p. 18). Acerca de tais paradigmas ele explica: […] Invocando paradigmas éticos, gostaria principalmente de sublinhar a responsabilidade e o necessário “engajamento” não somente dos operadores “psi”, mas de todos aqueles que estão em posição de intervir nas instâncias psíquicas individuais e coletivas (através da educação, saúde, cultura, esporte, arte, mídia, moda,
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etc.). É eticamente insustentável se abrigar, como tão freqüentemente fazem tais operadores, atrás de uma neutralidade transferencial pretensamente fundada sobre um controle do inconsciente e um corpus científico. De fato, o conjunto dos campos “psi” se instaura no prolongamento e em interface aos campos estéticos (GUATTARI, 2006, p. 21).
Citamos Guattari para evocar uma necessidade discutida na academia, de uma análise possível de congregar as teorias acadêmicas com a experiência de campo vivida subjetivamente, que é singular, dando ao trabalho uma dimensão criativa, perceptiva e autoral. A partir deste caminho delineado, esta proposta que buscou concatenar transversalmente, as percepções descritas, o universo artístico retratado e a teoria que fundamenta a análise antropológica. Buscamos com este artigo mostrar que tal aproximação das artes e ciências não destitui a segunda de seu grau de objetividade, mas permite novos olhares, para notar o objeto científico. Este movimento mostra como sentidos compartilhados e objetividade podem trabalhar conjuntamente, acrescentando a abordagem acadêmica. Os filmes aqui analisados representam um recorte que não esgota a análise proposta. Desde do clássico Psicose, de Alfred Hitchcock, até abordagens mais massificadas e eternizadas como Uma Linda Mulher, direção de Gary Marshal, o banheiro traz em si o íntimo, o secreto, o polêmico… Enfim, ele se apresenta como local significativo no enredo do filme e na caracterização psicológica dos personagens. A temática das drogas potencializa a percepção deste local como de privacidade compartilhada. No caso dos filmes não nos limitamos às divisórias que garantem intimidade aos usuários tornando-nos a maior das proibições deste ambiente – a de notar, comentar, interpretar a privacidade alheia.
Psicose.
Uma linda mulher.
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Ludmila Helena Rodrigues dos Santos é mestranda do Curso de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: <ludhrsantos@yahoo.com.br>.
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TRAÇOS DA SOLIDÃO
análise do processo de criação da personagem no curta-metragem Tempestade DANIELA RAMOS DE LIMA*
Resumo: O artigo apresenta uma leitura estrutural dos esboços, storyline e storyboard do curta-metragem Tempestade, produzido por César Cabral (Coala Filmes, 2009), apontando as influências sofridas e as possíveis produções de sentido que culminaram na ação dramática da personagem na mise-en-scène. O estudo ainda versa sobre a rede de interações presentes no processo de criação do protagonista da história, o marujo, desde a elaboração de sua representatividade bidimensional à sua presença no storyboard. Dessa forma, elenca-se a Crítica Genética para a análise, no intuito de oferecer os subsídios necessários a essa investigação intersemiótica. PALAVRAS-CHAVE: PROCESSO DE CRIAÇÃO COLETIVO, CINEMA DE ANIMAÇÃO, PERSONAGEM Traces of solitude: creation of personage in the short film Tempestade Abstract: This paper presents a structural analysis of the sketches, the storyline and the storyboard of the short film Tempestade (Storm), produced by Cesar Cabral (Coala Filmes, 2009). Its subject is to show the possible influences and production of meanings which culminated in the dramatic action of the character in the mise-enscène. The study also devotes to search for network interactions presents in the process of creating the protagonist, the sailor: from the bidimensional configurations (sketches) to the animation framework (storyboard). Thus, the Genetic Critic is chosen to provide background for such intersemiotic research. KEYWORDS: COLLECTIVE CREATION, ANIMATION, CHARACTER
Introdução Olhar o curta-metragem Tempestade é procurar entender um processo feito a quatro mãos, ou melhor, a quatro cabeças. Dirigido por César Cabral nos estúdios Coala Filmes (Santo André, São Paulo), no final de 2009, a animação em stop motion conta com
a direção de arte de Daniel Bruson, roteiro visual – storyboard – de Juliano Redígolo e a colaboração de Leandro Maciel no roteiro. A sinopse conta, a priori, uma história simples: um marujo e um barco que navegam por mar tempestuoso em uma rota suscetível a mudanças. No entanto, a ação dramática da personagem na mise-en-scène, revela paulatinamente um projeto menos modesto ao retorquir questões que trazem à tona a essência de determinadas condições existenciais. O curta-metragem tem duração de dez minutos e foi produzido a fim de ser inscrito no 14o Festival da Sociedade Brasileira de Cultura Inglesa, São Paulo. Promovido no ano de 2009, um dos requisitos presentes no edital do concurso era o envio de obra embasada em material de origem inglesa. A equipe de Cabral dispôs de quatro meses para a elaboração de toda a produção. Suficiente ou não, o prazo proposto instaurou um desafio a cada um dos envolvidos, recrutando suas contribuições, especificidades e habilidades artísticas que passaram a ser destinadas para um mesmo fim. Os processos percorridos por um filme de animação envolvem parcerias que podem ser entendidas tanto como limites impostos à obra quanto medidas propulsoras da criação. Ao discutir sobre as possibilidades que orientam a criação artística, Salles (2007b, p. 64) menciona como a noção de limite, entendida como condições pré-estabelecidas para a realização de uma obra, pode inferir em todo o processo e, consequentemente, no resultado final: Limites internos ou externos à obra oferecem resistência à liberdade do artista. No entanto, essas limitações revelam-se, muitas vezes, como propulsoras da criação. O artista é incitado a vencer os limites estabelecidos por ele mesmo ou por fatores externos, como data de entrega, orçamento ou delimitação de espaço.
Para atender às condições do concurso, a ideia inicial de Cabral é a canção “Eleanor Rigby” do grupo inglês The Beatles. Nela, a solidão é o tema central. O que ilustra o ponto de vista da banda inglesa, contido na letra em questão, é a apresentação da solidão como conflito de dois personagens: Eleanor Rigby e Pastor Mackenzie. A primeira sonha com o casamento, recolhendo grãos de arroz após o tradicional ritual da passagem dos noivos e espera por alguém cujo retrato guarda consigo, talvez do próprio pastor; enquanto o segundo, em meio às trivialidades da rotina cotidiana, tempos depois, realiza o funeral da moça sem que as vidas de ambos se cruzem. Percebe-se que durante a elaboração de Tempestade a equipe passa a sentir uma necessidade de acréscimos e ‘outros ingleses’ passam a habitar o processo de criação. É o caso do pintor londrino William Turner (1775-1850), cujas obras revelam pinceladas dinâmicas e translúcidas que intensificam a ilusão do movimento tempestuoso do mar. A personagem ganhará indumentárias e roupagens britânicas e suas características irão vagar por outros traços de personagens marcantes da história da literatura europeia. 192
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O desenho como dossiê Para os estudos da Crítica Genética, a história de uma personagem não se inicia em sua primeira aparição ou citação na mise-en-scène. A estruturação do perfil, a expressão fisionômica, o figurino compõem algumas das características que conferem qualidades únicas a este ser em criação. Pontos que tendem a ser revistos e analisados nos documentos processuais que antecedem a obra final, isto é, aquela que é entregue ao espectador. Os primeiros esboços, sejam indicações verbais ou não-verbais, são certidões de nascimento, pois indiciam o primeiro embate: o conflito entre a ideia e a representação. É assim que Salles (2007a) reporta-se a essas anotações e define os “desenhos da criação” como uma reflexão visual e uma obra de passagem. A definição fica ainda mais esclarecedora quando a autora distingue diferentes gestos expressivos no desenho: manifestam intenções gráficas, isto é, linhas, traços e hachuras que configuram um signo. O desenho, como documento processual, configura-se no espaço porque sua alocação dentro do suporte não é aleatória. Respeita limites e se o extrapola tem nesse gesto uma intenção. É um campo de experimentações, de acertos e erros, de buscas e retornos, de vazios e saturações, “um mapa confeccionado para encontrar alguma coisa” (SALLES, 2007a, p. 35). Mapa cujo propósito é nortear e criar orientações de caminhos em rede, os quais serão percorridos por uma ideia, principalmente se esta for compartilhada em meio a um processo de criação coletivo. Desenhos de passagem, porque não se impõem, ao contrário, permitem que seus autores lhes atribuam modificações, transformando mais uma vez a rota. Nesse ponto, esses desenhos revelam tanto a trajetória de uma obra quanto a possibilidade de transcriações intersemiótica.1 Isto porque os desenhos são pensamentos transcriados de uma música, uma foto, um filme, enfim, as mais diversas linguagens que oferecem subsídios para lhe configurar forma. E, quando passam a habitar outros territórios e perdem suas qualidades bidimensionais, saltam desses para originar outro corpo, trazendo consigo toda essa trajetória: o invisível no visível. Todavia, é essa ausência de perenidade que os torna tão intrigantes: a de não serem explícitos, mas estarem agregados à história dessa construção. No que se refere à seleção de documentos processuais dessa investigação elenca-se uma série de esboços de Daniel Bruson, diretor de arte da produção e o storyboard de Juliano Redígolo. Neste material, indicações visuais passam a mostrar os possíveis diálogos entre o desenhista e o diretor do curta-metragem. É pertinente lembrar aqui que o diretor do curta-metragem, César Cabral, no momento em que estabelece um primeiro contato com a direção de arte, tem algumas ideias já estabelecidas, ou limites: 1 Para Plaza (2010) tradução intersemiótica é a qualificação de uma “prática artística”. Em outras palavras, é a transcriação (ou recriação) entre códigos específicos de linguagens.
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t " BOJNBĂ&#x17D;Ă?P EFWFSJB BUFOEFS BPT SFRVJTJUPT EP FEJUBM EP DPODVSTP PGFSFDJEP pela Cultura Inglesa: ser baseada em manifestação de origem inglesa; t 0 DVSUB NFUSBHFN UFSJB DPNP DPOUSJCVJĂ&#x17D;Ă?P EVBT GPSNBT EF MJOHVBHFN B mĂşsica â&#x20AC;&#x153;Eleanor Rigbyâ&#x20AC;?, The Beatles, e a pintura de William Turner; t " UFNĂ&#x2C6;UJDB B TFS EFTFOWPMWJEB WFSTBSJB TPCSF P BNPS QMBUĂ&#x2122;OJDP F B TPMJEĂ?P Tais ideias ficam expressas na primeira storyline escrita por Cabral e Maciel: Este curta ĂŠ inspirado livremente na canção Eleanor Rigby dos Beatles e na obra do pintor J.M. William Turner. Um marujo solitĂĄrio navega, atravĂŠs de oceanos tumultuados por tempestades, em busca do reencontro com sua amada. Segue uma rotina rĂgida de afazeres atĂŠ que mudanças inesperadas em sua rota alteram seu destino. O filme ĂŠ uma fĂĄbula a respeito da solidĂŁo e distanciamento e de como ela ĂŠ necessĂĄria para que um amor platĂ´nico se estruture (CABRAL, 2011).
Sendo a solidĂŁo o foco principal do curta-metragem, o diretor passa a orientar a construção da personagem. No entanto, sua primeira referĂŞncia visual nĂŁo parte de uma mĂşsica, nem de uma pintura. Ă&#x2030; no documentĂĄrio Koyaanisqatsi: life out of balance (GODFREY REGGIO, 1982) que Cabral encontrarĂĄ a base para estabelecer as bases para a construção da personagem. Arnheim (2007, p. 41) diz que â&#x20AC;&#x153;a interação entre a configuração do objeto presente e a das coisas vistas no passado nĂŁo ĂŠ automĂĄtica e ubĂqua, mas depende do fato de uma relação ser ou nĂŁo percebida entre elasâ&#x20AC;?. Assim, o diretor comenta que as sensaçþes que lhe foram despertadas da primeira vez que assistiu ao documentĂĄrio lhe vieram Ă tona. Fato que o levou a lançar um novo olhar ao filme, agora com o intuito de captar o efeito angustiante da solidĂŁo e transpĂ´-lo para a sua personagem. Ao ser questionado sobre a sequĂŞncia dos primeiros esboços da personagem argumenta a orientação dada ao desenhista: Sobre o marujo, sim, foi o primeiro estudo que o Daniel fez a partir de informaçþes e conversas que tive com ele, os 2 desenhos da lateral esquerda (mesmo personagem) foram minha referencia pro Daniel trabalhar, foi desenhada a partir de um personagem que vi no filme Koyaanisqatsi , estava a assistir a esse filme, pois o tinha visto hĂĄ muito tempo atrĂĄs e lembrava da sensação de solidĂŁo que o filme passava. Foi o inĂcio das conversas com o Daniel (CABRAL, 2011).
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O primeiro esboço (Fig. 1) de Bruson é o ponto de partida para uma investigação sobre a forma de como os traços da solidão vão se hibridizando e condensando na obra, ou seja, o início pelo qual os idealizadores da animação materializam-na. Para que a leitura visual do material torne-se clara, os desenhos do layout foram nomeados com letras minúsculas em negrito de acordo com a suposta sequência em que foram criados.
Figura 1 Esboço de Daniel Bruson. Fonte: acervo Coala Filmes, 2009.
Ao traçar uma leitura da primeira página de esboços, percebe-se que aquilo que o diretor capta vai se desenvolvendo visualmente em etapas até ser alcançada por Bruson. Parece que as coisas que vemos se comportam como totalidades. Por um lado, o que se vê numa dada área do campo visual depende muito do seu lugar e função no contexto total. Por outro, alterações locais podem modificar a estrutura do todo. Esta interação entre todo e parte não é automática e universal. Uma parte pode ou não ser visivelmente influenciada por uma mudança da estrutura total; e uma alteração na configuração ou cor pode ter pouco efeito no todo quando a mudança permanece, por assim dizer, fora da trilha estrutural. Estes são aspectos do fato de que qualquer campo visual comporta-se como uma Gestalt (ARNHEIM, 2007, p. 59).
Há uma semelhança entre um frame de Koyaanisqatsi (Fig. 2) e os desenhos (Fig. 1a, 1b). Uma observação mais apurada aponta uma expressão fisionômica voltada para a vestutez.
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Figura 2 Frame do filme Koyaanisqatsi (1982). Fonte: http://www.screentrek.com/images/koyaanisqatsi-middle1.jpg.
Enquanto o desenho (Fig. 1a) apresenta olhos concêntricos que revelam uma reação de surpresa diante do espectador, a imagem do frame se contrapõe: direcionados para o canto direito, os olhos parecem oferecer um distanciamento entre o mundo observado e quem o observa (olhar introspectivo). Somente o segundo desenho no layout indicia o diálogo com a ideia oferecida por Cabral. Nota-se que pequenas referências visuais, como os recursos gráficos utilizados pelos cartunistas, indicam a direção que deve tomar o olhar da personagem. No terceiro esboço, as linhas escuras que contornam os olhos da figura acentuam esse encontro. No centro da folha (Fig. 1d) há uma representação longilínea assemelhada aos trabalhos do escultor suíço Alberto Giacometti (1877-1966). Tal referência não é aleatória, pois consta dos anexos que Cabral encaminha à comissão que fará a avaliação do projeto. Há ainda que se mencionar que, possivelmente, a abordagem inicial dada pelo diretor deva ter sido reafirmada ao diretor de arte após os primeiros esboços, uma vez que as inscrições que constam na folha de estudos parecem ser posteriores aos três primeiros esboços, ao revelar novos dados e exigências. No canto inferior esquerdo da folha constam as seguintes inscrições: SOLIDÃO: ENFRENTAR O MAR, SEM NECESSIDADE DE CHEGAR À AMADA POUCOS OBJETOS NO BARCO, MENOS TRAQUITANAS ONDAS DO TURNER LEVADAS AO ABSURDO SILHUETAR ONDAS E BARCO COM LUZ DO FAROL OU RAIOS MANTER CURTO! As anotações mostram o reflexo do diálogo entre Cabral e Bruson e de como a direção de arte capta, a partir da fala do diretor, o sentido da solidão que constituirá a personagem: da rotina expressa na falta de objetivos e do desapego pela vida material. No
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entanto, a evolução dos esboços apontará para a caracterização da solidão na personagem não como predicativo, de alguém cuja história de vida é marcada por ela, mas da solidão enquanto condição inerente ao ser e que encontra reflexo na natureza. Plasticamente, a figura da personagem ganha pouco a pouco menos traços, os quais se tornam contínuos e mais definidos, trazendo perfis cada vez mais jovens e limpos. É provável que a anotação “manter curto” esteja ligada ao cabelo da personagem, uma vez que os demais esboços partem para a reconstrução estética desse perfil, ora trazendo uma figura de cabelos e barbas em desalinho, ora modelados. Se o autor dos esboços internalizou que a preocupação não é a solidão, sua visão transcende os sinais da idade. Nota-se ainda que os registros manuscritos mostram a interação da personagem com os demais elementos que constituirão a mise-en-scène: o mar, o barco, a relação com a amada, o farol. Passa-se para um segundo estágio de elaboração: da figuração realística para a estilização. Os estudos (Fig. 3) mostram uma gama de possibilidades de caracterização da figura masculina, de etnia caucasiana e meia idade. Formas são testadas: perfis muito longos, barbas, bigodes, cavanhaques, olhos fundos, pálpebras baixas, sobrancelhas delineadas e densas, cabelos volumosos ou bem penteados. E ainda adereços, cachecóis, cachimbo, bonés ou chapéus, suspensórios, botas. É interessante notar a busca por uma construção imagética de um personagem tipicamente inglês. Ao descrever as características da aristocracia inglesa do século XIX, Laver (2005, p. 158-160) comenta a essência do dândi, homem de bom gosto e senso estético apurado, mas não necessariamente ligado à nobreza. Roupas ajustadas ao corpo, sem muita suntuosidade, plastrom (quadrados de tecidos enrolados ao pescoço), colete curto, colarinho da camisa virado para cima, cores sóbrias. E acrescenta: “os cabelos eram curtos, mas a moda era usá-los um pouco despenteados, à la Titus. Os civis, na maioria, se barbeavam, mas os militares usavam costeletas e, ocasionalmente, bigode”.
Figura 3 Sequência de esboços-marujo. Daniel Bruson (2009). Fonte: acervo Coala Filmes.
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O típico perfil do homem que viveu no período romântico. Era essencialmente essa figura que Bruson estava buscando: o cavalheiro perfeito para viver uma história de amor. No entanto, a estilização pela qual passam os esboços seguintes denota uma outra preocupação: a de um personagem que possa viver uma animação. A figura esguia ganha notadamente a influência do artista suíço Alberto Giacometti (1901-1965), cujas esculturas extremamente delgadas marcam uma fase de pesquisa da figura humana. É, explicitamente, mais uma sugestão dada pelo diretor, uma vez que Cabral faz questão de inserir algumas imagens do artista na folha de referências visuais entregue à equipe avalista do concurso. O sentido gerado na produção traz um personagem (Fig. 4) muito mais próximo a um Dom Quixote do que a um Lord Byron.O que se quer dizer com isso é que tais escolhas podem ter possivelmente influenciado o decurso final dado pelo diretor. Uma vez caracterizada a personagem, passa-se a inseri-la num roteiro visual. Encarregado de criar o storyboard da história, Juliano Redígolo desenha a seriação do filme de acordo com as orientações prescritas por Cabral e Maciel. Influenciado pelas técnicas do cartum, Redígolo confere ao marujo, no quadro a quadro, expressões fisionômicas e recursos gráficos próprios dos quadrinhos criando um ar leve à história.
Figura 4 Esboço-marujo. Daniel Bruson (2009). Fonte: acervo Coala Filmes.
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Ao estabelecer uma leitura visual do storyboard, percebe-se que Redígulo apresenta a história de um feliz marujo que entra em cena atribulado com suas funções rotineiras e cujo norte é marcado pela lembrança de uma mulher a qual se faz presente em sua vida por meio de uma foto pregada acima da mesa de navegação. Diante dos percalços da viagem, o marujo resolve desfazer-se da foto, jogando-a “ao sabor do vento” para seguir, após a tempestade, a concretização de um final seguro.
A câmera-grafite Acertadamente, Salles (2007a) diferencia os desenhos de passagem das demais produções gráficas por perceber qualidades e funções específicas que caracterizam a tarefa de produzir um filme usando uma câmera-grafite. É Jungle (2007) quem apresenta o referido conceito ao rever os processos que perpassam suas próprias criações cinematográficas. O ato de condensar o filme numa série de registros visuais assemelha-se à necessidade que a História da Humanidade sentiu, desde a Antiguidade, de transformar fatos em desenhos seriados. No entanto, esse processo aparece invertido no cinema uma vez que é a ação futura que será suscitada por essas imagens e não o contrário. Para o mesmo autor, o “storyboard é o desenho da história do filme. Mas já é um desenho contaminado pelo olhar do diretor” (JUNGLE, 2007, p. 210). A afirmação supõe uma falsa ascensão desse tipo de anotação em relação à produção captada pelo filme e exposta ao público. Notoriamente, é relevante lembrar que o processo criativo implica etapas as quais se revertem em “contínuos gestos aproximativos-adequações que buscam a sempre inatingível completude” (SALLES, 2006, p. 21). Dessa forma, há ressalvas: “o desenho nunca é o filme. Mas, quando se tem o desenho de uma cena na mão, tem-se um fato concreto e não mais uma ideia” (JUNGLE, 2007, p. 211). A conversão de uma ideia num roteiro visual propõe um olhar aos desenhos de um filme através de uma câmera-grafite. E ainda traz à tona a aproximação de linguagens que, a priori, parecem guardar certa distância: a estaticidade das histórias em quadrinhos e a dinamicidade das imagens animadas. No entanto, esse diálogo entre as diferentes expressões e codificações da linguagem, que aparecem e buscam no cinema formas de manifestação, já eram previstas por Alexandre Astruc, em 1948. Uma de suas contribuições para os estudos cinematográficos é a proposição de aproximações entre a ação literária e a ação cinematográfica de seus autores. Ao abandonar sua condição de entretenimento e deixar de ser comparado às modalidades cênicas, o cinema permite que sua linguagem rume no caminho da abstração, isto é, para uma nova forma de codificação e, consequentemente, decodificação de pensamentos. Entendendo a linguagem como forma de articulação na qual um ser humano estabelece relações com outro ser humano, pode-se compreender o termo camera-stylo
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(câmera-caneta). Da mesma forma que o literato manipula sua caneta configurando uma forma à realidade literária, também o diretor de cinema é capaz de forjar com a câmera a realidade cinematográfica. O que Astruc (1948) e, posteriormente, Jungle (2007) assinalam é o caráter revelador do cinema que absorve e transforma formas em realidade expressiva. Nesta direção, há ainda um estágio nas histórias em quadrinhos. Diz o autor: “Na verdade, estou muito envolvido com quadrinhos. Sempre fui muito envolvido com isso. Lia muito, gostava de desenhar” (PINHEIRO, 2010). No entanto, não há como negar a direção do próprio autor no processo de construção desse produto audiovisual filmado primeiramente com a câmera-grafite. A análise feita até aqui mostra como Bruson e Redígolo empenharam-se para caracterizar a personagem que seria levada ao set de filmagem. Tais escolhas trouxeram a personagem para ser inserida em tal decurso. O acompanhamento dessas fases da produção trouxe a Cabral momentos de avaliação e tensão e consequentemente o descartar de determinadas ideias em razão de outras. É muito provável que a sequência de desenhos de Redígolo tenha mostrado a Cabral algo que, na intenção do diretor, encontrava-se na “vagueza da tendência”, seguindo aqui Salles novamente (2007b, p. 63).
A tensão psíquica Os traços que estruturam a personagem mobilizam ordenações de formas simbólicas. Em outras palavras, as escolhas, os acréscimos, os retornos, as ideias abortadas, as insistências e as dúvidas vão se ordenando numa estrutura que tende a revelar um conteúdo expressivo. Os movimentos dinâmicos do impulso criador e de ritmos internos manifestam-se por meio dos gestos do(s) artista(s) e se revelam nas linguagens verbal e não-verbal. Graça (2006, p. 96) diz que “o filme animado é o processo pelo qual o autor constrói uma presença-transitória”. Ostrower (1987) diz ainda que a realidade nova trazida à tona por meio da criação é o seu próprio autor. Dessa forma, não há como separar o criador da criatura, a personagem de seus colaboradores. Em Tempestade o processo colaborativo pôde agregar à figura do marujo um complexo de presenças, as quais contribuíram para formar seu perfil de solitário. Cada linguagem específica agregou à personagem atributos que levaram à sua configuração final. Ao falar sobre como pensamentos se processam na linguagem, Ostrower (1987) diz que o artista é capaz de representar representações e assim, simbolizar ideias e correlações. Na percepção de si mesmo o homem pode distanciar-se dentro de si e imaginativamente colocar-se no lugar de outra pessoa. Em virtude do distanciamento interior, a expressão de sensações pode transformar-se
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na comunicação de conteúdos subjetivos. O homem pode falar com emoção, mas ele pode falar também sobre as suas emoções. Estende a comunicabilidade a conteúdos intelectuais. Ele pensa e pode falar sobre os seus pensamentos (OSTROWER, 1987, p. 22).
A criatividade é uma força crescente que se alimenta e se renova nos próprios processos através dos quais se realiza. Assim, Cabral traz a oportunidade de vivenciar no fazer um conteúdo expressivo que se justifica quando o diretor diz estar pronto para uma nova experiência, mas que, no entanto, vai além da experiência prática. Em suas palavras: Em Tempestade, a busca que tive era realmente experimentar a linguagem narrativa. Ter um desafio inicial, que era contar uma história sem diálogos. Contei essa história com imagens. É uma história densa, que fala de amor, de solidão, de uma pessoa perdida em alto-mar. Talvez essa tenha sido a grande busca. Junto a isso, trabalhei a parte estética. Fora a referência da música dos Beatles, tive outra referência que foi a obra de William Turner (pintor romântico inglês, um dos precursores do Impressionismo). Não que eu ache que meu filme se transformou na imagem ou nos quadros do Turner. Ele serviu para a gente buscar essa coisa da textura, da luz. Dessa narrativa que tem nos quadros do pintor inglês. Achei que podia experimentar em cima disso no meu filme. Foi o grande desafio (PINHEIRO, 2010. Grifo nosso).
Figura 5 Storyboard Tempestade – Juliano Redígolo (2009). Fonte: acervo Coala Filmes.
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O que se quer dizer, mediante as investigações, é que todo o percurso, em meio a limites, a regras, a prazos, estabeleceu uma tensão no processo criativo de modo a forçar reestruturações e o enriquecimento da própria produtividade. Se os esboços conferiram à personagem o perfil solitário, ao entrar em cena o storyboard pôde-se prever sua ação. No entanto, é pelo olhar da câmera que o diretor contribuiu com sua parcela última de ação na obra. As duas últimas cenas (Fig. 5 – P75 e P76) presentes no storyboard são abolidas da animação final. Assim, há uma proposta de filme nos desenhos que não chega a se concretizar. Insere-se uma grande elipse para que a expectativa de um final não se concretize. Intencionalmente, Cabral percebe que a solidão que o processo condensou até então não fora a de Eleanor Rigby, nem a do marujo que espera reencontrar a amada, nem daquele que vive um amor platônico e tão pouco de qualquer um daqueles que passaram a habitar os processos pelas mãos de seus criadores. A solidão de Tempestade, trazida com a ruptura narrativa é a solidão que pode ser vivenciada por qualquer um, do pensar-se jogado no mundo, daquilo que se pode interiorizar porque é comum ao ser humano: é parte de sua essência. Pelo gesto da mão, pela manipulação quer das linguagens quer dos dispositivos, o animador (re)apropriar-se-ia tanto da sensibilidade (no acesso ao real) como da instrumentalidade da máquina, enquanto objeto social, humano, modificador da relação que mantemos com a realidade. A experiência poética aparece a partir do prazer de experimentar esses novos afetos, ser afetado e afetar (GRAÇA, 2006, p. 120).
Assim, nessa última escolha, nesse último gesto poético que concretiza seu pensamento sobre a solidão, Cabral finda sua busca e entrega a animação, “ao sabor do vento”, cujos rumos encontrarão como primeiro porto suas primeiras exibições.
Considerações finais Durante esse percurso investigativo, puderam-se examinar as articulações em relação ao conteúdo da storyline e a forma plástica que seria assumida pela personagem. A exigência de um ponto de partida fundado na cultura inglesa levou a equipe a se preocupar em trazer esses elementos para a construção imagética da obra e a discutir os reais rumos da história. Isso justifica a busca presente na storyline ora atribuindo à personagem as características solitárias de Eleanor Rigby, ora metaforizando a relação solidão=mar, indiciado pelas imagens de Turner. O storyboard segue a mesma tendência
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do processo: incessantes procuras por um fim que nada guarda de semelhante com as escolhas tomadas pela equipe na produção. No entanto, os documentos processuais analisados mostram a dimensão prospectiva do projeto do autor: são pensamentos colaborativos, que agem em cadências distintas, mas se fazem presentes e justificam os gestos do animador. Ao analisar os fragmentos que compõem o ato criativo é interessante perguntar sobre as escolhas e ideias abortadas durante o processo. Dos primeiros desenhos à seleção das cenas muitas poderiam ser as histórias contadas. No entanto, os desenhos pinçaram uma personagem para trilhar uma história e a câmera-grafite, por meio de sua visão quadro a quadro, pôde prever o seu final. Em meio a pensamentos, a hipóteses e a experimentações percebe-se o instaurar de uma tensão existencial que, paulatinamente, foi encontrando mecanismos para dar contornos à situação. O marujo que durante parte do processo caminhou só nas mãos de seus idealizadores, encontrou na animação outros solitários: o mar, o barco, o farol, o relâmpago, um retrato sem certidão. Se nos documentos processuais a personagem pode ser estudada de forma isolada, o mesmo não se aplica ao universo no qual é inserida. Desvela-se, então, um novo norte, para o qual a investigação tende a seguir.
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OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. 19. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1987. PINHEIRO, A. Revista Brasileiros. A tempestade criativa de um animador. Net. Rio de Janeiro, 2010. Seção o lado B da notícia. Disponível em: <http://www.revistabrasileiros.com.br/secoes/olado-b-da-noticia/noticias/1731/>. Acesso em: 19 ago. 2011.
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Daniela Ramos de Lima é mestranda em Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos. Bolsista CAPES/REUNI.
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O trabalho interdisciplinar visando à construção de valores na prática pedagógica limites e possibilidades JÉSSICA ALINE TARDIVO, ANA RITA BRÁSIO SIMÕES CORSATO, ANAELY KAMILLA VACCARI RIBEIRO, ELIANE NICOLAU SILVA, THALITA QUATROCCHIO LIPORINI*
Resumo: A temática desta pesquisa se refere ao trabalho interdisciplinar voltado para a educação de construção de valores e às possibilidades e dificuldades encontradas pelos professores para o desenvolvimento do mesmo. Os objetivos da pesquisa consistiram verificar a concepção dos professores sobre a prática do método interdisciplinar vinculado a construção de valores e conhecer como ele é desenvolvido no cotidiano escolar. A pesquisa de natureza qualitativa foi realizada por meio da aplicação de um questionário a professores (as) que atuam tanto na rede pública quanto na rede particular de ensino do município de São Carlos-SP. PALAVRAS-CHAVE: INTERDISCIPLINARIDADE, CONSTRUÇÃO DE VALORES, PRÁTICA PEDAGÓGICA Interdisciplinary work seeking for the construction of values in teaching practice: limits and possibilities Abstract: The topic of this research refers to the interdisciplinary work towards the construction of values in education and the possibilities and difficulties encountered by teachers for the development of it. The objectives of the research consisted of checking the notion of teachers about the practice of interdisciplinary method linked to the construction of values and to know how it is developed in the school routine. The qualitative research was conducted through a questionnaire to teachers (as) that act both in public and in private schools in São Carlos, SP, BR. KEYWORDS: MULTIDISCIPLINARY APPROACH, FIELD SURVEY, PEDAGOGICAL PRACTICE
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presente trabalho foi desenvolvido na tentativa de averiguar a presença da educação de valores através do trabalho interdisciplinar no cotidiano escolar. Partindo da hipótese de que esse trabalho interdisciplinar voltado para a construção de valores se encontra ainda pouco presente na prática pedagógica da maioria dos docentes, seja por questões da sua própria formação e/ou pelo contexto escolar como um todo, resolvemos aprofundar as pesquisas nessa temática, por considerála fundamental para uma formação mais humana.
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Acreditamos nessa concepção de educação, que vai além formação técnica, a qual valoriza e prioriza a atuação do educando como sujeito sócio-histórico, que possui saberes oriundos de sua vivência e que não apenas aprende, mas também ensina, numa constante troca dos saberes. A temática da pesquisa foi então escolhida por ser entendida como meio para a realização dessa educação humanitária, capaz de formar um cidadão autônomo, crítico e consciente de suas possibilidades e responsabilidades para com a sociedade. Diante disso, o problema da pesquisa se configurou na seguinte questão: “Quais as concepções dos docentes para realizar um trabalho de interdisciplinaridade vinculado a construção de valores e quais os limites e possibilidades de trabalhar o proposto em sala de aula?” Na busca das respostas para a confirmação ou não da presente hipótese, alguns objetivos foram delimitados, tais como verificar a concepção dos professores sobre a prática do trabalho interdisciplinar vinculado a construção de valores; analisar quais as dificuldades e possibilidades de desenvolver a interdisciplinaridade nas escolas de atuação desses professores; verificar se a prática pedagógica contempla uma educação voltada à garantia dos direitos humanos. Como instrumento de pesquisa, utilizamos a aplicação de um questionário a quinze professores (as) dos diferentes níveis de ensino das redes municipal e particular do município de São Carlos, de onde extraímos informações necessárias para a nossa reflexão. O presente texto foi organizado em duas partes, nas quais tratamos respectivamente a) das revoluções educacionais ocorridas nas últimas décadas, assim como as diferentes interpretações quanto ao papel da escola na nossa sociedade e o surgimento e importância da interdisciplinaridade; b) da construção de valores e educação de direitos humanos no ensino e, finalmente, realizamos a análise de dados. A temática foi estudada a partir das produções de Thiesen (2008), Esteve (2004) Klein; Pátaro (2009), Paulo Freire(2011) e Fazenda (1979), as quais ampliaram nossas concepções sobre os vários conceitos apresentados aqui.
A interdisciplinaridade na escola A instituição escolar sofreu muitas alterações durante os séculos, assim como a sociedade. Para compreendermos a educação na atualidade precisamos percorrer os caminhos já trilhados por ela. Nesta perspectiva, abordaremos Esteve (2004) que aponta três momentos que caracterizam as transformações educacionais, chamadas por ele de revoluções educacionais. Em linhas gerais, a primeira revolução cria e generaliza a escola como instituição dedicada ao ensino. Documentos históricos, datados de 2.500 anos antes de Cristo, apontamnos para a existência de escolas no antigo Egito. Eram instituições destinadas à elite sacerdotal e à administração do Estado, onde se ensinava a escrever. Os poucos que tinham 206
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acesso a este privilégio estavam dispensados do trabalho corporal e ocupavam uma posição social relevante e economicamente vantajosa, compatível com seu grau de instrução. A segunda revolução, datada do século XVIII, relaciona-se à responsabilidade do Estado frente à educação da população infantil: as escolas deixaram de ser apenas fruto de iniciativas aleatórias do setor privado. O compromisso estatal com a escola restringiase ao ensino fundamental, cujo objetivo estava circunscrito à alfabetização e ao domínio de cálculos elementares. Contudo, a escassez de vagas oferecidas levou a uma nova elitização: só os mais inteligentes tinham oportunidade de estudar, ou seja, aqueles que obtinham boas notas e que se adaptavam à instituição, correspondendo às suas exigências. Institucionalmente, esta “seleção” levou à formação de um corpo discente homogêneo, com rendimentos escolares semelhantes e expectativas convergentes. Socialmente, esta elitização resultou na distinção dos indivíduos pelo seu nível de escolarização, garantindo aos mais graduados um futuro promissor. Em ambos os períodos, deparamo-nos com a educação escolar como privilégio, o que conferia aos seus beneficiários status social e econômico. A terceira revolução, na segunda metade do século XX, caracteriza-se pela compreensão da educação escolar como um direito, extensivo a todas e todos. Dentre as consequências deste processo de democratização podemos destacar a consideração da diversidade, a busca pela superação da pedagogia da exclusão, o deslocamento do foco do ensino para a aprendizagem, a importância que passa a ser conferida à educação pré-escolar, o rompimento da associação entre graus educacionais e status social e econômico. Sabemos que todas essas revoluções contribuíram para o desenvolvimento da educação, mas reconhecemos que o papel da escola ainda não condizia com o ideal de educação defendido aqui. Sobre o papel da escola Thiesen (2008, p. 550) expõe: A escola, como lugar legítimo de aprendizagem, produção e construção de conhecimento, cada vez mais precisará acompanhar o das mudanças que se operam em todos os segmentos que compõem a sociedade.
A educação evidencia-se então como responsável por tentar responder às necessidades da sociedade contemporânea, a qual exige um investimento significativo daquela, na medida em que cobra cada vez mais resultados, aumentando a competição e a necessidade da aquisição de conhecimentos técnicos por parte dos alunos, para que estes possam acompanhar o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Assim, essa exigência acaba por modificar o verdadeiro sentido da educação, pois exige o desenvolvimento cognitivo, desconsiderando o desenvolvimento completo dos educandos, como os desenvolvimentos emocional, moral, psicológico, afetivo e social.
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Ainda sobre essa discrepância sobre o papel da escola, Klein e Pátaro (2009, p. 2) colocam: O momento atual impõe à escola o desafio de lidar com uma realidade na qual a formação e a instrução estão distribuídas por todas as partes; onde a escola deixou de ser a única fonte do saber; onde nos vemos submetidos a transformações aceleradas em que as tecnologias da informação e da comunicação mediam nossas relações interpessoais e o acesso ao conhecimento. Em contrapartida, a escola continua se organizando e funcionado por meio de uma estrutura e de concepções que se pautam por um modelo de sociedade que não corresponde mais à nossa realidade. Lidar com este novo contexto implica na superação de estereótipos e na elaboração de novas visões e caminhos educativos.
Diante dessa realidade, destacamos a necessidade de nós educadores refletirmos sobre a finalidade do ensino e nossa própria prática, buscando proporcionar aos educandos o verdadeiro potencial da educação, que vai além do formar para o trabalho, formando inclusive para a vida. Essa reflexão vai ao encontro das concepções de reformulação do ensino que consideramos efetiva, devendo ser iniciada na formação de professores baseada no questionamento sobre a ética profissional e os valores exercidos na prática pedagógica, para que exerçam realmente o papel de construtores de uma educação mais humanitária. Sobre essa visão mais humanitária de educação discorre Paulo Freire (s/d): Escola é …o lugar que se faz amigos. Não se trata só de prédios, sala, quadros, Programas, horários, conceitos… Escola é sobretudo, gente Gente que trabalha, que estuda Que alegra, se conhece, se estima. O diretor é gente, O coordenador é gente, O professor é gente, O aluno é gente, Cada funcionário é gente. E a escola será cada vez melhor Na medida em que cada um se comporte
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Como colega, amigo, irmão. Nada de “ilha cercada de gente por todos o lados” Nada de conviver com as pessoas e depois, Descobrir que não tem amizade a ninguém. Nada de ser como tijolo que forma a parede, Indiferente, frio, só. Importante na escola não é só estudar, não é só trabalhar, É também criar laços de amizade, É criar ambiente de camaradagem, É conviver, é se “amarrar nela”! Ora é lógico… Numa escola assim vai ser fácil! Estudar, trabalhar, crescer, Fazer amigos, educar-se, ser feliz. É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo.
Na verdade, para que se alcance essa educação mais humanitária, a reformulação que buscamos deve abranger várias questões, como a concepção de escola e de mundo do educador, assim como de sua prática pedagógica e do currículo. Diz respeito a transformar a escola em um ambiente saudável, rico nas relações e nos vínculos e, consequentemente, prazeroso de estar. Assim, objetivando o desenvolvimento completo do educando e uma reformulação educacional como um todo, o currículo deve inevitavelmente transcender a organização disciplinar posta tradicionalmente e ainda a multidisciplinar, por não possibilitar o diálogo entre as informações das diferentes disciplinas e não propiciar sentido àquilo que se estuda. Buscando estes novos caminhos educativos onde a escola pode ser a trilha que contempla a diversidade e a complexidade social visando à formação crítica do cidadão e sabendo que o professor tem um papel e uma prática pedagógica importante nesta construção foi que propusemos essa nova abordagem curricular, a interdisciplinaridade visando a construção de valores. A interdisciplinaridade é evidenciada como parte integrante desse currículo, se apresentando como grande aliada do ensino para a vida, uma vez que supera a fragmentação do conhecimento e a distância entre o conhecimento do aluno e o escolar. A interdisciplinarização no trabalho escolar é uma grande mudança paradigmática que está em curso. Esta se deve principalmente ao contexto social, econômico e político que vivemos hoje, pois, como já vimos, a escola procura sempre atender às necessidades da sociedade que atualmente encontra-se cada vez mais interconectada, interdisciplinarizada e complexa.
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A interdisciplinaridade trata de um movimento que caminha para novas formas de organização do conhecimento ou para um novo sistema de sua produção, difusão e transferência, buscando responder à necessidade de superação da visão fragmentada nos processos de produção e socialização do conhecimento. Esta nova abordagem teórica-metodológica surgiu na segunda metade do século passado e segundo Thiesen (2008, p. 546): […] em resposta a uma necessidade verificada principalmente nos campos das ciências humanas e da educação: superar a fragmentação e o caráter de especialização do conhecimento, causados por uma epistemologia de tendência positivista em cujas raízes estão o empirismo, o naturalismo e o mecanicismo científico do início da modernidade.
A fragmentação e o congelamento do conhecimento estabelecido pela disciplinarização, neste momento, é superada pela interdisciplinarização que exprime a resistência sobre um saber parcelado. No entanto, a interdisciplinaridade não se coloca contra a disciplinarização, ela apenas propõe, como relata Thiesen (2008, p. 548), “uma profunda revisão de pensamento, que deve caminhar no sentido da intensificação do diálogo, das trocas, da integração conceitual e metodológica nos diferentes campos do saber”. Apesar da interdisciplinarização não se contrapor à disciplinarização, e propor uma nova forma de compreender os conceitos, ela ainda não é muito frequente no âmbito escolar por diversos motivos, assim como revela o mesmo autor (2008, p. 550): Não é difícil identificar as razões dessas limitações; basta que verifiquemos o modelo disciplinar e desconectado de formação presente nas universidades, lembrar da forma fragmentária como estão estruturados os currículos escolares, a lógica funcional e racionalista que o poder público e a iniciativa privada utilizam para organizar seus quadros de pessoal técnico e docente, a resistência dos educadores quando questionados sobre os limites, a importância e a relevância de sua disciplina e, finalmente, as exigências de alguns setores da sociedade que insistem num saber cada vez mais utilitário.
Como podemos ver, ainda há muita resistência e talvez ausência de conhecimento por parte dos educadores desta nova forma de construir o conhecimento. Além disso, tudo que é novo causa medo, sobrecarga de trabalho e o rompimento de hábitos e acomodações, ou seja, é um grande desafio que muita gente não gosta de enfrentar.
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Para Fazenda (1979, p. 48-49), utilizar a interdisciplinaridade na escola implica em transformação, mudança nas instituições escolares, em uma nova formação para os educadores e um novo jeito de ensinar: Passa-se de uma relação pedagógica baseada na transmissão do saber de uma disciplina ou matéria, que se estabelece segundo um modelo hierárquico linear, a uma relação pedagógica dialógica na qual a posição de um é a posição de todos. Nesses termos, o professor passa a ser o atuante, o crítico, o animador por excelência.
Os professores que trabalham com a interdisciplinaridade precisam compreender que esta prática pedagógica, como sustenta Thiesen (2008, p. 550-551), possibilita a compreensão da relação entre teoria e prática, aproximando o sujeito de sua realidade mais ampla, auxiliando os aprendizes na compreensão das complexas redes conceituais, além de possibilitar maior significado e sentido aos conteúdos da aprendizagem, permitindo e contribuindo para uma formação mais consistente, crítica, criativa e responsável.
Construção de valores e a escola O termo valores segundo a definição do dicionário Aurélio significa: “as normas, princípios ou padrões sociais aceitos ou mantidos por indivíduos, classe, sociedade, etc”, sendo assim é possível dizer que existe uma grande relação entre o termo e a escola. Atualmente a escola tem um papel que vai além de transmitir conhecimentos. A formação dos alunos deve ser realizada de maneira global, não bastando prepará-los para um mercado de trabalho que prioriza a mão-de-obra barata e sim formá-los para atuar em uma sociedade com conhecimentos diversificados e com atitudes positivas em relação ao outro e a si mesmo. Dentro deste cenário, encontra-se um personagem muito importante para esta formação, a construção de valores. Esses valores, que norteiam a vida de cada pessoa, são adquiridos ao longo da vida, podendo ser modificados a cada momento, a partir de um novo aprendizado, de uma nova reflexão ou de um exemplo no sentido contrário a tudo aquilo que se acreditava até então. Espit (2007, p. 6) assim define os valores: Os valores são princípios nos quais acreditamos, pelos quais lutamos e sobre os quais organizamos e conduzimos nossas vida pessoal e profissional; dessa forma os valores são transmitidos, reafirmados e introjetados ao longo de nossas vidas nas diferentes relações que vamos estabelecendo no cotidiano de nossa casa, na escola, no trabalho e no lazer, entre outros.
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Fica claro então que os valores podem ser construídos em todos os lugares e veiculados por meio de diferentes meios de comunicação. Um exemplo na sociedade atual, é a TV e a Internet. A escola é uma instituição que favorece muito o desenvolvimento da construção de valores; neste ambiente, a socialização tem papel privilegiado, visto que as crianças podem relacionar-se com outras crianças da mesma faixa etária, que vivem conflitos, ansiedades e curiosidades bem parecidas. Também é um ambiente rico, principalmente nos dias atuais, pois permite a aprendizagem por meio da diversidade, ocasionando assim o desenvolvimento de respeito às diferenças. No âmbito escolar, muitas temáticas podem ser abordadas como: regras, diversidade, afetividade, justiça, solidariedade, respeito, cooperação, entre outros; a grande questão é como educar em valores. A escola deve refletir sobre sua forma de ensinar, pensar a questão do autoritarismo, definir quais valores devem ser abordados de acordo com sua realidade e traçar estratégias de ensino, nas quais a construção desses valores aconteça junto com os alunos, debatendo temas, situações reais da escola ou da realidade das crianças e de sua comunidade, e ter como principal objetivo a formação de autonomia nas crianças. A construção de valores se dá por meio de exemplos positivos. Na escola esses exemplos são base para estabelecer uma boa relação entre professor, aluno, escola e comunidade. Segundo Trevisol, (2009, p. 8) a postura desse profissional quando discute diferentes temas, transmite conhecimentos e, principalmente, torna-se “exemplo de vivência” do conjunto de valores que apregoa, será, sem dúvida, uma das condições essenciais na obtenção do êxito educativo. Quando existe uma relação de confiança, afetividade e uma participação ativa do aluno dentro do seu próprio processo de aprendizagem, os resultados acabam sendo positivos e os objetivos alcançados. Moran (2009, p. 56) fala um pouco sobre essa relação de afetividade e confiança: […] a relação pedagógica afetiva é fundamental. Aprendemos mais e melhor quando o fazemos num clima de confiança, de incentivo, quando estabelecemos relações cordiais com os alunos, quando nos mostramos pessoas abertas, afetivas, carinhosas, tolerantes e flexíveis, dentro das regras organizacionais.
Diante desse papel, cabe a escola trabalhar baseada na Educação em Direitos Humanos (E.D.H.); pautar o ensino nesses direitos é algo que está descritos em documentos como os Parâmetros Curriculares e Diretrizes, em que, portanto, são assuntos que devem estar presentes no currículo da escola. Os direitos humanos são fruto de uma luta que vem acontecendo desde o século XVIII, quando se inicia uma discussão sobre direitos civis e também sobre liberdade. Com o tempo, esses direitos foram sendo debatidos e construídos, baseados principalmente em 212
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ideais de igualdade entre as pessoas. Atualmente, são muitos os aspectos de formação para que o respeito a vida humana sejam vivenciados de maneira positiva dentro da sociedade. Segundo Benevides (2000, s/p), a educação em direito humanos pode ser definida como: A Educação em Direitos Humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas.
A autora citada acima nos mostra que ao trabalhar com esses valores, o objetivo é criar novas atitudes, mudar o pensamento em relação ao outro, para que a desigualdade social, marcadas por preconceitos à diversidade seja quebrada. Para isso é necessário mais do que aulas expositivas, transmitindo conceitos ou comentando artigos da lei, é necessário desenvolver ações que venham a contemplar esses direitos, conforme Carvalho (2004, p. 437) comenta sobre a prática pedagógica, ao trabalhar direitos e deveres com as crianças: Em se tratando de educação, de modo geral, antes de discursos e informações, são as ações o que importa considerar. Com mais razão, portanto, o sentido de uma educação comprometida com os ideais e valores da cidadania, da democracia e dos direitos humanos se expressa menos nas informações e nos discursos transmitidos do que nos princípios de condutas que regem, no cotidiano escolar, as ações educativas de uma instituição.
Como já foi dito acima, os exemplos positivos, são essenciais para a formação de valores, principalmente quando provocam reflexão e conhecimento dos direitos e deveres de todos e se tornam significativos se baseados em ações, onde o próprio aluno possa vivenciar as experiências para, posteriormente, repensar suas atitudes e assim formar uma visão diferenciada sobre determinadas situações cotidianas em sua vida escolar e pessoal. A formação do professor para desenvolver um trabalho que contemple de forma satisfatória uma formação global da criança também deve ser levada em consideração: definir quais são seus próprios valores e quais são relevantes para a criança dentro de sua realidade, são os primeiros passos para elaborar estratégias de ensino, com ações significativas que dêem oportunidade da criança construir seu próprio conhecimento. Para tanto, o corpo docente deve ter conhecimento sobre o assunto e, mais, deve saber transformar essas informações em ações educativas, para que essas idéias relacionadas, a direitos,
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deveres, cidadania e igualdade social não fiquem apenas no discurso e distantes da prática pedagógica. Quando essa temática se transforma em mero discurso ou transmissão de conceitos, ela perde seu sentido e acaba não provocando uma interiorização e reflexão nas crianças e, consequentemente, não modificam suas atitudes. Ainda segundo Carvalho (2004, p. 437), existe um equívoco, em relação ao ensino de direitos no âmbito escolar. Ele diz: Dentre inúmeros equívocos, vale ressaltar, em primeiro lugar, o fato de que a educação de valores fundamentais à vida pública não pode consistir meramente na transmissão de informações, tais como o conteúdo da Declaração dos Direitos do Homem ou os princípios da Constituição da República. Por certo, a posse dessas informações pode desempenhar um papel fundamental na elaboração de conceitos e práticas vinculados à educação para cidadania. Mas sua mera tematização não garante uma ação educativa vinculada a esses valores. Tampouco leva inexoravelmente à adesão, por parte dos alunos, de um modo de vida neles fundado.
Levando em consideração todas essas informações, é possível perceber que a função da escola atualmente vai além do ensino de disciplinas e conteúdos que estão relacionados ao desenvolvimento cognitivo ou uma formação pautada simplesmente por conhecimentos científicos e técnicos. A educação, atualmente, tem um papel muito mais amplo, a formação da criança deve ser global; as atividades e metodologias de ensino devem ser desenvolvidas de forma que o aluno seja ativo dentro do seu processo de aprendizagem e desenvolva por meio de ações e exemplos positivos atitudes que vão de encontro com o direito de todos, sabendo respeitar as diferenças e construindo valores. Para tanto, é necessário que a realidade da criança seja respeitada, que os professores tenham consciência da importância deste trabalho e adquiram esse conhecimento por meio de uma formação de qualidade, além de promover parcerias, principalmente com a família e a comunidade, exercendo assim, eles próprios, sua cidadania.
Considerações finais Após as discussões teóricas realizadas e a análise de dados concluída, retomamos a nossa questão inicial e concluímos que a concepção dos docentes em relação aos conceitos de interdisciplinaridade e valores é, em alguns momentos, equivocada, fruto de uma formação que não traz em seu currículo, informações suficientes sobre como desenvolver e a importância de um trabalho interdisciplinar na escola.
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Quanto à construção de valores, os docentes de maneira geral, consideram importante essa formação, mas a realizam apenas por meio de aulas expositivas e debates ou individualmente com o aluno em determinadas situações, mostrando que existe uma falta de preparo para realizar uma interação entre as disciplinas e a construção de valores. Dentro deste panorama, as dificuldades apontadas pelos docentes encontram-se relacionadas ao tempo e espaço para o planejamento com os demais professores, falta de incentivo dos gestores, falta de diálogo e resistência dos docentes em realizar esse trabalho. Somente com esse conjunto de elementos o corpo docente conseguirá desenvolver um trabalho voltado para a formação global do aluno, ensinando os conteúdos básicos, mas também aliando a estes, por meio de ações e exemplos positivos, conceitos como os de democracia, liberdade e autonomia. Cabe à escola primeiramente definir quais são os valores importantes a serem trabalhados, quais vão de encontro à realidade das crianças e da comunidade para depois desenvolver parcerias, estratégias, momentos de debates entre as crianças e entre os próprios docentes para, dessa forma, estabelecer um diálogo entre as áreas de conhecimento, permitindo que a construção de valores aconteça de forma interdisciplinar, não apenas como mais uma disciplina do currículo a ser simplesmente transmitida, mas sim de forma a que esse aprendizado perdure para a vida adulta das crianças, fazendo com que sejam formadas para exercer de fato sua cidadania.
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Anexo I Questionário IDENTIFICAÇÃO 1. Sua idade compreende a faixa de: ( ) 20 a 24 anos ( ) 25 a 29 anos ( ) 30 a 34 anos ( ) 35 a 40 anos ( ) 45 ou mais 2. Sexo: ( ) Masculino ( ) Feminino 3. Tempo de docência: _____________________________________ 4. Disciplina que leciona: ____________________________________ 5. Tipo de ensino: ( ) Ed. Infantil ( ) Fundamental I ( ) Fundamental II ( ) Ensino Médio ( ) EJA 6. Rede de ensino: ( ) Municipal ( ) Pública ( ) Particular 7. Sua carga horária é de: _________________________________ 8. Qual sua formação? ___________________________________ 7. Você tem pós-graduação: ( ) Latu sensu ( ) Mestrado ( ) Doutorado 8. Que atividades de formação você teve para desenvolver um trabalho interdisciplinar vinculado a construção de valores?
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( ) Disciplinas da graduação ( ) Cursos ( ) Palestras ( ) Especialização ( ) Nenhuma Outra: _________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ A CONSTRUÇÃO DE VALORES E O TRABALHO INTERDISCIPLINAR 1. A Educação em Direitos Humanos (E.D.H.) é, hoje, um instrumento utilizado por algumas instituições de ensino a fim de combater as violações dos direitos humanos, pois educa na tolerância, nos princípios democráticos e na valorização da dignidade. Você, como educador, já trabalhou em suas aulas a E.D.H. ? ( ) Sim Qual foi o contexto? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ Como trabalhou? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ ( ) Não Conhece essa prática? ______________________________________________________________________ ______________________________________________________________________ 2. O que significa para você o conceito de interdisciplinaridade? ( ) Integração dos conteúdos. ( ) Integração do conteúdos, estabelecendo um diálogo entre eles. ( ) Trabalho coletivo solidário. ( ) Trata-se de assuntos que estão relacionados em mais de uma disciplina. ( ) Significa trabalhar com temáticas extra curriculares. 3. Qual a importância do trabalho interdisciplinar? ( ) É importante para dividir tarefas. ( ) Promover um saber global sem fragmentação do conhecimento. ( ) É importante para estabelecer uma relação entre as diferentes áreas de conhecimento. ( ) Não considero o trabalho interdisciplinar uma prioridade. 4. Existe em sua escola um trabalho interdisciplinar? ( ) Sim, é realizado por alguns professores. ( ) Sim, é realizado a partir de projetos que envolve a escola toda. 218
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( ) Sim, é realizado a partir de um tema centra e depois o professor o realiza individualmente com sua turma. ( ) Não, cada professor desenvolve um trabalho individual com sua turma ou em sua disciplina. 5. Sobre a construção de valores na escola, você acredita que: ( ) é um trabalho exclusivo da família. ( ) é um trabalho conjunto entre escola/família/comunidade. ( ) é um trabalho que não surte, pois cada um possui seus próprios valores. ( ) é um trabalho que deve ser parte integrante do currículo e ser abordado durante as atividades. 6. Que valores você considera importante abordar em sua prática pedagógica? ( ) Respeito ( ) Generosidade ( ) Justiça ( ) Solidariedade ( ) Honestidade ( ) Liberdade ( ) Diversidade ( ) Amizade ( ) Diálogo ( ) Cooperatividade Outros:________________________________________________________________________ 7. Como você aborda temas de valores em sua aula? ( ) Através de aulas expositivas que fale sobre o tema. ( ) Através de debates a partir de uma situação real ou de textos. ( ) De forma individual com alunos que apresentam atitudes não éticas com os demais. ( ) Através de projetos. ( ) Não costuma abordar essas temáticas. Outros: ________________________________________________________________ 8. Quais são as dificuldades que você encontra em sua prática, para desenvolver um trabalho interdisciplinar vinculado a construção de valores? ( ) Falta de diálogo. ( ) Falta de tempo para se reunir com os demais professores. ( ) Falta de incentivo e abertura do gestor para desenvolver este tipo de trabalho. ( ) Resistência dos professores em trabalhar coletivamente. ( ) Não tenho dificuldades. Outro: _________________________________________________________________ 9. Entre as alternativas abaixo, quais servem de sugestão para sanar possíveis dificuldades? ( ) Mais tempo e espaço para planejar coletivamente. ( ) Disponibilização de informações e sugestões sobre como trabalhar de forma interdisciplinar e com temas de valores. ( ) Mais diálogo entre os professores. ( ) Mudanças no currículo. Outro: _________________________________________________________________
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10. Na sua opinião, qual o papel desempenhado hoje pela escola em nossa sociedade? ( ) preparar seus alunos para enfrentar um futuro mercado de trabalho. ( ) preparar seus alunos para enfrentar o vestibular e o ENEM. ( ) familiarizar seus alunos com a história e cultura da sua nação. ( ) preparar seus alunos para participar da vida em sociedade e todos seus direitos e deveres como cidadãos. Outro: _________________________________________________________________ ______________________________________________________________________
Anexo II Análise de dados Abaixo segue o quadro 1, pelo qual é possível conhecer um pouco mais o perfil dos professores participantes. Tabela 1 Perfil dos docentes participantes
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Nome
Tipo de Ensino
Rede de Ensino
Formação
Pós-Graduação/Lato Sensu
Atividade de Formação
P1
Fund. 2
Particular
Letras
Lato Sensu (andamento)
___
P2
Fund. 2
Particular
Ciências Exatas
Mestrado
Graduação/cursos/palestras
___
___
P3
Médio
Pública
Estudos Sociais/ Geografia
P4
Médio
Particular
Matemática
___
Graduação/palestras
P5
Médio
Particular
História
___
___
P6
Médio
Particular
Letras
___
Cursos/palestras
P7
Ed. Infantil
Pública
Pedagogia
___
Graduação
P8
Ed. Infantil
Pública
Pedagogia
___
Graduação/cursos/palestras
P9
Ed. Infantil
Particular
Pedagogia
Lato Sensu
Especialização
P 10
Ed.Infantil
Particular
Pedagogia
___
Cursos/palestras
P 11
EJA
Pública
Ciências Biológicas
Lato Sensu/Mestrado
Graduação/especialização/ cursos
P 12
EJA
Pública
Letras
Lato Sensu/Mestrado
Graduação/especialização/ palestras
P 13
Fund. 1
Pública
Pedagogia
Lato Sensu
Graduação/cursos/palestras
REVISTA OLHAR – ANO 14 – NOS 26-27 – JAN-DEZ/2012
Nome
Tipo de Ensino
Rede de Ensino
Formação
Pós-Graduação/Lato Sensu
Atividade de Formação
P 14
EJA
Pública
Pedagogia/História
Lato Sensu
Graduação/cursos/palestras/ especialização
P 15
Fund. 1
Particular
Pedagogia
___
Palestras
Em relação a formação dos participantes no nível de graduação, alguns são formados em áreas específicas como Matemática, Geografia, História, Ciências Exatas e Pedagogia. Sobre a pós-graduação, é possível verificar que seis professores tem formação Lato Sensu e três professores tem Mestrado. Sobre as atividades acadêmicas que envolvem a temática interdisciplinaridade vinculada a construção de valores na formação dos docentes, foi construído um gráfico que demonstra esses dados e formaliza-os como questão 1 para a análise desta pesquisa. Questão 1 – Contribuição da formação acadêmica para o desenvolvimento do trabalho interdisciplinar vinculado a construção de valores 10 8 6 4 2 0
Disciplinas da graduação
Cursos
Palestras
Especialização
Nenhuma
Figura 1 Resultados da Questão 1.
A partir dessas informações, é possível verificar que a formação dos professores participantes da pesquisa não contempla atividades de formação que promovam uma prática interdisciplinar e vinculada à construção de valores, visto que muitos deles obtiveram contato com a temática por meio de cursos, palestras e disciplinas de graduação. Além disso, dois professores disseram não ter nenhum tipo de formação voltada para o tema, o que demonstra que a formação docente ainda é um elemento que exige atenção. Nesse contexto, é possível avaliar a importância que os cursos de formação acadêmica desempenham para a formação de um professor atuante, que possui o compromisso de preparar o aluno para a vida em cidadania. Segundo Silva (2011, s/p), Com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) determinando um prazo para que todos os professores tivessem nível superior, surgiu uma gama de “pacotes de formação docente” que “vendem” cursos,
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221
mas deve-se questionar a qualidade desta e de toda a formação docente. Se eu não tiver uma boa formação, como vou formar bem meu aluno?
De acordo com Trevisol (2009), a formação do educador precisa considerar o contexto em que se realizará sua atuação profissional. Desse modo, é importante inculcar ao aluno a responsabilidade moral e crítica, independente de sua faixa etária. Segundo Goergen (2007) é preciso que os docentes recebam uma formação correspondente à oferecida aos alunos, que tenham passado por um processo de conscientização de sua própria moralidade, de seus ideais e sentidos de homem, de mundo e de vida, dos fundamentos que orientam seu julgar e agir, para só então, e a partir daí, pensarem no papel que lhes cabe como agentes da formação moral. A preocupação com a qualidade da formação de professores é mundial, conforme dados da Unesco (2000, s/p). Aperfeiçoar a formação profissional docente é uma medida de suma importância em qualquer esforço visando melhorar a qualidade da educação, assumida pelos Estados membros da UNESCO, incluindo o Brasil, em dois dos seis objetivos do Marco de Ação de Dacar.
A questão 2 nos mostra se o docente conhece ou não o trabalho com Educação em Direitos Humanos (E.D.H.), vinculado ao processo de construção de valores, como trabalha e em qual o contexto. A questão foi aberta, possibilitando que os docentes entrevistados formulassem e compartilhassem as experiências vivenciadas por eles. Vejamos agora algumas respostas de alguns dos entrevistados sobre o que foi a eles questionado com relação ao conhecimento dessa prática: “Para ser sincero, não muito, mas acredito que o suficiente para já ter inserido em aulas” (P2); “Já estudei sobre o assunto, porém muito raramente coloco em prática” (P4); “Tenho conhecimento, mas não trabalho com esses princípios” (P9); “Sim, mas ainda não tive a oportunidade de trabalhar em sala de aula” (P11). Nos argumentos explicitados pelos professores, pode-se evidenciar que a maioria dos docentes conhece o E.D.H., mas por um motivo ou outro não o trabalha em seu contexto escolar. Nas falas que se seguem, alguns docentes relatam como trabalham a E.D.H. e qual foi o contexto em que se inseriu essa temática: “Umas das formas trabalhadas com crianças de Educação Infantil, a qual sempre utilizo, é a respeito da ‘identidade da criança’, a fim de conhecer a si e aos colegas respeitando as individualidades. Trabalhei através de histórias, músicas, o nome etc. Umas das histórias que achei muito interessante se chama ‘Com quem será que me pareço’, onde as crianças se identificaram com os personagens através das características de cada um” (P8); “Geralmente o contexto é algum desentendimento entre as 222
REVISTA OLHAR – ANO 14 – NOS 26-27 – JAN-DEZ/2012
crianças. Utilizando a linguagem oral para demonstrar que é preciso respeitar as pessoas, dividir brinquedos, ser educado, saber esperar sua vez etc” (P10). Através das argumentações, nota-se que a E.D.H. é melhor trabalhada no Ensino Infantil, por meio do resgaste de situações do cotidiano dos alunos e dos docentes. A Educação em Direitos Humanos, de acordo com o docente P12, foi trabalhada a partir do contexto da interdisciplinaridade e por meio de um Projeto vinculado à Secretaria do Estado da Educação. Pode-se inferir um trabalho com um tema rico e atual: “Trabalhei com o projeto ‘Prevenção – eixo: “Bullying’, sugerido pela Secretaria de Estado da Educação, no presente ano. O projeto Prevenção inclui diversos eixos (além do bullying, drogas, futuridade e africanidades). Cada um desses eixos foi distribuído a professores de diferentes áreas do conhecimento. No meu caso, trabalhei em Língua Inglesa em conjunto com a área de Ciências e Biologia. Planejamos o trabalho em HTPCs e desenvolvemos o projeto durante o ano. Na minha disciplina, passei um clipe em inglês do grupo Aerosmith, no qual ele mostra a história de um menino que sofria bullying na escola por apenas tirar notas muito altas. Discuti o assunto com os estudantes e, em seguida, passei em projetor alguns vídeos informativos, também para a discussão. Em um outro momento, fizemos a seleção de vocabulário da língua inglesa acerca do tema e construímos, como produto final, a “Árvore do Bem”, com dizeres contra o bullying escritos em CDs.” De acordo com Martins (2008), os alunos mais novos (frequentando os 1o e 2o ciclos do ensino básico) tendem a exibir mais agressão física e direta; enquanto que nos alunos mais velhos (frequentando o 3o ciclo do ensino básico e o ensino secundário) a agressão física diminui e surgem formas de agressão de carácter mais relacional e indireto (OLWEUS, 1997; WHITHNEY & SMITH, 1993). Ainda de acordo com a E.D.H., o professor P14 relata: “Em minha atuação enquanto professor sempre me preocupei muito com a questão da valorização dos direitos humanos, pois sempre enfatizei bastante os direitos e deveres dos alunos, bem como a necessidade do respeito ao próximo. Por meio de histórias, conversas etc.”; O docente P13 discorre: “Só conheço superficialmente, costumo trabalhar o E.C.A.”; ainda o professor P 15 destaca:“Valores, direitos e deveres de cada um. Através de conversas diretas e indiretas abrangendo as situações do dia-a-dia e as vezes através de conteúdos.” As respostas apontadas pelos professores mostram que o trabalho com direitos humanos vem sendo abordado nas aulas, com ênfase principalmente no respeito aos direitos e deveres de todos. Porém, a ideia que os dados transmitem, revela que esse trabalho é realizado de maneira individual, cada professor em sua disciplina, mesmo quando ele surge de um projeto da escola. Também é visível que as aulas envolvem discussões com os alunos, um ponto positivo para que os mesmos tenham a oportunidade de expor suas ideias, sugestões e trocar experiências com os demais. Sendo assim, pode-se dizer que dentro da concepção de cada um, esse trabalho vem sendo realizado. No caso do professor P14, que disse trabalhar com o E.C.A., ele também está contribuindo para uma formação baseada nos direitos e deveres
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da criança e do adolescente e construindo esse conhecimento de maneira significativa, cumprindo o papel da escola. No decorrer da análise, a questão 3 aborda a concepção dos professores sobre a interdisciplinaridade. Questão 3 – Concepção de interdisciplinaridade 12 10 8 6 4 2 0 Interação dos conteúdos
Interação dos conteúdos com diálogo
Trabalho coletivo solidário
Assuntos relacionados em mais de uma disciplina
Temáticas extra curriculares
Figura 2 Resultados da Questão 3.
A partir do exposto no gráfico acima, cerca de onze professores entrevistados acreditam que a interdisciplinaridade constitui na interação de diversos conteúdos, estabelecendo um diálogo entre os professores. Para Pontuschka (1993, s/p), A interdisciplinaridade se apresenta como uma metodologia em que se respeita a especificidade de cada área, procurando estabelecer e compreender as relações entre os conhecimentos sistematizados, ampliando o espaço de diálogo na direção da negociação de idéias e da aceitação de outras visões.
E para Japiassu (1976, s/p), A interdisciplinaridade se caracteriza pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integração real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisa; exige-se que as disciplinas, em seu processo constante e desejável de interpenetração, se fecundem cada vez mais reciprocamente.
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REVISTA OLHAR – ANO 14 – NOS 26-27 – JAN-DEZ/2012
Os conceitos estabelecidos pelos dois autores se relacionam, quando a interdisciplinaridade se baseia em um contexto de diálogo entre docentes e alunos, produção do conhecimento e socialização desse conhecimento, por meio das diferentes formas de aprendizado. Ainda, de acordo com o gráfico acima, cinco professores entendem a interdisciplinaridade como assuntos relacionados a mais de uma disciplina, sem haver no entanto, uma dialética entre as respectivas. Pode-se relacionar esse conceito errôneo a uma questão de formação desses professores, evidenciando assim uma compreensão deficitária do assunto. Ainda em relação à idéias errôneas, um professor relaciona a interdisciplinaridade a interação de conteúdos e um docente relaciona ao trabalho coletivo solidário. Esses dados, voltam a confirmar a importância de uma formação de qualidade do professor, pois demonstra que o sucesso no desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar, depende também do conhecimento sobre o mesmo, com conceitos claros e buscando estratégias de aplicação viáveis a realidade da unidade escolar. Além disso, é preciso que todos os professores estejam dispostos a assumir esse compromisso e isto irá acontecer de maneira natural, se os docentes buscarem uma formação que garanta esse conhecimento, que poderá mudar sua pratica pedagógica tornando-a menos fragmentada. A importância do trabalho interdisciplinar é abordada na questão 4. Segue abaixo (figura 3), os dados referentes a ela. Questão 4 – Concepção sobre a importância do trabalho interdisciplinar 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0
Dividir tarefas
Promover saber global sem fragmentação
Estabelecer relação entre as diferentes áreas
Não considera o trabalho interdisciplinar prioridade
Figura 3 Resultados da Questão 4.
Por meio da análise do gráfico acima (fig. 3), uma pequena parcela dos entrevistados não considera o trabalho interdisciplinar uma prioridade. O resultado para essa concepção de alguns dos professores entrevistados reflete os argumentos estabelecidos por Luck (2001, p. 68):
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[…] a realização de um trabalho de sentido interdisciplinar provoca, como toda ação a que não se está habituado, sobrecarga de trabalho, certo medo de errar, de perder privilégios e direitos estabelecidos. A orientação para o enfoque interdisciplinar na prática pedagógica implica romper hábitos e acomodações, implica buscar algo novo e desconhecido.
Oito professores, a maioria dos entrevistados, acreditam que a importância do trabalho interdisciplinar promova o saber global sem fragmentação e o estabelecimento de relações entre as diferentes áreas. Essa opinião é bastante positiva, pois demonstra que consideram importante esse trabalho por razões que refletem o real conceito de interdisciplinaridade, possibilitando assim a construção de exemplos positivos, que podem ser seguidos por outros docentes, derrubando as barreiras do medo. A análise do gráfico da questão 5 (fig. 4) mostra se na escola que os docentes lecionam há um trabalho interdisciplinar. A partir dos dados mostrados, cerca de cinco professores alegaram que a instituição em que lecionam possuem projetos que envolvem a escola o ano todo, o mesmo número de professores também relata que na escola em que lecionam cada educador trabalha o conceito de interdisciplinaridade de forma individual.
6
Questão 5 – Presença do trabalho interdisciplinar
5 4 3 2 1 0
Sim, feito por alguns professores
Sim, com projetos que envolve a escola toda
Sim, com tema central e depois individualmente em cada turma
Não, cada professor trabalha individualmente
Figura 4 Resultados da Questão 5.
Segundo Santomé (1998, p. 253), as práticas interdisciplinares na escola exigem do professor ou professora uma postura diferenciada:
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Planejar, desenvolver e fazer um acompanhamento contínuo da unidade didática pressupõe uma figura docente reflexiva, com uma bagagem cultural e pedagógica importante para poder organizar um ambiente e um clima de aprendizagem coerentes com a filosofia subjacente a este tipo de proposta curricular.
A partir da análise desse gráfico, pode-se notar que os professores se dividem em opiniões contrárias, porém, essa divisão é equitativa. Pode-se perceber que apenas os professores da primeira e segunda coluna do gráfico realizam um trabalho coletivo por meio de projetos que envolvem a escola, culminando com o verdadeiro trabalho interdisciplinar; já os demais professores representados na terceira coluna do gráfico, disseram realizar esse trabalho, porém com práticas individualizadas em suas turmas, reflexos ainda de uma educação fragmentada, algo também visível na última coluna. No gráfico que representa a questão 6 (fig. 5), verifica-se a opinião dos docentes sobre a construção de valores na escola. Quinze professores opinaram que a construção dos valores é um trabalho conjunto entre a escola, a família e a comunidade. Visto que essa temática atualmente está presente no cotidiano escolar, sendo a educação de valores mais uma das funções da escola, e este um local privilegiado para troca e transformação, o resultado obtido nesta pesquisa é muito positivo. Além disso, há um professor que acredita que essa aprendizagem deve ser parte integrante do currículo, o que também é muito positivo para a garantia de uma formação global da criança.
16
Questão 6 – Concepção sobre construção de valores na escola
14 12 10 8 6 4 2 0
Trabalho da família
Trabalho entre Inviável, cada um tem Deve constar no currículo e escola/família/comunidade valores próprios nas atividades
Figura 5 Resultados da Questão 6.
A questão 7 (fig. 6), indica quais dos valores mostrados os professores consideram importantes para o desenvolvimento de uma educação em valores. Cabe ressaltar que os participantes puderam escolher quantas opções quisessem.
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Questão 7 – Valores a serem trabalhados na escola
16 14 12 10 8 6 4
Diálogo
Liberdade
Justiça
Amizade
Honestidade
Generosidade
Cooperatividade
Diversidade
Solidariedade
0
Respeito
2
Figura 6 Resultados da Questão 7.
Segundo Espit (2007, p. 6), […] entendemos que valores são enunciados únicos mas não absolutos e nem tampouco arbitrários; individuais mas que derivam da vida humana coletiva, portanto, construídos culturalmente e historicamente a partir da relação entre os indivíduos e o mundo constituído; os valores fundamentam nossas ações, nossas escolhas e nossos juízos sobre as ações, sejam elas subjetivas ou objetivas.
De acordo com a pesquisa, é possível verificar que os valores não estão sendo trabalhados. O respeito e o diálogo são trabalhados pela maioria dos professores entrevistados, refletindo assim as principais relações que se estabelecem entre o professor e o aluno em uma sala de aula. A grande maioria dos docentes considerou mais de dois valores importantes para o trabalho escolar, opinando também por outros valores que não se ligam diretamente à moral e à ética. Ainda assim, o docente P15 destacou: “ Todos os que formem um cidadão completo (questionador, de boa conduta e moral etc)”. A partir desse relato, Garcia (2006) defende a educação como um projeto social em relação estreita à construção da cidadania, ou seja, a instituição escolar representa um campo importante dessa e para essa construção, bem como para o aprender a exercer essa construção. Tal é o quadro a ser transformado, como nos sugere Nogueira (2000, p. 5): A educação para a cidadania requer muito mais do que a simples criação de oportunidades de participação dos alunos em alguns eventos proporcionados pela escola, porém este pode ser um
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começo. Pode ser um ponto de partida para um envolvimento maior com o espaço público e uma possível identificação com o mesmo. Para que haja uma educação de cidadãos, é preciso que acima de tudo os indivíduos, vistos como iguais, tenham a oportunidade de dialogar, expor seus anseios, necessidades e opiniões para que a escola passe a ser vista como local de troca, de relacionamento interativo, e não de imposições e regras, que muitas vezes não condizem com sua realidade.
A partir da análise em conjunto das figuras 6 e 7, é importante destacar que os valores citados pelos docentes ocorrem de forma natural na escola, ou seja, não cabe só aos professores trabalhar os respectivos valores, mas sim a reflexão conjunta de todos os órgãos da escola: da direção e dos demais funcionários. Os meios através dos quais os valores citados pelos docentes foram trabalhados se mostraram muito diversificados, como mostrado na figura 7, que corresponde à questão 8. Os entrevistados recorrem a debates a partir de situações do cotidiano e/ou reais, aulas expositivas, projetos e um docente citou que trabalha a questão dos valores de forma individual com alunos que apresentam atitudes não éticas com os demais. A partir desse dado, é interessante incluir a fala do professor P4: “dialética professor-aluno”. Apenas um docente citou que não trabalha a questão dos valores em sala de aula. Os dados nos mostram que a forma de trabalhar com valores em sala de aula ainda é muito ligada a forma pela qual se ensina outra disciplina do currículo. O trabalho com valores se dá por meio de exemplos positivos, com ações práticas baseadas na realidade local, com estratégias que permitem uma participação ativa do aluno e trazem a possibilidade de trabalhar os valores de maneira significativa, facilitando o aprendizado e uma formação de consciência que a criança levará para a sua vida adulta.
9
Questão 8 – Metodologia usada para o trabalho com valores
8 7 6 5 4 3 2 1 0
Aulas expositivas Debates com textos ou situação real
Individualmente
Por meio de projetos
Não abordo essa temática
Figura 7 Resultados da Questão 8.
CECH – CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
229
A questão 9 (fig. 8), aponta quais são as dificuldades que o docente encontra para desenvolver um trabalho interdisciplinar vinculado à construção de valores.
12
Questão 9 – Dificuldades encontradas para o trabalho interdisciplinar vinculado à construção de valores
10 8 6 4 2 0
Falta de diálogo
Falta de tempo para se reunir com outros professores
Falta de incentivo do gestor
Resistência dos professores
Não tenho dificuldades
Figura 8 Resultados da Questão 9.
Dez professores mencionaram que não tem tempo para discutir com outros colegas de trabalho, evidenciando assim a excessiva carga de trabalho semanal e a má remuneração. Docentes entrevistados que abordaram a falta de incentivo do gestor (administração) para a implantação de um trabalho interdisciplinar na instituição correspondem a um número de dois professores. Dados como esses nos remetem à ideia da ausência de relação entre docente e admistração escolar. Muitos professores se sentem intimidados pelos diretores, algumas vezes impedidos de realizarem atividades que possam comprometer o andamento da matéria. De acordo com Fazenda (2002), nem sempre o professor ou professora consegue fazer sozinho a leitura das limitações e possibilidades de sua prática; portanto a coordenadora ou coordenador pedagógico deveria ajudá-lo nesse sentido. Ainda para Fazenda (2002, p. 72), […] é fundamental o papel de um interlocutor que vá ajudando a pessoa a se perceber, que vá ampliando as possibilidades de leitura de sua prática docente e da prática docente de outros colegas. O papel de um supervisor ou de um coordenador pedagógico é fundamental nesse caso
O professor P3 não opinou em relação às alternativas, mas completou com o seguinte dizer: “acredito que criar valores é a função principal da família e não da escola”; o professor P15 também comentou: “A carência familiar, a falta de tempo dos pais para com seus filhos, o diálogo familiar e o respeito.” De acordo com Caldeira (2007, p. 148),
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REVISTA OLHAR – ANO 14 – NOS 26-27 – JAN-DEZ/2012
[…] a falta de amparo familiar (…) poderia ser minimizada se o professor ou professora optasse por realizar a maior parte das atividades em sala de aula, recorrendo o mínimo possível a tarefas extra-classe. Entende-se que, se fora da escola os alunos e alunas não tem (…) apoio familiar (…) Portanto, é importante que a professora e o professor conheçam a realidade de seus alunos e alunas para planejar da melhor forma as atividades a serem desenvolvidas no projeto interdisciplinar.
O professor P4 discute que “devido ao desenvolvimento de cada matéria em específico, considero muito raras as oportunidades para tal trabalho.” Ainda de acordo com Caldeira (2007, p. 148): […] essa, realmente, é uma limitação para o trabalho interdisciplinar que precisa ser superada: a falta de uma cultura geral da maioria dos docentes, que geralmente desconhecem o conteúdo de outras disciplinas, já que as universidades oferecem uma formação muito específica.
Diversos estudos têm mostrado que, muitas vezes, os professores e professoras têm as mesmas concepções alternativas de seus alunos, isto é, não apresentam conceitos científicos sólidos (TRUMPER; RAVIOLO; SHNERSCH, 1999). Sobre o fazer interdisciplinar, Fazenda (2002, p. 78) afirma: Aquele que se aventura a empreender esse caminho precisa antes de mais nada assumir um sério compromisso com a erudição; e com a erudição em múltiplas direções. Buscar o conhecimento, uma das atitudes básicas a serem desenvolvidas em quem pretende empreende um projeto interdisciplinar, só pode ser entendido no seu exercício efetivo.
Segundo Rivarossa de Polop (1999, p. 46-59), as principais dificuldades a serem sanadas para o desenvolvimento de uma prática interdisciplinar são: – formação muito específica dos docentes, que não são preparados na universidade para trabalhar interdisciplinarmente; – distância de linguagem, perspectivas e métodos entre as disciplinas da área de Ciências Naturais; – ausência de espaços e tempos nas instituições para refletir, avaliar e implantar inovações educativas.
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A figura 9, que apresenta a questão 10, demonstra as sugestões dos docentes para sanar as possíveis dificuldades para desenvolver o trabalho interdisciplinar vinculado à construção de valores nas escolas. Questão 10 – Possíveis alternativas para sanar as dificuldades apresentadas 12 10 8 6 4 2 0
Mais tempo e espaço para planejar coletivamente
Mais informações e sugestões sobre esse trabalho
Mais diálogo entre professores
Mudanças no currículo
Figura 9 Resultados da Questão 10.
Dez professores sugerem ter mais tempo e espaço para planejar coletivamente, seguidos de seis professores que disseram promover uma maior disponibilização de informação sobre o assunto, o que revela uma defasagem na formação, visto que, na figura 1, os dados revelam que a maioria dos professores teve contato com a temática, de uma forma ou de outra, ou seja, pelas disciplinas, cursos, palestras ou especialização, demonstrando que essa formação ainda não é suficiente para desenvolver um trabalho interdisciplinar vinculado à construção de valores. Ainda, cinco professores determinaram que precisa haver mais diálogo entre professores, o que também revela que o trabalho coletivo ainda não é uma prática incorporada ao trabalho docente e que muitos ainda não possuem a consciência da importância desse diálogo. Quanto às mudanças no currículo, pode-se dizer que os professores não encontram problemas com o mesmo, já que apenas dois docentes apontaram que o currículo deve ser modificado. O gráfico da questão 11 (fig. 10) apresenta os dados da opinião dos professores sobre qual o papel desempenhado pela escola na sociedade atualmente.
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Questão 11 – Concepção sobre o papel da escola em nossa sociedade
9 8 7 6 5 4 3 2 1 0
Enfrentar o mercado de trabalho
Enfrentar o vestibular e o ENEM
Familiarizá-los a história e cultura da nação
Participar da vida em sociedade como cidadãos
Figura 10 Resultados da Questão 11.
Os dados contidos na figura 10 revelam que oito dos docentes, a maioria, atribui à escola uma formação que promova aos educandos uma vida ativa na sociedade. Essa concepção é muito importante; realmente a função da escola atualmente vai além de uma formação técnica ou teórica. A formação para a cidadania, baseada em valores e em uma educação em direitos humanos, deve ser um componente presente no currículo escolar. Mesmo tendo essa consciência, foi possível perceber, por meio dos dados das categorias anteriores, que a forma de realização deste trabalho ainda precisa ser revista, sobre alguns aspectos. Também se observa que alguns docentes preocupam-se muito com uma formação voltada ao mercado de trabalho, porém, devemos lembrar que diante do fenômeno da globalização, essa formação também deve ser muito mais dinâmica, afinal esse mercado exige além de formação com qualidade, um profissional que tenha iniciativa, e, principalmente, saiba trabalhar em equipe. Quanto à formação para o vestibular e o ENEM, expressivamente escolhida pelos docentes, é importante para ingressar na faculdade, mas o professor não pode se esquecer que todo o conhecimento construído tem muito mais significado do que o conteúdo decorado, somente para fazer uma prova. Já sobre o conhecimento da história e da cultura da nação é importante ressaltar que ele também contribui para uma formação cidadã, auxiliando no aprendizado de valores, do respeito e da preservação do meio em que se vive.
*
Jéssica Aline Tardivo, Ana Rita Brásio Simões Corsato, Anaely Kamilla Vaccari Ribeiro, Eliane Nicolau Silva e Thalita Quatrocchio Liporini são pós-graduandas no curso ‘Etica, Valores e Cidadania na Escola’, na USP.
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Educação do funcionalismo público em tempos de
“BRASIL PARA TODOS” MANOEL MENDONÇA FILHO*
Resumo: A que se devem regularidades que podem ser expressas em termos de modos de subjetivação do funcionalismo público? Como entender regularidades de práticas tão comuns e presentes em diferentes ambientes organizacionais e em desempenhos de funções sem nenhuma relação aparente nas mais variadas especialidades profissionais? Que circunstâncias históricas do presente produzem o amalgama ambíguo de normas institucionais com sentimentos pessoais, em formações singulares altamente diferenciadas, mantendo, contudo, a possibilidade de pensar regularidades emergindo das teias de relações de poder pelas quais nos inventamos como funcionários públicos? O mais simples seria falar de funções técnico administrativas e/ou profissionais especialistas das três áreas estruturantes da forma Estado, tal como a conhecemos no Brasil desde a virada do último século: educação, segurança e saúde. Entretanto, haveria aí um reducionismo, uma vez que outros feixes de práticas (p.e., comunicação de massa) ocupam hoje lugar estratégico na articulação da função pública. Marcando o cerne do problema aqui tratado está o fato de que, depois de muito foco sobre a educação para o trabalho, a questão da educação do funcionalismo sugere uma mudança muito recente na forma Estado. A aposta aqui é em uma análise de conjuntura que dê conta da mutação da sociedade da produção para a sociedade do crédito e da especulação, cuja forma de dominação passaria a ser o controle pela gestão retórica das imagens. A expressão educação do funcionalismo busca dar conta dos modos de atualização da função educativa nesse cenário: o Estado de uma capitalística financeira. O trabalho de análise é entendido no texto como análise de produção de sentido. PALAVRAS-CHAVE: FUNÇÃO PÚBLICA, EDUCAÇÃO, ANÁLISE DE DISCURSO, PAPÉIS SOCIAIS, SOCIOMECATRÔNICA Education of the public service in times of “Brazil for all Brazilians” Abstract: How to account for the regularities which may be expressed concerning ways of subjectivation of public service? How to understand regularities of practices so common and present in different organizational environments and in fulfillments of functions with no apparent relationship in assorted professional specialities? Which historical circumstances of present days produce the ambiguous amalgam of
institutional norms with personal feelings, in singular formations highly differentiated, keeping, nevertheless, the possibility of thinking regularities emerging from the nets of power relations by which we invent ourselves as public servants? It would be easier to speak of techno-administrative functions and/or specialist professionals of the three structuring areas of the form State, as it has been known in Brazil since the turning of last century: education, security and health. However, there would be in here a reductionism once other sheaves of practices (e.g., mass communication) occupy a strategic place in the articulation of public function today. Marking the core of the problem dealt here is the fact that, after much focus on education for work, the issue of education of public service suggests a very recent change in the form State. The bet here is in a conjunctural analysis that accounts for the shift from society of production to society of credit and of speculation, whose form of domination would turn to be the control by the rhetoric management of images. The expression education of public service tries to explain the ways of actualization of the educative function in this scenery: the finantial capitalistic State. The analysis work is understood in the text as sense production analysis. KEYWORDS: PUBLIC FUNCTION, EDUCATION, DISCOURSE ANALYSIS, SOCIAL ROLES, SOCIOMECHATRONICS
P
enso aqui no que poderia ser considerado um esforço de atualização de um conjunto de papéis, tradicionalmente marcados com adjetivações desqualificadoras que remetem à ideia de sinecura, ineficiência, descompromisso etc. A mencionada atualização, iniciada na década de 90, coincide com a recuperação da imagem ‘Brasil’ tanto internamente, quanto no cenário internacional e é geralmente justificada pela necessidade de um novo funcionalismo para um novo país, que estaria agora liberto das garras da ditadura e da dependência em relação ao ‘imperialismo norte americano’, pronto para o ‘primeiro mundo’. O fundo histórico, que delimita a problematização proposta, coincide com a reconfiguração das relações internacionais pós guerra fria. ‘Era’ do capital financeiro. Difícil acreditar, mesmo tendo crescido e vivendo atravessado por psicologismos, que haveria um certo tipo de ‘personalidade’ sistematicamente recrutada e selecionada para compor os quadros do funcionalismo público. Sendo assim, resta entender como se constituem as regularidades de práticas tão comuns e presentes em diferentes ambientes organizacionais e em desempenhos de funções sem nenhuma relação aparente, nas mais variadas especialidades profissionais. Como se formam regularidades que podem ser expressas em termos de modos de subjetivação do funcionalismo público? Que circunstâncias históricas do presente produzem o amalgama ambíguo de normas institucionais com sentimentos pessoais e circunstâncias históricas em formações singulares altamente diferenciadas mantendo, contudo, a possibilidade de pensar regularidades emergindo das teias de relações de poder pelas quais nos inventamos como servidores públicos? Acompanhando o dia a dia de diferentes funções da chamada esfera pública, desenvolvendo pesquisas e orientando estudos nessa área temática nos últimos 20 anos, a
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partir da posição de serventuário do Ministério da Educação, nos deparamos com modulações de sentido específicas marcando modos de subjetivação que parecem próprios à forma de operacionalização das funções públicas, tais como se realizam no Brasil dos tempos de ‘Estado Democrático de Direito’. Não se trata aqui de elaborar o bom modelo orientador da função pública. Ao contrário, um tal modelo é o que se procura constituir como objeto de análise. Trata-se de um certo conjunto mínimo regras constitutivas1 (VERON, 1980) das quais emergem as pautas mais ou menos definidas para uma variação, mais ou menos extensa, de papéis sociais que poderão ser arrolados como participando do conjunto ‘funcionalismo público’. Estes papéis estão evidentemente na imagem que a sociedade produz de si mesma, mas são continuamente improvisados e agem permanentemente uns sobre os outros a partir de uma rede de convenções comuns (REVEL, 1989).
A noção foucaultiana de ‘modos de subjetivação’ remete aqui a modos de dizer e fazer que circunscrevem e fazem reconhecer um amálgama de práticas, afetos e atitudes esperadas no desempenho de papéis sociais de ‘funcionário público’ totalizadas em crenças e valores vinculados à técnicas de governo dos corpos (biopolitica). Em um primeiro movimento o termo funcionário público está sendo usado aqui para marcar algo como um ‘tipo ideal’ no sentido weberiano, sem que se deva entender com isso que alguém − uma pessoa qualquer − possa sustentar tal identidade. Não é alguém, ou conjunto de alguns, nosso objeto de análise. É, antes, uma formação discursiva,2 uma clave para pauta de categorias de orientação cultural constituída por feixes de práticas historicizáveis. O mais simples seria falar de funções técnico administrativas e/ou profissionais especialistas das três áreas estruturantes da forma Estado, tal como a conhecemos no Brasil durante a última virada de século: educação, segurança e saúde. Entretanto, haveria aí um reducionismo, uma vez que outros feixes de práticas (p.e., comunicação de massa) ocupam hoje lugar estratégico na articulação da função pública. Modo mais adequado, talvez, seria pensar em feixes de práticas que sustentam diretamente o governo da vida, práticas de biopoder (FOUCAULT, 1993). Aqui, tanto as prescrições delimitantes do que se deve fazer e como devem se comportar os corpos enquanto funcionários públicos; quanto as referências identificadoras importam não menos que as avaliações e os desempenhos para o que se considera como 1 Para o autor de A Produção de Sentido a noção de regras constitutivas, ao contrário da noção de norma, remete à ideia de uma gramática profunda que não apenas orienta condutas mas instaura as condutas que orienta. 2 Formação discursiva no sentido dado por Eliseu Veron em A Produção de Sentido (1980).
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campo de tensões determinante dos referidos papéis institucionais, onde encontraremos nosso objeto de análise. São, portanto, regras constitutivas de criação, delimitação e operacionalização das funções relacionadas com organizações de regulação, prestação e fiscalização de serviços públicos (estatizados ou terceirizados), partindo das três áreas clássicas das funções de governo, que tomamos aqui como fatos observados: em maternidades públicas ou em gabinetes administrativos de uma secretaria de justiça, em unidades prisionais ou em salas de aula de escolas de bairros periféricos, em Centros de Atenção Psicossocial ou em unidades de polícia militar, mas não só. Também o que vai dito nos documentos oficiais e nas teorias acadêmicas que tomam a função pública como objeto, os comentários nos botecos e conversas de fila de banco e/ou mercado. Vestígios colhidos no cotidiano. Eis a imagem do ‘funcionalismo público’ como figura do imaginário de Estado, se é que se pode usar a expressão: formação discursiva, identificada ao longo de anos de pesquisa e programas de extensão universitária, que tomaremos como regularidade que se sustenta Foto de João Henrique Tellaroli Terezani objetivando crenças, valores, afetos e práticas. Modo de existir do funcionalismo público do ‘Brasil para Todos’. As pistas iniciais que levaram ao isolamento das referidas regularidades discursivas, tomadas em termos de papéis institucionais a que este texto se refere, mostram três características distintivas: a preocupação e ou zelo com as normas, as regras e a lei; a insatisfação atravessada por sofrimento afetivo em relação ao ambiente de trabalho e ao estatuto social desprestigiado do cargo ou função desempenhado; e a separação da experiência cotidiana do funcionalismo público em duas esferas bem distintas: a) como as coisas são; b) como as coisas deveriam/poderiam ser. Uma ambiguidade que remete à diferença entre ‘ponto de vista jurídico’ (Validade Ideal) e ‘ponto de vista sociológico’ (Validade Empírica) (WEBER apud BOBBIO, 2001, p. 57). Como já foi antecipado, em termos de dados de pesquisa, as regularidades que distinguimos como ‘próprias ao funcionalismo público’ foram extraídas de cenas acompanhadas
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no desempenho direto das funções públicas, além de documentos, registros e ou comentários sobre a função pública. Um conjunto de eventos observados em termos de práticas discursivas linguísticas e extralinguísticas (VERON, 1980). Antes, como fatos emergidos em situações de operacionalização e ou apreciação da função pública, que como fatos próprios aos ‘indivíduos’ ou ao nosso modelo de sociedade. Quero dizer com isso que há uma dimensão de emersão do que não havia antes e que não estava previamente determinado. Trata-se de analisar a produção discursiva que vem constituindo o funcionalismo público como objeto de uma orientação racionalizada nos últimos 20 anos. Não observávamos procurando entender o que haveria de comum em unidades elementares que comporiam o ‘ser’ do funcionalismo público; observávamos na perspectiva de distinguir nuances nas relações de poder constitutivas da imagem3 funcionalismo público que engendram condicionantes de desempenhos comuns a diferentes papéis funcionais. Anotávamos dados não só em termos de cenas relacionais e modos de sociabilidade, mas também de fragmentos comportamentais (tanto verbais quanto não verbais, para usar uma terminologia mais clássica) e em termos normativos de dispositivos de regulação social que sugeriam modalidades discursivas e dinâmicas afetivas próprias às formas de sociabilidade que se instauravam. Assim, a análise vinha controlada: fosse uma certa troca de olhares como resposta a algum comentário feito, ou a atitude de descaso diante de uma solicitação que em tese deveria ser considerada importante, ou o uso irônico de um termo técnico, bem como o modo como as cenas se desdobravam por conta desses marcadores comportamentais. Além disso, o modo de registrar formalmente os acontecimentos (fosse o que nos aparecia em documentos, ou o que emergia em relatos oferecidos como oficiais ou formais) foram tomados em contraste com o que era dito off (aquilo que em confiança com o dispositivo de pesquisa era apresentado às vezes como opinião, outras vezes como saber que não seria assumido oficialmente, nem publicizado descuidadamente). No outro lado, as imagens midiáticas do funcionalismo público, os comentários e opiniões de senso comum, os estereótipos e os perfis funcionais definidos em documentos e regulamentos completam um feixe de dados rigorosa e casualmente construído ao longo de nossa trajetória de pesquisa. Retomando as três características distintivas acima mencionadas, apresento um recorte de cena que se possa tomar como exemplo e, simultaneamente, dar uma ideia da complexidade do campo empírico problematizado. ‘Causo’ X – Nem que fosse só pra sustentar a família!!! – Distâncias entre ‘como era’ e o ‘como deveria ser’: Rolava-se a 100km por hora em uma mais ou menos esburacada rodovia federal sem medos e confiantes, em sabe-se lá o quê, quanto à crença de que não apenas chegaríamos ao nosso destino, como 3
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O termo imagem é usado de modo wittgeinsteiniano. Ver Arley Moreno, Wittgeinstein segundo as imagens (1993).
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cumpriríamos nossos objetivos. Os vinte e poucos quilômetros que separam a capital e o presídio de segurança máxima propiciavam as condições de emersão de uma temporalidade outra. A troca de argumentações entre o papel de pesquisador crítico do sistema prisional e o gestor, engajado na humanização do mesmo sistema, estava arrefecida pela intimidade tanto da velha viatura que nos conduzia, quanto da descontração brincalhona a que o motorista, um policial cedido à Secretaria de Justiça, se permitia na troca de impressões sobre os desvios de verba e as maracutaias da politicagem local que resultavam nas péssimas condições do asfalto. O Gestor do Ministério da Justiça pôde ceder passagem para o quarentão de classe média desgastado pelo esquema de viagens constantes, de distância tanto da família quanto de seus sonhos de práticas acadêmicas, que suscitavam uma certa inveja da ‘liberdade’ de opiniões do ‘professor pesquisador’. Este, por seu turno, cedia passagem à admiração do policial, que apesar de constantemente submetido ao falatório crítico pedagógico do professor, encontrava meios de explicar a relação entre eleitores desiludidos e as mais que abusivas descarações da politicagem que só se sustentavam pelo controle dos dispositivos institucionais de exercício do poder, pelo uso completamente privatizado dos recursos e patentes de autoridades públicas. A viagem tinha uma finalidade formal: visita de surpresa à unidade prisional apresentada como modelo de modernização nos documentos e projetos de solicitação de financiamento que chegavam à Capital Federal enviadas pela ‘Secretaria de Justiça e Cidadania’ do estado. Na intimidade da estrada, entrando no diagrama oficioso da relação entre os dois nativos locais, o consultor estrangeiro lavou a alma descarregando uma pérola analisadora que iluminaria definitivamente o entendimento acerca do sistema prisional e das políticas de segurança pública de que se ocupava o projeto de pesquisa extensão do convênio entre a universidade pública e o governo do estado. Dispositivo de pesquisa que colocara dentro daquela parca lataria automotiva um conjunto quase infinito de interesses, afetos e circunstâncias sócio-históricas juntadas meio que ao acaso: “… Mas pense, sem emprego e nessa seca braba, vai que se cumpre a meta de trabalho para todos no sistema prisional com atendimento de saúde, programas de educação continuada e reinserção social… Ia ter fila de caboclo pra jogar pedra nas delegacias esperando a vez de ser preso…né, não?… Nem que fosse só pra sustentar a família!!!”.
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A cena apresentada só serve à análise da educação do funcionalismo público quando se parte de concepções não muito usuais de noções tais como educação e estado. Ainda que às custas de solicitar um bônus de paciência à leitura, cabe explicitar tais usos e suas inspirações, já que se pretende operar com uma imagem desnaturalizada do processo educativo, imagens a partir das quais se pode traçar uma história. Mostrando antes uma gênese, que uma descoberta das origens. Quanto à educação, penso ser bastante a marcação de que ela vem aqui tratada como sub categoria de socialização. O termo é usado para distinguir a socialização em senso amplo: a exposição de novas gerações e de novos membros a um processo de aculturação inspirado em práticas tradicionais não problematizadas (filhos levados à ribeira para ‘aprender a pescar’); de práticas formalmente regulamentadas, cuidadosamente planejadas e definidas em termos de procedimentos que marcam processos de socialização padronizados, orientadas por um conjunto de normas de caráter jurídico, e nesse sentido coercitivas, destinadas à formação do cidadão (um lavrador ensinando o filho a preencher a ficha para a carteira de trabalho). Só a última, das acima mencionadas, pode ser entendida como função de Estado. Seja quando se pensa no conjunto de premissas ideológicas que devem inspirá-las (tais como se encontram arroladas em textos clássicos como O Sofista, de Platão (1987), ou o Emílio, de Rousseau (1969), seja quando se tomam formas de objetivação concretas que definem espaços adequados e instrumentos pedagógicos eficientes como se vê nos manuais de ensino/aprendizagem. Educação como função pública que materializa uma política de produção de identidades de base comum padronizada.4 Quanto à imagem ‘Estado’, procurarei me alongar um pouco mais. A naturalização desta imagem é menos tomada em análise e chega mesmo a se confundir com as imagens indivíduo e sociedade tanto no sentido de fazer coincidir as características resultantes do suposto caminho evolucionista dos membros de uma espécie natural (homo sapiens) com as características dos membros de uma sociedade de Estado (sujeito jurídicos de razão – polis+logos), quanto no de fazer coincidir a própria evolução da espécie com a tendência natural que toda e qualquer forma de organização social teria em se transformar em uma sociedade de Estado. Correlato desse duplo efeito são as concepções de Estado como correspondente ao princípio gregário da natureza humana. O Estado como aquilo que possibilita a vida social, posta como convívio dos indivíduos naturalmente diferentes em grupos de homens unidos pelo imperativo da luta pela sobrevivência, saídos da horda. O uso da noção de Estado feito aqui se liga à análise das circunstâncias históricas que possibilitaram a emersão do ‘nós’, entendido como intensidade de delimitação do campo onde emerge o reconhecimento de uma condição comum, como no uso por Deleuze em 4 Sobre o uso específico da noção de educação, remeto o leitor a um artigo já publicado: Mendonça Filho, Manoel (2005). EDUCAÇÃO, POLÍCIA E POLÍTICA: PESQUISA DE SENTIDO SOBRE A ATIVIDADE EDUCATIVA E SUA NATUREZA PÚBLICA in Olhar/ CECH/UFSCar. Ano 7, no 12-13. S. Carlos: UFSCar.
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O que é o conceito (1992), para conceito de OUTREM, no sentido de “existência de um mundo possível” diferente do uso tradicional que remete ao problema da “apresentação recíproca entre sujeitos” (o Outro). Análise das relações de produção de valor simbólico que instauram um modo de existência social (histórico cultural), em contraposição a um modo de existência natural (biológico). Tomamos Estado como dispositivo inventado na superação de um impasse crítico do modo social de existência, e não como sinônimo da condição ou destinação da existência social, ela própria, como forma histórica não necessária. Por existência social, por sua vez, se entende o modo mediado de existência, imediatamente simbólico, implicando uma vida marcada por ritos que orientam comportamentos, antes orientados instintivamente pela codificação genética. O modo de colocar do parágrafo anterior, força propositalmente as tintas para fazer pensar a emersão do conceito de social em contraposição ao de natural (BAKHTIN, 1992), sem que isso implique uma distinção entre homo sapiens e outras espécies quanto a sua natureza orgânica. Com isto, marca-se uma desnaturalização do conceito de hominização, desvinculando-o do determinismo geneticista atualmente em voga. Trata-se antes de uma estratégia, no sentido de método em ciências humanas, que de mais um fundamento epistemológico seguro para a verdade sobre a natureza humana. Interessa aqui o contraste entre duas formas argumentativas e suas premissas. No registro da biogenética, o limite se encontra no problema pouco pensado da orientação do comportamento para uma espécie cujas características primordiais são a radical plasticidade dos processos neuroquímicos e um exíguo arsenal de regulação instintiva sustentado por estruturas inatas. Pensemos por um momento, seguindo uma perspectiva clastriana (CLASTRES, 2003), que as formas de organização social possam ser analisadas nestes dois termos: Lógicas contra o Estado (relações de ordenação da vida social por critérios afetivos de condicionamento do valor das posições, funções e hierarquias condicionadas pelas obrigações de dar receber e restituir (MAUSS, 1950) e Lógicas de Estado (formas regulatórias, coercitivas, ordenadas pela lei, por uma padronização unificadora dos modos sociais de existência). O Estado, então, aparece aqui como ‘sub tipo’ do processo de hominização para que, uma vez relativizado, se possa narrar uma sua história possível. Temos, antes, processos vários de regulação social hominizadora e, depois, uma variação histórica da qual emerge um modelo fixo de ordenamento da hominização. Busca-se uma antropologia histórica que possa mostrar a permanência, no presente, de dimensões genealógicas das relações hominizadoras sejam estas orientadas tanto por uma lógica de organização societária contra o Estado; quanto por uma lógica de Estado, como no caso das sociedades ditas modernas, cada uma com suas especificidades. Nesse sentido, não se trata apenas de fazer diferir sociedade de Estado e sociedade contra o Estado, progride-se na busca, em ambas, da ‘pedra de toque’ da vida social (MAUSS, 1950). A hipótese subjacente envolve uma mudança na resolução das situações críticas, circunstâncias de impasse da ordenação social. Imagina-se que, por muito tempo, dos movimentos nômades mais arcaicos às sociedades primitivas sedentárias até, pelo menos, cerca
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de dez mil anos, as crises e impasses das relações de poder e da sustentação da coesão social se resolviam por uma dispositivo de fragmentação e dispersão. Fosse por conta de um incremento demográfico insustentável, por uma circunstância de escassez de recursos, pela emersão de conflitos afetivos e/ou nuances na trama de poder. Assim, fosse por circunstâncias de aproximação e conflito internos e ou externos, as inviabilidades eram solucionadas por fragmentação e dispersão, de onde brotavam novos agrupamentos e modos de ordenação ou a continuação (atualização) das ordenações habituais sob outras circunstâncias. Assim, parte-se da premissa de que as crises de sociabilidade objetivadas em crise de ordenação do modo social da existência que instauram o ‘nós’, se resolveriam tradicionalmente por fragmentação e dispersão até que circunstâncias sócio históricas peculiares impossibilitem, em certos casos, o funcionamento deste dispositivo. O Estado emerge, nesta perspectiva, como variação inventada do dispositivo de fragmentação e dispersão, variação que coloca a padronização unificadora como alternativa viabilizadora de uma certa modalidade de atualização da ordenação social, instaurando uma outra sociabilidade. Essa, agora posta como ‘forma’ de ordenamento, orienta-se versus a fixação padronizada de unificação de um conjunto de relações de poder simbolicamente mediadas. Solução imposta por um segmento ou esfera da vida social sobre o conjunto das relações e sobre todas as esferas. Primazia, já de partida, violentamente imposta. Dominação garantida pelo monopólio da força e pelo estabelecimento das bases de uma função administrativa da vida social (o código e sua burocracia: a lei). O termo Estado, em sua variação de moderno (Estado absolutista) ou clássico (pólis grega), é aqui tomado como marca distintiva entre processo de ordenação social relativo a modos não coercitivos de exercício de poder e as formas de ordenamento político, portanto, necessariamente jurídicos e, assim sendo, coercitivos, de regulamentação formal das relações de poder: Posto o problema nestes termos, trata-se de ir além da questão lexical para isolar e descrever as modificações que ocorrem na passagem de um forma de ordenamento a outra, aquilo que permaneceu e aquilo que mudou, os elementos de descontinuidade e também os elementos de continuidade, sem se deixar ofuscar pelo aparecimento de um nome novo (BOBBIO, 2001, p. 70).
Vale complementar que nas sociedades de Estado a instituição primeira, aquela que instaura o ‘nós’, é garantida pela Violência da Lei. Nas ‘Sociedades contra o Estado’ (CLASTRES, 2003), são os compromissos afetivos com os mitos cosmogônicos que garantem a instituição do ‘nós’. Este modo de ver entende que uma visão hobbesiana da barbárie de todos contra todos só se desenvolve em sociedades que não se pensam como tendo um mito cosmogônico comum, mito que se põe como atrator de intensidades afetivas, simultaneamente individual e coletivo. Daí a visão mais encontrada nas teorias sobre o 242
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Estado que, naturalizando uma ‘forma’ específica de ordenação da vida social, a tomam como princípio que garantiria o convívio de identidades individuais historicamente apenas agrupadas, mas não engendradas, pois que de origem natural. Se por um lado concordo com Castoriades (2004) em sua observação de originalidade da sociedade grega ao tematizar a análise de suas instituições, tematizar a constituição das suas próprias funções sujeito; por outro lado, entendo que isto se dá como aposta de uma atividade de semiotização marcada pela instauração da violenta gramática do UNO. A semiotização da experiência calcada na submissão do Uno, características das sociedades sem Estado (CLASTRES, 2003), não se vê colocada diante do problema da heteronomia. Não está face a um poder soberano desde muito desencarnado na gramática do ‘império do significado’. A variação, então, é corriqueira. É constitutiva da experiência comum antes que se coloque a questão da ausência da comunidade. As, assim chamadas, sociedades frias, tem uma outra temporalidade. Não que ali a variação não ocorra, não que se mantenha. Por serem ditas sem história, sempre com os mesmos arranjos das estruturas articuladas miticamente, elas se pensam segundo outra lógica (VERNAN, 1990). As relações ante e anti estatais (contra o Estado), enquanto arranjos sociabilizantes, não compartilham a urgência de resistência surgida pelo contraste da imposição da forma Estado. Nas primeiras as categorias de orientação cultural (SHALINS, 1990) seguem se defasando face ao fluxo do cotidiano, segundo o ritmo deste mesmo cotidiano, face àquilo que é sua dinâmica sem que a referência esteja posta no fora do Estado. Castoriades se engana ao supor que o mito de origem demarca um ‘fora’. Para o ‘pensamento selvagem’ não há, senão, o “fora do dentro”. Não há nada a religare, não há código, mas, sim, codificação em fluxo. Não há signo (VERON, 1980). Eis, então, o Estado analisado em sua dimensão abstrata de lógica institucional (em sua dimensão ideológica (VERON, 1980), relativa à garantia da institucionalização da dominação, marca distintiva das sociedades politicamente ordenadas. Portanto, vicissitude do UNO, em contraposição à multiplicidade que segue possível na lógica da fragmentação e dispersão, a unificação padronizadora implica a dominação de uma esfera/ segmento da vida social agora estratificada (a Religião, a Guerra, o Comércio) em detrimento de outras. A violência, endógena à forma ‘Estado’ de ordenação das relações, é adjetivante do fato de que a padronização unificadora é a fixação de fluxos de regulação em modelo de regulamentação na ‘forma da lei’ imposta coercitivamente. Dito de modo direto: Estado é a objetivação da dominação. “O mais alto A Lei | de todos os soberanos mortais e | imortais; ela conduz propriamente | por isso violenta, | o mais justo direito com mão suprema”. Em Homo Sacer Agamben (2002, p. 38), se utiliza dessa citação do Fragmento 169 de Píndaro para mostrar como o poeta grego define a soberania do nomos (a lei) através de uma justificação da violência. Um pouco adiante, o autor mostra como, na obra de Sólon, primeiro legislador, direito e violência formam uma conexão básica: “[…] com a força da Lei conectei violência e justiça” (Fragmento 24 de Sólon). A estrutura da soberania deve ser vista, então, como a
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articulação entre violência e justiça que se produz por um ato que funda a lei (direito), ato de exceção que coloca toda a violência no polo, assim individuado, da soberania. Outra característica importante do funcionamento da soberania se encontra no par inclusão/exclusão. Se, por um lado, a soberania prevê o banimento daquele que está fora da lei, ela ao mesmo tempo define o pertencimento ao conjunto dos submetidos à lei. Isto se dá, entretanto, pela possibilidade de excluir-se, pela exceção soberana, a si própria, deste conjunto ao qual, por outro lado, pertence sem poder nele figurar. Sendo o soberano que define o conjunto que pode ser posto fora da lei, não faz parte, ele próprio, deste conjunto, ao mesmo tempo em que exercita uma violência que é exceção à lei, dando-se fora desta: Mas o que define o caráter da pretensão soberana é precisamente que ela se aplica à exceção, desaplicando-se, que ela inclui aquilo que está fora dela. A exceção soberana é, então, a figura em que a singularidade é representada como tal, ou seja, como irrepresentável. Aquilo que não pode ser em nenhum caso incluído (a violação da lei) vem a ser incluído na forma da exceção (AGAMBEN, 2002, p. 32).
Ganhando exterioridade e rompendo com a temporalidade fluida de uma vida social que encontra sua regulação na instância direta das relações cotidianas de poder, a lei condiciona como contratempo os ritmos e harmonias sociabilizantes fixando uma clave monotônica. Formular a ordenação múltipla das relações de poder como auto regulada não implica uma idealização romântica por si mesma, pois não elimina a dimensão agonística e precária, sempre exposta à crise extrema e sempre passível de perecimento (vazio de sentido). Ao contrário, só sob a égide do Uno se verá emergir o eterno pacificado e o definitivo garantido como promessa/finalidade da forma Estado de ordenamento jurídico da vida. Dando curso ao raciocínio, uma vez assentada a ideia de que o Estado pode ser dito como forma histórica, trata-se de entender que ela varia: tanto segundo a esfera/segmento que se põe como hierarquicamente predominante e condicionadora das demais esferas segmentos da vida social; quanto em relação à ‘forma de dominação’, atualizada segundo as necessidades condicionantes da manutenção da hegemonia. Cabe ressaltar que a ‘espiral’ histórica característica da forma Estado tende a uma totalização totalitária (Estado Totalitário). Não poderia ser diferente, uma vez que está marcada enquanto lógica de unificação padronizadora da vida social. A função educativa emerge simultaneamente à aspiração do estabelecimento definitivo do modelo de padronização das diferentes esferas/segmentos da vida social. Evidentemente não de um só golpe nem, muito menos, sempre de um mesmo tipo. A função educativa irá variar segundo o desenvolvimento da dominação e será condicionada pelo modo específico de dominação que atender, a cada vez, a forma do modelo Estado historicamente atualizado segundo as necessidades de sua manutenção: 244
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(…) a relação entre lex e rex, a teoria da soberania como independência (superiorem non recognoscens) e portanto com o poder de ditar as leis sem autorização (a cidade sibi princeps, que reproduz o sentido do autokrates grego), e que através das diversas interpretações da lex regia de império põe em discussão o problema do fundamento do poder (BOBBIO, 2001. p. 72).
Assim, ainda que classicamente se possa marcar o texto ‘O Sofista’ como primeira formalização conceitual da função educativa, é o caso de entender que, mesmo em ordenamentos estatais menos estruturados e mais insipientes, a lógica da padronização exige uma socialização regulamentada, não de todos os segmentos sociais, mas, no mínimo, daqueles cujo controle da formatação de seus membros seja crítica para sua sustentação. Temos, desse modo, a variação da educação do cidadão livre na Grécia Clássica, a educação dos guerreiros e dos legisladores na Roma Imperial, a educação do clero na Igreja Estado da Idade Média e a Educação de todos para o trabalho no Estado da Produção Industrial (seja ele capitalista ou socialista) etc. Para romper com a tentação de um contínuo histórico, acrescente-se à lista as modalidades pouco conhecidas, mas seguramente conhecíveis, de socialização regulamentada em impérios como o Inca, por exemplo. Remarquemos o cerne de nosso problema. Depois de muito foco sobre a educação para o trabalho, a questão da educação do funcionalismo sugere uma mudança muito recente na forma Estado. A aposta aqui é em uma análise de conjuntura que dê conta da mutação da ‘sociedade da produção’ para a ‘sociedade do crédito e da especulação’, cuja forma de dominação passaria a ser o controle pela ‘gestão retórica das imagens’. A expressão educação do funcionalismo busca dar conta dos modos de atualização da função educativa nesse cenário: o Estado de uma capitalística financeira. Mas, vamos com calma. O que se inaugura com a modernidade é uma dupla exterioridade da relação de ordem/obediência que caracteriza o modelo ocidental da política e da polícia5 de ordenamento das relações. Se a primeira exterioridade (a do polo da ordem) se referia à contraposição indivíduo/coletivo (o soberano e o povo), a partir da revolução burguesa – com a disseminação do exercício da violência soberana pela recorrência ao ato de exceção, já anunciada na lettre de cachet – faz rolar a cabeça de Luís XVI. Corpo tomado como objeto direto da política, é o soberano – posto como fora da lei – que coincide com o lobisomem. A captura da vida nua do rei deixa livre a soberania para que ela se torne soberania de Estado, sem encarnação, perfeitamente provisoriamente descorporificada. Na soberania de Estado, o povo migra da condição de filho/servo para aquela de irmão/sócio: As declarações dos Direitos devem ser vistas como o local em que se efetua a passagem da soberania régia de ordem divina à soberania 5
RANCIERE (1996).
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nacional. Elas asseguram a exeptio da vida na nova ordem estatal que deverá suceder à derrocada do ancien regime. Que através delas, o ‘súdito’ se transforme, como foi observado, em ‘cidadão’, significa que o nascimento – isto é, a vida nua natural como tal – torna-se aqui, pela primeira vez (com uma transformação cujas conseqüências biopolíticas somente hoje podemos começar a mensurar) o portador imediato da soberania (AGAMBEN, 2002, p. 135).
Fonte de toda a soberania, a vida natural passa a ser o alvo absoluto da política: o que um corpo faz passa a interessar em todos os seus detalhes. Primeiro, sociedade de vigilância e, em seguida, sociedade de controle, era da biopolítica (FOUCAULT, 1993). Norma despessoalizada do Estado laico, completamente exterior, sem nem ao menos a figura de um monarca com direitos divinos que possibilite um nível mínimo de mediação com as comunidades sobre as quais o esquema de dominação se aplica. Esta dupla exterioridade da forma de dominação política, que agora sobrepõe um Estado que coincide em abstração com a forma pura da lei, independente de qualquer especificação significante, articula-se, imediatamente, com o universal absoluto da noção abstrata de dinheiro. Como polo contrastante, surge um corpo sem significado que não a sua capacidade de trabalho (neste sentido, alienado). Vale salientar que a alienação se refere também a um fosso entre a norma prescritora da forma da ação e o cotidiano onde a ação se resolve. Na modernidade, o correlato da mudança de foco, sinalizada por Foucault (1993), com a noção de biopoder – centralidade política da vida nua, do cotidiano dos corpos – é o sistema de produção de mercadorias. Robert Kurz salienta o modo pelo qual uma centralização e abstração da própria mercadoria acompanha esta virada, com a passagem, analisada por Marx, de valor de uso em valor de troca: O trabalho que produzia mercadorias (por exemplo, o dos artesãos urbanos) permanecia dentro do horizonte social do valor de uso:
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era uma produção destinada à troca de produtos concretos. Neste sentido, pode-se dizer que ela ‘extingue-se no valor de uso’ (Marx), apesar de passar pelas abstrações do processo de troca no mercado. Mas justamente este não é, de maneira alguma, o processo de produção da mercadoria moderna. O valor, na forma da mais valia, que nunca antes constituíra uma relação de produção, não aparece aqui simplesmente como forma socialmente mediada dos valores de uso concretos; porém, ao contrário, passa a referir-se de forma tautológica a si mesmo: o fetiche tornou-se auto reflexivo, estabelecendo assim o trabalho abstrato como máquina que traz em si sua própria finalidade. O processo de produção deixou de ‘extinguir-se’ no valor de uso, apresentando-se como auto movimento do dinheiro, como transformação de certa quantidade de trabalho morto e abstrato (mais valia) e, com isso, como movimento de reprodução e auto reflexão tautológica do dinheiro, que somente nesta forma se torna capital, e, portanto, um fenômeno moderno (KURZ, 1999, p. 23).
Por sobre a abstração do Estado, articulada com base na ficção de um sujeito absoluto (o Monarca), instala-se um novo critério de ordenamento da vida social, uma abstração, desta vez sem sujeito materializado (o Capital) que completa o distanciamento entre a experiência cotidiana das relações concretas e as categorias abstratas a partir das quais elas se orientam. Aquilo a que se tem habituado chamar de Ocidente tece a história do tensionamento da experiência cotidiana e a forma fixada de representação do processo imaginário que lhe pode dar sentido, o ESTADO. A noção de vazio de significado, tão central nas reflexões sobre a modernidade, reflete o estatuto atual deste afastamento. (…) mesmo quem considera que o conceito de Estado e a correspondente teoria devem ser amplos o suficiente para abarcar ordenamentos diversos do Estado moderno a ele precedentes – e portanto não tem nenhuma dificuldade de dissociar a origem do nome da origem da coisa, não pode deixar de se por o problema de saber se o Estado sempre existiu ou se é um fenômeno histórico (…) (BOBBIO, 2001, p. 73).
A recolocação do tema do Estado, proposta pela questão demarcada na citação, e que esperamos ter aclarado nas últimas páginas, apareceu como categoria de análise em recente pesquisa de Pós-Doutorado (Programa de Pós-graduação em Psicologia Social – UERJ/2011) sobre a institucionalização da Análise Institucional (corrente grupalista de inspiração francesa do campo das práticas psi no Brasil). A aproximação das práticas de AI, relativa às circunstâncias de engajamento na máquina de governo, e a
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justificação teórica de modelos de gestão e, concomitante operacionalização de técnicas de bio política (FOUCAULT, 1993), vinham acompanhadas de uma variação sobre o caráter universal ou histórico do Estado. Para testar a categoria de análise emergida da experiência de participação ativa entre 1993 e 2010 em grupos acadêmicos ligados a AI, formulou-se a seguinte pergunta: ‘Deve-se entender que todo modo de organização social é ou tende a ser, caso se desenvolva, a forma Estado?’ A questão era introduzida em meio a entrevistas com pessoas reconhecidas pelos pares como membros representativos da AI. Associada a esta, seguia-se uma outra pergunta/problema colocada sequencialmente no desdobramento das entrevistas que seguiam um modelo aberto de conversa comentada: ‘Deve-se entender que todo poder é coercitivo?’ Mesmo quando era sinalizado e reconhecido, durante a conversa/entrevista, o enfoque dado por Clastres (2003) sobre a questão do poder, a sobreimplicação6 com os dispositivos institucionais de política pública era mais forte em condicionar a resposta afirmativa que a máxima de ‘tudo colocar em análise’ da própria AI. Por outro lado, atores que mantinham uma distância crítica em relação às ‘políticas públicas’ reconheciam prontamente a distinção clastriana entre ‘poder coercitivo’ e ‘poder não coercitivo’, mesmo quando esta não era explicitamente mencionada. A perspectiva aqui adotada marca esse índice (ato falho ou analisador, para usar um termo da própria AI) para fazer aparecer a distinção entre modo de regulação das relações de poder e dispositivo de dominação. A Política (tal como uso aqui o termo) pertence ao segundo caso, própria a uma lógica de pacificação para unificação e padronização da vida social orientada e sustentada pela lei imposta. Esperando contar com suficiência e adequação da marcação aqui feita das distâncias entre sociedade contra o Estado e sociedade de Estado, e ainda com a caracterização da recente passagem de sociedade da produção para sociedade do crédito (capitalística financeira), abre-se o campo de questões sobre a modalidade de educação própria ao Estado do capitalismo financeiro. O quadro de referências até aqui estabelecido se interessa pelo caso específico do ‘Estado Democrático de Direito no Brasil’ buscando uma antropologia histórica do presente. Quais seriam os dispositivos e as atualizações da função educativa que nos permitiriam falar, ao menos no caso brasileiro, em termos de uma passagem da sociedade da produção para a sociedade do capitalismo financeiro? Qual segmento/esfera da vida social é estratégica para a manutenção do Estado enquanto unificação padronizadora das relações de poder coercitivo? Como vemos emergir das práticas sociais uma forma específica da verdade que judicializa o cotidiano? Que sujeito então se constitui? As duas últimas questões postas no parágrafo anterior seguem a recomendação de Foucault na obra ‘A verdade e as Formas Jurídicas’ acerca do que “deve ser feito”, no sentido do que pesquisar: “a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através de 6
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Modo de participação em um processo de institucionalização que inviabiliza a análise (LOURAU, 1987).
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um discurso tomado como conjunto de estratégias que fazem parte das práticas sociais” (FOUCAULT, 2003, p. 10). Buscarei fechar esse texto sustentando que a forma da verdade da vez é o ‘protocolo’ e que o sujeito constituído pelo protocolo de orientação da conduta do funcionalismo público, o educando da vez, é o sujeito ‘humanizador’. O protocolo é aqui tomado no sentido de formulário que regula os atos públicos (HOLANDA, 2009), ou ainda, conjunto de parâmetros que define como a transferência da informação vai ser controlada (MICHAELIS, 2009). A diferença mais imediata em relação às formas de inquérito e exame mencionados por Foucault na obra acima citada, seria que o protocolo não escrutina o objeto. Pressupondo já um perfeito conhecimento do objeto, o protocolo orienta imediatamente a sua manipulação e controle, pois é capaz de predição. Partindo do conhecimento racional cientificamente produzido pelo inquérito e pelo exame, o protocolo se apresenta como forma de uma verdade ‘mais que estabelecida’ e completamente aperfeiçoada, sobre um objeto plenamente conhecido pelo cogito. Seguindo o que se acaba de por, não se trata pois de perguntar o que é o usuário do sistema de saúde, o que é o interno do presídio, o que são a criança e o adolescente em conflito com a lei, o que é o aluno, o que é o cidadão, o que é o contribuinte. Estas perguntas são previamente respondidas pelas identidades universais correspondentes a cada um dos papéis sociais a partir dos quais o indivíduo pode acessar os serviços e políticas públicas disponíveis e ser reconhecido como humano. O protocolo se refere à verdade de como tratá-lo, que conduta se lhe deve impor, que relações lhe são permitidas, que modos de dizer e fazer lhe são apropriados, seus direitos e deveres. É esse o rol de conteúdos que compõe o currículo de formação do funcionário público. Tais conteúdos são informações legalizadas que, em tempo passado, tão longo quanto o exigido pelo processo de sistematização, padronização e regulamentação, foram produzidas pelos especialistas através do inquérito e do exame e, portanto, da pesquisa (aqui se acessam as implicações entre saber e poder, entre a Ciência e o Estado, a universidade e o governo, o professor pesquisador e o perito judicial). A forma protocolo de produção da ‘verdade legal’ corresponde à circulação dos discursos em termos de produção e sentido (VERON, 1980). Depois de consolidado legalmente, o protocolo passa por dispositivos de transmissão onde se efetivam como ‘conteúdo’ no processo de educação do funcionalismo. Assumindo formas variadas, tais dispositivos partem do modelo básico do ‘orçamento participativo’ criado para as primeiras experiências de gestão municipal do ‘PT’, ainda na década de 80. O modelo básico do dispositivo aproveita elementos de tecnologia de gestão desenvolvida em Harvard naquela época (planejamento estratégico) com elementos do centralismo democrático praticado no âmbito dos ‘partidos revolucionários’. A forma avançada e largamente difundida dos dispositivos de circulação da ‘verdade legal’ são as conferências de políticas públicas. Correspondendo a registros distintos, teoria organizacional e administração pública respectivamente, tanto um quanto outro se
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destinavam já a manter uma imagem de democratização dos procedimentos de tomada de decisão em termos de uma psicologia das organizações, bem como em termos do projeto político de uma corrente, à época, neófita no comando do governo. Trata-se de abordar o problema da participação, ou dito de modo mais explanativo, fazer crer que a verdade transmitida foi produzida nos canais de difusão. A experiência que tive trabalhando como consultor da prefeitura de Santo André/SP na primeira gestão do, depois defenestrado, Celso Daniel, serve como exemplo emblemático desse tipo de ‘procedimento de gestão’: as lideranças partidárias encarregadas de fazer dar certo a administração dos trabalhadores no coração do ABC paulista, estando pouco dispostas a riscos, contratou uma grande firma de consultoria empresarial buscando instrumentos para lidar com seus dois principais problemas: a resistência e possível sabotagem de parte do funcionalismo público por conta tanto de diferenças ideológicas quanto de conflitos gerados por sectarismo dos próprios quadros partidários, em sua maioria ocupando cargos de confiança; e o imperativo de mostrar uma diferença marcante em termos de gestão em relação a seus antecessores. A encomenda feita à CESAT empresa de consultoria surgida de uma das dissidências da Arthur Andersen do Brasil, era de um ‘instrumento pedagógico’ que “passasse a visão do partido para os funcionários e os comprometesse com a nova administração de um modo que eles se sentissem integrados e participando da gestão”. As conferências de políticas públicas são o híbrido eficaz, eficiente e efetivo de tecnologia de controle talhado sob medida para nossa era de política como espetáculo. A proliferação de seu uso atesta o sucesso e fortalece a fé na democracia representativa como se estivesse desenvolvendo nichos de democracia participativa. A educação do funcionalismo é um avanço substancial no desenvolvimento de tecnologia de controle social, uma vez que incrementa o automatismo da máquina de subjetivação, para falar em termos de uma maquínica guatarriana, que subsidia a escrita da lei no corpo (KAFKA, 1986), o que fará deste último a máxima adequação possível de quaisquer materialidades ou processo bio afetivo, à letra da lei do Estado do capitalismo financeiro. Mas, qual o modulador dessa gramática capitalística? Qual construto, em termos de baliza da geometrização da representação, função elementar do conhecimento científico (BACHELARD, 1999) orienta o discurso, tomado como o conjunto de estratégias do Estado que nos coube historicamente e que está longe de se extinguir, tanto mais consiga a sistemática e progressiva extinção da diversidade sócio histórica (efeito necessário ao projeto de padronização e unificação – o UNO enquanto projeto apofântico)? A tarefa regencial da sinfônica modulação maquínica da função educativa no Brasil que hoje frequentamos, aquele ‘para todos’, é a imagem HUMANIZAÇÃO. Tal imagem funciona, pode-se pensar, como via da expropriação de potência das intensidades afetivas na sustentação de uma sociedade do crédito, sociedade da verdade midiática e do legal como valor máximo. Isso se operacionaliza e ganha materialidade pela educação
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do funcionalismo que, desde final dos anos 80 do século passado, a referida imagem vem condicionando. A ‘humanização’ vem apresentada como ‘garrafada contra todos os males’, poção miraculosa que pode acabar com a morte nos corredores das emergências, a reincidência de menores infratores, o descaso no atendimento à população por parte do funcionalismo público, os problemas de reintegração de pacientes psiquiátricos à vida em sociedade, os altos índices de morte no trânsito, etc. HUMANIZAÇÃO: esse atrator de marketing criado a partir de uma linha de teorização que se poderia enquadrar como ‘Psicologia existencial fenomenológica’ de final dos anos 80, selo de ‘qualidade’ que aufere o estatuto de cientificidade necessário, emerge de práticas técnico profissionais de um funcionalismo público facilmente caracterizável como ‘politicamente correto’, compromissado com os valores democráticos e com o ‘paradigma dos direitos humanos’. Com um percurso que começa em comunicações orais e resumos completos publicados em anais de congressos científicos, o termo avança para discussões entre técnicos de serviços de saúde, principalmente da área de saúde mental, empenhados em uma militância comprometida com as lutas anti manicomiais em busca de ‘conceitos’ que possam ser usados em espaços oficiais, em textos legais. Algo no gênero das siglas dos partidos legais, como espaço de militância dos quadros clandestinos dos partidos então revolucionários. Na década de noventa do século passado, o uso do termo se difunde acompanhando a ascensão dos quadros de militância ligados à universidade que começavam, então, a ocupar postos mais altos em escalões do novo governo, cuja imagem de marketing era marcada pela tônica do ‘trabalhador no poder’. No bojo da reforma psiquiátrica, se difunde o uso da imagem ‘humanização’ e já se pode encontrá-la em documentos oficiais e como título de programas de políticas públicas. Verifica-se uma ampliação de espectro da imagem ‘humanização’ que, do tímido contraste que produzia na área da saúde mental, passa por um sombreamento confortável na área de educação até chegar a um assombramento na área de segurança pública, onde produz o lema leviano da ‘humanização dos presídios’. Já no início do século XXI, no ‘Brasil para Todos’ finalmente alcançados pelo futuro, começam a chegar os primeiros sinais de efeitos perversos da ‘humanização’. Tomado para veicular a indignação na época da luta contra a ditadura militar, o termo passa por um uso de entusiasmo ufanista no primeiro governo do PT e finalmente cumpre seu destino como anestésico das angústias e contradições vividas por um funcionalismo público aturdido pelo “fosso existente entre a teoria e a prática” (frase muito usada para descrever as condições de trabalho em organizações de prestação de serviço público). Por último, forma-se, aos poucos, uma coleção de usos que tornam corpos ‘resilientes’ a autoritarismos de gestores pressionados por critérios de desempenho dos índices de ‘avaliação’ das políticas públicas. Certamente, haverá quem diga que o termo não fez nada além de cumprir o seu destino. Afinal, já em sua gênese teórico psicologizante se deveria reconhecer a vocação
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consolativa, a função de sustentar esperanças sob condições nada promissoras. Esperança patrocinada por uma imagem idealizada, em nada coadunante com o cotidiano vivido. O perigo, a psicanálise já nos ensinou, é que se assista a um distanciamento demasiado entre ‘ideal de ego’ e ‘ego ideal’. Não é preciso procurar outra explicação para as angústias e queixas de um funcionalismo público concomitantemente encarregado pelo controle direto dos corpos e pela sustentação da imagem de grande nação. Em emissão de canal fechado, um especialista midiático de jornalismo político comentava o efeito positivo, quase garantidor de candidatura: a veiculação do nascimento do neto da primeira mulher presidente(a) às vésperas das eleições havia favorecido a candidata por ter “humanizado sua imagem”7 – imagem antes muito autoritária e rígida de ‘administradora austera’. Um tal uso do termo é exemplo típico de gestão retórica própria ao Estado da ‘Sociedade do Espetáculo’ (DEBORD, 2009). Difícil pensar em nome mais condizente com a vaidade brasiliana, país do carnaval. Despeço-me do leitor com alguns esclarecimentos sobre minhas implicações acerca do método, aqui entendido como estratégia em uma perspectiva de inspiração foucaultiana. A justificativa para a insistência estratégica em escavar os limites da razão se formaliza em afiáveis gumes pela distinção complementar feita por Castoriades (2004) ao colocar a ‘livre pesquisa ilimitada’, em sua posição de contraponto com a atividade política, fechando o leque de condições da distinção primeira das ‘sociedades democráticas’: “a colocação em análise das próprias instituições primeiras como condição de emersão do livre pensar, do homem livre ele próprio”. A mim, basta dizer que é condição de reivindicação do estatuto democrático de qualquer forma de direito de Estado. A pontuação da condição necessária à pretensão de Estado Democrático se inscreve como estratégia de ocupação dos espaços institucionais fazendo frente às implicações do estatuto de autoridade que nos espera quando convocados a enunciar verdades especialistas no cerco da gramática judicializante. Aproveitando a circunstância de nomeação do especialismo (heterônoma, evidentemente), recorro à máxima da ‘autonomia do pensamento’, imprescindível ao estatuto da verdade especialista, para colocar em análise as contradições da gramática judicializante, ela própria. Interrogado pelo juiz, responderei ao homem livre apelando ao que para o juiz é condição de sustentação de sua identidade institucional, a saber: que sendo garantido institucionalmente trata-se de uma autoridade que deve ser protagonizada por um espírito livre. O problema do parágrafo anterior não é um qualquer. A encomenda profissional que as pessoas com quem trabalhamos − nos cursos de graduação e pós-graduação nas áreas das Ciências Humanas e Ciências Sociais − se vêm obrigadas a enfrentar seja como professores ou alunos, como operadores de uma formação profissional que se vê constrangida pela política do nosso ‘novo estado democrático de direito’ a produzir a mão de obra especialista que possa operar os dispositivos institucionais da biopolítica ou como 7
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GLOBONEWS (Set/2012).
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alunos prestes a se formarem, candidatos à fila do desemprego e dele reféns, atazanados pelo fantasma do ‘mercado de trabalho’. Como formar-se tarefeiro psi para o posto de operador de CRAS? Como escapar à angústia da posição de operador dos dispositivos de dominação biopolítica? A pesquisa básica se cumpre como pesquisa das táticas de negação das encomendas, caso contrário será outra vez tecnologia aplicada. Assim, no vai e vem do movimento político institucional, mostra-se a brecha para os compromissos afetivos com os valores pessoais que possam suspender a autoridade da gramática, suspender o dever ser do sujeito institucionalizado e encarar a exigência do comum no rés do chão do cotidiano das relações sociabilizantes. Fora do Estado, sem que isso queira dizer fora do mundo; fora da lei, sem que a corte tome isso como ilegal. Ao contrário, recorrendo ao movimento questionante como condição de legitimidade de qualquer lei, razão de ser e única justificativa plausível para que se sustente um resto de tolerância para com o presente ‘estado de coisas’. Eis a aposta. Não é automático o deslizar pelas bordas, não é também casual ou espontaneísta. Há um trabalho a se cumprir, escavação do entulho de usos entronados que escoram as imagens agostinianas que nos aprisionam. Desfazer a sinonímia psicologizada e psicologizante entre indivíduo, sujeito, e pessoa segue o programa da pesquisa enunciada. O senso comum cientificista, já mencionado, dobra-se em rebatimentos das noções de indivíduo, sujeito e pessoa sobre a imagem ‘cogito cartesiano’, vale dizer, rincão primeiro e último do eu. Esta coisa foi inventada na articulação da responsabilização culpada da autoria do pecado aquecida pelas práticas de inquérito (FOUCAULT, 1996) com o individualismo próprio à organização da produção, calcada na alocação de gestos em posições predeterminadas de uma máquina de transformação de matéria-prima em artefatos com valor de uso, subsidiária da ideia de trabalho abstrato. A história acima lembrada narra-se pela marcação da passagem das referências de local e descendência no reconhecimento entre as pessoas (Zé de Rita do Grotão) para a função pela qual a constituição do corpo encontra-se alocada (Zé Marceneiro). Tal procedimento sistemático incrementa a transferência da constituição dos modos de vida da teia de relações afetivas para a rede de relações produtivas. A operação de substancialização da função, imbricada com os regimes de verdade que condicionam os modos de dizer, faz emergir o sujeito da ação como causa do acontecimento, ‘cogito ergo sun’. Agora sou o que faço, mas não a cada vez. Sou fixado pelo que é meu cargo, meu dever ser, meu lugar na sociedade produtiva, minha identidade legalmente inscrita. É no, e pelo, registro que se definem os indivíduos. É um pacote institucionalizado, das diferentes posições sujeito que circunstancialmente me vão constituindo, que é fixado pelo registro como minha identidade individual. Se ela pode ser posta e reposta a cada vez, será sempre por uma operação que faz variar a política de registro aplicada. É no e pelo registro que se objetiva a política.
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O modo historicamente singular das possibilidades entre as prescrições em vigor, as funções sujeito disponíveis e a tenção atualizadora dos ritos miticamente informados em complexos culturais delimita a experiência de pessoalidade que me são próprias. Enquanto avança a análise da constituição das funções sujeito disponíveis e do aparato institucionalizado de prescrições e controle, cuja política de registro inscreve a identidade que me é destinada, brotam variações da experiência de pessoalidade. É desse modo − a sobrecodificação da experiência pessoal de protagonização de uma função sujeito cristalizada no registro da identidade individual − que as análises podem fazer variar, enquanto análise das implicações. Seja esta propiciada por um analisador natural ou construído (LOURAU, 1993). Assim, uso a noção de indivíduo para situar as operações de registro politicamente instruídos que viabilizam o conhecimento das identidades que me são destinadas; uso a noção de sujeito para as funções de enunciação (modos de dizer e fazer aparados por regimes de verdade) histórico e culturalmente disponíveis e acessíveis; e a noção de pessoa para preservar a parcialidade singular em que posso modular variações no cumprimento das funções sujeito, deformando-as. Modulação que pulsa em desejo e, por isso, escapa aos esquemas do ‘pacote de identidade’ imposto pela política de registro. Isto não é escolha. É, antes, exercício de possibilidades entre as circunstâncias de desejo. Que a noção de indivíduo apareça como coincidência entre o natural e o cultural é um mecanismo de dominação que sobreimplica a função sujeito de analise das instituições primeiras. Ou seja, fixa a identidade dos membros de uma certa sociedade de Estado, e só nas sociedades de Estado se pode observar a sobreimplicação instaurando o fascismo − talvez, também na hibris delirante do chefe guerreiro obcecado em prolongar a guerra: (CLASTRES, 2003) crença cega na forma da lei violentamente imposta aos movimentos conjuntivos que instauram as relações de sentido. Juridicização do cotidiano. Sendo pesquisa básica, não há aqui guia ou modelo que sirvam de baliza, não há também projeto, objetivo ou aplicabilidade. Tudo que aqui se parecer com coisas assim, será, antes, descrição de brechas onde se cravam suportes de escalada ao fundo. Não é, portanto, um fazer dominado pelo qual se desliza garbosamente sem tropeços. O orgulho não combina com a trilha. Há, entretanto, uma percepção (MERLEAU-PONTY, 1971) atrelada a circunstâncias de compromissos afetivos pela qual se entra, não uma teoria racional (POPPER, 1972). Como modo de pensar o que não se é, a análise aqui proposta se modula pelo conceito de ‘informante’, um qualquer selvagem das antropologias precocemente escolarizado e, contudo, miticamente informado – assim tornado em estrangeiro íntimo por uma competência no uso estranho da linguagem regulamentada. Sujeito que imagina a pior das hipóteses da extenuação de suas potências pela cena do depoimento. Testemunho incerto e temerário, que não se prestará à boa base jurídica, pois que testemunho alienígena proscrito nesse mundo prescrito de citadinos cidadãos.
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Para um tal sujeito, em caso de infortúnio, em que ocorra se ver tomado como discurso especialista, intimado como ‘perito’, entenda-se que se trata, para ele, de um trabalho menor: perambular por entre a maquínica imaginária que se estende pelas veredas do cotidiano das intensidades afetivas, afrouxando conexões bem postas aqui e ali. Sociomecatrônica em desmonte de automatismos maquínicos de controle tecnológico das relações de poder, bem sucedida sempre que os céus não desabem sobre nossas cabeças.
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Tarsila do Amaral *
Manoel Mendonça Filho é professor do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social - DPS/UFS. Membro Fundador do GEPEC/UFS - Plataforma CNPQ e Doutor em Educação FACED/UFBA.
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A irrealidade no cinema contemporâneo
Matrix & Cidade dos Sonhos
(Cruz das Almas, BA: UFRB, 2011)
JOSETTE MONZANI*
O
belo livro de Adriano Oliveira traz uma rica contribuição aos estudos cinematográficos, ao apontar o papel do cinema, das artes em geral e da cultura no auxílio à reflexão sobre a sociedade na atualidade e sua imersão na realidade virtual e no ‘irrealismo’ de maneira geral, como o autor prefere nomear esse estágio, seguindo o teórico italiano Umberto Eco. Assim, se o funcionamento e a estruturação de nossa sociedade estão sendo sempre mais amparados na simulação e no simulacro do real, a partir de leituras acuradas e do exame sistemático das estruturas narrativas das duas obras escolhidas, Oliveira busca apreender e discutir as concepções sobre a subjetividade, veiculadas nos exemplos escolhidos, e que se mostrarão bastante diferenciadas. Como o autor bem aponta, “se por um lado, a categoria da representação da irrealidade se mostra tão presente na ficção contemporânea [e ele menciona vários exemplos de filmes realizados hoje nessa direção], isso não quer dizer que ela se dê de modo uniforme” (p. 19). E, neste preciso sentido, seu estudo ganhará destaque, ao selecionar para análise filmes tão diversos quanto Matrix (1999, Irmãos Wachowski), e Cidade dos Sonhos (2001, David Lynch), em uma escolha que faz lembrar a opção de Ismail Xavier em Sertão-Mar, pelo trabalho com contrapontos fílmicos. O que o cinema tem veiculado então ao seu grande público, já que ambas as obras escolhidas tornaram-se cult – e Matrix teve até um público record e se tornou uma franquia com duas continuações? A esta e a outras questões, como a de por quais meios realizar a leitura de um filme a fim de perceber que espectador está sendo por ele buscado, e o se perguntar que contribuição a cinematografia vem trazendo para a compreensão do fenômeno contemporâneo das relações mediadas, o livro de Adriano Oliveira busca dar respostas.
Não posso tirar aqui o prazer do texto ao leitor! Devo acrescer somente que ele flui, as análises de Adriano correm embaladas por uma bibliografia extensa empregada de forma precisa. O emprego da semiótica, muito bem amparado pela aplicação dos textos do já mencionado Eco, aliado à utilização da psicanálise e da filosofia dá amplitude e solidez às conclusões a que o autor intenta chegar – e chega –, fazendo uso de uma metodologia interdisciplinar aplicada de modo claro, eficiente e seguro. Adriano Oliveira tem, ele mesmo, formação transdisciplinar, já que é graduado em psicologia, estudou psicanálise lacaniana, realizou pesquisa em ‘Crítica da Literatura e da Cultura’, no Instituto de Letras da UFBA, trabalho que posteriormente adaptado resultou neste livro, daí sua facilidade em transitar por esses caminhos e nos ensinar os seus traçados. Aliás, a publicação de seu livro pela Editora da UFRB é mais do que oportuna, por se tratar de uma obra que, dado seu caráter, certamente será utilizada nos cursos de graduação e pós-graduação das áreas de comunicações e de artes, letras, filosofia, psicologia, ciências sociais, entre outros. É importante frisar que este texto vem livrar esses dois filmes – Matrix (que atingiu a marca recorde de um milhão de cópias vendidas em DVD) e Cidade dos Sonhos (paradigma entre os experts e ‘modernos’) – dos modismos e fã-clubes que os cercam. Acompanhando os meandros da construção narrativa, juntamente com as análises de Oliveira, vamos apreendendo o prazer ‘irresponsável’ (de torcer pelo herói salvador, do ‘Bem’, enquanto há os vilões, do ‘Mal’, numa estrutura maniqueísta fadada a perder; e isso, em grande parte e aqui falando de forma bastante resumida, porque a narrativa está situada no nível dos contos de fadas) passado por Matrix, e o atualizar do sonho – e, atrás dele, o desejo –, provocado pela obra de Lynch. Em seu livro Adriano separa o ‘estudo’ sobre o sonho da ‘brincadeira’ (nada inocente) sobre a representação da irrealidade no mundo da ficção contemporânea, digamos assim. Não que as experiências estéticas tematizadoras da relação entre homens e simulacros não mereçam reflexão na atualidade, mas esse talvez não seja o caso de Matrix, o autor nos fala. A leitura por ele feita de Cidade dos Sonhos é rica, instigante e, simultaneamente, didática, caso raro de suceder entre os leitores de Lynch: trata-se ali do trabalho do sonho sendo mostrado, seus mecanismos e implicações para a vida diurna, em uma enriquecedora demonstração da relação do ser humano com o concreto e o subjetivo cotidianos. De toda forma, A irrealidade no cinema contemporâneo, nas duas vias escolhidas, aponta o cinema porquanto uma possibilidade, um meio possível para a reflexão e a sensibilização do ser humano em relação às mudanças técnicas, tecnológicas, artísticas e culturais pelas quais vimos passando. Um meio para a desmitificação artística e cultural da sociedade de hoje. E, por isso, é leitura altamente recomendável!
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Josette Monzani é professora do Bacharelado e dos Mestrados em Imagem e Som e em Estudos de Literatura da UFSCar, autora de diversos artigos e livros sobre cinema.
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REVISTA OLHAR – ANO 14 – NOS 26-27 – JAN-DEZ/2012
OLHAR é uma publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem por objetivo sistematizar, no formato revista, a difusão de conhecimentos, pesquisas, debates e idéias nas áreas das Ciências Humanas e das Artes, gerando assim um canal de intercâmbio acadêmico e cultural. O texto submetido à OLHAR deve ser inédito, sendo vedada sua apresentação simultânea em outra publicação. Após seu envio, o material será analisado por membros do Conselho Consultivo do periódico e sua aceitação dependerá do julgamento realizado pelos pareceristas. Podem ser enviados em fluxo contínuo artigos científicos, capítulos e resumos de dissertações e teses, entrevistas, resenhas literárias e cinematográficas, além de produções artísticas tais como fotos, ilustrações, charges, poemas, contos etc. CALL FOR PAPERS The Olhar magazine, a multidisciplinary publication in the fields of arts, literature and humanities at the Center for Education and Human Sciences UFSCar, SP, Brazil, is accepting articles, translations, interviews and reviews of movies and books for their next issues. The first deadline for submissions is January 10, 2012; the second March 20, 2012. Articles, interviews or unpublished translations may contain from 7 to 25 pages (exceptions are considered), reviews of books and films should contain about 5 pages. The originals – in Portuguese, Spanish, English or French – should be sent to the following address: josettemonzani@gmail.com. The texts need to be accompanied by an abstract containing 30 to 80 words, three keywords, abstract and key words, plus information about the authors’ professional work and other relevant biographical data (educational background, major works and publications, etc.). As the magazine is illustrated, iconographic material is welcome. The relevance to the publication will be evaluated by the Advisory Board of the journal, according to its editorial guidelines. Editors: Josette Monzani and Julio César De Rose. More information: revistaolharufscar.wordpress.com
REGRAS PARA PUBLICAÇÃO 1) ENVIO E ACEITE: – Enviar por e-mail o arquivo contendo o texto, com os seguintes elementos: título do trabalho, nome do autor, seu vínculo institucional, sua titulação, e-mail do autor, resumo de no máximo 10 linhas, 3 palavras-chave, abstract e keywords, o corpo do texto e, quando for o caso, elementos ilustrativos. O eventual apoio financeiro de alguma instituição deve ser mencionado em nota de fim de página, inserida com asterisco (e não número) logo depois do título do trabalho. Salvar como: SOBRENOME-NOME do autor. – Cada trabalho será apreciado por dois pareceristas (anônimos). Em caso de discordância desses pareceres, o texto será submetido a um terceiro parecerista (também anônimo). Serão publicados apenas os textos que receberem duas avaliações favoráveis. Os pareceres serão encaminhados aos autores pelos editores ou pelo editor-associado. 2) FORMATAÇÃO E ESTRUTURA DO TEXTO: – O texto deve ser editado em programa compatível com o Windows (Word), em fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entre linhas de 1,5, alinhamento justificado, parágrafo assinalado pelo recuo da primeira linha (Tab), com páginas numeradas. – A extensão mínima é de 15.000 caracteres e a máxima de 25.000 caracteres, sem espaços (incluindo notas e referências bibliográficas). Casos excepcionais serão avaliados pelo Conselho Editorial. – Elementos ilustrativos (gráficos, tabelas, imagens, etc.) podem ser acrescentados e não serão computados na extensão máxima do texto. Os elementos ilustrativos podem ocupar duas páginas, no máximo. A obtenção dos direitos de imagem e de reprodução está a cargo do autor de cada texto e deve ser encaminhada no prazo de uma semana após a aprovação do texto para publicação. – O título do trabalho deve ser centralizado, em negrito, apenas com a primeira inicial em letra maiúscula; o subtítulo (se houver) deve seguir a mesma recomendação. – Na linha abaixo do título, deve constar o nome do autor, à direita, sem negrito. Junto ao nome do autor, deve constar, entre parênteses, a instituição com a qual tem vínculo, e também o tipo de vínculo, separado por vírgula (no caso de vínculo discente, deverá haver indicação se é em curso de mestrado, doutorado ou pósdoutorado). Em nota de rodapé, o autor deve incluir seu endereço eletrônico para eventuais contatos dos leitores. – No transcorrer do texto, deve-se empregar o itálico para termos estrangeiros e títulos de filmes, livros e periódicos. Os títulos de obras audiovisuais e bibliográficas devem ser escritos apenas com a primeira inicial em letra maiúscula. Exemplo sobre filme: “Em Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1963), a discussão em torno…”. Ressalva: a menção ao diretor/autor e ao ano deve ocorrer apenas na primeira vez em que a obra é citada. – As citações de até três linhas devem contar no corpo do texto (Times New Roman, corpo 12), entre aspas duplas. Com mais de três linhas, devem ser destacadas do corpo do texto, sem aspas, em
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fonte Times New Roman, corpo 10, espaço simples, com recuo esquerdo de 4 cm. As notas explicativas, numeradas sequencialmente (sobrescritas, com algarismos arábicos), devem constar no final da página (rodapé), em Fonte Times New Roman, corpo 10, alinhamento justificado, mantendo-se espaço simples dentro da nota e entre as notas. As citações bibliográficas devem ser indicadas no corpo do texto, entre parênteses, com os seguintes dados, separados por vírgula: sobrenome do autor em letra maiúscula, data da publicação, abreviatura de página, número da(s) página(s) – Ex.: (PASOLINI, 1975, p. 323-324). Elementos ilustrativos (gráficos, tabelas, imagens etc.) devem ser inseridos no texto, logo após serem citados, contendo a devida explicação em sua parte inferior (legenda), se necessário. As referências bibliográficas devem ser completas e constar no final do texto, obedecendo às normas da ABNT em uso. Não numerar as obras, empregar alinhamento justificado e espaçamento 1, mantendo-o entre uma obra e outra. Em caso de tradução, citar o tradutor, logo depois do título da obra. Ver os exemplos, a seguir.
LIVROS E CAPÍTULOS DE LIVROS: MANTOVANI, B. et al. Cidade de Deus: o roteiro do filme. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. PASOLINI, P.P. Abjurei a trilogia da vida. In: Últimos escritos. Tradução de Manuel Braga da Cruz. Coimbra: Centelha, 1977, p. 24-29. PERIÓDICOS: AMELIO, G. Birth and death of a nation. Cineaste, New York, v. XXVIII, no 1, winter 2002, p. 19-20. MENA, F. Sob o sol do Recife. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23 dez. 2009. Ilustrada, Caderno E, p. 1. SITES: VISCONTI, L. Rocco, un seguito di La terra trema. Disponível em: XXXXXXX. Acesso em: 8 dez. 2007. OBRAS AUDIOVISUAIS (POR ORDEM ALFABÉTICA) BAILE PERFUMADO. Lírio Ferreira; Paulo Caldas. Brasil, 1997, filme 35 mm. MANGUE NEGRO. Rodrigo Aragão. Brasil, 2008, video. NÃO SERÃO ANALISADOS TEXTOS FORA DO PADRÃO DA REVISTA. Envio de originais: josettemonzani@gmail.com Revista online: revistaolharufscar.wordpress.com RESPONSABILIDADE: Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de responsabilidade do(s) autor(es).
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