Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 12. Número 22 (Jan-Jul/2010). São Carlos: UFSCar, 2010. Semestral ISSN 1517-0845 1. Humanidades - Periódicos. 2. Artes - Periódicos. I. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. CDU 168.522 (05)
ANO 12 - NÚMERO 22 – JAN-JUL/2010 CECH - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
Revista Olhar Ano 12 - Número 22 - Jan-Jul/2010
Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Administração Superior Prof. Dr. Targino de Araújo Filho Reitor Prof. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior Vice-Reitor Profa. Dra. Wanda Hoffmann Diretora do CECH Prof. Dr. Eduardo Baioni Vice-Diretor do CECH Coordenação Editorial Editores Bento Prado Jr. (in memoriam) Josette Monzani Júlio César de Rose Conselho Editorial: Conselho Executivo Antônio Zuim – DEd (UFSCar) Cibele Rizek – EESC (USP) Fernão Ramos – Multimeios (Unicamp) João Roberto Martins Filho – DCSo (UFSCar) Luiz R. Monzani – Filosofia (Unicamp) Manoel Dias Martins (UNESP – Araraquara) Maria Ribeiro do Valle (UNESP – Araraquara) Marina Cardoso – DA (UFSCar) Richard Simanke – DFMC (UFSCar) Samuel Paiva – DAC (UFSCar) Sidney Barbosa (UNESP – Araraquara) Tânia Pellegrini – DL (UFSCar) Wolfgang Leo Maar – DFMC (UFSCar) Marcius Freire – Multimeios (Unicamp) Suzana Reck Miranda – DAC (UFSCar) Conselho Consultivo Arley Moreno (Unicamp) Arlindo Machado (PUC/USP) Benedito Nunes (UFPa) Bóris Schnaiderman (USP) Bruno Pucci (UNIMEP) Carlos Alberto Ribeiro de Moura (USP) Cecília Almeida Salles (PUC) Celso Castro (CPDOC/FGV) Débora M. Pinto (UFSCar) Diléa Z. Manfio (UNESP – Assis) Fernando da Rocha Peres (UFBa) Flávia Seligman (UNISINOS – RS)
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Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es). Permitida a reprodução parcial ou integral dos textos, desde que mencionada a fonte.
Permuta e solicitação de assinaturas: CECH/UFSCar – Universidade Federal de São Carlos
EdITORIAl EDItORIAL Ao assumir o desafio que representa a função de co-editor da revista Olhar, não posso deixar de lembrar de quando fui procurado, como então Diretor do Centro de Educação e Ciências Humanas, por Josette Monzani e Bento Prado, que vieram propor a fundação da revista. A proposta que eles trouxeram venceu imediatamente minhas resistências. Eu considerava, até então, que já havia periódicos em número suficiente e que a criação de mais uma revista, do próprio CECH, seria dispensável, e que esta correria o risco de tornar-se uma revista “caseira” e de pouca visibilidade externa (e, também, interna). A proposta da Olhar atraiu-me prontamente, por ser diferente de todas as revistas que eu conhecia. Penso hoje que a criação de uma revista que abrange as ciências humanas e as artes foi uma das mais importantes realizações acadêmicas do meu mandato de diretor. Pela sua proposta editorial ousada e sua realização gráfica muito atraente, Olhar vem ocupando um espaço único. Foi um projeto idealizado e conduzido com muito esforço por Josette e Bento, ao qual eu e a então vice-diretora, Marina Cardoso demos nosso apoio entusiástico, juntamente com as demais instâncias do CECH. Por isto, não hesitei quando fui convidado para substituir Bento na função de co-editor. Embora Bento seja, a rigor, insubstituível, creio que continuamos precisando de uma revista como a Olhar e não poderia deixar de contribuir para sua continuidade. A importação para o meio universitário brasileiro da prática do publish or perish tem desvirtuado, a meu ver, a função da publicação acadêmica. Às vezes voltar ao antigo pode ser um progresso, como dizia o compositor Giuseppe Verdi. Assim espero que Olhar continue sendo, como sempre foi, um olhar diferente e integrador sobre as humanidades e as artes, um espaço visualmente atraente onde o autor publica para que seu trabalho seja lido e debatido, promovendo o avanço do conhecimento. Que as linhas no Lattes, a pontuação no Qualis, o índice de impacto, etc., com os quais estamos tendo que conviver, venham como consequência. Júlio César De Rose (editor da Olhar, com Josette Monzani) Capa: Rejane Cantoni e Leonardo Crescenti
Sumário Dossiê homoerotismo e Literatura HOMOEROTISMO E LITERATURA: diálogos e convergências Jorge Valentim
26
As Narrativas do Eu: sobre modos de ler e de interpretar a literatura gay Antonio de Pádua Dias da Silva
28
Poesia e (Homo)Erotismo: sobre alguma produção poética portuguesa dos últimos 30 anos Emerson da Cruz Inácio
41
AIDS e morte, vida e memória: mapeamentos subjetivos e ficcionais em cartas, crônicas e contos de Caio Fernando Abreu Flávio Pereira Camargo
50
Revisitações homoeróticas e sensibilidades pós-modernas na ficção de Guilherme de Melo Jorge Vicente Valentim
70
Do rasgar da pele e do papel: as fronteiras dispersas da poesia de Luís Miguel Nava Luiz Gustavo Oliveira Silva
83
A literatura gay em Copi e Perlongher: formas de resistência, dissidência e visibilidade María Laura Moneta Carignano
90
Antropofagia crítica: para uma teoria queer em português 106 Mário César Lugarinho “A anatomia é o destino”: três faces do pornográfico na literatura brasileira Renan Ji
112
literatura e filosofia, psicanálise, cinema e fotografia, ciências sociais e literatura o prólogo de rei édipo de sófocles 125 Tradução de Flávio Ribeiro de Oliveira Sin ruido, ‘abriendo camino’ hacia las urnas electorales en Arráncame la vida de Ángeles Mastretta Ericka H. Parra
131
crônicas de bustos domecq/novos contos de bustos domecq Wilson Alves-Bezerra
142
um suicídio exemplar Adalberto Tripicchio
145
Poesiazinhas das pequenas grandes dores Ana Claudia Yamashiro Arantes
151
um relato permeado pelo estranhamento: O retorno do recalcado em La cámara oscura, de Horacio Quiroga José Roberto Cestarioli Júnior
155
mais humano que humano: o cyberpunk na fotografia de Blade Runner Patrícia Kiss Spineli
162
Relações entre jornalismo e cinema no Brasil Valdir Baptista If… – Lindsay Anderson e uma proposta ética do Free Cinema Mauro Luciano Souza de Araújo
187
196
voz, fala e linguagem enquanto recursos transcriativos 207 Laila Rotter Schmidt Que Amarelo é esse? Sabrina Rocha Stanford Thompson A tautologia intencional: estudo sobre a natureza enunciativa da obra de arte Walter Menon
222
227
A força artística do corpo: o exemplo de Michael Jackson 238 Márcia Patrizio A comunicação do tempo: aproximações entre Bergson e Proust Regina Rossetti
259
Eu sublimo, tu sublimas… eles sublimam: a sublimação freudiana em questão Maria Vilela Pinto Nakasu
275
DOSSIÊ
HOMOEROTISMO E LITERATURA
HOMOEROTISMO E LITERATURA diálogos e convergências
D
esde os estudos inaugurais da corrente pós-estruturalista, tendo Jacques Derrida como um de seus nomes tutelares, a crítica literária vem passando por um profundo e salutar descentramento daquela concepção analítica do texto, enquanto uma realidade estritamente lingüística. Felizmente, a partir da década de 1960, os saberes literários vêm apostando e insistindo num diálogo profícuo e rico com outras formas de saber (sociologia, filosofia, antropologia, psicanálise, psicologia, teorias e crítica das artes, dentre outras), entendendo as representações poéticas, ficcionais e dramáticas como manifestações culturais. Dentre as muitas áreas de convergência abertas neste sentido, encontra-se a dos estudos de gênero e da sexualidade, apontando outros caminhos possíveis de leitura e de recepção do texto literário. Surgem, daí, linhas de pesquisa e de abordagem crítica centradas no homoerotismo, na literatura gay, nos textos de autores homossexuais e nas suas representações nos diferentes sistemas literários. O Dossier, que ora apresentamos, “Homoerotismo e Literatura: diálogos e convergências”, procura contribuir, desta forma, de maneira direta e pontual com estes novos rumos de análise, trazendo contribuições de profissionais e de pesquisadores de reconhecido mérito nos meios acadêmicos, abordando questões conceituais e pontuais para tais caminhos de pesquisa, além de textos de jovens pesquisadores, tanto em nível de Iniciação Científica, quanto em nível de Pós-Graduação, que repensam, refazem e relativizam antigos conceitos congelados e erroneamente pré-concebidos e colados à condição homossexual, como a perversão e a pornografia. Neste sentido, os artigos de Antônio de Pádua Dias da Silva e Mário Cesar Lugarinho, pesquisadores atentos ao tratamento de questões conceituais e teóricas, contribuem de maneira significativa para se refletir sobre a “literatura gay” e a aplicação dos estudos queer nos sistemas literários de língua portuguesa. Aliás, estes, aqui, são contemplados nos artigos de Emerson da Cruz Inácio, Flávio Pereira Camargo, Jorge Valentim, Luiz Gustavo Oliveira Silva e Renan Ji, transitando por poetas e ficcionistas das literaturas brasileira e portuguesa contemporâneas. E, como não pretendíamos centrar tais
ponderações unicamente em torno do Brasil e de Portugal, Maria Laura Moneta Carignano traz a literatura argentina para o palco das discussões aqui levantadas. Elencados, aqui, os ensaios proporcionam aos leitores da Revista Olhar um prazeroso e generoso “à vontade”, convidando-os também a compartilhar a salutar experiência de leitura das obras de Aguinaldo Silva, Caio Fernando Abreu, Copi, Guilherme de Melo, João Ubaldo Ribeiro, Luís Miguel Nava, Mário Sabino, Nestor Perlongher, Rubem Fonseca e dos poetas portugueses contemporâneos. Só por esta oportunidade de contato, fica o nosso sincero agradecimento aos professores e pesquisadores que atenderam o nosso convite e trouxeram a sua valiosa colaboração, e também à revista Olhar, pela oportunidade e abertura de espaço para o diálogo e o encontro de ressonâncias homoeróticas. E a todos, uma boa leitura! Prof. Dr. Jorge Valentim Coordenador do GELPA (Grupo de Estudos Literários Portugueses e Africanos) Chefe do Departamento de Letras da UFSCar
Detalhe: Fountain with Five Kneeling Boys (1898), de George Minne (1866-1941)
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As Narrativas do Eu
sobre modos de ler e de interpretar a literatura gay antonio de Pádua dias da silva*
Resumo: O objetivo deste artigo é problematizar a literatura gay a partir de sua base teórico-conceitual. Tomo como diretriz para essa discussão a terminologia usada para aproximar a literatura gay de seus propósitos e de seu público. Assim, termos como escrita de si, ficção (auto)biográfica, biografia, testemunho e outros são lidos em sua base semântica e, por causa do limite semântico do uso de tais termos, optamos por narrativas do eu, analisando as marcas semânticas que, etimológica e politicamente, o termo pode significar. PALAVRAS-CHAVE: NARRATIVAS DO EU, LITERATURA GAY, (AUTO)REPRESENTAçÃO, ETHOS DISCURSIVO Self narratives: on ways to read and interpret gay literature Abstract: The objective of this article is to question gay literature, beginning with its conceptual basis. Our discussion’s guideline is the terminology used to approximate gay literature to its goals and audience. Terms like ‘self-writing’, ‘(auto)biographical fiction’ and ‘witness’ are read in their semantic basis, and, because of the semantic limit on the use such terms, we have chosen ‘self narratives’, and analyzed the semantic marks the term may have, from etymological and political points of view. kEywORDS: SELF NARRATIVES, GAY LITERATURE, SELF-REPRESENTATION
Antonio Pollaiolo (1431/32-1498)
Hercules e Anteu (1475-1480), de
E
m um artigo de 2007, discutia, preliminarmente, a idéia de uma literatura gay, contrapondo-me à resistência desse conceito, principalmente por a literatura ser uma instituição bastante conservadora em suas bases, seja motivada por questões histórico-sociais de que ela se imbui, seja por questões de ordem estritamente estéticas, como muitos defendem. Havia, naquele momento, a idéia de dar vazão à investida conceitual daquela produção que, por escorregar e desembocar no mesmo aforismo wildiano, “não ousava dizer o nome” por razões de várias ordens, sendo uma delas – a defendida por Eduardo Pitta, escritor e crítico literário português, difundida em páginas da web – a de que a literatura não é plataforma sexual, logo, não admite as compartimentalizações segregacionistas, de guetos ou algo do gênero. Naquele momento, não concordava com o crítico, nem com os que corroboravam o pensamento dele, uma vez que assumia a posição de que há, hoje,
por mais paradoxal ou contraditório que seja, especificamente em se tratando da comunidade gay, a necessidade de nomear os movimentos, as produções, os sujeitos, mesmo quando toda uma política queering se arvora contra os rótulos, contra a fixidez de uma identidade. Contrapunha-me, de certo modo, à proposta ideal de Butler (2003), defendida no Brasil por Louro (2004) e outros, a saber, a da impossibilidade de uma identidade gay nos moldes heterossexuais ou masculinistas. Estas duas teóricas abraçaram a idéia da construção performática cotidiana das identidades de gênero e sexuais, cristalizadas, mesmo provisoriamente, nos discursos socioculturais pelas práticas e atitudes dos sujeitos que se constroem e ajudam a construir uma imagem diversa dos papéis de gênero e de sexualidades. Discordo um pouco dessa proposta, que considero, em alguns momentos de uso dela, um tanto alienada para o atual estágio de reflexão, desenvolvimento e implantação de políticas em favor dos homossexuais. Pensar a identidade de gênero e sexual numa perspectiva da fixação, cimentação do sujeito numa base discursiva quase imutável, a exemplo do sujeito do iluminismo de Hall (1997), parece ser uma proposta descartada, obviamente. Todavia, é de se pensar que, longe das reflexões teórico-conceituais dos pensadores do momento, a exemplo de Zigmunt Bauman, é difícil comungar com idéias tão distantes daquelas que vemos no cotidiano nosso. A idéia da liquefação para as estruturas basilares da criação, manutenção e organização social-cultural e psíquica dos sujeitos, independentemente de sua marcação de gênero e de sexualidade, não caminha paralelamente aos ideais daqueles que, nas sociedades contemporâneas, a exemplo da brasileira, agonizam numa estranha idéia de que não fazem parte de nenhum grupo de pertença, ao mesmo tempo em que, teoricamente liquefeitos, vivem uma realidade em que, deslocados de seus antigos ninhos, já rejeitados por eles, buscam uma nova consciência que não encontram na idéia da liquefação dos sujeitos, uma vez que mesmo contrariando o valor negado e as antigas ordens de interpretação do sujeito, se sentem vazios naquilo que poderia dar sentido ao que são, ao que sentem. Foi nesse contexto que introduzi a questão do levantar a bandeira da literatura gay, posteriormente redefinida para literatura de temática gay ou homoerótica (2008 e 2009). Hoje, adoto o termo literatura gay ou homossexual para falar da produção literária escrita por homossexuais, com temática homossexual e – no processo de construção da cena enunciativa, da enunciação que desembocaria no enunciado dado, segundo Maingueneau (2006) – para homossexuais. Estes seriam os primeiros leitores desse gênero ou dessa compartimentalização literária, seja por afinidade, identificação ou por essa produção representá-los naquilo que Sedgwick (1985) e Weeks (1998) souberam muito bem definir, o homosexual e o homosocial desire (ou “desejo gay”, desejo homossocial). Considero, aqui, na perspectiva de Sedgwick (1985; 1998), o termo desejo numa acepção mais ampla, uma vez que comporta não somente a questão do direcionamento do prazer ou do gozo físico para o outro do mesmo sexo, mas, e sobretudo, porque o termo/expressão comporta a idéia de – somada à realização do aspecto físico-emocional da relação – companheirismo, amizade, construção de fortes e sólidas relações entre aqueles que se encontram e projetam/planejam uma vida a dois com seus problemas, seus limites, as relações sociais, as interferências de base ideológica e todas as práticas e atitudes que devolvem ao sujeito gay a consciência e postura de cidadão, de sujeito capaz de amar, de se relacionar apenas por prazer, de constituir família, de encontrar lugares onde dar vazão aos seus gostos, ao seu lazer, dentre outros.
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Ao refletir sobre a questão em pauta – a construção da narrativa gay1 –, cogitei a possibilidade de, na esteira de um dos momentos dos feminismos, interpretar a literatura gay como sendo portadora de uma característica própria, assim como Castelo-Branco (1991) e Brandão (1996; 2006), em momentos distintos, apontavam e problematizavam a produção literária de autoria feminina, chamando a atenção para uma dicção que tanto poderia ser encontrada na produção de mulheres como na produção de homens, fato que pode desembocar naquilo que posteriormente irei discutir: o ethos discursivo do texto, na perspectiva de Maingueneau (2008). A base de meu pensamento foi o texto de Edelman (1998), quando chamava a atenção para [a] formação de uma categoria de homossexuais cuja condição de possibilidade em sua relação com a escrita ou com a textualidade, em sua rearticulação, em particular, de uma diferença “sexual” interna à identidade masculina gera a necessidade de se ler certos corpos como sendo visivelmente homossexuais. Essa inscrição “do homossexual” dentro de uma tropologia que o produz numa relação determinante para a própria inscrição é a primeira coisa que desejo significar com o termo homographesis. Este neologismo, com o qual desejo começar um nexo de preocupações no cerne de qualquer discussão técnica sobre a homossexualidade em relação à escrita e à textualidade, e também como um produto de ambos, incorpora literalmente em sua estrutura – e figurativamente na referência ao corpo – a noção de “graphesis” [esta definida] como sendo o ponto nodal da articulação de um texto que delimita o lócus onde a questão escrita se coloca.2 (EDELMAN, 1998, p. 735-736)
O estatuto da homographesis não é uma idéia legitimada nem institucionalizada entre os teóricos e críticos da literatura. Mas ela traz em si uma discussão bastante profícua entre os que estudam ou procuram dar sentido a certa produção literária que vem, ao longo do tempo, recebendo nomes, rótulos, sendo redimensionada em cada decada, adquirindo outras feições, a saber, a escrita de si. Na perspectiva de Foucault (1992), a escrita de si é um tipo de dispositivo cultural que adquire um valor social, na medida em que os sujeitos ordenam um pensamento, uma idéia, uma história ou uma narrativa de si no intuito de relacionar os seus problemas no tempo e no espaço, sejam estes particulares ou de demanda coletiva, uma vez que a dor/problema de um pode refletir o de toda uma comunidade ou geração. Dessa forma, de acordo com Viegas (2006, p. 11), “Aprendemos com Foulcault a relacionar os problemas do sujeito às diferentes formas de ‘escrita de si’”. É possível, então, por esta perspectiva, afirmar que na base da homographesis percebe-se a idéia da escrita de si não como uma particularização ou modo diferencial do uso da linguagem, como se fosse possível sexualizar a escrita, mas como uma tendência para a projeção ou representação de si num determinado gênero (autobiografia, testemunho, carta, diário, blog, biografia, narrativa do eu, confissão e outras) que corrobora toda uma 1 Centrar a minha discussão apenas na narrativa não sugere nenhum juízo de valor ao gênero, mas tão somente em função de a produção literária em verso ou poética, como queiram, ser bastante escassa. Em contexto de Brasil, por exemplo, os gêneros poesia e dramaturgia perdem, em números publicados, para a literatura infanto-juvenil de temática gay, que é também um “gênero” ou uma das compartimentalizações da Literatura de menor produção numérica na temática homossexual. 2 Todos os textos de lingual inglesa ou francesa, aqui utilizados, são traduções livres que faço.
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prática mais ou menos estável quanto à representação no texto escrito. Assim, longe de ser marcada por uma escrita sexualizada, como a homographesis ou a escrita feminina, a escrita de si, as narrativas do eu – esta última será a terminologia adotada a partir de então –, comporta toda a produção literária de temática gay ou homoerótica, uma vez que considero a narrativa de si como um gênero específico, e, como todos os tipos e gêneros textuais/literários da “espécie”, mantem certo padrão, apresentando uma mesma recorrência a elementos e imagens que encontramos em quase todos os textos arrolados neste rótulo/expressão. Pode ser que haja quem conteste a idéia que defendemos (2009), a de uma literatura de temática homoerótica ou gay. Todavia, longe de enveredar por uma vasta seara estéril, me deparo com uma messe abundante de conceitos acerca da produção que aqui estou discutindo. Teóricos ou críticos como Mayer (1989), analisando a produção literária de língua inglesa, especificamente no tópico “Para uma tipologia da literatura homossexual” (p. 240259), já apontam para aquilo que apenas tardia e timidamente ousamos dizer: a literatura homossexual. Tapie (1999), na esteira de Mayer, admite que “o romance homossexual existe, pois” (p. 23), mas questiona o que muitos críticos, com os quais concordo, põem em xeque: “mas existe para os sujeitos especificamente homossexuais?” (p. 23). É bem verdade que não parece ser paradoxal ou contraditório a afirmação de uma narrativa – que chamo, aqui, de narrativas do eu – que se especializa em tematizar, representar ou abordar as questões da cultura gay; mas parece ser bastante racional e lúcido o questionamento que esbarra na pergunta: narrativa gay, romance gay, literatura gay apenas para gays, já que a identidade sexual do escritor gay não seria motivo de interferência no enunciado textual? Marchand (1999), ao discutir a literatura homossexual, aloca o processo de produção numa posição aparentemente metafísica, uma vez que, como sugere o título de seu artigo, c’est mon corps qui écrit, ou seja, é o corpo do sujeito da enunciação que escreve, e não “somente a mão, mas todo o meu corpo que se crispa sobre a página” (p. 41). Nesta perspectiva, desenvolve a idéia de que, no plano escritural, há um trânsito entre as esferas visível e invisível, de forma a “marcar esta passagem na língua. Eu falo de uma escrita que pouse seu raciocínio longe do corpo, e que invente sua própria voz, sua própria cadencia, sua própria biologia” (p. 45). Dessa forma, a noção de escrita homossexual defendida por Marchand se aproxima do que Edelman chamou de homographesis, e converge para o pensamento feminista que, num dado momento histórico, percebeu uma dicção feminina no enunciado posto para o leitor. É bem verdade que os críticos falam dessa escrita diferenciada. Concordo em parte, principalmente quando o que entra no jogo não é uma dicção, uma cadencia própria dessa escrita, mas uma biologia própria, uma vez que a narrativa de si, por abordar temas a partir do que sente o sujeito que plasma na página a sua visão de mundo, pelo filtro da identidade de que seja portador, no caso, da identidade de gênero e sexual, parece ser óbvio, do ponto de vista do horizonte de expectativa, o leitor ir ao texto para encontrar uma representação feita por uma “biologia” ou um dispositivo “bio-político” diferente, por um sujeito cuja condição sexual e de gênero se arvora não contra a identidade de gênero e sexo legitimada no contexto social, mas que se mostra como diferente, estranho, excêntrico, queer no dizer mais radical, como assim pensam Louro (2004) e Butler (2003). Essa biologização “escritural”, neste sentido, associa-se a toda uma prática discursiva em torno dos sujeitos gays que procuram, nas atuais sociedades ocidentais – embora fale especificamente do Brasil – tornar visível a sua cultura. A visibilidade dessa cultura só é possível quando vários fatores, somados, desembocam num tempo e num espaço
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específicos, que propiciam a visibilidade dos que assumem uma posição antes rechaçada, antes proibida, antes invisibilizada: a identidade de sexo/gênero homossexual e a performatividade gay. Assim, sair do armário, constituir família, construir um outro modelo de família, encontrar formas de sobrevivência, alocando-se em espaços/ambientes antes não possíveis, legitimar práticas de lazer, demandas de consumo, oferta de produtos, tudo isso constitui o que Sedgwick (1985) aponta como male homosocial desire ou desejo homossocial masculino cujo valor semântico é também empregado, quase a partir da mesma expressão, por Weeks (1998), homosexual desire.3 Na verdade, o desejo homossexual de que trata Weeks, por se limitar, semanticamente, à esfera do corpo, do desejo enquanto possibilidade de endereçamento do objeto sexual para o outro do mesmo sexo, é ampliado na concepção de Sedgwick, que entende o desejo gay ou homossexual contido no neologismo homossocial, pois este, além do endereçamento do prazer físico-sexual para o outro do mesmo sexo, denota também, antes de qualquer coisa, toda uma estrutura psíquica e cultural em torno dos que assim vivem, conforme apontamos no início deste parágrafo, quando mencionamos os fatores que interferem na visibilização do sujeito gay nas sociedades. Essa nova semântica para nomear as práticas culturais e as atitudes psíquicas de sujeitos se coaduna com a estilística da existência, conforme pensada por Foucault (1994), porque este filósofo, em seus escritos sobre a amizade e a estilística homossexual, ativa todo um imaginário – como conjunto de imagens mentais, plásticas e/ou representacionais – que atende aos reclames dos gays que habitam as sociedades de hoje. E é nessa perspectiva que Sedgwick (1985) congrega na semântica da expressão homosocial desire a cultura existencial a que vem se submetendo espontânea e naturalmente os sujeitos gays, uma vez que reivindicam o direito àquilo que faz parte de sua estrutura psíco-mental e sócio-emocional ou sócio-afetivo. Essa noção de desejo homossocial se torna importante para compreender a literatura de temática gay porque é nesta produção, mais do que nas narrativas fílmicas, nas composições musicais, nas peças dramatúrgicas, nas demais manifestações artísticas que a cultura e o desejo gays são plasmados com maior veracidade, “precisão literária” (nenhuma relação direta com o discurso cientificista), caráter de verossimilhança (sem adotar o modelo de literatura como mimese da veracidade dos fatos – MIGNOLO, 2001) e conseguem alcançar, nas palavras de Paiva (2008, p. 57), a “questão da ‘atividade criativa’ da livre autoformação do sujeito, epimeleia heautou, a exploração das possibilidades de criação de novas técnicas de existências, teknê tou biou”, sendo essa visada percebida com maior ênfase no terceiro volume da História da sexualidade (1980), de Michel Foucault, que se encarrega de discutir o cuidado de si, momento em que localiza o movimento homossexual. É possível, então, depois de rastrear essas idéias que estão, algumas delas, ainda polemizando o espaço acadêmico-crítico que inquire também sobre a literatura de temática homossexual, rotular essa produção narrativa de narrativas do eu? A expressão, por si só, não nos é estranha. O seu aspecto semântico mais imediato nos remete para um gênero literário, o narrativo. Este termo acompanhado do qualificador “do eu” (nenhuma menção ao efeito cacofônico) já me antecipa uma visão, um filtro, uma percepção, uma forma 3 Por mais que o termo gay congregue em sua semântica os sujeitos homens e mulheres que têm como objeto sexual o outro do mesmo sexo, a produção teórico-crítica e a produção literária dedicam-se com maior ênfase à imagem e representação do gay masculino.
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particular de sentir e representar determinados fenômenos: é a visão de quem enuncia, bastante contaminada pelos sentimentos, pelos vínculos de afeto e de reação diante de fatos, fenômenos, imagens, sonhos, ideais e vivências buscadas. Significa, então, dizer, que toda e qualquer narrativa escrita por um homossexual e que tematize a condição gay se trata de uma representação que postula o auto(representação), o bio(gráfico), o si mesmo (narrativa de si), o testemunho (porque a narrativa passa a ser narrada a partir do especulum homossexual, individual e sobre a vida do sujeito da enunciação)? Como traduzir, didaticamente, e sem polêmicas vazias que não nos levam a lugar algum, as narrativas do eu para o leitor da literatura de temática homoerótica? Estamos criando, inventando, forjando palavras para nomear o que já tem nome, a saber, literatura, ficção, narrativa em primeira pessoa? O que chamamos de narrativas do eu se limita à estrutura narrativa cujo sujeito da enunciação se posiciona como gay, a temática abordada no texto gravita em torno da condição ou da cultura gay e a perspectiva de fala da narrativa é em primeira pessoa, denotando certo padrão de interferência biográfica no texto que se constrói como literatura de ficção? É evidente que estes elementos, somados, parecem querer encerrar um aspecto semântico em torno dessa narrativa. Sei que, a partir da leitura das narrativas de Aguinaldo Silva, o termo que aqui chamo atenção para nomear essa produção literária parece encontrar lócus perfeito para o leitor explorar a questão. Não é minha intenção analisar a obra deste escritor e novelista, mas citar suas narrativas como exemplos do que estou aqui denominando de narrativas do eu. E essa perspectiva de leitura, se bem direcionada, pode servir como instrumento de investigação de toda essa produção que é arrolada na expressão literatura homossexual, literatura gay, literatura de expressão homoerótica, literatura de temática gay. Aguinaldo Silva, bastante conhecido como novelista da Rede Globo de Televisão, se dedicou também à escrita de narrativas literárias cujos esquemas de representação são pautados na idéia que aqui defendo. Para bem entender, vejamos como podemos correlacionar aspectos biográficos (vida do sujeito), formas de narrar (o narrador assume sempre a pessoalização através da narração em primeira pessoa), o gênero escolhido (narrativa, gênero em que escreveu maior parte de sua ficção), a temática das narrativas (desejo gay, cultura homoerótica), o caráter ou ethos textual (as noções de veracidade e verossimilhança se confundem nas narrativas do eu, uma vez que estamos sempre na fronteira entre o que se é literário/ficção/invenção/representação e o que se traduz, num texto literário, como escrita de vida, registro de memória e de testemunho). O posicionamento do escritor, em suas narrativas – Primeira Carta aos Andróginos, No País das sombras, Lábios que beijei: o romance da Lapa, Memórias da guerra, República dos assassinos –4, assume um ethos que se deixa imprimir na leitura a ponto de não haver, por parte dos leitores, reações contrárias àquilo que se lê, a saber: concluiu-se a leitura das obras de Aguinaldo Silva com a certeza de que todo o discurso ficcionalizado foi um construto estético-literário para falar também de si, para falar de dentro, usando-se um narrador em primeira pessoa para dizer também de si. No Prefácio de Memórias da guerra, obra de 1986, o autor assim se expressa quanto a sua obra e, particularmente, quanto àquela narrativa que torna pública: 4 Deixo de falar de outras narrativas do mesmo autor, por efeito de economia, a saber: Redenção para Job, Cristo partido ao meio, Canção de sangue, Dez histórias imorais, Geografia do ventre, O crime antes da festa, O inimigo público, A história de Lili Carabina.
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Verdades ou mentiras? Os travestis, as putas, os canas-duras do quinto distrito, os garçons da Leiteria Bol, os mendigos cheios de ricas feridas e luxuriosos andrajos, os michês e, principalmente, a legião de ratos e baratas que nos persegue constantemente a todos nesses textos são a prova de que tudo aqui narrador realmente aconteceu – embora nem sempre da maneira que eu preferi contar. Mas, dignos leitores, nobilíssimos críticos, e, principalmente, honrados colegas escritores: quem neles haveria de acreditar? Este livro, através de pessoas inesquecíveis que eu conheci, e das situações insuperáveis que eu vivi com elas, conta a desordenada história da minha vida. Pode não ter acontecido assim. Mas a partir da leitura de vocês, foi exatamente assim que aconteceu… (SILVA, 1986, p. 8)
É evidente, poderão contra-argumentar, que, no âmbito do tecido literário, deve-se desconfiar das (auto)declarações de autores sobre suas obras, sobre seus personagens e sobre os mundos construídos do ponto de vista estético. Aprendemos, pela tradição herdada, que o bom crítico deve saber diferenciar o autor do sujeito que representa na obra, seja ele personagem ou narrador. Todavia, longe dessa lição tão cara aos que enfrentam as polêmicas em torno das fronteiras entre o discurso literário e o historiográfico, como se este estivesse pautado no campo da ciência e aquele, da ficção, conforme já discute Mignolo (2001), sabemos que essa fronteira, dada as suas especificidades e em contextos de obras bem particularizadas, como as que compõem o inventário da literatura gay, os processos de ficcionalização discursiva devem ser postos em xeque, uma vez que nas narrativas do eu as marcas autorais se imbricam, muitas vezes, nas marcas dos enunciados, gerando o que aqui chamamos de narrações do eu. Ou seja, o autor de determinado texto se dirige a um público (a quem conhece muito bem) de um lugar que lhe é próprio (suas vivências, seus desejos), deixando nos textos as chamadas marcas autorais que, em muitos momentos, impossibilitam leituras puramente ficcionais das obras. Diferentemente de Aguinaldo Silva, quando anuncia a narrativa Memórias da guerra, falando ao leitor do propósito autobiográfico, A casa dos budas ditosos (1999), de João Ubaldo Ribeiro, obra que compõe a Coleção Luxúria da Editora Objetiva, também prenuncia a narrativa com uma espécie de “esclarecimento” ao leitor: Os originais deste livro e o recorte da nota de um dos jornais em questão foram entregues por um desconhecido ao porteiro do edifício onde trabalho, acompanhados de um bilhete assinado pelas iniciais CLB. Informava que se tratava de um relato verídico, no qual apenas a maior parte dos nomes das pessoas citadas foi mudada, e que sua autora é uma mulher de 68 anos, nascida na Bahia e residente no Rio de Janeiro. Autorizava que os publicasse como obra minha, embora preferisse que eu lhes revelasse a verdadeira origem. (RIBEIRO, 1999, p. 10)
O que vemos, neste trecho, extraído da obra ubaldiana, nada mais é do que um recurso retórico-estilístico, típico que quem, no dizer de Barthes (1980), trapaceia a língua, ou trapaceia com a língua, no intuito de surtir um determinado efeito. No caso, quer-se afastar a técnica, ficcional e retoricamente da autoria, para se preservar o caráter de veracidade, de forma a distanciar ou impossibilitar quaisquer questões que possam envolver a autoria/
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biografia e a representação/ficcionalização. Desta feita, João Ubaldo Ribeiro procura convencer o leitor de que este está diante de um texto “não inventado”, mas verídico, sem argumentos para tal, uma vez que o jogo estabelecido entre escritor e leitor não permite esse convencimento (até porque não há argumento, tão somente uma informação cujo sentido de brincadeira ou de fingimento é percebido no “tom” do texto). Lemos o texto e, muito longe daquilo que é a narrativa de Aguinaldo Silva, compreendemos que a brincadeira, o lúdico é um ponto ali presente, é um recurso retórico, é uma senha estética que permite o abrir os olhos do leitor para mais uma das peripécias de personagens postos em ação. Em Aguinaldo Silva, ao contrário, o caráter de verdade da narração quer se posicionar ao contrário: o Autor quer convencer o leitor de que a história a ser contada é verídica, mas paradoxalmente inventada, uma vez que contada da forma como ele assim acatou. Como havia dito antes, a fala do autor/escritor não deve ser considerada como “palavra de fé”, uma vez que o objeto sobre o qual o teórico, o crítico ou analista da literatura se debruça é o texto literário, mas nos convencemos, depois de ler as obras aqui citadas, por exemplo, de que o tom da narrativa é (auto)biográfico, sem perder a ficcionalização do discurso. Pode ser que haja o escritor que seja autor de apenas uma obra, mesmo assim é possível ler essa suposta obra, se ela preenche os requisitos aqui listados, como narrativas do eu. Essa narratividade do eu se mostra importante instrumento a ser considerado para leituras de textos de temática gay porque simplifica determinadas polêmicas que gravitam em torno do nouveau “gênero literário”, uma vez que aloca toda a produção assim descrita num rótulo (não pejorativo), dá-lhe sustentação teórico-metodológica e produz um efeito de sentido político-ideológico (uma produção de um grupo ainda marginalizado). Esse efeito de sentido adquire importância nesse contexto, porque visibiliza, exibe, mostra essa produção que, como consequencia, vai exigir um leitor e um mercado, e permite a construção de um discurso em favor da livre representação de uma (sub)cultura há muito estigmatizada, cujos sujeitos foram impedidos de sair às ruas, de se tornar visível, de poder falar e de poder existir para que a (auto)representação fosse possível. É interessante perceber que as narrativas do eu tomam um rumo diferenciado daqueles outros textos ou escritos já estudados e consolidados numa prática literária que assim se debruça sobre tais textos, ou seja, a autobiografia, o diário, a memória e escritos afins – Schittine (2004) vai denominar as narrativas que ela estuda (dos blogs) de “escritas do eu” – que já estão cimentados no campo literário. Não é questão de concorrência, disputa ou competição terminológica, muito menos questão de modismo; mas questão de ênfase (título de um livro de Susan Sontag), pois as narrativas de temáticas centradas na intimidade, com as peculiaridades do caráter e do tom homoeróticos ainda não tiveram um Detalhe: Centauromaquia (1492), de Michelangelo (1475-1564)
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“lugar pensante” nos atuais estudos literários que, movidos, muitos deles, pelas ondas modistas dos estudos culturais e das visões de mundo denominadas de “pós-modernas”, impedem a reflexão mais centrada ou verticalizada de assuntos de extremo interesse para a cultura, para a política das diferenças e da diversidade, para o campo literário, para os domínios do cotidiano e dos valores assegurados nos pequenos grupos a exemplo da família, da escola, das amizades, dentre outros. Dessa forma, problematizando a noção de narrativas do eu, posso dizer que mesmo contrariando a fala de Maingueneau (2008), quando afirma que “O ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma ‘imagem’ do locutor exterior a sua fala” (p. 17), aproprio-me da noção do caráter de que se imbui o sujeito do enunciado porque este, mesmo distante do sujeito da enunciação, no caso específico da literatura homossexual, se con-funde com aquele, uma vez que, nas palavras do próprio Maingueneau, em outro trabalho, De qualquer modo, mesmo que o destinatário [associamos este à figura do leitor] nada saiba antes do ethos do locutor [que associamos, aqui, ao escritor], o simples fato de um texto estar ligado a um dado gênero do discurso ou a certo posicionamento ideológico induz expectativas no tocante ao ethos. Claro que existem tipos de discurso ou circunstâncias para os quais não se espera que o destinatário disponha de representações prévias do ethos do locutor; é o que acontece quando se abre um romance de um autor desconhecido. Contudo, mesmo no caso da literatura, isso está longe de ser evidente, porque o escritor é de modo geral uma personalidade pública (com todas as implicações que isso envolve): mesmo quando se recusa a se apresentar, ele libera, mediante as indicações que dá, alguma coisa da ordem do ethos. (2006, p. 269)
Um leitor maduro, neste sentido, suponhamos que diante de uma narrativa de um autor desconhecido, seria capaz de perceber, pelo caráter impingido ou impregnado no texto, o ethos discursivo, que pode ser canalizado, no caso da narrativa do “gênero homossexual ou gay”, para o que chamo de narrativas do eu, para o que Schittine (2004) denominou de “escritas do eu”, para o que Foucault (1992) entende como “escrita de si”,5 ou seja, há marcas autorais ou discursivas que apontam para um caráter bastante pessoal, mesmo que “falseado” por um discurso fingido do impessoal, do distante, embora os escritores da “literatura gay”, confessadamente, procurem não estabelecer essas fronteiras ou limites. Se há fronteiras, então, que elas sejam transpostas; se há limites, que eles sejam quebrados. Pelo fato de o escritor ser uma pessoa pública, mesmo o mais desconhecido deles, que, talvez, hipoteticamente tenha escrito apenas um livro e este não tenha tido repercussão, os meios de comunicação me apontam o caminho para chegar a ele e, a partir das informações extra textos, poder traçar um paralelo entre ele e as representações de sua obra. Não estou falando, entenda-se, de uma crítica ou leitura biográfica, mas expandindo a noção desta, tornando relevante a sua metodologia para se entender as narrativas do eu como também fonte de investigação e não apenas como objeto lúdico, uma vez que 5 Essa seqüência paralelística não implica sinonímia ou igualdade semântica entre os termos. Contrariamente, refuto parcialmente as concepções já consolidadas porque acredito que as “narrativas do eu” contemplam melhor a produção literária de temática homossexual.
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concordo com Maingueneau (2006, p. 266), quando afirma que “O texto não se destina à contemplação, sendo em vez disso uma enunciação ativamente dirigida a um co-enunciador que é preciso mobilizar a fim de aderir ‘fisicamente’ a certo universo de sentido”. Dessa forma, reitero o fato de aspectos de natureza biográfica serem, neste momento e para os propósitos de uma didatização de leituras das narrativas da literatura gay, importantes porque, não por si só, somados aos elementos estéticos, às marcações textuais, às imagens trazidas à tona para significar algo ou atribuir sentido a algo, auxiliam o leitor/estudante a formular melhor uma reflexão sobre o que estaria sendo discutido. Souza (2004, p. 189), quando toma o conto “Sargento Garcia” de Caio Fernando Abreu para analisar, por tratar da relação entre a identidade sexual do sujeito que escreve e as relações de âmbito sexual tecidas na narrativa, entende que “é pertinente pressupor que a ficção em torno da orientação sexual daquele que escreve tem uma incidência sobre o universo produzido em seus escritos”. Como se vê, há uma preocupação entre os estudiosos do gênero “literatura gay”, homoerótica, de temática homossexual ou similar por considerar as vivências no campo do desejo dos sujeitos, que, quando escrevem, conseguem ultrapassar os limites do apenas confissão, testemunho, autobiografia e metaforizam no tecido literário as relações entre identidade sexual, política de reconhecimento da diversidade sexual e suas implicações pessoais e sociais ou, de forma mais abrangente, psico-sociais. A minha preocupação se centra no fato de ser possível falar com mais precisão das leituras orientadas para esse gênero: literatura gay. Não estou querendo “forçar a barra” para impingir a categoria “gênero” em meio a toda uma tradição literária e cultural, mas acredito que, do ponto de vista político-ideológico, soa racional e positivo (sem estar caracterizando ou caricaturando) a discussão em favor de uma orientação de leitura para as narrativas da literatura gay, a que estou denominando de narrativas do eu, mas que assimila e rearticula a escrita de si, a escrita íntima, a autoficção, a autobiografia e outros do gênero. Insisto nas narrativas do eu porque me debruço sobre narrativas literárias, que seguem toda uma estruturação já cimentada no âmbito da teoria da literatura e das práticas de leitura e interpretação do texto literário. Esse conceito se diferencia dos demais porque é alicerçado nas bases narrativo-literárias construídas ao longo dos séculos, no Ocidente, e de cujos efeitos semânticos somos herdeiros. Assim, a autobiografia, por exemplo, não poderia ser associada diretamente à expressão que aqui defendo porque as narrativas que estudo não têm esse caráter de somente narrar a si, de narrar ficcionalmente a vida do sujeito da enunciação, mas tão somente a incorporação de fatos da vida do sujeito escritor na narrativa construída, de forma que só é possível uma leitura, didaticamente falando, mais “precisa” do texto/narrativa em razão da coleta ou do conhecimento de elementos biográficos do autor.6 Também, porque essas narrativas, quando não são narradas em primeira pessoa do singular – eu –, a voz que narra se impregna da pessoalização e chega a defender, como se dissesse de si, questões sobre os posicionamentos de gênero e de sexualidades. É um dos primeiros indícios de tais narrativas: a posição do sujeito através da marcação pronominal
6 Por outro lado, não estou admitindo que a autobiografia, o diário, o testemunho são exemplos de textos estritamente pessoais, biográficos. Longe disso, penso que, mesmo não sendo somente isso, dá a impressão de o ser, porque o termo que nomeia esse gênero textual ou prática de escrita me induz a ler dessa forma, coisa que não acontece com o termo narrativas do eu: do autor, do narrador e/ou personagem, dos dois.
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Detalhe: La Frileuse (1783), de Jean-Antoine Houdon (1741-1828)
e subjetiva. Creio que essa simples “peça” aparentemente descartada pelo “jogo” é o que vai fazer o diferencial. Assim, justifico também a denominação narrativas do eu como um modelo de leitura para esta literatura (as orientações podem servir para outros tipos de textos ou gêneros, desde que mantenham correlações diretas com o que estamos discutindo aqui), apontando o fator eu como o diferencial e determinante. Ora, pensar a escrita de si, a narrativa de si, o cuidado de si me conduz a estabelecer, mesmo inconscientemente, uma relação radicalmente corporal com o sujeito da enunciação, se assim entendo a literatura de que falamos. O pronome pessoal obliquo si só me faz le-lo diretamente alocado, incorporado ou amalgamado ao seu referente imediato: o sujeito da fala ou a quem o outro se dirige ou aponta. Expressões como o cuidado de si equivale a, obviamente, o cuidado daquele e por aquele a quem mencionamos, exemplificamos, nos dirigimos, falamos. Usar o pronome pessoal reto eu, relacionado ao aspecto semântico do si, no âmbito em que quero aloca-lo, me faz pensar que o eu, por mais que uma vez pronunciado ou, se colocado diante de um outro, me autorize a me impor e instituir um locutor, quando utilizado numa narrativa literária e em outros contextos similares, tanto me dá a idéia de haver um referencial ao si/mim mesmo (e somente neste momento falo de mim, o equivalente ao si) como produtor de uma fala/discurso (o autor/escritor) quanto, ponto que mais me interessa neste momento, me dá a idéia ou me distancia da cena da enunciação e me leva para a o universo enunciado (o texto), onde o narrador e/ou personagem, criação do sujeito biográfico, se assume numa primeira pessoa também do singular, gerando, dessa forma, uma espécie de tensão, con-fusão ou ambigüidade discursiva, uma vez que o eu tanto me remete para dentro quanto para fora do texto. Nesse jogo espacial e dêitico, posso ler as narrativas do eu como se elas falassem diretamente de mim, o sujeito que escreve e cria a obra (remetendo-me ao contexto extra-texto), como posso lê-las também apenas no sentido delas falarem do sujeito textual, seja ele narrador ou personagem, fazendo-me interpretar este eu apenas alocado no texto. Como se vê, diante de narrativas como as de Aguinaldo Silva, anteriormente comentadas, esse jogo pronominal, que atua teoricamente num campo específico da hermenêutica textual, não me fixa num sentido único, lateral ou via de mão-única. Pelo contrário, como a escrita deixa marcas autorais (e o conhecimento de mundo do leitor é bastante importante neste momento, pois ele aciona mecanismos interpretativos do texto), a tensão estabelecida na e pela leitura me induz a re-pensar essas narrativas que ambiguizam falas, discursos, imagens, leituras. Por isso acredito ser mais apropriado falar em narrativas do eu do que enveredar pelo caminho já feito, as escritas, técnicas, narrativas de si, que me remetem quase que apenas a entende-la como a falar exclusivamente do sujeito que fala/escreve, e apenas timidamente poderia conceder a possibilidade hermenêutica de pensa-la dizendo respeito ao sujeito do texto (narrador ou personagem). Entender a literatura homossexual nessa perspectiva me dá respaldo tanto para discutir questões de ordem estética (a narração de ações no tempo e no espaço sobre elementos literários como personagem e narrador, habitantes naturais dos discursos ficcionais) como para discutir questões de ordem política (o trânsito ou possibilidade de confluência entre o eu textual e o eu biográfico). Entendo, então, que o diário íntimo, o testemunho, esteticamente interiorizados nas narrativas do eu, surgem também como textos e/ou tipos textuais com os quais as narrativas do eu dialogam, sem se prender estrutura
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e semanticamente a um deles em especial. Essas narrativas são um diferencial no topo dessas discussões porque remetem o leitor diretamente a uma questão tão em voga nos dias de hoje: a problematização da literatura gay ou de temática homossexual. Daí que a noção com a qual trabalho pode servir a outros gêneros e a outros propósitos, todavia, reitero que me debruço sobre a produção artístico-literária cujos autores são, quase em sua maioria, de identidade sexual igual ou de um discurso compatível com as personagens ou falas de narradores homossexuais. Por isso a insistência na terminologia que melhor me dá condições de ler a literatura homossexual: pelo seu caráter pessoal/subjetivo, pelo seu caráter literário/ficcional. Para concluir, creio ser urgente problematizar essa questão a fim de que determinadas posturas frente a esse novo/outro objeto, que faz parte do mesmo (Literatura), seja considerado, tendo-se em vista a sua natureza específica de texto e produto cultural. Pensar assim é trazer para o bojo das discussões em torno das questões de gênero e de sexualidades os objetos culturais e simbólicos dessa comunidade que fora rechaçada social e culturalmente ao longo dos séculos, impedida também de produzir obras em que pudesse falar do mundo e de seus desejos, fato que repercute também na não existência do gay nas sociedades a ponto dele não ser representado. A idéia de analisar nas narrativas do eu esse tecido engendrado pelo si, pelo ethos, pelo testemunho, pelo universal, pela memória, por exemplo, nos dá uma garantia, pelo menos provisória, mas acertadamente, de que há caminhos a trilhar para quem lê e interpreta a literatura gay, homossexual, de sodoma ou congêneres. Basta que busquemos os elementos textuais que nos reportam, no âmbito das narrativas desse gênero, para o universo extratextual e percebamos a riqueza dessa literatura que quer ousar dizer o nome.
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Poesia e (Homo)Erotismo
sobre alguma produção poética portuguesa dos últimos 30 anos emerson da Cruz ináCio*
A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala duma vida ideal, mas duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão. [Sophia de Mello Breyner Andresen. Arte Poética II] não posso adiar para outro século a minha vida nem o meu amor nem o meu grito de libertação não posso adiar o coração [Antonio Ramos Rosa. O Incerto Exacto]
Resumo: O presente ensaio tem como objetivo propor uma leitura da produção poética portuguesa dos últimos trinta anos, privilegiando a temática do homoerotismo, sem deixar de destacar a herança deixada pelos escritores modernistas para a geração contemporânea. Destaca-se, também, a presença de alguns vetores que contribuem para a consolidação de uma arte poética vinculada ao olhar e ao desejo. PALAVRAS-CHAVE: HOMOEROTISMO, POESIA PORTUGUESA CONTEMPORâNEA, DESEJO Poetry and (homo)erotism: some Portuguese poetry of the last thirty years Abstract: The aim of this essay is to propose a reading of Portuguese poetical production of the last thirty years, with emphasis on homoerotism, and on the influence of modernist writers on the art on looking and desire. kEywORDS: HOMOEROTISM, PORTUGUESE CONTEMPORARY POETRY, DESIRE
1. O masculino e sua enunciação na poesia portuguesa Os barões assinalados,, proposição e parte do primeiro e consagrado verso de Os Lusíadas,, de Luís de Camões, constitui-se como imagem, identidade e modelo não só para a poesia, mas como horizonte significativo e discursivo para toda uma cultura em
The Bronze Age (1875-1876), de Auguste Rodin (1840-1917)
contemporary generation, as well as some vectors that contributed to the consolidation of a poetic
língua portuguesa. Evocar o poeta épico e trazê-lo a uma discussão, que propõe repensar genealogicamente os horizontes que se constituem como novas articulações da subjetividade masculina, diversas daquelas preconizadas pela cultura institucional e hegemônica, é, inclusive, também uma tentativa de se procurar perceber um processo de construção identitária que se perfaz no interior da própria História da Cultura portuguesa. A abordagem procura priorizar como nessa seqüência se circunscrevem os discursos a respeito da masculinidade, na sua interface com as relações de gênero e às manifestações das novas subjetividades. Aqui se estabelece o óbvio: pretende-se trazer a esta reflexão não só a imagem de homem pensada pela ficção laudatória e celebrativa do poema épico camoniano, como também aquela que de certa forma se decalca na ficção, como recurso de representação do real. Nesse sentido, cabe dar voz, no campo do trabalho poético, às outras subjetividades nascentes após a “a convulsa circunvolução do corpo”, enunciada por Luisa Neto Jorge na Poesia 61, subjetividade esta que muito se baseia numa nova forma de representar o desejo masculino, agora preocupado em dizer-se para além da mulher-objeto-amoroso. A ficção poética, enquanto estratégia discursiva de apreensão do real ou como forma de ver a realidade, faz com que percebamos como o discurso literário engendra a representação de imagens que virão a se constituir como “lugares” em que a própria Literatura Portuguesa, posterior à epopéia camoniana, retornará em busca de modelos, sejam aqueles que corroborem com o imaginário literário e cultural ou outros, capazes de, a partir desses moldes tradicionais, constituírem-se como novas formas de ser. Assim, o marinheiro, navegador e o descobridor ou narrador épico tornam-se aqui os exemplos geradores de uma discussão e de um processo de transformação das subjetividades expostas no texto literário. São esses homens que coabitam o imaginário português como matrizes masculinas de uma nação, porque figuras copiadas de um modelo épico clássico. Como nos indica Bourdieu (1999, p. 14ss), a virilidade é marcada muitas vezes por gestos grandiosos, por ações prodigiosas, pela atuação exploratória e desbravadora do homem, pelos gestos de conquistas, todos estes elementos que denotam a honra e notabilização do homem. Dessa forma, o típico português da ficção, efetiva exatamente aquilo que, dentro de uma lógica andro-heterocêntrica, deve constituir o masculino. O novo mito, esperado e sugerido por Camões ao fim do poema não é só o Portugal-Máquina-do-Mundo, mas aquilo que o manifesta concretamente: a virilidade, a altivez, a energia da nação, o homem, o quarto vocábulo lusíada, seus varões. Vale assinalar, ainda, que na epopéia camoniana a representação do masculino não segue necessariamente as diretrizes tradicionais do herói épico, já que não só o Gama escapa a esta observação, como também ao longo dos cantos vão desfilando exemplos em que os estereótipos da masculinidade são abrandados. Note-se o episódio de Inês de Castro, em que o Poeta sobrevaloriza a doçura de Inês em contraponto à ferocidade inumana de D. Afonso; a frágil emoção do gigante Adamastor; ou, ainda, o Magriço, cuja representação não se submete às formas corporais do grande herói, apesar da sua afirmação de coragem e determinação; ou mesmo Lionardo, cuja insegurança na conquista amorosa é flagrante. Ao lado dessas figuras, os lugares eleitos por esta literatura como panos de fundo para a encenação ficcional: o mar, a terra, a nação, a praia, o cais; espaços de realização da nação e que posteriormente servirão como elementos de uma reconfiguração identitária e índices de que, embora os “motivos” sejam os mesmos, as abordagens, as retomadas e as personagens neles inseridos já são outros. Começando no século XVIII, quando Bocage, “Magro, de olhos azuis, carão moreno” (BOCAGE, 2003, p. 66), ousa desafiar aquela condição que canonicamente já se
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estabelecera: em diversos de seus poemas de tom erótico-burlesco, o poeta neoclássico dedicou-se a pôr às claras não só um aspecto de seu comportamento social, como também práticas que corriam em paralelo a o universo erótico heterossexual. Ainda que pareça precocemente que o poeta que pretendia ser o “segundo Camões” enalteça as práticas homoeróticas, cabe ressaltar que o seu discurso vem penetrado por um claro posicionamento masculino, que parece muito mais reafirmador da masculinidade do sujeito poético frente às prostitutas e homossexuais, do que necessariamente uma valorização de certas práticas das quais o poeta não se furtava. Em resumo, o poeta mais confirma aquilo que o modelo épico propunha, que necessariamente opera na rasura do modelo de masculinidade vigente, como por exemplo, quando em um de seus poemas declara que Tinha o mouro fodido largamente, E já basofiando com desdouro Tratava a nação lusa d´impotente: Entra o frade, e ao ouvi-lo, como um touro Passou tudo a caralho novamente, E o triunfo acabou no cu do mouro. (BOCAGE, 2003, p. 81-2)
À esteira de Camões, as afirmações acerca da masculinidade tradicionalmente constituída mantêm-se na série literária portuguesa pela retomada histórica e heróica do homem medieval procedida por Alexandre Herculano e pela denúncia das doenças sociais procedidas por Eça de Queirós. Eça construíra um Jacintinho afrancesado, moderno e cosmopolita, que, ao chegar à terra portuguesa, retoma a tradição do macho lusitano, convertendo-se de Jacintinho em Jacintão, varão típico, homem perfeito, exemplo de masculinidade. Isso somente, para não dar relevo aos inúmeros diminutivos utilizados na onomástica dos personagens queirosianos e à afirmativa de Antero de Quental em uma carta trocada com Joaquim de Carvalho: “Seja homem!” (QUENTAL, 1989, p. 690).
2. Poesia, rupturas e homoerotismo O modernismo posto em prática pelos artistas de Orpheu já começa a revelar estes outros, ou seja, a presença de uma representação do homoerotismo, que, às vezes, inefavelmente vai ousar rasurar o estatuto da identidade masculina portuguesa; autores e personagens, já questionadores de uma tradição estética, se lançarão numa empreitada que se traduz, inclusive, na criação de um novo homem multifacetado, transsubjetivo, pluridentitário, como o caso de Mário de Sá-Carneiro, na Confissão de Lúcio, no jogo heteronímico pessoano ou nas encenações de gênero de Côrtes-Rodrigues, com sua Violante de Cysneiros. Nesse diapasão, ainda, Antônio Botto, Raul Leal ou a Literatura Viva de Régio, toda ela exemplificada por autores e textos que já habitavam ou irão habitar o imaginário homoerótico do século XX. Entretanto, somente 30 anos depois, já estando instalada em Portugal toda uma série de movimentações em favor da liberdade de expressão e da descompressão política, é que se começa a perceber que as rupturas pensadas pelos dois modernismos, no que se
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aplica aos objetos representados poeticamente, começam a se perfazer, particularmente com relação à representação de desejos ainda considerados infames pela lógica cultural e moral portuguesa, como os desejos homoeróticos. Não se quer aqui afirmar que o período compreendido entre as Canções, de Botto, as “Odes”, de Campos e a Sodoma Divinizada, de Leal, tenha sido um período de silenciamento a respeito do homoerotismo em poesia. Entretanto, fora um momento em que a tensão moral acaba por impor a essa temática formas bem herméticas de representação, que redundaram por um lado numa espécie de “grau zero” do vetor do desejo como se percebe em Cesariny ou Eugênio de Andrade. Em outras palavras, a fala da experiência homoerótica estava ali, apenas que bem engendrada pela boa formulação metafórica de ambos os poetas, por exemplo. A questão da enunciação do homoerotismo tornou-se mais plenamente perceptível na cena poética que sucede à inserção poética da Poesia 61 no arranjo lírico português, o que corresponde a uma forma político-discursiva de confrontar os valores circulantes no imaginário cultural salazarista. Nesse sentido, dizer o corpo e dizer para além o corpo homoerótico equivaleria a descercear os “sítios sitiados” e os corpos imersos nessa topologia, em favor dum outro corpo que precisa ser discursivizado e ganhar, com isso, força semântica no âmbito poético, sendo consequentemente, liberto ou, pelo menos, descomprimido. Ainda, dizer o corpo homoerótico passa a se constituir como uma ruptura em segundo grau, já que visa instaurar, além dessa presença intensiva do corpo erotizado tal qual ele se desenha, também um outro corpo desde sempre obliterado ou esvaziado pela erótica oca de Pessoa e que comparece muitas vezes marcado pela interdição das palavras, pela impossibilidade marcada no dizer poético: As palavras que te envio são interditas Até, meu amor, pelo halo das searas; Se alguma regressassse, nem já conhecia O teu nome nas curvas claras. (Andrade, 1999, p. 47)
Esse corpo obliterado na cultura e na literatura, assim como o seu decorrente desejo, ambos antes interditados, agora se auto-impõem a necessidade de expandir-se para além dos quartos baratos enunciados por Botto e dos engates dos urinóis públicos de Leal. É o corpo-texto ou o texto-corpo a que reiteradamente se referencia Al Berto: Os textos possíveis são o despertar do corpo, suas pulsações bruscas, fragmentadas, outros corpos vibram, nomes que acendem desejos. (…) fiquei definitivamente adulto, cansado pelos dias que me obrigo a viver. consolame a escrita correndo livre nas imensidões do deserto, o texto-corpo. (AL BERTO, 1997, p. 26-7)
Esse corpo-texto homoerótico demanda transcender o campo do interdito, “uma casa /sem portas nem janelas/ pra te esconder” (Andrade, 1999, p. 191) em que se insere, mesmo em tempos de ganhos efetivos da subjetividade homossexual, e exige para sim a luminosidade do desejo pleno “no seu lugar, por um relâmpago” (NAVA, 2002, p. 44). Ou seja, sair da luz apagada e da sensação de “lábios cercados de rendição” (Magalhães, 1985, p. 40) e da “obscura sensação” do inefável amor, deixando de ser
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a morada do silêncio, de estar por detrás das palavras ou do poema, para alcançar a expressão satisfatória de uma quase liberdade do dizer, em Nava, que pela experiência do olhar enuncia o amor entre iguais: Foi há cerca de um ano que eu Os vi, onde o granito e a luz são consangüíneos. Seguiam abraçados um Ao outro, o pensamento posto no amoroso Lençol de que era na mão deles O guarda-chuva uma antecipação. (NAVA, 2002, p. 120)
Ou ainda em João Miguel Fernandes Jorge: A superfície do barbeado rosto. Tão plano tão pronto ao where are you Que pergunto aos meus dedos Antes de tudo meter num envelope. O outro Ficou à chuva ficou na cama ao lado ficou Com a minha escova de dentes Outra espécie de tortura, mais amarela. A conjura dessa arte é o meu verdadeiro amor. (JORGE, 1982, p. 73)
Este signo de liberdade e de enunciação da diferença se celebra de maneira mais marcante no processo de dupla representação realizado por Jorge de Sena em Sobre esta praia: nas oito meditações sobre o Pacífico engendra-se um processo profundo de ficcionalização, já que ali o sujeito enunciador assume-se como simulacro do próprio desejo homoerótico, falseando ou metamorfoseando uma percepção de mundo baseada no olhar desejante de um sujeito que se coloca como testemunha dos desejos que se efetivam entre os rapazes que freqüentam a praia. Dupla ficcionalização, já que, se se pensa este conjunto poético no ensejo da obra seniana, percebe-se a tentiva de criar um outro a partir da outra dicção identificada com os valores masculinos normativos. Este outro para além se assume como um novo enunciador de “um outro tempo em outro/diverso em gente organizado em mundo.” que em princípio se coloca como um novo enunciador, o único capaz de narrar a nova experiência de perceber os amores outros: Deitados no sabor de ao sol queimarem o mais oculto de si mesmos são dois jovens e uma jovem misturados. Um dos rapazes se recosta contra o corpo do outro rapaz que alonga dorso e pernas, enquanto neste se debruça e dobra, pendendo os frescos seios e os cabelos, o corpo feminino associado aos de ambos.
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The Bronze Age (1875-1876), de Auguste Rodin (1840-1917)
Mas nada indica excitação nos machos de quem se pousa o sexo ou distendido pende em de sereno indiferente como a só vazia de ausência mistério que a corpos dava um fervor quente e humano. São, como deuses, animais sem cio? Ou são, como animais, humanos, que se aceitam? Ela é de quem? De um deles só, dos dois? Um deles será dela mas também do outro? Será cada um dos três dos outros dois? Ambos os machos serão fêmeas do outro? Ou sou um deles? Qual dos dois? O que sentado se recosta? O que deitado aceita contra o seu corpo recostado? (SENA apud MAGALHÃES, 1981, p. 23)
É interessante observar as inúmeras demandas do enunciador, no sentido de compreender sob que outra lógica se estabelece esta “vazia ausência de mistério” representada não só pelos três corpos que se entrelaçam, mas sobretudo pela outra lógica que percebe na aproximação entre os dois rapazes. Aqui, ainda uma forte marca de um processo de triangulação de desejos, para citar René Girard, em que a mulher funciona como meio possível para a realização do impulso homoerótico. Entretanto, o procedimento se desfaz à medida em que a mulher é substituída pelo imperativo do desejo dos rapazes observados pelo enunciador que, num outro poema da seqüência declara que “aqui é um outro oceano. / um outro tempo”, ou seja, um lugar possível inclusive para a realização desses novos desejos, já dispersos em tempos e vontades. O sujeito poético, entre que pasmado e desejante, enfatiza a visada oriunda de um horizonte cultural normativo ao usar palavras como “macho” e “fêmea”, caracterizadoras de um binarismo sexual que se desfaz na cena que descreve. Claro está que a subentendida oposição de espaços denota o lugar de que olha o enunciador e um outro topos Atlântico (Portugal), em que “ondas rebentavam plácidas” mas que “me ouviram não dizer nem conversar”. Numa palavra: o “novo” espaço de expectação em que se coloca o enunciador equivale ao espaço de realização de desejos e dizeres antes silenciados, mas que agora “pinta de palidez o rosto que sorria, / o corpo que se adiante ao gesto desenhado”, em oposição ao lócus atlântico de interdições discursivas e de cerceamento do dizer. Inoportunas não seriam as aproximações entre o “tom” do enunciador diante dessa praia, condizente com a mesma surpresa diante do novo e do inusitado já experimentadas pelos cronistas, por Camões, por Fernão Mendes Pinto: o signo do novo, do que se percebe novo e abala o poeta é o elemento que motiva a criação, lugar também onde o poema se faz. No caso, este poeta propõe com as suas oito meditações sobre o Pacífico, uma série de metamorfoses que operam tanto na forma como a dicção poética tematiza e discursiviza o tema do homoerotismo, como também sintoniza esta expressão lírica com vetores poéticos portugueses cuja celebração está na fala dos poetas de 61, em Al Berto, nos poetas de Cartucho, de Sião Sião, em Joaquim Manuel Magalhães, em Maria Teresa Horta: dizer o corpo liberto, livrá-lo do estado de sítio, relacioná-lo às urgências de seu momento. Particularmen-
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te sendo os poemas ora discutidos ambientados no espaço californiano, palco àquela altura de avanços significativos no campo da emancipação homossexual estadunidense. Cabe aqui a elucidação do porquê incluir Jorge de Sena nessa espécie de genealogia do dizer poético homoerótico: ao se tratar de ‘homoerotismo’, trata-se necessariamente de algo que se constitui na ordem do discurso e do desejo, e não necessariamente de práticas sexuais, identitárias ou relacionadas às práticas sexuais. Trabalha-se no campo mais profundo da representação, em que o poeta fingidor pode, com facilidade, assumir uma fala que pertence a outros atores sociais como sendo sua, sem que isso deslegitimize o seu dizer o que o desautorize enquanto tradutor da realidade. A esse respeito, oportuna é a fala do próprio Sena: Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas os outros mundos simultânea e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que o sejam de facto. (SENA, 1988, p.26)
Em outras palavras, colaborar na condução do homoerotismo ao espaço consagrado da poesia é, de fato, uma forma de conferir dignidade a um eixo temático muitas vezes considerado um vetor menor dentro da obra de vários dos poetas consagrados no século XX. Por outro lado, cumpre Sena o papel de, reanimando o poeta expulso da Polis platônica, veicular a realidade das coisas e as verdades que precisam ser ditas no espaço também da arte, assumindo, assim, a tarefa cidadã do poeta transformador.
3. Uma poética do olhar e do desejo Embora a dicção ou a representação do homoerotismo na poesia portuguesa não oriunde necessariamente de um movimento formalizado em termos de expressão, esta tematização parece constituir uma espécie de continuum, uma tradição silenciosa, que nesse caso não é defeito, mas qualidade, a que determinados poetas recorrem e de que se utilizam com alguma recorrência. Para além da simples semelhança temática, há não só nos poetas aqui discutidos uma recorrência a determinadas imagens e recursos que, se não são próprios dessa poesia, parecem engendrar-se como referencial ou recurso comum ao procedimento desses diversos poetas. Assim, cabe enumerar alguns desses vetores, de forma a desenhar essa forma de dizer: a) relação do fazer poético com a experiência do corpo do outro: escrever o poema é antes experimentar um outro corpo igual, desejante e orgástico, é escrever o desejo, como é perceptível em Al Berto (À procura de um vento no jardim de Agosto, Salsugem) e Luis Miguel Nava (Películas e Onde à nudez); b) a vida cotidiana, o corriqueiro e o comum da vida elevados à motivação estética do poema, como se observa particularmente em poemas como “Com halteres e outros instrumentos”, de Joaquim Manuel Magalhães, e “Opus133”, de João Miguel Fernandes Jorge. Neste item podem ser relacionados, ainda, a
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conversão de fatos comuns em metáforas complexas, de forma a estetizar este cotidiano e as vivências homoeróticas nele localizáveis. Da mesma forma, os lugares tradicionais de engate e as formas variadas de aproximação afetivosexuais constituem dados de extrema recorrência; c) revisão dos valores próprios da lírica tradicional portuguesa, como por exemplo, a utilização de recursos próprios da cantiga de amigo (As Canções, de Botto), Al Berto (Três Cartas da memória das Índias), “Alba”, de Joaquim Manuel Magalhães; ou mesmo a recorrência às formas tradicionais como a canção e a elegia, em Eugênio de Andrade. Há na poética portuguesa uma relação que parece intrínseca a sua constituição, que é a questão das formas de representação do erótico. Desde as formas tradicionais da medievalidade – cantigas líricas e satíricas –, passando por Camões, Garrett, Cesário e Pessanha, tem-se sempre este índice como um forte traço do poético, podendo se constituir como um vetor que se mantém e que é redimensionado à medida em que um novo valor, como a representação homoerótica, passa também a comparecer no escopo literário de forma mais amiúde nas produções mais recentes. d) constante recurso de referência a outros poetas que tematizam a mesma questão, como em João Miguel Fernandes Jorge (Eugênio de Andrade, Mario de Cesariny, Jean Genet), Al Berto (Cesariny, Álvaro de Campos, Sá Carneiro); e) construção poética que geralmente perpassa a ordem sensorial, sobretudo o olhar: o enunciador sempre observa a coisa amada, o objeto desejado ou uma situação e relata o efeito dessa visada, que geralmente altera a sua forma de perceber o mundo; o olhar fetichista é o que proporciona a enunciação poética; f) a relação olhar / poema estabelece ainda uma espécie de forma testemunhal, pela qual tanto o enunciador procura representar aquilo que presencia, como também indica um processo de ficcionalização do desejo, como no caso de Sena e Eugênio de Andrade. Nesse caso, o testemunho se auto-rasura, visto que não indica necessariamente a presença do locutor, mas o desejo de estar presente e testemunhar, como se vê, ainda, em Al Berto; é uma forma de pautar o testemunho na ordem do desejo erótico, fazendo-o servir como relato, posterior, de diversas sensações; g) há ainda em poetas como Fernando Pessoa, José Régio, Eugênio de Andrade e Jorge de Sena um procedimento de encenação, uma espécie de redobra do processo de ficcionalização no qual o enunciador, não sendo quem mormente enuncia desejos homoeróticos, precisa fingir o fingimento duplamente, no mesmo sentido aludido por Pessoa; h) esvaziamento do objeto amoroso com relação ao seu gênero gramatical, procedimento recorrente em Eugênio de Andrade, João Miguel Fernandes Jorge, Reinaldo Ferreira, dentre outros. Essa dessubjetivação pode aprioristicamente indicar um desejo pelo feminino, mas, por outro lado, indica a suspensão da anunciação clara em favor do mistério em torno da identidade da coisa amada. Nesse sentido esse “vazio” do gênero poderia indicar a interdição atinente ao enunciar do desejo por outro homem ou mulher, demarcando a inefabilidade das relações homoeróticas; i) constante recorrência à figura do efebo, aos rapazes e aos homens mais jovens como objetos sobre os quais recaem os desejos ou que precisam ser enunciados na sua beleza, como bem se vê em Botto, Nava (Atrás da página, Há uma pedra
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feroz), Al Berto (Alguns poemas da rua do Forte), Sena (“Ganimedes”, “Sobre esta praia”), Pessoa (“Antinoo”); j) questão escatológica: excrementos, semém, saliva e suas decorrentes metáforas; no mesmo diapasão, a constante recorrência a um corpo cindido, fragmentado, que muitas vezes se esfacela pelo desejo, como em Nava, ou pela falta dele.
4. À guisa de conclusão Considerando que corpo, o homoerotismo e as demais manifestações da sexualidade passaram, desde pelo menos o movimento de Poesia 61, a constituir um legítimo paradigma para a poesia portuguesa mais contemporânea, o trabalho pretendeu descrever e analisar como tais vetores têm se manifestado em algumas produções poéticas dos últimos 30 anos em Portugal, tratando-os, assim, como efetivos elementos de ruptura com a tradição lírica portuguesa. No mesmo sentido, apontam para procedimentos que, no interior do literário, apontam também para conquistas de ordem político identitárias. E essa expansão não é só política, como também precisa adentrar os campos cultural e poético de forma a demarcar a necessidade de dizer as novas subjetividades nascentes ou de celebrar “o sagrado direito à diferença”, a que alude Guilherme de Melo (1983, p. 58).
Referências Bibliográficas AL BERTO. O medo. Lisboa: Assirio & Alvim, 1997. ANDRADE, Eugénio de. Poemas de Eugénio de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. BOCAGE, Manuel Maria du. Poesia Erótica. Lisboa: Dom Quixote, 2003. BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. JORGE, João Miguel Fernandes. O regresso dos remadores. Lisboa: Presença, 1982. MAGALHÃES, Joaquim Manuel. Os Dois Crepúsculos. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981. MAGALHÃES, Joaquim Manuel. Segredos, Sebes, Aluviões. Lisboa: Presença, 1985. MELLO, Guilherme. Ser homossexual em Portugal. Lisboa: Cadernos de Reportagem, 1983. NAVA, Luís Miguel. Poesia Completa 1979-1994. Lisboa: Dom Quixote, 2002. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. QUENTAL, Antero. Cartas I e II. [Obras Completas, vv. 6 e 7]. Org. intr. e notas de Ana Maria Almeida. Lisboa: Universidade dos Açores/ Editorial Presença, 1989. SENA, Jorge. 40 poemas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1998. SENA, Jorge. Poesia I. Lisboa: Edições 70, 1988.
* Emerson da Cruz Inácio é Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor em regime de dedicação integral à Docência e à Pesquisa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: Poesia do século XX, Literatura Comparada, Estudos Culturais, Teoria Queer e Estudos Gays e Lésbicas, e focalizando a tensão e a convergência desses com a crítica literária, o corpo, a subjetividade e a cultura.
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AIDS e morte, vida e memória
mapeamentos subjetivos e ficcionais em cartas, crônicas e contos de Caio Fernando Abreu Flávio Pereira Camargo*
A vida grita. E a luta, continua. [Caio Fernando Abreu. Última carta para além dos muros.]
Resumo: Nosso objetivo neste artigo é realizar um mapeamento do impacto da AIDS na relação afetiva e sexual tanto na vida de Caio Fernando Abreu quanto na de seus personagens homossexuais, de modo a evidenciar duas perspectivas em relação à doença: uma negativa e outra positiva, que nos revela a possibilidade de novas formas de afetividade e erotismo entre sujeitos contaminados pelo vírus letal. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Homoerotismo, Caio Fernando Abreu, AIDS AIDS & Death, Life & Memory: subjective and fictional topics of Caio Fernando Abreu’s letters and short stories Abstract: Our objective is to trace the impact of AIDS on the emotional and sexual relationships of Caio Fernando Abreu, as well as on his homosexual characters. In so doing, we will be able to identify two perspectives on this disease - one is negative, but the other positive, and the latter reveals new ways of affection and eroticism among individuals contaminated with the often lethal virus. keywords: Homoeroticism, Caio Fernando Abreu, AIDS
Q
uando Caio Fernando Abreu1 descobriu que tinha contraído o vírus da AIDS, em 1994, estava no auge de sua carreira e sendo constantemente convidado para participar de eventos, lançamentos e feiras internacionais, conforme afirma Ítalo Moriconi: Quando adoeceu de Aids em 1994, Caio estava em pleno processo de internacionalização da obra. Em 1991, tinham sido lançadas as traduções inglesa e francesa de Os dragões não conhecem o paraíso, que contaram com excelentíssima repercussão crítica, particularmente na França, para onde Caio logrou viajar em 1992, beneficiando-se de uma bolsa para escritores concedida por uma instituição daquele país. Em 1993, pôde retornar à sua amada
1 Caio Fernando Abreu sempre assinava suas cartas, correspondências e algumas de suas publicações como Caio F., de modo que em alguns momentos faremos referência ao escritor utilizando essa forma de abreviação.
Europa para fazer leituras na Alemanha e na Holanda, participando também de um Congresso Internacional sobre Literatura e Homossexualidade. No ano seguinte a explosão. Três lançamentos no Salão do Livro de Paris – o romance Dulce Veiga, a noveleta Bem longe de Marienbad (que Caio escrevera durante os três meses da bolsa de dois anos antes) e a coletânea de conto L’autre voix. O sucesso foi tanto que Dulce Veiga acabou entre os finalistas indicados para o Prêmio Laura Battaglion de melhor romance traduzido (2002, p. 12).
Logo em seguida a esses lançamentos na França, ocorre uma sequência de traduções das obras de Caio F. em outros países europeus, como, e.g., Holanda, Alemanha e Itália. Foi em meio a esse processo de internacionalização de sua obra que o escritor se deparou com o resultado positivo em seu teste de HIV. Em suas cartas, Caio F. escreve, em 16 de agosto de 1994, a Maria Lídia Magliani para lhe contar a notícia. Dias depois, ele comunicaria a seus leitores, na coluna quinzenal que mantinha no jornal O Estado de S. Paulo, que estava contagiado pela doença. A carta enviada por Caio F. a sua amiga Magliani merece destaque especial e, por isso mesmo, será transcrita em sua íntegra: A Maria Lídia Magliani São Paulo, 16.08.94 Magli querida: Pois é, amiga. Aconteceu – estou com AIDS – ou pelo menos sou HIV + (o que parece + chique…), te escrevo de minha suíte no hospital Emílio Ribas, onde estou internado há uma semana… Ah, Magli, que aventura. Voltei da Europa já mal – febres, suadores, perda de peso (perdi – imagina – oito quilos), manchas no corpo – e sem um tostão. Não vou te contar todos os detalhes dolorosos dos 2 últimos meses – mas meu santo é forte e mandou aquele nosso velho anjo da guarda chamado Graça Medeiros, vinda de NY pque o irmão de S. […] está terminal […] Depois de pegar o teste positivo, fiquei dois dias ótimo, maduro & sorridente. Ligando pra família e amigos, no 30 dia enlouqueci. Tive o que chamam muito finamente de “um quadro de dissociação mental”. Pronto-Socorro na bicha: acordei nu amarrado pelos pulsos numa maca de metal… Frances Farmer, Zelda Fitzgerald, Torquanto Neto: por aí. Tiraram líquido da minha espinha, esquadrinharam meu cérebro com computador, furaram as veias, enfiaram canos (tenho I no peito, já estou íntimo do tripé metálico que chamo de
Ophelia (1842-1876), de Auguste Préault (1809-1879)
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“Callas”, em homenagem a Tom Hanks), etc, etc. Não tenho nada, só um HIV onipresente e uma erupção na pele (citomegalovírus) que cede pouco a pouco… Maria Lídia, nunca pensei ou sempre pensei: por contas e históricos infeccioso feito com o médico, tenho isso há dez anos. E pasme. Estou bem. Nunca tive medo da morte e, além disso, acho que Deus está me dando a oportunidade de determinar prioridades. Eu só quero escrever. Tenho uns quatro/cinco livros a parir ainda, chê. Surto criativo tipo Derek Jarman, Cazuza, Hervé Guibert, Cyrill Collard. E estou cercado de anjos. Minha irmã Cláudia – sempre a mais brava e bela – veio de POA. Ficou dois dias. Todos da família lidam bem com a coisa. Nair, a espantosa, não ficou nada chocada: já sabia… só ela sabia. Mas nunca duvide de mães. E amigos ótimos, visita todas as tardes, muito amor, maçãs e chocolates. Ganhando alta aqui, mais uma semana, vou para POA. Quero ganhar forças para enfrentar Frankfurt e dois congressos na França em outubro/novembro. Não sinto nenhum rancor, nenhuma mágoa. Chorei algumas vezes porque a vida me dá pena, e é tão bonita. Passeio pelos corredores da enfermaria e vejo cenas. Figuras estarrecedoras. Saio dessa mais humano e infinitamente melhor, mais paciente – me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé. Te amo muito. […] Beije Marijô por mim (adoro escrever Marijot). Nada disso é segredo de Estado, se alguém quiser saber, diga. Quero ajudar a tirar o véu de hipocrisia que encobre este vírus assassino. Mas creia, estou equilibrado, sereno, e às vezes até feliz. Muito amor, seu Caio F. (Finalmente um escritor positivo!) PS – Ouço muito Maria Callas, sobretudo a ária final da Butterfly, que Augusto me deu. Difícil ouvir outra coisa. PS – Não se preocupe. Não fique triste. Tudo me parece muito lógico: Que outra morte eu poderia ter? É a minha cara! E futilidade sempre foi matéria de salvação: convenhamos que é muito moderno, muito in… Só choro às vezes porque a vida me parece bela (O sol. As cores. As coisas). Mas é de emoção, não de dor. Ta tudo certo. Love Love Love It’s All We Need Always (ABREU, 2002a, p. 311-313, grifos do autor em itálico; supressões do organizador das cartas).
Nesta carta, na qual Caio F. comunica a sua amiga Maria Lídia que está doente, ele faz referências iniciais aos vários sintomas da AIDS, entre eles os suadores, as febres, os delírios e a perda progressiva de peso em decorrência da debilitação do corpo físico. O
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diagnóstico aparentemente não surpreendeu Caio F., que intimamente já presumia ter a doença, pelo modo de vida um tanto desregrado e por vários de seus amigos terem morrido de AIDS anos antes. No entanto, a confirmação da doença expressa naquele “positivo” acabou por provocar nele “um quadro de dissociação mental”, que teve como resultado imediato sua internação por cerca de um mês. Mesmo durante todo o período de tratamento e de convivência com o vírus da AIDS o escritor não perdeu seu senso de humor, pelo contrário, tornou-se mais bem humorado, mais calmo e sereno – embora esse humor oscilasse de vez em quando devido ao tratamento –, e dizia-se feliz por poder vivenciar sua morte anunciada pela doença com lucidez e fé em uma possível cura e/ou tratamento que a mantivesse sob controle. Em relação a esse humor de Caio F., Jeanne Callegari afirma que ele não cessava, pois o escritor ia para os exames e pedia aos amigos: segura a Maria Callas pra mim, por favor. A Maria Callas era o aparato do soro, que ele levava dançando, exatamente como na cena de Filadélfia. Ele compôs raps para o AZT, brincou, cantou. Depois do susto inicial, ele ia descobrindo um jeito de lidar com a doença. (2008, p. 169)
Ademais, Caio F. queria desmistificar os mitos e estigmas em torno da AIDS e daqueles que eram portadores do vírus. De tal modo que o escritor converteu o positivo da doença, na verdade algo negativo, dado a eminência da morte, em algo positivo em sua vida. O escritor negativo, anos antes, era extremamente pessimista e suas marcas são visíveis em sua obra, dada a presença da solidão, da introspecção, da melancolia, da dor e do sofrimento, entre outros aspectos. Já o escritor contaminado pelo vírus torna-se mais positivo, humano, sereno e calmo. É em Pequenas epifanias, uma coletânea de crônicas publicadas em O Estado de S. Paulo, organizadas por Gil Veloso, após a morte do autor, que a temática da AIDS se torna mais explícita, sobretudo nas “cartas para além do muro”, nas quais Caio F. comunica a seus leitores que está contaminado pelo vírus. De acordo com Antonio Eduardo de Oliveira, “o título dessas crônicas/cartas é uma alusão simbólica do corpo vivo lutando para transpor ‘o muro’, metáfora espacial que se torna limítrofe entre a vida e a morte” (2009, p. 117). As crônicas/cartas são escritas durante o período em que o escritor esteve hospitalizado. Nelas, Caio F. expõe aos seus leitores o corpo aidético, um corpo que o inspira na elaboração de sua escrita, de seus contos, crônicas e cartas. Na “primeira carta para além do muro”, publicada em 21/08/1994, Caio F. ainda faz referência à doença de forma um pouco velada, indireta, ao comunicar pela primeira vez a seu público leitor que estava doente: Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você, para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender o que tento dizer. (ABREU, 1996, p. 96, grifos nossos)
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Ao expor a sua doença, o seu corpo aidético com suas implicações de variada ordem, Caio F. não somente revela o sofrimento, os sintomas e o medo diante daquilo que lhe é desconhecido, pois ele também pretende estabelecer com seu leitor uma cumplicidade através das cartas e crônicas, gêneros que pressupõem um tom menos formal, uma linguagem mais coloquial e uma maior proximidade com o outro, no caso, o leitor epistolar, considerado por Caio F. um interlocutor para divulgar a sua produção além dos muros brancos, dos limites físicos que lhe são impostos pela doença: Sei que você não compreende o que digo, mas compreenda que eu também não compreendo. Minha única preocupação é conseguir escrever estas palavras – e elas doem, uma por uma – para depois passá-las, disfarçando, para o bolso de um desses [visitantes] que costumam vir no meio da tarde. (ABREU, 1996, p. 97)
De tal modo que Caio F. vê o ato de escrever/o processo de escrita como único meio de redenção: É com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira literária de dizer que escrever significa mexer com funduras – como Clarice, feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e veias e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas mãos que você não vê sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das quais escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar. Dói muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência é o que de melhor posso oferecer a você e a mim neste momento. Por isso, saiba, isso que poderá me matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos talvez. (ABREU, 1996, p. 96, grifos nossos)
A cumplicidade com o leitor é visível nas cartas/crônicas para além dos muros. O escritor expõe sem nenhum pudor as suas dores físicas. Profundas. Marcantes. É nesse “corpo feito de carne e veias e músculos”, doente, acamado em um quarto de hospital, que Caio F. busca forças no mais profundo de seu íntimo para revelar ao seu leitor não somente a sua doença e seus sintomas físicos, psicossociais e emocionais, mas, sobretudo, uma tentativa de resistência à morte, uma “não-desistência” de viver que, por hora, pode salvá-lo. E a escrita, o processo de escrever e de dialogar com o outro é, para ele, um dos meios mais eficazes de tentar resistir ao anúncio de uma morte que parece tão próxima, tão real: “a única coisa que posso fazer é escrever – essa é a certeza que te envio, se conseguir passar esta carta além dos muros. Escuta bem, vou repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é escrever, a única coisa que posso fazer é escrever” (ABREU, 1996, p. 97-98, grifos nossos). Na “Segunda carta pra além dos muros”, publicada em 04/09/1994, o escritor apresenta uma consciência mais explícita da presença da morte anunciada pela AIDS. Nessa carta, Caio F. faz várias referências a elementos da cultura pop e ao início da luta política pela causa gay internacional ao mencionar o bar Stonewall, de Nova Iorque:
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Nem tão celestiais assim, esses anjos. Os da manhã usam uniforme branco, máscaras, toucas, luvas contra infecções, e há também os que carregam vassouras, baldes com desinfetantes. Recolhem as asas e esfregam o chão, trocam lençóis, servem café, enquanto outros medem pressão, temperatura, auscultam peito e ventre. Já os anjos debochados do meio da tarde vestem jeans, couro negro, descoloriram os cabelos, trazem doces, jornais, meias limpas, fitas de Renato Russo celebrando a vitória de Stonewall, notícias da noite (onde todos os anjos são pardos), recados de outros anjos que não puderam vir por rebordosa, preguiça ou desnecessidade amorosa de evidenciar amor. (ABREU, 1996, p. 99, grifos nossos)
A referência aos elementos de uma cultura pop é perceptível quando o escritor nos diz dos anjos rebeldes, debochados, que trajam jeans, roupas de couro e “cabelos descoloridos”, além da referência a Renato Russo, músico ícone de uma geração de jovens que optou por outro modo de viver, outra cultura, enfim, uma juventude “transviada” que festeja a vitória de Stonewall pelo respeito à diversidade sexual e de gênero e aos seus direitos como cidadãos. Além dessas referências, nessa carta/crônica o escritor evoca várias personalidades famosas vitimadas pelas AIDS. Caio F. evidencia o show da vida, uma metáfora midiática para se referir a todos aqueles cuja morte anunciada pelo vírus da AIDS tornou-se real: Homens, mulheres, você sabe, anjos nunca tiveram sexo. E alguns trabalham na TV, cantam no rádio. Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e clarins, despenco no sono plástico dos tubos enfiados em meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado de Todas as Coisas. Reconheço um por um. Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nureiev, identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vallauri espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro Santo Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nelson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de Cyrill Collard, enquanto Wilson Barros esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nélson Perlongher. Ao som de Lóri Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta para o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passa a mão devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: “Quem tem um sonho não dança, meu amor”. (ABREU, 1996, p. 100, grifos nossos em itálico)
Por fim, na “Última carta para além dos muros”, de 18/09/1994, há uma confissão explícita, direta sobre a contaminação do escritor. O que antes estava dito nas entrelinhas, nos entre-lugares de sua escrita, torna-se mais claro ao seu leitor, seu interlocutor com o qual tem estabelecido certo diálogo a respeito da AIDS, da morte, da vida: Porto Alegre – Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas como aquelas dos almanaques de antigamente. Gosto
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sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mais claramente. Não vejo nenhuma razão para esconder. Nem sinto culpa, vergonha ou medo. Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV positivo. O médico viajara para Yokohama, Japão. O teste na mão, fiquei três dias bem natural, comunicando à família, aos amigos. Na terceira noite, amigos em casa, me sentindo seguro – enlouqueci. Não sei detalhes. Por autoproteção, talvez, não lembro. Fui levado para o Pronto Socorro do Hospital Emílio Ribas com a suspeita de um tumor no cérebro. No dia seguinte, acordei de um sono drogado num leito da enfermaria de infectologia, com minha irmã entrando no quarto. Depois, foram 27 dias habitados por sustos e anjos – médicos, enfermeiras, amigos, família, sem falar nos próprios – e uma corrente tão forte de amor e energia brotaram de dentro de mim até tornarem-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé. (ABREU, 1996, p. 102, grifos nossos)
A confissão do escritor, agora explícita e mais direta, também nos revela com maior nitidez a sua força de resistência, a sua não-desistência de viver, de amar, de continuar a escrever seus contos, crônicas e cartas. É justamente essa fé, resultado de amor e energia positiva recebida de amigos e familiares, que dá forças para que Caio F. continue lutando e acreditando na possibilidade de permanecer vivo para dar continuidade aos seus projetos de vida, de escritor. Nessa carta/crônica, ele ainda diz ao leitor sobre a fragilidade do corpo humano diante das adversidades e sua vulnerabilidade à dor. Caio F., nessa carta/crônica, evoca memórias afetivas, amorosas e familiares, além de confessar ao seu interlocutor que a cada dia que passa ele apura mais a sua percepção daquilo que o cerca, percebendo que há vida, alegria e amor nas coisas aparentemente mais fugazes e belas de nosso cotidiano. Caio F. estava se transformando em um novo homem, que se importava somente com a vida, embora a morte estivesse tão próxima a ele:
Paganini (1832), de Jean-Pierre Dantan (1800-1869)
Mas para você, revelo humilde: o que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do Tempo e creme de chantilly às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos suportar. E beijá-la na boca. De alguma forma absurda, nunca estive tão bem. Armado com as armas de Jorge. (ABREU, 1996, p. 103, grifos nossos)
Caio F., após sair do hospital, retornou à casa dos pais, em Porto Alegre, no bairro do Menino Deus, seu único refúgio, onde passou a cultivar e a cuidar de várias plantas e flores no jardim da casa: Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sem-
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pre soube que era aqui o porto. Nunca se sabe até que ponto seguro, mas – para lembrar Ana C., que me deteve à beira da janela – como não se pode ancorar um navio no espaço, ancora-se neste porto. Alegre ou não: ave Lya Luft, ave Iberê, Quintana e Luciano Alabarse, chê. (ABREU, 1996, p. 103)
De acordo com Ítalo Moriconi (2002), ao retornar à casa dos pais, o escritor lutou muito para tentar manter o mesmo ritmo de trabalho mesmo durante as oscilações de seu estado físico, marcado pela doença. Foi justamente nesse período, que compreende cerca de quase dois anos, de agosto de 1994 a fevereiro de 1996, que Caio F. revisou parte de sua produção, reeditou alguns de seus livros e publicou outros, a exemplo de Ovelhas negras, livro considerado pelo próprio escritor como pré-póstumo, publicado em 1995, que reúne parte de sua produção desde a década de 1960 até a de 1990. Pré-póstumo porque Caio F. tinha pavor de morrer e ter parte de sua produção ainda inédita publicada postumamente sem passar pelo seu crivo, o que ocorre com certa frequência com alguns escritores, a exemplo de Ana Cristina César, que teve seus inéditos publicados. Como dissemos anteriormente, Caio F. é considerado o primeiro escritor brasileiro a tematizar a AIDS e ele o faz de forma muito sutil inicialmente, em boa parte de sua obra quando se refere à epidemia presente no corpo das personagens. Em relação a este discurso da AIDS e sobre suas implicações na vida afetivo-sexual e social daqueles que foram contaminados pelo vírus, Ítalo Moriconi afirma que pode-se constatar facilmente que o discurso da Aids, em torno da Aids, pautado pela Aids, já estava presente na obra de Caio desde o início da epidemia, na primeira metade da década de 80. Diante da possibilidade de que ele mesmo viesse a se tornar vítima, tal como já ocorria a todo instante com tantos e tantos de seus amigos próximos e distantes, sua postura foi idêntica à de muitos no Brasil, cheia de contradições, idas e vindas, já que a epidemia colocava no centro do debate algo que havia começado a se tornar simples e que de repente ficava complicado de novo – a vivência da condição homossexual (bissexual?) masculina. (2002, p. 14)
Exemplar desse discurso em torno da AIDS que já aparece na década de 1980 na produção de Caio F. são os contos “Linda, uma história horrível” e “Dama da noite”, incluídos em Os dragões na conhecem o paraíso, publicado em 1988. A epígrafe deste livro é exemplar em relação aos temas que serão abordados pelo escritor no decorrer da obra. De acordo com Caio F., [s]e o leitor quiser, pode ser um livro de contos. Um livro com 13 histórias independentes, girando sempre em torno de um mesmo tema: Amor e sexo, amor e morte, amor e abandono, amor e alegria, amor e memória, amor e medo, amor e loucura. Mas se o leitor também quiser, este pode ser uma espécie de romance-móbile. Um romance desmontável, onde essas 13 peças talvez possam completar-se, esclarecer-se, ampliar-se ou remeter-se de muitas maneiras umas às outras, para formarem uma espécie de todo. Aparentemente fragmentado mas, de algum modo – suponho – completo. (ABREU, 2005, p. 20, grifos em itálico do autor)
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São contos que giram em torno da temática do amor, ou como diria Caio F., de uma “espécie de amor”, dada a carência de afetividade, a solidão e a ausência de amor, causa maior das perambulações dos personagens em constante peregrinação pelas ruas, bares, boates, saunas e becos buscando, mesmo que por um momento fugaz, um laço de afetividade, um abraço, uma carícia, um beijo, um toque, um olhar… uma espécie de amor, que se relaciona com certa frequência à solidão, à melancolia, ao medo e à morte anunciada, em alguns contos, pela AIDS. De acordo com Denise Jodelet (2001, p. 18), nos anos 1970/1980 houve a eclosão de duas concepções em relação à AIDS amplamente difundidas em nossa sociedade: uma moral e social; outra, biológica. Na primeira, a AIDS era representada como uma “doença-punição” àqueles cuja conduta era considerada pela sociedade como degenerada e permissiva, cuja irresponsabilidade sexual advinda da liberdade sexual e pelo rompimento com os padrões dos “bons costumes” receberam como punição a AIDS. Essa concepção baseia-se em uma ordem moral e conservadora que é largamente influenciada por instâncias religiosas, sobretudo pela Igreja Católica, que é contra o uso de preservativos e contra o sexo antes e fora do matrimônio. Nesse sentido, as campanhas governamentais qualificavam a doença como “decadência moral, religiosa, castigo de Deus ou vingança da natureza” (JODELET, 2001, p. 18), tendo como seus portadores os drogados, os hemofílicos, os homossexuais e os receptores de transfusões. Como vetores do mal apontavam o sangue e o esperma. Essa concepção moral e social da AIDS, ainda presente em nosso cotidiano, faz dela “um estigma social que pode provocar ostracismo e rejeição e, da parte daqueles que são assim estigmatizados ou excluídos, submissão ou revolta”. (JODELET, 2001, p. 19) Vítimas sociais marginalizadas pela concepção moral e social em relação à AIDS, os homossexuais foram considerados os principais portadores e transmissores da doença nas décadas de 1970/1980. Na segunda concepção, de cunho biológico, o sangue e o esperma, os dois vetores do mal, são considerados os principais responsáveis pela transmissão da doença. Além disso, as secreções corporais ou os objetos nos quais estão depositados também eram considerados como transmissores da AIDS, de tal modo que até mesmo os contatos corporais, na concepção biológica, deveriam ser excluídos, tendo como resultados diretos a ausência de afetividade, de relacionamentos e a solidão, três elementos que fazem parte do cotidiano dos personagens homossexuais representados por Caio F. quando se refere à AIDS. Enfim, estas duas representações sobre a AIDS, tanto a social e a moral quanto a biológica, contribuíram e ainda hoje influenciam certos discursos e representações sociais, cujas imagens prenhes de significação, produzem, por vezes, imagens negativas e/ou distorcidas acerca da doença, seus efeitos e sintomas, e, principalmente, sobre aqueles que são portadores do vírus HIV. Representações que precisam ser questionadas para que possamos redefinir essas interpretações, suas condições de produção e circulação em nosso meio social. Na narrativa “Linda, uma história horrível”, temos a representação do regresso do protagonista ao seio familiar, do reencontro com a mãe depois de longo período fora de casa, da dificuldade em se relacionar afetivamente com ela e, sobretudo, da carência de afetividade e da própria sobrevivência diante da morte anunciada. O protagonista, contaminado pela peste, como era conhecida e denominada a AIDS nas décadas de 1970 e 1980, particularmente como a “peste gay”, como se o vírus fosse
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tão seletivo que contaminasse somente aqueles que tivessem uma orientação sexual fora dos padrões heteronormativos, regressa à casa materna depois de longo período afastado. Felizmente, com o passar do tempo e com o avanço da epidemia, ainda na década de 1980, descobriu-se, pela morte de várias pessoas contaminadas, inclusive algumas personalidades, que o vírus não faz escolha nem de classe, nem de raça, nem de sexo, pois ele pode contaminar a todos. No referido conto, os dois personagens, a mãe e o protagonista, não são nomeados, apenas a cadela, Linda: velha, cega, muito magra, com manchas rosadas pelo corpo, sem pelo, sarnenta, “esperando a morte”. Uma espécie de projeção da doença do protagonista na cadela. A mãe, ao receber o filho, que chega durante a noite sem avisar, porque ela não tem telefone, contempla o seu rosto por alguns instantes antes de lhe abrir a porta. O primeiro contato entre ambos nos revela a dificuldade encontrada por eles para demonstrarem um pouco de afetividade, de amor: Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido – cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro (ABREU, 2005, p. 21, grifos nossos).
Entre uma conversa e outra, ambos foram para a cozinha tomar um café e conversar um pouco. Durante o pequeno percurso entre a porta da sala e a cozinha, o protagonista observa que a mãe está bem mais velha: “Velha que dá medo. __ Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (cera-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelados de cigarros” (ABREU, 2005, p. 22, grifos do autor em itálico, grifos nossos em sublinhado). As manchas escuras na pele da mãe também são um reflexo das próprias manchas provocadas pela AIDS na pele do protagonista. De modo que os indícios de sua contaminação vão sendo revelados ao leitor progressivamente, indiretamente, nas entrelinhas do texto. Somente ao final da narrativa há uma referência mais explícita, direta. De repente, o protagonista sente um desejo enorme de voltar, de ir embora dali, da casa materna, da cidade provinciana que havia deixado para trás havia longo tempo: Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha. (ABREU, 20005, p. 23, grifos nossos)
Neste trecho, temos uma referência à cidade onde se encontram a mãe e o protagonista: Passo da Guanxuma. Este foi o nome fictício que Caio F. criou para se referir a sua cidade natal: Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, quase fronteira com a Argentina. O que percebemos nesse conto, assim como em outros, em cartas e crônicas de Caio F. é a presença de alguns elementos biográficos que são transmutados para o ficcional,
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sobretudo a partir do momento em que descobre ser portador do vírus da AIDS. Para o escritor, não havia necessidade de uma biografia sobre ele, pois tudo que poderia ser dito sobre sua vida já estava presente em sua produção (contos/crônicas/cartas). Momentos antes, quando estávamos discutindo e analisando as cartas/crônicas escritas por Caio F., quando hospitalizado por causa da AIDS, evidenciamos que o escritor, após sair do hospital, seguiu para a casa dos pais, que haviam deixado Santiago do Boqueirão e ido residirem em Porto Alegre. Nesse conto, temos o protagonista que, contaminado pelo vírus, sozinho, doente, solitário, vê na casa materna, que pode representar acolhimento, segurança, carinho e afetividade, a única possibilidade de recolhimento seguro em um momento tão difícil para ele. Este é um momento de reencontro: com a mãe e com as memórias guardadas a sete chaves. Daí o medo do protagonista e o desejo repentino de partir, de voltar para o anonimato da cidade grande, da metrópole, mas ele não tem mais forças para tal empreitada, pois sabe da fragilidade de seu corpo doente, de sua solidão e sua carência de amor, que pode, talvez, ser suprida pela “carícia torta” da mãe que lhe toca as mãos muito brancas, ocasionalmente, quando lhe solicita um isqueiro para acender o cigarro. A dificuldade em expressar amor e afetividade entre os dois personagens é latente ao longo da narrativa. Ambos são seres solitários, fechados em si mesmos, uma espécie de casulo que os protege do mundo, mas no fundo, por trás dessa casca pouco espessa há o calor humano, um fio de afetividade, de amor, de compaixão, apesar do tom rude, direto e seco da mãe quando se dirige ao filho. A mãe, entre uma conversa e outra, pergunta ao filho pela saúde, com um olhar extremamente indagador. O olhar questionador da mãe, direto, olho no olho, pela primeira vez, provoca certo desconcerto no protagonista, pois tem consciência de que no fundo a mãe sabe o motivo pelo qual está ali. Embora velha demais, como nos diz o protagonista, com sua pele manchada, costas curvadas, magra e ainda fumando, a mãe observa os sintomas da epidemia no corpo aidético do filho, que está magro demais e tossindo muito, fora as manchas que ele também tem pelo corpo. Manchas que se assemelham às da cadela Linda e às de sua mãe. O diálogo é tenso, direto e cortante entre os dois. A tensão advém do nervosismo, da ansiedade, do medo. Medo de afirmar: “Mãe, estou com AIDS”. Medo de revelar àquela que pode lhe oferecer um fio de amor e carinho que está doente, que vai morrer em breve. A mãe sabe da peste, viu na tevê. E o filho esquivasse da resposta à pergunta cortante, saindo pela tangente ao indagar sobre uma velha amiga. No entanto, a mãe, atenta, retoma o fio da conversa e resgata da memória a viagem que fez para visitar o filho e o amigo Beto. Na verdade, pelos indícios do conto, o parceiro do filho. A memória da mãe revela bons momentos que os três passaram juntos. Memórias afetivas que emergem e provocam no protagonista certo desconcerto, pois ele presume a possível pergunta que a mãe irá fazer. Para ela, os dois, juntos, pareciam irmãos, tão bonitos juntos, mesmo jeito, mesma altura. Até o momento em que o olhar dela fisga o do filho para perguntar por Beto. Ao responder que fazia muito tempo que não o via, ela indaga novamente o porquê do distanciamento dos dois. E a resposta dada pelo protagonista irá causar nela um desconforto expressivo: – E por quê?
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– Mãe – ele começou. A voz tremia. – Mãe, é tão difícil – repetiu. E não disse mais nada. Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher as xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e – como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo – disse: – Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro. Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro – cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor. (ABREU, 2005, p. 27, grifos nossos)
A não resposta do protagonista é mais expressiva e significativa do que se ele de fato tivesse dito explicitamente que está contaminado pela AIDS. A palavra entrecortada pelo silêncio, pelo tremor na voz, pela emoção muda, revela à mãe o que já havia pressentido ao observar melhor e mais atentamente o seu condicionamento físico. As entrelinhas e o silêncio do personagem são reveladores tanto de uma condição de um corpo aidético, frágil, debilitado, quanto de um ser humano carente de afetividade, de carinho, e, principalmente, de compreensão e acolhimento. É justamente por isso que o protagonista recolhe-se à casa materna. No instante exato em que a mãe obtém do filho a reposta do porquê do afastamento dele de Beto, ocorre uma transformação instantânea, dado o seu nervosismo, suas atitudes grosseiras e diretas, como, e.g., jogar bruscamente a cadela doente ao chão, feito pano de chão sujo, assim como a louça que é jogada à pia. O ato de a mãe jogar detergente e água corrente na louça suja e também a cadela Linda ao chão revela a imagem de uma tentativa de purificação, de se livrar daquilo que é impuro. Infelizmente, ela não pode livrar o filho da doença, da peste, de modo que a única coisa que lhe resta a fazer é acolhê-lo em sua casa. Em um tom ao mesmo tempo direto e cortante, próprio da matriarca, ela se volta ao filho e simplesmente diz a ele que seu quarto continua do mesmo jeito. Na verdade, a imagem que temos da mãe expõe a dificuldade que ela tem não somente em aceitar a situação dramática e terminal do filho, mas, sobretudo, em expressar seus sentimentos maternos, de acolhimento e proteção. Por isso mesmo, ela, em um dado momento, beija as faces do filho, um gesto materno ao qual ele não está acostumado, pois não faz parte da rotina da matriarca, que ainda deixa transparecer “uma espécie de amor”, de piedade por aquele ser que é carne de sua carne, sangue de seu sangue. Em “Linda, uma história horrível”, ao falar indiretamente de sua doença e de seus sintomas, o protagonista projeta nas “descrições da decadência física da cadela chamada Linda, na velhice da mãe e na deterioração física da casa materna” (OLIVEIRA, 2009, p. 121) a própria imagem de si mesmo, de seu corpo aidético, perceptível principalmente ao final da
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narrativa quando ele se encontra sozinho na sala, depois de a mãe ter ido se deitar, em frente ao espelho, e retira a camisa praticamente molhada, devido aos suores excessivos, para melhor examinar os sintomas da AIDS, principalmente as manchas púrpuras em sua pele: Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpuras, da cor antiga do tapete na escada – agora, que cor? –, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete da escada, iguais às da pele de seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios. – Linda – sussurrou. – Linda, você é tão linda, Linda. (ABREU, 2005, p. 28, grifos nossos)
Se em “Linda, uma história horrível”, temos metáforas que nos remetem à AIDS, em “Anotações sobre um amor urbano” há referências explícitas, sobretudo o que se refere à carência de amor e aos (des)encontros de afetividade na metrópole, pois o amor virou riso de vida. Daí a dificuldade em se relacionar afetivamente com o outro em um contexto assolado pela peste. O referido conto está incluído na coletânea Ovelhas negras, publicada em 1995, que reúne contos produzidos entre as décadas de 1960 e 1990. Na introdução feita pelo escritor, ele afirma que os contos reunidos nesta coletânea são uma “espécie de autobiografia ficcional” (2002b, p. 03). Por sua vez, no conto do conto, espécie de miniprefácio que antecede aos contos, o autor afirma que “entre 1997, quando foi escrito, e 1987, este texto passou por várias versões” (2002, p. 185). Três versões anteriores foram publicadas anteriormente em jornais e revistas. Contudo, para Caio F. esse texto não lhe parece “pronto”, finalizado: “talvez o jeito meio sem jeito destes pedaços mais parecidos com fragmentos de cartas ou diário íntimo afinal seja a sua própria forma informe e inacabada” (2002b, p. 185). O período compreendido entre 1977 e 1987 abarca duas décadas marcadas profundamente pela propagação do vírus da AIDS e pela morte provocada pela doença. Nesse conto percebemos, desde o conto do conto, indícios daquilo que o próprio escritor denominou de uma “espécie de autobiografia ficcional”, embora ele ainda não tivesse descoberto por meio de laudo médico que também estava contaminado pela doença. O leitor deve lembrar que, embora Caio F. tenha confirmado que era soropositivo apenas em 1994, pelo histórico e pelas contas feitas em parceria com seu médico, como o próprio escritor afirma em suas cartas/crônicas, ele já estava contaminado há cerca de dez anos, ou seja, desde a década de 1980. No conto, o narrador/protagonista inicia sua narrativa resgatando de sua memória justamente a dificuldade por ele enfrentada para estabelecer o primeiro contato corporal com o outro. A necessidade do toque, de sentir a pele e o calor do outro na ponta dos dedos explicita o quão difícil foi para os homossexuais, estigmatizados pela doença e ameaçados constantemente pelo vírus da AIDS, (re)atar laços de afetividade, pois há o medo constante da
Detalhe: Grief, túmulo de Pierre Gareau (1816), de François Milhomme (1758-1823)
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morte que ronda, levando o protagonista até mesmo a pedir desculpas por sua vontade de tocar o outro: Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas me sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só esta vontade quase simples de estender o braço para tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nesta janela, já dissemos tudo que poderia ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer. (2002b, p. 186, grifos nossos)
A simples ação de estender o braço para tocar o outro é vista pelo protagonista como um ato heróico, resultado de um momento que mescla tensão, ansiedade e medo de não ser correspondido pelo outro. A tentativa de aproximação entre os dois personagens nos revela uma imagem cujo sentido remete às incertezas do amanhã e de depois de amanhã. Incertezas em relação a um futuro desconhecido devido à propagação da AIDS. Pode ser que amanhã os dois estejam contaminados e condenados à morte, mas eles não têm culpa, afinal o que querem é somente um momento de amor, de afetividade, de calor humano, de sexo, nem que seja somente por uma noite. Este momento do toque, da intimidade entre os dois, por fim se concretiza: Toco. Perto da minha a boca se entreabre lenta, úmida, cigarro, chiclete, conhaque, vermelha, os dentes se chocam, leve ruído, as línguas se misturam. Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo tua saliva, afundo. Escuridão e umidade, calor rijo do teu corpo contra a minha coxa, calor rijo do meu corpo contra a tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos. (2002b, p. 186, grifos nossos)
A referência ao ato sexual está, inicialmente, nas entrelinhas, sugerido no tesão que há entre os dois corpos masculinos que se aproximam, sentindo o calor e a rigidez do corpo a corpo. Para o protagonista, encontrar o parceiro nesta “cidade escura”, “louca”, “doente”, “podre”, contaminada pela peste, representa para ele um fio de esperança, a possibilidade da concretização do desejo sexual e afetivo pelo corpo de outro homem: Ah, no fim deste dias crispados de início de primavera, entre os engarrafamentos de trânsito, as pessoas enlouquecidas e a paranóia à solta na cidade, no fim destes dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa e passa na minha cara marcada, no que resta de cabelos na minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva de teu ombro (ABREU, 2002b, p. 187, grifos nossos). [o] cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos para naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. Abismos marinhos, sargaços. Minhas mãos escorrem pelo teu peito. (ABREU, 2002b, p. 187)
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Em tempos tão árduos, marcados pelo medo e pela contaminação da AIDS, a solidão e a angústia são sentimentos fortes e onipresentes no cotidiano daqueles que se vêem estigmatizados e discriminados somente porque seus desejos afetivos, sexuais e eróticos são por pessoas do mesmo sexo. De tal modo que a fugacidade de um momento de acolhimento, de reciprocidade afetiva e sexual pode marcar profundamente a memória do protagonista, que a resgata, aos fragmentos. Estes ainda nos revelam a imagem de um ser humano “acostumado a apenas consumir pessoas como se consome cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou (ABREU, 2002b, p. 191, grifos nossos). Esta citação nos remete novamente à questão da fugacidade dos relacionamentos na contemporaneidade nos quais o ser humano é reduzido, com certa frequência, a um reles objeto sexual, que é descartado após ser usado. Trata-se de uma imagem que põe em evidência tanto a fragilidade dos laços afetivos na contemporaneidade, quanto as representações de uma experiência urbana balizada por aspectos, em sua maioria, negativos para o protagonista. No entanto, apesar de estar cansado, ele ainda procura por um amor, embora o medo da contaminação faça com que essas aproximações se tornem cada vez mais escassas, porque, conforme afirma o próprio protagonista, “o vírus caminha em nossas veias, companheiro” (ABREU, 2002b, p. 189). E este vírus é letal. A ameaça de morte pela AIDS é constante, daí a presença do medo em ser contaminado. Amor e medo. Amor e morte. Eros e Tânatos. Vida e pulsão de morte, de destruição: medo é culpa, medo é moral – não vê que é isso que eles querem que você sinta? medo, culpa, vergonha – eu aceito, eu me contento com pouco – eu não aceito nada nem me contento com pouco – eu quero muito, eu quero mais, eu quero tudo. Eu quero o risco, não digo. Nem que seja a morte. Cachorro sem dono, contaminação. Sagüi no ombro, sarna. Até quando esses remendos inventados resistirão à peste que se infiltra pelos rombos do nosso encontro? Como se lutássemos – só nós dois, sós os dois, sóis os dois – contra dois mil anos amontoados de mentiras e misérias, assassinatos e proibições. Dois mil anos de lama, meu amigo. Esse lixo atapetando as ruas que suportam nossos passos que nunca tiveram aonde ir. (ABREU, 2002b, 189-190, grifos nossos)
O sentimento de medo, de culpa e de vergonha é resultante daquela representação moral e social da AIDS de que fala Jodelet. Tais representações que vêem a doença como punição àqueles “desviados” dos ditos “bons costumes” e das “boas condutas” a serem seguidas, são condenados/punidos com o seu vírus e, por isso mesmo, deveriam ter medo, culpa e vergonha de suas atitudes, ações e modos de viver. A marca dessa punição é feito sarna no ombro, visível a todos. A comparação do protagonista e daqueles outros seres contaminados pelo vírus a um “cachorro sem dono, contaminação” nos remete a uma imagem da própria perambulação pelas ruas da metrópole, um caminhar errante pela cidade contaminada, doente. Seres caminhantes, sem donos, sem afetividade, sem lar, sem um espaço para se refugiarem. Seres errantes em constante busca pelo outro, em uma incessantemente procura pelas ruas, de tal modo que “[a]s ruas,
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mais do que espaço de encontro furtivo, traduzem a deriva e a instabilidade do desejo, que do estigma passa a ser um lugar-comum da afetividade urbana” (LOPES, 2002, p. 144). Na maioria das vezes, essa caça ao outro se torna vã, pois este não é encontrado em lugar algum. Daí o sentimento ainda maior de abandono, solidão, dor e carência de amor advinda principalmente da ausência daquele que propiciou ao nosso protagonista, somente por uma noite, um momento de prazer. Nesse sentido, “[n]a deriva afetiva e sexual contemporânea, a Aids é não só um elemento de afirmação da condição estrangeira do homossexual mas de redefinição de sua afetividade, de reencontro” com o outro (LOPES, 2002, p. 144). Essa deriva espaço-temporal se conjuga perfeitamente à deriva do desejo, aos (des)encontros de afetividade, à procura incessante pelo outro, às estratégias de sobrevivência em tempos de peste e de morte. Por isso a insistência do protagonista em continuar procurando pelo outro, mesmo que no corpo de outro homem: Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta com esta fome na boca, beber um copo de leite, molhar plantas, jogar fora jornais, tirar o pó de livros, arrumar discos, olhar paredes, ligar-desligar a tevê, ouvir Mozart para não gritar e procurar teu cheiro outra vez no mais escondido do meu corpo, acender velas, saliva tua de ontem guardada na minha boca, trocar lençóis, fazer a cama, procurar a mancha da esperma tua nos lençóis usados, agora está feito e foda-se, nada vale a pena, puxar as cobertas, cobrir a cabeça, tudo vale a pena se a alma, você sabe, mas alma existe mesmo? […] naufragar outra vez em tua boca, reinventar no escuro teu corpo moço de homem apertado contra meu corpo de homem moço também, apalpar as virilhas, o pescoço, sem entender, sem conseguir chorar, abandonado, apavorado, mastigando maldições, dúbios indícios, sinistros augúrios, e amanhã não desisto: te procuro em outro corpo, juro que um dia eu encontro. Não temos culpa, tentei. Tentamos. (ABREU, 2002b, p. 192, grifos nossos)
Apesar dos sentimentos de medo, de culpa, de vergonha e da proximidade da morte, dada a condição de portador do vírus HIV, ainda há uma esperança por parte do protagonista em encontrar novamente aquele com quem teve uma noite de prazer, cujo cheiro e mancha de esperma ainda permanecem em seus lençóis. A última frase é emblemática do mapeamento subjetivo, afetivo e sexual dos personagens e/ou protagonistas homossexuais contaminados pela AIDS, uma vez que nos revelam tanto as suas carências quanto a ausência de um sentimento de culpa por terem tentado ser felizes em suas peregrinações urbanas. São experiências marcantes que deixam marcas profundas tanto no corpo quanto na alma desses personagens cuja experiência urbana é balizada pela dor, pelo sofrimento, pela solidão, pela estigmatização e, principalmente, pela carência afetiva. Já a perspectiva adotada em “Depois de agosto”, conto que também está incluído em Ovelhas negras, revela ao leitor, de forma explícita, a possibilidade de recomeço de uma relação homoafetiva entre dois homens aidéticos. Trata-se de “uma história positiva” (ABREU, 2002b, p. 224, grifos nossos), uma história da possibilidade de, apesar da contaminação pelo vírus HIV e da morte anunciada pela doença, continuar vivendo e fazendo projetos de vida, pois ainda há tempo para a vida, para o amor e a felicidade porque ainda é cedo demais para morrer.
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Segundo Caio F., no conto do conto, essa história “foi escrita em fevereiro de 1995, entre Rio de Janeiro, Fortaleza e Porto Alegre” (2002b, p. 224). O processo de construção e elaboração dessa narrativa ocorre, pois, em um momento no qual o autor já se encontra ciente de sua condição de aidético, aproximadamente na mesma época em que ele segue para Porto Alegre, após sair do hospital Emílio Ribas. Nessa narrativa, desde o conto do conto o autor dá indícios ao leitor das perambulações urbanas do protagonista. Trata-se de uma experiência urbana por três capitais do Brasil: uma no nordeste, Fortaleza; outra no Sul, Porto Alegre; e uma no centro, entre as duas, Rio de Janeiro. O deslocamento espaço-temporal do protagonista se dá principalmente a partir do verão. É esta peregrinação por cidades, avenidas, ruas, bares e praias que irá possibilitar ao protagonista condição para uma possível redefinição da possibilidade de um reencontro de uma afetividade e uma vontade de continuar a viver, apesar de estar contaminado pela AIDS. Ao sair do hospital, após um período de reclusão devido aos fortes sintomas da doença e à baixa imunidade, o protagonista, em uma bela manhã de agosto, ciente de sua condição de aidético e da morte anunciada pela doença sabe que agora é tarde demais para a alegria, tarde demais para o amor, para a saúde, para a própria vida, repetia e repetia para dentro sem dizer nada, tentando não olhar os reflexos do sol cinza nos túmulos do outro lado da avenida Dr. Arnaldo. […]. […]. Para a alegria, repetia, a saúde, a própria vida. Sobretudo para o amor, suspirava. Discreto, pudico, conformado. Nunca-mais o amor era o que mais doía, e de todas as tantas dores, essa a única que jamais confessaria. (ABREU, 2002b, p. 224-225, grifos nossos)
A carência afetiva, a ausência de amor é a dor mais forte, que mais dói e marca profundamente nosso protagonista, principalmente porque ele tem ciência de que é tarde demais, que seu tempo está passando rapidamente e o dia de amanhã e depois de amanhã é simplesmente uma incógnita para ele. Mas era melhor não pensar muito nessas coisas, afinal a primavera se aproximava, com suas flores, cheiros e cores que o inebriam. No entanto, este instante de deleite da primavera é bruscamente interrompido por uma rotina diária de medicamentos para tentar controlar os sintomas da doença: “Nem sempre ria. Pois havia também horários rígidos, drogas pesadas, náuseas, vertigens, palavras fugindo, suspeitas no céu da boca, terror suado estrangulando as noites e olhos baixos no espelho a cada manhã, para não ver Caim estampado na própria cara” (ABREU, 2002b, p. 226). Chegado o verão e restabelecidas as forças durante sua estadia na cidade do sul para onde se mudara, nosso protagonista resolve viajar, aproveitar um pouco mais o tempo que lhe resta. Na praia, pelos indícios do texto, na cidade do Rio de Janeiro, sente-se melhor, mais bonito, com uma aparência agradável propiciando a ele passar por uma pessoa “normal”, sem nenhum indício da doença. De sua cadeira da praia, ele observa os corpos masculinos malhados, bronzeados, expostos ao sol, mas “para sempre inatingíveis jogando futebol na areia” (ABREU, 2002b, p. 227). Mas se ao invés de ser tarde demais, fosse cedo demais. Cedo demais para a morte, pensou ele. Tudo se resumia ao antes e ao depois, à vida e à morte, dois impulsos em pontos completamente opostos, mas que se completam. Enfim, naquele momento, na praia, estava feliz mesmo sozinho, solitário,
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sem ter com quem compartilhar suas alegrias e seus fugazes prazeres até receber um telefone de um amigo de um amigo que lhe disse que ele estava lá, sozinho, recomendando para que cuidasse dele: ?Se precisava de alguma coisa, se estava mesmo bem entre aspas. Tão irritante ser lembrado da própria fragilidade no ventre do janeiro tropical, quase expulso do Paraíso que a duras penas conquistara desde sua temporada particular no Inferno, teve o impulso bruto de ser farpado com o outro. A voz do outro. A invasão do outro. A gentil crueldade do outro, que certamente faria parte do outro Lado. Daquela falange dos Cúmplices Complacentes, vezenquando mais odiosa que os Sórdidos Preconceituosos, compreende? (ABREU, 2002b, p. 228)
Apesar deste sentimento inicial de ser invadido pelo outro, por se preocupar com sua saúde tão frágil, o protagonista resolve ceder ao pedido dele e marcar um encontro para se conhecerem. O que poderia ser um aparente desastre para o protagonista em seu descanso de verão, torna-se um momento de aproximação e de um possível laço de afetividade, de reencontro. Ainda não é tarde demais para o amor, para a vida, para a esperança. É cedo demais para morrer, para se entregar à doença. O impulso de vida e de amor é mais intenso e forte do que o de morte. Essa aproximação inicial do outro causa certo desconforto no protagonista, o que o leva a pensar no porquê de sua atitude mesmo sabendo que ele é portador do vírus: Mas se o outro, cuernos, se o outro, como todos sabia perfeitamente de situação: como se atrevia? por que te atreves, se não podemos ser amigos simplesmente, cantarolou distraído. Piedade, suicídio, sedução, hot voodoo, melodrama. Pois se desde agosto tornar-se o tão impuro que sequer os leprosos de Cartago ousariam tocá-lo, ele, o mais sarnento de todos os cães do beco mais sujo de Nova Délhi. Ay! gemeu sedento e andaluz no deserto rosso da cidade do centro. (ABREU, 2002b, p. 229, grifos do autor em itálico)
Mesmo sabendo da contaminação do protagonista o outro dele se aproxima, sente o calor de seu corpo, a rigidez de seus músculos, os pelos eriçados com o toque meio sem jeito, meio que por acaso, e “de repente meu santo antônio um beijo de língua morna molhado na boca até o céu e quase a garganta alagados pelos joelhos na chuva tropical de Botafogo”. (ABREU, 2002b, p. 229) No outro dia, o protagonista acorda em outra cidade, bem mais ao norte, dados os indícios, a cidade de Fortaleza. Por instantes, ele tem consciência de que ainda não está morto, de que ainda há tempo para se viver, amar, desejar o outro, seu corpo, seu cheiro, seu calor. De súbito, o desejo carnal, sexual por aquele que ousara romper as barreiras do preconceito, do estigma e do medo, ao beijá-lo, torna-se mais forte e intenso. Infelizmente, por não suportar essa ideia de um possível recomeço que poderia não se concretizar e também “porque não suportava mais todas aquelas coisas por dentro e ainda por cima o quase-amor e a confusão e o medo puro, ele voltou à cidade do centro. Marcou passagem de volta para a sua cidade ao sul em uma semana. Continuava verão […]. Fatídica, pois, a volta. Em sete dias”. (ABREU, 2002b, p. 231, grifos nossos)
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Essa volta à cidade do Rio de Janeiro guardava para o protagonista momentos que iriam marcar uma nova etapa em sua vida como soropositivo. Cada um em um dos lados da cidade, ambos tensos, com saudades um do outro, eles ensaiavam ligações que não eram atendidas, e quando eram o silêncio reinava absoluto entre ambos ao reconhecer a voz um do outro. Uma curta estadia marcada profundamente nos primeiros três dias por uma aflição: “afligia muito querer e não ter. Ou não querer e ter. Ou não querer e não ter. Ou querer e ter. Ou qualquer outra enfim dessas combinações entre os quereres e os teres de cada um, afligia tanto”. (ABREU, 2002b, p. 231) Como o desejo do protagonista pelo outro volta com maior intensidade, por fim ele resolve marcar um encontro entre ambos. A adrenalina, a ansiedade, o desejo, a excitação e o medo se mesclam por ocasião do primeiro encontro entre os dois personagens homossexuais. Na casa do outro, o protagonista, sentado na sala amplamente iluminada, falava sem parar sobre variados assuntos por causa de seu nervosismo. E o outro simples e calmamente o ouvia até o momento que convida o protagonista para sentar ao seu lado para lhe dizer, segurando suas mãos, que também é soropositivo, o que o deixa, de certo modo mais calmo, compreendendo finalmente o porquê de sua aproximação. Na cama, seminus, eles falam sobre suas vidas, seus passados, seus sonhos, sobre o antes e o depois da doença. Enfim, eles dialogam por horas sobre assuntos variados, conhecendo um pouco um do outro naquele momento de intimidade, de afetividade, de carinho e amor. Momentos para os quais o protagonista havia pensado ser tarde demais, principalmente para o amor. A possibilidade de continuar a viver e amar estava se concretizando, o que parecia impossível torna-se real. A ausência de afetividade e de amor no cotidiano dos personagens homossexuais, dada sua condição de soropositivos, certamente é o que mais dói e marca profundamente suas vivências e experiências urbanas. É justamente em decorrência dessa condição de serem soropositivos, de sujeitos que lutam diariamente para sobreviver um dia após o outro, para viverem o presente como se fosse o último dia de suas vidas que os dois personagens resolvem não fazer nenhum plano juntos, pois havia muitas possibilidades contidas naquela esperança de uma continuidade. Afinal, são tantas as opções do que poderia vir a ocorrer que é melhor não planejar nada, apenas deixar o impulso de vida e de amor guiá-los pelos caminhos da vida. O único pacto que ambos fazem é o que segue: Quatro noites antes, quatro depois do plenilúnio, cada um em sua cidade, em hora determinada, abrem as janelas de seus quartos de solteiros, apagam as luzes e abraçados em si mesmos, sozinhos no escuro, dançam boleros tão apertados que seus suores se misturam, seus cheiros se confundem, suas febres se somam em quase noventa graus, latejando duro entre as coxas um do outro. (ABREU, 2002b, p. 236)
Detalhe: Middle Age (1894-1903), de Camille
té-
Um pacto que sela a possibilidade de uma afetividade entre dois personagens homossexuais aidéticos. Há, portanto, um fio de esperança no horizonte destes seres estigmatizados, renegados às margens da sociedade. A possibilidade do recomeço de um novo modo de vida, uma nova configuração/redefinição da afetividade, fruto de estragias de sobrevivência em tempos de peste e da morte. Eis
Claudel (1864-1943)
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o que os mapeamentos subjetivos e ficcionais da produção de Caio F. – cartas/crônicas/ contos – revelam ao leitor. Dito isto, gostaríamos se encerrar nossas reflexões com uma citação de Denílson Lopes que sintetiza estes mapeamentos subjetivos e ficcionais na obra de Caio F. sobre AIDS e morte, vida e memória: “A obra de Caio Fernando Abreu representa uma frágil possibilidade de leveza, do sim, em meio a tanta dor e indiferença, de encontros em meio a tantos desencontros, de histórias que digam respeito a um mundo tão pleno de informações e carente de sentidos”. (2002, p. 159)
Referências Bibliográficas ABREU, Caio Fernando. Pequenas epifanias. Porto Alegre: Sulina, 1996. ______. Cartas. Organização de Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002a. ______. Ovelhas negras (de 1962 a 1995). Porto Alegre: L&PM, 2002b. ______. Caio 3D: o essencial da década de 1980. Rio de Janeiro: Agir, 2005. BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a AIDS. Rio de Janeiro: Record, 1997. ______. Os perigosos: autobiografia e AIDS. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. CALLEGARI, Jeanne. Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável. São Paulo: Seoman, 2008. COSTA, Jurandir Freire. A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992. JODELET, Denise. As representações sociais: um domínio em expansão. In: ______ (Org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001, p. 17-44. LOPES, Denílson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. MORICONI, Ítalo. Introdução. In: ABREU, Caio Fernando. Cartas. Organização de Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002, p. 11-22. OLIVEIRA, Antonio Eduardo de. Corpo, memória e AIDS na obra de Caio Fernando Abreu. In: Bagoas. Revista de Estudos gays. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Natal: EDUFRN, 2007, n. 3, 2009, p. 115-126. PERLONGHER, Nestor. Territórios marginais. In: MAGALHÃES, Maria Cristina Rios (Org.). Na sombra da cidade. São Paulo: Editora Escuta, 1995, p. 81-116.
* Flávio Pereira Camargo é Doutor em Literatura pela UnB e professor Adjunto da Universidade Federal do Tocantins. Atualmente, desenvolve e orienta pesquisas relacionadas às questões de gênero e de identidades na narrativa brasileira contemporânea. Organizou, entre outros, Percursos da narrativa brasileira contemporânea (João Pessoa: EDUFPB, 2009); Estudos sobre literatura e linguística (São Carlos: Claraluz, 2009); e Configurações homoeróticas na literatura (São Paulo: Claraluz, 2009). E-mail: <camargolitera@gmail.com>.
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Revisitações homoeróticas e sensibilidades pós-modernas na ficção de
Guilherme de Melo Jorge Vicente Valentim*
(…) um romance pode, claro, favorecer a compreensão da humanidade imaginando seus personagens em situações que conhecemos intimamente, que nos dizem respeito e reconhecemos por experiência própria. [ORHAN PAMUK. A maleta de meu pai.] (…) o romancista nunca faz mais que interpretar, com a ajuda dos processos do seu tempo, um certo número de fatos passados, de lembranças conscientes ou não, pessoais ou não, tecidos do mesmo material que a História. (…) No nosso tempo, o romance histórico, ou o que, por comodidade, se admite designar como tal, só pode ser imerso num tempo reencontrado, tomada de posse de um mundo interior. [MARGUERITE YOURCENECAR. Memórias de Adriano.]
Resumo: A partir do romance A sombra dos dias, publicado em 1981, de Guilherme de Melo, este ensaio tem como objetivo apresentar uma via de leitura, sublinhando o olhar homoerótico, lançado sobre a guerra colonial em Moçambique, bem como sobre a sociedade lourenço-marquina da época, recriando-os agora num direcionamento outro, descortinando os cenários e os comportamentos da época. Sublinha-se, também, uma releitura de um passado bem próximo, cujos reflexos ainda podiam ser sentidos no universo político-cultural português em questão. PALAVRAS-CHAVE: Homoerotismo, Ficção portuguesa contemporânea, Pós-modernidade, Guilherme de Melo Homoerotic analyses and pos-modern sensibility in Guilherme de Melo fiction work Abstract: The aim of this essay is to offer a new angle on the novel A sombra dos dias [The shadow of the days] by Guilherme de Melo, published in 1981, stressing the homoerotic look on Mozambique’s Colonial War and the Lourenço Marques society of the time, recreated here in another direction, revealing the scenarios and the behavior of that society. We propose a rereading of a not too distant past, which still has political and cultural effects on Portuguese society. keywords: Homoerotic, Portuguese contemporary fiction, Guilherme de Melo
Com o trabalho da História, será difícil aos estudiosos do romance português contemporâneo recusarem a efectiva presença de elementos da sensibilidade pós-moderna na nossa ficção; com efeito, esta História, que é lição crítica do presente; que é correcção,, ou mesmo despudorada deturpação, dos 1
Recumbent Nude (1907), de Henri Matisse (1869-1954)
J
á é de costume, quando da proposta de leitura de uma determinada obra, iniciar-se ora pelos caminhos metodológicos norteadores, ora pela contextualização histórico-cultural a que o texto se refere, sublinhando de certo modo aquela lição, deixada nos idos anos de 1960, mas sempre pertinente e atualíssima, de Antônio Cândido, de que a obra literária pode ser analisada “fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” (2008, p. 13). Como o meu objetivo aqui é o de debruçar sobre o romance A sombra dos dias, do escritor português Guilherme de Melo, escrito nos anos de 1978 e 1979 e publicado em 1981, opto pelo segundo procedimento de leitura, para, a partir dele, chegar a uma compreensão dos meandros constituintes da obra em questão. Num breve olhar sobre o panorama da literatura portuguesa contemporânea, sobretudo a do período pós-74, que, segundo Maria Alzira Seixo, se define por um “entrecruzar de caminhos que congrega vias aparentemente heterogêneas” (2001, p. 34),1 não será difícil constatar alguns procedimentos criativos adotados pelos seus ficcionistas mais destacados, dentre os quais a releitura das malhas compositoras de um passado tanto distante quanto mais recente. Por este caminho, trilharam nomes como os de José Saramago, Lídia Jorge, João Melo, João Aguiar, Agustina Bessa-Luis e António Lobo Antunes. Aliás, tal olhar ficcional revisitador da história portuguesa ganhou uma atenção especial por parte da crítica, sobretudo nos fins dos anos de 1980, com o lançamento da obra Poética do Pós-Modernismo, de Linda Hutcheon (1991), onde defende a presença da metaficção historiográfica, como sendo uma das representações enfáticas da pós-modernidade. Segundo ela, “a ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico” (1991, p. 147). Relativizando a visão homogeneizadora de um passado (outrora) incontestável, a metaficção historiográfica procura, “por meio de sua paradoxal combinação entre a auto-reflexividade metaficcional e o tema histórico”, colocar em xeque e “problematizar tanto a natureza do referente como a relação dele com o mundo real, histórico, por meio de sua combinação paradoxal da auto-reflexibilidade metaficcional com o tema histórico.” (Ibidem, p. 38). Não será, portanto, difícil estabelecer uma ligação entre este procedimento de criação ficcional mais atual com uma certa tendência estética pós-moderna em Portugal. Neste sentido, pontua Maria Alzira Seixo que,
Dentre tais aspectos distintos da atual novelística portuguesa, Maria Alzira Seixo destaca “a preocupação social com a desagregação narrativa, o empenho estilístico com a propensão simbólica, o ritmo de duração interior com a linearidade frásica limpidamente expressiva”. (2001, p. 34)
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factos assumidamente históricos; e que, quando é evocação fiel, se detém de preferência na perspectiva dos perdedores e dos vencidos, justamente a daqueles dos quais em geral não reza a História, esta visão da História altera, muito mais que o passado, a própria consciência de ser presente. (2001, p. 40)2
Interessante observar que, por este viés, outras obras, para além daquelas que uma certa crítica elegeu como sintomáticas deste momento português, tematizam pontos caros a esse mesmo elenco canônico e, no entanto, ainda parecem sofrer de uma marginalização inexplicada, já que elas também reiteram a concepção criativa da História, não mais como um “fresco epocal”, mas como a “voz que acompanha, não só para relembrar, como para emendar, ou alterar e mesmo deformar, os possíveis de aparência das coisas”. (SEIXO, 2001, p. 37) Neste sentido, o romance A sombra dos dias, de Guilherme de Melo, nada fica a dever a outros que também relativizam um passado recente português, sobretudo aquele relacionado à presença colonizadora nos antigos territórios do ultramar, constituindo-se, portanto, um dos textos pioneiros a “ficcionar as seqüelas pós-coloniais” (PITTA, 2003, p. 20), e precursores a repensar, questionar e relativizar um determinado discurso histórico sobre a presença portuguesa em Moçambique.3 Ora, se em outro texto4 já me referi a um quase total silenciamento na citação do nome do autor dentro do cenário da ficção portuguesa, não podemos deixar de levantar uma hipótese para tal procedimento: reconhecido como o pioneiro, em Portugal, de uma escrita de autoria homossexual, Guilherme de Melo desponta pela sua temática homoerótica, numa época em que o próprio tema não era, necessariamente, uma novidade. Basta lembrar, nestes termos, o conto “A grã-canária” (1976) e o romance Sinais de fogo (1979), de Jorge de Sena, ou, ainda, obras sintomáticas como Películas (1979) e A inércia da deserção (1981), de Luis Miguel Nava, e À procura do vento num jardim d’agosto (1974-75) e Salsugem (1978-1983), de Al Berto. Mas se a lírica, com a sua carga de subjetividade e metamorfose poética, oferece um espaço fértil para o aparecimento destes e de outros poetas (Joaquim Manuel Magalhães, João Miguel Fernandes Jorge, Isabel de Sá, dentre outros), aliás, todos eles, herdeiros e devedores de um Fernando Pessoa, de um Mário de Sá-Carneiro e de um António Botto, na ficção, observamos um quase escaceamento de autores próximos desta ambientação homoerótica, para não dizer da própria expressão do desejo homossexual. Não vamos entrar aqui em debates quantitativos ou qualitativos sobre tal aspecto, porém, fato é que o nome de Guilherme de Melo desponta exatamente a partir do lançamento do seu romance Raízes do ódio, em 1965, e ganha fôlego e projeção com a publicação de A sombra dos dias, em 1981, obra recomendada pelo júri do Prémio Literário
2 Ainda sobre a questão desta sensibilidade pós-moderna presente na literatura portuguesa contemporânea, consulte-se a obra de Ana Paula Arnault, Post-Modernismo na Ficção Portuguesa Contemporânea. (2002) 3 Nesta mesma trilha, lembramos os romances de António Lobo Antunes e Lídia Jorge, respectivamente, Os cus de Judas (1979) e A costa dos murmúrios (1988), este último publicado em 1988, portanto, sete anos após a publicação do romance de Guilherme de Melo. 4 “Armários devassados: homoerotismo e resistência na ficção de Guilherme de Melo”. Texto apresentado no Congresso Internacional da ABRAPLIP, na UFBA, em setembro de 2009.
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Círculo de Leitores5. Nesta, o personagem principal e o enredo revestem-se de uma forte carga autobiográfica, aspecto, aliás, afirmado por mais de uma vez pelo próprio autor.6 Mas, se o pacto autobiográfico7 sublinha a inevitável abordagem do sujeito homossexual português, que vive em terras estrangeiras e, depois dos eventos políticos em território ultramarino, se depara com a realidade dos retornados, e conseqüentemente com a questão do desejo homoerótico flagrante em toda a trajetória do protagonista, por outro lado, há-de se destacar a revisitação operada não apenas ao tema proposto, mas também à própria história portuguesa coletiva, subjacente e praticamente inseparável da história individual, bem como a aposta em fazer convergir para um mesmo pólo criativo determinadas categorias textuais, tais como a ficção autobiográfica, a narrativa de viagens, o romance de formação e a metaficção historiográfica. Ora, se as fronteiras entre tais investidas construtoras do texto narrativo encontram-se num terreno flexível, movediço e transitoriamente mutável, não nos defrontamos, portanto, com aquilo que David Harvey (2005, p. 46, 52-53) define como a ficção pós-moderna? E não foi a pós-modernidade a responsável pela abertura ao centro de vozes, até então, relegadas à marginalidade?8 Neste sentido, o romance de Guilherme de Melo preenche tais prerrogativas estéticas e merece, sem sombra de dúvida, figurar entre os romances canônicos de igual figuração temática, independentemente da orientação sexual ou da ordem do desejo erótico do seu autor. Com isto, divirjo da idéia de João Carneiro, quando este afirma que o romance de Guilherme de Melo apenas ensaia a feitura de um romance que poderia ser a “grande crônica dos portugueses em África”. (1983, p. 104) Na verdade, gosto de pensar que A sombra dos dias constitui, talvez, uma das primeiras dessas obras ficcionais portuguesas que realizam tal feito.9 5 É interessante observar que, mesmo em solo português, e sem abdicar de sua portugalidade, Guilherme de Melo é tratado não como um ficcionista português. Basta olhar a resenha crítica do referido romance, publicada na Colóquio / Letras 71, de 1983, assinada por João Carneiro, em que o ensaio aparece na coluna “Literatura Moçambicana”. A inserção na referida seção causa mais estranhamento quando, no início de suas considerações, o crítico pontua que “ainda está por ser feito o grande romance ou a grande crónica dos portugueses em África, durante as guerras coloniais. (…) Guilherme de Melo (…) ensaia a feitura dessa obra indispensável… e quase chega lá. Quase”. (CARNEIRO, 1983, p. 104) 6 Em Gayvota: um olhar (por dentro) sobre a homossexualidade (2002), o autor afirma: “Foi no princípio dos anos 80 que publiquei A sombra dos dias. O impacto provocado por esse meu primeiro romance autobiográfico foi tal que, até meados dos anos 90, andei como convidado por tudo quanto era programa radiofônico” (p. 69; grifos meus); “Mais de vinte anos volvidos sobre a publicação do meu autobiográfico romance A sombra dos dias, continuo a ser procurado por muitos desses jovens que não sabem como encaixar a sua homossexualidade na sociedade que os rodeia”. (p. 189; grifos meus) 7 Usamos, aqui, o termo no sentido que o dá Philippe Lejeune: “O pacto autobiográfico é a afirmação, no texto, dessa identidade [de nome, entre autor, narrador e personagem], remetendo em última instância, ao nome do autor, escrito na capa do livro”. (2008, p. 20) E sobre a categoria “romance autobiográfico”, o crítico francês alerta para o fato de que tal gênero “engloba tanto narrativas em primeira pessoa (identidade do narrador e do personagem) quanto narrativas ‘impessoais’ (personagens designados em terceira pessoa); ele se define pelo seu conteúdo”. (Ibidem, p. 25) O romance de Guilherme de Melo vai exatamente ao encontro deste segundo procedimento. 8 Ao questionar as possibilidades de abrangência da concepção do termo “pós-modernismo”, David Harvey interroga: “Terá ele [o pós-modernismo] um potencial revolucionário em virtude de sua oposição a todas as formas de metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e todas as modalidades de razão iluminista) e da sua estreita atenção a ‘outros mundos’ e ‘outras vozes’ que há muito estavam silenciados (mulheres, gays, negros, povos colonizados com sua história própria)?” (2005, p. 47) 9 Digo uma das primeiras, levando em conta que Os cus de Judas, de António Lobo Antunes, é lançado em 1979, ano de término da escrita do romance de Guilherme de Melo. Além destes, podemos ainda
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Nas suas 741 páginas, o romance recupera a trajetória de um jornalista português, Guy – nítida auto-referência do autor –, nascido em terras moçambicanas, quando esta ainda pertencia ao Estado lusitano, no período da ditadura salazarista. Interessante observar que a recuperação do fio da memória autobiográfica é operada por um narrador em terceira pessoa, o que poderia conotar um certo distanciamento objetivador em relação ao material resgatado das ruínas do passado. Poderia. Na verdade, ao utilizar tal foco narrativo, Guilherme de Melo parece investir numa aproximação do leitor ao objeto narrado, já que este não passaria necessariamente por um filtro subjetivo regulador e manipulador. Ainda assim, alguns dados narrativos são sintomáticos para a constatação de um nítido pacto autobiográfico estabelecido no tecido ficcional, tais como: a) a referência ao trabalho do protagonista como jornalista e redator do Notícias, de Lourenço Marques, aliás, mesmo ofício e local de trabalho do autor: Escassos meses volvidos sobre a sua entrada no jornal, Guy teve, imprevistamente, a sua grande oportunidade profissional. Começara a trabalhar em Maio. Em princípios de Setembro, Adalberto apareceu-lhe uma manhã em casa, a buscá-lo com urgência para uma entrevista com o director; (MELO, 1981, p. 162)
b) o contato e a amizade de Guy com Reinaldo Ferreira, “ao tempo, sem dúvida, o maior poeta vivo de Moçambique” (Ibidem, p. 202), aliás, de quem Guilherme de Melo tornou-se um ávido e atento leitor;10 c) o encontro significativo com José Craveirinha, bem como os ecos dos diálogos travados entre ambos: Foi por essa altura, também, que as relações de Guy com o poeta José Craveirinha ganharam um súbito estreitamento, com a sua entrada para o jornal, como redactor. Moçambique conhecia-o mal. Mais velho do que Guy alguns anos, Craveirinha era então um mulato quase negro, magro e esguio. Tinha os olhos de um castanho escuro, ardentes, e uma telúrica sensualidade emanava do seu rosto invulgarmente expressivo. A sensibilidade escorria-lhe à flor da pele, ressumava das suas mãos longas e finas. Guy sentiu-se desde logo impressionado com o seu ar ferozmente introvertido e a reserva que lhe vincava o olhar e lhe amordaçava a boca túmida. Pouco a pouco, uma amizade tacteante começou a forjar-se entre ambos. À medida que foi ganhando confiança em Guy, a couraça de que se revestia começou abrindo brechas. E depressa o verdadeiro Craveirinha se revelaria aos olhos do outro em toda a sua pujança. (Ibidem, p. 245) incluir Autópsia de um mar de ruínas (1984), de João de Melo, Até hoje (memórias de cão) (1988), de Álamo Oliveira, e A costa dos murmúrios (1988), de Lídia Jorge. 10 Na edição de 1998, da Editora Vega, além do belíssimo prefácio de José Régio (“Sobre os Poemas de Reinaldo Ferreira”), encontra-se a apresentação de Guilherme de Melo (“Um poeta português em Moçambique”), onde contextualiza a obra poética de Reinaldo Ferreira no cenário mundial e moçambicano, com especial atenção à trajetória da figura humana e do intelectual que foi.
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d) auto-referências a obras ficcionais de autoria de Guy/Guilherme de Melo, bem como a atuação de um dos principais nomes do cenário intelectual e da crítica portuguesa da segunda metade do século XX, Urbano Tavares Rodrigues, na divulgação daquelas: Guy conservou-se em Portugal durante aquele mês. Deu uma volta larga por Coimbra, Aveiro, Porto, Viana do Castelo. Aprendia a amar o país, em cada recanto descobrindo qualquer coisa de novo para o fascinar. No regresso a Lisboa, e antes de embarcar para Lourenço Marques, Urbano Tavares Rodrigues promoveu-lhe uma conferência na Casa da Imprensa, onde Guy falou de Moçambique, do seu povo, dos seus costumes, do seu movimento literário e artístico. No dia seguinte, todos os jornais se lhe referiram com curiosidade e interesse. Ficou sabendo pelo escritor e amigo, que As Sementes do Ódio estava já prelo e o lançamento, pela Arcádia, se previa para o próximo Natal. (Ibidem, p. 422-423)
e) citação de nomes de parentes, membros mais chegados da família, amigos e pessoas com quem mantinha contato diário e freqüente, remetendo a uma ligação direta entre o personagem Guy e a figura de Guilherme de Melo11: Quando abalara de Lisboa, José Maria já lá deixara noiva. Carmen era uma jovenzinha razoavelmente ingênua, naturalmente romântica, que durante nove longos anos ele namorara. (…) Foi aí que Josefa nasceu, onze meses depois. Um ano e meio mais tarde, nascia-lhes a segunda filha, Ilse. (Ibidem, p. 33-35)
Tais inserções textuais no romance gradualmente vão demarcando uma diluição das fronteiras entre a referencialidade objetiva de uma persona específica, situada num Moçambique pré e pós-independência, e a ficcionalidade subjetiva de um personagem recriado a partir daquele jogo romanesco salutar, de que nos fala Orham Pamuk (2007, p. 44), citado na epígrafe, onde situações íntimas ficcionais são facilmente reconhecidas por experiências próprias vividas pelo autor. Assim, num gesto especular do seu protagonista, Guilherme de Melo parece também investir no “reconstruir um mundo a partir de escombros”, (MELO, 1981, p. 12) onde o pacto autobiográfico, por sua vez, vai ceder espaço para uma narrativa de viagens, cuja ação se consumará a partir de um efeito épico semelhante ao do texto referencial lusitano.12 É também in media res que a trajetória de 11 Alguns nomes de familiares de Guilherme de Melo são flagrantemente percebidos na construção dos personagens que constituem o núcleo familiar do protagonista Guy. Pai: José de Melo, mãe: Maria do Carmo, irmãs: Maria Luisa, a Lisa, e Maria José, a Zezinha, além, é claro, de outros que também passam pelo mesmo processo de metamorfose, como o irmão Rui, que, no romance, aparece sob o nome de António. 12 Teresa Cristina Cerdeira, em ensaio sobre a ficção contemporânea portuguesa e a de José Saramago, confirma, de maneira categórica, a presença do texto épico camoniano como referência no imaginário cultural lusitano: “Em Portugal, não há revisão da cultura, não há invenção da História, não há, enfim, memória que não passe necessariamente pela travessia do texto magistral d’Os Lusíadas, assim concebido como livro fundador do imaginário português”. (2000, p. 225)
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Guy e os fatos históricos da relação Portugal-Moçambique se concretizam ficcionalmente. E viagem não apenas no seu sentido geográfico, acentuando os muitos deslocamentos operados pelo protagonista entre Portugal e Moçambique, além de suas cidades litorâneas e do interior e suas ruas e vielas, incluindo a dos undergrounds moçambicano e português, mas viagem também pela literatura, pelo cinema, pela pintura, pela música, pela história, pela política, enfim, pela cultura, com nomes e títulos que compõem um elenco onde o autor vai ancorar a sua perspectiva e a sua visão de mundo. Assim, Oscar Wilde, Fernando Pessoa, Reinaldo Ferreira, José Craveirinha, Urbano Tavares Rodrigues, Violette Leduc, André Gide, Jean Genet, Marguerite Yourcenar com as suas Memórias de Adriano,13 os neo-realistas portugueses, os grupos moçambicanos de Msaho e Voz de Moçambique, os filmes Chá e Simpatia e A noite dos generais, a cantora Maysa, Richard Strauss, Britten, Carl Orff e Van Gogh são algumas das referências que convivem na escrita romanesca e contribuem para a construção de um cenário por onde transita o protagonista, com um olhar arguto que tudo tenta apreender e captar, neste seu exercício de costura de retalhos e de recuperação de escombros pela ação de uma memória viajante. Mas, ao contrário das malhas épicas d’Os Lusíadas, as de A sombra dos dias já não se voltam para um passado glorioso, feito pelas grandes navegações e descobertas, mas pelo questionamento e pela problematização deste mesmo passado, agora, em tempos pré e pós-revolucionários. Neste percurso, onde o pacto autobiográfico se aglutina aos fios de uma narrativa de viagem, outros ainda parecem convergir para a tessitura textual. Se atentarmos para o fato de que o romance, mais do que recriar a trajetória de um protagonista homossexual, investe na construção de um personagem que, gradativamente, vai aprendendo a lidar com a sua identidade homoerótica, bem como com as situações políticas, sociais, culturais e afetivas, não estaríamos, portanto, diante de uma revisitação daquilo que a crítica designou como romance de formação (Bildungsroman)?14 Diferente, porém, dos modelos iluministas e românticos, a ficção pós-moderna absorve e, ao mesmo tempo, problematiza, no sentido de que o protagonista, para além de um burguês em pleno processo de formação e aprendizagem, é também homossexual e português, vivendo um momento político de instabilidade, levando-o a um estado de trânsito e de mudança radical: de um bem-estar social e confortável em Moçambique a um indesejado retorno a Portugal, marcado pela escassez. A viagem executada ao longo dos espaços percorridos e também ao longo dos tempos revisitados pelo olhar narrante pode ser entendida como uma espécie de aprendizagem e de formação do protagonista.15 Se atentarmos, portanto, para o fato de que é no período temporal dos anos de 1930 a 1970 que grande parte da ação do romance se desenrola e o protagonista vai traçando a sua via de acesso, de trânsito e de identificação com o mundo à sua volta, podemos inferir que 13 Aliás, mais do que uma referência em forma de epígrafe ao romance, o texto de Yourcenar aparece também na própria proposta de construção do romance, afinal, segundo a autora de Memórias de Adriano, o tempo histórico só não pode ser reencontrado com a ajuda de uma “tomada de posse de mundo interior”? (1991, p. 301) 14 Sobre o Bildungsroman, seus conceitos e a história do gênero, consulte-se MAAS (2000), e sobre as apropriações contemporâneas do romance de formação, recomenda-se a leitura do ensaio de Denilson Lopes, “A viagem e uma viagem”. (2002, p. 165-186) 15 Aqui, a relação entre Guy (personagem) e Guilherme de Melo (autor) ganha uma força visível no romance, não apenas pelos aspectos já apontados, mas sobretudo pela ligação existente entre eles, a partir de uma assumida identidade homossexual.
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Guizot or the Bore, de Honoré Daumier (1808-1879)
a formação e o aprendizado de Guy ocorrem em tempos pós-modernos16, ainda que para o contexto africano de língua portuguesa, tal nomenclatura careça de cuidados na sua aplicação17. Na verdade, as próprias incorporações culturais artísticas, cinematográficas, plásticas, musicais, literárias e culturais contribuem para a consolidação de certos “dilemas de uma formação contemporânea”. (LOPES, 2002, p. 170) Daí, percebe-se que o romance de Guilherme de Melo oferece mais de uma porta de entrada pela via genológica, possibilitando múltiplos protocolos de leitura. Neste sentido, A sombra dos dias,, como já afirmamos, bem pode ser lido sob o prisma dos conceitos pós-modernos. Ora, se o autobiográfico convive harmonicamente com a narrativa de viagem e o romance de formação, sublinhando o aspecto individual da história particular do protagonista, não há como descolar estes procedimentos de outro, que faz esta perspectiva aderir a uma visão mais ampla da própria histórica coletiva, tanto a de um Moçambique, dos anos dourados da colonização portuguesa ao tempo da guerra colonial e civil, quanto a de um Portugal, sem infra-estrutura suficiente para dar conta dos seus retornados. Ou seja, do particular ao coletivo, sem necessariamente seccionar as duas instâncias, o romance aponta para uma circunstanciação narrativa que recai na metaficção historiográfica. Ao fundir, portanto, a trajetória individual com o percurso coletivo da nação de nascimento e da nação de pertença, Guilherme de Melo sugere uma aposta na história de um Moçambique e de um Portugal, “dando forma a essa experiência, ou melhor, oferecendo uma gama de escolhas cambiantes”. (HOBSBAWM, 2002, p. 11) Já nos fins dos anos 1970, o autor parece antecipar a lição deixada pelo historiador Eric Hobsbawm, qual seja, a de que “o entrelaçamento da vida de uma pessoa com sua época e a interpretação das duas coisas ajuda[ra]m de maneira mais profunda a dar forma a uma análise histórica”. (Ibidem) Já citada anteriormente, Maria Alzira Seixo enfatiza o tratamento dado pela ficção a determinadas matérias históricas como um recurso fundamental para se perceber a presença de uma “sensibilidade pós-moderna” (2001, p. 40) na ficção portuguesa atual. Neste sentido, a reelaboração, a recriação, a rasura intencional e a reescrita de um certo tempo moçambicano e português, sob a égide da ditadura salazarista e sob os ares da liberdade pós-revolucionária, servem a um duplo propósito. O primeiro, de contestação da própria inserção do escritor num discurso puramente de direita. Há, pelo menos, duas passagens do romance que indicam uma espécie de expurgação necessária, quase em tom de desabafo, de descolamento do protagonista à propaganda salazarista. Como jornalista premiado pelo governo português, é certo que Guy receba do Estado os investimentos para as suas reportagens. No entanto, isto não parece impedir 16 Segundo Bryan McHale, a dominante epistemológica, arcabouço caracterizador da ficção modernista, começa a ceder espaço para uma dominante ontológica, base categorizadora da ficção pós-moderna, já nos finais dos anos 40 e início dos anos 50, período, portanto, que também compreende o da trama do romance de Guilherme de Melo. 17 Não estamos impondo a nomenclatura no cenário africano de língua portuguesa, mas reportamo-nos à ficção de Guilherme de Melo, escritor português que tem uma projeção a partir dos anos de 1970, em Portugal. Ainda assim, o autor aqui é trabalhado a partir de um contexto literário-cultural português, sobretudo, aquele que corresponde ao pós-74. Sobre a possível aplicação da termonologia “pós-modernismo” às literaturas africanas de língua portuguesa, consulte-se o texto de Laura Padilha. (2002)
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o personagem de escrever uma ficção, num cenário político efervescente, “colocando, de forma explosiva, o dedo na ferida. Em As Sementes do Ódio estava a explicação da raiz dessa guerra”. (MELO, 1981, p. 426) O que, de certa forma, corrobora as suas preferências de leitura: Afonso Ribeiro, escritor “perseguido pelo regime”, com uma obra de “feição neo-realista e de que Maria, escada de serviço fora o ponto máximo”; (Ibidem, p. 171) e o moçambicano Luis Bernardo Honwana, cujo livro de contos Nós matamos o cão tinhoso é referenciado pelo narrador como “o primeiro e poderoso grito que se alevantava contra o colonialismo na então incipiente literatura portuguesa de expressão africana”. (Ibidem, p. 388) Outro momento importante que, de certa forma, vai delineando o aprendizado e a formação do protagonista ao longo do desenrolar dos fatos geradores dos conflitos armados em Moçambique, é a prisão de Guy pela PIDE, quando este, advertido pelo censor a não publicar o documento da Reforma Administrativa, porque esta não fora ainda aprovada pelas instâncias maiores de Lisboa, resolve modificar a edição do jornal, ordenando que “enchesse a primeira página com anúncios”. (Ibidem, p. 358) No dia seguinte, o efeito esperado ocorre, posto que “a edição teve o impacto de uma explosão na cidade”. (Ibidem) O próprio narrador revela que tal atitude intencional teve dois destinatários evidentes: Guy, o protagonista, “apercebeu-se de que aquela seria uma forma indirecta de dizer à população que algo de anormal se passara. E sem dúvida que a censura institucionalizada o merecia plenamente”. (Ibidem) Como era de se esperar, diante de tal desobediência, o protagonista é levado pela PIDE e passa longas horas em poder da polícia, que nada dele consegue arrancar de comprometedor. Livre, fica marcado pela experiência aterrorizante de, como cidadão, ser suprimido dos seus direitos. Tanto que, dias depois, ele próprio, numa concessão geradora de um certo arrependimento, publica um artigo, no mínimo incoerente, para quem sofrera nas garras da política salazarista: Uma hora depois estava fechado no gabinete a escrever o editorial. Chamou-lhe “Epitáfio comum: ao serviço da Pátria”. No dia seguinte, o artigo obteve um êxito retumbante. A rádio leu-o na íntegra. Os outros jornais transcreveram-no em parte. (…) Guy não era ingênuo ao ponto de não pensar que tudo aquilo obedecia, naturalmente, a uma campanha perfeitamente orquestrada entre bastidores. À noite, um estafeta do palácio trouxe-lhe ao jornal um cartão pessoal do governador, a felicitá-lo e a gradecer-lhe “o brilhante serviço que prestara à causa nacional”. Era a primeira cedência, e Guy sabia-o. Mas o orgulho que leu nos olhos de Carmen e as lágrimas que molharam o rosto de José Maria quando, ao jantar, lhes mostrou o cartão, ajudaram-no a esquecer aquela alfinetada de vergonha que secretamente lhe aflorava a consciência. (Ibidem, p. 434-435)
Ora, independente das razões que levaram o protagonista a ceder dentro de um contexto político complexo, como era o que vivia em Moçambique dos anos de 1960, ficam nítidos a sensação de mal-estar e o sentimento de vergonha em ter de se expor dentro de um cenário que nauseava o jornalista. Apesar das discordâncias de idéias entre a intelectualidade negra moçambicana e o protagonista Guy, este é convocado como testemunha abonatória de Luis Bernardo Honwana, escritor, de quem fora colega de trabalho no jornal.
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É no reencontro com José Craveirinha, também capturado pela polícia política e julgado em seção posterior a de Honwana, que o leitor começa a ter uma dimensão da posição ideológica assumida pelo personagem: Guy respirou fundo, para disfarçar a emoção que o tomava. – Sabes que sou sempre o mesmo, não sabes? O outro encarou-o com silêncio, por um momento. Depois teve um sorriso doce: – Claro que sei. Se não fosses, não estavas aqui pelo Honwana. Mas o seu rosto ganhou de súbito uma expressão matreira, enquanto acrescentava: – Bom, mas não julgues que por isso te perdoamos as baboseiras que por aí tens escrito, meu cronista barato dos Américos Tomases! Fica sabendo que já tínhamos a árvore escolhida para te dependurar nela… Disse-o a rir, meio galhofeiro, os olhos a envolverem Guy num imenso abraço. E ele riu também. Os dedos de Guy entrelaçaram-se fraternalmente nos dedos negros e esguios do amigo, antes de se afastarem um do outro. (Ibidem, p. 440)
Se ser português e jornalista, portanto, um homem envolvido com a intelectualidade, no cenário moçambicano apresentado no romance, constitui uma posição delicada e, por vezes, indefinida e fronteiriça para Guy, capaz mesmo de gerar atitudes dúbias do personagem e reflexões eivadas de amizade e ressentimento entre os seus contemporâneos, tal oscilação parece-me indicativa do aprendizado e da formação de um indivíduo viajante num cenário histórico cheio de turbulências. É com os erros e com os acertos que o protagonista Guy vai aprendendo a estar em África. Assim, as malhas ficcionais contribuem para autenticar o exercício autobiográfico em diálogo direto com as categorias textuais do romance de formação, da narrativa de viagens e da metaficção historiográfica. Ler os tempos históricos referidos serve, portanto, a este primeiro propósito de, se não desvincular, pelo menos, interrogar a inteira condescendência do protagonista com os ideais políticos da época, bem como para pontuar uma outra questão fulcral. Mais do que ser português, vivendo em Moçambique na época dos conflitos coloniais e retornando a Portugal nos anos de 1970, gosto de pensar que o romance de Guilherme de Melo investe numa reflexão mais ampla: a de ser português e homossexual, inserido neste cenário histórico.18 Daí que a trajetória autobiográfica não pode ser entendida desvinculada do contexto epocal em que ela se dá, posto que toda a formação e aprendizagem deste personagem é operada num processo de trânsito, de viagem, que inclui não apenas os seus deslocamentos de Moçambique a Portugal e vice-versa, de Lourenço Marques a cidades do interior africano e vice-versa, mas também envolvem a percepção da existência de ambientes quase díspares, comuns a um mesmo espaço. 18 Em recente publicação, São José Almeida vai destacar a importância de uma leitura da história dos homossexuais para se compreender a própria história portuguesa. Segundo ele, “A história e as histórias da homossexualidade portuguesa fazem parte da história de Portugal. Essa parte da história está apagada, esquecida, ignorada. (…) É também a história de um país em que a homossexualidade foi escondida, sob um manto de chumbo de hipocrisia.” (2010, p. 21)
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O protagonista, assim, percorre desde as ruas luxuosas da burguesia portuguesa em terras moçambicanas até os quartéis situados no interior do país, marcados pela carência e pelo esquecimento do Estado português, e também a área da Rua Araújo, mais conhecida como “a zona do bas-fond Lourenço-marquino, dos bares, dos cabarets”, para onde iam “contingentes militares”, (Ibidem, p. 283) deslocados para Moçambique, constituindo assim uma parte escondida da vida noturna. Também, em Portugal, o mesmo processo ocorre com as andanças de Guy pelas áreas do Largo do Rato, da Rua da Escola Politécnica e do Príncipe Real, espaço desencadeador do conflito com Emanuel, seu companheiro drogado, com quem aprende a lição da dor física e psicológica, ao mesmo tempo que se desloca para a zona rural, na povoação do Cabeço, onde conhece Ângelo, um rapaz com quem mantém uma sintonia imediata e para quem iria ele também ensinar a possibilidade do sonho. Vale a pena ressaltar que, neste sentido, o romance de Guilherme de Melo, de 1979, já apresenta e antecipa aquilo que David Harvey vai chamar de “pluralismo de mundos que coexistem na ficção pós-moderna”, (2005, p. 52) seguindo o rastro de Bryan McHale.19 Na verdade, ainda que um pouco distante da perspectiva foucaultiana de heterotopia, a ficção de Guilherme de Melo não deixa de reiterar a coexistência de espaços outros, escondidos e evitados por uma visão burguesa e heteronormativa, por aquilo que possuem de rasura, de resistência e de presença pela diferença. Nesta viagem, portanto, entre espaços díspares, porém, absolutamente complementares, o protagonista entra num processo de trânsito, em que cada paragem torna-se um processo de apreensão do mundo, de formação do próprio indivíduo e de aprendizagem na sua rota de orientação sexual. Desta forma, Guy vai navegando pelos espaços urbanos e rurais, tendo sempre como bússola a “procura de alguém, de quem fizesse o primeiro companheiro para a sua vida de homossexual”. (MELO, 1981, p. 283) A partir daí, somam-se experiências que contam com funcionários do jornal, soldados portugueses recém chegados a Moçambique, sem qualquer tipo de auxílio ou conhecimento prévio do local, homens heterossexuais, completamente perdidos e divididos no rumo de suas vidas, outros vindos de regiões pobres e menos favorecidas. Tal elenco, porém, não deve ser visto como uma forma de ligar o homossexualismo do personagem com qualquer tipo de comportamento promíscuo ou vulgar. Em se tratando de uma demanda, o personagem vai buscar o seu Graal, sem saber ao certo onde e com quem irá encontrar. Fato é que o protagonista, acima de tudo, é um “homem bom e digno, de coração aberto a todos, sem cuidar de saber a cor da pele ou das idéias que tivessem” (Ibidem, p. 439), independente de sua orientação sexual. Gosto de pensar, portanto, que a aventura amorosa de Guy coloca em xeque toda uma postura mascarada e opressoramente heteronormativa, que tenta apagar a presença de homens e mulheres que buscam em parceiros do mesmo sexo o companheirismo, a solidariedade, o amor, o desejo e a paixão. Assim, da mesma forma como ocorrera com a estréia do filme Chá e Simpatia, em Lourenço Marques, narrada no romance, metaficcionalmente, 19 Reconhecido autor de Post-Modernist Fiction, onde vai defender a idéia foucaultiana de heterotopia, que, segundo David Harvey, constitui a “coexistência, num ‘espaço impossível’, de um ‘grande número de mundos possíveis, fragmentários’, ou, mais simplesmente, espaços incomensuráveis que são justapostos ou superpostos uns aos outros. As personagens já não contemplam como desvelar ou desmascarar um mistério central, sendo em vez disso forçadas a perguntar ‘Que mundo é este? Que se deve fazer nele? Qual dos meus eus deve fazê-lo?’” (2005, p. 52)
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acreditamos que, com o romance de Guilherme de Melo, o “problema do homossexualismo era posto aos olhos daquela sociedade preconceituosa e conservadoramente burguesa como nos anos cinqüenta a sociedade lourenço-marquina o era”. (Ibidem, p. 187) Claro que, ao contrário do filme de Vincente Minelli, o romance em questão não fica circunscrito à barreira temporal dos anos 50 e, ainda hoje, pode ser lido como aquele modelo tutelar, sublinhado por Urbano Tavares Rodrigues: “A sombra dos dias é uma narrativa apaixonada, certamente com muito de subjectivo e de vivido, mas que extrapola desse plano para o de uma defesa da dignidade humana contra a segregação quer dos negros quer dos sexualmente diferentes”. (2002, p. 94) Talvez, por isso, a jornada do protagonista termine em aberto, da mesma forma que o romance. O olhar para a noite de Lisboa faz com que o protagonista lance uma perspectiva para o futuro, mantendo, agora, o cuidado de estudar “o terreno por onde decida avançar”. (MELO, 1981, p. 740) Deste modo, a cena final do romance deixa entrever que a viagem, o aprendizado e a formação ainda não terminaram, apenas começaram, posto que o viajante ainda não conseguiu encontrar e aportar na sua Ilha dos Amores. Aliás, de acordo com o narrador, é o amor imprescindível para a existência do indivíduo: “Aquele amor sem o qual não valerá nunca a pena caminhar. Sem o qual a vida não terá sentido algum”. (Ibidem, p. 741) Concordo, portanto, com as considerações de São José Almeida nas suas referências ao romance de Guilherme de Melo, posto que A sombra dos dias constitui, realmente, um romance único no cenário português contemporâneo, não apenas por se tratar de “um dos poucos momentos precursores de um caminho que poderá vir a ser uma literatura gay e uma cultura gay em Portugal” (2010, p. 33), mas por ser um texto ficcional “de uma candura e desassombro absolutos. Com momentos de profundo erotismo. É um grito de identidade”. (Ibidem) Longe de qualquer tipo de melodrama ou utopia piegas, o desfecho abre espaço para uma tentativa de compreensão da criação da trajetória de Guy. Para além do pacto autobiográfico, da narrativa de viagens, do romance de formação e da metaficção historiográfica, categorias mais do que adequadas ao romance em questão, A sombra dos dias constitui um romance revelador de perceptíveis sensibilidades pós-modernas, incluindo aquela de devorar todas as formas, a ponto do escritor, de acordo com Marguerite Yourcecar, quase forçosamente “faze-las passar por ele”. (1991, p. 309) Gosto de pensar, porém, que o romance de Guilherme de Melo, vai além dessas prerrogativas estruturais, posto que também possui no seu tecido narrativo profundas reflexões sobre a vida, sobre a dignidade humana, sobre a afirmação do sujeito homessexual na sua diferença e na sua dignidade de ser, enfim, sobre o ser humano que, como o protagonista, “descobre que está ainda vivo e continua a acreditar na vida”. (Ibidem, p. 740)
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* Jorge Vicente Valentim é Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, é Professor Adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa (Sub-área: Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa) da Universidade Federal de São Carlos, onde também coordena o Grupo de Pesquisa de Estudos Literários Portugueses e Africanos (GELPA), e Professor Colaborador, credenciado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNESP/Araraquara. É autor de A quintessência musical da poesia: Rodomel. Rododendro, um poema sinfônico de Albano Martins (Porto: Campo das Letras, 2007). E-mail: <jvvalentim@gmail.com.>.
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Do rasgar da pele e do papel as fronteiras dispersas da poesia de Luís Miguel Nava Luiz Gustavo Oliveira Silva*
Todo o acto poético é uma cosmificação. Cosmificação que se opera a partir do caos a que dá lugar a destruição da língua. Não por acaso o acto poético se chama de criação e a etimologia aproxima a poesia do fazer. Cada vez que se serve do verbo para criar, nesse mesmo acto recriando o próprio verbo, o homem não só confere um sentido ao aleatório como o que dessa maneira cria detém um estatuto ontologicamente superior ao que lhe subjaz: a língua. Daí que nas origens da poesia esteja a necessidade de comunicar com os deuses, deles se instituindo como a mais próxima linguagem. [Luís Miguel Nava. Ensaios Reunidos.]
Resumo: A obra de Luís Miguel Nava constitui-se de maneira singular no cenário da literatura portuguesa contemporânea, por basicamente duas características. A primeira está relacionada à intrínseca relação da obra com a biografia do autor e a segunda vincula-se ao fato de Luís Miguel Nava ser um dos poetas de sua geração a trazer à superfície das produções poéticas a temática homoerótica, revestida de sensibilidade e riqueza metafórica. Destaca-se, neste ensaio, que o conjunto de sua obra se inscreve no final do século XX, paralelamente à erupção de diversas manifestações e lutas a favor da igualdade de gênero e de orientação sexual. PALAVRAS-CHAVE: Poesia Portuguesa Contemporânea, Homoerotismo, Luís Miguel Nava On the tearing of skin & paper: the unclear boundaries of Luís Miguel Nava’s poetry Abstract: Nava’s poetry plays a singular role in contemporary Portuguese literature for two basic reasons. The first has to do with the intrinsic relationship between the work and the life of the author; the second, with the fact that Miguel Nava is one of the poets of his generation to bring, with sensibility and wealth of metaphor, homoerotic themes to the surface of poetical production. It is pointed out in this essay that his writings belong to the end of the twentieth century, when there is an eruption of diverse protests and struggles for gender and sexual orientation equality. keywords: Portuguese Contemporary Poetry, Homoeroticism, Luís Miguel Nava
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uís Miguel de Oliveira Perry Nava nasceu em 1957, na cidade de Viseu. Em 1974, com 17 anos, concluiu o Ensino Secundário e iniciou sua carreira como Perry Nava, publicando em Coimbra a obra O Perdão da Puberdade. Um ano depois, conhece Eugênio de Andrade, com quem manterá uma relação próxima até o final da vida. Em 1979, assinando como Luís Miguel Nava, publica a obra Películas, depois de recolher todos os exemplares de O Perdão da Puberdade, excluindo-a de sua bibliografia ativa. Ao lado de Películas (1979), as obras A Inércia da Deserção (1981), Como Alguém Disse (1982), Rebentação (1984), O Céu Sob as Entranhas (1989) e Vulcão (1994) compõem o conjunto de sua produção poética, que se encerra de maneira abrupta, violenta e precoce em maio de 1995, quando o poeta foi assassinado, em seu apartamento, em Bruxelas. A princípio pode-se pensar que a morte do autor tenha calado muito cedo as vozes dos trovões e as erupções de sua poesia, no entanto, é mais sensato considerar que esse homicídio, […] a despeito de marcar a finitude de uma produção poética, constituise muito mais como fusão da ficcionalidade do sujeito poético com o real do autor; assim verdade poética e verdade biográfica unem-se num Eros homossexual e prorrompem no texto pela voz de um sujeito discursivo pautado na e pela perspectiva homoerótica. (INÁCIO, 2004, p. 11)
Dessa forma, a morte de Luís Miguel Nava pode ser considerada uma das peças, talvez a mais macabra, de sua obra. Esse fato será citado pelo próprio Eugênio de Andrade, em um poema chamado “Ao Luís Miguel Nava, Noutra Estrela”, no qual o eu-lírico dialoga com o poeta assassinado: Dizem que foste tu a escolher a violência da tua morte, num acorde perfeito com os teus versos. Não é verdade: tu sabias que nenhum inferno é pessoal, por isso procuravas um rio onde ardesses para voltares a nascer longe da terra. Apenas isso – o resto é merda. (ANDRADE, 2010)
Nesse trecho, em oposição às especulações que surgiram após a morte do poeta, Eugênio de Andrade defende que não é possível relacionar o assassinato do escritor com os valores e princípios que ele defendia, ou com a representação de um “Eros homossexual” (INÁCIO, 2004, p. 11) em seus poemas. Essa visão fatalista caracterizaria o final trágico do poeta como uma escolha, que Eugênio de Andrade combate, sem, no entanto, deixar de reforçar a ideia de que seu assassinato foi o encontro fatal entre o poeta e sua poesia. No título da última obra de Luís Miguel Nava, Vulcão, pode-se encontrar a síntese de sua proposta poética. Para tanto, considera-se que, na natureza, os vulcões se apresentam como elementos inseridos em um constante processo de ruptura. Das entranhas da terra, os vulcões lançam para o mundo exterior a essência do planeta, em sua forma líquida: a lava. Aproximando as duas dimensões do termo, a expulsão da lava atravessa a fronteira entre o interno e o externo, assim como as palavras magmatizadas do poeta escorrem pela superfície do papel. Essa característica é destacada, em outras palavras, por Antônio Ramos Rosa: “Luís Miguel Nava é um poeta da intensidade de uma matéria que
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… um texto onde o cinema se insinue, a um tempo apanhando-lhe as imagens e os seus múltiplos sentidos. … trata-se dum filme, as personagens abrem brechas no écran. (NAVA, 2002, p. 67)
Esses discursos meta-poéticos se intercalam com as representações dos impulsos sexuais e com a própria questão do homoerotismo na poesia naviana. Em Películas,, obra repleta dessas construções, isso fica demonstrado no poema “Sketch”, cujo texto é totalmente dominado pela libido de um mancebo: “[…] o rapaz põe o poema em perspectiva, […] a tensão no poema é então tanta que as imagens
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The Large Peasant (1898-1902), de Jules Dalou (1838-1902)
é tanto corpo como linguagem. A tensão dessa matéria sempre extrema, uma vez que o gesto da escrita não se dissocia da violência inicial que o gera”. (ROSA, 1991, p. 137) Essa violência destacada por Ramos Rosa se manifesta por meio de metáforas relacionadas com elementos da natureza, como trovoadas, erupções e rebentações, que se posicionam em um embate contra a pele e o papel, os limites do corpo e do poema, respectivamente. Da obra Como alguém disse, pode-se tomar como exemplo dessa característica as últimas linhas do poema “A Pouco e Pouco”: “Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva”. (NAVA, 2002, p. 89) A violência do mar, elemento recorrente na poesia portuguesa, é apresentada, nesse poema, de maneira persistente, pois é aos poucos que as ondas alcançam a essência da rocha. Nesse sentido, de maneira metafórica, Nava rompe com o limite estabelecido pela linguagem escrita, inserindo de forma abrupta seus leitores dentro de seu universo. Em alguns de seus poemas, essa inserção ocorre por meio da mais sensível e mais exposta região do corpo. Essa região é o único lugar que a pele, barreira implacável, não consegue cobrir o tempo todo: os olhos. Quando cada um de seus poemas é lido, é rompida a barreira existente entre poeta e leitor. Nos poemas de Luís Miguel Nava, nesse sentido, as palavras são a representação de um fluido corporal poetizado, que escoa das mãos do poeta e penetra, através dos olhos, no organismo de quem o recebe. A aproximação entre poeta e leitor também se realiza por meio de um discurso metapoético, identificado por Maria Lúcia Lepecky, (apud AMARAL, 2002, p. 20) que se inscreve nos tecidos poéticos de Nava por meio de referências ao próprio processo de composição e à materialidade do poema: “[…] fazer coincidir, uma a uma, as cartas com esta página, de forma a que, quando der por mim, esteja a escrever já sobre o valete de ouros, a fazê-lo tomar parte ativa na ficção”. (NAVA, 2002, p. 66) Dessa forma, o eu-lírico aproxima a representação da carta ao contexto do leitor, referindo-se à página que este tem em mãos. Em alguns momentos, essa página se transformará num écran, no qual desfilarão rapazes, luzes, relâmpagos, entranhas. Essa característica se torna mais evidente na obra A Inércia da Deserção, em que a proposta é a de
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saltam em descargas, […] a intensidade do rapaz é então tal que é ele quem põe em branco a página”. (NAVA, 2002, p. 49) O final desse poema sugere, então, que a própria coloração do suporte do texto é resultado da intensidade do ente ficcional criado nele. No que diz respeito ao processo criativo de seus poemas, Nava trata da invenção poética como um fluxo, muito próximo daquele efeito denominado de impulsão lírica por Mário de Andrade, em seu Prefácio Interessantíssimo: “Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita”. (ANDRADE, 1987, p. 59) O verso de Nava que mais se aproxima dessa proposta é o seguinte: “há um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a seiva impregnam o sentido”. (NAVA apud ROSA, 1991, p. 138) Com a ressalva de que não é o propósito, aqui, de aproximar e ler comparativamente as obras dos dois poetas, ou de levar em consideração a possibilidade ou não deste exercício crítico, tendo em vista o fato de que Mário de Andrade e Luís Miguel Nava viveram em tempos e lugares muito diferentes e distantes, além de seus projetos literários e estéticos serem bastante distintos, pode-se considerar o verso de Nava, que descreve um dos aspectos do seu processo de produção lírica, como uma herança daquela estética modernista, cuja gênese ocorreu na Europa e influenciou tanto as literaturas do Brasil quanto as de Portugal. Entretanto, como se percebe em sua obra, uma das grandes preocupações de Nava é com a elaboração metafórica, o que, de certa forma, é incompatível com o “sair em borbotões” das palavras. A partir disso, é possível inferir, então, por intermédio da diferença estética existente entre os poemas modernistas compostos a partir da transcrição do inconsciente e os poemas de Nava, que este faz um trabalho posterior de elaboração do texto, de forma a carregá-lo com as ricas formas e metáforas poéticas que caracterizam sua obra. Para que seja possível refletir a respeito da estética homoerótica presente na obra de Luís Miguel Nava, convém unir e comparar as duas pontas do século XX, para compreender a diferença entre o início e o final desse período e resgatar, de maneira sucinta, parte da trajetória homossexual na literatura produzida em Portugal nesse período. Sendo assim, podem-se comparar as épocas em que Nava e Mário de Sá-Carneiro viveram. Com o foco voltado para a poesia de Nava, a partir dessa retomada e da comparação com as representações do gênero e da sexualidade neste poeta e em seu antecessor, será possível compreender como essas duas questões se realizam: as diferenças entre o início e o final do século XX com relação à literatura homoerótica e como o momento histórico interferiu na produção lírica dos autores citados. Diz o eu-lírico do poema Feminina, de Mário de Sá-Carneiro: Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro – Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro A falar de modas e a fazer potins – muito entretida. Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar – Eu queria ser mulher para que me fossem bem estes enleios Que num homem, francamente, não se podem desculpar. (SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 148; grifo do autor)
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Esses “enleios” citados nos versos acima tratam do próprio “ser feminino” almejado, da vontade do eu-lírico de poder se dedicar ao ócio, se deleitar com modas e outras futilidades, se maquiar, observar os seios no espelho, ter muitos amantes. No entanto, apesar de seu referencial ser o de uma mulher, que muito provavelmente seria considerada vulgar, de acordo com os ditames sociais e comportamentais da época, essa característica é aceitável, e até mesmo admirada, em um ser feminino incluído numa sociedade com uma configuração marcadamente machista e patriarcal. A partir desse discurso, não é difícil inferir como essa sociedade receberia e trataria um homossexual, considerado, então, um ser desviante, devasso, pecaminoso, doente e, em alguns meios sociais europeus, criminoso. Isso justifica a observação feita pelo eu-lírico de Sá-Carneiro, no segundo verso citado. Este autor, em conjunto com Fernando Pessoa, será um dos pioneiros na desconstrução da imagem do patriarca português, como demonstra Emerson Inácio: Assim se engendra o processo que a virada do século XIX para o XX já começa a revelar: estes outros que às vezes inefavelmente vão ousar rasurar o estatuto da identidade masculina portuguesa; autores e personagens, já questionadores de uma tradição estética, se lançarão numa empreitada que se traduz, inclusive, na criação de um novo homem multifacetado, transsubjetivo, pluridentitário […]. (INÁCIO, 2009, p. 4, grifo do autor)
Caminhando por veredas diferentes das de Sá-Carneiro, deparamo-nos, no final do século XX, com Luís Miguel Nava. O poeta encontra-se em um mundo que já vive as consequências do desenvolvimento tecnológico das comunicações, que já passou por duas guerras mundiais e que presencia a emergência de movimentos gays e feministas. Considerando esses fatos, é possível pensar que um poeta cuja obra possui um viés homoerótico, como é o caso de Luís Miguel Nava, se debruçaria espalhafatosamente sobre essa temática, tomando-a como primordial. No extremo oposto, pode-se pensar que um poeta gay que não tomasse essa característica como principal signo de sua produção, estaria deixando de cumprir com um papel político, sendo indiferente às manifestações e lutas a favor da igualdade de gênero e de orientação sexual. Não se pode deixar de citar StoneWall como o grande ícone dessas manifestações. Antes, na época de Sá-Carneiro, as palavras dos homossexuais eram malditas, no entanto, o momento proporciona, mesmo que de forma reduzida, possibilidades extremamente maiores de expressão. Questiona-se, então, porque Nava não esgotou essas possibilidades dentro de sua obra. Uma leitura atenta de seus poemas pode responder essa questão. Seria um lamentável reducionismo analisar a obra de Nava exclusivamente a partir de sua temática homoerótica. Sem desconsiderar o vasto campo que homoerotismo possibilita explorar, Nava inclui o homoerotismo em seu universo, por meio de um trabalho com o léxico e com as estruturas sintáticas que possibilitaram o estabelecimento de relações “entre áreas semânticas aparentemente afastadas, originando efeitos insólitos”. (AMARAL, 2002, p. 19) Para sintetizar e, ao mesmo tempo, demonstrar como isso ocorre, cita-se, aqui, o poema “Os Dedos”:
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O mar recua, o leite e a língua digladiam-se ao sentirmos a chama largar leite, aliarem-se na boca ao leite os dentes comovidos e ao contacto do mar a romper nela os dentes como a ventania. Persigo assim o mar, no encalço dele os dedos avançam na memória, às vezes acontece eu sentir, mesmo por baixo dos cabelos, a memória aligeirar-se e arderem nas mãos os dedos em desordem. (NAVA, 2002, p. 59)
A ambiguidade proporcionada pela metáfora do leite, relacionada com a da boca, dá margem para as mais diversas interpretações. Em versos como esses, encontramos a maior riqueza da obra de Nava, a sutileza, que tem a polissemia como consequência engrandecedora. Na obra Onde à nudez, essa metáfora reaparece, no poema “Contra os Flashes”: “É terra doutro o corpo dum rapaz, o leite amarrotado nele o incêndio corre contra os flashes, mínimo relâmpago de terra o poço da alegria”. (NAVA, 2002, p. 41) Nesse caso, percebe-se claramente o que Fernando Pinto Amaral (2002) propôs, ao afirmar a presença de relações entre áreas semânticas afastadas, que possibilitam criar novos sentidos. A metáfora do leite amarrotado é extremamente inusitada, no entanto, descreve com precisão as condições em que se encontra o leite dos mamíferos de ambos os sexos quando ainda estão dentro do organismo. Com essas considerações, é de extrema importância ressaltar que a obra de Luís Miguel Nava é extremamente multifacetada e polissêmica. Isso a torna única, porém dificulta uma categorização precisa, que pode pecar por ser demasiadamente reducionista. Para que isso fique evidente, é possível realizar o mesmo movimento proposto pelo poeta e comparar sua produção às próprias metáforas presentes nos textos, incluindo o rapaz que rouba a página, tornando-a alva; as explosões vulcânicas de um magma lírico e, por fim, as rebentações do mar e as explosões de um corpo que não se contém em sua essência física. Daí que as fronteiras entre estas instâncias fiquem salutarmente dispersas, posto que, a partir de tal imprecisão, o que fica mesmo é o rasgar da pele e do papel. Dos picotes que possivelmente restam, Luís Miguel Nava escreve a sua poesia e inscreve o seu nome como um dos poetas únicos e singulares no cenário da literatura portuguesa contemporânea.
Referências ANDRADE, Eugênio de. Ao Luís Miguel Nava, noutra estrela. Disponível em: <http://saldalingua.wordpress.com/2008/09/24/ao-luis-miguel-nava-noutra-estrela/>. Acesso em: 2 jun. 2010. ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo: EDUSP, 1987. AMARAL, Fernando Pinto do. As Cicatrizes da Lava. In: NAVA, Luís Miguel. Poesia Completa: 1979-1994. Lisboa: Dom Quixote, 2002. p. 19-31. CRUZ, Gastão. Dos relâmpagos às trevas na poesia de Luís Miguel Nava. In: NAVA, Luís Miguel. Poesia Completa: 1979-1994. Lisboa: Dom Quixote, 2002. p. 281-290. FERREIRA, José Pedro. Do sangue à tinta: a escrita como exsudação do corpo. Relâmpago, Lisboa, n. 16, ano VIII, p. 39-50, 2005.
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GUIMARÃES, Fernando. Luis Filipe de Castro Mendes e Luís Miguel Nava: Do rigor lírico à linguagem perturbada. In: ______. Poesia portuguesa contemporânea. Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2002. p. 147-152. INÁCIO, Emerson da Cruz. Outros barões assinalados: a emergência do discurso gay na produção literária contemporânea. In: Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais, 8., 2004, Coimbra. Disponível em: <http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/grupodiscussao2/EmersonInacio.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2009. MARTINHO, Fernando. J. B. Luís Miguel Nava e Francis Bacon: “a abrupta transparência dos sentidos”. Relâmpago, Lisboa, n. 16, ano VIII, p. 39-50, 2005. NAVA, Luís Miguel. Ensaios Reunidos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. ______. Poesia Completa 1979-1994. Lisboa: Dom Quixote, 2002. ROSA, António Ramos. A parede azul: Estudos sobre poesia e artes plásticas. Lisboa: Caminho, 1991. SÁ-CARNEIRO, Mário de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
* Luiz Gustavo Oliveira Silva é Licenciando em Letras (Português-Inglês) pela Universidade Federal de São Carlos. Atualmente, desenvolve pesquisa em torno da questão do homoerotismo e de sua recepção crítica no romance O Barão de Lavos, de Abel Botelho, orientado pelo Prof. Dr. Jorge Valentim. E-mail: <luiz_gustavo@live.com>.
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A literatura gay em Copi e Perlongher formas de resistência, dissidência e visibilidade maría laura moneta Carignano*
Resumo: O “mundo das bichas” é o universo que criam, embora com algumas diferenças, tanto Copi quanto Perlongher. A maneira explícita com que este universo vai se apresentar nas respectivas obras permite pensar estes dois autores como os pioneiros em introduzir, dentro da tradição literária argentina, a temática homossexual e, portanto, a questão da identidade sexual, a problemática de gênero, o debate sobre as minorias sexuais e as micro-políticas. Mas não é somente isto o interessante ou o inovador das suas poéticas, mas, fundamentalmente, a visão crítica e propositadamente transgressora com que ambos os autores vão trabalhar, modelar e maquiar a entrada em cena deste bando desopilante de bichas, michês, “locas” e travestis. A intenção deste trabalho é pensar a tensão que se produz na obra de ambos os autores em relação ao conceito de identidade gay e de literatura gay. PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA ARGENTINA, IDENTIDADE GAY, LITERATURA GAY The gay literature in Copi and Perlongher: means of resistance, dissidence and visibility Abstract: The ‘world of queens’ is the universe created by Copi and Prelongher, though with some differences between them. The way this universe is presented by both authors warrants their being considered the pioneers of the treatment of homosexual themes in the Argentinean literature; they deal with sexual identity, gender problems, sexual minorities and micro-politics. But the novelty and interest of their poetics is not limited to this - the critical and intentionally transgressive way in which both authors set about preparing the entrance on stage of this hilarious troupe of poofs, male prostitutes, drag-queens, and transvestites. The aim of this paper is to examine the tension produced, with respect to the idea of gay identity and of gay literature, in both authors’ works. kEywORDS: ARGENTINEAN LITERATURE; IDENTITY, GAY
1. Pensando o problema: perspectivas críticas e metodológicas O mundo das “bichas” é o universo que criam, embora com algumas diferenças, tanto Copi quanto Perlongher. A maneira explícita com que este universo vai se apresentar nas suas obras permite pensar estes dois autores como os pioneiros em Madeleine I (1901), de Henri Matisse (1869-1954)
introduzir, dentro da tradição literária argentina, a temática homossexual e, portanto, a questão da identidade sexual, a problemática de gênero, o debate sobre as minorias sexuais e as micro-políticas. Mas não é somente isto o interessante ou o inovador das suas poéticas, mas, fundamentalmente, a visão crítica e propositadamente transgressora com que ambos vão trabalhar, modelar e maquiar a entrada em cena deste bando desopilante de bichas, michês, “locas” e travestis exuberantes e marginais, glamorosos e decadentes. Partindo da constatação desta obviedade – a tematização da homossexualidade nas suas respectivas obras –, consideramos necessário introduzir a problemática de gênero. Para isto, foi preciso realizar um levantamento das teorias relacionadas à identidade sexual, às minorias e ao gênero. O resultado das leituras permitiu conscientizarmos sobre a enorme complexidade deste campo de estudo, no qual as diferentes teorias entram em choque, lutando por espaços de legitimação que implicam posicionamentos políticos diversos e polêmicos. Comprovamos, em primeiro lugar, que as próprias denominações para falar de identidades sexuais e de abordagens voltadas ao seu estudo (homossexualidade, gay, homoerotismo, homossociabilidade, Gay Studies, Teoria Queer, Camp) pertenciam a marcos teóricos e posicionamentos políticos não só diferentes, mas em luta. Foi necessário, então, escolher entre esta pluralidade metodológica os conceitos operacionais que se adequassem à especificidade dos textos dos autores estudados, porque é precisamente este olhar diverso sobre o que se entende por homossexualidade e sobre uma possível “literatura gay” que, a nosso ver, estava implícita e explicitamente problematizado na obra de Copi e Perlongher. A primeira questão que achamos pertinente sublinhar a partir de nosso objeto de estudo foi a de distinguir a abordagem dos Gay Studies da Teoria Queer. Esta última aportava toda uma série de críticas ao conceito de identidade sexual defendido pelo discurso das minorias – Estudos gays e lésbicos – que servia, metodologicamente falando, para pensar como a temática homossexual era construída na obra dos autores. Daí que tenhamos nos baseado na tensão existente entre estas duas abordagens – sociologia das minorias e teoria queer – para trabalhar a questão de gênero na obra de Copi e de Perlongher. A introdução explícita da temática homossexual dentro das suas obras apresenta certas características que as colocam em tensão com o conceito de “literatura gay”. Como tentaremos explicar, tanto o universo de Copi quanto o de Perlongher efetuam, de uma só vez, um duplo movimento. Se, por um lado, produzem a visualização desta minoria homossexual, por outro, desestabilizam e até resistem às categorias classificatórias, tanto de “identidade gay” quanto de “literatura gay”. Para poder dar conta do movimento extremamente avançado e subversor que suas obras realizam em relação às problemáticas de gênero, é necessário lembrar quais eram os debates, as teorias, as posturas políticas em relação às, até então chamadas, “minorias sexuais” ao longo do mundo, durante as décadas em que ambos escrevem, isto é, finais dos 70, os 80, e começo dos 90. Fundamentalmente nos anos 80 e 90, os debates sobre gênero ganham uma importância indiscutível tanto dentro dos âmbitos acadêmicos, isto é, no campo da teoria, quanto nos movimentos políticos de reivindicação e luta pelos direitos destas minorias, isto é, no campo da práxis social. Percebemos, então, que, em relação às linhas mais importantes do debate sobre minorias sexuais que marcou os anos 80, a voz destes autores levanta a dissidência. Insubmissos por vocação, eles negaram-se às classificações, à integração e, fundamentalmente, à “normalização” da homossexualidade. Negaram-se também a formar parte de um corpus literário que, sob a etiqueta de “literatura gay”, reivindica sua identidade
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artística a partir de uma identidade sexual (do autor, da temática, do público que quer atingir?). Lidos hoje, um dos aspectos que mais surpreende é a capacidade crítica com que, em pleno auge das reivindicações das minorias, estes autores conseguem pensar a questão de gênero – e fazê-la visível – sem cair em slogans simplistas, adiantando-se, em muitas questões, às críticas que vão ser colocadas apenas a partir dos anos 90, com teorias desmistificadoras do conceito de identidade, como os Estudos Queer e os Estudos Culturais, naquilo a que se tem chamado de Teorias Subalternas.1 Outra distinção importante foi a da especificidade literária com respeito às abordagens teóricas pertencentes ao campo da cultura. Esta distinção nos foi sugerida por um excelente artigo de José Carlos Barcellos (2008), intitulado “Literatura e homoerotismo masculino: perspectivas teórico-metodológicas e práticas críticas”, no qual o autor apresenta um leque amplíssimo de possíveis abordagens teóricas sobre o tema e alerta sobre a necessidade de pensar como a literatura – enquanto discurso específico – trabalha com os discursos sobre identidade homossexual, com discursos que pertencem ao campo da cultura. Segundo o autor, e concordamos com ele, é preciso levar em conta a diferença entre literatura e não literatura, critério este que, em oposição a algumas tendências do multiculturalismo, defende a unidade dos textos literários, sua especificidade e seu valor intrínseco. Isto significou pensar num dialogo entre a teoria e a crítica literária e os aportes dos estudos culturais e das teorias de gênero sem perder de vista as diferenças, alcances e objetos de cada uma. Levando em conta tanto a necessidade de perceber a multiplicidade de abordagens metodológicas, teóricas e políticas, e de optar entre elas, em função da coerência epistemológica e da adequação às problemáticas que os textos estudados apresentam – isto é, partir do texto e não da teoria –, quanto à especificidade do discurso literário na hora de estudar as relações entre literatura e homossexualidade, escolhemos realizar o seguinte percurso. Em primeiro lugar, trabalharemos a questão de como é pensada e construída a “identidade homossexual” nas suas obras, abordando diferentes aspetos. Levar-se-á em conta tanto a abordagem teórico-crítica sobre homossexualidade masculina de Perlongher (isto é, seus ensaios), as declarações de Copi sobre o tema e a maneira como a homossexualidade é construída nas personagens deste último. Interessa-nos contextualizar a forma como a homossexualidade é abordada nas respectivas obras, isto é, a maneira construtiva, enquanto discurso, dentro dum contexto histórico-social e cultural específico. Partimos, então, da tensão dos discursos autorais com o “discurso das minorias”, que faz parte do mesmo cenário histórico em que os autores produzem suas obras. Para isto, tomaremos como base, fundamentalmente, os aportes da Teoria Queer. Num segundo momento, e para concluir, problematizaremos a categoria de “literatura gay” e sua possível – ou não – utilização para tentar dar conta das obras literárias de Copi e de Perlongher.
2. Dissidentes por convicção A obra de Copi (1939-1987) começa em 1962, com a peça de teatro Um Angel para La Señora Lisca, e vai até seu último romance, La internacional argentina, publicado após sua 1 Para uma historização do surgimento, das bases teóricas, do desenvolvimento e das diferenças entre estas teorias, consultar MISCOLCI, Richard. A teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização. In: Sociologias. Porto Alegre, ano 11, n 21, jan/jun.2009, p.150-182.
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Ratapoil (1850), de Honoré Daumier (1808-1879)
morte, em 1987. Podemos dizer que sua obra teatral abarca em importância e quantidade de produção as décadas de 1970 e 80, enquanto sua narrativa prolifera nos fins da década de 70 e ao longo da década de 80. Por sua vez, Néstor Perlongher (1949-1992) produz sua obra majoritariamente na década de 80, inaugurando-a com a publicação de Áustria-Hungría, seu primeiro livro de poemas, e, posteriormente, El chorreo de las iluminaciones, sua última obra poética, em 1992. Chamamos a atenção para estas datas porque é interessante contrastar como os posicionamentos de Copi e de Perlongher em relação à homossexualidade e à problemática de gênero em geral diferem, contestam e afastam-se dos discursos das “minorias sexuais” que ocupam o cenário dos anos 80. Embora esses discursos pertençam à cultura estadunidense, e nesse momento Copi encontra-se na França e Perlongher no Brasil, os movimentos minoritários estão se espalhando pelo mundo todo naquela época. Ambos os autores, a partir de posicionamentos diferentes, conhecem os movimentos de reivindicação e liberação dos homossexuais. Mas, cabe aqui distinguir o papel de pensador teórico-crítico e de militante underground, nas palavras de Ferrer e Baigorria (1997, p. 8), de “insubmisso”, em relação a Perlongher, do papel mais cínico, descompromissado e não teórico do Copi. O papel de Perlongher sempre se encontra atravessado por uma espécie de militância do marginal, que começa na sua participação no trozkismo e no porteño Frente de Liberación Homosexual nos anos 70, e vai até sua aproximação de grupos homossexuais brasileiros e da religião do Santo Daime. Contudo, há sempre nele certa distância e irreverência crítica, um espírito anárquico que rechaça a solidificação do pensamento na qual podem cair as lutas das minorias e, ao mesmo tempo, uma aposta pelo marginal em geral, não somente relacionado ao especificamente sexual. No caso de Copi, pelo contrário, a ligação com a teoria e a crítica não somente não existe, mas poderíamos dizer que o autor explicita certa aversão e desvalorização disso, tanto com respeito às questões estéticas quanto à relação de sua obra com algum tipo de reivindicação homossexual. Menos reflexivo e mais impulsivo, mais cínico e irônico, Copi nega-se a explicar tanto sua poética quanto a relação da sua obra com o mundo homossexual. Trata-se de outro tipo de dissidente, que resguardado na distancia irônica do cinismo, se afasta de todo tipo de adesão e participação em movimentos engajados na libertação homossexual. Mais ainda, Copi parece querer sobrevoar os discursos sociais, opor-se ao senso comum da doxa e sua moral, através do puro escândalo, do choque teatral, da ostentação do politicamente incorreto. É importante perceber a diferença com que os dois autores se posicionam diante da questão da “identidade gay”. No entanto, interessa-nos sublinhar que, apesar de se servir de estratégias diferentes, em ambos os autores, se faz explícita a não adesão ao discurso das minorias, negando-se tanto a reivindicar uma “identidade gay” quanto a classificar sua obra como “literatura gay”. O trabalho de distanciamento deste tipo de posicionamentos opera-se, contudo, diferentemente em cada um deles: a partir de uma abordagem teórico-crítica – baseada nas teorias
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des-identificatórias de Deleuze e Gauttari – em Perlongher; e a partir do cinismo, da ironia e do escândalo em Copi. Em ambos, a força da dissidência socava tanto o discurso regulador da heterossexualidade compulsória, quanto as tentativas, embora bem intencionadas, integracionistas do discurso das minorias, próprio da década dos 80 em que eles mesmos produzem suas obras.
3. A crítica ao conceito de “Identidade gay” No artigo Los devenires minoritários, Perlongher faz um mapeamento destes movimentos no Brasil dos anos 80, partindo da leitura de Deleuze e Guattari e, embora reivindique uma ação política deles, já coloca o problema de definir identidades estáveis e fixas, propondo pelo contrário a categoria de “devir”. Tentando compreender qual “es el interes de esas minorías desde el punto de vista de la mutación de la existencia colectiva” (1997, p. 67), Perlongher se afasta do discurso das minorias no que diz respeito ao conceito mesmo de “identidade”. Segundo ele, o que tem de interessante o surgimento das minorias é que elas são: modos alternativos, disidentes, “contraculturales” de subjetivação. Su interes, residiria, entonces, en que abren “puntos de fuga” para la implosión de cierto paradigma normativo de personalidad social. Es que el tan mentado “sistema” no se sustenta solamente por la fuerza de las armas ni por determinantes económicos; exige la producción de cierto modelo de sujeto “normal” que lo soporte. Es preciso, entre tanto, no confundir “devenir” con “identidad”. (PERLONGHER, 1997, p. 68)
O problema que posteriormente, nos anos 90, vai ser o problema da Teoria Queer também, é que o conceito de “identidade” supõe um sujeito estável, único, completo, idêntico a si mesmo e passível de ser definido de uma vez para sempre. Contra esta concepção de identidade e de Sujeito levanta-se a apropriação perlonghiana da teoria de Deleuze, adiantando-se, assim, à mesma crítica que vai levantar a Teoria Queer, nos anos 90. Os riscos de pensar, a partir do conceito sociológico de “identidade”, assinalado por Perlongher e assinalado anos depois, pelas Teorias Subalternas, é que ele pode se emprestar a cumprir um papel logo-egocêntrico, que passa a reforçar “minha identidade” em detrimento da identidade do “outro”, como sendo não só diferente, mas fundamentalmente, inferior. Este debate, que tem atravessado a sociologia e a antropologia, no que diz ao estudo das sociedades “nãoocidentais”, também pode ser pensado para as minorias sexuais. Pensar em “identidades sexuais” reduz a multiplicidade e a diferença a categorias estáveis que tentam ter validade universal e catalogar (portanto, regular) as práticas sexuais dos sujeitos. Segundo o autor: Complementariamente a la anterior se delinea una variante solapada de etnocentrismo, que pasa por reforzar “mi” identidad (de Blanco, colonizador, ligado AL Ministerio de Colonias) y atribuir contrastivamente una identidad AL “otro”. La diferencia, es, si, reconocida, pero AL precio de la traducción de esos modos singulares de subjetivación al código (logo-ego-céntrico) de la identidad. (PERLONGHER, 1997, p. 70)
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O que Perlongher tenta estabelecer é a diferença entre o conceito de identidade, que, nas palavras de Butler (2008), responde à metafísica da substância, e a possibilidade de pensar o Sujeito como descentrado, deslocado, não estável, não idêntico a si mesmo. Trata-se, então, de gerar uma crítica da “própria noção de pessoa psicológica como coisa substantiva” (Butler, 2008, p. 43), propondo, pelo contrário, o que o autor chama de “personalidad marginal” cujo alvo não é se “identificar”, assumindo um papel reconhecível e integrado no social e sim valorizar a capacidade que estas minorias têm de desestabilizar a ordem, fugir dos processos normalizadores, questionar a “naturalidade” da regulação sexual, do dispositivo hetero-patriarcal. Sobre o que alerta Perlongher, quase profeticamente, é sobre a possibilidade de o discurso sobre as minorias, sob a égide do conceito de identidade, se tornar, ao invés de questionador da ordem, no seu reprodutor, gerando um disciplinamento do sujeito, cujo horizonte deixa de se propor como subversor, dando lugar somente à integração a ordem preestabelecida, que passa a não ser questionada. Daí que o trabalho começado pelas minorias corra o risco de ser absorvido pelo sistema: Ante esta fuga todavía incierta, dos grandes alternativas se presentan: una, ella pasa a configurar un punto de pasaje para la mutación global del orden; dos, corre el peligro de cristalizarse en una mera afirmación de identidad. En este último caso, lo que fuera un principio de ruptura del orden va a transformarse en una demanda de conocimiento por y en este mismo orden. (PERLONGHER, 1997, p. 69)
No lugar de “identidade gay”, de “minoria” (palavra contraditória e confusa), Perlongher propõe os conceitos deleuzianos de identidade molar ou devir mulher que questionam o modo dominante de subjetivação. Não se trata de integrar as minorias e sim de questionar a ordem que produz esse binarismo: “normal” X “anormal”, homem X mulher, heterossexualidade X homossexualidade. Para Perlongher, o interessante dos modos dissidentes de subjetivação, entanto impulsos de fuga e ruptura, é que, embora desde as margens, eles podem “minar los mecanismos de normalización institucional” (1997, p. 55). Ao contrário da abordagem sociológica que trabalha com o conceito de identidade e, portanto, com o reconhecimento, descrição e classificação de grupos, a micropolítica minoritária a que adere Perlongher, visa fazer estourar as identidades, fazer explodir os paradigmas identitários estancos, a subjetividade serializada. Queremos sublinhar a agudeza com que Perlongher aborda a questão das minorias e se adianta ao que, efetivamente, vai acontecer: sua absorção pelo discurso normalizador e, fundamentalmente, por um lado, pelo mercado, e, por outro, sua despolitização e neutralização dentro do discurso acadêmico. Para Perlongher, o grande problema do discurso das minorias e se tornarem “guetos” isolados que, no lugar de propiciar a expansão das diferenças, acabam dissociando essas lutas minoritárias em compartimentos artificiais, esquecendo o entrecruzamento, na constituição dos sujeitos, de questões de raça, de gênero e também de classe. Acabam, por fim, produzindo um congelamento do seu poder questionador. La política de minorías no debería pasar hoy, por la afirmación “enghetizante” de la identidad, acompañada por invocaciones rituales a la “solidaridad” con
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otros grupos minoritarios, ni por la reserva de un lugar (generalmente secundario) en el teatro de la representación política, con resultados del tipo: el machismo es un problema de las mujeres, el racismo es un problema de los negros, la homofobia un problema de los homosexuales. (PERLONGHER, 1997, p. 73)
No caso de Copi, a questão de uma suposta identidade “homossexual” também vai ser rejeitada, só que sem o arcabouço teórico com que Perlongher constrói sua postura. Copi ri da idéia de uma “condição homossexual”, da possibilidade de alguém ser definido a partir da orientação sexual. Copi não só rejeita a idéia de ser definido a partir da condição homossexual, como parece ser ciente y alertar sobre os efeitos que este tipo de definições acarreta nos movimentos de reivindicação gay, ou seja, no discurso das minorias. Fica claro a sua distância em relação a este tipo de posicionamento: – ¿La condición de ser homosexual cambia la visión de mundo? – No (se ríe). Ser homosexual no es una condición forzosamente; es evidente que…sobre todo en estos últimos años, en que los movimientos homosexuales han hecho casi explícita una protesta, una reivindicación del homosexual, casi paralela a la de la mujer, es evidente que casi se convierte en una condición. Cuando yo era joven, viví una homosexualidad muy distinta en la Argentina, entre los años cincuenta y cinco y los años sesenta y dos… Sobre esto nunca escribí nada. (TCHERKASKI, 1998, p. 42)
4. Gênero e performance: a encenação barroca. Explodindo as categorias Tanto em Perlongher quanto em Copi, há tanto uma negação explícita a definir a identidade a partir da condição de homossexual quanto uma rejeição a pensar a homossexualidade ontologicamente. A Teoria Queer, nos anos 90, vai levantar o mesmo problema, a partir da crítica do sujeito do feminismo. O que coloca ambos os autores, adiantando-se, assim, as teorias do gênero mais recentes, é o problema em que o discurso das minorias teoriza a questão da identidade, baseando-se num conceito de sujeito estável, essencial, permanente, o que cria ficções fundacionistas. Deste ponto de vista, a construção de qualquer categoria, neste caso de “identidade gay”, como estável e coerente, acaba reproduzindo as relações de gênero da matriz hetero-patriarcal. O problema é achar que a categoria “gay” pode dar conta de uma multiplicidade de práticas sexuais que, por sua, vez estão atravessadas por outras variáveis que não são somente as de gênero. É esse caráter universal e descontexualizado o foco de discussão deste tipo de abordagem. Para Butler (2008), trata-se, pelo contrário, de pensar o gênero, fora da metafísica da substancia, fora da concepção humanista do sujeito moderno, como inconstante e contextual. Assim, para a autora, qualquer identidade sexual é, na verdade, uma construção performativa e nunca uma essência ou atributo ligado à uma “interioridade”,2 pensada como origem e causa. Segundo a autora, o gênero: 2 Baseada na teoria foucaultiana, Butler levanta uma crítica à idéia da subjetividade como interioridade,
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Não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero (…) não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias “expressões” tidas como seus resultados. (BUTLER, 2008, p. 48)
Pensar a identidade sexual, deste ponto de vista, coloca em xeque a questão da definição, classificação, da colocação de etiquetas próprias do discurso sociológico, para diferenciar as diversas “tribos” homossexuais. Foi a percepção desta performatividade – de que o gênero é um conjuntos de expressões que cria um efeito de realidade – que motivou a proposta de Perlongher, no seu estudo sobre a prostituição masculina em São Paulo, da idéia de pensar em identidades móveis, em posições, em vez de em classificações ontologizantes e fixas. Para Perlongher, o interessante da classificação “barroquizante”, da enorme proliferação de denominações que ele levanta, é que elas são, na verdade, mutáveis e instáveis, dando conta mais da assunção teatral (performativa) e, portanto, provisória, de um “papel”, do que de “verdadeiras” identidades: Las nomenclaturas se inscriben en la trama de los cuerpos – que nunca se encuentran totalmente donde ellas los marcan, de ahí que las asociaciones nominativas proliferen y estallen trastornando la transcripción sociológica. Los nombres – señas de pasaje, antes que bautismos ontológicos – en uso cargan un dejo de carnalidad insultante: bicha bofe, michê, travesti, gay boy, tia, garoto, maricona, mona, oko, eré, monoco, oko mati, oko odara y sus sucesivas combinaciones y reformulaciones. (PERLONGHER, 1997, p. 47)
Já em Copi, a questão da mutabilidad”, do não idêntico, das transformações e metamorfoses em relação a qualquer tipo de identidade de gênero é uma marca registrada da sua estética. Tanto em El homosexual y la dificultad de expresarse, como em La guerra de los putos ou Las cuatro gemelas, as personagens passam por tantas transformações que é quase impossível dizer do que se tratam em termos de gênero: são mulheres, homens travestidos, transexuais ou mulheres travestidas de homens? Qualquer tentativa de classificação resulta insuficiente e irrisoriamente provisória, ao que se soma a velocidade (própria da sua estética) com que as transformações acontecem. De ato em ato, ou de capitulo em capitulo, as personagens se metamorfoseiam, negando assim qualquer principio de identidade. A velocidade e a naturalização do caráter artificial, com que estas transformações se sucedem nos seus textos (que não narram o processo pelo qual passa a personagem para se transformar num outro gênero e, pelo contrário, “pulam” de uma a outra negando qualquer explicação), são próprias da estética de Copi e tem a finalidade, a nosso ver, de enfatizar a capacidade de “passar” de um gênero para outro, de mostrar o caráter de disfarce, de assunção teatral, performativa, de qualquer identidade sexual, desnaturalizando assim qualquer noção essencialista e desvinculando, definitivamente, sexo de gênero e gênero de demonstrando que a idéia de um “eu interior”, de uma alma escondida no interior do corpo, é uma das formas discursivas criadas para produzir a internalização da lei, isto é, mais uma ficção reguladora.
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principio único e estável, definido de uma vez para sempre. Na final, o show deve continuar; e quantas mais surpresas e metamorfoses, melhor. Este procedimento faz explodir toda tentativa classificatória, mais ainda, burla as suas propostas, na medida em que sublinha, na construção das personagens, o caráter de efeito teatral no momento de assumir uma identidade, além do caráter efêmero e provisório e, portanto, incoerente em relação a si mesmo. Esta concepção performativa, em relação à “identidade sexual”, desconstrói, tanto em Perlongher quanto em Copi, a abordagem sociológica classificatória e estandardizante (baseada no conceito de identidade como substância), incorporando-se dentro das linhas des-identificatórias que, a partir da teoria deleuziana, chegam até a atual Teoria Queer. Deste ponto de vista, as categorias só servem para ser explodidas, negadas, pela encenação barroca de múltiplas identidades, enfatizando a proliferação, a diferença, a teatralidade e a provisoriedade. Em concordância com a teoria queer, o gênero é pensado mais como efeito de uma performance do que como essência estável. Por trás da maquiagem, do “vestir-se de”, não há nada. Como na representação teatral de um “papel”, quanto mais artificial, melhor. Assim, Copi e Perlongher pensam a problemática de gênero. Tudo conta na festa barroca sempre que gere “a ilusão de”. Ou como diz Copi em relação a ser mulher: “Pero vestirse de mujer…es…porque ser mujer es solamente eso, es vestirse de mujer”. (TCHERKASKI, 1998, p. 50)
5. Não é só uma questão de nomes: “Putos”, “locas” ou “gays”. Gênero e subalternidade Embora insista na proliferação, mutabilidade e teatralidade das classificações – o que dá conta da impossibilidade de pensar o gênero, a suposta “identidade homossexual” como um sujeito estável e permanente –, Perlongher vai fazer uma divisão entre dois tipos de homossexuais, levando em conta outras categorias, como a questão de classe e o grau de adaptabilidade/marginalidade, com respeito ao social. Perlongher diferencia dois tipos de homossexuais: un modelo “arcaico”, popular y jerárquico, cuyo paradigma es la relación marica/macho (en la que “la marica es la suela del zapato del chongo) y otro modelo “moderno” de clase media e igualitario, conforme al cual ya no se trata de un homosexual afeminado que se somete ante un amante varonil (que no se considera homosexual), sino de un sujeto asumido como homosexual que se relaciona de igual a igual con otro sujeto también asumido como homosexual (relación gay/gay). (PERLONGHER, 1997, p. 47)
Aparecem já, nesta diferenciação, questões que atravessam a definição de identidade homossexual ou gay, incluindo no debate outro tipo de variáveis, neste caso, sócio-econômicas, sócio-culturais e, também, aspetos históricos, propondo uma espécie de história, ou “genealogia” da homossexualidade. Longe de se apresentar como uma simples classificação, a distinção coloca o debate sobre gênero em relação, em “inmiscución”, nas suas palavras, com outros tipos de marginalidades: de classe, culturais e raciais. Esta consciência que Perlongher tem sobre como o gênero não pode ser desvinculado das outras variáveis de exclusão e marginalização é também um dos pontos fortes do seu Revista Olhar • ano 12 • no 22 • Jan-Jul 2010 98
pensamento e um dos aspectos que, a nosso ver, por um lado, o distancia do discurso das minorias, e, por outro, coloca-o na vanguarda das discussões do que atualmente se chamam Teorias Subalternas. Embora na citação anterior, perceba-se já uma distinção na qual entram em jogo as variáveis econômicas e culturais, num outro fragmento de seus ensaios a discussão se aprofunda em direção ao problema de classe, de espaços geográficos, de centros e periferias. É interessante, aqui, a distinção entre os michês das “bocas” de São Paulo e os bairros gay, classe media dos EUA, da qual ele conclui: cierta relación de contigüidad entre las marginalidades sexuales (que atentan contra el orden de reproducción sexual) y económicas (que atentan contra el orden de la producción social); lazo entre homosexualidad y marginalidad que se mantiene vigente a despecho de los reclamos de dignidad de los homosexuales más modernizados. (PERLONGHER, 1997, p. 46)
Head of Woman (Fernande) (1906), de Pablo Picasso (1881-1973)
Este entrecruzamento de gênero-classe-raça, que Perlongher chama de contigüidade entre marginalidades, e esta preocupação pela contextualização e a não universalização serão problemas que, apenas nos anos 90, serão abordados pela Teoria Queer e pelos Estudos Culturais, isto é, pelas Teorias Subalternas. Aqui os nomes parecem voltar não para classificar e dar conta das etiquetas sociológicas, mas para enfatizar a marginalidade, as roupas pobres da “bicha” de periferia, o salto sujo de lama do travesti mal produzido, o duplo insulto à ordem do que significa ser “puto y pobre”. São essas populações marginais (as “bichas”, “las locas”) e esse entrecruzamento da marginalidade sexual com a marginalidade econômica os pontos do real interesse de Perlongher, e não o modelo classe media-moderno e bem comportado, representado nos estereótipos da comunidade gay estadunidense. Daí a preferência, o gosto pelas denominações grosseiras das gírias, pela exuberância obscena e explícita da classificação barroca, daí também a desconfiança à assepsia do termo “gay”. Também em Copi, encontramos esta distinção, embora de maneira menos “politicamente correta”. Como sempre, em Copi, o discurso trabalha mais com o escândalo do que com explicação teórica ou a argumentação política. Contudo, não foge de um olhar perspicaz sobre a intima relação entre homossexualidade e classe social, sendo esta última a que produz – muito mais do que a condição de “homossexual” – a marginalidade e a discriminação. Ao ser questionado em relação a como se sente por ser homossexual, ele responde: (…) me divierte, no me angustia para nada. Tendría angustia en algún lugar donde existe la persecución. Viví en la Argentina desde 1955 a 1962; me levantaba la gente que se me daba la gana en la calle. Era um joven porteño que tiene que cojer todos los días, no puedo decir q era nada angustiante; la represión es tan tonta, realmente; como yo pertenecía a un medio burgués, no iba a teñirme de rubio para hacerme de puto, pero cuando iba a ver a mi padre que estaba preso em Villa Devoto,
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veía el cuadro de los putos pobres. Típico de villa miseria, ése que se le nota que es puto; que va a reventar toda la vida, que entra en esa cosa de barra de esquina; pero a partir de esa condición de homosexual se las arreglan bastante bien; no es un problema social, a menos que sean torturados o fusilados como en Irán. (TCHERKASKI, 1998, p. 45)
Se, nas declarações, Copi se apresenta como típico representante da burguesia porteña, e é isto o que, em última instancia, conta mais para se definir do que a sua “condição homossexual”, em seus textos, as personagens que entrecruzam marginalidade social, econômica e sexual proliferam. Trata-se sempre de travestis que se prostituem, de bichas (locas) descontroladas, transexuais, homossexuais sado-masoquitas, mulheres cafajestes, ladrões, prostitutos, criminosos e viciados. A relação com a marginalidade está sempre presente, fundamentalmente, com respeito ao mundo da prostituição (com as variantes do sexo trash) e das drogas. Ainda que Copi não escreva sobre “putos pobres”, de um ponto de vista sociológico, nem, muito menos, de uma literatura interessada em abordar problemáticas sociais nem engajadas, é possível dizer que há uma aposta pela marginalidade em geral, pelo submundo, e certa ridicularização também do “gay classe media”, que sai sempre desajeitado e perdendo nas aventuras sórdidas de que participa. A personagem do gay classe media – muitas vezes representado pela personagem ficcional falsamente autobiográfica que leva o nome do próprio autor, Copi – é sempre apresentada em contraponto com uma serie alucinante de marginais de todos os tipos que se aproveitam dele, colocam-no em situações de perigo, ou, levam-no direta e finalmente para a marginalidade, produzindo assim uma ridicularização deste tipo de personagens. Nos textos de Copi, o gay classe media nunca é construído como uma personagem “correta”, moralmente justificada ou politicamente posicionada, de maneira a produzir a identificação do leitor e, assim, a reivindicação da “causa gay”. Antes, é representado como alguém que entra em contato, que “se perde” em todo tipo de devires undergrounds e marginais, o que produz o efeito humorístico. É o caso tanto da personagem principal de El baile de las Locas quanto de La Guerra de los putos, ambos chamados de Copi, num gesto auto-paródico, que não deve ser confundido com intenção autobiográfica.
6. De lúmpens e monstros: a reivindicação da anormalidade A correlação, ou melhor, o atravessamento da condição socioeconômica, no momento de tratar a questão de gênero, tem a ver com abordagens que levantam, em última instância, uma crítica da normalidade. É na aposta que ambos fazem pelo anormal, no tratamento da “temática homossexual”, pelo monstro e pelo lúmpen, que as suas poéticas podem ser pensadas como realmente transgressoras, e não simplesmente por tratar temas ou apresentar personagens homossexuais. A maneira como se constrói a representação da homossexualidade nas suas obras é fundamental para avaliar suas poéticas, na dimensão da contra-corrente, e as suas críticas, diferenças fulcrais das atuais tendências de estancos e classificações literárias do tipo: literatura gay, literatura feminina ou literatura de negros. As perspectivas apontam na mesma linha da Teoria Queer, para a representação de “sujeitos abjetos”, qual seja, o lumpesinado em Perlongher e o monstro em Copi. Representar
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a homossexualidade pela sua aresta abjeta e marginal é muito diferente das representações do “gay” e sua cultura. Não só é diferente o tipo de homossexualidade que se escolhe representar, como também a finalidade que isso alcança. Enquanto a literatura “gay” tem se tornado um objeto de mercado, com um público específico e diferenciado, a obra de Copi e Perlongher ultrapassa o interesse da minoria, na medida, justamente, em que a representação da homossexualidade está atravessada pela questão da marginalidade. Neste sentido, achamos que o trabalho com a temática homossexual nos sujeitos abjetos – tanto em Copi quanto em Perlongher –, mais do que procurar um público de “entendidos” que se identifiquem com a temática e a as personagens a partir da questão de gênero (sendo este um dos objetivos da literatura gay), provoca outro efeito: colabora na desconstrução e desnaturalização das concepções sobre gênero, na medida em que as representações destes sujeitos abjetos evidenciam, pelo caráter incoerente e deslocado da sua identidade de gênero e pela exceção da norma, o caráter ficcional da lei tomada como natural. Este é o efeito que, a nosso ver, gera o trabalho com a temática homossexual nas suas obras, e não uma reivindicação da minoria. Daí, a escolha pelo marginal e anormal, ao abordar o tema, e a recusa às representações “bem comportadas” que teriam por alvo, desde a intenção pedagógica (ensinar o que é um gay) ao engajamento político (certa literatura de “tese” sobre a problemática gay), e que podem se resumir numa representação estetizante e psicologizante do homossexual, cujo horizonte é a identificação do leitor com a personagem, a fim de produzir uma reflexão em relação ao preconceito, à tolerância e à inclusão social. Nada mais longe deste tipo de representações que os lúmpens e monstros, verdadeiros “anormais”, que fazem parte do mundo de Copi e de Perlongher. A homossexualidade que interessa Perlongher é aquela que se encontra nas margens, e que pode ser definida como mais uma forma de lumpesinado. Em Copi, a homossexualidade está associada ao monstro, a pura artificialidade do gênero, a sua antinaturalidade. O interessante é que, pensada sob este olhar, a temática homossexual vai ser resgatada no seu caráter abjeto e de contra-corrente, isto é, valorizada pela sua marginalidade e inadaptabilidade. Oposta a certas tendências das posturas integracionistas, a visão de Copi e Perlongher, em relação à “identidade gay”, postula o “diferente” como um valor, afirma seu caráter abjeto, de não adaptado, de inclassificável, de “anormal”. Fazer o monstro visível, “tirá-lo do armário”, como diria Eve Sedgwick, sem a maquiagem da normalidade e sem querer pagar o custo da redução ao idêntico, é uma postura que se encontra no pólo oposto das políticas integracionistas, cujo desenvolvimento contemporâneo acabou assumindo, lamentavelmente, a serialização dos padrões estabelecidos pelo mercado. Contra essa tendência à criação de subjetividades serializadas, constroem-se as representações das personagens homossexuais na obra de Copi e Perlongher, cuja lei não é outra se não a lei do desejo.
7. Literatura Gay? Formas de resistência afirmativa na literatura pós-moderna A literatura explora criticamente as diferentes textualizações culturais que, em si, já são interpretações da realidade e o faz precisamente através de aquilo que a constitui como literatura, a saber, o intenso trabalho formal
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de desfamiliarização da linguagem (…) A obra literária é necessariamente uma interpretação crítica das textualizações da cultura. (José Carlos Barcellos. Literatura e homoerotismo masculino)
Na citação de José Carlos Barcellos, encontra-se o eixo da discussão e uma convergência com o nosso próprio olhar sobre o tema. Foi necessário, para compreender as problemáticas de gênero envolvidas nas obras dos autores estudados, fazer um percurso por teorias como a queer e a dos estudos culturais, mas isto não significa esquecer a especificidade do discurso literário e a necessidade de trabalhar com categorias da crítica literária o que supõe aderir a uma distinção entre literatura e produtos culturais. Como (e com) Barcellos, defendemos a idéia de que a literatura “é em si mesma uma prática crítica aos padrões ideológicos e aos vetores axiológicos de uma dada cultura, no outro, temos textos que simplesmente (re)produzem essas mesmas ideologias e axiologias” (2008, p. 45). Separar a literatura das textualizações culturais em torno da homossexualidade significa assumir que não se trata de um conceito único, estável e transhistórico, mas, pelo contrario, de um construto discursivo que sofreu alterações ao longo da história. Daí que achamos que o importante, ao abordar os textos de Copi e Perlongher, seja não perder de vista que suas obras evidenciam, a partir de outros discursos sobre a homossexualidade, pertencer ao campo da cultura, do social e do político. Como esse material vai ser elaborado na obra literária de cada um deles é o que nos permite pensar a relação entre literatura e homossexualidade, longe de concepções miméticas ingênuas, que tanto fazem da literatura um reflexo da realidade, quanto do conceito de homossexualidade como uma essência a-histórica. Pelo contrário, consideramos que é o próprio texto literário quem cria uma definição de homossexualidade, e será preciso então ver qual é a que está em jogo nas respectivas obras. Baseando-nos nesta abordagem sobre a relação entre literatura e homossexualidade, procuramos ver como Copi e Perlogher constroem a homossexualidade nas suas obras. Já conseguimos sublinhar alguns aspectos neste sentido: primeiro, a crítica a uma concepção essencialista do que é ser homossexual, a percepção de que a homossexualidade está atravessada também pela questão de classe, a aposta pela anormalidade (associada ao monstro e ao lúmpen), o distanciamento em relação ao discurso identitário das minorias e a distinção, que não é só terminológica, entre homossexual e gay. Em relação a esta última cabe fazer algumas considerações: a identidade Gay e a cultura a ela associada só podem ser pensadas a partir dos finais dos anos 60, começos dos 703 e significou uma serie de transformações na maneira em que era representada e vivida a homossexualidade. Segundo Barcellos, o deslizamento da idéia de “condição” homossexual para a de “estilo de vida gay”, (encontra-se) no cerne da problemática identitária. Passa-se, assim, de uma postura de auto-defesa a uma de auto-afirmação, do questionamento da legitimidade da própria existência à afirmação inequívoca da mesma ou à superação decidida de semelhante problemática como não pertinente ou até absurda. (BARCELLOS, 2008, p. 38)
3 O marco destas transformações foram os acontecimentos de Stonewall, em 1969.
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Duas questões se delineiam a partir desta distinção: imersos nesse contexto (década de 70 e 80), a obra de ambos dá conta desta transformação e se apresenta como autoafirmativa, daí que tenhamos sublinhado que são eles os pioneiros na introdução da temática gay explicitamente, pela primeira vez, na literatura argentina. Mas, ao mesmo tempo, essa auto-afirmação em relação à homossexualidade se distancia, entra em conflito e tensão, com o modelo propiciado pelos movimentos identitários gay dos EUA e com a cultura e a literatura gay, questionando vários de seus pressupostos. Daí, podermos abordar os autores como dissidentes em relação à cultura gay. Estritamente falando, só se pode ponderar sobre uma literatura gay, na medida em que emergiu uma identidade gay. Isto é, embora exista ao longo da historia da tradição literária ocidental, textos que tenham tematizado a homossexualidade, esses textos não podem ser pensados como literatura Gay. Esta denominação é um dos resultados da emergência de toda uma cultura específica associada à emergência da identidade Gay. Por outro lado, é preciso ter em mente que, como já dissemos, a literatura, enquanto discurso específico, vai trabalhar com essas textualizações de maneira distanciada e crítica. Ou seja, será preciso pensar como os textos literários de Copi e de Perlongher trabalham com as textualizações da emergente cultura gay. No referido texto de Barcellos, o autor faz um longo levantamento de autores que tem se esforçado em distinguir uma “literatura homossexual” (que tematiza a homossexualidade) de uma “literatura gay” (surgida como conseqüência da emergência da cultura gay pós-Stonwell), sendo que, para alguns críticos, esta última é, mais do que uma manifestação artística, um “produto cultural” por se tratar de uma literatura de gueto que responde à “lógica de segmentação do mercado”. Contrastando distintos autores que abordaram a questão, o crítico conclui que vários são os aspetos que devem ser levados em conta na hora de analisar textos que trabalhem com homossexualidade; mas que é neles, em última instancia, onde devemos procurar como estes aspetos se colocam e relacionam, e não partir de classificações pré-estabelecidas que podem não dar conta de como o texto se posiciona e se constrói diante desta problemática: A distinção entre literatura homossexual e literatura gay, portanto, não se reduz simplisticamente a uma oposição entre literatura erudita e literatura de massa, ou entre literatura canônica ou não-canônica, nem tampouco à tematização explícita ou explícita do homoerotismo ainda que todas essas questões sejam pertinentes para a análise de obras literárias específicas. Com Alberto Mira, entendemos que essa distinção se baseia em características intrínsecas às obras e às experiências que nelas se configuram. Na verdade, estamos diante de dois estilos diferentes, se empregarmos esse termo na rica acepção que lhe dá Luigi Pareyson: “uma espiritualidade que se faz modo de enformar”. (BARCELLOS, 2008, p. 59)
O momento em que Copi e Perlongher escrevem é o momento da emergência da identidade e da cultura gay. Se, por um lado, as suas obras se apresentam como auto-afirmativa em relação à homossexualidade, produzindo o efeito de visualização, por outro, levanta uma séria critica a essa emergente identidade e cultura gay, fundamentalmente, a crítica sobre a idéia de Gueto. Acreditamos que este é o aspecto que separa a literatura de ambos do conceito de “literatura gay”, na medida em que há uma recusa a pensar a
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homossexualidade de maneira ontológica, como a pensa o discurso das minorias, através do conceito de Identidade Gay. Disto decorre, portanto, a impossibilidade de definir seus textos sob o signo da chamada literatura gay, sendo que, inclusive, explicitamente eles negam tal catalogação. A rejeição à essa etiqueta demonstra o posicionamento estético – que supõe também uma dimensão política – de ambos os autores. No caso de Perlongher, isto está relacionado com a consciência que o autor tem da relação entre a cultura gay e a absorção pelo mercado, problema que ele vincula à morte e banalização da homossexualidade. Em Copi, mais do que uma consciência em relação a esta mercantilização da cultura gay, achamos que a dissidência se baseia na recusa total de pensar a homossexualidade ontologicamente, o que provoca a impossibilidade de definir a sua literatura como gay, sendo que o elemento negado neste tipo de posição é o conceito mesmo de identidade. Quando questionado acerca do mundo homossexual de sua obra, Copi respondeu: Pero no es un mundo homosexual, vos habrás leído, conocerás de mí; son las cosas que tienen más o menos sexualidad, pero si vos lees La vida es un tango, es la historia de un heterosexual mas macho que no se puede hablar arriba de la tierra. Yo no me ocupo sólo de los homosexual, y una novela de antes, que escribí, no es más que de animales; no es de homosexuales ni de heterosexuales; para mí son como personajes de Arlequin (…) No existe un mundo homosexual, nadie tiene un mundo homosexual. (TCHERKASKI, 1998, p. 52)
Por outro lado, assim como acreditamos que a literatura de ambos se constrói de maneira dissidente em relação com a emergência de uma cultura gay e, portanto, não poderíamos falar de literatura gay – o que, a nosso ver, aporta uma aresta crítica nas suas obras –, por outro lado, é necessário não se esquecer do efeito que as obras produziram no contexto em que foram produzidas. Para Silvano Santiago (1989), e fazemos nossa a sua observação, a emergência de temáticas “micro”, neste caso, da problemática de gênero associada à homossexualidade, é um dos traços da literatura pós-moderna, que a distingue das preocupações com causas fortes da literatura moderna em geral, e, em particular, da literatura engajada da década de 60 e 70. Daí que frisemos ser de suma importância levar em conta esta tensão como sendo um dos aspetos que conforma a literatura de ambos e que está implicada no contexto de produção dos textos: o efeito de visibilização da temática homossexual, mas na contramão das tendências integracionistas e mercantilizadas da cultura gay. Está, neste aspecto, que conjura modernidade e pós-modernidade, a força crítica de suas obras que informam sua condição resistente, de resistência afirmativa, própria das contradições neobarrocas e que os afastam dos efeitos acríticos que Jameson (2007) assinalaria para a literatura pós-moderna de reprodução da lógica do capitalismo tardio.
Referências Bibliográficas BARCELLOS, José Carlos. Literatura e homoerotismo masculino: perspectivas teórico-metodológicas e críticas. In: Estudos Literários reunidos. Organização de Flávio Garcia. Rio de
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* María Laura Moneta Carignano é Doutoranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação da UNESP/Araraquara, sob a orientação da Profa. Dra. Sylvia Telarolli, onde também defendeu sua dissertação de Mestrado e atuou como Professora Substituta de Literaturas de Língua Espanhola. Como bolsista CAPES, vem se dedicando aos estudos relacionados ao homoerotismo e às questões de gênero na literatura hispano-americana contemporânea. E-mail: <lauramonet@hotmail.com>.
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Antropofagia crítica para uma teoria queer em português Mário César Lugarinho*
Resumo: Este ensaio tem como objetivo apresentar uma reflexão acerca da formação dos estudos de gênero e da teoria queer, desde a sua formação na tradição crítica norte-americana e sua inserção na universidade brasileira, como recurso para a crítica e os estudos literários. PALAVRAS-CHAVE: Estudos de gênero, Estudos gays e lésbicos, Teoria queer Anthropophagous critics: towards a queer theory in Portuguese Abstract: This essay undertakes to consider the development of gender studies and queer theory since its beginning in the North-American critical tradition and its introduction in Brazilian universities, as a resource for criticism and literary studies. keywords: Gender Studies, Gay & Lesbian studies, Queer
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esde o fim da década de 1970, a(s) teoria(s) formuladas no campo das ciências humanas não se conformam mais ao seu espaço de origem, assim, teoria consiste, como assinala Terry Eagleton (2005, p.14), num amplo campo que liga a Lingüística à Filosofia, à História e à Psicanálise, à Literatura com os laços da Semiótica, da análise de discurso e do materialismo dialético. Uma das mais importantes contribuições para esse movimento foi a disseminação do pensamento de Jacques Derrida na universidade norte-americana, através da tradução, em 1976, da Gramatologie, por Gayatry Spivak. Em seu “Translator’s preface” Spivak abriu caminho para a disseminação de um conhecimento teórico capaz de encontrar uma ressonância social e política não pensada até então. A socióloga indiana compreendera que, ao se ampliar o contexto ao ilimitado, qualquer ponto de observação passaria a ser considerado por uma atividade crítica, relativizando os sentidos previamente dados ao objeto – era posto de lado, enfim, o tradicional papel de mediador do crítico que passava a evidenciar o lugar de onde falava. A crítica seria pensada a partir do lugar ocupado pelo crítico frente a seus interlocutores imediatos – e pondo em xeque quaisquer discursos autoritários. Em seu artigo “Explanation and culture: Marginalia” (1979), Gayatri Spivak, na esteira de Jacques Derrida, demonstrou que a análise da cultura, no fim da década de 1970, estava impregnada por oposições binárias que a restringiam a uma específica forma de
Loie Fuller Dancing (1900), de Pierre Roche (1855-1922)
observação. Alta e baixa cultura, erudito e popular, tradição e vanguarda, por exemplo, eram conceitos que reduziam a capacidade do analista de verificar a profusão de sentidos gerados pelo objetos culturais. Resumindo a lista de pares conceituais opositivos ao par centro e margem, converte-os em palavras-chaves que precisavam ser reconsideradas a partir de novas relações a fim de que revertessem e deslocassem as oposições binárias, principalmente na crítica feminista e na análise marxista. Na verdade, Spivak rejeitava um modelo estruturalista de análise que se assentava por sobre os pares opositivos, o que restringia a percepção da formação dos campos semânticos, procedimento de análise e de teorização que dominara aqueles anos. Opondo margem e centro, Spivak indicava que, numa análise, a ação de se colocar um objeto no centro, usualmente, encobre uma repressão. Esse processo repressivo desloca sentidos para a margem e que, por isso, não são observados e analisados, no conjunto da diversidade definida pela oposição simplificada. Para impedir esse procedimento, o analista deve observar o lugar de onde o discurso acerca do objeto é gerado e verificar quais outros sentidos, não previstos no centro, são apontados na medida em que são gerados à margem. A contribuição de Spivak abria novas possibilidades para a crítica da cultura, principalmente para a emergência e revisão dos discursos ditos subalternos. Deste solo, constituiu-se a teoria queer. O processo que levou a essa designação dos procedimentos de análise da sexualidade e do gênero como fenômenos estritamente culturais deve à perspectiva de Spivak a sua formulação inicial, na medida em que deixou de lado o binarismo das relações de gênero, instituído pela oposição biológica de macho e fêmea, e passou a compreender o exercício da sexualidade e as construção de identidades baseadas na sexualidade como um movimento dinâmico e subjetivo. David Halperin (2003) assinala que a palavra queer, que designava homens e mulheres homossexuais de maneira bastante pejorativa, passou a indicar radicalmente a potencialidade do gênero (gender) e a fluidez da sexualidade humana. A teoria queer pretende assinalar o lugar do queer (o homossexual) no concerto cultural em que se inscreve, ao observá-lo sob as suas inúmeras facetas sociais, étnicas, nacionais e culturais. Sem tentar projetar uma identidade fixa e totalizante, pelo contrário, a teoria queer investe na diferença como forma de perceber o lugar do sujeito e do indivíduo queer e os sentidos que gera. Queer, também, passava a ser o amplo campo semântico por onde o sujeito poderia se constituir num discurso mais ancorado no seu exercício de sexualidade do que em padrões pré-estabelecidos e repressores, para além da mera e superficial oposição biológica. Além disso, a expressão “teoria queer” teria advindo do título de uma conferência que Teresa de Lauretis proferira em 1990, quando buscava provocar especificamente a estabilização dos chamados estudos gays e lésbicos no interior dos estudos de gênero, ou seja, de Lauretis desejava denunciar a insistência e a permanência de um discurso identitário de matriz binária. Apenas uma teoria queer, segundo de Lauretis, seria capaz de chamar a atenção de tudo o que estaria à margem daquela oposição binária que consistia na confirmação da formação discursiva dominante, isto é, o homem cristão, heterossexual, burguês e branco. Os estudos queer deveriam se debruçar por sobre as ditas perversões ao modelo hegemônico de objeto, de sujeito e de método analítico, por conseguinte. Após o escândalo acadêmico inicial, Halperin assinala a rapidez com que a
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provocação de Lauretis repercutiu nos meios universitários norte-americanos e ingleses e o seu quase imediato reconhecimento, mais provocado por descompressão de demanda de pesquisa do que por um movimento acadêmico institucional. No entanto, a partir daí, o gênero (gender) ressignificado pela Teoria Queer, passou a fazer parte significativa do panorama das Ciências Humanas nos Estados Unidos, no Canadá e no Reino Unido. Como, então, a crítica literária pode lançar mão da teoria queer? É a pergunta que se apresenta para o estudioso. Como trazê-la, importá-la ou traduzi-la? Seremos agentes impunes da transliteração sem percebermos que a diferença ao sul é mais diferente? Que a experiência da sexualidade em espaços econômica, social e culturalmente marginais é ainda mais diversa do que a margem que se impõe imediatamente ao centro? Para se compreender a diferença em língua portuguesa são necessárias inúmeras considerações de ordem histórica e cultural. Há uma arqueologia das sexualidades marginais nas culturas de língua portuguesa que cumpre ser reconhecida para que se avance para a sua genealogia. A especificidade das culturas de língua portuguesa se impõe, impedindo a tradução imediata da teoria queer. Uma tradução literal para queer é impossível. Assim, a experiência de tradução deve reinterpretar e reelaborar. O poeta brasileiro Oswald de Andrade (1976), em 1931, pensando a cultura brasileira, reconheceu a diferença como marca indelével em nosso relacionamento exótico e ímpar com o Outro, disse ele: Nunca fomos catequizados! Fizemos Carnaval. Para Andrade, em nós, brasileiros, as leis da cultura, que determinam, organizam, hierarquizam e constroem os centros e as margens, não teriam sido absorvidas, mas foram carnavalizadas, isto é, absorvidas como mero instrumento do aparato cultural. A proposta de Oswald de Andrade pode ser recuperada a partir do momento em que se entende a relativização da cultura de periferia com a cultura do centro. Para ele, não há centros disponíveis na cultura brasileira, que produz um intenso não-senso nas relações das elites culturais e econômicas com as camadas populares. A cultura brasileira se constitui através de trocas dinâmicas e incessantes que aproximam os extremos sociais e culturais. Assim, para Andrade, como se sabe, somos mediados pela antropofagia: isto é, no Brasil há a deglutição da cultura do outro, o que dilui a identidade cultural como num caleidoscópio – que hoje se denomina de multiculturalismo. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (1992), refletindo a respeito das culturas periféricas, em especial a respeito das culturas de Língua Portuguesa, reconhece a peculiaridade da reflexão de Oswald ao dizer: Acima de tudo, Oswald de Andrade sabe que a única verdadeira descoberta é a autodescoberta e que esta implica presentificar o outro e a conhecer a posição de poder a partir do qual é possível a apropriação selectiva e transformadora dele. (SANTOS, 1992, p. 122)
A reflexão de Santos é valiosa por estender essa proposição a todas as culturas de periferia. É sabido que a perspectiva de Andrade dispõe um relacionamento peculiar com o Outro, na medida em que o antropófago o destrói como outro, colocando-se em seu lugar e como aquele que pontifica em um e em outro espaço, no centro e na margem, reconhecendo a sua ubiqüidade. Pensar, portanto, as manifestações culturais oriundas das margens e especialmente dos indivíduos e sujeitos que pervertem as práticas binárias
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da sexualidade é entender as relações ambíguas que as sociedades periféricas constroem a seu respeito, sejam elas na América, na África ou na Europa. Vale assinalar a descrição que Luiz Mott, em seu “Pagode Português: a subcultura gay em Portugal nos tempos da Inquisição” (1988), faz das ações das visitas inquisitoriais à colônia brasileira nos séculos XVII e XVII. Mott demonstrou a existência de relações bastante instáveis e ambíguas da sociedade colonial portuguesa com a sexualidade e suas perversões. Períodos de repressão ostensiva da Santa Inquisição são alternados com períodos de tolerância, não obstante haver continuamente caracterização da sodomia como crimes de lesa-majestade, o que sugere a existência de uma ambigüidade em relação à sodomia/homossexualidade, porque a perseguição não era permanente e nem padronizada – como também assinala David Higgs (1999). Bordéis masculinos ou de travestis eram tolerados em Lisboa no século XVII, bem como a convivência de certa forma pacífica com travestis ou transgêneros na corte portuguesa, na administração colonial e nas camadas mais populares. O que nos leva a concluir que a possível construção de uma identidade queer, em português, antecede e, muito, quaisquer outras formas importadas, porque não emergiram com o desenvolvimento da sociedade burguesa, mas bem antes dela. Após Mott, retomando Santos, no mesmo ensaio já citado, somos forçados a reconhecer que a cultura brasileira e a cultura portuguesa convivem de maneira peculiar com a diferença. A constituição cultural de Portugal e, por herança colonial, do Brasil criou uma identidade marcada pela condição fronteiriça com o centro – somos marginais por identidade, somos definidos quanto mais longe nos colocamos da fronteira com o centro cultural. Assim pensados, temos em nós esta condição privilegiada e desprestigiada entre o centro e a margem. Fronteiriços, limiar entre cultura e barbárie, somos tanto o Europeu culto e o Selvagem ignorante. Se a teoria queer busca esta identidade potencial, na delimitação extremada do objeto que investiga, somos levados a crer que, ao ser instrumentalizada por nós, devemos levar em conta que uma zona de sombra se estende entre o que ela, em sua matriz norte-americana, designa como centro e queer. Continua Santos: A zona fronteiriça é uma zona híbrida, babélica, onde os contactos se pulverizam e se ordenam segundo micro-hierarquias pouco susceptíveis de globalização. Em tal zona, são imensas as possibilidades de identificação e de criação cultural, todos igualmente superficiais e igualmente subvertíveis: a antropofagia que Oswald de Andrade atribuía à cultura brasileira e que eu penso caracterizar igualmente e por inteiro a cultura portuguesa. (SANTOS, 1992, p. 134)
O estatuto conferido por Santos ao pensamento de Oswald é intensamente valioso para se pensar o queer em português, porque os pólos do discurso são invertidos e se consegue fundar um outro olhar conferido pelo suposto marginal para o antigo suposto centro. Traduzir de maneira imediata o termo queer da sociedade central para a sociedade da periferia é trair a própria antropofagia que nos confere identidade. Sem dúvida, ao abandonar o binarismo da identidade hetero/homossexual, abarcando questões que problematizam a teoria dos gêneros, que buscam dar contas das diferenças de classe, raça, etnia etc, os estudos queer podem oferecer sentidos para a instrumentalização das aspirações dos grupos sociais nela diretamente envolvidos. Neste sentido, pensar as manifestações queer através de representações históricas que nos liguem
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à liberação sexual dos países centrais, que estabeleçam uma genealogia a partir de Stonewall ou mesmo do mundo grego antigo, é deixar de lado particularidades explícitas para construir uma identidade fictícia, ideologicamente constituída, ou, até, globalizada. É certo que a constituição, na modernidade, das identidades passa diretamente pelo questionamento da construção histórica de si mesmas, entretanto, as identidades, quaisquer, se fundam na dispersão e na descontinuidade. Em 1982, Michel Foucault, em entrevista a Christopher Street, refletia a respeito da transformação social provocada por novas identidades que emergiam, determinando a criação de formas culturais, praticamente inéditas no cenário ocidental. A identidade homossexual que emergia naquele momento era marcada não apenas por sua própria produção cultural, mas, também por:
Loie Fuller Dancing (1900), de Raoul Larche (1860-1912)
uma cultura no sentido amplo, uma cultura que inventa modalidades de relações, modos de vida, tipos de valores, formas de troca entre indivíduos que sejam realmente novas, que não sejam homogêneos nem se sobreponham às formas culturais gerais. (FOUCAULT, 2004, p. 122)
Dessa maneira, Foucault, ao longo da entrevista, parece indicar o aparecimento de formações culturais capazes de ressignificar a cultura ocidental. Mais adiante, acrescenta que este processo indica a superação do discurso do oprimido como gerador da mesma identidade. E, mais, além de “permitir relações sexuais (…), o mais importante é o reconhecimento por parte dos indivíduos desse tipo de relação, no sentido de eles lhe atribuírem uma importância necessária e suficiente para inventar novos modos de vida”. (FOUCAULT, 2004, p. 125) Em 1982, ano que é marcado pela detectção da epidemia AIDS, a cultura homossexual encontrava-se em pleno desenvolvimento, fosse a reboque dos movimentos alternativos da década anterior, fosse pela emancipação política e social, garantida em algumas localidades do Primeiro Mundo. No ano anterior, 1981, a revista portuguesa Raiz e Utopia, dirigida por António José Saraiva, publicou o dossiê “Ser (homo)sexual” que, de acordo com a sua política editorial, propunha elementos para uma “sociedade diferente”. O dossiê foi um conjunto de relatos e entrevistas em que a tônica era a exposição de uma política sexual propugnada pela Frente de Homossexuais Revolucionários Italiana, no interior do Partido Radical Italiano. No que dizia respeito à cultura local portuguesa, pouco se apresentava a respeito das manifestações da homossexualidade em Portugal, apesar de já, naquela altura, já existirem “coletivos de homossexuais” em Lisboa. Alguns relatos de jovens portugueses foram transcritos e se conformavam como denúncia e desabafo de uma experiência de opressão e preconceito, ainda persistentes nos anos que seguiram ao 25 de Abril. Curioso notar que uma revista como Raiz e Utopia, cujo subtítulo era “crítica e alternativa para uma civilização diferente’”, que teve uma vida útil de quatro anos (19771981), não tivesse anotado o aparecimento de uma série de poetas que vinham, desde pelo menos 1974, a explorar uma escrita que, no mínimo, naquela altura, poderia ser considerada problematizante, visto que as experiências da homossexualidade encontravam-se em sua pauta. As obras de Al Berto, Luís Miguel Nava, João Miguel Fernandes Jorge, Helder Moura Pereira, entre outros, são a expressão da emergência de um sujeito em busca de sentidos orientadores, portadores de identidades
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dispersadas numa cultura que separou e segregou a diferença por quase cinquenta anos de ditadura. Se deles se extrai uma poética é a de busca de sentido num universo de contrariedades. Hoje são parte indiscutível do cânone literário português. O queer se debate com o cânone e, como assinalava Halperin (2003), a perda do estatuto marginal em troca da institucionalização significa a perda da provocação e da diferença que fundamenta o desejo e a felicidade. Cânone, centro, margem e periferia devem ser dissolvidos não para o seu desaparecimento, mas para o apagamento dos mecanismos repressores que formulavam a hierarquização. O sociólogo polaco Zygmunt Baumann (1997) assinala que o cânone foi erigido no alvorecer da modernidade e que, na pós-modernidade, ele se dissolve em pequenos cânones de grupos específicos, que ocupam o lugar de centralidade anteriormente ocupado pelo Estado-Nação. Tal processo, para ele, é ambivalente: Todo trato de problemas equivale a construir uma miniordem à custa da ordem alhures, e à custa de suscitar desordem global e também de exaurir os estoques, que se constraem, de recursos que tornam possível a ordenação – qualquer ordenação. (BAUMANN, 1997, p. 280)
A promoção da margem não pode ser a demolição do edifício canônico, mas apenas a sua ressignificação e, mais brandamente, a sua ampliação. Se, para Harold Bloom, a força estética do cânone é o que “nos possibilta aprender a falar a nós mesmos e a suportar a nós mesmos” (BLOOM, 1995, p. 36), este seria, antes de tudo, um discurso incapaz de atravessar a História e as fronteiras geográficas porque seria voltado, continuamente, a um leitor determinado espaço-temporalmente. Leitores determinados previamente pelo cânone, quaisquer cânones – macro ou micro –, são os mesmos que instituem as formas de controle social e político e, dessa maneira, manejam os mecanismos que operam os discursos de poder. Para se abstrair do circuito que engendra os discursos de poder, a crítica literária precisa compreender que não é erigindo novos cânones, mas é continuamente problematizando a formação canônica que engendra. Nem todo queer é camp ou kitsch, é um elemento problematizador do establishment, nada mais kitsch do que um cânone queer. A série literária recortada inicialmente, antes de ser um microcânone, é, sobretudo, uma série problematizadora das identidades sexuais, reivindicada por comunidades específicas. Inclusivamente, permite um aprendizado ao sujeito-leitor que a ela se dedica, mas não pode, de forma alguma, ser cristalizada no interior do conjunto cultural em que se insere e, muito menos, ser deslocada do conjunto de outras obras com as quais se relacionam direta ou indiretamente. Se ainda cabe à crítica alguma função pedagógica, ela será a de garantir que o trânsito de sentidos seja permanente, que a atualização seja constante, que os modelos possam ser traídos, que os esquecidos sejam resgatados, e que os silenciados possam falar.
Referências Bibliográficas ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3a ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.
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BAUMANN, Zygmunt. Ética pós-moderna. São Paulo: Paulus, 1997. BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995 EAGLETON, Terry. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FOUCAULT, Michel. O triunfo do prazer sexual: uma conversação com Michel Foucault. In: MOTTA, Manuel de Barros (org.). Michel Foucault: Ética, sexualidade, política [Ditos & escritos, V]. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. HALPERIN, David. The normalization of queer theory. In: YEP, G., LOVAAS, K., ELIA, J. (eds). Queer Theory and Communication: from disciplining queers to queering the disciplines. New York: The Harrington Park Press, 2003, p. 339-344. HIGGS, David. Queer Sites: Gay Urban Stories Since 1600. New York: Routledge, 1999. MOTT, Luiz. Pagode Português: a subcultura Gay em Portugal nos Tempos da Inquisição. In: Ciência e Cultura, (SBPC), n.40, Fevereiro, l988, p.120-139. ______. Raiz e Utopia: Crítica e Alternativas para uma Civilização Diferente [Dossier Ser Radical], 17, 1981. SANTOS. Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005. SPIVAK, Gayatri. Explanation and culture: marginali. In: LANDRY, Donna & MACLEAN, Gerald (eds). The Spivak Reader. New York: Routledge, 1996. p. 29-52. SPIVAK, Gayatri. Translator’s preface. In: DERRIDA, Jacques. Of Gramatology. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1976. p. ix-lxxxvii.
* Mário César Lugarinho é Doutor em Letras (PUC-Rio, 1997). Professor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo. Publicou Manuel Alegre: mito, memória e utopia (Lisboa: Colibri, 2005). Em 2001, com outros pesquisadores, fundou da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH).
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“A anatomia é o destino”
três faces do pornográfico na literatura brasileira Renan Ji*
Resumo: Tendo como norte de pensamento o corpo e suas figurações imaginativas, este trabalho pretende examinar três casos da literatura brasileira que indicam diferentes vertentes da representação pornográfica na literatura. No contato imediato com os textos literários, surgirão reflexões de autores como Foucault, Deleuze, Freud e outros, congregados na tentativa de esboçar o que seria a pornografia como forma de linguagem, experiência do corpo e visão de mundo. PALAVRAS-CHAVE: Pornografia, Literatura brasileira, Corpo Anatomy is destiny – three facets of pornography in Brazilian literature. Abstract: Taking the body and its imagined configurations as its guiding themes, this paper will examine three Brazilian literary works which exemplify different types of pornographic representation in literature. Following contact with the texts, an outline – inspired by thinkers like Foucault, Deleuze and Freud - will be offered of what pornography is, as a form of language, experience of the body and world view. keywords: Pornography, Brazilian Literature, Body
1. Introdução A intenção é problematizar um gênero que não se problematiza: o pornográfico é direto, literal, objetivo; tudo nele leva à saturação da energia sexual (seja no corpo observado, seja no corpo do observador), para em seguida ser despejada aos borbotões, secretamente, num gozo secreto. Não existem dubiedades, sinais de um significado que escapa, como na maioria das obras literárias. A pornografia pega brutalmente a realidade e não pensa nos limites da representação, apenas impõe o seu próprio: o corpo, o sexo, as secreções, os restos dos quais a sociedade simula a inexistência. Nada existe além desse limite, e é por isso que a experiência pornográfica é de um realismo desconcertante. Se existe alguma problematização, ela está em nós, receptores que identificamos a obscenidade da obra. Talvez nos sintamos afrontados com a honestidade pornográfica, que se restringe à repetição de suas palavras de ordem, evitando elaborar ou derivar metáforas eróticas que desdobrem ou distendam o conteúdo sexual. Daí o choque: a palavra pornô está em cópula com o interdito e este se presentifica na constante repetição, como
Detalhe: O Rapto de Proserpina (1621-1622), de Gian Lorenzo Bernini (1598-1680)
se desse pancadas na moral. A pornografia não deriva ou cria. Como no ato sexual, repete o mesmo movimento, situação ou designação até a saturação do desejo. As situações, os tipos humanos, os desenlaces – tudo gira em torno de um único centro: o sexo, o corpo e suas vicissitudes. As suas contingências de contexto são desnecessárias, são desvios no percurso de um corpo insaciável. Nessa circularidade, a lente do pornógrafo mostra o organismo desprovido de refúgio, de álibis que justifiquem o seu desejo bestial. Retirado de qualquer passado singular, tomado apenas em sua atualidade lascivamente tensa, o corpo na pornografia se submete a uma visão fetichista de objeto: os closes são vertiginosos, os órgãos sexuais são aumentados tanto em termos de fisiologia quanto de perspectiva. A visão pornográfica concentra sua atenção nas reentrâncias, no atrito, na interpenetração dos corpos, como se quisesse ultrapassar a opacidade do real, adentrar no mistério da carne. É por essa fixação do corpo e do sexo numa dimensão fechada, saturada e circular, que Susan Sontag afirma que a imaginação pornográfica “habita um universo que é, por mais repetitivos os incidentes que ocorram no seu interior, incomparavelmente econômico. Aplica-se o critério de relevância mais estrito possível: tudo deve apontar para a situação erótica”. (SONTAG, 1987, p. 70) Para entender essa natureza da pornografia, tentarei ser teoricamente pornográfico: livres da história, das ciências humanas, da psicologia dos indivíduos, sigamos a diretriz de Sontag que nos convida a vivenciar as situações eróticas, tentando definir e problematizar a pornografia engajados nos textos ditos pornográficos. Tendo sempre como norte básico de reflexão o corpo e suas representações, examinaremos três textos literários – A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro; o conto “O campeonato”, de Rubem Fonseca, extraído de Feliz ano novo; e o conto “Olhos de égua”, de Mario Sabino, extraído do livro O antinarciso – textos literários Revista OlhaR • anO 12 • nO 22 • Jan-Jul 2010 114
que representam diferentes formas da insistência do pornográfico sobre o real, para daí extrair a contribuição desse gênero como linguagem literária e representação de mundo.
2. João Ubaldo Ribeiro – A casa dos budas ditosos Um corpo escultural e potente, feito para o sexo. Uma anatomia de cheiros inebriantes, protagonista de pretextos narrativos / eróticos que têm, como fim previsível e inescapável, o sexo. Nessa atmosfera de sexualidade eletrizada, todos os corpos estão saturados de desejo, longe de ser esse o elegantemente voluptuoso desejo de uma sofisticada tradição do amor, mas sim o desabrido e escancarado tesão pela carne do outro. Quem é essa baiana sexagenária que nos mostra um mundo orgiástico e delirante do qual queremos – e devemos – participar? Na introdução da novela, João Ubaldo afirma ter recebido fitas de uma mulher identificada com as iniciais CLB, contendo uma fala que, transcrita, seria o corpo do texto de A casa dos budas ditosos. Tendo o autor esclarecido tal fato como procedimento ficcional, decepcionados ficamos com a desmentida existência real de uma figura tão singular. Por outro lado, é interessante pensar o que causaria um desejo de verdade tão forte, a ponto de o relato de CLB nos fazer cair na credulidade. A escrita pornográfica de João Ubaldo Ribeiro curiosamente tende a instalar-se num lugar ótimo de aceitação do público, que se identifica com CLB, procura saber se ela de fato é real ou se o autor realmente tem conhecimento de causa para narrar todas aquelas estripulias sexuais1. Muitos traços do texto garantem essa familiaridade entre público e obra: a linguagem oral, o humor irreverente e bufônico, e a pretensa modernidade da obra, declarada por uma narradora libertina que diz estar falando a verdade de todos. Tais traços se conectam diretamente a nossa auto-imagem de povo hedonista e de mente aberta, cujo ponto fraco sempre foi o dos prazeres carnais, imagem essa confirmada pelo forte apelo sexual de nossos corpos. O corpo, em A casa dos budas ditosos, ao vestir uma malha de referências que se prestam a reconstruir um imaginário pornográfico e uma cultura da sexualidade, torna-se o principal catalisador da projeção do público sobre a obra. Uma memória inscrita no corpo, uma vida vivida pelo corpo. Se a memória falha em fornecer o relato empiricamente real de uma vivência, a imaginação acorre para reconstruir todas as sensações e experiências das quase sete décadas de um corpo ainda cheio de vigor. Para uma vida de orgias, uma orgia de referências: de Chordelos de Laclos, passando pela cultura de massas, as perversões e o pansexualismo, a escrita pornográfica de João Ubaldo Ribeiro costura no corpo de CLB uma infinidade de elementos pertinentes a uma história cultural do sexo, suas relações com a morte, a sociedade, os sentidos e a subjetividade. Um corpo idealizado e mitificado, construído na miscelânea de referências: “um maremoto de tesão latejante”, (RIBEIRO, 1999, p. 76) com um par de coxas poderosas, de “um poder não só físico como emocional e psicológico”. (RIBEIRO, 1999, p. 88) Uma mulher sempre disposta em qualquer hora e lugar, que cruza com outros corpos 1 Com relação aos frequentes enganos acerca da possível existência de CLB, assim como ao questionamento a João Ubaldo Ribeiro referente à possibilidade de que o autor tivesse de fato vivido ou presenciado as experiências relatadas no livro, temos, entre outros exemplos, a entrevista no site: http://www. almacarioca.com.br/jubaldo.htm.
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tão esculturais e latentes quanto o seu, numa vida de gozos vários, líquidos abundantes, cheiros instigantes. Entre elementos fisiológicos e socioculturais, surge uma entidade: “eu encarnei todas as deusas do amor, todas as diabas desabridas que povoam o universo, a Luxúria com suas traiçoeiras sombras coleantes e seus estandartes imorais, seu chamado à devassidão, à dissipação e à entrega a todos os gozos de todos os matizes até chegar à morte lasciva, eu era a Luxúria integral, baixada ali para reinar como um espírito misericordioso e invencível (…)”. (RIBEIRO, 1999, p. 80) No mais, uma predestinada a ser “um grande homem fêmea”. (RIBEIRO, 1999, p. 17) Todavia, a despeito de o universo de CLB ser um reservatório de imagens e sensações de uma espécie de “tradição” pornográfica, podemos encontrar uma maneira de sair da crítica raivosa contra a reprodução dos clichês. De fato, em consonância com a relação que Susan Sontag faz entre pornografia e paródia2, vemos que João Ubaldo na verdade parodia muitos elementos, realocando-os sob uma nova perspectiva crítica que, de acordo CLB, é a mais correta, atual e moderna, na luta contra o atraso e em direção ao futuro. Entretanto, nesse “depoimento sócio-histórico-lítero-pornô”, (RIBEIRO, 1999, p. 17) cabe avaliar em seguida o sentido e o nível de tal criticidade, levando-nos a questionar junto com Sandra Lapeiz algo mais profundo dessa apropriação parodística: “E nesse carnaval que normalmente se prolonga pelo ano inteiro, surpreendemo-nos a ‘costurar retalhos’ de cetim, de corpos, de textos de livros, de outdoors, de vídeos, de telas e paredes pichadas, buscando tecer a Fantasia Brasileira. O que é afinal a tão falada ‘sacanagem’?”. (LAPEIZ, 1984, p. 146) A sacanagem de nossos dias que é vendida por CLB: imaginemos Carlos Zéfiro se apropriando de elementos arrojados do humor contemporâneo, junto com elementos esparsos e deslocados de uma pornografia literária sofisticada, filosófica e problematizante (Sade, Bataille, Miller, Bukowsky etc), com o objetivo de tecer uma fala que prega a liberação, a modernidade, o eterno carnaval do sexo: “Delicioso vício e viciada delícia”. (LAPEIZ, s/d, p. 114) Valores (novos? Velhos?) que transformam a ousadia e o choque muitas vezes amargo do pornográfico em mera normalidade apimentada: nos meios de comunicação e na indústria são vários os discursos circulantes que corroboram uma sexualidade aguçada, aberta e, acima de tudo, liberal. Uma ética do sexo que se presta a discuti-lo sem “papas na língua”, “sem preconceito” e “sem medo”, mas que certamente vacilaria diante de sua face mais espinhosa: os tabus, perversões, fetiches e limites que artistas como Sade, Bataille e outros souberam explorar tão bem. Vemo-nos diante de mecanismos de poder que controlam os indivíduos por meio de um modelo de sexualidade palatável, como queria Foucault? Esquivando-me de respostas peremptórias, alerto pelo menos para o fato de que é notável uma espécie de idealização da figura de CLB, como veículo de uma ética pornográfica que dita um modelo de comportamento e de consumo. Lemos A casa dos budas ditosos e gostaríamos de ser CLB, Norma Lúcia ou qualquer um dos personagens libertinos. Eles são fascinantes, esclarecidos, modernos. Dentre as poucas conversas que tive com relação a essa novela, convém
2 “É da natureza da imaginação pornográfica preferir convenções acabadas de personagens, cenário e ação. A pornografia é um teatro de tipos, não de indivíduos. Uma paródia pornográfica, na medida em que tenha real competência, continua a ser pornografia. Na verdade, ela é uma forma muito comum dos textos pornográficos”. (SONTAG, 1987, p. 56)
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pontuar este final com a declaração firme de um dos meus ocasionais interlocutores: “O que achou do livro?”, pergunto. “Adorei. Norma Lúcia é minha heroína!”.
3. Rubem Fonseca – “O campeonato” Um corpo devassado pelas lentes de aumento da ciência; esmiuçado pelos instrumentos e medições; reproduzido em imagens. Poder-se-ia alegar que o sonho do pornógrafo de mergulhar fundo no fetiche pelo objeto tornou-se realidade. Entretanto, a manipulação científica parece suscitar mais náusea e mal-estar do que excitação sexual. Uma espécie de deturpação funda a pornografia de Rubem Fonseca: o corpo devassado inunda o olhar do observador com imagens e dados, transformando a saturação do desejo em overdose; por outro lado, essa disseminação maciça de imagens termina por causar uma virtualização deste mesmo corpo, desencarnado em sua organicidade e palpabilidade. Numa sociedade hipotética em que a humanidade do sexo e do contato pessoal foi superada pelos êxtases sensoriais e anti-sépticos da tecnologia, um campeonato de conjunção carnal é celebrado clandestinamente. Tais eventos foram proibidos por lei, dada a sua repercussão na cabeça dos jovens, mostrando que a fascinação pelo “esporte” é ainda muito presente em todos os cidadãos. Isso porque, se a corporeidade é diluída em imagens virtuais e suas secreções desinfetadas e desodorizadas, os que mantêm o elo perdido com o instinto e a natureza bestial humana são isolados da sociedade: tornam-se párias degenerados ou ídolos de uma cultura de massa. No conto de Rubem Fonseca nos deparamos com o segundo caso: as “celebridades pornôs” são objeto de adoração e curiosidade por parte dos cidadãos dessa metrópole imaginária. Entretanto, apesar do evidente voyeurismo e dos visíveis investimentos libidinais, o campeonato não se configura como pornografia tradicionalmente concebida. O sexo e o corpo, milimetricamente acompanhados pelas câmeras, sondados em seu atritos e excreções, são deslocados do pornográfico para o terreno da performance, da ergonomia, do limite físico. Não existe saturação de desejo, gozo e animalidade, como em João Ubaldo Ribeiro; o gozo é indireto, virtual, distanciado, e se existe algum tipo de saturação é a de informações e cálculos. No lugar da obscenidade pornográfica, a torpeza invasiva e fria da ciência. “É como se a pornografia fosse uma espécie de fachada sem fundo, aparências que deslizam e se afastam do segredo e da transgressão erótica.” (VILLAÇA, 2007): sombras libertinas de uma robustez sexual há muito superada, que se impõem pela produção em série. Não há mais o choque do interdito, apenas fascinação com uma sexualidade humana que, acuada, ainda resiste nos contendores desse “último poético circo da alegria de foder”. (FONSECA, 1989, p. 123) A partir de uma hipérbole ficcional, Rubem Fonseca alerta para os extremos de uma scientia sexualis3 que sufocará o valor instintivo da natureza humana. O autor, a partir do mundo fictício delimitado no conto, permite pensar também no que Massimo Canevacci afirma ser a passagem do pornográfico para o pornô: o sufixo –grafia pressupõe uma escrita, um desenho, um investimento de linguagem ou elaboração imaginária, e a sua supressão 3 Foucault (1988) utiliza tal expressão como título do terceiro capítulo de sua História da Sexualidade 1 – A vontade de saber, referindo-se a uma discursividade científica que, a partir do século XIX, passa a dominar o saber acerca do sexo.
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determinará a predominância de uma sexualidade digital, estimulada a partir de um frame autônomo e objetivo, sem história, sentimento ou humanidade. A excitação será substituí da pela estimulação, na medida em que a ciência igualará os corpos em sua técnica laboratorial e o mundo digital os fará esvanecer em imagens cada vez menos individualizadas. E a pornografia será reduzida a uma “obscenidade branca”, (CHIARA, 1996, p. 93) ao olhar invasivo e anônimo do reality show. Rubem Fonseca acredita que esses pólos de investigação e representação do corpo eliminarão a essência do indivíduo e o que ele tem de mais legítimo e orgânico: seu corpo, seus orifícios, excreções, despojos – a vida crua e selvagem dos animais que somos. O autor deixa entrever no conto uma nostalgia da boa e velha pornografia, aquela que se destina a excitar a vontade e incitar o ato, desprovida de qualquer rigor que não seja o do puramente sexual. A liberdade sexual contemporânea não significou, portanto, o sucesso da pornografia em desnudar os seres humanos de seu “preconceito antibiológico” (FONSECA, 1999, p. 169) e sim inaugurou uma nova forma de puritanismo: o da ciência, o da cultura de massas, que separam a alma do corpo, a emoção da razão.4 Ainda estamos presos pelas amarras da censura e do pudor, amedrontados e envergonhados de nossa natureza animal. Existe aqui uma visão redutora das questões do corpo e do sexo. Rubem Fonseca parece querer impor uma espécie de estágio feliz da sexualidade, livre de quaisquer repressões por parte da cultura, no qual poderíamos viver livre e plenamente como “bons selvagens”. Mas soa como uma nova moral, um ditame de comportamentos: “Substitui-se a moral cristã da repressão sexual, do sexo considerado sujo ou perverso fora dos limites da procriação, pela moralidade hippie da volta à natureza ou das convicções da psicanálise reicheana sobre a libertação do homem através do orgasmo total”. (CHIARA, 1996, p. 151) Será que estamos em presença de uma moralismo às avessas, que prega, em vez da decência, o sexo feliz e sem amarras? Será Rubem Fonseca um moralista libertino?
4. Mario Sabino – “Olhos de égua” Um corpo indefinido, desmembrado em suas unidades. Se, por um lado, não existem mais indivíduos em atmosfera de delirante volúpia, por outro, o delírio permanece na sucessão frenética de momentos de instinto e desejo por entre flashes de personalidade. No fluxo orgástico, na orgia de sensações, ainda existe um corpo reconhecido e delimitado? O que nele resta de humanidade? A pungência de um processo tão abrasador ora dissolve a corporeidade, ora transforma o corpo em animal – uma égua. Égua que, explorada na sua maior intimidade, acaba se reduzindo a um buraco, a um olho que seria passagem para o mais secreto de si. Um olho que antes se mostra congelado, vedado em seu mistério translúcido, como os olhos castanhos de uma mulher; no fluxo de imagens, toma depois a forma de um olho único, negro e rosado, “feio de olhar, belo de sentir”. (SABINO, 2005, p. 61) Na passagem dos olhos para o olho, uma sucessão de imagens, pensamentos, estilhaços de impressões, que giram no “vórtice de um lugar-comum” (SABINO, 2005, p. 59) e 4 Cf. artigo de sua coluna: http://portalliteral.terra.com.br/artigos/pensamentos-imperfeitos-a-pornografia-comecou-com-a-venus-de-willendorf.
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explodem numa total falta de sentido: “o fim finalmente? o finfinalmente, de verdade, a verdade, o que era a verdade”. (SABINO, 2005, p. 62) Na paixão pelo(s) olho(s) da égua, vemos que o esforço pornográfico é o de mergulhar no fetiche do objeto, na repetição e saturação de uma anatomia, na repetição de um nome-coisa, nome-fetiche, que mergulha o signo numa literalidade. Entretanto, essa literalidade acaba por subjazer uma falta; sua viciada repetição é o gatilho para fazer surgir uma ausência enigmática, um entrelugar indefinível que ainda assim persiste e atormenta. Chamar isso de real? “Através de fendas, o real, com sua desordem ardente, escorre.” (CASTELLO, 2009, p. 4): quanto mais o buscamos, mais ele nos responde com uma vacuidade, um inapreensível que não pode ser ignorado ou suprimido, e que permanece como essencialidade fulcral. Como se uma pedra-significado fosse batida contra uma pedra-significante e surgisse uma fagulha, um relance de luz que vislumbramos na sua fugacidade e mistério. A faísca que escapa é o que determina a implosão do pornográfico. A ânsia realista do pornógrafo rediz constantemente o corpo, insiste na cópula com o real, mas há sempre uma sobra e uma falta. A insistência vira obsessão, vício, repetição esquizofrênica, e as características da pornografia implodem com a impossibilidade de apropriação total da realidade. A linguagem pornográfica em errância passa rápida por episódios e impressões sensoriais, gira em torno de si mesma, tentando “entender: entender como, de que forma, de que jeito”, (SABINO, 2005, p. 60) motivada única e simplesmente por forças pulsionais. A obscenidade e a vulgaridade chegam ao paroxismo e vociferam freneticamente a palavra transgressora. Clama-se pelo olho – lugar de troca psicofísica com o espaço: boca que engole, ânus que expele, buraco-negro, cloaca, “olho de égua”. A língua-corpo de Sabino parece querer, como as criaturas nos quadros de Francis Bacon, derramar-se em buracos e fendas: escapar em espasmos para o dissoluto, ou deixar que um exterior lhe invada até a explosão.5 Talvez daí o fascínio com o olho: passar por ele, evadir-se de si mesmo, mergulhar no fluxo de uma passagem. A linguagem pornográfica em crise sofre (ou encena) as forças invisíveis que lhe oprimem e obrigam a aprofundar-se cada vez mais na sua fixação pelo olho: adentrar o olho, obedecer ao instinto, esgotar o desejo, partilhar do segredo. Mas quanto mais o cercamos, o olho de égua se multiplica, explode em vários, tudo explode: “não havia mais tempo, não havia tempo mais, ele dessentia, e o olho da égua crescia, o olho, os olhos?, era um, eram dois, três agora, castanhos, negro rosado, castanhos em negro rosado, negrorrosado, negro, negro-mais-que-perfeito-negro, frio-mais-que-frio-imperfeito, o fim finalmente?, o finfinalmente, de verdade, a verdade, o que era a verdade”. (SABINO, 2005, p. 62) Se as circunvoluções da linguagem de Sabino podem ser consideradas histéricas, seria pertinente dizer com Deleuze que “O histérico é ao mesmo tempo aquele que impõe sua presença, mas também aquele para quem as coisas e os seres estão presentes,
5 “Cena histérica. Toda a série de espasmos em Bacon é deste tipo, amor, vômito, excremento; sempre o corpo que tenta escapar por um de seus órgãos para se juntar à grande superfície plana, à estrutura material”. (DELEUZE, 2007, p. 24) Resumidamente, para Deleuze, os corpos histéricos de Bacon assumem uma relação de porosidade com o meio, e essa intercambialidade com o exterior se dá a partir de buracos no próprio corpo, em que ou o ser se esvai para a superfície que o contém, ou o ser se deixa penetrar pelo espaço em que está; além disso, essas dissipações da matéria corporal também podem se dar por meio do que o filósofo chama de “instrumentos próteses”, como guarda-chuvas, espelhos, fechaduras e ralos, os quais se prestam a servir de passagem para a vazão histérica do corpo que tenta penetrar por suas pontas ou orifícios.
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presentes demais, e que dá a cada coisa e comunica a cada ser esse excesso de presença”. (DELEUZE, 2007, p. 57) Uma presença que é excessiva e ao mesmo tempo inatingível: o olho que nos faz “dessentir”. Sejam as forças invisíveis nos corpos de Bacon, a escrita pulsional de Sabino, ou o desejo sexual na pornografia, lidamos com um real que recusa ser aprisionado, que persiste, deforma as carnes do ser humano, desperta desejos impossíveis e inesperadamente desconcertantes. Se em “Olhos de égua” o pornográfico entra em crise, não é pela banalização do sexo ou a perda de seu caráter transgressor, e sim porque, apesar de tudo, a fascinação pornográfica ainda não esgotou seu objeto. O corpo ainda resiste em seu mistério. O real sempre resiste.
Detalhe: Action in Chains
5. Conclusão
(1906), de Aristide Maillol (1861-1944)
Três faces: a brasilidade, a tecnologia e a linguagem. Três possibilidades: a paródia, o digital e a experimentação formal. Três limites: o carnaval, o virtual e a implosão da palavra. João Ubaldo recupera todo um imaginário da pornografia e repagina o modelo; Rubem Fonseca sinaliza para os extremos da tecnologia e o risco de extinção desse modelo; Mario Sabino mostra que o limite do pornográfico torna-se um problema de linguagem. A pornografia nos três casos se mostra como uma forma extrema de representação da realidade, que se dá no terreno pantanoso do obsceno, mexendo com aspectos e valores que na grande maioria das vezes a civilização preferiu relegar ao segundo plano da existência. Sigmund Freud, ao analisar a nossa tendência a depreciar os objetos sexuais que escolhemos ao longo da vida, alude à presença de componentes sádicos e coprófilos que compõem os nossos instintos sexuais, mas que permaneceram implícitos na nossa formação cultural. Esse seria um dos fatores que justificam a nossa conturbada relação com nossos desejos e fantasias eróticas, que não raro exigem uma satisfação inconciliável com a vida civilizada. Arremedando uma suposta frase de Napoleão Bonaparte – “A anatomia é o destino” −, Freud parece compartilhar com o pornógrafo a idéia de que “Os órgãos genitais propriamente ditos não participaram do desenvolvimento do corpo humano visando à beleza: permaneceram animais e, assim, também o amor permaneceu, em essência, tão animal como sempre foi”. (FREUD, 1970, p. 172) Não se refere aqui a um estágio feliz da sexualidade, como o idealizava Rubem Fonseca, e sim ao fato de que a excitação sexual e os afetos do homem sempre serão condicionados a elementos obscuros que desconhecemos na nossa vida consciente e socializada. Em essência, a anatomia é o nosso destino porque ela guarda em si as forças do grande monstro da sexualidade humana que, alucinada, se relaciona intimamente com a escatologia, a dissolução, a animalidade e, principalmente, a morte. A pornografia, por ser um breve aceno dessa enormidade negra que carregamos em nós mesmos, toca-nos profundamente com sua virulência. Causa sempre reações acaloradas porque ata as duas extremidades do corpo humano – esfrega as genitálias nos rostos civilizados e limpos dos cidadãos, ameaçando a nossa integridade física e mental de seres sociais. E por isso a ditadura do corpo nas representações pornográficas. Não a serviço de um padrão de beleza, mas em função da crueza de uma linguagem que − seja por meio
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da parodização, do discurso científico, da imagem midiática ou do fetiche de uma linguagem delirante − impõe uma lógica própria e uma visão de mundo peculiar que destrói hierarquias, inverte posições, desdenha dos tabus e preconceitos. Acusar como limitações do gênero pornográfico o caráter fechado e monolítico de suas narrativas, além da previsibilidade dos temas e da estética absoluta de suas obras, é ignorar que este gênero veicula formas extremas e transgressoras de representar o mundo. Se Susan Sontag está certa em ver na pornografia uma forma de consciência, sua legitimidade está precisamente na profundidade com que mergulha em processos físicos, psíquicos e estéticos tão caros à existência do homem no relacionamento consigo mesmo e com o mundo.
Referências Bibliográficas CANEVACCI, Massimo. O pornô perdeu a grafia. Jornal do Brasil. Entrevista concedida ao caderno Idéias & Livros, p. 8, 27 dez. 2008. CASTELLO, José. Teoria do ponto. O globo. Prosa & Verso, p. 4, 24 jan. 2009. CHIARA, Ana Cristina de Rezende. Leituras malvadas. Rio de Janeiro: Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1996. (Tese de Doutorado em Literatura Brasileira). DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sedução. Trad.: Roberto Machado (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. FONSECA, Rubem. A Pornografia Começou com a Vênus de Willendorf? Disponível em: http://portalliteral.terra.com.br/artigos/pensamentos-imperfeitos-a-pornografia-comecoucom-a-venus-de-willendorf. ______. Feliz ano novo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1 – A vontade de saber. Trad.: Maria Teresa da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FREUD, Sigmund. Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (Contribuições à psicologia do amor II) (1912). In: ______. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1970, p. 159-172. LAPEIZ, Sandra M. et al. O que é amor / erotismo / pornografia? São Paulo: Círculo do Livro, s/d. RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. SABINO, Mario. O antinarciso. Rio de Janeiro: Record, 2005. SONTAG, Susan. A Imaginação pornográfica. In: ______. A vontade radical. Trad. João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 41-76. VILLAÇA, Nizia. Erotismo é isto, pornografia é aquilo? Revista Z cultural. Ano III, n. 1, 2007. Disponível em: http://www.pacc.ufrj.br/z/ano3/01/artigo06.htm#_edn16.
* Renan Ji é Graduado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em Literatura Brasileira pela mesma instituição, com a dissertação O cheiro de Deus e o chiste de Roberto Drummond: fórmulas tradicionais de um romance contemporâneo e brasileiro. Vem atuando, principalmente, em pesquisa nos seguintes temas: mito, mitologia, cultura/literatura clássicas e suas re-atualizações nas poéticas da modernidade, literatura e cultura brasileiras, erotismo e pornografia na literatura. E-mail: <renanji@hotmail.com>.
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LITERATURA E FILOSOFIA, PSICANÁLISE, CINEMA E FOTOGRAFIA, CIÊNCIAS SOCIAIS E LITERATURA
o prólogo de
REI ÉDIPO1 de sófocles tradução de Flávio Ribeiro de Oliveira*
ÉDIPO1 Filhos, prole nova do prístino Cadmo,2 por que afinal vos prosternais assim, coroados com ramos de súplica? A cidade está plena de fumo de incenso, plena de preces, plena de prantos. Por julgar justo ouvi-lo não de núncios, filhos, eu mesmo vim aqui pessoalmente, eu, chamado Édipo, ínclito entre todos. Vai, velho, explica; é natural que fales no lugar deles: que atitude é esta? Tendes medo? Ou afeto (pois pretendo vos ajudar em tudo)? Eu seria insensível, se não tivesse dó de tal prosternamento. SACERDOTE Édipo que governas minha terra, tu vês nossa idade, junto a teus altares sentados: uns inda sem força de voar longe, outros opressos por velhice, sacerdotes – eu sou o de Zeus – e estes, elite dos moços. O resto do povo, coroado, se posta nas praças, em frente ao duplo templo de Palas e sobre a cinza profética de Ismeno. 1 Tradução feita a partir de edição de Jean Bollack. Quando sigo alguma lição diferente da de Bollack, indico-o em nota. O princípio que orienta esta nova tradução é o de buscar sempre a maior exatidão possível, do ponto de vista semântico, mas sem perder de vista o fato de que a tragédia grega era um gênero de poesia. 2 Lendário fundador de Tebas.
A cidade, como também tu mesmo vês, tempesteada demais, já não pode erguer o rosto desde os abismos da cruenta tempestade, perecendo nos brotos frutuosos da terra, perecendo nas tropas pascentes de bois e nos partos estéreis de esposas. E o deus ignífero se arroja e acossa a pólis, peste hostil, que faz vazia a casa de Cadmo3 – e o negro Hades se faz rico de lamentos e prantos. Sem te igualar aos deuses, eu e estas crianças nos sentamos em frente a teus lares julgando-te o primeiro dentre os homens nas coisas da vida e nas trocas com deuses, tu que chegando à cidade de Cadmo suprimiste o tributo que à dura cantora4 pagávamos, e isso sem nada a mais saber ou aprender de nós: diz-se e crê-se que nos reergueste a vida com a assistência de uma divindade. E agora, Édipo, que para todos és o mais forte, nós todos aqui, súplices, te rogamos: acha-nos alguma defesa, quer saibas por ter ouvido a voz de um deus, quer saibas de um homem. Pois mesmo os resultados dos conselhos, para os expertos, vejo mais viventes. Vai, melhor dos mortais, reergue a cidade! Vai, precata-te, pois por teu zelo pretérito agora esta terra te chama de seu salvador! Que não nos recordemos de teu reino como quem se pôs de pé e depois caiu: reergue sem tropeço esta cidade! Pois sob auspício fausto tu nos deste ventura outrora: agora, sê igual! Se reinarás sobre esta terra como agora a governas, governá-la povoada de homens é melhor do que vazia. Pois nem torre nem nave nada são privadas de homens que lá dentro vivam. ÉDIPO Meus filhos lastimáveis, vossos votos são-me notos, não ignotos: bem sei que sofreis todos, e sofrendo, como eu, não há nem um de vós que sofra igual a mim! Pois vossa dor só atinge um homem único, 3 A casa de Cadmo é Tebas. 4 A esfinge. Revista Olhar • ano 12 • no 22 • Jan-Jul 2010 126
um só e nenhum outro, mas minh’alma deplora junto a urbe, a mim e a ti. De modo que não é que me acordais do sono! Mas sabei que já verti muitas lágrimas, percorri muitas rotas nas errâncias da mente. E a única cura que, olhando bem, encontrei, pus em prática: o filho de Meneceu, Creonte, meu cunhado, expedi à pítica morada de Febo,5 para aprender com que ato ou verbo eu salvaria esta cidade. E o dia, comensurado com o lapso de tempo, já me preocupa: o que faz? Pois se ausenta além do razoável, mais tempo que o que convém. Mas quando ele chegar, então eu serei vil se não fizer tudo o que o deus declarar. SACERDOTE Mas tu falaste em boa hora: agora mesmo estes me fazem sinal de que Creonte se aproxima! ÉDIPO Ó rei Apolo, que ele venha com fortuna salvífica, assim como vem resplandecente na face! SACERDOTE Ao que parece, avança alvissareiro: se não, pancárpia de louro não lhe coroaria a cabeça. ÉDIPO Logo saberemos, pois está ao alcance da voz. Príncipe, meu parente, filho de Meneceu, que sentença do deus tu nos trazes? CREONTE Boa: digo que mesmo nossos fardos, se tomarem rota certa, podem todos ter bom êxito. ÉDIPO Mas qual é o oráculo? Pelo discurso presente, não fico nem encorajado, nem apreensivo. CREONTE Se queres escutar perto deles, estou pronto para falar – ou para entrar, se preferes. 5 Édipo enviou Creonte a Delfos, para consultar o oráculo de Apolo (Febo). “Pítica morada”, pois em Delfos Apolo é venerado com o epíteto “pítico” desde que ali matou a serpente Píton. Revista Olhar • ano 12 • no 22 • Jan-Jul 2010 127
ÉDIPO Profere-o diante de todos! Pois sofro mais pela dor deles do que por minha própria vida. CREONTE Relatarei o que ouvi do deus: rei Febo ordena abertamente que expulsemos da terra a podridão nutrida neste solo, e que não a nutramos a ponto de se tornar incurável. ÉDIPO Com que catarse? De que tipo é a desgraça? CREONTE Com o desterro ou com resgate do cruor por cruor, pois este sangue tempesteia a cidade. ÉDIPO Ele indica a fortuna de qual homem? CREONTE Outrora, rei, o guia desta nossa terra era Laio, antes de dirigires esta cidade. ÉDIPO Sei por ouvir dizer. Pois nunca o vi. CREONTE O deus nos manda claramente nos vingar, em ato, dos autores de sua morte, quaisquer que sejam. ÉDIPO E eles estão em que parte da terra? Onde encontrar a pista incerta deste antigo crime? CREONTE Ele disse que nesta terra. Quem procura, acha; quem negligencia, deixa escapar. ÉDIPO E é em casa, nos campos ou em outra terra que Laio topa com esta morte cruenta? CREONTE Viajou como consulente – como ele disse – e, depois que partiu, não mais voltou à casa.
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ÉDIPO Mas não viu nada algum núncio ou companheiro de rota, do qual se poderia ter obtido alguma informação útil? CREONTE Não, pois morreram – exceto um, que fugiu de medo e, do que viu, nenhuma coisa ao certo pode dizer – exceto uma. ÉDIPO Qual? Pois uma única informação pode descobrir muitas, se nos agarrarmos a um breve princípio de esperança. CREONTE Disse que bandidos o encontraram e mataram, não pela força de um só, mas com múltiplas mãos. ÉDIPO Como o bandido teria chegado a tanta audácia, se algo não tivesse sido tramado aqui com dinheiro? CREONTE Era o que se pensava. Mas, com Laio morto, não surgiu, em nossos males, nenhum protetor. ÉDIPO Mas, quando um reino cai assim, que tipo de mal vos entravava e impedia de averiguá-lo?! CREONTE A esfinge variocantante nos induzia a deixar o invisível e a olhar o que estava a nossos pés. ÉDIPO Eu vou fazê-lo visível desde o princípio, mais uma vez! Pois condignamente Apolo – e dignamente tu – vós assumistes pelo morto um tal desvelo, que, com justiça, também em mim vereis um aliado que vinga esta terra e o deus ao mesmo tempo. Pois não pelos amigos mais distantes, mas por mim mesmo dispersarei, eu mesmo, essa hediondez; porque quem quer que o6 tenha assassinado talvez pretenda se vingar também de mim com braço tal: portanto, ao defendê-lo, presto um serviço a mim mesmo. Rápido, meus filhos, pegai estes ramos súplices 6 Verso 139: leio ekeînon.
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e levantai-vos dos degraus; e que um outro aqui reúna o povo de Cadmo: eu farei tudo. Pois ou nos mostraremos venturosos, com a ajuda do deus – ou decaídos. SACERDOTE Levantemo-nos, filhos, pois viemos aqui precisamente por isto que ele promete! Que Febo, que enviou estes oráculos, venha também salvífico e sanante de males!
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Flávio Ribeiro de Oliveira é professor de língua e literatura gregas no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.
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Sin ruido, ‘abriendo camino’ hacia las urnas electorales en
Arráncame la vida de Ángeles Mastretta1 Ericka H. Parra*
Constitucionalmente la mujer mexicana no tiene derecho a votar y a ser votada para los puestos de elección popular. (Excélsior, 6 de junio de 1937)
Introducción Narrar las historias de la Revolución Mexicana sigue vigente – sobre todo ahora que se celebra su centenario. La escritora mexicana Ángeles Mastretta comenta en una entrevista que esto: “es porque hay gente que todavía se acuerda de los cuentos de aquellos tiempos y porque se parecen tanto a los actuales” (Mujica: 37).1 En la novela de Mastretta Arráncame la vida (1985) una de las imágenes que el personaje femenino Catalina Guzmán retoma en sus cuentos, - y de la que pocos se acuerdan-, es la líder Carmen Serdán. Catalina menciona su nombre en diferentes situaciones para hacer una crítica reflexiva a este olvido. Por ello, el propósito de este ensayo es analizar cómo el contra-discurso de Catalina reconstruye la participación de las mujeres en el movimiento sufragista mexicano. El proceso fundador de este hecho se representa en Catalina Guzmán, personaje principal de la novela de Ángeles Mastretta Arráncame la vida (1985), quien hace acto de presencia en las urnas. De hecho, las escritoras se han inspirado en la Revolución Mexicana para compilar una literatura fundacional a partir de las historias cotidianas de mujeres (Life Writing). Ángeles Mastretta, así como Rosario Castellanos, Nellie Campobello, Elena Garro, Elena Poniatowska, Guadalupe Laoeza, Silvia Molina y Laura Esquivel entre otras, dan un carácter precursor a las experiencias de personajes y voces femeninas en aquel contexto. En otra entrevista, la autora de Arráncame la vida (1985) subraya: “Para que resulte posible que haya mujeres que vivan y gocen los sesenta y ochenta, fue necesario que hubiera mujeres, minorías, que fundaron los comportamientos que ahora resultan habituales” (Coria: 102). Y, uno de esos comportamientos fundacionales tiene que ver con el ejercicio del voto de las mujeres. 1 Ángeles Mastretta en una entrevista con Mujica destaca la importancia de la Revolución Mexicana al conectarla con los acontecimientos del levantamiento de Marcos en Chiapas en 1994 y la idea de una posible revolución a fin de siglo. La escritora señala que mientras escribía Mal de amores: “Todos los años previos se parecían a la Revolución [mexicana] se parecían tanto a los años 94 y 95, y esta actitud de la gente, esta habilidad de soñar un país diferente y estar dispuesto a irse a las armas para tener algo distinto” (Mujica 39).
El crítico Saïd Sabia, por un lado, discute que las escritoras buscan formas para expresión la Historia en la novela y dejar evidencia de la presencia de las mujeres y la defensa de sus derechos civiles, como “actitud ideológica” (2). Carmen Rivera Villegas, por otro lado, inserta estas historias en el espacio histórico nacional como un acto de feminizar. Explica este término como: “las experiencias y la conducta del ser femenino para representar literalmente un aspecto histórico, cuya representación, ha sido reservada, en exclusiva, para la supuesta seriedad y profesionalismo crítico de la cultura masculina” (37). No obstante, ambos críticos sostienen que son los momentos históricos en crisis aquellos que ofrecen oportunidades a las mujeres para independizarse de los roles tradicionales que la sociedad les ha asignado. En este sentido, Catalina Guzmán representa una paradoja, pues continúa con la práctica de las formas de conducta tradicionales y, a su vez, logra en su trayectoria participar en los comicios electorales dentro de su rol tradicional. La historia reproduce la vida cotidiana de una mujer, esposa de una figura de poder, en el México posrevolucionario de la década del treinta. Este personaje, en un primer momento, aprende sobre política desde su casa, el espacio tradicional legado a las mujeres; mientras su esposo se desenvuelve en el espacio público como político del estado de Puebla. Desde su hogar, ella reinterpreta el mundo a partir de su experiencia personal que se enmarca entre los primeros cuarenta años de la historia mexicana del siglo XX. Ese periodo se inserta en la depresión económica internacional y la transición hacia los primeros sexenios de vida democrática en el país. Además, surgen las relaciones de poder entre el Partido Nacionalista Revolucionario (PNR) y los movimientos campesino y obrero de la Confederación de Trabajadores de México (CTM) y de la Confederación Regional Obrera Mexicana (CROM). Los personajes están ambientados por el contexto posrevolucionario. La historia de la novela comienza con la iniciación de Catalina y termina con su liberación, al quedar viuda. En el proceso de formación de adolescente a mujer, Catalina pasa, según Sabia, por: “etapas significativas en la vida de la mujer: esposa, madre, esposa engañada, esposa adúltera, primera dama de uno de los estados de México y, finalmente, viuda” (3). Al experimentar cada una, adquiere una nueva perspectiva sobre su condición de “mujer oficial” o esposa de un gobernador. Así, dentro de la paradoja que ofrece el sistema político, la ficción del personaje de Catalina promueve cambios. Catalina logra tomar un posicionamiento y tener una voz. Es decir, toma acción como sujeto al subvertir con un discurso irónico el sufragio más que aceptarlo pasivamente.
Entre el poder y el amor Mastretta define la novela como: “una historia sobre el poder y el amor” (Mujica: 38). El poder al que se refiere revela el contexto de la revolución mexicana. Como antecedentes al plano político, el líder ideológico Ricardo Flores Magón, en su discurso “A la mujer” emitido el 24 de septiembre de 1910, reconoce que la mujer no puede; “votar ni ser votada” debido a su condición social por lo que la ley: “la pone bajo la tutela del esposo” (Flores Magón: 33). Aun en estas circunstancias, el líder revolucionario demanda que se unan al movimiento armado para apoyar a sus hombres en contra de la opresión obrera. En otras palabras, Flores Magón promueve el movimiento de los trabajadores. Es decir, demuestra la carencia de poder de las mujeres, pues existe un movimiento social que sólo reclama su
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presencia para un cambio en los medios de producción sin profundizar en la inequidad de los roles sociales de las mujeres. Asimismo, los gobiernos posrevolucionarios de Lázaro Cárdenas (1934-1940) y de Adolfo López Mateos (1940-1946) incluyen a las mujeres sin autorizarles el derecho a ser candidatas. María Tuñón en Mujeres que se organizan (1992) debate que los constitucionalistas, los progresistas y los liberales de la época retoman las demandas de las mujeres con el fin de obtener más votos (29). El argumento de Tuñon, coincide con el discurso de Flores Magón, en que no se promueven cambios en el aparato social. En la historia de Arráncame la vida el poder de Andrés sobre Catalina se legitima en la boda, simbolizando así un espacio personal, sin que este evento deje de ser un asunto público. El personaje advierte que: “todo pasaba en los portales: desde los noviazgos hasta los asesinatos, como si no hubiera otro lugar” (9). De este modo, anuncia que los asuntos de mujeres son parte del colectivo de los poblanos y, por ende, son parte de la política mexicana. Cabe advertir que en ese momento, Catalina carece de poder. Ella se da cuenta de que Andrés ha cometido crímenes y confirma desde su voz de mujer adulta con la premonición, “De verdad en Puebla todo pasaba en los portales” (87). La narración de la historia desde una perspectiva del tiempo presente mantiene una constante reflexión sobre el pasado, la cual destaca con la frase: “[…] pasaron muchas cosas en este país” (9). Así crea conexiones entre su vida personal y los acontecimientos históricos. En contraste, Andrés Ascencio representa el poder patriarcal. Originalmente, Andrés es hijo de un arriero y de su condición económica humilde llega a poseer propiedades que adquiere en actos de corrupción. Si bien la madre de Andrés, doña Herminia, lo abandona, ella continúa siendo una figura protectora a medida que su hijo adquiere poder económico y político. La figura materna se mantiene al margen del autoritarismo de su hijo y observa pasivamente cómo el general despoja a otros de sus propiedades. Con la imagen de Andrés, Ángeles Mastretta representa la vida de un personaje complejo: al gobernador poblano Maximino Camacho (1937-1941). La historia se cuenta a través de la voz de su esposa, Margarita Ricardi. Sin embargo, Ricardi en el personaje de Catalina toma un primer plano porque, según Mastretta, “se acabó volviendo más importante que la voz del cacique” (ver Hind: 93). Andrés y su participación en el poder, no se aleja de las representaciones de otros personajes de la narrativa mexicana como, por ejemplo, “los héroes de la primera narrativa de la Revolución,” entre los que se encuentran, Luis Cervantes en Los de debajo de Mariano Azuela, Pedro Páramo en la novela de Rulfo, Ulises Roca en El agua envenenada de Fernando Benítez, o Artemio Cruz en la novela de Carlos Fuentes (Sabia: 4). En otras palabras, Andrés representa cómo un gobernador abusa del poder. Es decir, confirma la existencia de una jerarquía masculina en las relaciones sociales.2 Catalina describe esta jerarquía desde su primer encuentro, a los quince años, con el general revolucionario de treinta años. Con él experimenta su iniciación sexual que para la crítica Kimberly Borchard resulta “una violación” que después, paradójicamente, 2 Para este análisis, el poder patriarcal es entendido “como un sistema de dominación masculina que determina la opresión y subordinación de las mujeres” (Sendón de León 57). Para la marxista Heidi Hartmann, el concepto refleja un conjunto de relaciones sociales y jerárquicas entre los hombres y lo define como, “a set of social relations between men, which [has] a material base, and which, though hierarchical, establish[es] or create[s] interdependence and solidarity among men that enable them to dominate women” (101).
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se convierte en un “anhelo de sentirse realizada, de llegar a un estado de perfección que visualiza vívidamente como el mar” (153). Paradójicamente, Catalina inicia así una etapa de autorrealización ya que después ella desea experimentar el placer sexual y tomar un posicionamiento de sujeto y no de objeto. Por lo cual visita a una gitana quien la ilustra en la materia del sexo (14). Catalina encuentra una respuesta a su aprendizaje sexual. El crítico Álvaro Salvador propone que el texto en general es un relato “especial de aprendizaje.” 3 Por lo cual explica que se trata del Bildungsroman o novela de aprendizaje “típica de mujeres” o tradicional porque presenta elementos como la boda en los cuentos de hadas con la excepción de que el comienzo está situado en “un lugar inusual” ya que empieza con este evento social y culmina con la viudez (en Ortega: 43). Sin embargo, la boda entre Andrés y Catalina es otra manifestación del autoritarismo de Andrés. El general demuestra su poder desde los preparativos al someter a la familia de Catalina a su decisión. Ella aunque se describe como una adolescente inteligente y curiosa que se revela a toda forma de autoritarismo, su boda pasa a ser uno de los primeros actos de subordinación, representados en el padre de Catalina. La posición de Andrés conduce a la sumisión del padre, quien acepta indicando: “- Por las buenas, general, será un honor…”. La narradora, que es la voz adulta de Catalina, confirma que su padre era: “incapaz de oponerse” a los mandatos de Andrés (19). A través de la voz adulta, Catalina reflexiona que en su juventud ella aún no se daba cuenta de la actitud, -patriarcal-, de su futuro esposo. Después, continúa su historia, utilizando el mismo tono reflexivo: “Con los años aprendí que Andrés no decía nada por decir” (19). A partir de este aprendizaje, ella comienza un proceso de reflexión. Catalina describe con la boda el poder de un revolucionario que sigue una trayectoria paralela a los conflictos democráticos de la nación para controlar no sólo a una pareja, ni una boda, sino a un pueblo.
La trayectoria de Catalina para autorizar su voz Catalina propone la igualdad entre el hombre y la mujer desde el espacio privado. Para ello, en su edad madura gana este espacio en su propia habitación. Desde ahí, crea una forma de expresión propia. Ella contesta la pregunta que emite Andrés: “¿Quién te autorizó a irte de cuzca? – le dice”4. Andrés mantiene una actitud patriarcal con la cual denigra la imagen de la esposa a mujer liviana. Catalina utiliza el mismo verbo para tomar el poder discursivo en su respuesta que es: “-Yo me autorice-” (103) y cambia el tono de conversación con respecto a los guardaespaldas. Catalina agrega en tono irónico: “De todos modos yo juego en tu equipo y ya lo sabes” (103). Es aquí donde ella se reconoce cómplice de Andrés por lo cual: son iguales. La edad la ayuda a liberarse de las reglas sociales. A los treinta se da cuenta de que tiene casi el doble de edad y aún depende de Andrés, por lo cual reconoce: “Tengo treinta, quiero mandarme…” (180). En esta búsqueda de sí misma ella toma el control en el que al ser adulta reafirma su deseo de llevar a la práctica poder sobre sí misma. Paradójicamen3 Álvaro Salvador, escritor y profesor de la Universidad de Granada, presenta su ponencia en la conferencia celebrada en Madrid, España, del 21 al 23 de julio de 1999. Ángeles Mastretta es la primera escritora a quien se dedica la “Semana de Autor” en España, ver Ortega 42-45. 4 En el caló mexicano significa mujer que busca hombres o chismosa.
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te, logra su liberación con la muerte de Andrés. Ella se independiza al final de la novela: “Estaba sola, nadie me mandaba. Cuántas cosas haría, pensé bajo la lluvia a carcajadas. Sentada en el suelo jugando con la tierra húmeda que rodeaba a Andrés. Divertida con mi futuro, casi feliz” (270). Llegar a esta liberación, se rescata en la etapa fundacional de la literatura de mujeres al reflexionar sobre los espacios que existen para las mujeres, aunque Catalina no lo demuestra así con respecto a su futuro incierto que aún se inserta en una sociedad como la mexicana. La trama de la novela convoca a la reflexión sobre la igualdad a partir de la desigualdad social. Si bien Catalina goza del privilegio de aprender a leer y escribir, la inexistencia de opciones en la sociedad le impiden participar como líder política más allá del espacio que le ofrece Andrés Ascencio, como secretaria, anfitriona o primera dama. En este proceso de aprendizaje los personajes femeninos representan diferentes modelos de educación desde los cuales crean espacios de poder. Por ejemplo, las experiencias del convento tradicionalmente se han diseñado para la enseñanza de la lectura, la escritura y la aritmética, además de las labores domésticas. Catalina cuenta en primera persona: Yo no iba a la escuela, casi ninguna mujer iba a la escuela después de la primaria pero yo fui unos años más porque las monjas salesianas me dieron una beca en su colegio clandestino. Estaba prohibido que enseñaran, así que ni título ni nada tuve, pero la pasé bien. Todo se agradecía […] Aprendí que Benito Juárez era un masón y había vuelto del otro mundo a jalarle la sotana a un cura para que ya no se molestara en decir misas por él […]. (14)
La Iglesia aunque es una institución que ofrece un espacio para la educación de las mujeres, se encuentra dividida y en conflicto con la propuesta de una educación laica, según las leyes de Reforma emitidas por Benito Juárez en 1859-60. Aun cuando las monjas apoyan a Catalina clandestinamente para que continúe sus estudios, sólo logra estar preparada para ser ama de casa, al indicar: “Total, terminé la escuela con mediana caligrafía, algunos conocimientos de gramática, poquísimos de aritmética, ninguno de historia y varios manteles de punto de cruz” (14). En esos momentos, ella cumple con su rol ya que las mujeres son: “el ángel del hogar” (Flores: 144). Persiste el temor que su participación en las profesiones liberales descuide sus roles tradicionales. De hecho, Catalina confirma la falta de educación formal para las mujeres. En las clases de cocina, las experiencias de la narradora y de los personajes femeninos destacan la importancia de las mujeres en los cambios sociales. Clarita, instructora de cocina, les otorga poder a las mujeres siempre y cuando mantengan el modelo tradicional del hogar. Ella representa autoridad e incluso da continuidad al papel de la mujer en la sociedad patriarcal. Su interés es destacar el papel que ellas tienen ya que: “De las mujeres depende que se coma en el mundo y esto es un trabajo, no un juego” (29). Los códigos del lenguaje ofrecen un rol importante a las mujeres durante el periodo de la crisis posrevolucionaria, al mismo tiempo que limitan sus espacios. Así, aunque Clarita enfatiza que ellas contribuyen a los cambios sociales y son parte primordial en ellos, exige que se mantengan en la cocina. Tanto ella como Andrés destacan la idea de la mujer como “ser ignorante” y por eso ambos toman en serio su papel de instructores. Catalina demuestra lo contrario al ser autodidacta en su formación política pues se encuentra en constante búsqueda de respuestas a las dudas que le surgen. Para ello la
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estrategia es saber leer. Su fuente es el periódico El Universal e incluso relata la desaparición del director Juan Soriano del Avante por denunciar los actos corruptos de Andrés con respecto al despojo de ejidos a los campesinos, sacar dinero del país, asesinatos y actos corruptos (105). En la constante reflexión, sobre participación política al lado de su esposo, se genera la articulación de la voz de Catalina. A la experiencia de adquirir una voz, Woiwode la define como: “el uso del yo personal femenino” (9). En este sentido, la voz de Catalina en diferentes fases de su vida demuestra, según Rodríguez, que: “los sujetos narrativos se descubren a sí mismos, desde el marco de sus propias experiencias vitales” (39). La personaje se mueve de su papel tradicional a espacios que a veces subvierte, al mismo tiempo que se libera “de los prejuicios de su tiempo” (Núñez Méndez: 116). Hay una reflexión constante sobre su ámbito político, la corrupción y autoritarismo de su esposo Andrés Ascencio.
Sin ruido, hacia la legalidad del sufragio en el movimiento de mujeres En silencio, Catalina dirige su trayectoria hacia las urnas. La representación de la ausencia de las mujeres en los comicios electorales es una estrategia discursiva, que reclama la presencia de ellas y su participación en la toma del poder de los candidatos presidenciales. La ausencia en el ejercicio del sufragio de los primeros gobiernos mexicanos democráticos se rescata en tres capítulos de esta novela. Con ello se ambienta la crisis de la nueva democracia que inserta a las mujeres en un sistema político. En el caso particular, se representa la experiencia poblana, el abuso del poder del gobernador en turno y el interés de los constitucionalistas por apoyar el sufragio femenino. Andrés representa este modelo del oportunismo político que ve en el sufragio femenino más votos para tomar el poder. A Catalina le atrae la posibilidad de formar parte del aparato del poder cuando Andrés Ascencio se postula a gobernador y le pregunta: “-¿Entonces qué? ¿No quieres ser gobernadora?”(50). El contexto de esta propuesta es el descubrimiento de Catalina de que las historias de Andrés sobre su participación en la revolución son falsas y, por primera vez, Andrés le lleva a sus hijos anteriores a vivir a su casa, sin pedir la autorización de Catalina. La reacción del personaje, la vuelve crítica de los discursos de Andrés. Durante la campaña de Andrés a gobernador de Puebla, Catalina recuenta, destacando la narrativa oral, la propuesta de uno de sus discursos: Un día, en Cholula, empezó uno diciendo que varias mujeres se le habían acercado para preguntarle cuál podía ser su apoyo a la Revolución y que él les había respondido que ya el general Aguirre con su sabiduría popular había dicho una vez que las mujeres mexicanas debían unirse para defender los derechos de las obreras y las campesinas, la igualdad dentro de las relaciones conyugales, etcétera. (52)5
Con la palabra “etcétera”, Catalina niega la importancia de este discurso repetitivo en el cual las obreras y campesinas se subordinan al autoritarismo del gobernador y a los 5
El subrayado es mío.
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abusos de poder. No obstante, ella participa en la campaña electoral de Andrés, logrando atraer a las mujeres a ese evento masivo. Andrés aquí subraya: “la importancia de la participación femenina en las luchas políticas y revolucionarias” (53). El aprendizaje de Catalina, en esa campaña, consiste en reconocer que con la frase anterior Andrés miente y por ello toma la determinación de votar sin creer en él. Los discursos de Andrés dejan de tener legitimidad, así como ocurre en el contexto de los discursos de Lázaro Cárdenas quien focaliza su atención en la expropiación petrolera. Los discursos de Andrés y Aguirre aunque utilizan el voto de las mujeres en su proyecto revolucionario, desconocen el movimiento de mujeres y la lucha por sus derechos desde varios espacios. La paradoja está conectada más al temor que el pueblo siente con respecto al autoritarismo de Andrés que a la convicción de un gobierno democrático. Catalina cuenta que a los campesinos: “les daban miedo las elecciones porque había tiros y muertos. Así que temían la llegada del candidato y no les importaba salir a mirarlo” (53). Ante esta disyuntiva, la lectura de esta novela de autoformación, expone las causas de violencia de la nula participación de las mujeres en el sufragio durante su etapa fundacional en un marco de abuso de poder. En este proceso de concientización, Catalina proyecta en dos momentos su experiencia personal en las urnas electorales. En el primero, el enfoque del pueblo ocupa un primer plano. Existe una ausencia popular y ella se encuentra al lado de Andrés, describiendo el momento: Por fin llegaron las elecciones. Fui a votar con Andrés. Al día siguiente salimos en el periódico tomados de la mano frente a la urna. No había nadie más por quién votar, así que las elecciones fueron pacíficas, aunque no puede decirse que multitudinarias. Ese domingo las calles estuvieron vacías, la gente salió temprano de misa y luego se metió a sus casas sin hacer mucho ruido. Votaron los obreros de la CTM y los burócratas, quizá también uno que otro despistado, pero nada más. Claro que con eso tuvo Andrés para entrar legítimamente al Palacio de Gobierno y tomar posesión. (57)
Las reflexiones de Catalina registran la inexistencia no sólo de mujeres sino del pueblo en el proceso electoral que a su vez carece de opciones. Se requiere la urgente participación de las sufragistas para mantener la naciente democracia. Mientras tanto, Catalina hace acto de presencia después de la campaña electoral de Andrés por el estado de Puebla. Desde su vida adulta revisa los acontecimientos y concluye de un modo escéptico: “Yo creo que de todos modos no hubieran hecho demasiado” (57). Con esta declaración reconoce el temor popular al poder autoritario mientras ella en su juventud se distanciaba del pueblo. Por otro lado, al mencionar que no eran unas elecciones multitudinarias destaca la nula participación de partidos y del pueblo mexicano en este proceso. De hecho, hay apoyo de los obreros al gobierno populista de Andrés. En un segundo momento, Catalina adquiere conciencia para participar en las elecciones presidenciales de Rodolfo Campos, quien es del mismo partido que Andrés. Esta vez la participación de Catalina es más activa puesto que se opone a los valores de la sociedad patriarcal mexicana. Según Leasa Lutes, la heroína se redefine como sujeto actante que participa en la construcción de su historia personal y de la Historia del país. Mastretta, continúa Lutes, crea un discurso de resistencia en el personaje de Catalina, quien se enfrenta al poder y a la autoridad patriarcal representada en su esposo (1).
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Así, en las elecciones de Rodolfo Campos a la presidencia, que parodian al siguiente presidente Manuel Ávila Camacho (1940-1946), Catalina se une a Andrés y participa en el sufragio. Ella describe nuevamente el abstencionismo electoral no sólo de las mujeres sino de la población en general. Esta vez cuenta el hecho de que Carmen Serdán gana el voto para las mujeres de su estado natal: En casi todos los estados las mujeres no tenían ni el pendejo derecho al voto que Carmen Serdán había ganado en Puebla. Por primera vez éramos la avanzada, así que el 7 de julio amanecí más elegante que nunca y fui con Andrés a caminar y a presumir mi condición de su mujer oficial. (121)
Catalina se incluye en la voz del nosotros para subrayar la importancia de su participación; sin embargo, su condición de mujer oficial la distingue de otras mujeres que no votan debido al temor que resulta de la falta de educación sobre sus derechos civiles. Catalina reitera la presencia de Carmen Serdán6, líder del movimiento sufragista de estado de Puebla durante el movimiento revolucionario y democrático. Aunque Mastretta utiliza el tono irónico en la representación del sufragio, promueve como parte de su ideología la igualdad, que define como: “el derecho y la destreza de las mujeres para cargar con los mismos derechos y obligaciones de los hombres” (Coria: 103). En una entrevista con Emily Hind, la escritora propone romper el silencio y destacar los roles de las mujeres en la historia del país ya que: Casi no aparecen. Aparecen como grupos sociales, pero no aparecen como individuos. Muy pocas veces y por razones familiares como el caso de Carmen Serdán, pero mujeres había. Hemos empezado a saber que había mujeres. […] No tenían papeles protagónicos. (91)
El leitmotif de la imagen de Serdán es mostrar su participación en la historia mexicana y en el colectivo movimiento de mujeres.7 Catalina reconoce que las casillas estaban solas y por que los periodistas estaban presentes, ella posa para ellos. Según ella, finge: “como si fuera la tonta que parecía” (121). Acepta la representación metafórica de “la tonta” pero asimismo adquiere conciencia de lo que ocurre. En este periodo de realización, ella emite su voto por el opositor representando ese momento del sufragio como un acto simple y subversivo. Catalina concluye: “Voté por Bravo, el candidato de la oposición, no porque 6 Carmen Serdán apoya el movimiento de Aquiles Serdán y el Partido Antirreleccionista en contra de la dictadura de Porfirio Díaz. En la lucha armada que dirige Francisco I. Madero, ella, su cuñada y su madre son detenidas en la cárcel de la Merced, Puebla. Después del golpe de estado de Victoriano Huerta, Carmen Serdán participa en la Junta Revolucionaria de Puebla como enfermera. Continúa su vida política y apoya el movimiento sufragista de mujeres. Muere en 1948. Participa en la campaña electoral del primer presidente Francisco I. Madero. El movimiento de mujeres tiene presencia en los sindicatos y la política en contra de Porfirio Díaz (Tuñon Pablos: 20). 7 El movimiento sufragista mexicano data de fines del siglo XIX. Al principio reclaman los derechos maternales, el acceso a la educación y la salud, y la participación política. Después del movimiento armado, en 1915, se convoca al Primer Congreso Feminista en Yucatán al que asisten 677 delegadas. Al respecto en una entrevista a Adelina Zendejas del Partido Antirreleccionista comenta: “El Congreso Feminista de Yucatán es un fiasco porque participaron mujeres que no estaban ligadas a las obreras y a las campesinas. Es un congreso de la pequeña burguesía (donde) se perdieron en divagaciones, en versos y hasta en pleitos entre ellas” (en Tuñón Pablos: 23).
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lo considerara una maravilla, sino porque seguramente perdería y era grato no sentirse ni un poco responsable del gobierno de Fito” (121). Esta participación minoritaria demuestra que hasta ese momento son pocos los estados mexicanos que otorgan el voto a las mujeres. Al igual que la boda, el sufragio de las mujeres resulta una representación teatral. El gobernador propone llevar un músico en su campaña para conseguir el voto de las mujeres debido al impacto que causa en ellas. Andrés compara la representación artística con la política, comentando con Fito: Tiene que ser un buen político – decía Andrés –, es un excelente actor, un teatrero. Lástima que eso de la caravana no se usa entre nosotros, pero tendría buen efecto. ¿Por qué no lo impones, gordo? – le dijo a Fito –. Nada más mira a nuestras mujeres, están enloquecidas. Yo voy a ensayar lo de la caravana si tú me prometes concederles el voto a las señoras. (157)
De hecho, el general reconoce que aun en el siguiente sexenio democrático existe la ausencia del sufragio de mujeres que se ha venido proponiendo e insiste en que el voto de las mujeres es imprescindible para conseguir la presidencia del país. De hecho, en ese momento las comunistas y las penerristas se encuentran organizando al pueblo. En el contexto cardenista, las mujeres se hacen promotoras del “desarrollo y agentes del proyecto estatal” (Tuñón: 33). De acuerdo con Rivera Villegas, las diversas ideologías tienen el propósito de transmitir los esquemas y los programas ideológicos dentro de una política de la cultura patriarcal (38); más que un reclamo de los derechos de las mujeres como ciudadanas. Por ello, surgen divisiones ideológicas y de clase con respecto a la no-reelección, las mujeres del movimiento cuestionan la legitimidad del sufragio por considerarlo una estrategia del presidente Cárdenas y del proceso electoral. En las elecciones de Manuel Ávila Camacho, la participación de las mujeres llega a ser una estrategia partidaria y de poder. La democracia mexicana enfrenta el conflicto de la expropiación petrolera que resta importancia a la legitimidad del derecho al voto de las mujeres. La Constitución de 1917 aunque otorga la igualdad de derechos individuales y laborales, el Congreso Constituyente evita el ejercicio del voto.8 El argumento de los congresistas se centra en que las mujeres sólo se han dedicado a la familia y al hogar y por lo tanto no “han desarrollado una conciencia política” (Tuñón: 21). Sin embargo, al proponer la interrogante: “¿Por qué no lo impones, gordo?”(157), el proyecto democrático que implica el sufragio se enmarca en un modelo autoritario que al final deja fuera del proceso electoral a las mujeres. Andrés representa el conflicto causado desde el gobierno de Cárdenas y que es hasta el gobierno de Miguel Alemán en 1954 que se acepta otorgar el voto a las mujeres, al subrayar que: “la Cámara tiene un proyecto de ley que nunca le aprobó a Aguirre” (157). Es decir, implica una estrategia política que sólo había quedado en el discurso presidencial de los primeros gobiernos democráticos.
8 Se sugiere la lectura del artículo de Gabriela Cano “Revolución, feminismo y ciudadanía en México” y de Marta Zapata Galindo “El movimiento feminista en México: de los grupos locales de autoconciencia a las redes transnacionales.”
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Conclusión En general, la participación de Catalina en los comicios electorales representa el rol fundacional de aquellas mujeres invisibles y subordinadas a las que se refiere la cita del Excelsior de la viñeta. La ironía de los ‘cuentos’ de Catalina sobre las elecciones, muestra que existe la presencia de un movimiento de mujeres que como la líder poblana Carmen Serdán promueven los comicios electorales democráticos. La participación de la protagonista en las elecciones en diferentes momentos se convierte en un leitmotif fundacional que destaca la presencia de las mujeres en las urnas. Desde la vida cotidiana de Catalina los lectores aprendemos que dentro de un sistema autoritario, el sistema educativo con respecto a los derechos civiles de las mujeres o de una educación formal es inexistente. Los espacios donde las mujeres se mueven las limitan a la cocina y las labores del hogar sin permitirles salir al espacio público aun cuando en los discursos de Flores Magón, en el contexto de la Revolución Mexicana, las convocan a una participación activa. En el espacio del convento y la cocina, Catalina lee, discute sus ideas y reconoce la importancia de su papel protagónico en las elecciones del segundo gobierno democrático a nivel presidencial. Si bien el personaje femenino reconstruye un ambiente en el cual persiste el temor de un pueblo al autoritarismo de un gobernador, las mujeres en la historia mexicana son activas y se proponen como candidatas en los estados de Yucatán y Michoacán, lugar donde se desconoce a la candidata. En Puebla, Carmen Serdán se destaca como parte del colectivo de los hermanos Serdán más que una líder que apoya el derecho al voto de las poblanas. De este modo Ángeles Mastretta reconstruye una parte de la historia en la cual las mujeres forman parte en el reclamo de derechos para participar en el voto y ser electas. Así, Mastretta reconstruye con un leitmotif la ausencia de las mujeres en las elecciones y la desconocida participación de Carmen Serdán. La lectura de Arráncame la vida convoca a que haya más participación de mujeres en las urnas electorales puesto que existe un modelo fundacional en el que existe una presencia activa. Los derechos de la igualdad en el sufragio se han hecho válidos en cada periodo electoral pese a las diferentes crisis económicas y políticas de los gobiernos mexicanos. En el espacio democrático, esta lucha se encuentra en constante movimiento. El discurso del acto de ausencia/presencia de las mujeres en las urnas electorales forma parte de la etapa fundacional de la narrativa en el ejercicio del derecho al voto.
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* Ericka H. Parra é Doutora e professora assistente na Valdosta State University. E-mail: <ehparra@valdosta.edu>.
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RESENHA
CRÔNICAS DE BUSTOS DOMECQ/ NOVOS CONTOS DE BUSTOS DOMECQ1 Wilson alves-bezerra*
A
estréia literária de H. Bustos Domecq aconteceu com a publicação do conto policial As doze figuras do mundo na revista literária portenha Sur, em 1942. Publicaria ainda quatro livros, sendo que o primeiro deles – Seis problemas para Dom Isidro Parodi (1942) – seria incluído no Queen’s Quorum (1951) do escritor norte-americano Ellery Queen, como um dos cem melhores já publicados no gênero policial. Nele, o detetive Parodi solucionava os casos de dentro da prisão, onde se encontrava cumprindo pena.1 Seus dois últimos livros, Crônicas de Bustos Domecq (1967) e Novos contos de Bustos Domecq (1977), são agora publicados conjuntamente. Quem assina a obra, como não poderia deixar de ser, são os argentinos Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, os criadores do heterônimo. Trata-se do caso mais produtivo de heteronímia nas letras latinoamericanas: um autor de escrita e trajetória próprias. É surpreendente que, duas décadas após a publicação de seus livros policiais, Bustos retorne com as Crônicas, exercitando o que atualmente se tem chamado de “crítica cultural”. Com um estilo fanfarrão e grandiloqüente, ele apresenta ao leitor perfis de escritores e intelectuais singularíssimos. Um dos níveis possíveis de leitura é a sátira ao mundo cultural de Buenos Aires; entretanto, há mais. Os autores fictícios resenhados inquietam por suas idiossincrasias. Vejamos alguns exemplos. César Paladión, no texto de abertura, é retratado como o escritor que tomou para si um livro de um poeta uruguaio e o publicou sob seu nome. Plágio? Bustos diz que não, pois para ele a virtude de Paladión foi a de não “sobrecarregar o já opressivo corpus bibliográfico ou incorrer na fácil vaidade de escrever uma só linha” (p. 41). Na crônica Naturalismo ao dia, Lambkin Formento, crítico literário, transforma a tautologia em métier. Após ler um texto do século XVII sobre um império em que a cartografia alcançara a perfeição ao construir um mapa em tamanho natural, ele decide 1
Ed. Globo, 2010. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. Uma versão condensada deste texto foi publicada sob o título “A volta da dupla Borges e Bioy” no caderno Sabático, de O Estado de São Paulo, no dia 20 de março de 2010.
que “a descrição do poema, para ser perfeita, devia coincidir palavra por palavra com o poema.” (p. 59). E passa a copiar as obras analisadas, fazendo disso seu exercício crítico. Morre antes de concluir a descrição letra a letra da Divina Comédia, de Dante. Reconhecem-se, nesta sucessão de tipos singulares e grotescos, ideias filosóficas e temas presentes em textos de Borges, como o fundador Pierre Menard, autor del Quijote (1942), publicado sob a forma de resenha na revista Sur, e só depois deslocado à condição de narrativa no livro Ficções. Lá, Menard era mostrado em sua uma tentativa de escrever, literalmente, no século vinte, o D. Quixote, sem recorrer a Cervantes. As Crônicas de Bustos Domecq podem ser entendidas como desdobramentos desse texto borgiano, porque tratam de homens que se propõem a operações brutais com as letras. É possível pensá-las em seu diálogo com o conjunto da obra de Borges, e postular que os personagens-escritores vivessem as fantasias daquele autor, como a tautologia deliberada, a duplicação e o plágio. É certo que o olhar cáustico e a retórica fanfarrona de Bustos conferem a estes pobres diabos uma dimensão grotesca, que nunca se veria numa página borgiana. É o que se lê no trecho: “Em 1931, a disenteria coroa o que a prisão de ventre havia iniciado” (p. 66). Entretanto, mais que simples diversão ou sátira, constatam-se homologias. O texto Do rigor na ciência (1960), de Borges, é lido por Lambkin na crônica já citada; além disso, sua impossibilidade de reflexão e articulação lembra muito a de Funes, o personagem borgiano de memória infinita. Numa palavra, os autores resenhados por Bustos são desleitores de Borges, presos em suas tramas, tal como preso ficara numa ilha o personagem anônimo do romance de estreia de Bioy Casares, A invenção de Morel (1942). De Bioy Casares, Bustos guarda também o hábil uso das notas de rodapé, nas quais abre-se o espaço para comentários impagáveis e contra-argumentos em relação ao que diz o narrador, estabelecendo uma divertida rede intertextual. Infelizmente, na edição brasileira este expediente do “rodapé irônico” concorre com as “notas sérias” do editor e da tradutora, as quais, ao buscarem ser informativas, frustram o leitor. O segundo livro, Novos contos de Bustos Domecq, traz experiências de outra natureza. Há exemplos de contos bem divertidos e de mistério, em que não há propriamente um crime a ser desvendado, mas um crime sendo construído (como Uma amizade até a morte e Além do bem e do mal). Neles, Bustos é uma espécie de destinatário de histórias alheias, nas quais, no máximo, atua por omissão. Poderiam ser qualificados como anticontos de mistério. Caso bem diferente ocorre em A festa do Monstro, relato de caráter naturalista em que vemos a narração em primeira pessoa de um membro da Juventude Peronista contando, sob a forma de uma confidência à namorada, o linchamento de um jovem judeu antes de um comício de Perón. A violência é descrita com prazer pelo narrador, em meio a gracejos amorosos à sua querida Nelly. Este conto mereceu longa análise de Davi Arrigucci Jr, no erudito prefácio à edição brasileira. O que se nota após a leitura de Bustos Domecq é um exercício literário fértil, que permitiu a criação de um espaço de diálogo com as obras ortônimas de Borges e Bioys; e também o exercício da crítica – inclusive política – a seu entorno. Bustos Domecq, este duplo falastrão, permitiu a Borges e Bioy certas licenças e experiências para as quais não haveria espaço em sua obra autoral, contida, cerebral. Ele é a excrescência necessária à elegância de lordes dos dois parceiros.
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Em tempo, Ellery Queen – que selecionou o livro de estreia de Bustos como um dos cem melhores do gênero policial – é também ele um heterônimo, criado pelos primos novaiorquinos Frederic Dannay e Manfred B. Lee, contemporâneos de Borges e Bioy. Nos EUA, o mistério em torno à identidade de Queen foi sustentado de 1929 até 1971.
Jorge Luis Borges
Bioy Casares
*
Wilson Alves-Bezerra é Professor do Departamento de Letras da UFSCar, tradutor e autor de Reverberações da Fronteira em Horacio Quiroga (Humanitas/FAPESP).
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UM
SUICÍDIO EXEMPLAR adalberto triPiCChio*
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a Redação da Folha de São Paulo 30/09/1992: Desvendou-se finalmente o mistério que envolvia o suicídio de Eduardo da Matta Castro Neves, levado a cabo na primavera de 1982. O encontro do Diário do suicida há questão de uma semana, devassou as trevas e trouxe à luz, a tragédia espantosa que o levou ao recurso extremo de pôr fim à existência.
Durante dez anos, o enigma desafiou a argúcia dos investigadores e de quantos se dedicaram ao caso. Aos leitores esquecidos dos fatos, rememoremos rapidamente as circunstâncias que rodearam o acontecimento. Se fosse realizado um inquérito para se apurar quem na sociedade paulistana teria razões para suicídio, sem dúvida, Eduardo da Matta seria o último apontado. Milionário e talentoso advogado criminalista, sempre maravilhava o corpo de jurados com seus argumentos de mestre. Era poeta, orador sempre eleito pelas turmas, era recebido com aplausos de admiração e palavras de carinho em todos os ambientes. Rapaz atlético, e tido belas garotas como belo, a harmonia do físico se casava à agilidade do espírito. Estava às vésperas de núpcias, em um desfilar interminável de alegrias junto de sua noiva. Pois bem, subitamente em linda manhã de sol, Eduardo da Matta estourou os miolos com uma pistola por entre os dentes. Nem um bilhete sequer, um pequeno indício, uma pista que permitisse descobrir o que o levara ao desespero letal. A tragédia repercutiu dolorosamente, como as ondas do lago que recebe uma pedrada. A noiva tresloucada declarou aos soluços e prantos, que Eduardo era um homem genial e, por isso mesmo, incompreendido. Que o mistério de sua morte jamais seria desvendado. Dias após ela falece, não suportando a ausência do Outro, tão amado. Agora, entretanto, o destino como um invisível investigador, trouxe a trama à tona. Com o alargamento de uma de nossas principais avenidas da cidade, foi desapropriada e derrubada a mansão que vira Eduardo nascer e morrer.
Na demolição, os trabalhadores acharam um pequeno cofre de aço. Ato contínuo comunicou-se ao DEIC, que compareceu ao local para pinçar uma possível evidência ao processo que já estava arquivado como sem solução. E, assim foi. Encontraram dez cadernos de duzentas folhas. Estavam datados na capa, e formavam, no seu conjunto, um sigiloso Diário de Eduardo da Matta. Transcrevemos as últimas páginas do caderno final: 17/setembro Serei, de fato, um homem genial, como todos dizem? Teria eu apenas algum talento específico para simular um blefe? Seria somente um grande espertalhão? Essas idéias circulam obsessivamente em minha cabeça. Parece que vou enlouquecer. Esse dilema tira-me permanentemente a tranqüilidade de espírito. Meu Diário amigo, lembro-me bem da primeira vez em que fui acometido por essas questões. Foi após a festa de formatura no ginásio. Todos vieram correndo até mim. Cumprimentos, elogios por ter sido o primeiro da turma e pelo discurso que fiz. Na confusão das vozes, alguém disse mais alto: “Foi um discurso genial. Parece que Demóstenes falou depois de 20 séculos de silêncio”. Aqueles elogios penetraram meu cérebro, e ficaram ecoando por entre minhas têmporas cranianas. Qual o Sermão das Quatro Palavras: “Eli! Eli! Lama sabachtani” gritavase, no mesmo número, dentro de mim: “Mas que homem genial!” Seria o meu blefe no momento de minha Paixão? “Sou um gênio”, repetia envaidecido para mim mesmo, na ingenuidade da adolescência. “Um grande gênio!” Repeti muitas vêzes e adormeci pronunciando: “Gênio!” Sonhei aquela noite que estava na Acrópole grega diante de Bossuet, Demóstenes e Cícero. Vi-me amarrado a um pilar de pedra, acusado de plagiador pelos três oradores. Demóstenes, por eu lhe ter roubado o poder da lógica. Bossuet, sua convicção e Cícero, sua elegância de estilo. Lembro-me que protestei: “Sou um gênio, sim”. Os gritos acordaram a todos em casa, a mim também. Desde aquele momento, por entre sono e vigília, essa idéia duvidosa nunca mais arrefeceu. Nestes últimos dias presentes, tenho-me preocupado mais que nunca. A causa disto é Layla, minha noiva. 18/setembro Hoje foi realizado o almoço que me ofereceram pela publicação do meu livro de versos Desencanto. O poeta Geraldo Carneiro saudou-me analisando o livro e concluiu: “Estamos diante de um poeta de genialidade latente. Quando ela eclodir, Milton, Dante, Homero e outros serão seus pares”. A frase por pouco não me fez desfalecer. Empalideci, agüei-me em suor, conseguia ouvir minha prosaica taquicardia. E, a festa continuou. Contudo, minha mente monoideizada repetia milhares de vêzes a frase do orador. Mas, quando desabrochará essa genialidade que tantos me apontam? Quando traduzirei em obras os potenciais com que me equipam? Enfim, quando? Sei muito bem que não há santo sem platéia. Eu se eu vir a perdê-la, qual será meu verdadeiro patrimônio pessoal? Mais tarde, nos tempos de faculdade, achavam minhas poesias cheias de promessas e com toques de gênio. O que emperrava, então, à eclosão? O que bloqueava a marcha de crescimento do meu potencial, qual pedra que sobe a rampa, mas vai abaixo em seguida, eternamente? Quem o saberá?
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21/setembro Layla entrou pelo escritório, envolta em aroma de um jardim. Sentou-se no espaldar da cadeira, cruzou as belas pernas, piscou os olhos envoltos por longos cílios e cumprimentou-me sorridente: “Então, querido ainda é aquele caso do latrocínio? É claro que já o venceste, mas lembre que é preciso escrever uma defesa genial”. Layla, querida Layla! Hoje, cinco anos passados, ainda é a mesma Layla dos primeiros dias. Quando conheci Layla, meu caro Diário, fiquei radiante, lembra-se? Contei-lhe que conhecera uma garota morena de olhos grandes e ternos com imensos cílios. Disse que chamava Layla e trajava um vestido azul claro como o céu. Disse-lhe dos longos passeios que fizemos, as horas que transbordaram em felicidade, as mão unidas, os lábios colados. Lembra o dia em que a pedi em casamento para o fim de ano? Entretanto a felicidade tantas vêzes sonhada, não mais se realizará. Layla que tanto me ama e que eu desejava para minha companheira e meu consolo é meu algoz. Ela costuma me dizer: “Se você não tivesse os prenúncios de um gênio, não casaria com você. Acho os demais homens fúteis e tolos, só um gênio contentar-me-ia”. Compreende, meu amigo Diário, porque me desespero. Especialmente agora, em que se aproxima meu casamento, ainda não consegui arrancar de minha circuitaria cerebral, as idéias geniais que todos afirmam que possuo. É possível que nunca o consiga. É possível que elas não existam. Mas Layla não pode saber disso. É preciso que ela continue a acreditar que sou um gênio, porque eu não suportaria o sofrimento de, ao decepcioná-la, perdê-la. Meu orgulho abater-se-ia lacerando minhas carnes. 28/setembro Afinal, por que eu não sou um gênio? Que processo neural de reações de meu córtex cerebral será necessário para que surjam os pensamentos geniais e as obras imortais? Ou, os espiritualistas estão com a razão, o que é provável, e a inteligência localiza-se nesse algo imaterial, mas presente, que é a alma. Não tenho dúvidas que sou mais inteligente do que todos os que me rodeiam. O que faltará para eu poder galgar na escada do talento os degraus que me levarão ao cimo? Aproveitarei os momentos que me sobram para cuidar desse infernal problema. Preciso ler, devorar livros. Quem sabe, as linhas e, principalmente as entrelinhas, o subtexto dos sábios, fornecer-me-ão a chave do problema. 30/setembro Layla esteve hoje aqui. Bela como sempre. Conversamos sobre filosofia, ciência, religião. Em certo instante calou-se e pousou os olhos em um ponto imóvel, ao longe. Fiquei observando-a durante alguns minutos. Afinal, ofendido por não ser lembrado, perguntei-lhe no que pensava. Voltou o olhar para mim e disse algo assim: “Estava pensando o quanto será aplaudido, querido, quando aplicar o talento que possue. Não imagina como eu me sentia feliz ao seu lado em meu devaneio. Contemplava-o plena de orgulho. O povo aplaudia quando passava, o seu nome impresso nas manchetes dos jornais, as mulheres cobiçando-o com os olhos. Em viagens: Londres, Paris, Viena, às expensas do nosso generoso governo, que desejava mostrar ao mundo o grande gênio nacional”.
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Diário amigo, eu tive de me conter para não explodir em um ataque de pânico. Naquele instante tive impulsos de esganar Layla, fraturando seu hióide. Estressado simulei uma aparência calma e serena. Sorri tristonho, a lamentar o quão longe estaria a auspiciosa data. Layla enlaçou-me com os braços morenos e colou seus lábios carnosos e vermelhos aos meus. Enquanto durou aquele beijo, senti-me o maior dos gênios. Enfim, quanto mais devotos os fiéis, mais o santo é milagroso. 3/outubro Hoje li El hombre mediocre. Ingenieros não pode ter razão. Não é possível que o gênio seja uma simples coincidência. Não é possível que ele surja no instante exato em que dele se necessita. Não, o gênio não surge em um instante dado. Ele surge em qualquer época, qualquer momento, ele é atemporal. E desde que aparece, no lugar em que surge, eis o seu clima. O gênio é, sobretudo, uma antecipação. Geralmente incompreendido em sua época, seus trabalhos só são reconhecidos anos após sua morte. Em um ponto, sou forçado a concordar com Ingenieros, um perspicaz pensador argentino, o gênio é um desajustado. Sofre náuseas ante a rasteirice alheia. Aparecem engulhos gastro-esofágicos na contemplação ridícula do ambiente de seu cotidiano. Despreza as honrarias das instituições oficiais, o compadrismo das igrejinhas, os gestos que levam à exclusão do Outro por mesquinharia, pré-julgamento, diferenças sócio-econômicas, a formar verdadeiras castas. O gênio quer vencer só, contra tudo e todos. E a mediocridade vinga-se covardemente, apunhalando-o traiçoeiramente, chamando-o de louco. E por ser tão desentendido, generalizou-se com o passar do tempo a crença no binômio gênio/louco, mera degeneração cerebral. 7/outubro Não tenho lido estes dias. Falta-me foco. Estranhos fenômenos me têm sucedido. Outro dia olhando-me ao espelho, achei incrível que aquele fosse o meu corpo, o meu rosto. Achei absurdo que o cogito, o ser pensante pudesse encerrar-se em tal arcabouço de carne, sangue e fezes. Pensei que sou muito mais do que aquele boneco de ventríloquo. Deve haver algo dentro de mim, que não se submeta aos meus limites disformes. Algo que transcenda. Quase enlouqueci nessa seqüência de idéias. 9/outubro Layla tem-me visitado todos os dias. Bate sempre na mesma tecla. Gostaria tanto que ela falasse dos filhos que teremos, da felicidade que os deuses por compaixão nos concederão. Mas é inútil, só me fala em questões culturais, só me pergunta sobre os meus progressos mentais, só lembra que tenho intelecto. Ontem remexeu as gavetas de minha escrivaninha à procura de poesias. Disse que suspeitava que eu escondia os escritos e concluiu em um muxoxo triste: “Será por medo que meus olhos os profanem?” E como eu me aborrecesse abriu o mais alegre sorriso e disse: “Sei que não é tão mau assim. Você esconde seus versos porque quer. Afinal, todo gênio tem seus caprichos”. 12/outubro As minhas crises de angústia sucedem-se ininterruptamente. Duram minutos, que
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parecem eternos. Creio que estou enlouquecendo. Dia a dia mais estou perdendo o meu contato vital com a realidade. Hoje me perdi em pensamentos sobre o suicídio. A idéia brotou espontânea, invadiu-me o ser e não me abandona mais. Sinto um indefinível, mas confesso prazer em acariciá-la ternamente em minhas recônditas regiões psíquicas. Lembro-me da frase de Dryden: “Há um prazer secreto na loucura que só os loucos conhecem”. Afinal, gênio ou louco, que sou eu? Resta-me, contudo, meu Diário, um consolo inefável: felizmente não sou normal. Os pensamentos que me ocorrem, as reações que tenho, o problema que me flagela, conduzem-me inevitavelmente a essa conclusão. Quanto me desesperaria se fosse normal, sem jactância, mas pleno de sinceridade, se eu visse automaticamente com o mesmo olhar de todos os que me rodeiam. 13/Outubro Li Buffon. Como é detestável esse enjoado francês. E como redondamente erra. Imagina. Diário amigo, diz ele que a genialidade é uma infinita paciência. Mesmo que ele entenda a paciência como uma grande força de vontade, de perseverança, da persistência na busca de um ideal. Mas, e os gênios precoces? Mozart desde a infância, Chopin, tão ridiculamente açucarado pela cinematografia. Chopin, que parece tocar um piano de cordas feitas com as fibras de nossa cordoalha cardíaca. Não, Buffon errou. O gênio não é apenas a pertinácia. Deve haver algo mais, algo que a precocidade de alguns, mostra ligar-se à filosofia, aliás, entre os gênios que mais admiro. Aristóteles, Kant, Jaspers. Aceitaria a frase de Buffon, se paciência a que ele se refere fosse o acúmulo de talento no decorrer evolutivo de muitas gerações. Transmitido pela genética, esse talento mais e mais aumentaria, e o gênio seria o máximo desta concentração filtrada pela seleção natural. Haveria então um equilíbrio entre a espécie e o indivíduo. Mais um pouco e o talento acumulado nos genes, provocaria um desequilíbrio por mutação no ente que poderia levar a uma involução aniquilada, ou não, pela seleção natural. Assim vejo porque a genialidade faz fronteira com a loucura. 14/outubro Hoje passei o dia com Layla. Estava infantilmente bela, futilmente discursiva e superficialmente encantadora. Não me falou de genialidade (!), nem de pesquisas científicas ou problemas morais. Disse-me que o seu enxoval estava pronto, que esperava exultante e ansiosamente pelo nosso casamento. Fomos ao cinema. Era o lançamento de Blade Runner, dirigido pelo estupendo Ridley Scott. Harrison Ford, um ator sempre elegante e discreto. Nunca vira nada parecido. Efetivamente, achei que este filme inaugurava uma nova fase na liturgia cinematográfica. Layla não gostou, ou não entendeu. Disse que ficção científica era para lunático. Senti-me superior a ela, o que, em absoluto, não faria de ninguém um gênio. 19/outubro Ontem passei o dia bebendo. Invadiu-me uma tendência irresistível para o suicídio. Na rua estive a ponto de entrar em uma estação de Metrô, e lançar-me aos seus pés. Em casa quase cortei os pulsos. Era a autodestruição personificada. Fui a um piano-bar e lá fiquei. Tomei quase um litro de Logan. Hoje levantei nem triste nem alegre. Era um tédio
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integral com um pouco de dor de cabeça. Queria ser um anônimo das ruas, uma vontade de ser outro. 28/outubro Não durmo há duas noites. Estou pálido, magro, fatigado. Layla foi passar uma semana na praia e tudo ignora. A idéia envolveu-me inteiramente tal lula gigante com seus tentáculos psíquicos. Jamais poderei ter um átimo de felicidade e cada minuto que vivencio é um século de tortura, pois mais me aproxima do túmulo sem realizar algo de genial, como todos esperam. Sei que sou apenas, um indivíduo altamente colocado na escada do talento, mas ainda não atingi o cume. Se tivesse a certeza do que é o gênio, facilmente poderia saber se sou ou não um deles. Mas a ignorância sobre o assunto, as teses variadas e nunca provadas impedem qualquer conclusão. A ficar na expectativa desta verificação epistemológica com o fluir dos anos, ou morrer na dúvida, prefiro esta última. Todos irão ganhar com meu suicídio. Eu, porque não me decepcionarei comigo mesmo, o que poderia acontecer se vivesse. Além disso, fico livre da contemplação deprimente dos medíocres que me rodeiam. Os outros, porque sempre guardarão na memória a lembrança do amigo que era gênio e porque era gênio suicidou-se. Nunca ninguém duvidará da genialidade que levei para a sepultura. Até Layla pensará assim. Não casaremos, porém, jamais correrei o perigo de ler a decepção naqueles olhos que tanto amo. Ela terá de mim a mais doce das lembranças. Atribuirá meu suicídio a qualquer imprevisto insondável de minha genialidade. Serei uma vítima do meu próprio talento. Jamais descerei do pedestal em que ela me colocou. Serei sempre o homem perfeito, o seu adorado incompreendido. Layla morrerá sem suspeitar a verdade. Gostaria de sepultar comigo o meu segredo. Mas é preciso que alguém aproveite minha tragédia. Que o exemplo de meu caso oriente todos no sentido de que em hipótese alguma imponham a qualquer pessoa a responsabilidade de ser gênio. Se algum dia neste planeta surgir um gênio, ele o saberá e o provará sem auxílio de ninguém. Por esses motivos esconderei meu Diário sob as tábuas do assoalho de minha casa. Farei desaparecer todo vestígio que permita a sua descoberta. Daqui a cem, duzentos anos, quando for demolida a casa, minha história virá à luz. Já então mortos todos os meus contemporâneos, o segredo poderá ser desentranhado sem que motive qualquer remorso ou decepção, mas seja unicamente um profundo ensinamento. Voltando à manchete da Folha de São Paulo, de 30/09/1992, a Redação termina a matéria com um irônico recado: “Escolha muito bem a sua noiva”.
* Adalberto Tripicchio é contista, músico, neuropsiquiatra e Doutor em filosofia pelo DFMC da UFSCar.
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Poesiazinhas das pequenas
grandes dores
Ana Claudia Yamashiro Arantes*
Mancha aquarelada Sei que o que sei não se tinge Com tinta da verdade A história de uma vida Se fosse tinta era algo sério definitivo solidamente escrito tinta não se apaga No máximo, faz-se deletéria Afim com toda a matéria Ludicamente não se tinge mancha-se Com pincéis de aquarela – uma quase tinta amarela – Desvanecente, esmorecente… Saudosista? E com cores doces tudo se arranja entre lacunas em branco e cinza toda aquela meia vida delimitada a nanquim… Ah, cores de sonhos da aquarela Que brincam com minha vida tagarela Escrevendo verdades plurais sempre melhores do que uma só – aquela com letra maiúscula tem tolerância minúscula! – E na pluralidade das manchas ao lúdico dou preferência A despeito de qualquer letra bem de-limitada da caligrafia perfeita de toda vida não manchada… - que acaso já não estaria acabada?
Mata-dores Um mata-borrão Preciso de um mata-borrão na minha vida manchada! “Pá!” – de longe, mas acertei no borrão Agora de perto, um mata-moscas “Paf, paf, paf!” – todos os alvos caídos… Mata-fechada, é isso mesmo! E “puf!”, – fechou o livro de geografia na cara do cara…
Re-juntes Juntando os cacos do antes-juntos Juntando as marcas dos sempre-nós Juntando as mágoas do até-então Juntando toda a decepção Junto tudo, e não eu-junto Até juntar tudo O eu de outrora Outra hora Outra vida Outro mundo Não mais (t)eu
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Aqui, na minha Saiba que a sua saída da minha vida não me abalou em nada! O que me abala é o fantasma da sua presença: Terremoto que chacoalha meus pensamentos Erupção que borbulha meus sentimentos Ciclone que leva para longe a minha alma… Antes tão minha, Antes tão quietinha… Por que tardas, ó bagunça?
Esperança Espero seu olhar daquele jeito constrangedor, bem dentro do meu Espero seu sorriso daquele jeito cativante, bem de encontro ao meu Espero seu abraço amigo daquele modo em que amigos deixam de ser amigos Espero seu movimento ao meu encontro Espero seus beijos cedendo aos meus encantos Espero sua presença… Porque esperar é melhor do que desesperar
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O que você pensa disso? Mais do que o máximo – dizia o entusiasmo maníaco Menos do que o possível – completava a utopia vaidosa Nada do que anunciava o provável – sentenciava o desapontamento depressivo Tudo o que permitia o presente – ponderava o realismo cuidadoso Mas de novo? – inquiria o eterno sempre E assim, discutiam os julgamentos Numa batalha de afetos que só desejava o simples e breve ponto final Mas o então continuava incansável… Mesmo tardando, veio de supetão O tão esperado, O
O que sentem as sensações Ouvi de um ombro amigo: tudo concorre para o bem! Ouvi de um ouvido amigo: que bom que aconteceu agora e não depois! Ouvi de uma boca amiga: dias melhores virão! Tantas exclamações amigas E ainda assim, Nada ouço – só vejo com todo o sentimento e sensação: que me restam pontos de interrogações… E reticências perplexas
* Ana Claudia Yamashiro Arantes é doutoranda em filosofia na UFSCar.
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um relato permeado pelo estranhamento
O retorno do recalcado em La cámara oscura, de Horacio Quiroga José Roberto Cestarioli Júnior*
Yo sufro muy vivamente estas impresiones. Cuantas veces he podido hacerlo, he evitado mirar un cadáver. Un muerto es para mí algo de muy distinto de un cuerpo que acaba simplesmente de perder la vida.(Quiroga, La cámara oscura)
Resumo: O presente trabalho propõe uma (re)leitura do conto La cámara oscura do uruguaio Horacio Quiroga que inova o gênero fantástico na medida em que articula duas concepções do presente gênero em um mesmo conto: o fantástico de Todorov e a concepção apresentada por Freud em seu ensaio sobre “O estranho”. Nesse clima soturno, Quiroga constrói um relato em que a foto é utilizada como tema e estrutura, sobrepondo tanto a concepção de Todorov quanto a de Freud sobre o fantástico, causando no leitor aquilo que Poe chamou de “unidade de efeito”. PALAVRAS-CHAVE: HORACIO QUIROGA, FANTÁSTICO, TODOROV e FREUD A tale permeated by estrangement: the return of the repressed in Horacio Quiroga’s La cámara oscura Abstract: This paper proposes a re-interpretation of the short story La cámara oscura by Uruguay’s Horacio Quiroga, which renews the Fantastic genre by the articulation of two concepts of the category in one and the same story: Todorov’s fantastic genre and Freud’s concept presented in the essay “The Uncanny” (Das Unheimlich). In this sullen atmosphere, Quiroga fabricates a tale where the photograph is used as its theme and structure, interweaving both Todorov’s and Freud’s concepts of the fantastic, and producing in the reader what Poe called “the unity of the effect”. Keywords: Horacio Quiroga, Fantastic, Todorov and Freud
A
presente reflexão – tanto no sentido de idéia, quanto no sentido de que a linguagem reflete as relações simbólicas1 do sujeito em seu universo – tem como objetivo propor uma leitura do conto La cámara oscura (1920), do contista uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937). Nessa leitura, a fotografia é utilizada não somente como um tema, mas, também, como elemento constituinte da estrutura narrativa, na qual duas teorias estão presentes: uma sobre o ‘estranho’, de Freud, presente no ensaio homônimo de 1919 e a teoria exposta por Todorov, acerca do fantástico, no livro Introdução à literatura fantástica (1968).
1 Esse termo, o simbólico, revela a filiação teórica lacaniana do autor, na qual o universo em que o sujeito opera é dado pelo seu discurso, através dos significantes.
Quiroga é um dos descendentes literários do estadunidense Edgar Allan Poe, que (re)cria a “unidade de efeito” de seu mestre, mas em um outro contexto, no universo da selva misionera; este é o caso do presente conto. Nele, o fotógrafo-narrador tece um relato de impressões, um discurso que põe em evidência uma subjetividade, como uma série de fotografias (ou talvez uma experiência cinematográfica). Isso torna o conto um relato singular – um conto é sempre uma experiência ímpar –, pois a matéria que nos é contada é simples, como veremos. Os personagens são apresentados através de suas características, como em uma foto, começando pelo juiz: Llamábase este funcionario Malaquías Sotelo. Era un indio de baja estatura y cuello muy corto, que parecía sentir resistencia en la nuca para enderezar la cabeza. Tenía fuerte mandíbula y la frente tan baja que el pelo corto y rígido como alambre le arrancaba en línea azul a dos dedos de las cejas espesas. Bajo éstas, dos ojitos hundidos que miraban con eterna desconfianza, sobre todo cuando el asma los anegaba de angustia. Sus ojos se volvían entonces a uno y otro lado con jadeante recelo de animal acorralado - y uno evitaba com gusto mirarlo en tales casos. (Quiroga, 1920: p. 674)
Por essa descrição percebemos que o juiz causava repulsa ao narrador-fotógrafo, é um primeiro retrato que o leitor tem do juiz. Depois de descrita a figura do juiz de paz, o narrador passa à descrição ironicamente – erótica, de Elena Pilsudski: Se había casado últimamente con Elena Pilsudski, una polaquita muy joven que lo seguía desde ocho años atrás, y que cosía la ropa de sus chicos con el hilo de talabartero de su marido. Trabajaba desde el amanecer hasta la noche como um peón (el juez tenía buen ojo), y recelaba de todos los visitantes,
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a quienes miraba de un modo abierto y salvaje, no muy distinto del de sus terneras que apenas corrían más que su dueña cuando ésta, con la falda a la cintura y los muslos al aire, volaba tras ellas al alba por entre el alto espartillo empapado en agua. (Quiroga, 1920: pp. 675-6)
Em seguida, temos a descrição do sogro de Sotelo, Estanislao Pilsudski, na qual fica clara mais uma vez que essa repulsa que o narrador tem sobre o juiz de paz pertence somente ao narrador, pois o pai de Elena atribui a alcunha de “corazón–lindito” a Malaquías, expressão essa que serve “para calificar la hombría de bien de un sujeto.” Os exemplos que colocamos acerca das descrições dos personagens têm como objetivo mostrar esse retrato que o narrador cria de cada um; se observarmos bem, veremos literalmente um parágrafo dedicado ao “juez de paz”, a Elena e ao sogro. Após as fotografias das personagens, começa o “asunto fotográfico”, que é como o narrador chama o relato: Tales son los personajes que intervienen en el asunto fotográfico que es el tema de este relato. (Quiroga, 1920: pp. 676)
O juiz de paz volta enfermo de Buenos Aires e o narrador vai vê-lo com o intuito de ajudá-lo. Malaquías está “casi sentado con la camisa abierta y el cuello postizo desprendido, aunque sujeto aún por detrás.” Sotelo tem um ataque asmático “lo que no es agradable de contemplar” – como descreve o narrador – e morre com a boca aberta, sem conseguir dizer nada, movendo a cabeça e olhando para o teto. A cena parece de tal maneira tétrica para o narrador que a imagem de Sotelo fica gravada em sua memória. Mais adiante, temos um importante testemunho por parte do fotógrafo, quando este relata explicitamente sua relação com a morte, ou seja, de suas vivências com esta: Yo sufro muy vivamente estas impresiones. Cuantas veces he podido hacerlo, he evitado mirar un cadáver. Un muerto es para mí algo de muy distinto de un cuerpo que acaba simplemente de perder la vida. Es otra cosa, una materia horriblemente inerte, amarilla y helada, que recuerda horriblemente a alguien que hemos conocido. Se comprenderá así mi disgusto ante el brutal y gratuito cuadro con que me había honrado el desconfiado juez. (Quiroga, 1920: p. 678)
Aqui, nesta citação, vemos novamente a morbidez que penetra a subjetividade do fotógrafo e que transparece em seu “cuadro”; esse termo, no bom escrever de Quiroga, não é gratuito e vem mostrar novamente a relação entre tema e estrutura que propusemos ao início do texto. Em várias partes, perceberá o leitor que não faço mais que chamar a atenção, apontar para certas pistas, porque, a partir desse momento, o conto começa a ganhar seu contorno estrutural; veremos, isso em todo o conto, o que fará, espero, com que o leitor volte a ler o conto e a encontrar mais indícios da presente proposta. Temos dois personagens principais: o narrador-fotógrafo e o juiz de paz, Malaquías Sotelo. O narrador relata um acontecimento de quando esteve em Misiones: o falecimento do juiz de paz. Diante da sua perda conjugal, Elena Pilsudski pede ao narrador que tire uma foto do marido, recentemente falecido. Essa simples tarefa afigura-se como algo repulsivo, aos olhos do fotógrafo, já que a morte do juiz, presenciada pelo narrador, deu-se
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como um espetáculo tétrico que culmina com uma espécie de ritual durante a revelação da chapa. … yo debía revivir al individuo ya enterrado que veía en todas partes; debía encerrarme con él, solos los dos en una apretadíssima tiniebla; lo sentí surgir poco a poco ante mis ojos y entreabrir la negra boca bajo mis dedos mojados; tuve que balancearlo en la cubeta para que despertara de bajo tierra y se grabara ante mí en la outra placa sensible de mi horror. (Quiroga, 1920: p. 680)
É um pequeno trecho em que observamos a reação do narrador frente ao seu trabalho; um trecho entrecortado por pontos e vírgulas que permitem ao leitor quase sentir o ritmo da respiração arquejante do fotógrafo; a descrição de uma tarefa metódica e cautelosa é ainda sugerida pelo uso do verbo no infinitivo que parece aumentar ainda mais o tempo da ação, criando assim uma tensão nos nervos do narrador que é transmitida ao leitor. Nesse ponto, a fim de propor uma possível explicação para o fato de o fotógrafo evitar o quanto pode o pedido de Elena – uma foto de seu falecido marido –, nos apoiamos na teoria acerca do estranho de Freud. No ensaio, o psicanalista parte de uma abordagem lingüística da palavra alemã [Heimlich] que possui uma carga semântica positiva – “íntimo, familiar; que evoca bienestar, etc; calma confortable y protección segura, como la casa confortable y abrigada”(2485) – até um ponto em que a referida expressão alemã coincidirá com o seu oposto [Unheimlich], onde esse “un” é um prefixo de negação e Freud aponta então para o fato de Shelling sintetizar o significado da carga semântica negativa: … nos llama la atención una nota de Shelling, que enuncia algo completamente nuevo e inesperado sobre el contenido del concepto de unheimlich; Unheinlich sería todo lo que debía haber quedado oculto, secreto, pero que se ha manifestado. (Freud, 1919: p. 2487)
Para o psicanalista vienense, o fenômeno do estranho está associado a algo familiar para o sujeito, algo familiar que foi repelido e que de certa forma retorna para o sujeito que o repeliu. No ensaio onde Freud expõe sua teoria, Lo siniestro (1919), são utilizados exemplos da literatura, dentre eles, O homem da areia, do alemão E. A. T. Hoffman. Ao final do ensaio, Freud afirma que para cada exemplo a favor de sua teoria, existem vários outros exemplos que se mostram contrários, mas estes pertencem ao campo literário. Esse fato, apontado pelo psicanalista, apresenta duas modalidades de estranho, sendo um, o lido, e o outro, o vivido pelo sujeito. O escritor, por meio de artifícios, como a unidade de efeito somada ao narrador em primeira pessoa, pode vir a aumentar o efeito de estranhamento sobre o leitor; na medida em que o narrador ao relatar, constrói um universo simbólico, jogando, convencendo o leitor mais facilmente de sua veracidade, principalmente quando é apresentado um fato estranho e o narrador apresenta um universo que aceita as convenções do universo do leitor como válidas. Tendo-se em mente que Quiroga teve Poe como mestre, somos levados a procurar alguns preceitos que este tinha como essenciais para um conto, e os mais importantes são dois, encontrados no ensaio A filosofia da composição (1845). São eles: a extensão do conto e a unidade de efeito - que tem como pré-requisito a extensão. Segundo Poe, ao escrever um conto, o escritor tem como objetivo causar um determinado efeito estético em
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seu leitor, efeito esse que só pode ser alcançado por intermédio da já referida “unidade de efeito”. Para que esse efeito não cesse no leitor, através de interrupções da leitura, o poema ou o conto deve ter uma extensão curta, a fim de ser lido em uma só sentada. A escolha do tema por Quiroga foi magistral, pois a morte se apresenta familiar ao ser humano, ao mesmo tempo em que se apresenta misteriosa. Familiar, pois estamos rodeados de pessoas que podem morrer a qualquer instante e por fazer parte de nossa vida; misteriosa, pois não sabemos quando ocorrerá e o que existe (se existe) depois dela, e a ciência – essa crença na qual apostamos nossas fichas, com uma mistura de receio e esperança – não consegue nos responder essa questão. Através da tecnologia, nesse caso a fotografia, o narrador pode reviver o morto – como em uma espécie de ritual – sem ressuscitar o mesmo, tornando-o uma espécie de mortovivo e assim aumentando o grau de perturbação do narrador – em alguns casos, esse ritual macabro e profano pode desencadear conseqüências funestas como em Frankenstein ou o moderno Prometeu (1831) de Mary Shelly. Levando em conta a relação que temos com a morte, onde esta é familiar e recalcada, abarcamos as águas do estranho psicanalítico. Para Freud, existem ainda duas gradações de estranho: aquele proveniente de complexos reprimidos que retornam – nesse caso, a figura do juiz de paz – e quando formas de pensamentos superados, crenças, tem sua autenticidade confirmadas por fatos – no caso do conto em questão, seria uma espécie de ritual onde o morto retorna através da revelação fotográfica realizada pelo narrador, na qual a figura do morto vai surgindo aos poucos, lentamente, debaixo das mãos do fotógrafo, com a boca aberta. O estranho proveniente de complexos reprimidos é mais persistente, tem maior efeito que o estranho relativo a formas de pensamentos superados, tanto na literatura quanto na vida real. Quiroga alia as duas modalidades da manifestação do estranho, o de formas de pensamento superadas – que tem grande êxito para causar o efeito do estranho no campo literário – e o estranho relativo a complexos reprimidos – que é mais dificilmente causado na vida real, mas tem efeitos mais aterradores. O fato de o leitor, juntamente com o narrador, serem defenestrados em um universo familiar aos dois, através do narrador em primeira pessoa, contribui para aumentar o efeito psicanalítico sobre o leitor, já que as palavras do narrador são o único testemunho que temos dos fatos. O narrador mostra-se um tanto perturbado com o corpo do juiz de paz, pois um corpo sem vida recorda-lhe alguém já conhecido, esse fato, juntamente com a perturbação que a figura de Sotelo, quando vivo, causava no narrador, contribui para uma acumulação e uma maior eficiência do efeito do estranho. O clímax do relato ocorre quando o narrador deve realizar uma tarefa ordinária, tirar e revelar uma foto do morto, que se afigura como “una pesadilla de diez horas.” Observemos que o morto retorna para o mundo do narrador. Preso, nesse pesadelo, portanto, uma espécie de mundo onírico do qual o narrador parece ter consciência, mas, mesmo assim, não o impede de sofrer o efeito do estranhamento que é o medo. O narrador tem seu sofrimento aumentado pelo recurso que lhe é característico: a fotografia. O retrato do morto é tirado e o corpo enterrado na mesma tarde, tendo o por do sol ao fundo, com isso a cerimônia fúnebre é encerrada, mas não para o narrador. Durante a noite, a meia-noite, crê o narrador – aqui somos lembrados da crença popular do Halloween, segundo a qual os mortos vem à meia-noite para o mundo dos vivos –, ele vai até sua câmara escura para revelar a foto, uma tarefa que não apresenta nada anormal para alguém com os nervos intactos, afirma o fotógrafo; mas não para ele. Para o narrador, a
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situação se apresenta como uma espécie de ritual que faz o morto (re)surgir, aos poucos, lentamente, debaixo dos seus dedos, como um zumbi com a boca aberta, um morto-vivo na chapa fotográfica revelada. Ao terminar esta espécie de cerimônia fúnebre que é a revelação fotográfica, o narrador deixa o aposento e sai ao ar livre, a noite agora lhe parece como prenunciadora de um dia de vida e esperança, começa então a descrição de uma imagem campestre, como um quadro cheio de coloridos: Al salir afuera la noche libre me dio la impresión de un amanecer cargado de motivos de vida y de esperanzas que había olvidado. A dos pasos de mí, los bananos cargados de flores dejaban caer sobre la tierra las gotas de sus grandes hojas pesadas de humedad. Más lejos, tras el puente, la mandioca ardida se erguía por fin eréctil, perlada de rocío. Más allá aún, por el valle que descendía hasta el río, una vaga niebla envolvía la plantación de yerba, se alzaba sobre el bosque, para confundirse allá abajo con los espesos vapores que ascendían del Paraná tíbio. (Quiroga, 1920: p. 680)
Pela descrição acima, observamos um grande contraste com o restante do conto; existe uma paisagem colorida, ampla, em contraponto com a atmosfera sufocante e mórbida do começo do mesmo. Chegamos ao ponto de suspeitar de uma intromissão do sobrenatural, ficamos na dúvida entre o maravilhoso e o estranho – aqui o estranho é todoroviano – estando assim na linha do Fantástico. O Fantástico vem a ser a linha divisória entre o estranho – não freudiano – que é quando nos convencemos de que as leis da ciência não foram violadas, e o maravilhoso, que ocorre quando as leis da ciência são violadas e estamos no domínio do sobrenatural. O estranho de Todorov pertence ao plano intelectual, pois se opta por uma alternativa; já o estranho para Freud, pertence a outro plano que não se dissipa, o plano do inconsciente. Segundo Freud, para ocorrer o estranho na literatura, são necessários dois elementos, o estranho psicanalítico – que é algo familiar repelido e que retorna por repetição – somado a um elemento estético que creio ser a “unidade de efeito” poeana. Sem esse elemento estético o fator da repetição, por exemplo, poderia facilmente tornar-se cômico e não perturbador, como mostra Freud no ensaio em questão. Ainda que essas duas concepções de estranho apontem para horizontes diferentes, ambos parecem possuir uma semelhança: no estranho intelectual – todoroviano – só podemos afirmar que algo é estranho, que possui uma explicação científica, a partir do momento em que tivemos, no passado, contato com essa ciência, seja ela leiga ou não, seja através da experiência ou não; o relevante é que é um conhecimento proveniente do passado, como propõe Todorov: A definição clássica do presente, por exemplo, descreve-o como um puro limite entre o passado e o futuro. A comparação não é gratuita: o maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por vir: logo, a um futuro; no estranho, em compensação, o inexplicável é reduzido a fatos conhecidos, a uma experiência prévia, e daí ao passado. Quanto ao fantástico mesmo, a hesitação que o caracteriza não pode, evidentemente, situar-se senão no presente. (Todorov, 1968: p. 49)
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Essa comparação das categorias do fantástico com os tempos verbais que Todorov propõe ao invés de se distanciarem do estranho psicanalítico parecem antes retomá-lo de outro modo. O estranho para Todorov corresponde a uma experiência passada, um fato explicado pela ciência;2 a crença na magia, no mana, que, para Todorov, é maravilhoso – futuro, para Freud é uma volta ao passado. Ao olharmos a teoria estrutural do fantástico pelo viés psicanalítico vemos que é sempre algo que retorna. O presente - fantástico, essa linha hesitante, a que Todorov se refere, equivale ao abalo da crença do sujeito, segundo Freud, e por isso mesmo ocorre como um estranhamento. Mas o estranho todoroviano pertence ao plano intelectual e pode ser dissipado, ao passo que o estranho freudiano pertence ao plano do inconsciente e não pode ser dissipado. Ambos são leituras, quadros que se sobrepõe neste relato de Quiroga, ou um quadro que, aos nossos olhos, possui duas texturas.
Referências Bibliográficas FREUD, Sigmund. Lo siniestro (1919). In: Obras Completas, t. III. Trad. Luis Lópes-Ballesteros y de Torres. Madri: Biblioteca Nueva, 1996, p. 2483-2505. QUIROGA, Horacio. La cámara oscura (1920). In. Todos los cuentos. 2. Ed. Edición crítica coord. Napoleón Baccino Ponce de León y Jorge Laforgue. Madrid: Allca XX; São Paulo: Edusp, 1996 [1993]. (Col. Archivos, 26), p. 674-680. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. [1968]. Trad. Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2 Ed. (s/d).
2 Se essa relação com a ciência, que Todorov põe ao lado do estranho, for de maravilhamento para os personagens, temos algo parecido com a relação dos nativos pré-colombianos para com os exploradores e seus objetos. Se essa relação de maravilhamento para com a ciência for entre o narrado e o leitor, temos o que é chamado de ficção científica. *
José Roberto Cestarioli Júnior é graduando em Letras na UFSCar. Este artigo é parte de um projeto de Iniciação Científica (PUIC-UFSCar) e foi apresentado, em versão inicial, no I SEEL – Simpósio de Estudos Linguísticos e Literários do Triângulo Mineiro – em Uberaba, um junho de 2007, na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
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mais humano que humano o cyberpunk na fotografia de Blade Runner
Patrícia Kiss Spineli*
Resumo: O presente artigo analisa a fotografia do filme Blade Runner, versão de 1993. Os principais métodos utilizados na fotografia do filme para representar o universo cyberpunk foram verificados e a adaptação da linguagem literária cyberpunk para a cinematográfica investigada. A análise da iluminação, da composição e da captação dos planos revela que a fotografia do filme conseguiu transpor em imagens o ambiente lúgubre da obra original de Philip K. Dick, contribuindo ativamente para a construção dos personagens e da própria narrativa. Notou-se influência da estética noir e suas referências à comparação de opostos, aproveitada em Blade Runner na discussão andróides versus humanos, e responsável por algumas das imagens que se transformaram em referências para a compreensão do movimento cyberpunk e das suas influências na cultura pós-moderna. Palavras-chave: Fotografia de cinema, Blade Runner, Literatura More human than human: the cyberpunk in Blade Runner’s photography Abstract: This article analyses the photography of the film Blade Runner (1982), directed by Ridley Scott. Based on the director’s cut (1993), the principal methods used in the film’s photography to represent the cyberpunk universe were critically verified, with an investigation of the adaptation of the literary cyberpunk language to the cinema. The analysis of the light, of the composition and of the takes showed that the photography was able to portray the doleful atmosphere environment of Philip K. Dick’s original work, thus strongly contributing to the construction of both the characters and the narrative. A strong influence of noir aesthetic is considered, and its references to the comparison of opposites, made use of in Blade Runner in the humans versus androids discussion, and responsible for some of the images which became landmarks for the understanding of the cyberpunk movement and its influences on post-modern culture. keywords: Moving Pictures, Blade Runner, Cyberpunk
Introdução No início da década de 1980 surge o movimento literário cyberpunk, gênero da ficção científica hardcore que procurava integrar alta tecnologia e cultura pop, aproximando o orgânico do artificial e unindo biologia e tecnologia para contar suas histórias. Em suas narrativas, as situações são realistas e extrapolativas e não meramente especulativas,
partem de uma visão ampla do que acontece na sociedade contemporânea para hipotetizar fatores que afetariam o futuro do planeta. Popularizada por William Gibson com o romance Neuromancer (1984), a literatura cyberpunk enfoca tópicos como valores humanos, desenvolvimento da tecnologia, simbiose homem-máquina, opressão governamental e submundo, retratando as sociedades pós-industriais avançadas em ambientes altamente tecnológicos e opressivos, com pessoas marginalizadas por sistemas culturais radicalmente deformados pela tecnologia e pelo corporativismo. Geralmente a personagem principal é um anti-herói rebelde e cético, que possui uma visão consciente sobre o sistema e por isso consegue burlá-lo, roubando-lhe informações confidenciais. O movimento cyberpunk está contextualizado na pós-modernidade, que desponta com as mudanças sociais a partir da década de 1950, principalmente com o desenvolvimento dos computadores, e se consolida na década de 1980, com a tecnociência invadindo o dia-a-dia. Características como: consumo personalizado, descentralização, multiplicidade, exclusividade, interação, simulacro, digital, desreferencialização, conhecimento global, aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico permitem classificar o movimento cyberpunk como reflexão política e expressão estética e cultural da sociedade pós-moderna. A literatura cyberpunk deriva da ficção científica new wave de meados da década de 1960, que utilizava processos narrativos inovadores em que os autores estavam preocupados com a influência da tecnologia na existência humana e promoviam uma tentativa de aproximação com o indivíduo (Amaral, 2008). A angústia existencial permeia as personagens em suas relações com a sociedade, instituições, tecnologia e com os demais indivíduos do seu entorno. É a partir desses elementos que surge o movimento cyberpunk, um produto definitivo dos anos 1980, embora suas raízes estejam calcadas na ficção-científica moderna popular e na cultura pop do final dos anos 1960. A ficção científica cyberpunk não faz apenas uma predição do futuro, mas também revela o presente. Composta por uma combinação de fatores sociológicos, tais quais a não adaptação à sociedade atual e a angústia diante do devir, essa vertente da ficção científica constrói em suas narrativas uma distopia obscura do pensamento tecnológico (Amaral, 2004). No cinema, o cyberpunk teve atuação marcante influenciando diretamente filmes como Exterminador do Futuro (Terminator, de James Cameron, 1984), Akira (de Katsuhiro Otomo, 1988), Passageiro do Futuro (The Lawnmower Man, de Brett Leonard, 1992), Johnny Mnemonic (de Robert Longo, 1995), O Fantasma do Futuro (Ghost in the Shell, de Mamoru Oshii, 1995), Matrix (de Larry e Andy Wachowsky, 1999), entre outros. Blade Runner: o caçador de andróides (Blade Runner, de Ridley Scott, 1982), apesar de apresentar elementos típicos do cyberpunk, é anterior ao início do movimento, e deve ser considerado tanto uma influência quanto uma obra influenciada por esse gênero literário, visto que suas raízes remontam à ficção científica produzida a partir do final dos 1960. O filme Blade Runner (1982) foi baseado na obra de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968) que já antecipava o que seria a literatura cyberpunk. Em sua narrativa, constroem-se situações calcadas no que parecia tangível para o futuro e não em especulação infundadas (como era de praxe na ficção científica massificada da época com seus discos voadores, invasões marcianas e mundos fantásticos). Dick foca em características que mais tarde seriam chamadas de cyberpunk, como o anti-herói que rouba informações de uma rede virtual, o niilismo, o ambiente pesado e obscuro de um planeta em que a natureza foi devastada (Sammon, 1996; Kerman, 1997).
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Blade Runner (1982) hoje é tido como um clássico pós-moderno, tanto pelo visual quanto pelo roteiro. Original e com uma estética diferenciada, essa obra, a princípio, resume características definidoras do cyberpunk, incluindo reflexões sobre a cultura pop da sua época, explorando os diferentes níveis de complexidade tecnológica e retratando as situações extrapolativas de forma realista. Em suma, o filme discute as implicações sociais da ciência e da tecnologia do presente ao retratar o futuro, encaixando-se explicitamente na vertente ficcional cyberpunk. O filme se passa na cidade de Los Angeles, em 2019. Uma categoria de replicantes – seres virtualmente idêntico ao ser humano – os Nexus 6, são mantidos como escravos fora da Terra em operações perigosas de colonização planetária. Seis desses replicantes fogem para Terra com a finalidade de conseguir o prolongamento de suas vidas, já que não durariam mais que seis anos, o prazo de validade de cada um. Como represália, um policial especializado na caça de replicantes, um blade runner, é destinado a executar os fugitivos. Em meio à trama, a replicante Rachael (Sean Young), secretária da Tyrell Corporation, envolve-se afetivamente com o anti-herói Rick Deckard (Harrison Ford). Há várias versões disponíveis do filme, uma lançada internacionalmente em 1982, outra apresentada em 1993, como versão do diretor Ridley Scott, e ainda uma outra, tida como versão definitiva, lançada em 2006 com base na versão modificada de 1993, mas com poucas alterações. As percepções aqui apresentadas relacionam-se à primeira versão do diretor (1993), que eliminou a narração off imposta pela produtora quando do primeiro lançamento do filme, mantendo a ambigüidade presente na obra original e estabelecendo conexões ainda mais perenes com o cyberpunk. O presente trabalho tem por objetivo analisar criticamente, através de um estudo de linguagem de cinema e fotográfica, os principais métodos utilizados na fotografia, quanto ao seu uso da luz, composição e captação dos planos, do filme Blade Runner para representar o universo cyberpunk além de verificar de que maneira realizou-se a transposição da linguagem literária cyberpunk para a cinematográfica.
Da literatura para a cinematografia Literatura e cinema produzem emoção estética e ambos despertam nossa capacidade receptiva. Se na literatura a imagem se projeta em nossa mente através da leitura e das dimensões da imaginação de cada um, no cinema, essa mesma imagem é projetada direta e visivelmente aos olhos, com movimento e som. Através das técnicas fotográficas, consegue-se ressaltar ou esconder aspectos em uma cena, intensificar cores e conduzir o olhar do espectador para determinado elemento. A composição da luz é fundamental para expressar o clima necessário que ambienta a narrativa. Além disso, a fotografia, como elemento que compõe a estética do filme, é responsável por muito do sentido da obra. A disposição, a intensidade e o tipo de luz utilizada, assim como a escolha do ângulo, fazem com que a fotografia de cinema seja um elemento fundamental na construção da dramaticidade cênica. Embora sejam duas linguagens diferentes, no decorrer da história do cinema, sempre houve uma relação entre literatura e cinema. Nas primeiras discussões sobre a estética do cinema, este era analisado como linguagem literária, pois ainda se procurava uma gramática tipicamente cinematográfica. Percebeu-se então que o cinema era um meio de
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expressão artística e era preciso dotá-lo de uma linguagem específica, independente da linguagem da literatura e do teatro (Aumont, 1995). Em outros casos, a obra literária tornou-se ponto de partida da adaptação fílmica, mas como uma tradução intersemiótica em que a apropriação criativa do livro permite que o mesmo seja transformado no processo de adaptação fílmica, visando a obtenção de efeitos análogos nas duas obras. Assim, ao transpor uma obra literária para o cinema é necessário dar conta dessa diferença de linguagem. A arte literária, que se fundamenta em uma abstração da realidade, tenta recuperar essa realidade em um processo de idealização. O cinema, com sua potência de impressão que deriva da imagem animada, procura identificar-se com linguagem própria a valores que devem obedecer a uma harmonia orgânica de composição de conjunto (Einsenstein, 2002). A transposição de uma obra literária deve ainda respeitar os valores culturais do romance em presença do cinema, adquirindo o que Edgar Morin (1997) chama de “a realidade semi-imaginária do homem”. Assim, é coerente que a obra cinematográfica, mantendo a criatividade artístico-cinematográfica e buscando os conteúdos significativos do romance, não desvirtue os valores em que se fundam a obra literária. Ao tratar-se dos aspectos culturais da literatura no cinema, sobressai-se a “simultaneidade dos conteúdos de consciência, a imanência do passado e do presente, o constante fluir simultâneo dos diferentes períodos de tempo”, como afirma Arnould Hauser (2002). Além disso, no filme há sempre uma mistura do espacial com o temporal, ou “uma reprodução do mundo em que os limites de espaço e de tempo são fluidos – o espaço tem um caráter quase-temporal e o tempo, até certo ponto, um caráter espacial”. (Hauser, 1998) Em Blade Runner, na adaptação do texto de Philip K. Dick para o roteiro cinematográfico, foram mantidos intactos alguns personagens, o cerne da obra que discute o contraponto humano versus andróide e questões existenciais como o que faz dos humanos seres humanos e até que ponto ações tidas como humanas são realmente exclusivas da nossa espécie. A discussão entre natural e artificial é relevante e fica explícita nas cenas em que aparecem as réplicas de animais biológicos, comuns no filme e decorrentes da degradação da natureza e na quase total extinção de todas as espécies da fauna. Tanto no livro como no filme fica evidente que as pessoas migraram em massa para outros planetas, abandonando casas e edifícios inteiros. As cenas internas, com os edifícios quase inabitados, transmitem sensação de solidão e isolamento. Já as ruas, contrapondo-se ao interior dos prédios, estão abarrotadas de pessoas, mas mesmo essas aglomerações reforçam o isolamento e o individualismo, uma vez que as relações sociais reduzem-se ao essencial. A fotografia exerce decisiva importância na narrativa da história como sinal harmônico e indicador de destinos. Toda uma corrente de consciência perpassa em uma fotografia adequada – estética, filosófica, psicológica e socialmente construída – dando ao espectador a visão coerente do mundo imaginado pelo autor. Em uma adaptação de uma obra literária, o diretor de fotografia recompõe, idealiza e retrata sem incorrer em desvios capazes de inutilizar ou desvirtuar os valores originais criados. Realiza então uma operação de tradução intersemiótica de uma linguagem para outra e através da semiose, um signo é percebido como significante de outro signo e assim sucessivamente. Deste modo, aquilo que se tem por criação passa a ser uma tradução criativa, um “original”, o qual, por conseguinte, passa a ser, também, tradução de algo anterior (Plaza, 2003). Certamente a iluminação é determinante na fotografia, já que ela, juntamente com a composição de cena, dá forma à realidade em frente às lentes, dando-lhe profundidade ou superficialidade, excitação ou placidez, realidade ou artificialidade. A cinematografia
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tenta criar e sustentar um clima capturado na tela. Nesse sentido, a iluminação está no cerne da cinematografia. Para Costa (1989), as características fotográficas de um filme são o resultado de um conjunto de competências diversas, mas cabe ao diretor de fotografia, em conjunto com o diretor, coordenar e, sobretudo, controlar os resultados segundo os efeitos desejados. Além disso, é o diretor de fotografia quem define elementos chaves em termos visuais, como a iluminação, a escolha de ângulos, a movimentação e os enquadramentos de câmera (Rodrigues, 2005), no intuito de produzir condições de luz tais que, combinadas com as técnicas de filmagem e de cópia, criem os resultados fotográficos previstos pelo roteiro ou exigidos pelo diretor.
A influência do noir Em termos cinematográficos, Blade Runner recebeu influências das histórias de detetives retratadas pela literatura e o cinema noir das décadas de 40 e 50. O filme noir, visto como um movimento no cinema, especialmente relevante nos Estados Unidos, Inglaterra e França, durante as décadas de 1940 e 1950, é literalmente preto, com iluminação de alto contraste e sombras, trabalhando com tempo não-linear (Mattos, 2001). Utiliza em sua narrativa o rompimento da dicotomia entre bons e maus e com a diluição da moral maniqueísta. São retratadas a ambigüidade e a decadência dos personagens em uma sociedade individualista, onde imperam a desilusão e as incertezas. Os personagens são morais e psicologicamente perturbados e há um anti-herói solitário, niilista, com seus próprios medos, sem rumo, valores e certezas. O sentido geralmente corresponde a um estado de espírito semelhante ao da filosofia existencialista. Algumas obras clássicas do cinema norte-americano podem ser alinhadas nessa vertente como Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, de John Huston, 1941) baseado na obra O falcão Maltês, de Dashiell Hammett, e Pacto de Sangue (Double Indemnity, de Billy Wilder, 1944) baseado na obra Indenização em dobro, de James M. Cain. O filme noir é descendente direto do filme de gângster dos anos 1930 que por sua vez retrata a crise econômica e o aparecimento do crime organizado, reflexo das sociedades, principalmente a norte-americana. O principal cenário social era o início da Segunda Guerra Mundial e, devido à crise econômica de 1929, havia o abalo da confiança e desilusão da população em relação à economia mundial. Conseqüentemente a moral perdia sua rigidez e se desintegrava, numa sociedade em que as antigas leis políticas e econômicas não garantiam mais um futuro promissor. Também se filia, em termos estéticos e da técnica cinematográfica, ao expressionismo alemão, que chegou a Hollywood através dos expatriados alemães das décadas de 1920-30 devido à perseguição nazista, entre eles Fritz Lang e Friedrich Wilhelm Murnau. Do expressionismo alemão, utiliza principalmente o alto contraste e a profusão de sombras. A fotografia dos filmes noir, com seus elementos não tradicionais, cria um ambiente visualmente instável, contribuindo para o clima de paranóia e desespero não expressados somente nos diálogos e enredos, mas também através de todos os elementos cinematográficos que compõem esse estilo único. Particularmente nos Estados Unidos, a influência literária do filme noir procede de escritores como: Raymond Chandler, Dashiell
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Hammett e James M. Cain, autores de ficção policial e histórias de detetives, vinculadas principalmente em revistas baratas como Black Mask. Apesar das principais influências advirem do cinema noir, segundo Jordan Cronenweth, diretor de fotografia de Blade Runner, clássicos como Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941, Orson Welles) e Metrópolis (Metropolis, 1927, de Fritz Lang) também funcionaram como referência visual. A fotografia de Cidadão Kane aproxima-se do olhar desejado para Blade Runner, com seu alto contraste e o uso de rastro de luz. (Sammon, 1996) Entre Blade Runner e Metrópolis existe um contraponto em que há uma cidade monumental, com imensos edifícios e veículos voadores acima da sombria cidade subterrânea. A influência não está somente na temática futurística, mas também nos efeitos da iluminação, que produzem uma atmosfera sombria e sufocante. A aproximação do noir e do cyberpunk se dá principalmente pela estética sombria e pelo tech-noir, considerado um híbrido entre a ficção científica de alta tecnologia e os filmes policiais noir (Amaral, 2004). Além disso, tanto a narrativa cyberpunk quanto a noir retratam um personagem anti-herói e um ambiente opressor, niilista e obscuro. Os anos 1980 concretizam o pós-moderno que tem como uma de suas características buscar e aplicar referências de décadas passada em obras contemporâneas (neste caso o noir de 1940/50), além do que, tanto o noir das décadas de 40/50 e a ficção científica dos anos 80, se baseiam em uma literatura de estilo popular, sem crédito para a dita ‘grande literatura’, mas que de alguma forma passaram a ser consideradas cult. A composição da fotografia, assim como alguns aspectos psicológicos dos personagens em Blade Runner, teve influência direta do noir. O existencialismo, comumente abordado também na temática, como ansiedade, desgosto e a percepção da morte. Essas características são observadas em Deckard, o blade runner solitário que apresenta dúvidas quanto à sua própria existência e origem e que se torna ainda mais perturbado ao descobrir-se apaixonado por uma replicante. Em termos cenográficos, Blade Runner também presta tributo a essa atmosfera. Em contraposição a um ambiente externo ultra-futurista, os ambientes internos ainda são convencionais – a sala do chefe de polícia, por exemplo, assemelha-se àquelas da década de 1940-50. Os cenários não representam somente uma cidade, mas um espaço inóspito e estéril. Até mesmo o figurino de Deckard remete a um policial dos anos 1940 com sobretudo impermeável, camisa escura e gravata. No entanto, é através da fotografia que Blade Runner mais se aproxima desse cinema de contrastes. A fotografia noir tem influência da literatura hard-boiled americana, (histórias publicadas nos pulp magazines impressas em papel de baixa qualidade e de pouca durabilidade), do começo do século XX, especialmente do ponto de vista temático e narrativo. Também se filia, em termos estéticos e da técnica cinematográfica, ao expressionismo alemão, que aportou em Hollywood com os expatriados alemães e italianos das décadas de 1920-30. Do expressionismo alemão, utiliza principalmente o alto contraste e a profusão de sombras. A fotografia dos filmes noir, com seus elementos não tradicionais, cria um ambiente visualmente instável, contribuindo para o clima de paranóia e desespero, não expressos somente nos diálogos e enredos, mas também através de todos os elementos cinematográficos que compõem esse estilo único. Também se utiliza fontes de luz dura que, empregadas de forma dramática, geram sombras definidas e ressaltam os relevos das ruas. Essa estética fotográfica expressionista influenciou profundamente Blade Runner:
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(…) primeiríssimos planos; câmera oblíqua; linhas horizontais cruzadas com verticais aumentando a impressão de clausura psicológica e física; variações no posicionamento da luz principal (key light), atenuante (fill light) ou contra luz (backlight) para produzir esquemas inusitados de luz e sombras adequadas à criação do clima de paranóia, delírio e ameaça; corpos delineados em silhuetas dramáticas contra um fundo iluminado; filmagem de cenas noturnas realmente à noite (night-for-night) tornando o céu mais negro e ameaçador; reflexos no espelho sugerindo “o outro lado” da personagem ou sublinhando os temas recorrentes de perda ou confusão de identidade. (MATTOS, 2001, p. 46)
A iluminação do cinema noir utiliza a iluminação em baixa, que consiste em manter apenas algumas áreas do quadro bem iluminadas enquanto outras estão em sombras profundas, de forma que o contraste entre essas áreas é elevado. Esse estilo de iluminação opõe-se à iluminação em alta, utilizada pelos estúdios americanos na década de 1930. A iluminação em baixa era utilizada em filmes de horror e policiais primeiramente influenciados pelo expressionismo, mas, para Mattos (2001), é possível que essa iluminação tenha raízes mais antigas, na literatura criminal. A construção do universo de luz e sombra noir dá-se especialmente pela fotografia contrastada e em preto-e-branco, pelo uso de ploungé e contra-ploungés de fontes isoladas de luz e pouca profundidade de campo, locações naturais às locações em estúdio (MARTINS, 2004). Algumas cenas de Blade Runner, mesmo coloridas, fazem alusão à fotografia contrastada em preto e branco. A cena do interrogatório do primeiro andróide Nexus 6 (figura 1) (07h25min), Leon (Brion James), é um exemplo da influência da iluminação e atmosfera noir em Blade Runner, pois com a dramaticidade reforçada pela névoa fria e azulada na sala, a luz lateral marca o contraste claro-escuro em que uma parte dos personagens e do cenário fica na penumbra. No cinema noir, é comum o uso de uma luz principal em um ângulo lateral, escurecendo apenas um dos lados da face do personagem, o que acentua o clima de dualidade moral.
Figura 1: Cena do interrogatório de Leon. Fonte: Blade Runner, 1993.
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O que talvez fique mais evidente na relação de Blade Runner com o filme noir é a utilização que Charles Heigham e Joel Greemberg (MATTOS, 2001) chamam de Black Cinema para classificar os filmes que contêm um mundo de trevas e violência e, sobretudo sombra sobre sombra. Ruas escuras e molhadas, quarto intermitentemente iluminado pelos lampejos de um anúncio luminoso, um homem aguardando o momento de matar ou de ser morto. Assim como no cinema noir, Blade Runner trabalha com a questão da dubiedade e da dicotomia entre o falso e o real através da iluminação. O espaço da tela torna-se mais escuro e mais profundo: “Como uma regra, quando um personagem entrava em um quarto e acendia as luzes, as sombras permaneciam ameaçando como antes”. (MARTINS, 2004)
A fotografia em Blade Runner O diretor de fotografia de Blade Runner, Jordan Cronenweth, esclarece que filmes antigos como Cidadão Kane e Metrópolis atuaram como referência visual, apesar das principais influências terem sido os filmes noir. A fotografia de Cidadão Kane aproxima-se do olhar desejado para Blade Runner, com o alto contraste e uso de rastro de luz. Também se pode fazer um contraponto entre Blade Runner e Metrópolis em que há uma cidade monumental, com imensos edifícios e veículos voadores acima da sombria cidade subterrânea (figura 2). A influência não está somente na temática futurística, mas também pelos efeitos da iluminação que produzem uma atmosfera sombria e sufocante (SAMMON, 1996).
Figura 2: Cenário do filme Metrópolis. Fonte: www.cinemelo.wordpress.com.
Como principais elementos da estética fotográfica de Blade Runner, observam-se: baixa profundidade de campo, iluminação em contra-luz, fonte de luz única que provoca sombras e contrastes, fonte de luz pouco convencional (xenônio, néon, luz pontual e mostrada no quadro), uso de chuva, relâmpago e fumaça, e uso de efeitos especiais para
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dar aspecto artificial na construção do céu. Como sublinhado por Martins (2004), alguns desses elementos estabelecem para o público uma relação de tempo futuro, perspectiva essa reforçada por ruas abundantemente povoadas, cuja iluminação foi complementada pelo uso de letreiros de néon. A iluminação é artificial durante todo o filme, salvo na cena final em que aparece um céu azul. Diferentes técnicas de iluminação foram utilizadas no filme. O constante uso de neón nos edifícios e nas ruas como fonte primária de iluminação e as nuvens de fumaça utilizadas para difundir a luz são exemplos. Utilizou-se também combinação de ângulos expressionistas, com luz dura, alto contraste e contra-luz. No ambiente interno, a iluminação era composta de luzes rotativas vindas das janelas e clarabóias, ou de pontos locais de objetos da casa. Na iluminação dos personagens, utilizou-se luz frontal suave, filtros colocados abaixo dos atores em um ângulo ascendente, e contra-luz com rebatimento frontal – o que chegou a provocar, em algumas cenas, penumbra tal que o rosto do ator não ficava suficientemente iluminado. Quanto a isso, Cronenweth enfatiza que foi um diferencial para a construção da ambientação: Eu nunca pude utilizar iluminação de fundo suficiente (…) Os diretores geralmente querem que o rosto do ator apareça (…) Mas o fotógrafo além da iluminação do ator geralmente está interessado em criar uma atmosfera na cena. Além disso, o contra-luz interfere na inteligibilidade do espaço, já que o que se vê são massas e volumes recortados aludindo à bidimensionalidade, quebrando o conceito da iluminação clássica utilizada para dar harmonia e veracidade à cena. (Ligtman & Patterson, 1999)
Em Blade Runner, observa-se claramente a abordagem dos opostos: natural versus artificial, original versus falso, homem versus andróide, alta tecnologia versus ambientes rudimentares, vida versus morte. A fotografia participa ativamente na construção dessa abordagem ao registrar essas dicotomias em imagens. Logo nas primeiras cenas, percebese essa contraposição e o uso de contrastes. O contraponto do “dentro-fora” é marcante no filme. O “dentro” é sempre mais aconchegante, natural, enquanto o “fora” é um ambiente escuro, nebuloso e opressor, apenas com a iluminação artificial dos edifícios gigantescos, com o céu sempre encoberto, sem Sol ou Lua. Há um aparente descompasso entre a ambientação do cenário interno e a do cenário externo, já que nas cenas de rua a estrutura da cidade é futurista – painéis eletrônicos que difundem uma promessa de felicidade através do consumo, edifícios megalomaníacos (figura 3) – e, internamente, o ar é de precariedade, objetos antigos e amontoados (figura 4). O projeto de iluminação acompanha esse raciocínio “dentro-fora”, com dois tipos de iluminação, uma com luz azul, mais fria, e outra em que predominam tons amarelados e luz mais quente. A sala da empresa Tyrell Corporation exemplifica esse uso da cor, com um predomínio da luz amarela. As sombras são bem marcadas e a luz vem da lateral, de uma grande janela, de onde se vê o exterior do prédio. No geral, o aspecto é artificial: mesmo a luz exterior, de onde poderia ser dia, é controlada e produzida por efeito especial (figura 5).
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Figura 3: Cena externa - painéis eletrônicos, edifícios megalomaníacos. Fonte: Blade Runner, 1993.
Figura 4: Precariedade dos objetos internos. Fonte: Blade Runner, 1993.
Figura 5: Luz artificial do dia vista pela janela. Fonte: Blade Runner, 1993.
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O uso bem marcado entre claro e escuro favorece o efeito de oposição. Percebe-se a presença constante de luz lateral, em que uma parte da cena fica na penumbra, e de contra-luz, em que há iluminação intensa ao fundo contra a pouca definição de detalhes do primeiro plano, em que são visíveis apenas silhuetas. A falta de luminosidade das cenas, com uma luz direcional, acaba por levar à perda de texturas e detalhes de objetos. No geral, a iluminação provem da luz principal vinda das janelas. Em alguns momentos, essa luz produz um efeito gráfico utilizados em filmes noir, e.g., vindo de uma janela gradeada e projetando a sombra dessa grade no ambiente, como nas cenas em que Deckard e Gaff entram no apartamento de Leon (24h06min), ou em que Deckard conta a Rachael, no sofá de sua sala, que ela era uma replicante (33h25min) ou ainda quando Deckard e Rachael beijam-se pela primeira vez (figura 6).
Figura 6: Grafismo provocado pela janela. Fonte: Blade Runner, 1993.
Cronenweth argumenta que a base da fotografia do filme foi strong back light, low angle fill, ou seja, uma iluminação realizada só com um refletor em contra-luz forte e uma compensação vinda de baixo, semelhante à do dia-a-dia das pessoas em casa: a luz vinda de cima, sem iluminar os rostos, mas rebatida e difusa, dando ao rosto uma iluminação suave (Martins, 2004). A diferença da fotografia do filme Blade Runner para a iluminação do dia-a-dia consiste na intensidade dessas luzes. Para o filme, Cronenweth utilizou água e outras superfícies refletivas para fornecer uma compensação de luz vinda de baixo, refletindo sobre o rosto dos personagens ou sobre o cenário. A combinação de contra-luz forte, compensação de luz suave de baixo e a excessiva fumaça do cenário é uma das principais características da iluminação de Blade Runner. De forma muito singular, o filme também usa o rastro de luz, ou seja, fachos de luzes penetrando janelas por entre as frestas e invadindo a escuridão do ambiente (figura 7) e intensificando o papel dramático das cenas. Na iluminação artificial, esses fachos de luz são obtidos de forma eficaz em atmosferas esfumaçadas ou carregadas de pó, utilizando, para tanto, uma luz mais dura. Além disso, a fumaça de cigarro foi amplamente utilizada, apesar da dificuldade técnica em controlar a densidade desse material. Quando não era possível utilizar diretamente o cigarro na cena, mas era necessário manter a textura provocada por ele, o diretor de fotografia utilizava filtros de baixo contraste em conjunto com o ângulo da luz e a densidade da fumaça. Quanto mais forte a luz de fundo, mais fraca a iluminação do filtro.
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Figura 7: Cenas com fachos de luz. Fonte: Blade Runner, 1993.
A equipe utilizou fachos de luzes em diversas situações. Empregaram refletores de xenônio, comumente usados em anúncios noturnos em eventos esportivos, para as cenas em que os telões eletrônicos apareciam afixados aos aerostatos da polícia, que sobrevoavam a cidade, projetando intensos fachos de luzes em suas patrulhas. As lâmpadas de xenônio são montadas em refletores com fundo em formato parabólico, concentrando seus raios em um facho extremamente potente e com pouca dispersão. Dentre todos os tipos artificiais de fontes de luz, é a que apresenta maior eficiência em termos de rendimento por watt consumido. No filme, os aerostatos preenchiam a cidade com suas luzes, usados para propaganda e controle da criminalidade, semelhante ao patrulhamento de uma prisão. Movendo suas luzes, os refletores dos aeróstatos representariam uma forma de controle e invasão de privacidade por um poder dominante, penetrando até nos lares da cidade. Esses fachos de luzes são muitas vezes mostrados sem a nave, simulando a sua presença. Segundo Cronenweth, (em LIGTMAN & PATTERSON, 1999) “Blade Runner é uma obra que evoca extremos, um veículo maravilhoso para esse tipo de iluminação. É teatral, mas muito real no filme… Transcende a teatralidade”. Blade Runner possui muitas imagens noturnas iluminadas pelas janelas. As fontes variavam de holofotes a letreiros, luz direta, indireta, coloridas ou relâmpagos. Como dito anteriormente, na construção da atmosfera do filme, utilizou-se contraste, contraluz, fumaça, chuva e relâmpago, além de luzes de néon para salientar a superpopulação, fazer brilhar a rua, realçando objetos ou pessoas. Quando os néons não eram diretamente integrados na composição do espaço visível, eram utilizados como fonte primária de luz, completando o visual fotográfico do filme. Um recurso marcante no filme foi a utilização de luz colorida para criar um efeito especial para os olhos dos replicantes (semelhante ao efeito de olhos vermelhos em fotografias), como na cena em que Rachael pergunta à Deckard, na cozinha do apartamento dele, sobre a possibilidade dela fugir para o Norte (01h06min:34) – os olhos da replicante adquirem um aspecto avermelhado e artificial (figura 8). Esse efeito foi captado ainda durante a filmagem das cenas. A produção fez uso de um espelho de dois modos – 50 por cento de transmissão e 50 por cento de reflexão – colocado na frente da lente da câmara a um ângulo de 45 graus. Então, projetaram uma luz no espelho de forma que refletisse nos olhos dos personagens, às vezes usando sutilmente filtros para acrescentar cor aos olhos.
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Figura 8: Rachael com efeito de olhos de replicante.Fonte: Blade Runner, 1993.
Na cena do escritório do Dr. Tyrell (Joe Turkel), em que Deckard vai realizar os testes com Rachael, a equipe utilizou uma tela de projeção na qual era projetado o amanhecer da cidade futurista criado pelo supervisor de efeitos especiais fotográficos, Douglas Trumbull, permitindo fotografar com atores caminhando na frente dessa imagem. A cor do set teve de ser semelhante à cor do amanhecer criado por Trumbull com a simulação de luz solar, utilizando luzes de arcos de carbono e gelatinas âmbar pelo lado de fora das janelas. Na continuidade da cena, enormes sombras descem pelas janelas, diminuindo a intensidade de luz dentro do escritório para o teste Voigt-Kampff. Segundo Cronenweth, as sombras foram posteriormente aplicadas, porém o efeito de iluminação das sombras descendo pelo cenário foi criado enquanto fotografavam a cena, com a utilização de um equipamento que permitiu a utilização de filtros densos que neutralizavam a luz, descendo sobre os seis arcos usados para simular a luz solar. Na fotografia de Blade Runner, a técnica não era o mais importante e sim o conceito por trás de cada situação: Para Cronenweth, “(…) considerando que o filme se passa no futuro, podiam ser usadas fontes incomuns de luz, que as pessoas de hoje talvez não aceitassem”, (em LIGTMAN & PATTERSON, 1999) citando como exemplo os guardachuvas com tubos fluorescentes incorporados aos cabos carregados pelas pessoas na rua, o que lhes forneciam uma fonte luminosa que criava brilhos em suas faces.
O cyberpunk em Blade Runner O cyberpunk aborda temas como a paranóia em relação ao uso da tecnologia pelo Estado, a desconfiança do ser humano quanto ao poder da ciência e do desenvolvimento tecnológico, o estreitamento das semelhanças entre humanos e andróides e a interação da humanidade com a mercadoria fetichizada da sociedade de consumo. (ROBERTS, 2000) Discute um futuro palpável através da construção de personagens quase esquizofrênicos, esvaziados da concepção humana em tempos de sociedade de rede, caracterizada pelo excesso de informação. O cyberpunk ressalta a interrupção de temporalidade, a representação através de uma multiplicação de imagens e simulações, a falta de autenticidade e de
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identidade e a fatalidade da existência no futuro. A cidade de Los Angeles de 2019, retratada em Blade Runner, é quase a total realização dessa realidade prevista na ficção. No cinema, o cyberpunk aparece como predecessor da estética tech-noir vinculada à questão da distopia. As distopias tech-noir são consideradas um híbrido entre a ficção científica de alta tecnologia e os filmes policiais noir. Os elementos que constitui essa estética são a chuvas permanente, sombras simbólicas, ações que se concentram na noite e ambientes escuros que enfatizam a mensagem, não sendo um mero pano de fundo. Dentro dessa estética tech-noir o filme Blade Runner enquadra-se na visão de mundo cyberpunk, provocando assim um efeito estético no espectador que faz com que a obra seja desenhada imageticamente como cyberpunk ou como uma espécie de predecessor desse subgênero (Amaral, 2004). A fotografia empregada no filme materializa a narrativa cyberpunk, pois ajuda a construir um ambiente opressor, niilista e obscuro. Além da fotografia, a cenografia, o figurino e as tomadas de cena permitiram a construção de um universo cyberpunk ambientado em uma cidade cosmopolita de 2019. (Sammon, 1996) Logo nas primeiras cenas fica evidente qual será a linha de fotografia da obra. O filme se inicia com um plano geral de um ambiente visto ao longe que aparenta ser uma cidade com as luzes e as silhuetas de prédios. Enquanto a câmera capta a cena do alto e caminha em direção à cidade fazendo uma aproximação até o edifício da Tyrell Corporation, aparecem elementos que contextualizam o enredo: chamas de gases explodindo de torres, automóveis voadores que entram e saem do quadro, e um olho que observa tudo. Essa primeira seqüência já ecoa o cyberpunk. A megalópolis apresenta apenas iluminação artificial, com o gigantesco edifício da Tyrell surgindo como algo poderoso e opressor. A cena é um plano-seqüência com influência visual da história em quadrinhos cyberpunk The Long Tomorrow, escrita por Dab O’Bannon e desenhada por Jean Giraud Moebius (1977). Os elementos visuais do filme se assemelham aos dessa HQ: o futuro caótico e pessimista, táxis voadores e um novo mundo repleto de andróides. No plano-seqüência dos quadrinhos, a câmera (o olho do leitor) lentamente se aproxima de uma cratera na crosta de um planeta – cratera esta que se revela uma gigantesca cidade futurista, repleta de carros voadores e edifícios altíssimos ornamentados por outdoors comerciais, bem aos moldes posteriormente utilizados em Blade Runner. A câmera se atira então rumo ao precipício urbano, na janela do protagonista da história. A diferença é que em Blade Runner ela pára em um plano detalhe dos olhos de alguém que observa tudo (figura 9), e vemos a cidade refletida em sua retina, para depois voltar ao plano-seqüência. No filme, essa primeira seqüência apresenta um panorama da cidade (figura 10) que se detalha adiante e é possível identificar os prédios gigantescos, os enormes painéis eletrônicos e a iluminação artificial como única fonte de luz, inclusive o abundante uso do néon, a incessante chuva e a textura esfumaçada. Com essas duas cenas, através da iluminação e da composição, a estética do filme é apresentada ao espectador.
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Figura 9: Detalhe do olho na primeira seqüência. Fonte: Blade Runner, 1993.
Figura 10: Primeira seqüência do filme: panorama da cidade. Fonte: Blade Runner, 1993.
Ao longo da obra, não aparece a luz clara e natural do dia (salvo na seqüência final (01h47min:26), em decorrência da morte de Roy, uma pomba voa em direção a um céu azulado e aparentemente natural). A iluminação se limita a um claustrofóbico mundo artificial de luz e sombra, onde há predomínio de tons terra ocre e tom azulado. Mesmo em cenas retratando o dia, a iluminação parece artificial. Como no momento em que Deckard entra no escritório da Tyrell Corporation para testar algum replicante da empresa e aparece um plano geral onde são enquadrados os personagens, a gigantesca sala, e ao fundo, pela imensa janela, o céu com o Sol brilhando – o aspecto do Sol e a sua luz não parecem, no entanto, ser naturais. Quando a câmera enquadra Deckard em um plano próximo percebe-se que a luz ao fundo, em tons de sépia, não condiz com a luz natural do dia (figura 11). Na maioria das tomadas externas, a ausência de luz e cor, a precipitação constante de chuva e a incidência de fumaça vinda de algum lugar da cidade, como o canal de esgoto, prédio, (figura 12) barracas de comida e mesmo dos cigarros que os personagens fumam (09h04min), remete a um planeta decadente e desbalanceado.
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Figura 11: Iluminação artificial. Fonte: Blade Runner, 1993.
Figura 12: Uso de fumaça nas cenas Fonte: Blade Runner, 1993.
Na cena em que Deckard inicia a perseguição a Zhora, percebe-se uma cidade superpovoada com uma miscelânea de pessoas de etnias e estilos de vestimenta diferentes. Pode-se dizer que aqui temos um lugar não pontuado, que se encaixaria em qualquer parte do mundo. A iluminação é feita basicamente com as luzes dos neóns, pelas sirenes e faróis dos carros e dos aerostatos que sobrevoam a cidade, ressaltando o clima escuro e opressor, ao mesmo tempo em que apresenta uma gama de luzes artificiais coloridas produzidas pelo néon (figura 13) (25h09min). Essa Los Angeles futurista possui uma densa afluência populacional, com uma maioria de orientais e latinos. As ruas possuem uma variedade de anões, arruaceiros e decadentes. (KERMAN, 1997) A maioria dos brancos abandonou a Terra restando os excluídos no planeta devastado. Com isso, observa-se um discurso de oposição entre “alto-baixo” e “dentro-fora”. A diferença entre elite e massa é dramatizada pelas proporções das moradias. Eldon Tyrell, dono da Tyrell Corporation, mora em um edifício gigantesco no mais elevado piso, e sua empresa ostenta uma arquitetura grandiosa que dá abertura a uma leitura de opressão e poder. Isso fica evidente na relação de dimensão na cena em que Deckard e Tyrell se conhecem (18h35min). Em um plano geral, a imagem mostra a relação homem-ambiente: comparando as colunas de sustentação da sala e até mesmo o prédio que aparece ao fundo, percebe-se que as pessoas são infinitamente
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menores que os elementos da construção arquitetônica, reforçando a leitura de ostentação e poder (figura 14).
Figura 13: Iluminação feita pelos neóns: clima escuro e opressor. Fonte: Blade Runner, 1993.
O discurso “dentro-fora” foi instituído através de dois tipos de iluminação. Nas cenas externas em terra, há um aspecto mais frio e azulado (figura 15), produzido principalmente pelos neóns e pelas luzes fluorescentes. Já em algumas cenas internas, para se produzir uma relação intimista entre os personagens, optou-se por uma atmosfera com aspecto amarelado, através do uso de luz dura e rebatida, que produz uma relação de proximidade.
Figura 14: Dimensão da arquitetura. Fonte: Blade Runner, 1993.
A fonte de luz nos ambientes internos sempre vem da janela ou de algum objeto da casa. Por exemplo, quando Deckard, em sua casa, conversa com Rachael depois desta matar Leon, seu rosto é iluminado em uma das laterais por uma geladeira (01h04min). Nessa mesma seqüência, a luz que vem de fora fica mais intensa e provoca um clarão branco na tela, intercalando personagem/clarão como uma transição. A luz da janela foi produzida pelos refletores de xenônio que iluminam Rachael, provocando os altos clarões quando passam e deixando apenas um vestígio de luz suficiente para iluminar o rosto da personagem. Esses feixes de luz sugerem a constante presença de aeronaves futuristas e estão
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inseridos em um contexto subliminar: esta Los Angeles do futuro é um lugar escuro e perigoso, com o crime em toda a parte, em que a polícia intensifica sua vigilância fazendo rondas constantes. Evidentemente, a tática sugere um estado policial, ou uma mentalidade “big brother”, como no clássico 198, de George Orwell (1948). Assim, esses feixes de luz sugeririam ao telespectador que ninguém tinha qualquer privacidade neste mundo futuro.
Figura 15: Cena externa, aspecto azulado. Fonte: Blade Runner, 1993.
Em Blade Runner, a chuva funciona como um elemento do cenário e oscila entre o primeiro plano e o fundo do quadro. Esse elemento cenográfico, além de fundamental para a criação de um clima de dissolução, produz plasticamente uma fotografia iluminada e dá brilho ao fundo escuro da noite – recurso que torna o fundo visível, dando profundidade ao bidimensional. Na maioria das cenas externas, a chuva está em um plano de fundo, mescla-se ao cenário e compõe com naturalidade o ambiente. Muitas vezes, ela se desloca para “primeiros planos”, e pode ser notada pelo aumento do ruído e a maior evidência de sua presença, o que causa um estranhamento no espectador e que será importante no entendimento e nas sensações durante o filme (OLIVEIRA, 1999) (figura 16). A chuva de Blade Runner não é “natural” e terá influência na composição do blade runner Deckard, como uma metáfora desse mundo dissoluto.
Figura 16: Efeito da chuva na cena. Fonte: Blade Runner, 1993.
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As cores utilizadas no cenário influenciam na iluminação. Como citado anteriormente, nas cenas internas há predomínio de tons terrosos. Essa neutralidade de cor provoca uniformidade e opacidade na imagem, onde os contrastes são elaborados através da iluminação (35h09min), possibilitando que a luz se sobressaia (figura 17). Nas externas aéreas, a neutralidade do cenário dá destaque às luzes dos prédios e dos letreiros em neón. Assim, o cenário se mostra pela forma, com a opulência da arquitetura pós-moderna (07h38min; 23h19min) e sugere uma simulação de inovações arquitetônicas, pelo uso de novos materiais e de estilos arquitetônicos que condizem com o desenho que se faz da realidade das grandes cidades do futuro, enfatizando o conceito de cidade contemporânea (Davis, 1993) em que novas tecnologias, juntamente com um conjunto de concepções morais que cercam as pessoas, determinam novos ambientes.
Figura 17: Neutralidade das cores do cenário, destaque para a luz. Fonte: Blade Runner, 1993.
Mais humano que humano: construção de personagens Na caracterização dos personagens, fica nítida a diferenciação de humanos e andróides. Os humanos são degradados, refletindo a situação do planeta: guerras nucleares, devastação da natureza, megacidades superpovoadas, sub-empregos. A pele é viscosa, com alguns defeitos – muitos indivíduos sofrem de doenças degenerativas. Já os andróides são seres quase perfeitos, inteligentes, fortes e belos, dependendo do objetivo para o qual foram projetados. Rachael, por exemplo, tem a pele impecável, os lábios delineados e os olhos bem desenhados. Seus trajes lembram os de uma boneca. Apresenta uma exímia postura, alinhada e elegante. Em muitas cenas da personagem, a iluminação ressalta essas características de pele e de postura, principalmente nos olhos, quando esses recebem um foco de luz (técnica semelhante à de filmes das décadas de 1920 a 1940, quando as grandes divas recebiam essa iluminação para ressaltar e dar mais expressão aos olhos) (MOURA, 1999). A fotografia é fundamental para a materialização da imagem construída para as personagens do filme, ajudando a retratar esses personagens através da iluminação e da composição de cena. A seqüência em que Rachael passa pelo teste Voigt-Kampff – nome criado para designar os testes nos olhos dos replicantes – é exemplar nesse sentido. A composição do quadro, como um retrato, favorece a apresentação da personagem – nessa cena se constrói, literalmente, um perfil de Rachael. A pele clara da atriz, altamente refletiva,
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foi uma característica que possibilitou os close-ups da seqüência. No momento em que ela segura um cigarro em sua mão direita, uma luz foi aplicada para iluminar somente seu cabelo, pescoço, mão e a fumaça do cigarro. Seu rosto está envolvido pela abundante fumaça do cigarro, o contra-luz demarca a silhueta e ressalta a personagem e, juntamente, com a luz lateral dura com um fraco rebatedor do lado oposto, define bem o contorno de sua cabeça e destaca seus olhos. A oposição luz versus sombra da composição sugere a ambigüidade da personagem, e o clima de mistério se complementa pela penumbra, apresentando a personagem praticamente mergulhada na sombra (figura 18). A dicotomia luz e sombra permeia toda a narrativa e é responsável pela dualidade humano versus replicante presente no filme. A baixa profundidade de campo ressalta a personagem em plano próximo, o que demonstra que também a escolha dos planos é determinante na significação da cena. O rosto em primeiro plano exerce o efeito de aproximação, compartilhamento e é parâmetro de dimensão e importância do personagem naquela cena.
Figura 18: Construção do perfil de Rachael. Fonte: Blade Runner, 1993.
Na seqüência em que Deckard atira em Zhora, a replicante é atingida enquanto corre e atravessa portas de vidro do corredor de uma loja onde, nas laterais, há vitrines com manequins. Pela montagem da cena, percebe-se a contraposição de Zhora com os manequins (figura 19). A morte da replicante é captada por vários ângulos através de diversas câmeras, com os frames registrados em diferentes velocidades, o que cria um efeito de pulsação das luzes de neón colorido do cenário utilizado para completar a iluminação, pois permite uma fotografia em alta velocidade devido a sua potência. Além do valor estético, a pulsação do neón age como elemento da perseguição. Cronenweth conta que: (…) o próprio Ridley teve a idéia de levar os letreiros de néon do cenário da rua e os colocou nas janelas das lojas. Então nós fotografamos a perseguição com múltiplas câmaras especiais. Isso criou um efeito de vibração no néon que não era possível ao fotografar na velocidade das câmaras normais, mas definitivamente funciona numa filmagem com uma seqüência de quadro mais alta. (LIGTMAN & PATTERSON, 1999)
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Essa fonte de iluminação refletida nos vidros produz a iluminação e os estilhaços do vidro causam o ruído na imagem. Assim como os manequins da loja, Zhora, um ser artificial, apresenta feições e estrutura humanas. Mas, diferentemente dos manequins estáticos, ela se comporta como humanos e até mesmo se preocupa com a auto-preservação, correndo contra a morte. Em muitos dos ângulos, a imagem de Zhora por um jogo de reflexos, fica refletida com os manequins, causando uma sobreposição de imagens (figura 19A), que reforça o questionamento natural versus artificial.
Figura 19: Contraposição de Zhora com os manequins. Fonte: Blade Runner, 1993.
Figura 19A: Justaposição de imagens: Zhora e manequins. Fonte: Blade Runner, 1993.
Na cena em que o líder dos replicante Roy Batt (Rutger Hauer) encontra Tyrell, seu criador para exigir maior tempo de vida, o cenário está composto por inúmeras velas flamejantes fixadas em castiçais distribuídos por todo o quarto, produzindo um efeito de penumbra no ambiente. Quando afirma não poder aumentar o tempo de vida do replicante, o cientista tenta consola-lo dizendo que “A luz que brilha duas vezes mais que o normal costuma apagar-se na metade do tempo, e você Roy, tem brilhado muito” (Blade Runner, 1993). Em um close do seu rosto levemente iluminado e envolvido pelo grafismo da sombra das velas, Roy diz que fez coisas questionáveis, beija Tyrell enquanto aperta seus olhos para matá-lo. A expressão do rosto do ator iluminado pela luz amarelada e invadido pela oscilação das sombras das chamas das velas ressalta a tensão do personagem e causa um efeito de movimento na imagem produzindo algo fantasmagórico (figura 20). Esse efeito sugere o replicante como um ser atormentado, que luta pela sobrevivência, e
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que em sua perfeição de replicante pratica atos humanos e tem inclusive sentimentos humanos. Além disso, as velas funcionam como uma metáfora para a morte de Tyrell e para o pouco de vida que resta a Roy.
Figura 20: A iluminação e a expressão do ator. Fonte: Blade Runner, 1993.
Uma das cenas mais famosas e marcantes do filme é quando o andróide Roy salva Deckard e, molhado pela chuva, diz ao blade runner antes de morrer “Eu vi coisas que vocês pessoas não acreditariam… Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion… Eu vi a luz do farol cintilar no Portal de Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva.” Blade Runner mostra a preocupação da preservação da memória através da registro e da conservação da imagem. O discurso dele foca-se nas imagens vistas que serão perdidas após sua morte. Dentro de uma abordagem maior no filme sobre o que é humano, o inusitado está no fato de uma preocupação humana em registrar imagens para posteridade ser pronunciada por um andróide – um andróide preocupado com a preservação da memória (algo essencialmente humano) e discutindo o valor da vida. Uma forte luz atrás, em tom azulado, produzida pelos neóns incide em Roy e provoca uma atmosfera onírica e uma aura azulada, reforçada pelo ruído da precipitação de chuva abundante (figura 21). A iluminação e a chuva provocam um aspecto esbranquiçado à imagem, como se algo estivesse se diluindo. Quando Roy diz, “hora de morrer”, a luz de fundo torna-se um clarão, recortando a silhueta do andróide e valorizando sua figura (figura 21A). Na seqüência, as tomadas concentram-se na imagem de Roy. Ele está em primeiríssimo plano, sem nenhuma profundidade de campo, o que possibilita captar a expressividade do ator representando um personagem que se comporta como humano, até mesmo um pós-humano, discursando com consciência sobre vida versus morte, memória versus esquecimento. Em Blade Runner, alinhavando todas essas questões, em um discurso mais explícito, percebe-se a efemeridade, a preocupação com a passagem do tempo, a durabilidade da vida e do que é produzido. No final do filme a conclusão dessas idéias é bem pontuada quando Gaff, o assistente do chefe de polícia, diz a Deckard se referindo a Rachael: “Pena que ela não viverá, mas quem vive?”
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Figura 21: A chuva como elemento de discurso na cena. Fonte: Blade Runner, 1993.
Figura 21A: A morte do replicante. Fonte: Blade Runner, 1993
Considerações finais O diretor do filme, Ridley Scott, descreveu Blade Runner como um filme passado há 40 anos, para 40 anos à frente, no futuro. Sendo assim, ele é ao mesmo tempo arcaico e futurista. Por todo o filme há o discurso relacionado ao tempo e o contraponto entre simulação e representação da realidade. A fotografia participou tecnicamente, de forma ativa, da construção desse discurso, reproduzindo na tela o ambiente cyberpunk da literatura e, ideologicamente, foi responsável pela introdução da dicotomia homem versus máquina e pela construção da mensagem visual de um mundo escuro, sombrio, opressor e desequilibrado. Como obra coletiva, uma obra cinematográfica precisa alinhar roteiro, construção de personagens, cenografia, figurino, entre outros elementos, além de aplicar e utilizar a luz para a construção da narrativa. Dessa forma, a iluminação faz parte de um contexto: história, atuação, direção e todas as etapas da produção que influem na construção do significado. Quando o diretor de fotografia preocupa-se em adequar a estética fotográ-
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fica à narrativa do filme, a iluminação e a composição do quadro fazem com que a obra possua ação dramática mais expressiva. Assim como na literatura, o ambiente de Blade Runner foi construído seguindo como referência o efêmero, o opressor e a tênue diferenciação entre o que é artificial e o que é natural. O presente trabalho objetivou levantar e analisar os principais pontos da fotografia do filme Blade Runner e através desses pontos foram possíveis as leituras de cena dentro do contexto proposto pela obra. A fotografia do filme conseguiu transpor em imagens o ambiente lúgubre da obra original de P. K. Dick, participando ativamente inclusive na construção dos personagens – para tanto, foi essencial o trabalho de iluminação, bastante influenciado pela estética noir e suas constantes referências à comparação de opostos (claro versus escuro, externo versus interno, andróide versus humanos). Juntamente com outras obras cinematográficas e literárias, Blade Runner produziu imagens que, hoje, são referências para a compreensão do movimento cyberpunk e das suas influências na cultura pós-moderna.
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* Patrícia Kiss Spineli é docente das Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU, São Paulo. E-mail: <kissspineli@yahoo.com.br>.
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e
Relações entre jornalismo cinema no Brasil
Valdir Baptista*
Resumo: O texto pretende traçar um plano geral das relações entre cinema e jornalismo no Brasil, analisando os seguintes pontos: a)a evolução do papel do jornalista nos filmes brasileiros; b) A relação da crítica cinematográfica com o fazer cinematográfico; c) A militância dos cineastas em outros espaços do jornal, além dos limites da crítica; d) A relação dos jornalistas com o documentário. Palavras-chave: jornalismo, cinema, documentário Relations between Journalism and Cinema in Brazil Abstract: This paper intends to trace a general framework of the relationship between cinema and journalism in Brazil by analyzing the following points: a) the evolution of the journalist’s role in Brazilian films; b) the relationship between film critics and film making; c) the political militancy of filmmakers in newspaper columns, beyond the limits of criticism; and d) the relationship of the journalists with documentaries. Keywords: Journalism, Cinema, Film Reviews
A
s relações entre jornalismo e cinema no Brasil, principalmente a partir do final dos anos 1950, são muito estreitas e merecem análises detalhadas, especialmente pelo que revelam sobre como a sociedade brasileira entende o papel social da imprensa e do jornalista. O objetivo deste trabalho é estabelecer possibilidades de estudo desta mútua influência, que vão desde a forma como os jornalistas são representados na tela até ao exame das trajetórias de vida de jornalistas e cineastas que exerceram ou exercem ainda papel relevante em pelo menos uma das duas áreas. Os pontos que serão estudados são os seguintes: a) A evolução do papel do jornalista nos filmes brasileiros; b) A relação da crítica cinematográfica com o fazer cinematográfico; c) A militância dos cineastas em outros espaços do jornal, além dos limites da crítica; d) A relação dos jornalistas com o gênero documentário. A evolução do papel do jornalista como personagem no cinema brasileiro já reflete a imbricação de novo tipo entre o jornalismo e o cinema. Antes do movimento do Cinema Novo, o jornalista era tratado, de modo geral, através do viés sensacionalista, isto é, com acento pejorativo e desqualificante da profissão, como em O Pagador de Promessas (1962), peças teatrais de grande sucesso, escritas, respectivamente, pelos dramaturgos
O pagador de promessas
Dias Gomes, marxista assumido, e pelo auto-intitulado “reacionário” (e jornalista) Nelson Rodrigues. Neles, os jornalistas (cujos papéis são secundários, mas determinantes nas tramas) seguem o estereótipo do sensacionalista que deseja se aproveitar de pessoas humildes para executar seu trabalho, num estilo semelhante ao do protagonista do célebre filme norte-americano A Montanha dos Sete Abutres (1956), do cineasta (e jornalista) Billy Wilder. O advento do Cinema Novo determina uma virada e, a partir de filmes como O Desafio (1965), de Paulo César Saraceni, e Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, o jornalista ascende ao papel principal e passa a ser tratado em outra chave dramática. Marcelo, em O Desafio, é um jornalista perplexo diante do golpe de 1964, que percebe a mudança política invadindo a sua vida profissional (a possibilidade da censura lhe tira o ânimo de continuar a escrever seu livro) e afetiva (a namorada, esposa de um industrial, tem outras perspectivas políticas e sociais). Estes conflitos, nas palavras do crítico JeanClaude Bernadet, “introduzem no cinema brasileiro algo que até agora não chegara a existir, ou seja, a luta de classes”. Já Paulo Martins, o jornalista e poeta que protagoniza Terra em Transe, envolve-se diretamente na política e, diante de um retrocesso político que lembra o golpe de 1964 (a ação tem como cenário um país imaginário chamado Eldorado), opta pela guerrilha (voluntariosa e suicida) como única saída e morre após romper uma barreira policial. O filme, realizado no mesmo ano em que Ernesto Che Guevara morria em uma emboscada na Bolívia, antecipa a guerrilha no Brasil, que seria deflagrada dois anos depois, sendo considerado internacionalmente um clássico do cinema político. Em suma, nestes filmes o jornalista assume um papel de protagonista e sujeito da história. O oportunismo é substituído pelo idealismo e, embora os personagens citados estejam imersos em contradições, suas posturas rompem com o estigma do jornalista praticante do sensacionalismo e representam a profissão como politizada e intelectualizada. Mas cabe aqui uma pergunta: o que determinou essa mudança? Há, claro, o efeito da politização ocorrida nos anos 1960, exposta tanto nas artes como nas rebeliões estudantis da época. Mas penso que esta não é a única explicação válida. Minha hipótese é de que esta mudança foi gestada um pouco antes, primeiramente na crítica de cinema nacionalista que antecipou o Cinema Novo. Deve-se também à relação estreita que diversos cineastas tiveram não apenas com o espaço da crítica no jornal, mas também com outros espaços de opinião e mesmo com a reportagem. O jornal era um espaço da luta política e o cineasta, em busca de uma valorização maior no contexto da cultura brasileira, faz do jornalista um parceiro ideal. Cineastas e jornalistas, antes alcunhados de “chanchadeiros” e sensacionalistas, passam a almejar status intelectual. No
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caso do Cinema Novo, vale transcrever as palavras de Ismail Xavier, que resumem este salto qualitativo: em sua variedade de estilos e inspirações, o cinema moderno brasileiro acertou o passo do país com os movimentos de ponta de seu tempo. Foi um produto de cinéfilos, jovens críticos e intelectuais que, ao conduzirem essa atualização estética, alteraram substancialmente o estatuto do cineasta no interior da cultura brasileira, promovendo um diálogo mais fundo com a tradição literária e com os momentos que marcaram a música popular e o teatro naquele tempo. (…) Ele expressou uma conexão mais funda que fez o Cinema Novo, no próprio impulso de sua militância política, trazer para o debate certos temas de uma ciência social brasileira, ligados à questão da identidade e às interpretações conflitantes do Brasil como formação social.
No âmbito da crítica cinematográfica, o nome mais significativo é Paulo Emílio Salles Gomes, que no final dos anos 1950, escrevia no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo. Paulo Emílio fora exilado político no Estado Novo e, na década de 1940, participara do grupo que editou a revista Clima, formado por intelectuais da esquerda independente como Antonio Cândido, Ruy Coelho e Décio de Almeida Prado. Suas idéias, além de influenciarem a crítica, tiveram destacada participação na formação dos mais importantes quadros do Cinema Novo. Um marco dessa influência é o artigo Uma Situação Colonial?, publicado originalmente em 19/11/1960, no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. O crítico Ruy Gardnier, na revista eletrônica Contracampo, faz o seguinte balanço: Esse texto de Paulo Emílio representa a sua primeira tentativa sistemática de pensar o cinema brasileiro sob o viés de um subdesenvolvimento intrínseco às grandes produções sociais e culturais. Tentativa que depois vai se formalizar num dos textos mais importantes já feitos sobre cinema brasileiro, a saber, Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento.
Cabe lembrar que trata-se de um artigo opinativo, que extrapolava a crítica cinematográfica e enveredava pela sociologia e pela política. Através de seus escritos publicados em jornais, Paulo Emílio recrutava “quadros” para a sua política cinematográfica. Em primeiro lugar, trouxe muitos jovens para escrever no Suplemento Literário, entre os quais se destacaram Gustavo Dahl, que se tornaria depois cineasta, e Jean-Claude Bernadet, cineasta, ator e roteirista bissexto, que tem provavelmente a mais importante obra de análise do cinema brasileiro. Transcrevo um depoimento de Bernadet: A influência de Paulo sobre mim ultrapassa de muito a questão do cinema. A influência puramente intelectual foi muito grande, mas além disso há outras circunstâncias. No fundo eu sou um imigrante, e na época em que conheci Paulo Emílio, final da década de 50, falava muito mal o português e nem escrevia na língua. Além disso era uma pessoa muito tímida. Paulo foi a primeira pessoa que encontrei que confiava em mim e que lutou contra minha timidez, colocando-me em situações de desafio. Comecei a
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escrever no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo quando um belo dia Paulo viajou longamente e deixou outras pessoas para escrever em seu lugar, Rudá de Andrade, Gustavo Dahl, e incluiu-me nessa equipe, embora eu argumentasse que não escrevia em português. No dia em que ele partiu, estávamos na Cinemateca e ele disse: ‘Você vai escrever’. Quando ia responder não, ele saiu e fechou a porta na minha cara. Acabei fazendo e comecei a escrever regularmente. Portanto, Paulo foi uma influência enorme.
Diversos cineastas, entre eles Glauber Rocha, Cacá Diegues, Gustavo Dahl, Paulo César Saraceni e David Neves atestam a influência de Paulo Emílio sobre aquela geração de cineastas. Mesmo em escritos de seus detratores, como Carlos Alberto Mattos, é possível encontrar textos que referendam sua influência ideológica sobre o Cinema Novo: “Em São Paulo, Jean-Claude Bernardet, Paulo Emílio Salles Gomes e Gustavo Dahl (O Estado de S. Paulo), procuravam dar bases teóricas a um movimento que acompanhavam relativamente à distância”. Também em 1959, foi publicado o livro-fundador da nossa historiografia cinematográfica, Introdução ao Cinema Brasileiro, do jornalista e cineasta Alex Viany, saudado reiteradamente, inclusive pelo próprio Paulo Emílio. Segundo Arthur Autran, Alex Viany teve um papel fundamental no sentido de revelar uma tradição histórica do cinema brasileiro e/ou contribuir para a sua modernização. Pelo conjunto de depoimentos, registros escritos e memórias dos componentes do Cinema Novo, apenas Paulo Emílio Salles Gomes tem tanto destaque como formador intelectual.
O fato é que, como exposto acima, jornalistas e críticos – Paulo Emílio, Viany, Bernadet e Dahl – tiveram papel fundamental no estabelecimento dos parâmetros que norteariam um cinema brasileiro realmente comprometido com o país e que se cristalizou no Cinema Novo. Entre os jovens cineastas que fizeram o referido movimento, diversos também tiveram militância no jornalismo no começo dos anos 1960: 1) Glauber Rocha, além de crítico de cinema precoce, colaborando ainda adolescente com diversas publicações, foi repórter da equipe que fundou o Jornal da Bahia e, ao longo de toda a sua vida colaborou sistematicamente com diversas publicações, como O Pasquim, Correio Braziliense, Folha de S. Paulo e Jornal do Brasil, além de ter sido presença marcante no jornal televisivo Abertura, dirigido por Fernando Barbosa Lima; 2) Cacá Diegues, crítico de cinema e editor de O Metropolitano, jornal com grande influência no movimento estudantil carioca do começo dos anos 1960; 3) David Neves, crítico de cinema no jornais O Metropolitano, Tribuna da Imprensa e na revista Filme Cultura; 4) Arnaldo Jabor, crítico de cinema de O Metropolitano e editor da revista Movimento. Há cerca de dez anos, afastou-se do cinema e passou a se dedicar ao jornalismo como sua atividade principal, atuando na Folha de S. Paulo, em O Estado de S.Paulo e na TV Globo;
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5) Paulo Gil Soares, começou nos Diários Associados, na Bahia, atuou em A Tarde e foi colega de Glauber na primeira equipe do Jornal da Bahia. Posteriormente, no Rio de Janeiro, passa a dirigir o Globo Repórter, programa jornalístico da TV Globo; 6) Miguel Borges, jornalista antes de ser cineasta, tendo trabalhado no Jornal do Commércio, na Tribuna da Imprensa em O Metropolitano; 7) Walter Lima Jr., crítico de cinema no Diário de Notícias, de Niterói, e no Correio da Manhã. Posteriormente, já cineasta, dirigiu episódios do Globo Repórter; 8) Eduardo Coutinho, já cineasta, colaborou como crítico de cinema na revista Visão e no Jornal do Brasil, além de atuar, como diretor e técnico, no Globo Repórter; 9) Nelson Pereira dos Santos, jornalista desde 1957, trabalhou no Jornal do Brasil e no Diário Carioca; 10) Ruy Guerra, ainda que tardiamente, colaborou com crônicas semanais para O Estado de S.Paulo na década de 1990. Vale lembrar ainda que Luiz Carlos Barreto, principal produtor de filmes no Brasil desde os anos 1960, tinha já uma consolidada carreira de fotojornalista na revista O Cruzeiro quando passou a se dedicar ao cinema. Em suma, quase todo o núcleo mais importante do Cinema Novo teve algum tipo de relação direta com o fazer jornalístico. Como é praxe, há exceções e Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade são os únicos nomes significativos entre elas. Estabelecido o consenso de que o Cinema Novo foi um movimento cuja interface com o jornalismo foi decisiva, cabe buscar de uma explicação para isto. Como, na época, as duas profissões não eram regulamentadas, o acesso ao jornalismo e ao cinema era livre, dava-se principalmente pela prática e era comum que pessoas transitassem entre uma e outro. Em paralelo, e antes mesmo do Cinema Novo, a crítica de cinema era uma ponte para que diversos outros cineastas chegassem à direção de filmes. Ainda na década de 1950, há a estréia na direção de Rubem Biáfora, influente crítico de O Estado de S.Paulo, cujas concepções cinematográficas eram radicalmente opostas às de Paulo Emílio. Também Walter Hugo Khoury, que colaborava com críticas para o mesmo jornal, fez sua estréia como diretor nesta época. Na década seguinte, acontecem as estréias de Luis Sérgio Person, editor da revista de cinema Seqüência; Rogério Sganzerla, jornalista profissional e crítico de cinema nos jornais O Estado de S.Paulo, Jornal da Tarde e Folha da Tarde; Maurice Capovilla, repórter de O Estado de S.Paulo em 1958 e crítico de cinema do Jornal da Tarde em 1965-66 e Maurício Gomes Leite, crítico de cinema da lendária Revista de Cinema, editada em Belo Horizonte nos anos 1950, onde também colaborou com os jornais O Estado de Minas e Diário da Tarde. Nos anos 1960, já no Rio de Janeiro, Gomes Leite atou como crítico de cinema no Correio da Manhã, no Jornal do Brasil e na revista Manchete. Outros nomes importantes que estrearam como cineastas nos anos 1960 são: Mário Fiorani, crítico de cinema da revista Paratodos; Maurício Rittner, crítico de cinema de O Estado de S.Paulo e do Jornal da Tarde; Vladimir de Carvalho, que trabalhou em diversos jornais da Paraíba e do Rio; Sylvio Back, jornalista profissional e crítico de cinema
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em jornais de Curitiba, que colaborou também com suplementos culturais dos grandes jornais de São Paulo e Rio de Janeiro. Nos anos 1970, ascendem à direção os críticos Alfredo Sterheim e Jairo Ferreira. Esta “moda” de críticos ascendendo à condição de cineastas tem paralelo na revista de cinema francesa Cahiers du Cinema. Diversos críticos da revista, nas décadas de 1950 e 1960, também passaram à direção cinematográfica, em geral ligados ao movimento da Nouvelle Vague, entre eles os importantíssimos Jean-Luc Godard e François Truffaut. Nos anos 1970, abriu-se uma nova oportunidade para cineastas no contexto do jornalismo de televisão: a TV Globo, com o programa Globo Repórter, passou a apresentar o Brasil aos brasileiros através de imagens em movimento. Como a regulamentação da profissão ainda era relativamente flexível e, além disso, havia poucos jornalistas com conhecimento técnico de televisão, pois as faculdades, até por falta de equipamentos, enfatizavam o jornalismo escrito, abriu-se um espaço para que cineastas, especialmente os documentaristas, ocupassem este espaço. E assim foi: além dos já citados Paulo Gil Soares, Eduardo Coutinho, Maurice Capovilla e Walter Lima Júnior, diversos outros cineastas importantes, como João Batista de Andrade, Hermano Penna e Ipojuca Pontes dirigiram trabalhos para a série, muitos deles considerados hoje clássicos do documentário de televisão. Neste momento, o jornalismo passa a colaborar, inclusive, com o aprimoramento da qualidade do cinema brasileiro, pois, trabalhando com segurança financeira e os padrões de qualidade da TV Globo, os cineastas tiveram a oportunidade de aperfeiçoar o seu domínio da linguagem do documentário. Como exemplo, cabe citar um trecho do verbete de Eduardo Coutinho, na Enciclopédia do Cinema Brasileiro: Em 1975 vai para a Globo, trabalhando para o Globo Repórter como redator, editor e diretor. Para ele, a televisão foi uma escola do documentário. Aprendeu a conviver com a rapidez da TV e o trabalho de pesquisa prévio. Fazia um ou dois filmes por ano, sendo que a primeira vez que fez som direto foi para a Globo.
Todos os homens do presidente
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Este período foi, portanto, extremamente importantes para a consolidação do gênero documentário no Brasil. Teve influência também o grande sucesso entre camadas intelectualizadas de um filme norte-americano, Corações e Mentes (Hearts and Minds), dirigido por Peter Davis. Vencedor do Oscar de melhor documentário de 1974, e talvez liberado pela censura em função desse prêmio, o filme foi determinante para que os cineastas enxergassem as perspectivas de interferir na realidade, característica fundamental do gênero. Uma curiosidade que relaciona o documentário com o fazer jornalístico é uma crítica do filme, emblematicamente intitulada Jornalismo e Cinema, assinada por Nilson Lage, e publicada pela revista Filme Cultura em 1979, quando do relançamento do filme. A abertura do texto é veemente: A televisão parece ter condenado à morte o jornalismo no cinema. Deixou aos cineastas da tela grande a terefa de documentar o que é histórico ou está em vias de extinção. Sem a atração da notícia, que espaço resta ao jornalista no cinema? Como interpretar os fatos com imagens, se a interpretação tem sido vista como uma construção verbal de conceitos? Neste sentido, Corações e Mentes, de Peter Davis, aponta um caminho: a técnica serve, aí, como um instrumento para entender a trama por debaixo dos fatos – a grande tarefa do jornalismo contemporâneo.
Lage afirma ainda que “Corações e Mentes é um filme jornalístico, filiado à melhor tradição de documentários políticos carregados de polêmica e vida, como o livro de John Reed sobre a Revolução Russa, Os dez dias que abalaram o Mundo”. Há no texto uma declaração importante do cineasta, publicada na Filmakers Newsletter, em que Davis defende que “A fim de entender as emoções, acho válido um cineasta de não-ficção usar as técnicas do filme de ficção quanto os escritores de não-ficção e os chamados novos jornalistas usarem as técnicas do romance”. Como está explícito acima, o texto de Nilson Lage é angulado pela perspectiva do jornalismo literário, e nela também há uma certa mescla entre jornalismo e cinema típica da época, em que a análise teórica do documentário e sua relação com o jornalismo era ainda pouco estudada. Vale, no entanto, como documento de época, e provavelmente, como o trazendo observações pertinentes sobre a questão. Outra película norte-americana que teve impacto ainda maior junto ao público brasileiro, despertando inclusive vocações para o jornalismo, é Todos os Homens do Presidente (All the President’s Men), dirigido por Alan Pakula (1976). Baseado nas investigações do caso Watergate levada a cabo por dois jovens repórteres, Bob Woodward e Carl Bernstein (interpretados, respectivamente, por Robert Redford e Dustin Hoffman), que determinaram a queda do presidente norte-americano Richard Nixon, o filme sedimentou uma nova perspectiva para a representação do jornalista no cinema: a investigação. É claro que diversos filmes anteriores, tanto no Brasil como no exterior, trouxeram o jornalista no papel de investigador. No entanto, no ambiente brasileiro, em que a imagem do policial após 20 anos de ditadura militar é associada à repressão política, tortura e arbitrariedades em geral, e o detetive particular, uma profissão estranha à realidade do país (detetives, em geral, só aparecem em comédias, costumam ser personagens paródicos), o jornalista como investigador surge como uma possibilidade dramaturgica importante.
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Exemplo importante disso é que até a Rede Globo, quando resolveu produzir um seriado de temática policial em 1979, optou por colocar como protagonista um jornalista investigativo e não um policial ou um detetive. O seriado Plantão de Polícia tinha como personagem principal o repórter Waldomiro Pena. De Todos os Homens do Presidente para cá, diversos filmes brasileiros importantes representam o jornalista como investigador, entre eles Doramundo (1978) e A Próxima Vítima (1983), ambos de João Batista de Andrade, Vento Sul (1978), de José Frazão, e Jenipapo (1995), de Monique Gardenberg, entre outros. Há também filmes como Doces Poderes (1996), de Lúcia Murat, que mostram de forma isenta as ambigüidades enfrentadas no cotidiano do fazer jornalístico e seus dilemas éticos. O estereótipo do jornalista como profissional medíocre e ávido por notícias sensacionalistas foi portanto quebrado no cinema brasileiro, seja por influência externa (alguns filmes norte-americanos tiveram papel importante nesta direção), seja pela intimidade com o fazer jornalístico que os cineastas trouxeram das redações. Outro aspecto importante das relações entre fazer jornalístico e fazer cinematográfico foi o desenvolvimento de novas práticas na produção de documentários, desenvolvidas a partir da experiência de experiência de cineastas importantes de programas jornalísticos inovadores na televisão brasileira, como o programa Globo Repórter.
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* Valdir Baptista é jornalista, professor universitário, pesquisador e documentarista. E-mail: <valdirbaptista@gmail.com>.
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If…
Lindsay Anderson e uma proposta ética do Free Cinema
Mauro Luciano Souza de Araújo
Resumo: O presente artigo se coloca como uma apresentação do que se chamou Free Cinema, movimento que teve início em meados da década de 50 e deu visibilidade à cultura européia temáticas como o conflito de classes e o trabalho operário sob o olhar de jovens diretores ingleses. Palavras-chaves: novo cinema, autoritarismo, modernização If… – Lindsay Anderson and ethics proposal of the Free Cinema Abstract: The article is an introduction to what came to be called “Free Cinema” - a movement which started in the mid fifties and which highlighted some European cultural questions, like class conflicts and blue-collar work, as viewed by young English directors. keywords: “Cinema Novo”, Authoritarism, Modernization
E
m fevereiro de 1956 quatro jovens residentes na Inglaterra publicam um manifesto com o impulso da vanguarda no cotidiano do cinema britânico. Ao lado do manifesto a favor de uma liberdade de criação e de expressão, vinham os filmes: três curtas metragens: Momma Don’t Allow (dir. Karel Reizs/Tony Richardson, UK, 1956, 22min), Together (dir. Lorenza Mazzetti, UK, 1956, 52 min) e O Dreamland (dir. Lindsay Anderson, UK, 1953, 12 min). Os filmes foram exibidos no National Film Theatre - NFT de Londres com a intenção de facilitar a exibição dos vários curtas metragens feitos pelos angry young men, grupo de jovens de esquerda. Free Cinema é o nome do movimento do novo cinema inglês. Junto à exibição vem o tal manifesto que aparece em um panfleto bastante bem cuidado, distribuído no NFT, demonstrando aos distraídos que a intenção dos autores era produzir filmes essencialmente diferentes dos que vinham sendo feitos – os conhecidos documentários ingleses, em sua maioria com o formato didático simples, e ficções bastante tradicionais. A regra comum das produções no país até então era a de produzir películas classificadas pelos espectadores mais jovens como obras “entediantes”.1 A Inglaterra, neste
1 Since the war most documentaries have been entirely boring because their content has been censored by those who have made them according to the dictates of the most static, uncreative concern possible:
momento, era internacionalmente conhecida por seus documentários, edificados pela pedagogia de um John Grierson, junto ao Estado na administração do Empire Marketing Board – EMB. No manifesto do novo cinema eles afirmam que a perfeição não é a meta – e que somente da atitude que nasce um estilo. Uma tentativa de trazer realidade para as telas e quebrar, romper com o esquema de produção inglês da década de 50. O Free Cinema não ficou conhecido por inventar outras normas de linguagem, principalmente além das narrativas disponibilizadas pelo cinema clássico americano, como aconteceu depois nos filmes da Nouvelle Vague francesa, alguns anos mais tarde, início da década de 60. Ainda sim, os primeiros filmes apresentados no NFT, ao lado do manifesto explicativo dos filmes, demonstram uma ligação bem maior dos novos autores ingleses com a baliza cinematográfica européia, mais especificamente aquela em que Jean Vigo e demais diretores afeitos à vanguarda experimentaram alguns anos antes. E, como não poderia ser deixado de lado, a carga narrativa e dramática do neo-realismo italiano. Os curta-metragens citados e o manifesto do “cinema livre” abrem horizontes, bem como faziam as vanguardas artísticas, e dão o que podemos chamar de aval para dois anos mais tarde a nova onda francesa chegar mais aguda, mais crítica e árdua na busca pela liberdade no cinema. Na França, o contexto de aparecimento da política de autores, por exemplo, é semelhante ao dos jovens do Free Cinema. Assim como a renomada e influente revista francesa de cinema Cahiers du Cinéma era o periódico Sequence, editado pelos também futuros diretores de cinema Lindsay Anderson, Karel Reisz e Gavin Lambert, na Inglaterra. Há muito pouco traduzido ou escrito sobre essa vertente do cinema, esta que certamente foi ofuscada pela maestria dos demais movimentos dos jovens autores da época. No Brasil, principalmente – praticamente não há referências. Entretanto, este artigo, embora sem maiores pretensões teóricas, tem como intenção dar uma introdução para a concern with Prestige - either national or commercial. CF. BERGER, John. Look at Britain. Sight & Sound, 1957. p. 12, 1.
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os que não têm conhecimento da influência da Inglaterra, suas narrativas que mostram contradições sociais, seu modo peculiar de fazer o espectador, leitor, observador de arte perceber seu mundo extremamente conflituoso.
A sociedade do Free Cinema Também no ano de 1956 a União Soviética invadia a Hungria, fato que provoca a desfiliação de vários integrantes do Comunist Party na Inglaterra. Surge então uma nova indicação para uma esquerda mais crítica aos moldes do partido, que é a Nova Esquerda (New Left), com intelectuais como o Perry Anderson, J.B.Thompson, Raymond Williams e outros em sua base. Essa nova esquerda, crítica de um chamado marxismo vulgar e antiquado, se mostrava atuante tanto nos estudos como nas práticas (práxis). Thompson escreve The Making of The English Working Class (1963), surge a New Left Review (revista da nova esquerda) em 1960 – ao lado das publicações há uma reforma de antigos clubs. Nos anos 30 os clubs eram freqüentados pelos membros do Partido Comunista inglês. “Na década de 1960 reeditam-se, em várias cidades, os New Left Clubs, que atraíam um número expressivo de freqüentadores.”2 Agora nos chamados de New Left Clubs, aparecem novos artistas que ganham a alcunha de Angry Young Men, jovens que criaram não só o novo cinema, mas uma nova literatura e teatro se reuniam para discutir estética e política. Não fosse esse clima de ebulição da nova esquerda não haveria espaços, por exemplo, para ritmos relegados à marginalidade no país de origem, mas que se tornaram gêneros musicais bastante populares entre os jovens na Inglaterra: o jazz e o blues americanos – ritmos negros que foram, assim como o reggae na era do punk inglês, afirmados como músicas revolucionárias pelos jovens. Na verdade, ali se davam os primeiros passos para uma crítica no bojo dos estudos culturais. Lindsay Anderson, um jovem nascido em Bangalore na India, encabeça o movimento do Free Cinema no país colonizador, neste momento histórico em que há uma forte repressão por parte de governos ainda caracterizados como imperialistas, como o da Inglaterra, ao mesmo tempo com uma miragem comunista na Ásia. A causa da repressão dos tais governos tradicionalistas era justamente a fantasmagórica ameaça comunista, lógica diretamente ligada à polarização política posta pela guerra fria. Anderson filma com ironia desde o início de sua carreira: Wakefeld Express (1953), Trunk Conveyor (1954), Thursday’s Children ( junto a Guy Brenton, 1955), Foot and Much (1955), Henry (1955), antes de O Dreamland e Every Day Except Christmas, este último um documentário sobre o Mercado de Convent Garden, onde já se vê uma pequena crítica ao trabalho. Lembremos que os filmes documentários da época eram muito devedores do partido trabalhista e de toda a política impressa pelo estilo da EMB. Após algumas produções também para a TV, Anderson é convidado a participar de festivais de cinema pelo mundo. À volta para a Inglaterra, ele afirmaria: Eu trabalho para o cinema, o que me proporciona uma razão mais para me sentir desalentado sempre que regresso à Grã-Betanha. Devemos reconhecer que esse meio de trabalho é sempre difícil, em qualquer parte do 2 CEVASCO, Maria E. Dez lições sobre estudos culturais, p. 89.
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mundo, mas também há que confessar que são muito poucos os países nos quais se dá ao cinema uma utilização tão pouco significativa.3
Sua crítica vai ao snobismo inglês. Enquanto ele via um humanismo geral sendo privilegiado nos filmes em festivais como o de Cannes, onde desde filmes de Jean Rouch até películas norte americanas tinham a inovação da linguagem, tal privilégio ético não era fundamento do cinema inglês. Para contrapor ao humanismo débil do nosso cinema, temos de dizer claramente que e anti-nteligente, emocionalmente inibido e deliberadamente cego às condições e problemas do momento atual, e que se dedica a um ideal nacional completamente antiquado e exausto.4
Já no filme If… (Lindsay Anderson – 1968, dez anos depois do início do movimento do cinema livre), o que vemos é uma tentativa de apresentar e expor a densidade de sua época, além de trazer o ar inglês da ironia e realismo uma contestação polida, porém incisiva, com traços de rompimento com o velho cinema para as massas. Nós vemos, por exemplo, em filmes como A Taste of Honey (Tony Richardson, 1961), This Sporting Life (Lindsay Anderson, 1963) e em Look Back in Anger (Tony Richardson, 1958) a tentativa de humanizar o personagem com um discurso concernente à working class (classe trabalhadora) que é a protagonista nas histórias. Os autores do Free Cinema não nos mostram apenas personagens ou histórias no sentido convencional, mas conflitos entre classes que não se resolvem. Com influências do teatro de Brecht, com uma trama episódica, If… faz do contar histórias uma magia que explicita os truques para a platéia.
O social explícito – uma espécie de cinema militante Os conflitos nos filmes chamam a atenção para uma sociedade que se vê enraizada em suas “castas, onde praticamente não existe a mobilidade entre seus universos – é esse o cerne da revolta constante contra a grandeza ritualista da monarquia britânica, presente nos roteiros dos autores do Free Cinema. Enquanto uns personagens vivem conforto outros não saem da condição de oprimidos, como veremos mais adiante no filme analisado. Os personagens são em geral: 1)- de uma classe média baixa com inspiração aristocrática – uma opção, na maioria das vezes que aparece justamente como um nó das narrativas no conflito de interesses com outros personagens, cujo desenvolvimento narrativo se dá na falta de desenvolvimento; 2)- os outros tipos que entram no conflito são trabalhadores, operários, marginalizados ou prejudicados pela sociedade moderna capitalista que os exclui. Nestes últimos personagens se vê um engajamento contra as estruturas bastante fincadas culturalmente pela tradição conservadora que aparece forte na Inglaterra – fato que dá à maioria dos filmes um teor dramático social.
3 ANDERSON, Lindsay. Depoimentos dos “Angry Men”. Lisboa: Presença, 1963. p. 201. 4 Ibdem. p. 202.
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Peguemos como exemplo o filme A Taste of Honey. Uma mãe deixa a filha adolescente para viver com um senhor de uma classe mais abastada que a sua, coisa que a menina não aceita, nem nós, espectadores que nos identificamos com a personagem principal. O crescimento dela, sua chegada na etapa adulta, sua gravidez inesperada a obriga a resolver tudo como uma mulher já experiente. Vive em um apartamento pequeno dividido com um súbito amigo homossexual vendedor de sapatos – na marginalização e sem dinheiro. A mãe seria um tipo que se doa a um sistema de tradições, ao lado de um marido de classe mais alta que a sua, que ignora a menina – é o adulto que representa a ostentação de poder, com resquícios do conservadorismo vitoriano. A criança ao contrário: não se adapta porque não desgarra de seu passado rústico e presente rude. Por este motivo a garota, personagem principal do filme, sente ojeriza ao mundo adulto, o tradicional e velho, e em contrapartida uma empatia pela infantilidade, viés supostamente mais livre de toda a angústia do mundo moderno.
Análise de If… Todos os personagens em If… são estudantes de uma mesma escola, convivem em um mesmo território fechado. A distinção social é exibida claramente , de maneira quase caricatural, havendo uma forte repressão exercida pelos alunos e suas diferenciações de mérito de nascimento (castas, ou classes sociais) – e não pelos professores. Isso demonstra uma autoridade que pode ser exercida de maneira consensual dentro de uma estrutura maior, e que a punição aparece, nestes casos, quando convém a um tipo de indivíduo, e não num intuito pedagógico. Os professores ou diretores do colégio não atuam na punição sem a intermediação dos alunos superiores. É este o ponto chave do filme. As roupas, trejeitos, o modo de falar e até mesmo o olhar evidenciam a distinção de classes em If… . As ordens de uns alunos monitores, denominados seniors, que agem como cães de guarda da administração autoritária, o colégio
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como reflexo desse governo, valem para todos os que estudam no local. Em If… o colégio tem a aparência de uma instituição reformadora de jovens infratores. Neste bojo que o autoritarismo aparece como chave central: a escola é um braço do Estado, com o aval e presença determinante de uma ética religiosa. O College House de If…, segundo o próprio diretor Lindsay Anderson, é uma amálgama de três escolas públicas diferentes, dentre elas uma que ele estudou – a Cheltenham College, que somente desiste de ceder suas locações quando descobre o conteúdo do filme. Algo de lírico se vê no filme autoral de Anderson. Já a imagem da autoridade se dá, neste caso, portanto, não pelo exercício da força com base na tradição e na igreja, junto ao Estado, mas pelo medo da punição. Medo este que brota da maioria: só não dos mais inconformados, como a brigada do personagem Mick Travis – o revolucionário de Lindsay, que surge como herói para o diretor em seus filmes. Ainda que se veja a insatisfação de alguns alunos, que também, no geral, são os que compõem a estrutura. O poder instituído é visível pela atuação dos seniors, e da diretoria do colégio, enquanto falta na maioria dos alunos. Essa sobra de poder daqueles que confirmam e compõem a estrutura está em todos os espaços da instituição como uma força fantasmagórica, desde o ginásio até o dormitório. O conflito de classes nos filmes do Free Cinema se dá também nas entrelinhas, é espontâneo, e se aproxima dos estudos da sociedade inglesa da época. Aproxima-se do que realmente acontecia – o título If… (algo como “E se…”) já induz uma ligação direta com o mundo em guerra inútil, contra qualquer que se dissesse socialista. Junto ao anticomunismo, o autoritarismo arcaico do tradicionalismo europeu, vitoriano, no caso inglês, é aquele profundamente rejeitado pelos estudantes na década de 60. A citação é do poeta muito conhecido e controverso na Grã Betanha, Rudyard Kipling5, autor da famosa história do menino Mogli, adaptada pela Disney. 5 Se
Se podes conservar o teu bom senso e a calma No mundo a delirar para quem o louco és tu… Se podes crer em ti com toda a força de alma Quando ninguém te crê… Se vais faminto e nu, Trilhando sem revolta um rumo solitário… Se à torva intolerância, à negra incompreensão, Tu podes responder subindo o teu calvário Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão… Se podes dizer bem de quem te calunia… Se dás ternura em troca aos que te dão rancor (Mas sem a afetação de um santo que oficia Nem pretensões de sábio a dar lições de amor)… Se podes esperar sem fatigar a esperança… Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho… Fazer do pensamento um arco de aliança, Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho… Se podes encarar com indiferença igual O triunfo e a derrota, eternos impostores… Se podes ver o bem oculto em todo o mal E resignar sorrindo o amor dos teus amores…
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O Free Cinema como movimento jovem não mais existia em 68. Porém, Lindsay, um dos mentores dos panfletos e exibições na década de 50, continua com a contestação evidente em seus filmes. Partimos dos recursos estilísticos que inquietavam o espectador pela solução final dada no filme, e pela aproximação que há entre o narrado pela diegese e a sociedade de 68.
Verdade6 As semelhanças entre Zero de Conduite (Jean Vigo, 1933) e If… não parecem ser ao acaso. Na verdade a revolta dos alunos do filme de Vigo gritando palavras de ordem rumo à liberdade e as táticas de luta guerrilheira em If… são práticas ficcionais, metáforas de uma situação: violência que o Estado proporciona com sua autoridade via força e Se podes resistir à raiva e à vergonha De ver envenenar as frases que disseste E que um velhaco emprega eivadas de peçonha Com falsas intenções que tu jamais lhes deste… Se podes ver por terra as obras que fizeste, Vaiadas por malsins, desorientando o povo, E sem dizeres palavra, e sem um termo agreste, Voltares ao princípio a construir de novo… Se puderes obrigar o coração e os músculos A renovar um esforço há muito vacilante, Quando no teu corpo, já afogado em crepúsculos, Só exista a vontade a comandar avante… Se vivendo entre o povo és virtuoso e nobre… Se vivendo entre os reis, conservas a humildade… Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre São iguais para ti à luz da eternidade… Se quem conta contigo encontra mais que a conta… Se podes empregar os sessenta segundos Do minuto que passa em obra de tal monta Que o minute se espraie em séculos fecundos… Então, óh ser sublime, o mundo inteiro é teu! Já dominaste os reis, os tempos, os espaços!… Mas, ainda para além, um novo sol rompeu, Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos. Pairando numa esfera acima deste plano, Sem receares jamais que os erros te retomem, Quando já nada houver em ti que seja humano, Alegra-te, meu filho, então serás um homem! 6 O termo verdade, quando usado com referencia a obras de arte ou de ficção, tem significado diverso. Designa com freqüência qualquer coisa como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (termos que em geral visam à atitude subjetiva do autor); a verossimilhança, isto é, na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas àquilo que poderia ter acontecido; ou a coerência interna no que tange ao mundo imaginário das personagens e situações miméticas; ou mesmo a visão profunda – e ordem filosófica, psicológica ou sociológica – da realidade. Cf. ROSENFELD: p. 18.
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a luta de jovens contra o tradicionalismo, o antigo. Não seria exagero comparar a instituição educacional de Zero de Conduite à prisão de crianças e adolescentes de um outro filme como Sciuscià (Desvio de Conduta, Vittorio de Sica, 1945). Acontece em proporções e rigidez diferentes, mas que marcam época, pois não havia a concordância com tal exercício da força coercitiva. Neste sentido, a criança que há no revolucionário é visível, como numa metáfora. Lembremos de Taste of Honey, quando a personagem principal não consegue se adequar ao mundo adulto, e acaba junto às crianças. Essa dificuldade de mudar as condições sociais antigas européias é um empecilho de uma revolução jovem rumo à liberdade. Lindsay Anderson era crítico de cinema nas revistas Sight and Sound, The times, Observer e New Statesman and Nation. Foi editor da revista Sequence (1947-51) e escritor de livros, como Making a Film. Esse diretor pode ser considerado o líder do Free Cinema britânico – pelo menos o maior agitador. Seus filmes tinham tramas baseadas em acontecimentos conflituosos com o máximo de realismo social, justamente para incitar os ânimos sociais. Ele presenteava a sociedade britânica com panfletos ficcionais irônicos, bem ao estilo inglês de comicidade. Essa ironia de Lindsay tem uma particular semelhança com a expressão do manifesto Free Cinema7, de 12 anos antes de If… . O diretor não criava dramas para, ou comover, ou dar à platéia uma expressão de conformismo, de um mundo pacífico ou que se fecha em si mesmo – imutável. A intenção maior do autor parecia ser lidar com a platéia como numa plenária, perguntando sempre qual o destino, ou o que ela achava – tornando-a sujeito da exibição do filme, algo próximo do teatro brechtiano. Diríamos que o final de If… é inverossímil, ou seja, na realidade ele não aconteceria daquela maneira – estudantes revolucionários assassinam os diretores, sacerdotes, professores e alunos traidores, cooptados pelo sistema tradicional. Fica claro que é o discurso do autor numa alegoria à revolução social tão presente como moda na década de 60. Assim ele nos leva a um universo em que quem nos conduz é um estudante revolucionário que aglomera forças desde o início na história para subverter a ordem de maneira inimaginável (fora do real) – mas nos convoca diretamente à possibilidade de fazer o mesmo, questionando a verossimilhança instituída pela percepção comum. Toda essa discussão está no título do filme aqui analisado. Ele tem outro significado aparentemente diferente de quando surge ao início, porque ao fim de toda a história que vemos, ao ver o termo If… como epitáfio fílmico, coloca-se toda a carga irônica. Ele diz Se…, mas entendemos como uma pergunta à platéia, ou uma motivação afirmativa aos jovens se rebelarem contra as instituições de sua época. Ao fundo do título está o diretor com sua intencionalidade política jogando lenha na fogueira das manifestações sociais anti-imperialismo, ao mesmo temo com uma risada de canto de boca. Seria uma afirmação? Na verdade, quando se trata de cinema o discurso fica mais ambíguo que em outra arte, como no teatro. Imaginemos a afirmação Se… ao final de uma peça com a mesma história do filme. Seria com certeza uma afirmação com intenção da pergunta: “você acredita nisso que eu acabei de mostrar?” O distanciamento brechtiano caminha em outra direção. Já que os artifícios que dão à história contada estão, ao longo do tempo, sendo explicitados, o autor se torna o contador, o narrador, como no filme de Lindsay. Apenas dizendo com um letreiro escrito Se…, não vemos como um “eis um Se…”, um código a ser interpretado como a palavra denota. Vemos uma afirmação 7 Disponível em http://www.bfi.org.uk/features/freecinema/programme/prog1.html.
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diretamente ao olhar da platéia: é um diálogo direto, não velado, entre o diretor e a platéia. Assemelha-se, portanto, à provocação de uma pergunta. Não é, também, uma ameaça, pois seria por demais exagerado inferirmos que Lindsay realmente quisesse que aquilo acontecesse. O diretor solta sua ironia mostrando a violência de oprimidos numa redenção ao fim da história. Será que aconteceria aquilo que Anderson narra em If…? Essa é a pergunta que o filme também faz. No ano de exibição de If… há por todo o mundo rebeliões estudantis que hoje se encontram nos livros de história. Na França houve a grande greve geral de maio de 68, o que refletiu a ânsia pela revolução socialista, já vista em certa medida nos filmes de Vigo e Anderson. Nesta ocasião os estudantes criam verdadeiras barricadas nas ruas, junto ao movimento operário, provocando um dos momentos mais conturbados da era moderna. O que assistimos no filme é um afluente de tal inconformidade social – o Estado não mais se sustentava em sua autoridade via monopólio da força e violência, conservando costumes execrados pelos jovens estudantes, os eternamente contra a tradição. Seria uma tentativa de guerra civil contra uma “aristocracia burguesa” que exerce seu poder em prol do passado, sendo que o presente os denuncia como autoritários em demasia. Eles seriam os adultos – os inimigos –, idéia que se vê, por exemplo, na música My Generation, do grupo Inglês The Who. Mick Travis (representado pelo ator Malcom McCdowel), personagem principal dos três filmes de Anderson que compõem a trilogia – If…, O Lucky Man e Brittania Hospital, retira das revistas o mundo exterior do colégio - figuras de revolucionários e mulheres de propagandas publicitárias. Os meios de comunicação publicam uma realidade totalmente diferente daquela que Travis vive dentro do College House: sem revoltas e sem mulheres. As imagens nas paredes reproduzem um mundo conflitante entre países imperialistas e colônias. Fotografias de Che Guevara (hoje adequadas às camisas e pôsteres, mas na época nem tanto) e dos panteras negras dão ao personagem do estudante oprimido o ímpeto de revolta. O conflito entre países imperialistas e colônias, ocupantes e ocupados, dominadores e dominados era o mote conjuntural para o sentimento revolucionário de Travis em If… – pois o mundo sentia no ar as revoltas constantes nas manifestações contra a guerra do Vietnã. Esta não parecia ser uma guerra apenas, mas uma balançada no muro ideológico que existia entre os chamados 1o e 2o mundos, sendo que o palco do conflito era um país
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de 3o mundo situado no extremo oriente. O posicionamento era claro com a radicalização dos jovens: ou ser imperialista, a favor dos EUA junto a todo o ocidente em sua constituição estrutural beligerante já conhecida; ou ser um chamado “subversivo”, contra o sistema tradicional. A lógica ocidental, na época, baseou-se na força e coerção a qualquer tipo de manifestação que tivesse analogia ao comunismo – essa lógica rendeu algumas ditaduras pela América Latina. Travis, então, escolhe a mesma opção dos estudantes mais radicais de 68 no velho mundo. A Europa e suas instituições eram o próprio tradicionalismo, a continuação de uma maneira histórica de se comportar diante de seu país – isso era defendido pelos mais experientes, pelo exército que luta pela pátria, e por integrantes de uma classe mais nobre como os seniors, do College House. Há uma demanda e uma defesa pelos títulos de nobreza, que no colégio de If… identificamos nos monitores. Estes são arrogantes, e uma minoria. Têm acesso à melhor comida, às salas e quartos melhores, até mesmo no banho são donos de uma banheira afastada dos chuveiros frios. Tudo isso para dar título e, acima de tudo, poder sobre todos os outros estudantes. Eles são delegados superiores diante de todos aqueles que aparentemente deveriam ser seus semelhantes – os estudantes como eles próprios. O personagem que direciona a trama, Travis, não pode ter nem mesmo um bigode, no colégio. Seus companheiros têm hora certa para dormir, comer, banhar-se praticar esportes. O universo do filme nos faz acreditar que não possuem quase nenhuma liberdade. São pressionados a todo o momento pelo olhar vigilante daqueles aristocráticos que se impõem como superiores. A pressão se torna insuportável a partir do momento em que Travis recebe uma punição de chicotadas pelos monitores (por mais tempo que o usual das regras da escola). No final da punição disciplinar, Travis ainda é obrigado a agradecer pelo “ato educativo”.
Um percurso psicológico de If… – o herói revolucionário O filme é dividido em oito episódios. Do retorno às aulas até as cruzadas, Mick Travis prevê dizendo que “o dia está chegando”, e todos imaginam o que está por vir. A idéia é que a revolução que Mick prega contra o imperativo work-pray do College House é impositivo para ele. A amostra de liberdade que conseguem desfrutar ao furtar uma motocicleta no exterior da escola é contrastante com o clima de todo o resto do filme. A sensação de liberdade é representada pela falta de sentido que se apresenta a partir de então. Ao conhecer a garota no episodio intitulado Ritual and Romance não sabemos quando começa e quando acaba o sonho do personagem principal. Eles estão onde ela trabalha, o Packhorse café, e ao fundo ouvimos a canção Sancuts, da Missa Luba8 – ouvida por Travis desde o início e que dá tom ao filme. Mas não só a música tonaliza: o ritual que ela climatiza é o mais importante. Não há nenhuma interferência do mundo exterior, de uma maneira oposta à não interferência que há no colégio. Agora os dois personagens, Travis e a garota, se encontram para até o final da história. O ritual de olhares, de atuação primitiva e de compartilhamento de um mundo parecido – igual em sua opressão na comparação entre o trabalho dela e o estudo dele. Os dois viram animais, e o encontro é marcado por essa manifestação inconsciente, livre. 8 Missa criada por balubas do Congo belga e pelo padre Guido Haazen.
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Neste momento a garota não aparece como um prêmio, ela não é “de posse” do personagem principal, como na maioria dos filmes. É uma personagem que representa a mulher mais primitiva, com liberdade, mais limpa da sociedade conservadora e moderna – ela vive em tal sociedade e é contestadora como Travis. No fundo ela faz parte do sonho de Mick, e continua a fazer sem que percebamos, ao longo da luta final do personagem principal e a instituição da qual é obrigado a continuar. O jovem revolucionário mantém contato com o mundo de maneira parcial, e a garota é um tipo do mundo que dá ao personagem o empurrão às práticas subversivas. Travis é o líder de um levante que está para acontecer, e, como já foi dito, é inevitável. O anúncio está no episódio Forth to War, em que pregam uma peça em um dos diretores do colégio disparando com balas de verdade contra aquela classe que os comanda. Em vez daquela punição com chicotadas que vimos no episódio Discipline, há a surpresa: “Vocês são muito inteligentes para serem rebeldes”, diz um dos diretores, dando trabalho para os revoltados. Uma tentativa de cooptação malfadada. Travis conhece sua influência e, principalmente, o perigo que ele causa à instituição. Praticamente não há punição após o forte castigo das chicotadas – uma tentativa de apaziguamento por parte dos aristocratas diretores. A cooptação é a segunda tentativa de conter os revolucionários com uma coerção de teor diferente. A tentativa da disciplina como educadora se dá nestes dois âmbitos: um mais bruto, outro mais brando. Os dois estão intimamente ligados a uma tentativa de se educar com intuitos disciplinares, ou seja, o caráter autoritário não se extingue. Dando trabalho para os estudantes eles ocupariam suas mentes e deixariam as traquinagens de lado. Não acontece com Travis e seus colegas porque o método não importa num sistema dividido em classes dominantes e dominadas. Travis acha impossível fazer parte dessa estrutura, então dogmatiza a luta, a revolução. O que Lindsay faz com o personagem principal é evidenciar uma maneira de se encarar a instituição educadora que reflete um Estado. Apesar de ser um olhar radical, o autor mistura dois universos praticamente extremos: não há proximidade, apenas conflitos. Se há apenas confrontos, então não há a tragédia – há o épico. No desenvolver do filme nós prevemos uma solução, ao final, não muito distante das ebulições sociais que aconteciam na época. O quê educador, pedagógico está também em Lindsay, como em Brecht. Não há um só filme de Anderson que a intenção de mobilizar o espectador não esteja presente. O caso de If… é particular, porque ele lida com um assunto de maneira direta. A idéia é explicitar o aparelho ideológico do Estado, além de provocar o espectador com isso. Algo único da década de 60, do século passado.
Referências Bibliográficas ANGRY. Young Men. Lisboa: Presença, 1969. BERGER, John. Modos de Ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre os Estudos Culturais. São Paulo: Boitempo, 2003.
* Mauro Luciano Souza de Araújo é mestre em Imagem e Som pela UFSCar.
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voz, fala e linguagem enquanto recursos transcriativos1 Laila Rotter Schmidt*
Resumo: A proposta deste trabalho é levantar questões relacionadas à fala no filme Eles não usam black-tie de Leon Hirszman e na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri em que este foi baseado. Utilizando o conceito de heteroglossia elaborado por Bakhtin, procuraremos estabelecer relações entre o tratamento dado à linguagem verbal/voz no filme e a demarcação das oposições políticas, sociais e ideológicas das personagens, assim como apontar algumas relações entre o tratamento dado à linguagem escrita na peça e nos roteiros do filme e o processo transcriativo da obra. PALAVRAS-CHAVE: ELES NÃO USAM BLACK-TIE, HETEROGLOSSIA, LEON HIRSZMAN Voice, speech and language as transcreative resources Abstract: The objective of this paper is to raise questions about the lines in Leon Hirszman’s film They don’t use black-tie and Gianfrancesco Guarnieri’s homonymous play from which the film was derived. Based on Bakhtin’s concept of heteroglossia, we seek to establish relationships between the treatment given to the verbal language/voice in the film and the demarcations of political, social and ideological conflicts of the characters. We also indicate some relationships between the treatment given to the written language in the play and in the film script and the transcreative process of the work. Keywords: Speech, Heteroglossia, Leon Hirszman
E
ste trabalho se propõe levantar algumas questões relacionadas à fala e ao discurso no filme Eles não usam black-tie, de Leon Hirszman (1981), e na peça homônima escrita por Gianfrancesco Guarnieri (1955), em que aquele se baseia.1 O estudo aqui desenvolvido está inserido em um projeto de pesquisa mais amplo, que tem por objetivo estudar o processo de transcriação do filme a partir do texto teatral,2 utilizando o referencial teórico fornecido pela Crítica Genética, em conjunto com os documentos que registram as diferentes etapas da sua realização.
1 Parte deste trabalho foi apresentada no DT 4 - Comunicação Audiovisual do XV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste realizado de 13 a 15 de maio de 2010, e publicado nos Anais (CD) sob o título “Efeitos da voz em ‘Eles não usam black-tie’ de Leon Hirszman”. 2 “Transcriação” é um termo utilizado por Haroldo de Campos (1987, p. 54) para tratar da tradução de
Antes de levantar as questões relacionadas à fala no filme, gostaríamos de fazer uma breve apresentação da obra, destacando informações que consideramos importantes para introduzir as reflexões que iremos propor.
Processo transcriativo em Eles não usam black-tie Eles não usam black-tie, dirigido por Leon Hirszman, destacou-se no cenário nacional e internacional quando foi lançado, em 1981, e continua sendo até hoje importante referência do nosso cinema. Realizado no início do processo de abertura do país, em meio à efervescência do movimento operário do ABC paulista, o filme aborda questões sociais e políticas que marcaram a história brasileira, levando o nome de um cineasta que imprimiu forte consciência política, social e estética em toda sua obra. O filme baseia-se na peça homônima escrita por Gianfrancesco Guarnieri, montada pela primeira vez no Teatro de Arena de São Paulo, vinte e três anos antes. Ela entrou para a história ao apresentar pela primeira vez a temática das greves operárias nos palcos brasileiros, abrindo espaço para uma nova forma de pensar e fazer artes cênicas no país. Eles não usam black-tie estreou no Teatro de Arena em fevereiro de 1958, dirigida por José Renato e, ainda no mesmo ano, entrou em cartaz no Rio de Janeiro, voltando para São Paulo em 1962. A peça foi montada, ainda no Rio, em 1961 e 1963, dessa vez sob a direção de Oduvaldo Vianna Filho. Foi apresentada em outras cidades do Brasil, e ainda na Argentina, Uruguai, Chile e Alemanha. (GUARNIERI, 2008, p. 7) A peça de Guarnieri imprime a postura crítica de um artista que esteve, em especial nos anos 50 e 60, envolvido com grupos artísticos engajados politicamente, como o Centro Popular de Cultura da UNE e o Teatro de Arena, que se opunha ao modelo do TBC e privilegiava temáticas e autores brasileiros. (MAGALDI, 1984, p. 7-8) A adaptação de Hirszman, apesar de manter o eixo central em torno do qual a peça se desenvolve, apresenta significativas mudanças em relação ao texto original, que serão destacadas mais adiante. Acreditamos ser importante, nesse momento, apresentar um resumo da trama como esta se apresenta no texto teatral original. A peça Eles não usam black-tie tem como cenário uma favela carioca, e trata da luta por uma vida melhor encarada por pai e filho a partir de diferentes posições ideológicas. Enquanto Otávio é firme em sua visão política, envolvido profundamente na causa operária, Tião, seu filho, acredita que sua luta é inútil para tirá-los da pobreza, e que deve buscar meios para sair dessa situação sozinho. Sonha “subir na vida” e viver com sua família longe da favela, opondo-se à causa coletiva defendida pelo pai. Quando, convicto de suas razões, Tião fura a greve (cuja figura líder é Otávio), ele é desprezado pelos companheiros, expulso de casa pelo pai e abandonado pela namorada Maria que, mesmo esperando um filho seu, se recusa a acompanhá-lo. A partir disso, pode-se esboçar uma possível posição do autor em relação ao conflito central da peça: o coletivo deve prevalecer sobre o individual. Compõem a trama, entre outros, as personagens Romana, mãe de Tião; Bráulio, colega de Otávio nas lutas operárias; Jesuíno, amigo de Tião que busca
textos artísticos, que, para ele, implica uma criação paralela, autônoma, porém recíproca que traduz não apenas o significado, mas também o próprio signo em sua materialidade. (2004, p. 35)
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ascensão na base da “malandragem”; Chiquinho, irmão mais novo de Tião; Terezinha, namorada de Chiquinho e Juvêncio, violeiro que toca a música-tema da ação. A peça recebeu muitos elogios na época de sua montagem, e o contexto social e político vivido naquele momento foi fundamental para isso. O crítico Décio de Almeida Prado afirmou que Eles não usam black-tie abria todo um ciclo do teatro brasileiro: “Gente humilde, gente pobre, já tínhamos visto por certo em nosso teatro. Mas operários mostrados como tal, definidos em função de sua categoria, atuando coletivamente contra os patrões, constituía-se em algo absolutamente novo”. (1993, p. 110) O crítico Sábato Magaldi descreveu Eles não usam black-tie como a peça “mais atual do repertório brasileiro, aquela que penetrava a realidade do tempo com maior agudeza”. (1984, p. 28-29) Paulo Francis, em crítica à montagem no Rio de Janeiro, em 1960, escreveu que a peça “marca o despertar da geração de hoje”. (GUARNIERI, 2008, p. 13) Leon assistiu à peça de Guarnieri em 1959, aos 22 anos, havendo considerado-a obra decisiva para o nascimento do teatro brasileiro e de forte influência sobre a juventude de sua época. (HIRSZMAN, 1995, p. 53) Os dois, que se conheciam desde jovens, conversaram pela primeira vez sobre a transcriação de Eles não usam black-tie em 1972, a convite de Leon. Cineasta de indiscutível importância no campo artístico brasileiro, Leon buscou compreender e realizar cinema sempre em termos sociais, dentro de uma perspectiva de arte nacional-popular. Participou ativamente do movimento que originou o Cinema Novo, ao lado de nomes como Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues e tantos outros. Na multiplicidade de formatos e temas de sua obra, seu desejo constante era o de “articular política, sociedade e arte”. (HIRSZMAN, 1995, p. 73) Eles não usam black-tie é um dos exemplos mais fortes dessa busca do artista, que obteve ampla repercussão. Conquistou prêmios nacionais e internacionais, entre eles, o Leão de Ouro - Prêmio Especial do Júri, no Festival de Veneza de 1981, e foi muito bem recebido pela crítica, tanto no Brasil quanto no exterior. José Carlos Avellar destacou no
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Jornal de Brasil que o filme procurou “levar o espectador à compreensão do cotidiano do trabalhador”. Em crítica para O Estado de São Paulo, Edmar Pereira escreveu que o filme é um “doloroso retrato da realidade urbana brasileira”, em que “fotografia, música, diálogos, cenografia são de alta qualidade”. (SALEM, 1997, p. 271-272) A atuação do elenco, do qual fizeram parte Fernanda Montenegro, Gianfrancesco Guarnieri, Carlos Ricelli, Bete Mendes, Milton Gonçalves e Francisco Milani, também foi muito elogiada. O filme suscitou polêmicas, como aquela apontada no artigo de Maurício Segall, para quem o filme insinua-se como documentário e estabelece relação distorcida dos fatos ocorridos em São Paulo em 1979. (1983, p. 26) Quando a adaptação do texto teatral para a obra cinematográfica teve início, Leon e Guarnieri trabalharam em conjunto no roteiro por mais de seis meses, até definir sua formatação final, utilizando ampla pesquisa e ambientação no processo. “Passamos esse tempo todo trabalhando, principalmente, a atualização da peça, escrita em 1955, para o 1979 das greves e do surgimento das lideranças sindicais”. (HIRSZMAN, 1995, p. 53) Nesse sentido, a greve dos metalúrgicos que estava acontecendo naquele momento em São Bernardo foi fundamental. “O início do movimento grevista no ABC paulista se encaixou perfeitamente na história narrada pela peça, forneceu uma atualidade muito grande ao tema”. (ROVERI, 2004, p. 95) A partir disso, toda a trama do filme foi migrada da favela carioca para um bairro operário de São Paulo, pois, como comentou Guarnieri, “era em São Paulo, naquele momento que os fatos estavam ocorrendo”. (ROVERI, 2004, p. 96) As informações e experiências adquiridas com a realização do documentário de Hirszman, filmado em 1979, ABC da Greve, também foram decisivas para a adaptação. Segundo o cineasta, o documentário “serviu como escola para Black-tie, como laboratório de direção, de sentimento, de proximidade com uma vivência operária”. (1995, p. 53) A ideia de filmar ABC da Greve surgiu quando Leon se mudou para São Paulo e se deparou com a situação política do ABC. Ele e sua equipe passaram a acompanhar de perto piquetes, trabalhadores em greve e negociações. “Estávamos dentro, vigiando a greve e vivendo a luta dos trabalhadores, a sua evolução e as condições políticas nas quais se processava”. (1995, p. 50) Além da migração da trama para São Paulo, inúmeras diferenças entre o texto teatral e o filme podem ser apontadas. Em função desse novo contexto em que a história se desenvolve, o movimento operário e os fatores que levam à formação da greve ganham espaço na trama. Ao invés de ser recebida com vibração e confiança, como uma conquista dos líderes, a greve é considerada precipitada, fadada ao fracasso. Nesse sentido, é essencial a evolução do personagem de Otávio. Ele abandona sua postura radical e passa a se apresentar como um líder mais experiente, que acredita ser preciso planejar antes de agir. Um novo personagem, Sartini, assume, de forma negativa na diegese, essa dimensão radical, sendo responsável pelo fracasso da greve que, na peça, era vitoriosa. Com a adaptação, todas as personagens têm nuances e contradições ampliadas. As motivações emocionais de Tião são evidenciadas, e as armações que reforçariam sua imagem negativa são “transferidas” para Jesuíno. Porém, enquanto na peça ele sequer ficava sabendo que o pai foi preso, no filme Tião assiste a tudo e não toma atitude diante da cena. A personagem de Maria deixa de ser frágil e submissa e passa a se posicionar diante dos acontecimentos, revelando uma abordagem de gênero também atualizada. De forma especial em Maria, mas também em todas as demais personagens, a motivação passa a ser menos o sentimento de união pessoal e mais o de união pela classe, que relaciona e
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motiva o grupo de trabalhadores por sua condição social, política e pela força que possuem lutando juntos. Novos temas são introduzidos, como a violência, revelada no interior da própria família, em situações de abuso por parte da polícia e em ocorrências de marginalidade. O alcoolismo e o desemprego também entram na trama com o personagem Jurandir, pai de Maria. Há muitos outros acréscimos, mais sutis, mas fundamentais na concepção do filme como, por exemplo, o espaço destinado à televisão. Essas diferenças foram apontadas a partir de um estudo preliminar entre o texto teatral e o filme, desenvolvido para a realização deste trabalho. Para aprofundar o estudo desse processo de transcriação e melhor avaliar as implicações das mudanças operadas, será necessário analisar comparativamente os documentos que registram o percurso do autor, para que seja possível retraçar seu processo criativo. Para o propósito deste trabalho, que é levantar tópicos de discussão a respeito da fala no filme, utilizaremos essa análise preliminar como base para as questões que queremos ressaltar.
A construção das personagens sob o viés da fala e da linguagem Um dos pontos que chamou nossa atenção em Eles não usam black-tie é o modo como o discurso das personagens expressa ou reforça suas características, em especial, seu posicionamento diante do conflito ideológico que permeia a trama. Para embasar nossas considerações, utilizaremos como referência o conceito de plurilinguismo (ou heteroglossia, versão da palavra a partir do inglês) desenvolvido por M. M. Bakhtin, que está relacionado às diferentes expressões de uma mesma língua, sendo descrito pelo autor como: A estratificação interna de uma língua nacional única em dialetos sociais, maneirismos de grupos, jargões profissionais, linguagens de gêneros, fala das gerações, das idades, das tendências e das autoridades, dos círculos e das modas passageiras, das linguagens de certos dias e mesmo de certas horas. (1993, p. 74)
Bakhtin defende que a presença e uso da heteroglossia é o que distingue o romance e o caracteriza como estilo, considerando o modo único como diversas vozes se relacionam dialogicamente em sua estrutura. No cinema, e em especial no filme sobre o qual pretendemos nos debruçar, esse conceito pode ser utilizado para compreender como as variações heteroglóticas da língua falada pelas personagens são articuladas para refletir sua posição ideológica. Nesse sentido, Bakhtin destaca que a ideologia que sublinha a ação de qualquer personagem se reflete também em seu discurso. Vivendo e agindo em seu próprio mundo ideológico, a personagem “tem sua própria concepção personificada em sua ação e em sua palavra”, e assim, o discurso é indispensável para a representação da ideologia: “Não é possível representar adequadamente o mundo ideológico de outrem, sem lhe dar sua própria ressonância, sem descobrir suas palavras”. (1993, p. 137)
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Bakhtin também nos fornece caminhos para analisar a apropriação do discurso de uma personagem por outra, questão fundamental para a reflexão que pretendemos propor, quando comenta a representação do discurso do outro, na esfera extraliterária: Fala-se no cotidiano, sobretudo a respeito do que os outros dizem - transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, ou julgam-se as palavras dos outros, as opiniões, as declarações, as informações; indigna-se ou concorda-se com elas, discorda-se delas, refere-se a elas etc. (1993, p. 139)
Bakhtin destaca, ainda, que na fala do dia-a-dia, o uso da palavra alheia não segue regras rígidas como na escrita literária, sendo seus procedimentos de transmissão muito variados, tanto no aspecto formal quanto interpretativo, ou seja, “de sua reconsideração e de sua re-acentuação - desde a literalidade direta na transmissão até a deformação paródica premeditada da palavra de outrem e sua deturpação”. (1993, p. 140) É esse sentido de uso “deformativo” da palavra alheia que mais nos interessa aqui. Como o discurso de uma personagem pode ser desautorizado pela sua citação por outra personagem? Novamente, Bakhtin indica direções: O contexto que avoluma a palavra de outrem origina um fundo dialógico cuja influência pode ser muito grande. […] A palavra alheia introduzida no contexto do discurso estabelece com o discurso que o enquadra um amálgama (no plano do sentido e da expressão); o grau de influência mútua do diálogo pode ser imenso. (1993, p. 141)
Com essas noções em mente, gostaria de começar a levantar algumas questões internalizadas em Eles não usam black-tie. Destacamos anteriormente que o conflito político-ideológico entre Otávio e Tião é central na trama do filme. É preciso acrescentar que, para o espectador, esse conflito não
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é explícito de início. A oposição entre as personagens vai sendo construída ao longo da história, e apenas se consolida quando o jovem efetivamente fura a greve. Nossa observação é de que o discurso das personagens tem importante papel nessa construção. Gostaria de indicar, inicialmente, os principais momentos do filme em que a posição ideológica de Tião é colocada em questão, de forma mais ou menos marcada. Na primeira sequência, quando Otávio fala da greve, Tião não faz comentários e chama Maria para ir embora. Quando deixa a moça em casa, diz a ela que está preocupado, que greve sempre “dá bolo”. No bar de Alípio, conversando com Jesuíno, ao tocar no assunto da greve Tião diz que enquanto o pai não pegar mais alguns anos de cadeia não vai sossegar, e que aguentar sua barra “é dose”. Em outro momento, ainda no bar com Jesuíno, demonstra não ser a favor da ideia de “vigiar o pessoal” para obter benefícios na fábrica, porém, afirma que quem não quer fazer greve tem seu direito (sem posicionar que sua intenção é fazer isso). Novamente no bar, Tião conversa com Otávio, que fala sobre o filho ter mudado de casa, e assim ter mudado suas ideias. Conversando com Jesuíno no refeitório, Tião o critica por ter agido como dedo-duro, e novamente demonstra não ser a favor de suas armações para “levar vantagem”. Tião e Otávio discutem durante o jantar. O pai acusa o filho de estar com “medo” da situação toda, e pede que ele participe das reuniões do sindicato, “viva” mais com os “companheiros”. Tião critica as atitudes do pai e diz que ele não enxerga a situação ruim em que se encontram. Posteriormente, Tião pede desculpas ao pai pela discussão e diz que o admira e respeita. Tião confronta o pai na porta da fábrica, e fura a greve. Ao ser expulso de casa, diz ao pai que não furou a greve por covardia. O momento em que sua oposição ao pai é marcada com maior clareza, antes do desenrolar efetivo da greve, é a discussão entre os dois durante o jantar. Nessa sequência, Tião critica abertamente a atitude de Otávio, e o que chama mais atenção, é a maneira como essa crítica é feita, que não pode ser totalmente compreendida sem entendermos as diferenças heteroglóticas entre o discurso de pai e filho. Bráulio, Otávio e Sartini, que estão mais diretamente envolvidos no movimento operário, utilizam amplamente palavras e expressões como “companheiros”, “organizar”, “sindicato”, “luta”, “classe”, “máquinas paradas”, “greve”, “direitos”, “trabalhador”, “repressão”, que compõem, entre muitas outras, uma espécie de “jargão político” do movimento operário. Até mesmo outras personagens, que não estão ligadas diretamente ao movimento, utilizam eventualmente esse “vocabulário”, como Maria e Jesuíno. O que é interessante notar, é que Tião não utiliza em sua fala, em nenhum momento, esse jargão. Esses termos específicos são claramente evitados em seu discurso, sendo evocados apenas em dois momentos específicos do filme, e em ambos, ele está fazendo uma “citação” das atitudes e palavras do pai. No primeiro desses momentos, Tião usa o “jargão político” de Otávio (que, nesse caso, representa em especial suas ações e não somente sua fala) de forma debochada e irônica. Quando ele e o pai conversam no bar de Alípio, Tião puxa assunto dizendo: “Como é que é? Fez muita subversão hoje?” (HIRSZMAN, 1991) [grifo nosso] Acreditamos haver, nessa fala, uma indicação de oposição que se expressa em função do modo como Tião entoa a palavra “subversão”. A palavra em si, ou o ato que representa, é natural para Otávio, faz parte de sua rotina e de seu “jargão político”.3 O uso que
3 A palavra também faz parte do jargão da ‘repressão’, que, irônica ou ambiguamente, Tião utiliza.
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Tião faz dela, porém, demonstra o significado próprio que possui para ele, em um sentido negativo, e assim, lhe serve como forma de crítica à atitude de Otávio. O segundo momento ocorre na discussão, já destacada, entre Tião e Otávio, quando o jovem retruca a acusação do pai: Fala que nem louco, pai. Porra! Desde que eu me conheço por gente que ouço esse papinho, mas é a mesma merda! E eu é que não sei enxergar direito? O senhor vê o que o senhor quer ver! No dia que o senhor enxergar mesmo a verdade das coisas, o senhor vai querer dar um tiro na cabeça, porque o senhor é honesto e vai perceber o mal que o senhor fez pra nós todos aqui nesta casa, com essa alegria aí de “precisa organizar”, e a “classe operária”, e não sei o que lá de “história”… Sempre na merda! Na cadeia, meio morto de porrada, dando um duro naquela bosta daquela fábrica, sem futuro, isso se não morrer em cima daquele torno! (HIRSZMAN, 1991) [grifo nosso]
Nessa sequência, além do tom em que as palavras são citadas, o que mais chama atenção é que Tião não fala apenas das ações do pai através de seu jargão, como na sequência anterior, mas de seu próprio discurso, ou seja, cita a fala de Otávio literalmente, como forma de desautorizar as palavras dele próprio, e de certo modo, atribuir a elas a responsabilidade pelos problemas que eles enfrentam. Essa forma específica de crítica, profundamente enraizada no discurso, pode estar relacionada à visão mais geral que Tião tem do pai. Ele dá a entender que enxerga a posição ideológica e o discurso político de Otávio como suas maiores prioridades, e que, em função destes, a família sempre foi deixada em segundo plano. Essa crença parece se fundamentar, principalmente, no fato de que Tião teve que ser afastado da família, levado para morar com os padrinhos na cidade, porque o pai estava preso em consequência de suas ações políticas. Acreditamos que, nessa sequência, a fala cumpre papel fundamental não apenas na caracterização de Tião, mas também de Otávio, pois se estabelece uma relação dialógica entre os dois, que exprime não apenas o sentido atribuído por Tião às palavras, mas evoca a conotação original da fala de Otávio. Assim, observando essas duas sequências, e seguindo os caminhos indicados por Bakhtin em seus estudos sobre o discurso no romance, acreditamos que em Eles não usam black-tie a fala tem papel fundamental na construção sócio-ideológica das personagens, e principalmente, na caracterização da oposição entre elas, que pode ser então observada como uma relação dialógica no próprio nível heteroglótico do discurso. Outra questão interessante que gostaríamos de levantar é como o discurso do autor pode estar refletido nessa relação entre Otávio e Tião, que se estabelece no nível da fala. Como destacamos, Hirszman e Guarnieri eram artistas engajados politicamente, que buscavam pensar e discutir questões sociais e políticas em suas obras. Por outro lado, em diversas entrevistas, Hirszman afirmou que Eles não usam black-tie não é voltado à politização, enquanto admitia não ser fácil trabalhar uma temática operária sem induzir politicamente. “Não queríamos fazer um cinema político convencional, com um discurso chatíssimo. Mais importante para nós era o aspecto humano, em que a política está integrada ao cotidiano, não se vinculando à política partidária”. (1995, p. 55)
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Sobre o discurso autoral, Bakhtin nos diz que, no romance, as diferentes vozes articuladas, inclusive aquelas das personagens, podem “refratar” a voz do autor de diferentes maneiras. “A palavra dos personagens, possuindo no romance, de uma forma ou de outra, autonomia semântico-verbal, perspectiva própria, sendo palavras de outrem numa linguagem de outrem, também podem refratar as intenções do autor”. (1993, p. 119) Isso pode nos levar a pensar a oposição discursiva de Tião e Otávio como um dos mecanismos encontrados pelo autor para “fugir” às evidências do discurso político e buscar enraizar o problema nas divergências “familiares” entre pai e filho. Destacamos, até aqui, que apesar de as personagens de Eles não usam black-tie falarem uma única e mesma língua, há variações heteroglóticas em suas falas, em especial,4 aquela caracterizada pelo “jargão político”, que demarca uma oposição ideológica e refrata as intenções e experiências do autor. Acreditamos que possa ser produtivo, ainda, destacar uma outra variação heteroglótica expressa em Eles não usam black-tie pela presença da televisão. O aparelho de TV aparece no filme em diferentes cenas. Quando este está ligado, o espectador não tem acesso às imagens que as personagens estão assistindo, mas é possível ouvir o som, o que permite perceber, entre outras questões, o canal em que a televisão está sintonizada: o “plim-plim” identifica claramente a sintonia na Rede Globo. Arthur Autran, em artigo sobre o nacional-popular em Eles não usam black-tie, comenta o tratamento dado à televisão no filme. Ele destaca que a televisão está presente apenas na casa de Jurandir, pai de Maria, e não na casa de Otávio,5 e que essa presença estaria relacionada ao fato de que na casa de Otávio todos trabalham e discutem, enquanto na casa de Jurandir sua esposa está doente, ele está desempregado e é alcoólatra. O autor indica, ainda, ao comparar, em especial, uma sequência em que Jurandir está bêbado, em frente à televisão, com outra, em que a personagem está sóbria e o aparelho está desligado, a significação negativa que a televisão assume no filme. Para Autran, essa representação deve-se ao “papel exercido pela Rede Globo no sustentáculo ideológico-cultural da ditadura militar”. (1999, p. 167) Partindo dessa denotação negativa da televisão em Eles não usam black-tie, podemos fazer alguns apontamentos em relação ao seu discurso. Percebe-se que a fala que se ouve a partir da televisão é muito “correta”, cuidadosa em manter uma similaridade com as normas da palavra escrita. É estabelecido, assim, um contraste muito bem marcado entre essa fala (mais literária) e a das personagens (marcada pela ‘vivacidade’ da oralidade popular) que, mesmo com algumas variações e diferenças entre elas, falam, em geral, de forma mais “corrente”. Assim, acreditamos ficar reforçada a oposição, a clara identificação do sujeito que fala na televisão como “outro”, ideologicamente diferente em um sentido negativo, utilizando uma variação heteroglótica da língua verbal para marcar essa diferença.
4 Além dessa variação heteroglótica, à qual foi dada maior importância de acordo com os propósitos desse trabalho, não podemos esquecer que estão presentes na peça e no filme uma série de outras variações, entre outras aquelas de diferentes gerações e classes sociais. 5 Apesar de Autran apontar em seu artigo o fato de “o objeto [aparelho de televisão] não fazer parte da cenografia da casa de Otávio, e sim da casa de Maria”, podemos perceber, tanto nos roteiros quanto no filme, que um aparelho de televisão está presente na cenografia da sala da casa de Otávio, entretanto, em todas as cenas em que ele aparece encontra-se sempre desligado.
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Pode ser produtivo comentar, ainda nesse âmbito, que o personagem Jurandir introduz no filme uma variação heteroglótica relacionada à sua origem nordestina (que não é caracterizada de nenhuma outra forma no filme a não ser através da sua fala). Assim, o contraste do discurso televisivo demarca não apenas uma separação ideológica em relação às personagens, mas também regional, no caso específico de Jurandir. Essa diferenciação pode apontar seu não-lugar em São Paulo, podendo ser pensada como um possível indicador de sua infelicidade e alcoolismo. Neste tópico, procuramos estabelecer relações entre variações heteroglóticas (no sentido desenvolvido por Bakhtin em relação ao discurso no Romance) que podem ser apontadas em Eles não usam black-tie, e a demarcação das oposições políticas, sociais e ideológicas das personagens, tanto entre si, quanto em relação a um “outro” caracterizado pela presença da televisão. A partir disso, acreditamos que essas variações podem ser entendidas também como parte de um mecanismo de refração da visão do autor.
O reflexo da voz no processo transcriativo Outra questão que chamou nossa atenção em Eles não usam black-tie é a relação que acreditamos ser possível estabelecer entre o discurso das personagens do filme e o processo de transcriação da obra cinematográfica a partir da peça,6 considerando, em especial, a atualização da história, tanto no sentido temporal e geográfico quanto políticoideológico, já apontada anteriormente neste trabalho. Ainda que essa relação possa ser estabelecida tomando-se unicamente o texto teatral original e a obra cinematográfica entregue ao público, podemos também levantar questões interessantes se considerarmos alguns indicadores do processo de transcriação. Para isso, vamos utilizar as diferentes versões de roteiro desenvolvidas para o filme, que se encontram depositadas no Fundo Leon Hirszman do Arquivo Edgard Leuenroth AEL (IFCH/Unicamp). Dentre os 13 documentos textuais classificados no AEL como roteiros de Eles não usam black-tie, foi possível distinguir três versões de roteiros diferentes entre si. A primeira possui 101 páginas datilografadas e, apesar de não haver indicação de data, está observado na capa: “Primeiro tratamento: sujeito a modificações”. O documento possui grande quantidade de anotações a caneta, e o título indicado é provisório: Nós se gosta muito mais. O segundo roteiro possui 122 páginas datilografadas e está datado de 27 de janeiro de 1980, já contemplando o título definitivo. Deste roteiro há 3 cópias, todas com anotações a caneta, que, apesar de escritas em caligrafias diferentes, muitas vezes indicam a mesma informação. Uma das cópias possui um esboço, manuscrito, da capa datilografada que vamos encontrar no terceiro roteiro, de 121 páginas datilografadas, datado também de 27 de janeiro de 1980. Este roteiro possui um anexo, de uma sequência reestruturada. Deste roteiro, há 4 cópias. Uma delas possui a indicação “1-Leon” na contracapa, e contempla algumas anotações a caneta. Outra está identificada com o nome “Tânia Savietto”,7 na primeira página, e possui grande quantidade de anotações a caneta, algumas 6 Tomamos como referência, o texto na íntegra da peça publicado em: GUARNIERI, Gianfrancesco. Eles não usam black-tie. 19a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 7 Assistente de direção em Eles não usam black-tie, segundo ficha técnica publicada em: HIRSZMAN,
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coincidentes com aquelas da primeira cópia. Esse roteiro contempla a sequência final do filme, escrita a mão nas últimas páginas do documento. Comparando-se o texto da peça, as três versões de roteiros e o filme é possível apontar algumas semelhanças e diferenças na construção do discurso das personagens, e distinguir, ainda, aquelas que foram determinadas desde a primeira versão de roteiro, de outras que foram tomando forma ao longo do processo. Acreditamos que nesse processo de adaptação da fala das personagens podemos encontrar indicadores que apontam para o processo mais amplo de atualização da história. Nesse sentido, a primeira questão que gostaríamos de levantar está relacionada com a grafia das palavras nos diálogos das personagens de Eles não usam black-tie. Além das variações heteroglóticas específicas de determinadas personagens ou grupos, que já apontamos anteriormente em relação ao filme, é possível identificar estratificações da linguagem também em níveis mais amplos. O texto da peça, assim como os roteiros do filme, com algumas diferenças que serão apontadas mais adiante, indicam na escrita um modo de falar específico, marcando textualmente uma variação heteroglótica oral que é característica do local e época em que a ação se desenrola, e principalmente, da condição social das personagens. É interessante observar a opção do autor por escrever todo o texto seguindo à risca essa fala específica, quando poderia, simplesmente, seguir as normas padrão da palavra escrita, e orientar os atores para que interpretassem suas falas com uma espécie de “sotaque”. Vale destacar que essa característica também está presente em outras peças escritas por Guarnieri, como A Semente (1961) e Gimba (1959). Essa grafia que representa a fala na peça Eles não usam black-tie causa certo estranhamento, muito mais do que provavelmente causaria se as palavras estivessem em um discurso oral e não escrito. Verbos e substantivos como gostar, tiver, fazer e lutador são em grande parte grafados como gostá, tivé, fazê e lutadô. Muitos outros termos não seguem uma lógica específica, mas são escritos incorretamente, como, por exemplo, pessoá, chegô, pruquê, nóis, purmões. Contrações como t’ai ou com’é são recorrentes no texto. Não apenas as palavras, mas também as sentenças sofrem distorções, como em nós vai ou gosta de eu. O uso de tu ou de ocê no lugar de você, também é comum. Essa indicação da linguagem falada explícita no texto pode indicar a importância do discurso para a caracterização do universo social da ação e das personagens. Apesar de essa demarcação contextual estar inserida na trama e de ser explorada, ainda, através de outros recursos narrativos, nenhuma indicação é tão insistente como a fala. Um exemplo de recurso narrativo que serve para caracterizar esse universo social fortemente demarcado pela fala é o cenário, como se percebe na orientação escrita antes do início dos diálogos no primeiro ato da peça: “Barraco de Romana. Mesa ao centro. Um pequeno fogareiro, cômoda, caixotes servem de bancos. Há apenas uma cadeira. Dois colchões onde dormem Chiquinho e Tião.” (GUARNIERI, 2008, p. 17) A simplicidade do cenário por si só deixa explícita a condição social da família representada. Podemos citar como exemplo de demarcação inserida na trama um momento, no terceiro ato, no qual Romana tira um pedaço de pão da gaveta e dá a Chiquinho, e quando este reclama, responde: “Deixa de luxo e dá graças a Deus! Pão melhor só no almoço e se a greve der Leon. É bom falar. Montagem de entrevistas de Lorençato, A. e Calil, C. A. Rio de Janeiro: Centro Cultural do Banco do Brasil, 1995.
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certo, por que se não…” (GUARNIERI, 2008, p. 83) Comentários como esse estão espalhados pelo texto, reforçando a indicação contextual que encontramos no cenário e principalmente na linguagem. Podemos relacionar ao uso específico da linguagem no texto, ainda, o fato de que Guarnieri, e o mesmo vale para Hirszman, não vivia no mesmo universo social e linguístico de suas personagens. Martins indica, nesse sentido, que Guarnieri “aprendeu” a linguagem do morro com uma cozinheira que trabalhou em sua casa, no Rio de Janeiro. (1980, p. 12) Seu contato com essa variação heteroglótica é indireto, através da fala “do outro” e não da sua própria, e sendo assim, podemos tentar entender a marcação da oralidade no texto como um mecanismo de diferenciar o seu discurso daquele que está representado em sua obra, imprimindo sua visão sobre ele. O contato indireto com essa linguagem deve ser considerado em conjunto com o fato de que a apropriação que Guarnieri faz dela é artística e intencional. Para Bakhtin, a intenção é fundamental para a compreensão de um discurso, especialmente um discurso heteroglótico, que carrega em sua própria definição a impressão de um ponto de vista determinado que estratifica a linguagem. Nesse sentido, Bahktin pode nos ajudar a pensar a questão do uso da linguagem feito por Guarnieri: A palavra da língua é uma palavra semi-alheia. Ela só se torna própria quando o falante a povoa com sua intenção, com seu acento, quando a domina através do discurso, torna-a familiar com a sua orientação semântica e expressiva. Até o momento em que foi apropriado, o discurso não se encontra em uma língua neutra e impessoal (pois não é do dicionário que ele é tomado pelo falante!), ele está nos lábios de outrem, nos contextos de outrem e a serviço das intenções de outrem. É lá que é preciso que ele seja isolado e feito próprio. (BAKHTIN, 1993, p. 100)
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Nos roteiros do filme, é interessante observar que essa demarcação da linguagem falada na escrita se mantém. É possível perceber, no entanto, que não há rigor tão grande diante da linguagem como no texto da peça, quando se observa detalhes como, por exemplo, a mesma palavra escrita ora normalmente e ora com “sotaque”, mesmo em falas de uma mesma personagem. Podemos notar, também, que houve poucas alterações na grafia das palavras entre as diferentes versões de roteiro, indicando que a linguagem falada pelas personagens já estava bem definida desde o primeiro roteiro. A maior metamorfose ocorre não na morfologia da escrita, mas na própria linguagem dos personagens. Comparando palavras e expressões que são alteradas com as que se mantém, acreditamos que, no filme, foi construída toda uma nova variação heteroglótica, mais adequada ao contexto e enredo do filme, que agora se desenrola em São Paulo, no início dos anos 80, em um contexto social e político bastante diferente daquele representado na peça. Inicialmente é possível perceber que, na linguagem do filme, a fala das personagens é mais “correta”, e apesar de muitas palavras ainda serem grafadas da mesma forma, como gostá. No entanto, alguns dos erros mais evidentes, como pruquê, e as contrações de palavras foram em grande parte abolidos dos roteiros. É justamente pelo fato de alguns usos terem sido mantidos que acreditamos ser possível entender que não se trata de uma coincidência, e sim, uma escolha por um tipo de fala diferente para as personagens do filme. Alguns exemplos podem tornar essa diferenciação ainda mais clara. No primeiro ato da peça, Maria diz “Sabe, Chiquinho, nós vai ficá noivo daqui dez dias”, (GUARNIERI, 2008, p. 23) enquanto no terceiro roteiro do filme a mesma fala se expressa ligeiramente diferente, apenas o suficiente para que se perceba uma distinção na linguagem utilizada: “Sabe, Chiquinho, nós vamos ficá noivos daqui a duas semanas”. (GUARNIERI e HIRSZMAN, 1980, p. 8) Ainda no primeiro ato, Tião diz “Resolvemo ficá noivo, mãe”, (GUARNIERI, 2008, p. 26) enquanto no terceiro roteiro do filme, em uma sequência correspondente,8 ele diz “Resolvemos ficar noivos, mãe”. (GUARNIERI e HIRSZMAN, 1980, p. 11) Gostaríamos de citar um último exemplo dessa sequência, em que Romana diz, na peça: E não vem depois se queixá de reumatismo. Andando na chuva, preparando encrenca, depois de velho fica bobo… Como vai, Maria… É melhó ir andando, sua mãe daqui a pouco desentreva e vem te procurá… (GUARNIERI, 2008, p. 26)
No terceiro roteiro, na mesma fala, o texto é: E não vem depois se queixar de reumatismo, Otávio! Andando na chuva, preparando encrenca! Quanto mais tempo passa, mais bobo fica! Como vai, Maria?!… É melhor ir andando; sua mãe daqui a pouco desentreva e vem te procurar! (GUARNIERI e HIRSZMAN, 1980, p. 11)
8 Escolhemos a primeira sequência do filme e da peça para retirar os exemplos, pois é nela que se encontra a correspondência mais exata entre as duas obras.
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Acreditamos ser possível relacionar essa escolha com o novo contexto social em que as personagens estão inseridas. Enquanto na peça, como vimos, a família de Tião morava em um barraco em que sequer havia cadeiras para se sentar, no filme, ela vive em uma casa de alvenaria, em um bairro operário que, apesar de simples, já representa uma evolução econômica considerável diante de um barraco de favela. Nos três roteiros do filme a primeira descrição da casa de Tião se mantém praticamente inalterada: “É uma sala modesta, proletária. Mesa, cadeiras, um velho sofá e poltrona antiga que não combinam entre si e com os outros móveis. Uma cômoda serve para guardar louça. Sobre ela, um aparelho médio de TV.” (GUARNIERI e HIRSZMAN, 1980, p. 3) É interessante, dentro dessa perspectiva, observar que não é perceptível uma diferença marcada entre a linguagem, no sentido geral em que está sendo tratada nesse tópico, de personagens que são ou não ativos politicamente: todos falam da mesma forma. Isso pode indicar que o modo de falar está menos relacionado com a questão ideológica e mais com a condição social, e isso pode valer também para o grau de escolaridade das personagens. O fato de Tião ter morado com os padrinhos na Cidade poderia indicar que ele teve uma educação melhor que seus pais ou irmãos, entretanto, ele fala da mesma forma que qualquer outra personagem. Essa observação se aplica não apenas ao filme, mas também à peça, e, nesse caso, pode se estender a Otávio também. No segundo ato, quando Romana diz a ele que “só tem prosa” porque “leu nos livro”, (GUARNIERI, 2008, p. 33) isso nos indica que Otávio também pode ter algum grau de escolaridade, entretanto, sua sintaxe também não se diferencia daquela dos demais, ainda que sua escolha vocabular denote seu preparo político. Na peça, Otávio, e também Chiquinho, utilizam em diferentes ocasiões expressões como capitalista e burguês em um sentido pejorativo. No filme elas foram totalmente suprimidas. Da mesma forma, algumas sequências que expunham uma crítica mais direta a essas ideias como, por exemplo, aquela na qual Tião procura móveis para sua casa, e imagina uma vida “burguesa” para si, ou ainda outra, na qual Otávio está fazendo discurso no Sindicato e com os companheiros discute ideias políticas no bar após a reunião, estavam presentes nos roteiros e foram cortadas na realização do filme. Expressões como reacionário e indicações como PSD estavam nas primeiras versões do roteiro e, em alguns momentos, foram cortadas ao longo das versões; em outros casos foram mantidas nos roteiros, mas simplesmente não mencionadas no filme. Algumas questões em especial podem ser relacionadas também à atualização temporal da obra. Referências à Stalin refletem o contexto em que a peça foi escrita. No filme, outras referências temporais e políticas foram acrescentadas, como quando Otávio fala da ditadura militar, da repressão e dos tempos serem outros. Todas as questões aqui levantadas indicam caminhos para se compreender o processo de criação de Eles não usam black-tie em sua complexidade de temas e pontos de encontro com questões sociais, políticas e estético-culturais de dois momentos-chave da História do Brasil, quais sejam, o final dos anos 50/início dos 60 e o início dos anos 80. Novos tópicos serão inseridos e unidos aos aqui apresentados, no decorrer dessa pesquisa, buscando fornecer subsídios para o enriquecimento das discussões ora propostas e contribuir para a construção de novas visões dessa obra de indiscutível importância para nossa cultura.
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* Laila Rotter Schmidt é bolsista FAPESP, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som da UFSCar. E-mail: <lailarsc@yahoo.com.br>.
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Que Amarelo é esse? Sabrina Rocha Stanford Thompson*
Amarelou mangou de mim Não vai ficar de graça E dentro desta caixa Um corpo indigente Um corpo que não fala Um corpo que não sente. (Otto)
Resumo: A partir do filme Amarelo Manga, o presente texto busca trazer algumas reflexões estéticas e psicanalíticas sobre elementos da cinematografia Recifense, através da análise específica dessa produção do diretor pernambucano Cláudio Assis. Palavras-chave: mangue-beat, psicanálise, corpo What kind of yellow is that? Abstract: Through an analysis of Amarelo Manga by the filmmaker Claudio Assis, this paper offers an appraisal of some aesthetical and psychoanalytical elements of films made in Recife. keywords: ‘Mangue’-Beat, Psychoanalysis, Body
A
primeira cena do filme Amarelo Manga, do diretor pernambucano Cláudio Assis, é, por ironia, verde. Um quarto decadente, um muquifo anônimo, que podemos supor localizado em uma periferia qualquer. O filme está começando e o enredo ainda está no não dito e no não visto: verde. O filme trabalha com uma estética rigorosa, variando entre as cores verde, amarelo, vermelho e laranja (amarelo com vermelho, não por acaso). Em cada cena, porém, existe sempre algum elemento de cor amarela. Isso quando o amarelo não predomina totalmente na cena. Estética presente também no segundo longa metragem do mesmo diretor, Baixio da Bestas (2007), em que as cores verde e amarela se contrastam, neste caso endereçadas à cultura da cana e sua colheita. A escolha da cor que nomeia o filme, e que se presentifica ao longo das cenas, parece sugerir que o próprio filme amarelou. Corroborando com essa idéia temos uma estética decadente que paradoxalmente vai dando vida ao filme e aos personagens. Botecos, paredes descascadas, cores esmaecidas e toda a sorte de marginalizados enquanto personagens vão compondo: o amarelo da cor das mesas, dos bancos, dos cabos das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos, do charque. Amarelo das doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das
feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarréias, dos dentes apodrecidos,
como nos mostra a poesia Tempo Amarelo, de Renato Carneiro Campos, que serviu de inspiração para o filme em questão. O amarelo deste filme parece ser o amarelo do esquecimento, do anonimato e até mesmo o amarelo da doença, da morte, onde as necessidades do corpo fisiológico preponderam-se às de um corpo produtor de uma cultura sublimada; cultura que pode ser verbalizada e transformada. Os personagens de Amarelo Manga estão presos aos seus instintos e perversões, restando a estes uma espécie de subvida, uma sobrevivência, em que imperam as necessidades da fisiologia e das satisfações sexuais. Nesse aspecto, assemelhando-se a um animal sem recursos simbólicos que possam transcender essa condição de mera carne. Temática, aliás, repetida ao longo do filme (no matadouro), na carne que provoca ânsias na personagem Kika e no personagem de Kanibal. Em um dos monólogos é expresso o critério adotado para definir o caráter das personagens: “O ser humano, hem! O ser humano é estômago e sexo. E tem diante de si uma condenação. Terá obrigatoriamente de ser livre. Mas ele mata e se mata com medo de viver.” Schopenhaueriana por excelência, a frase constitui negativamente o desejo, entendendo que sua livre realização, sem obstáculo algum, leva a uma equivalência entre o homem e a fera. (CUNHA, 2007)
O personagem de Kanibal parece sempre trazer a marca do sangue. É interessante notar nesse ponto que o personagem de Kanibal traz uma marca na cabeça. Ele é marcado com a letra “K”, possivelmente de Kanibal. Mais que apenas a letra, ele é marcado assim como o gado que ele destrincha também o é. Gado este que vai para o abate, para a pensão de seu Bianor e para o almoço de Kika, que se enoja ao manipulá-la. Aqui também
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podemos captar uma sutileza do diretor, que reflete a condição do homem em geral: o homem é um ser marcado para a morte e apesar de poder transcender – através da palavra e da sublimação – sua condição inerente, ainda necessita da carne (corpo) para poder viver. Carne essa que envelhece, apodrece, amarela. No final do século XIX, a metáfora da carne e do corpo foi exaustivamente explorada para enfatizar a presença dominante da fisiologia na vida dos indivíduos, mas também para constituir, tal como no cortiço de Aluísio de Azevedo, o espaço coletivo como um organismo em que a massa de trabalhadores nasce, cresce e prolifera como vermes que apodrecem a carne de dentro, isto é, o organismo social. (CUNHA, 2007) O pouco uso que se faz do recurso simbólico delega o homem ao anonimato, a sucumbir diante de suas paixões bestiais, mortificado e alienado em seu gozo. Isso fica evidente na linguagem depreciativa que os personagens utilizam e que mostra, possivelmente, que alguma coisa apodreceu, já está morta. Essa metáfora evidencia-se no personagem do ator Jonas Block, que mata um defunto. Esse personagem engendra aí um paradoxo: matar o que já está morto. Levando-nos à uma reflexão do que é realmente viver e morrer. Quando não se faz uso da linguagem, da cultura e da arte morre-se enquanto sujeito e sobrevive-se como apenas-corpo. A fala da personagem Kika: “Eu era uma mulher morta” revela-nos um pouco a respeito dessa condição. No caso dessa personagem, um sujeito alienado ao discurso religioso que a apagava, na medida em que deslocava sua singularidade para o coletivo do discurso religioso. O morto do filme aparece, então, enquanto condição real – morte de seu Bianor – o cadáver indigente trazido do IML – e como morte metafórica expressa na repetição da rotina angustiante da qual se queixa a dona do boteco, por exemplo: Às vezes eu fico imaginando como as coisas acontecem. Primeiro vem o dia. Tudo acontece naquele dia. Até chegar a noite, que é a melhor parte. Mas logo depois vem o dia de novo, e vai, e vai, e vai… E é sem parar. A única coisa que não tem mudado é o Santa Cruz que nunca mais pegou nada, mas nem título de honra. E eu não ter encontrado alguém que me mereça. Só se ama errado.
Kika, a personagem religiosa, porém, retoma o Amarelo em outra dimensão. O amarelo onde pulsa a vida. Movida por um possível sentimento de vingança, ela consegue se questionar sobre sua posição e com isso fazer uma retificação em sua condição. Quando ela vai ao salão de cabeleireiro e pede “Uma cor Amarelo Manga” para pintar os cabelos, ela consegue, através deste ato, se colocar numa condição de “viva”, de quem pode por si mesma fazer uma escolha mais legítima por ter se implicado em seus atos. O Amarelo do filme pode ser também o amarelo vivo. Quando se transcende uma condição de anonimato e de repetição para ascender à outra condição de ser “vivo”. Vivo que pode precisar do corpo sim, que pode mais fazer um uso do corpo do que o contrário. Vale acentuar ainda o gosto do diretor Cláudio Assis pelo submundo e pela dita cultura de subversão presente na escolha da trilha sonora composta por Jorge du Peixe, integrante da banda Nação Zumbi. O filme Amarelo Manga (2002), de Cláudio Assis, sintetiza em imagens algumas das premissas estéticas do manguebeat, movimento musical nascido
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no Recife, cujo início remonta ao ano de 1992. O movimento tem como ponto de partida o lançamento do manifesto “Caranguejos com Cérebro” e a explosão, em Pernambuco, das bandas Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S.A., liderada por Fred Zeroquatro, um dos autores do manifesto junto com o jornalista Renato Lins. (FIGUEIRÔA, 2009)
Interessante notar que o nome Nação Zumbi faz uma referência ao que é meio morto, meio vivo. Jorge do Peixe foi participante de um movimento musical denominado manguebeat, liderado pelo músico Chico Science. Movimento este que tem por tema, justamente, transcender o homem-lama, o catador-de-caranguejos, reestabelecendo uma dignidade que faz surgir uma nova estética. Estética que se utiliza paradoxalmente daquilo que pretende criticar. Manifestações musicais (mangue beat) e de outras áreas culturais, que, no Recife, receberam influências diretas ou indiretas das idéias estabelecidas pelo manifesto, cuja motivação central era injetar energia na lama, ou seja, preconizava para a cena cultural da cidade o reflexo da caótica realidade das ruas em constante mutação. Na manguetown, a beleza dos rios e das pontes deveria compor um cenário mais amplo, incluindo os becos sujos, bandidos, musas de biquíni, ônibus velhos e catadores de lixo. (FIGUEIRÔA, 2009)
Parece ser essa proposta ideologicamente parecida com a do filme em questão. Vemos essa temática refletida nos trechos da música Manguetown, música de maior sucesso do movimento manguebeat, marcando fortemente a geração de jovens dos anos 90 no nordeste: Tô enfiado na lama É um bairro sujo onde os urubus têm casas e eu não tenho asas Mas estou aqui em minha casa onde os urubus têm asas Vou pintando, segurando a parede no mangue do meu quintal Manguetown Andando por entre os becos andando em coletivos ninguém foge ao cheiro sujo da lama da manguetown Andando por entre os becos andando em coletivos ninguém foge à vida suja dos dias da manguetown Fui no mangue catá lixo pegar caranguejo Conversar com urubu
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Aqui se levanta outra questão subjacente: em que medida o suposto grotesco pode alçar, a partir da intervenção da arte, um estatuto de sublime? Como pode a arte elevar a condição humana naturalista, quase bizarra, ao estatuto de simbolizável? Claro que aí várias outras questões seriam mobilizadas, o que não é objetivo do presente texto, que tem por objetivo fazer uma análise curta e pontual de alguns aspectos do filme. Para finalizar, gostaria de ressaltar a ambigüidade do título Amarelo Manga e chamar atenção para um trecho da música de Otto, também integrante do mesmo movimento musical citado acima. Trecho cantado pelo personagem de Matheus Nachtergaele enquanto varria a pensão de Seu Bianor: “Amarelou mangou de mim, não vai ficar de graça”. Aqui, no duplo sentido, podemos inferir o termo mangou, utilizado no nordeste como debochar, caçoar e o “amarelou” como não ter coragem, ter medos, entre várias outras interpretações possíveis. Esse amarelo da morte e das doenças parece mangar da condição humana, de ser para a morte, de corpo indigente, corpo que não sente. E só a arte, em seu sentido mais amplo, vem efetivamente dignificar essa condição de “Não deixar de graça”. Pode até expor o ser humano em seus limites últimos e extrair daí o paradoxal material rico de sua poesia: vivificante.
Referências AMARELO Manga. (2002). Dir. Cláudio Assis. BAIXIO das Bestas. Baixio das Bestas (2007) Dir. Cláudio Assis. CUNHA. Cilane. Amarelo Manga: simetrias e contrastes com o Realismo-Naturalismo. Revista 34 do programa de Programa de Pós Graduação em Letras - PPGL/UFSM. 2007. FIGUEIRÔA, Alexandre. O manguebeat cinematográfico de Amarelo Manga: energia e lama nas telas. Revista Universitária do ÁudioVisual. 2009. LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1998. SCHOPENHAUER. Dores do mundo. São Paulo: Edições e Publicações Brasil Editora, s/d.
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Sabrina Rocha Stanford Thompson é mestranda em cinema no Instituto de Artes da Unicamp.
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A tautologia intencional
estudo sobre a natureza enunciativa da obra de arte Walter Menon*
Resumo: Este texto parte do pressuposto de que a arte contemporânea compartilha com a filosofia o mesmo objeto, qual seja a linguagem. Assim sendo, pretendo analisar, em um primeiro momento, o fundamento enunciativo da obra de arte a partir da perspectiva aberta pela definição da natureza tautológica da arte fornecida por Joseph Kosuth. Pretendo mostrar que o “tautológico” pensado por Kosuth apenas tem sentido em um contexto de jogo de linguagem e, logo, se pensado como ato de fala, ou seja, exprimindo uma intenção qualquer. Em um segundo momento, exploro a possibilidade da dupla estrutura tautológico-pragmática da arte estar intrinsecamente ligada a todo e qualquer jogo de linguagem. A hipótese conceitual da arte, em ultima instância, colocaria em evidência algo fundamental ao funcionamento da própria linguagem. Palavras-chave: J. Kosuth, Linguagem, arte e Ato de fala Intentional Tautology: a study of the expressive nature of works of art Abstract: This paper assumes that contemporary art shares with philosophy the same object, viz. language. Accordingly, the author proposes to analyze, first of all, the expressive basis of works of art from the perspective suggested by Joseph Kosuth’s idea of the tautological nature of art. I seek to show that the “tautological” considered by Kosuth is meaningful only in the context of a language game, and, therefore, only if considered as a speech act (i.e., only if expressing an intention). Secondly, I exploit the possibility that the pragmatic-tautological double structure of art is intrinsically connected with each and every language game. Ultimately, the conceptual hypothesis of art may reveal something fundamental about the working of language itself. keywords: J. Kosuth, language, art and speech act
O
filosofo americano Arthur Danto1 escreveu que a filosofia tem uma tendência a se confundir com o objeto de seu estudo. Para este filósofo, o risco de perder o que faz a especificidade do domínio da filosofia pode ser perigoso, no sentido de que a filosofia pode simplesmente desaparecer “engolida” por seu objeto. No caso da filosofia da arte, por exemplo, uma vez que o objeto da arte torna-se sua própria filosofia, ela se confunde com a filosofia da arte. Em conseqüência, definir os 1 Danto, A. La transfiguration du banal. Une philosophie de l’art. Paris: Seuil, 1989. p. 107-108.
procedimentos, o método e os objetos de investigação que a arte utiliza, pode, em certa medida, ajudar a definir o que é o “próprio” da filosofia, enfatizando as suas diferenças. Para Danto, definir a arte, no contexto de um trabalho filosófico, significa evitar cair na tentação de fazer da arte um tipo de filosofia da arte. Assim, o filósofo pode conservar os limites entre os dois campos a fim de reconstruir com mais clareza o que é próprio a cada um deles. Logo, a tarefa primeira do filósofo da arte é a de definir o que é arte. A tese que defendo neste texto se coloca no extremo oposto da posição do filósofo analítico. Não porque as observações de Danto pareçam incorretas, mas simplesmente porque a reflexão pretendida por mim não se insere na esteira da filosofia da arte estrito senso, nem tão pouco na da critica ou estética. O objetivo principal deste trabalho não é o de fornecer uma definição da arte ou analisar obras de arte, ou ainda o de elaborar uma teoria da recepção estética. Este trabalho tem por objetivo estabelecer as bases de um possível ponto comum entre arte e filosofia: o de uma teoria da linguagem, na qual, a arte ocupa uma posição central. Procurarei defender a tese de que a arte exerce, em certa medida, uma função importante no cerne da linguagem entendida no seu aspecto pragmático e tentarei entender como esta função é constituída. O artista Yves Klein,2 durante a já célebre conferência pronunciada na Sorbonne em 1959, descreveu sua obra realizada para uma exposição coletiva na cidade de Anvers. No momento da abertura da exposição, ao invés de expor uma de suas pinturas ou um objeto qualquer de sua autoria, Klein se posiciona no local que estava reservado para sua obra entre as dos outros artistas e enuncia de uma voz forte diante do publico a frase do filósofo Gaston Bachelard que contém uma referência à cor azul: “Primeiramente não há nada, em seguida há um nada profundo, depois uma profundidade azul”. Interrogado pelo organizador da exposição onde se encontrava sua obra, Yves Klein responde: “Aqui, aqui de onde falo neste momento”. A frase do artista resume a intenção deste texto, a saber, de mostrar que em todo enunciado há o acontecer de um trabalho de arte. Uso o termo “trabalho” para delimitar o caráter processual, não acabado, de produção de sentido no enunciado. No “aqui de onde falo neste momento”, o “aqui” de onde fala Klein não é restrito ao espaço da galeria e ao tempo da exposição, nem tão pouco ao mundo da arte, nos termos de Danto; este “aqui” é o lugar de produção da palavra. No “aqui” de onde se fala encontra-se em ação um gesto, um ato que consiste em indicar o “aqui” como lugar de produção de significação. Este “aqui” não deve ser confundido com o pólo do enunciador ocupado por Klein. O “aqui” é sempre algures, sempre outro, ele é o outro de linguagem ao qual Klein faz referência pela ação de proferir a frase de Bachelard. Ao enunciar esta frase, o que Yves Klein está fazendo, em ultima instância, é indicar o lugar de onde ele a enuncia: “o aqui onde há fala”. Observe-se que ele não fala a partir de alguma posição, isto é, do pólo do emissor; Klein indica com seu gesto, quero insistir, que o “aqui” é, em última instância, o referente do seu enunciado. Enunciar significa, portanto, produzir o referente ao qual a significação do enunciado se refere, mas também, significa que o referente aí significado é sempre a situação de produção do referente no ato de enunciar. Parece, portanto, que o gesto de Klein coloca em evidência uma estrutura circular intrínseca a certo tipo de enunciação e, ao mesmo tempo, mostra que tal estrutura é própria ao gesto artístico. 2 Klein, Y. Le dépassement de la problématique de l’art et autres écrits. Paris: Ecole Nationale Supérieure des Beaux-arts, 2003.
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Este lugar, o “aqui” é a linguagem. O trabalho de Klein, por sua vez, é o ato de atualização da linguagem pela palavra entendida como ato. Neste sentido, o fazer arte consiste em ser o fundamento mesmo de todo ato de fala. O lugar de fala, o “aqui” aparece, nessa perspectiva, sob a égide do trabalho da arte. Um trabalho que busca erigir a circularidade da proposição como paradigma da autonomia da fala. Em um primeiro momento, nos damos conta de que a estrutura enunciativa do gesto de Klein é herdeira, em certo sentido, de uma concepção oriunda de arte derivada da sua hipótese conceitual; em seguida podemos verificar que esta se quer extensiva a todo gesto artístico, mesmo àqueles que podem ser considerados refratários às concepções conceituais da arte. Se atentarmos, por exemplo, para o registro teórico próprio ao minimalismo, contrário às propostas da arte conceitual, encontramos, mesmo aí, a intencionalidade de tornar visível o processo e os procedimentos da conceitualização da arte. Este processo quer mostrar – no contexto que estamos aqui examinando, isto é, no contexto da sua forma enunciativa – que a raiz mesma de todo trabalho artístico é o de fazer teoria. Fazer arte é, portanto, teorizar. O tipo de teoria que a arte realiza, quero entender, seria o mesmo daquele da filosofia contemporânea que tem por objeto a linguagem.3 Interessa, portanto, procurar na teoria da arte conceitual de Joseph Kosuth os fundamentos da concepção da obra de arte como enunciado. Em seu artigo maior, Art after Philosophy and after,4 Kosuth define a arte como conceito de obra da arte e, portanto, como enunciado tautológico. Para Kosuth a arte não pode dizer nada além do esforço de auto-enunciação. Kosuth, entretanto, assimila o tautológico ao analítico e afirma que haveria, então, na arte um tipo de construção conceitual similar a da lógica matemática, cuja verdade das proposições depende apenas da sua coerência lógica. Aos olhos de Kosuth, este gênero de conhecimento representa um ideal superior ao qual a arte deve aspirar para conquistar uma autonomia completa em relação a toda referência exterior, isto é, a todo referente que não seja ela mesma. Um conhecimento que vai além, e se torna independente, do pensamento metafísico que constituiu tradicionalmente a filosofia e a arte ocidental. No sentido geral do termo metafísica encontra-se uma forma de estruturar o pensamento que é dicotômica, dividida entre essência e aparência. Desta maneira, uma vez que a arte conceitual emula a analiticidade da lógica, esta dicotomia teria sido ultrapassada através da tese do caráter de enunciado tautológico da arte. O que parece claro na proposta de Kosuth é que a natureza da arte é primeiramente tautológica e em seguida que esta natureza tautológica se exprime na forma de um enunciado. Kosuth pensa o tautológico análogo ao analítico e este como sendo o tipo de enunciado elaborado pela lógica.5 A lógica conteria, pela estrutura analítica das proposições puramente lógicas, o modelo de autonomia visado pela arte. A formulação de Kosuth, da natureza tautológica da arte, deriva da preocupação deste de encontrar uma definição de arte que, justamente, corresponda à sua plena autonomia. O que pode ser mais autônomo – no sentido de desligado de qualquer referência a algo externo à coisa 3 Poulain, J. La loi de vérité ou la logique philosophique du jugement. Paris: Albin Michel, 1993. p. 9. Ver também a introdução de: Alston, P. W. Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 20-22. 4 Kosuth, J. L’art après la philosophie, trad. Christian Bounay, in Art en théorie 1900-1990, une anthologie par Charles Harrison et Paul Wood. Paris: Editions Hazan, 1997. p. 916. 5 Ibid., p. 923. ver também a explicação dos conceitos de analítico e tautológico em Tugendhat, E. e Wolf, U. Propedêutica lógico-semântica. Petropolis: Vozes, 2005. p. 34-37.
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mesma que se pretende autônoma – que um enunciado tautológico? Um enunciado deste tipo não somente não afirma nada sobre o mundo e não pode ser confirmado nem falseado pela experiência empírica, mas, se tautológico se torna sinônimo de analítico, como quer Kosuth, então, fundamentalmente, a forma tautológica passa a possuir sentido fora da sua forma tautológica. Dizer “uma obra de arte é uma obra de arte” não diz nada sobre o que é arte. Entretanto, para Kosuth esta frase teria sim um sentido, qual seja a de que a arte é auto-referente e que exprime esta auto-referência por meio do enunciado tautológico “uma obra de arte é uma obra de arte”.6 Em ultima instância, é este enunciado mesmo que constitui toda e qualquer obra de arte. Pode-se formular da seguinte maneira a proposta de Kosuth: “o enunciado, “uma obra de arte é uma obra de arte” é uma obra de arte” e ainda continuar, “todo enunciado: “o enunciado, “uma obra de arte é uma obra de arte” é uma obra de arte” é uma obra de arte”. Ocorre aqui que a frase tautológica faz referencia à natureza tautológica da arte, o que, de nenhuma maneira é evidente. Observe-se, também, que, esta suposta natureza tautológica de toda obra de arte – ao qual, toda obra de arte faz referência, justamente por ser obra de arte – encontra-se referida na teoria de Kosuth. Ora, cada obra de arte, para que seja vista como um enunciado tautológico, deve comportar a intencionalidade de ser o caso das concepções teóricas de Kosuth, isto é, referir-se, na sua intencionalidade à concepção teórica da arte conceitual. Todavia se este é, efetivamente, o caso, afirmar algo como obra de arte, significa também afirmar a natureza tautológica da arte, independente de tal afirmação conter a intenção de fazer uma referência direta à teoria de Kosuth. Deriva daí que a formulação tautológica da obra de arte não é necessariamente restrita ao âmbito da arte conceitual. Pode-se afirmar que a teoria de Kosuth é extensiva para toda obra de arte desde que seja esta seja intencional. Uma vez que há a intenção de denominar algo “arte” tem-se aí – não no algo que se denomina arte, mas no ato de denominar – um enunciado do tipo identificado por Kosuth como a obra de arte ela mesma. Por outro lado, se a natureza tautológica não é uma evidência, isto é, se depende da intencionalidade do enunciado, ela seria, antes, parte da hipótese da arte conceitual e, neste sentido, poderia apenas ser válida no contexto da aceitação da teoria conceitual da obra de arte. Para que o enunciado que denomina algo obra de arte seja visto como obra de arte, dentro da perspectiva de Kosuth, faz-se necessário que ele tenha a si mesmo como referente, isto é, que o “algo” a que se refere o enunciado “o algo que é obra de arte” seja em última instância este enunciado mesmo. Porém, a afirmação de que neste tipo de enunciado encontra-se a natureza da obra de arte é simplesmente postulada e decorre da intenção de Kosuth de afirmar a natureza autônoma de toda obra de arte. Cabe a nós aderirmos ou não a este postulado. Se estamos de acordo com ele, então, para nós, toda obra de arte é um enunciado tautológico. O que fica claro é que a intencionalidade precedente ao postulado da natureza tautológica da arte deve ser aceita como evidente para que tal natureza seja, efetivamente, vista como obra de arte. Em outras palavras, a intencionalidade deve ser abstraída, posto que a estrutura tautológica prescinde por definição de qualquer referência externa a ela e, portanto, não pode ser ratificada por uma razão qualquer que lhe seja externa, por exemplo, a necessidade de se conceber uma intencionalidade necessária para justificar a idéia de sua autonomia. Se a estrutura 6 Kosuth, J. L’art après la philosophie, trad. Christian Bounay, in Art en théorie 1900-1990, une anthologie par Charles Harrison et Paul Wood. Paris: Editions Hazan, 1997. p. 923.
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da arte é tautológica ela não pode ser intencional. A intencionalidade deve ela mesma ser um caso da tautologia que determina toda obra de arte, ou seja, ela não pode ser efetivamente entendida como intencionalidade. O problema de uma expressão tautológica só encontra sua solução dentro de uma perspectiva pragmática da linguagem que pressupõe necessariamente interlocutores e o enunciado como ato de fala. A tautologia aparece, sob a perspectiva da pragmática da linguagem, como um recurso retórico de encobrimento da intencionalidade, a fim de tornar maior o efeito performativo do enunciado. Se seguirmos as hipóteses de Kosuth contidas em Art after philosophy and after – a obra de arte como enunciado tautológico; a origem da arte conceitual com a obra e o pensamento de Marcel Duchamp; a arte conceitual como o último passo em direção à autonomia completa da arte – verificaremos que a natureza conceitual da arte ultrapassa os limites da produção restrita à arte conceitual e situa sua especificidade na intenção de afirmar que há algo que quando nomeado obra de arte torna-se arte. Desde que são reunidas as condições suficientes para elaborar tal enunciado intencional e para que ele seja aceito como tautológico – condições dadas pela pragmática da linguagem – então podemos dizer que tal enunciado é uma obra de arte. Parece, portanto, que a natureza tautológica da arte seria falsa do ponto de vista estrito da lógica, mas se manteria, e seria mesmo legítima, considerada a partir da perspectiva do seu contexto de enunciação. Tendo em vista que não há conceito fora do seu enunciado e que todo enunciado é um ato de fala em um jogo de linguagem, o procedimento da constituição de uma obra de arte consiste, principalmente, em ser este tipo de ação produzida pela forma performativa do enunciado. A definição de conceito que utilizo aqui deriva daquela formulada por Hilary Putnam. Para o filósofo americano conceitos são “signos usados de uma maneira particular”.7 Penso que é exatamente isto o que ocorre em um enunciado. Um enunciado é uma reunião específica de signos que exprimem algo em um contexto criado por um jogo de linguagem. A linguagem se comporta, fundamentalmente, como um jogo; cada lance neste jogo é um enunciado, uma operação de constituição de sentido à partir de regras que definem tal jogo. Existem múltiplos jogos e, logo, inúmeras regras apropriadas a cada jogo. Um enunciado seria destituído de sentido fora do jogo, no qual, ele é um lance; o uso do enunciado no contexto de jogo define seu sentido, quer dizer, ele é definido em função de sua posição em relação aos outros enunciados que constituem o contexto de jogo; cada contexto é, por sua vez, definido por meio da aplicação das regras do jogo. A noção de uso, como elaborada por Wittgenstein8 e citada por Kosuth, é, por conseguinte, central para a compreensão do que é a linguagem. Para este filósofo, a significação de uma palavra deriva do seu uso em um jogo de linguagem. O mesmo é verdade para os enunciados. O significado do enunciado deriva de seu uso em um jogo de linguagem. A teoria conceitual da arte faz parte, assim como a concepção da natureza tautológica da arte, de um jogo de linguagem. A definição tautológica da arte existe, portanto, no jogo de linguagem da concepção conceitual de obra de arte, e depende, para ser legítimo, como todo enunciado, muito mais de sua eficácia em traduzir o que está supostamente intencionado nesta teoria, isto é, a autonomia absoluta da obra de arte, do que da sua suposta estrutura tautológica. O enunciado tautológico, que é toda obra de arte, consiste em um ato de fala em um dado contexto previsto pelas regras do jogo de linguagem em 7 Putnam, H. Raison, Vérité et Histoire. Paris: Les Editions de Minuit, 1984. p. 29. 8 Wittgenstein, L. Le cahier bleu et le cahier brun. Paris: Gallimard, 1996, p. 56.
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questão; como todo ato de fala ele é um enunciado performativo e, portanto, depende para ser eficaz, de sua força performativa. Surge aqui, de fato, um problema que apenas encontra solução se deslocarmos o foco da nossa análise de uma perspectiva que tenta definir a arte como enunciado, para outra que procura definir o que é linguagem, pela arte. Em outros termos, qual a maneira própria da linguagem se constituir em termos de ato de fala e que seria explicitado no gesto conceitual da arte. O filósofo J. L. Austin foi o primeiro a estabelecer as linhas principais do que seria conhecido como a teoria dos atos de fala.9 Para este teórico, todos os tipos de enunciados obedecem, à situação de fala do qual fazem parte; toda proposição enunciada em uma dada situação pode ser reduzida à sua forma performativa. O enunciado performativo se caracteriza por realizar a ação à qual faz referência ao ser proferido. Neste tipo de enunciado dizer é agir. Os valores de falso ou verdadeiro usados para se verificar a verdade de um enunciado são substituídos por noções de sucesso ou não em produzir a ação que o enunciado realiza. Austin utiliza os termos de felicidade e infelicidade para indicar se a ação pretendida pelo performativo se realizou ou não.10 A ênfase é dada aos aspectos convencionais e intencionais da ação, isto é, às razoes para se realizar tal ação e ao conjunto de fatores e regras que devem estar presentes e serem seguidas para que o performativo seja efetivamente realizado. Sem entrar em detalhe sobre as regras que presidem o sucesso de um ato de fala, e sem me deter em uma análise de qual o papel da intencionalidade neste tipo de enunciado, penso que a afirmação de que os enunciados performativos não se referem a nada, mas realizam uma ação só é verdade parcialmente. De fato, eles realizam uma ação ao serem proferidos e o ato mesmo de enunciar é esta ação, mas eles também se referem a algo. Todo enunciado performativo se refere, ao ser bem sucedido, à intenção que ele exprime por meio da ação que realiza. Se todo enunciado: declarativo, constatativo, etc., tem, em sua formulação primitiva, uma forma performativa, então o enunciado tautológico de obra de arte – que, de fato, como vimos, não é uma pura tautologia – exprime uma intenção: a de não ser entendida como um enunciado intencional e realiza uma ação ao ser enunciada, qual seja a de apresentar-se como a definição de obra de arte. O sentido que o termo tautológico tem neste contexto, como vimos anteriormente, é menos estritamente lógico e muito mais dependente da situação em que é empregado e da intenção do seu uso. Gostaria, entretanto, de inverter esta perspectiva e tentar verificar se em todo enunciado não residiria uma estrutura circular do tipo explicitado pela teoria conceitual da arte e, portanto, todo enunciado seria, em ultima instância, uma obra de arte conceitual no sentido extenso que estou utilizando. Tendo em vista que é possível entender todo enunciado como enunciado per formativo,11 posso dizer que em todo enunciado a intenção e a ação se equivalem. Parece, então, que todo enunciado seria, fundamentalmente, auto-referente, ou seja, teria uma estrutura circular. A forma performativa do enunciado traria uma estrutura circular do tipo da definição tautológica da arte, ou seja, uma tautologia que depende, para ser tautológica, da sua incisão em um contexto de jogo de linguagem.
9 Austin, J. L. Quand dire, c’est faire. Paris: Seuil, 1970. 10 Ver segunda conferência. Ibid., p. 47. 11 Ver décima primeira conferência. Ibid., p. 139.
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Mesmo admitindo que o tipo de ação pretendida pelo performativo exclui o ato de referir-se, posto que, se assim fosse, ele estaria sujeito a valores de verdade, seríamos, porém, obrigados a também aceitar que o enunciado performativo não pode evitar referirse à intenção que ele exprime ao realizar a ação que corresponde a esta intenção e não a outra. Ora, para que assim seja, ele deve referir-se, paradoxalmente e antes de tudo, à sua intenção como se ela não fosse intencional. A intencionalidade de todo ato de fala é então a de anular-se em uma ação performativa, como se ela fosse intrínseca à sua forma performativa, independente do sujeito da intenção, posto que a forma performativa do enunciado, por definição, engendra a ação. Intencionar, enunciar e agir tornam-se uma mesma coisa. Assim, reencontramos, no cerne da pragmática da linguagem, uma forma de enunciação auto-referente muito próxima daquela tautológica da obra de arte. Um lance em um jogo de linguagem, um ato de fala, retira sua força performativa do fato de, no contexto de linguagem, aparecer como que auto-engendrada, sem sujeito, isto é, tendo sua intenção não em um locutor, mas na sua própria elaboração. É como se a linguagem fosse seu próprio locutor. Retomando, a teoria enunciativa da obra de arte decorre da afirmação de que toda obra de arte é o enunciado da sua condição de obra de arte, que qualquer referente pode vir referido neste tipo de enunciado, bastando para tanto que ele seja visado, intencionalmente, como um caso do enunciado, isto é, como uma obra de arte. Assim, considera-se uma obra de arte algo que vem acompanhado explicitamente ou não (pouco importa) do enunciado que indica ou afirma este “algo” ser auto-referido obra de arte. Ou seja, o ato de produzir uma obra de arte encontra-se na intenção de enunciar este ato como não intencional, quer dizer, tautológico, que a obra de arte é esta enunciação ela mesma e que, finalmente, este tipo de enunciado, por não fazer referência apenas à suposta estrutura tautológica da arte, aceita qualquer referente como o caso desta tautologia. Nesse sentido, a situação engendrada pelo gesto de Klein é esclarecedora, tal gesto, a descrição que o acompanha e legitima correspondem, por conseguinte, ao tipo de funcionamento da frase que coloca em evidência a estrutura pragmática da linguagem.12 Constata-se que tal gesto é exemplar de uma escolha que exprime uma intenção, e que pode ser traduzida como um lance no jogo de linguagem. Em cada ato de fala se produzem duas ações simultâneas e indissociáveis: a referência a um referente e a referencia ao enunciado que contém o referente, pois referir-se a algo é sempre referir-se a seu enunciado. Por conseguinte, a ação de auto-referência caracteriza o enunciado como o único lugar de experiência que os interlocutores podem ter do referente. A expressão de Yves Klein revela exatamente isso, a saber, que o enunciado é o “aqui” onde se produz o mundo. Um produzir intrínseco ao fazer tautológico da arte e, portanto, como estamos vendo, da própria enunciação. Os atos de linguagem se atualizam, a cada partida jogada, como versão plausível do mundo, no qual, a estrutura tautológica, do tipo revelado pela arte conceitual, é consubstancial à própria dinâmica de linguagem. A partir da concepção de que a estrutura da linguagem é, prioritariamente, pragmática e que, portanto, estão aí pressupostos os dois pólos do enunciador e do auditor, determina-se que a natureza tautológica do enunciado é, antes de tudo, comunicacional. Nesta dinâmica comunicacional é que se dá, portanto, a experiência do referente que se produz como escolha intencional expressa no ato de fala, mas que, entretanto, já está 12 Poulain, J. La loi de vérité ou la logique philosophique du jugement. Paris: Albin Michel, 1993. p. 15-25.
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pressuposto como inelutável, posto que é produzido por um enunciado auto-referente. O caso de Klein ilustra esta afirmação. Klein nada “escolheu” no seu gesto, que não estivesse já inscrito na lógica mesma da enunciação de tal escolha. A dinâmica comunicacional estabelecida por Klein entre ele e os possíveis auditores, constitui o lugar da experiência do referente expresso na sentença de Klein. Por que os atores envolvidos no processo comunicacional estão justamente amalgamados neste ato de experimentar a “escolha” não como fruto da intenção do enunciador, mas como produzida unicamente pela dinâmica de enunciação, mais especificamente, pela força performativa do enunciado, é que, esta força performativa pode ser vivida como auto-evidente. Dito de outra maneira, esta “escolha” aparece como efeito de uma operação intrínseca à dinâmica comunicacional do enunciado sobre os dois pólos dos interlocutores e por intermédio deles, mas sem que estes estejam na origem de tal escolha ou intenção. Tudo se passa como se o enunciado se auto-engendrasse e como se os interlocutores pudessem apenas aderir ou não à sua força performativa. Está aí evidenciada a operação que a linguagem realiza sobre ela mesma no sentido de produzir situações de consenso, nas quais, a dupla natureza tautológica e pragmática da linguagem é vivida como autônoma na produção de sentido. Esta operação foi colocada pela primeira vez em destaque por Marcel Duchamp13 com os readymades. Faço aqui uma interpretação do readymade, não a partir de uma suposta operação intencional sobre objetos encontrados, modificados e transpostos para contextos de uso diferentes daqueles nos quais eles foram encontrados, mas a partir da idéia de que o fundamental da operação intrínseca ao readymade encontra-se no enunciado que o acompanha. A operação do readymade ocorre no interior do enunciado que nomeia tal coisa e não em outro readymade. Mais especificamente ela é a essência mesma deste tipo de enunciado. Readymade não deve ser aqui compreendido no seu sentido mais comum de um tipo de objeto artístico ou uma ação artística, mas como o fundamento mesmo do enunciado que se auto-determina dentro da dinâmica dialógica da linguagem. Cada ato de fala, cada enunciado em um jogo de linguagem é uma operação do tipo realizada pelo readymade, ou melhor, é uma operação readymade. Esta autodeterminação surge como uma espécie de auto-afecção de uma “lógica sensível” da frase (para recuperar um termo de Duchamp), mais fundamental que as regras formais das relações de coerência sintática e semântica entre proposições; lógica de afinidades determinante das articulações entre significantes, baseada essencialmente em critérios de homomorfia. Marcel Duchamp coloca em evidencia as regras dessa lógica do pathos verbal, através das unidades de medida aleatória denominadas stoppages-étalon,14 que têm por função servir de padrão para produzir a significação de outros signos sem a interferência de uma escolha intencional. Um padrão aleatório, um oxímoro, que só pode fazer sentido se levarmos em conta a intencionalidade tautológica resultante da proposta de Kosuth. O auto-engendramento ocorre, fundamentalmente, sobre as bases aleatórias de interação entre significantes que constitui a linguagem e que denomino de operação readymade. Ora, justamente, Duchamp afirmava que as escolhas dos readymades provinham antes do próprio objeto, daquilo que sua materialidade e função sugeriam, do que, 13 Duchamp, M. Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1994. p. 48-51 e 145-149. 14 Ibid., p. 50-51.
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propriamente, da intenção de transformá-lo de tal ou tal maneira. Entretanto, tendo em mente o fato de Duchamp reivindicar a ausência de intencionalidade como pressuposto de autonomia da arte, deixando o objeto “sugerir” sua transformação, a operação que se realiza aqui se dá, efetivamente, no nível da enunciação. A intenção de Duchamp de estabelecer um padrão aleatório para os enunciados, a partir da “lógica sensível” da linguagem, e de se submeter a ela, na realização dos seus readymades, só pode funcionar dentro do contexto e seguindo as regras do jogo de linguagem que faz da intencionalidade um correlato da auto-afecção da linguagem. Desta forma, o gesto de Duchamp é exemplar do que se passa em todo ato de enunciação. A auto-afecção da linguagem funciona na medida em que cada enunciado tem a possibilidade de realizar-se como um ato de fala mais ou menos bem sucedido. É fundamental, para tanto, que o efeito tautológico do enunciado, ou seja, não intencional da sua natureza, seja capaz de produzir, por intermédio de sua afirmação em um enunciado performativo, uma experiência consensual deste efeito. Ora, este consenso deve, para ser eficaz, ser vivido como a experiência da auto-afecção da linguagem. O tipo de tautologia que a arte revela intrínseco a todo ato de fala, abre espaço para que qualquer referente possa encontrar-se referido no seu auto-enunciado e a aderência a este enunciado como verdadeiro, por parte dos interlocutores, torna-se incondicional. Nisto consiste exatamente a auto-afecção da linguagem. Os interlocutores vivenciam o sentido do enunciado como se ele se auto-engendrasse em um processo de auto-regulação da fala.15 A auto-afecção funciona à medida que aceitamos a natureza enunciativa da linguagem como simultaneamente intencional e tautológica. Conseqüentemente, a cada vez que um enunciado é utilizado, em um contexto de linguagem, ele faz referencia a si mesmo e simultaneamente a algo especifico do mundo, ele aponta para algo no mundo que deve ser – e aí entra o consenso vivido como auto-afecção da linguagem – necessariamente compreendido como seu referente. Ao apontar para si mesmo como seu próprio referente, o enunciado imprime uma força performativa a si mesmo de verdade evidente que tem um efeito duplo: é evidente que este enunciado tautológico é seu referente e é evidente que ao ser utilizado em um contexto de definição de algo que lhe é externo, este algo é compreendido necessariamente como seu referente por pelo menos uma pessoa, a saber, o próprio locutor que enuncia sinceramente tal afirmação. Nessa perspectiva, identificado ao ato de invenção de si mesmo e do mundo, que é todo enunciado, o interlocutor, esteja ele na posição de artista ou de público, de locutor ou auditor, adere ao efeito de auto-afecção da linguagem como forma de vida autônoma. Para Wittgenstein, falar uma língua pressupõe uma atividade na qual encontram-se entrelaçados, visão de mundo, cultura e linguagem. Esta atividade é o que ele denominou forma de vida (Lebensform).16 Uma forma de vida pressupõe portanto regras; no caso em que estamos analisando, o da natureza enunciativa e tautológica da arte, assim como o de todo enunciado performativo e, portanto, de todo enunciado. Estas regras são vividas como autônomas, intrínsecas ao próprio jogo da linguagem que é o da livre associação a partir de afinidades sensíveis entre significantes, como demonstra a operação readymade. No caso especifico do jogo de linguagem da arte, o artista e o público, portanto, 15 Poulain, J. L’age pragmatique ou l’expérimentation totale. Paris: L’Harmattan, 1991. p. 166-167. 16 Wittgenstein, L. Recherches philosophiques. Paris: Gallimard, 2004. § 19, §23, §241. Ver também, Glock, H.-J. Dictionnaire Wittgenstein. Paris: Gallimard, 2003. p. 250-251.
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gozam de sua imagem identificada àquela da linguagem livre de toda determinação de uma intenção qualquer. A aderência ao jogo de linguagem do enunciado tautológico da arte, o fato de se deixar afetar por suas regras, se realiza como aderência as regras de uma vida que se pretende modelo de autonomia, pois ela traz em si a promessa de emancipação pela palavra. Entretanto, esta experiência de emancipação é comum a todo jogo de linguagem. Enunciador e receptor se representam como emancipados, pela identificação à lógica sensível da linguagem, de toda subjetividade e de toda menção a algo estranho à própria estrutura tautológica do enunciado. Aqui encontra-se evocada a imagem idealizada do interlocutor como efeito da auto-afecção da linguagem. O gesto do artista evidencia esta situação especifica, pois não é o fato que ele enuncia o enunciado tautológico que é a obra de arte, que dá a esta o estatuto de obra de arte, mas é a obra – o enunciado que se enuncia ele mesmo – que engendra o lugar do enunciador como lugar de criação e lhe designa este lugar como sendo efetivamente o seu. Este lugar, já vimos anteriormente, é o “aqui” a que Klein faz referência. A este efeito intrínseco ao ato de fala vem somar-se a idéia de que, segundo a perspectiva obtida a partir deste lugar, as formas de vida (Lebensform) produzidas pela utilização da palavra representam um valor de emancipação. A emancipação, neste sentido, permanece, tão somente, um efeito hiperbólico da dinâmica comunicacional da linguagem, própria à estrutura auto-referencial da forma performativa do enunciado. O lugar que é destinado a cada interlocutor resulta da auto-afecção da linguagem; esta é vivida como experimentação de toda forma de vida (Lebensform) possível, à qual os interlocutores não podem se subtrair sem pagarem o preço da perda de autonomia. A emancipação, representada pelo gesto contido no efeito tautológico, consiste em uma forma de vida (Lebensform) na qual a identificação dos interlocutores à dinâmica comunicacional do enunciado é total. Emancipar-se significa, portanto, emancipar a posição de sujeito do enunciado daquela do sujeito da vontade, do gosto e do conhecimento apontado pela filosofia moderna como sede do juízo. No horizonte desta identidade entre sujeito do enunciado e o enunciado ele mesmo, ou seja, no espaço aberto pela autoafecção da linguagem, encontra-se demarcado o campo de experimentação da linguagem que se quer única representação possível da autonomia. A aderência ao funcionamento do enunciado tautológico, a tentativa de reprodução da sua lógica sensível em todos os campos da vida, como experiência de autonomia, se encontra atualizada permanentemente nas versões do tipo de liberdade que são encarnadas na imagem do artista. Este representaria o tipo de enunciador perfeito: aquele no qual e pelo qual acontece um enunciar totalmente desprovido de intencionalidade. A experimentação na arte e, portanto, da linguagem torna-se o paradigma de toda experimentação: científica, política, social, etc. Experimentamos a linguagem na sua forma dialógica e em cada nova experimentação de linguagem novas formas de vida são erigidas sob o emblema da liberdade de invenção, entretanto, para que possam ser reconhecidas pela comunidade de experimentação como tal, faz-se necessário, paradoxalmente, conservar-se dentro da esfera da auto-afecção da linguagem, ou seja, no seio da lógica sensível produzida pelo efeito tautológico da performatividade dos atos de fala. Neste sentido, usar uma linguagem se reduz à aderência consensual às regras do jogo de linguagem em questão.
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Walter Menon é pesquisador associado da Faculdade de Comunicação da UnB, doutor em filosofia pela Université de Paris VIII, mestre em comunicação pela UnB e artista plástico atuando desde 1998.
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A força artística do corpo
o exemplo de Michael Jackson Márcia Patrizio*
Resumo: Partindo da tese de que o corpo é naturalmente portador de capacidade estética, Márcia defende que o grande artista nao é aquele que surge das melhores escolas, mas sim o que consegue naturalmente provocar o mais forte sentimento de prazer estético que é, segundo Kant e Schopenhauer, o do sublime. Pautada em grandes teóricos da estética ocidental, ela mostra que este nobre sentimento não se limita ao sensível, não é produto especifico de uma certa arte, nem tampouco de uma classe social específica, mas fruto do trabalho de um gênio. Ela utiliza Michael Jackson como exemplo principal de suas analises. Palavras-chave: belo, sublime, encenação, potencialidades corporais The Artistic Power of the Body – Michael Jackson’s case Abstract: Taking as her starting point the idea that the body has a natural esthetic power, the author maintains that the great artist is not a product of the best Art Schools, but one who is able to naturally provoke the strongest feeling of aesthetic pleasure – which is, according to Kant and Schopenhauer, the feeling of the sublime. Based on some great thinkers of western esthetics, she shows that this noble feeling is not restricted to what is sensed, that it is not a peculiar product of a certain kind of Art, nor of a certain social class, but is the result of the work of a genius. She uses Michael Jackson as the main example in her analyses. Keywords: Beauty, Sublime, Body Capacity
O
corpo pode, por si só, ser considerado uma obra de arte. Não no sentido teológico de obra perfeita da criação divina, tal que fortemente defendido pelos cristãos, dentre outras religiões; mas enquanto que objeto artístico. Este é o caso, por exemplo, nas artes cênicas onde o artista trás, para seu corpo, todo a tensão e a atenção da representação artística. O sucesso do seu trabalho depende da habilidade de seu corpo e da capacidade de, através deste, transmitir emoções variáveis e sentimentos os mais diversos, com os quais o seu público se identificara ou não. Em ambos os casos, o corpo em ato será visto como “obra-de-arte em cena”, com o poder de dominar inúmeros outros corpos, todos os que, presentes, acompanharão seu feito através de uma capacidade semelhante – a sensível, portanto também corporal. No entanto, estes corpos não são capazes de reproduzir o mesmo feito – eis a graça do espetáculo. A tensão e a atenção serão proporcionais à capacidade do corpo artístico (corpo(s) em cena) de (1) superar seus
limites e de se tornar um outro; (2) de agir de maneira tão singular ao ponto de poder ser considerado ‘inumano’ (‘animal’, dir-se-á na gíria brasileira), ao efetuar atos aparentemente impossíveis aos outros corpos ali presentes; estes que, observando se sentirão maravilhados, hipnotizados. Eis porque, nas artes cênicas, a atuação é o mais importante de tudo; mesmo que o texto não seja bom, que a decoração seja insuficiente, ou que sequer haja um texto, o espetáculo pode ser um sucesso se o corpo atuar com expressividade adequada. Bem disse Schopenhauer que “Uma peça de teatro, atuada por atores remarcáveis, produz mais efeito que a melhor das peças representada por trapalhões.”1 1
Schopenhauer, Arthur. Parerga et paralipomena II , Samtliche Werke, BandV Suhkamp Taschenbuch, Wissenschaft, 655, Stuttgart, Frankfurt am Main (1986) 1989, pp. 450-532; in Esthétique et métaphysique, (LP07), tradução de August DIETRICH, revista e corrigida por Angèle KREMMER-MARIETTI,
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Pelo que se segue da análise estética feita por este autor e suas críticas à Academia, é pouco provável que por “atores remarcáveis”, ele se referisse aos que se seguem de grandes escolas ou renomadas instituições da elite européia de sua época. Segundo suas análises, atores remarcáveis são os que conseguem atuar de maneira espetacular, genial e por conseguinte, prazerosa ao espectador, que dirá que a atuação foi bela, ou mesmo sublime. A beleza e o prazer, se encontram aliados à perfeição do ato, e a atuação é a demonstração mais forte da capacidade estética do corpo. Natural ou artística, a beleza é sempre obra do corpo; ela vem ao mundo nele e por ele e ilumina a terra com a sua luz.2
O belo, o perfeito e o prazer É óbvia a relação entre o belo, o perfeito e o prazer – a experiência quotidiana e a linguagem popular demonstram isso claramente. Mas seria esta associação pertinente? Leibniz, filósofo que iniciou a racionalização da estética e da análise intelectual do prazer estético, defende que o prazer será proporcional à perfeição sobre a qual repousa a beleza,“todo prazer nasce da sensação de uma harmonia e de uma perfeição; tão maior é a perfeição sobre a qual repousa a beleza conhecida confusamente, tanto maior e mais nobre será o prazer que a alma terá.”3 Ao fazer esta citação no seu livro, Dumouchel grifa o verbo ‘conhecer’ a fim de chamar a atenção para o fato do autor considerar esta percepção [da beleza] como um conhecimento. Uma observação adicional seria o fato dele tê-lo empregado na voz passiva, o que ressalta a força da ação sofrida pelo observador: ele foi afetado. Talvez seja por isto que Leibniz não considere este conhecimento como adequado (com o qual Schopenhauer discordará), mas um conhecimento confuso, um “sei-lá-o-que” que nos produz prazer na contemplação de algo bem feito por um artista.4 O conhecimento adequado para os racionalistas é normalmente associado à ação. Visto que para Leibniz, a beleza compartilha da mesma definição que a harmonia e a perfeição, a música é o exemplo por ele dado para mostrar que sua beleza – naturalmente aliada à harmonia e à perfeição da combinação de números e de uma conta de toques e pausas que desconhecemos – nos causa prazer, sem que nos demos conta de sua composição matemática. Ele diz,“a música nos encanta, apesar da sua beleza consistir apenas em uma convenção de números e numa conta da qual não nos damos conta […]”, e segue nesta mesma linha ao falar, em seguida, sobre as artes visuais, “o prazer que a vista encontra nas proporções são da mesma natureza; […] apesar de não podermos explica-lo adequadamente”.5 Mesmo que muito já tenha sido dito e escrito, principalmente pelos filósofos alemães, na tentativa de se explicar este “sei-lá-o-que” do qual nos fala Leibniz, que produz
2 3 4 5
1999; p. 191. Parerga & paralipomena – que poderia ser traduzida como Os acessórios e o restante – é um livro constituído de escritos suplementares ao Mundo como vontade e como Representação, obra principal de Schopenhauer. Esta, e as demais citações dadas, foram todas traduzidas para o português pela autora deste artigo. Chantal Jaquet, Le corps. Paris: Puf, 2001; p. 208. Dumouchel, Daniel. Kant et la genèse de la subjectivité esthétique. Paris: J. Vrin, 1999; p.51 Cf. Discurso sobre a Metafisica, §24, in Dumouchel, op.cit., p. 51. Princípio da Natureza e da Graça, §17, in Dumouchel, op. cit., p.52.
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o prazer estético; mesmo que haja variação e até oposição entre algumas destas teses, algo permanece indiscutível entre elas: a importância do prazer. Por séculos, tentou-se encontrar no objeto artístico (ou natural) isto que é a causa do prazer, fazendo surgir a noção de beleza, comumente aliada à noção de harmonia e perfeição, mas Kant6 defende a impossibilidade de uma análise objetiva do belo, e transfere a questão para o sujeito que julga algo como tal: “a questão principal não é: o que é o belo? mas sim: o que é um juízo sobre o belo?”. Segundo este filósofo, o discernimento sobre a beleza (ou não) de algo, não se encontra no conhecimento (ou representação) do objeto, “mas sim no sujeito e no sentimento de prazer ou de pena que este experimenta”. “O juízo de gosto não é um juízo de conhecimento; ele não é lógico, mas estético”. Como não há um conceito geral e universal de belo, “não pode haver regras baseada nas quais alguém seria obrigado a reconhecer a beleza de algo”. Este juízo será então subjetivo; e mesmo neste caso, não pode haver regras determinantes. Ele diz, “menos ainda, pode haver provas a priori que possam determinar o sujeito, a partir de regras definidas, a formular um juízo sobre a beleza”. Isto porque seu princípio determinante não é a razão, mas o sentimento. Um juízo estético baseia-se no que o sujeito que julga ‘sente’ em relação ao que observa. Donde ele conclui sobre a impossibilidade de um ‘conceito’ universal de belo; todo e qualquer juízo sobre o belo é um julgamento subjetivo sobre um sentimento pessoal, e não há nada de lógico ou de racional nesta experiência, que é sempre singular e prazerosa. Mas e o prazer? Pode ele ser explicado objetivamente? Kant dirá que não, pois ele também não tem um valor lógico, e assim, “não pode ser um elemento de conhecimento, […] ele não me faz conhecer nada sobre o objeto, mesmo que ele seja efeito de um conhecimento qualquer”.7 O prazer se refere ao sujeito e não ao objeto o que significa dizer que sua natureza é estética. Em outras palavras, o prazer é um elemento subjetivo da representação que a mente faz de um objeto belo, ou seja, de um ‘sentimento’; razão pela qual ele não pode ser mesurado objetivamente. Mas este sentimento de prazer – precederia ele a avaliação (julgamento/juízo) do objeto que o produz? Em outras palavras, julgamos algo belo porque dele tomamos prazer ou sentimos prazer porque o objeto é belo? Kant analisa esta questão e conclui que o “julgamento simplesmente subjetivo (estético) sobre o objeto – ou sobre a representação pela qual ele é dado – precede o prazer arraigado a este objeto; ele é o fundamento deste prazer que encontramos na harmonia de nossas faculdades cognitivas […] dando-nos apenas um valor subjetivo universal à satisfação que nos une à representação do objeto dito belo”.8 Em outras palavras, somos afetados de prazer (estético) por algo (que julgamos) belo. Apesar da impossibilidade de uma conceituação precisa sobre o prazer estético, que este seja acompanhado de uma «idéia» é tese que a maioria dos teóricos europeus da estética parecem defender, mesmo não concordando sobre o teor desta idéia. Na tradição alemã, a posição de Schopenhauer diverge da de Baumgarten, que defende que a idéia que se acessa é a fictícia, a criadora; para Kant ela corresponde à idéia original, no sentido de extraordinária, esta que só o gênio é capaz de produzir. Já para a tradição anglo-escocesa 6 Crítica do Juízo: Primeira Parte : Descrição: o Belo, 1790; in Florence Khodoss, Le jugement esthétique (textes choisis), Paris: Puf, 7e ed, 1984 (1955); Cf. pp. 9-38, citações seguintes, neste parágrafo: pp. 9, 10, 10, 21, 20. 7 Crítica do Juízo: Introdução, §7, op. cit., in F. Khodoss, op.cit., p.25. 8 Ibid., §9, in F. Khodoss, p. 73.
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e alguns franceses (Burke, Saint-Lambert e Diderot, por exemplo), trata-se de uma idéia imaginativa do artista. Apesar das diferentes e importantes nuanças sobre o valor e/ou o estatuto da idéia que se alcança por meio da arte - esta que se encontra no campo do sensível, ela permanece uma idéia - isto que se encontra no campo do inteligível. Kant classifica este momento tão singular como um “consensus intrasubjectivo” capaz de comprovar que uma idéia pode ser reflexivamente comunicada ou sensibilizada, estabelecendo uma relação entre o sensível e o inteligível. Schopenhauer, defendendo a importância das Artes, irá mais longe, classificando esta idéia como intuitiva. Uma idéia intuitiva é considerada pelos racionalistas como a mais puramente intelectual de todas, signo de si mesma e acessível intuitivamente, sem recursos lógicos ou racional-demonstrativos, motivo pelo qual ela dispensa explicações. Para esse filósofo, “se desejamos sentir imediatamente a superioridade do conhecimento intuitivo, como sendo o primeiro e o fundamental sobre o conhecimento abstrato, constatando assim o quanto a arte é mais reveladora que qualquer Ciência, basta contemplar na Natureza ou por intermédio da Arte, um belo rosto humano, cheio de expressão.”9 Seguindo seu raciocínio, qual arte poderia ser considerada mais fortemente expressiva que as cênicas? E qual mais harmônica que a Música? E quando as duas se juntam, que sentimentos e idéias pode esta união provocar? No mínimo, fortes. A ópera é um bom exemplo do que esta combinação é capaz de produzir: fortes emoções, tais como a do belo e do sublime dos quais tanto nos falam Kant e Schopenhauer. Se a popularizarmos um pouco mais e tomarmos como exemplo as atuações de Michael Jackson, não faltará no planeta quem confirme o quanto elas são belas e prazerosas. As encenações 9 O Mundo como Vontade e como Representação. Trad. Francesa de A. Burdeau (1966); 14eed. revista e corrigida por R. Roos, Paris: Puf, 1996, p.
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musicais de Michael são capazes de provocar em qualquer ser-humano - seja ele culto ou ignorante, fortes e inesquecíveis emoções. Quem não suspirou de perplexidade, admiração e prazer ao vê-lo encenar com seu grupo o famoso “leaning”10 do Smooth criminal? A primeira idéia racional que vem a mente é - “Mas isto é impossível!” e as que se seguem: “só pode ser um truque de imagem” ou ainda, “eles devem estar presos por um cabo invisível”. Mesmo se fosse possível confirmar todas estas idéias, elas em nada alterariam o já sentido. Esta cena é fruto de uma idéia na mente de Michael que ele insistiu tanto em concretizar que precisou inventar um sapato especial para o feito. Mas o fez; e sabia o que estava fazendo: criando um momento de prazer inesquecível, ao levar ao limite as potencialidades do corpo, transformando-o em objeto de arte. Aliás o que não falta no mini-filme Smooth criminal são cenas de pura beleza e de expressão corporal: frutos de uma intuição artística e de uma harmonia teatral e musical que desafia nossa capacidade intelectual. Mas seria este prazer semelhante ao do belo e ao do sublime tipicamente atribuídos, no seu senso estrito, às Belas Artes?
Belas Artes e Artes Clássicas x Outras Artes Kant diz que as Belas Artes precisam de um gênio que crie originalmente, tornando-se assim padrão de referência para os outros, que o seguirão. Ora, não é este o caso de Michael Jackson? Ele se tornou referência mundial no mundo artístico; inventou passos de dança; improvisou e inventou instrumentos (musicais e teatrais); criou coreografias; inovou na Vídeo Arte e criou mini-filmes musicais; concebeu e dirigiu filmes de média duração com efeitos especiais e artísticos nunca antes vistos nem mesmo em longas; inovou em cenografia, levando seus colaboradores a executá-las de maneira praticamente experimental, quando não única, e a considerá-lo louco, pela sua obstinação em concretizar suas idéias. Michael concebeu uma nova maneira de se fazer música e de encená-la. Mas por que esta criatividade e inovação é considerada genial nas Belas Artes e nas artes Pop uma excentricidade, quando não apenas uma estratégia de venda, ou seja, visto apenas sob o aspecto comercial e/ou competitivo? Ora, quem não conhece o lado comercial de Picasso, não conhece quase nada sobre este revolucionário artista. É preciso, portanto, questionar nossos conceitos (e pré-conceitos) em relação à arte Pop e às outras demais artes, fora da classificação nobre da ditas Artes Clássicas. A música de Michael foi admirada nos quatro cantos do planeta! Não é possível que ainda haja quem o considere apenas excêntrico e muito esperto comercialmente falando, mas não um artista. Não duvido que alguns leitores mais cultos e mais artisticamente preparados possam se sentir constrangidos a continuar a leitura e levantarem a questão, “desde quando Michael Jackson pode ser considerado um artista, se nem músico ele era?” Mas este também é um dos itens que este artigo convida a questionar: a relevância do trabalho dos não-diplomados e dos não instruídos. Seria o profissionalismo (artístico) pertinente apenas aos formados na área ou pode ele ser também fruto de uma competência natural? Vejamos algumas questões ligadas à encenação musical. 10 Passo de uma coreografia concebida por Michael Jackson, onde ele e alguns dançarinos se jogam para frente num ângulo de 45° sem cair, desafiando assim, as leis da gravidade. Isto foi possível devido a um sapato inventado por Michael para este ato e que foi devidamente patenteado, tal qual outras de suas invenções.
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Schopenhauer classifica a Música como a mais potente e universal de todas as Artes. Vimos que Leibniz, ao falar da ‘força do prazer estético’, mesmo que acompanhado de um conhecimento não claro, cita a Música como exemplo e apenas depois, fala das artes visuais, tomando a anterior como referência. Aliás, sobre as artes visuais, o desfile de Carnaval no Rio de Janeiro, acompanhado de um ritmo musical bem popular, tem inovado em técnicas e decorações, vindo a servir de modelo para as mais diversas manifestações artísticas mundo à fora. Não poderíamos falar do belo e do sublime também nesta manifestação artística, fruto de, na sua grande maioria, simples amadores? Não seria a genialidade possível a todo e qualquer ser humano, mesmo ao mais simples e humilde? O que nos autoriza então a manter o uso de hierarquias de Artes mais belas que outras, como este das Belas Artes? Assim como as teses de Leibniz e Wolff provocaram uma séria reflexão sobre a experiência sensível em geral, é preciso agora refletir sobre as hierarquias tradicionalmente estabelecidas na Europa sobre as manifestações artísticas, tais como a das “Belas Artes” ou “Artes Clássicas” X as populares, as folclóricas, enfim, estas outras, advindas do lado mais pobre da sociedade. Não seriam todas simplesmente Arte? No entanto, estas categorias têm dominado o mundo ocidental (o que inclui o Brasil) já há um bom tempo, e tendem, com a globalização, a se estabelecer no mundo à fora, como padrão universal em matéria de Arte. Respaldados nas teorias estéticas de filósofos também europeus, é possível conceber como inapropriadas e inadmissíveis as críticas que subestimam a Arte Pop e outras artes em comparação às clássicas. Ora, todas são capazes de produzir o belo e o feio; de provocar prazer e desprazer; repulsão e atração. O menosprezo pelas Artes Pop revelam muito mais os pré-conceitos de uma tradição elitista, que tem estado no domínio dos governos e da educação européia por séculos a fio, que uma real e profunda análise estética do trabalho de artistas não clássicos ou sem formação nas ditas ‘Belas Artes’ ou ‘Belas Letras’. Na realidade, a produção artística ultrapassa os limites do academicamente estabelecido, pois ela é inerente ao ser humano. A arte não pertence a uma ‘certa’ classe social ou a uma ‘certa’ cultura e não pode ser classificada como mais, ou menos, bela, em função de uma convenção social. Uma performance de Balé Clássico ou de Ópera não é mais bela ou mais importante que uma apresentação folclórica tipo Bumba meu Boi ou Carnaval Brasileiro; uma apresentação Pop, tipo a de Michael Jackson não pode ser menos relevante que o show de uma orquestra sinfônica. Lembremos que Amadeus Mozart e Van Gogh foram mal vistos, excluídos do círculo social como loucos devido às suas “excentricidades” e morreram quase que de fome para poder produzir as obras maravilhosas que nos rendem prazer até hoje, e que enriqueceram a muitos posteriormente. Uma arte não pode ser mais nobre do que uma outra em função de suas origens e sim em função de sua perfeição, de sua beleza e do prazer que ela nos proporciona, seja este considerado na ordem do sensível ; na ordem do intelectual ; ou em ambas, conseqüentemente ou simultaneamente. Outra realidade a considerar é que, esteticamente falando, os padrões de beleza mudam no tempo e no espaço e destarte, não encontraremos uma só regra que possa servir universalmente para medir objetivamente a perfeição artística. O que hoje consideramos belo, como a magreza, por exemplo, já foi um dia considerado feio e sem vida (posto que próximo da estrutura de uma caveira); o que hoje consideramos mais respeitosamente, incluindo na categoria do clássico e do exemplar, como a música de Mozart, pode um dia já ter sido mal visto. O mesmo a dizer sobre um estilo - a Ópera, por exemplo - considerada hoje um dos mais sofisticados entre os clássicos , foi inicialmente considerada
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‘bárbara’ (bem menos do que popular!) ao unir narrativa e encenação à música, como nos explica Schopenhauer.11 Um bom exemplo de mudança drástica de valores estéticos nas Belas Artes, foi a introduzida pelos pintores impressionistas franceses, que, obviamente, custaram a ser aceitos. Numa época em que se julgava um quadro com o uso de lupas, é fácil compreender porque Monet tenha sido esculachado e expulso a ‘ponta-pés’ da Academia de Paris, que interpretou sua obra como um insulto à Arte em si e aos especialistas ali presentes. Depois de séculos e séculos de aperfeiçoamento de técnicas que possibilitassem copiar o mais exatamente possível a natureza e as coisas, como considerar uma quantidade grande de tinta jogada na tela - sem muita definição e sem contornos precisos - como uma obra de arte? Os acadêmicos, normalmente conservadores, não perceberam que o erro estava no seus olhares e que bastava mudar o foco para se perceber toda a beleza e a genialidade do que lhes estava sendo apresentado em primeira mão. Mas a genialidade é dificilmente compreendida e, na maioria das vezes, é tida como ofensiva pelos ignorantes e pelos conservadores. Não seria por isso que Michael sofreu tantas críticas da parte de conservadores do mundo inteiro? A obra de Michael Jackson é como o Carnaval Carioca – ela não se adapta aos padrões estabelecidos pela Academia, mas nem por isto deixa de ser arte; Arte Pop sim, mas Arte e bela, tão bela quanto as Belas Artes; e tão suscetíveis quanto esta de provocar os sentimentos de prazer do belo e do sublime dos quais nos fala Kant. É por isto que nos deteremos um pouco mais sobre Michael, e não pelo fato dele ter nos deixado há pouco mais de um ano. Se Michael pode ser um objeto de análise em uma Revista acadêmica de Filosofia & Arte, isto não pode decorrer por um simples saudosismo, mas porque sua arte um bom exemplo do que pretendemos defender: o belo, o sublime e o prazeroso como fruto de uma verdadeira manifestação artística, e não isto que um grupo de críticos acadêmicos quer que elas sejam. Mesmo porque, segundo o pai da Estética Moderna, se quisermos falar de uma universalidade em estética, esta será pela universalidade do prazer e não por uma regra de beleza que seja universalmente valida.12 Ora, quem produziu universalmente tanto prazer estético quanto Michael? Ele extrapolou todos os limites. A definição que Kant dá para o sublime, fala sobre esta extrapolação de limites, “Sublime é tudo o que, do simples fato de ser pensado, revela uma faculdade da alma que ultrapassa toda e qualquer medida dos sentidos”.13 Ora, desde cedo ficou evidente para todos que a capacidade artística de Michael ultrapassava os padrões normais. Quando ainda criança, Michael já encantava com a capacidade artística de seu corpo: sem nenhuma preparação especial (senão algumas ameaças de seu pai), Michael cantava e dançava ao mesmo tempo - sem perder o fôlego, sem desafinar e com uma interpretação de fazer inveja a muitos intérpretes adultos: Michael conseguia interpretar sentimentos não pertinentes ao de uma criança, impressionando os melhores profissionais da área. Houve até quem exigisse sua certidão de nascimento, para confirmar que ele não era um anão. Quando adulto, este artista “não-artista” (posto que considerado apenas um entertainer14), conseguia 11 12 13 14
Cf. Schopenhauer, Esthétique et métaphysique du beau. Paris: Puf,1999, p.186. Kant, Crítica do Juízo, §37, op.cit., in Khodoss, op.cit., p.62. Kant, Ibid., §25 op.cit., in Khodoss, op.cit., p.45. Palavra em inglês que designa de forma geral, na cultura americana, todo e qualquer animador profissional na área da diversão.
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interpretar com uma dramatização de dar inveja aos alunos das melhores escolas de teatro do mundo. Sua dança hipnotiza(va), desafiando as leis da gravidade e deixando os melhores e mais experientes dançarinos do mundo simplesmente perplexos. Sua voz - reconhecida mundialmente com apenas duas ou três notas, se adaptava facilmente aos ritmos mais diversos, sendo capaz de mudanças de tom bruscas e sem desafino, mesmo estando ele em intenso movimento no palco, despertando encantamento até nos cantores líricos mais reputados. Suas composições musicais estão entre as mais perfeitas e a capacidade poética de suas canções foi reconhecida até mesmo pelos acadêmicos, que não hesitaram em dar-lhe o titulo de Doutor Honoris causa em Letras (Fisk University). Se Michael Jackson é o exemplo mais apropriado da natural ‘força artística do corpo’, isto não se dá apenas pelo fato de sua música ser tão amplamente conhecida e admirada (mesmo que isto confirme a universalidade do prazer que ela nos proporciona), ou pelo fato dele ser criador de obras exuberantemente belas; mas, principalmente, pela maneira em que as criava e como as encenava. Suas abras tanto cenográficas, como fonográficas e sonoplastas estão na ordem do perfeito e isto, mesmo sem ter ele qualquer formação artística ou musical, o que certamente nos levar a indagar sobre sua inteligência. Qual seria o segredo de Michael, seu corpo ou sua inteligência? Espinosa diz que a capacidade mental é proporcional à capacidade do corpo, “quem tem um Corpo apto a muitas coisas, tem uma Mente que, considerada em si apenas, tem uma grande consciência de si, de Deus e das coisas.”15 Antes de Thriller, Michael sequer sabia ler uma partitura ou tocar um instrumento, mas era capaz de reproduzi-os - isoladamente ou em conjunto - utilizando-se apenas de seus músculos, dentes e cordas vocais. Quantos músicos profissionais conseguem tal feito? Eis porque podemos afirmar que sua obra é assim um ‘produto meramente humano’, ‘exclusivamente’ humano, sem nenhuma técnica, fruto apenas de sua ’inteligência’ e das ‘potencialidades naturais’ do seu corpo. Michael costumava dizer não bastar ouvir uma música, mas precisar senti-la, com todo o seu corpo. Estaria aí a causa da criação de tantos passos e de coreografias que apenas ele soube executar com perfeição? Seu trabalho, como um todo, e não apenas o musical, é de um teor artístico impressionante, levando ao prazer contemplativo os artistas mais renomados e não apenas as multidões de fãs que conquistou em todos os cantos do planeta. Sua arte - que se concentra essencialmente no seu corpo - tem este ‘sei-lá-o-que’ do qual nos fala Leibniz, que deixa todos perplexos e submersos num prazer inexplicável, muitas vezes mesmo, inenarrável. Quem nunca se sentiu hipnotizado por Michael, muito provavelmente é porque nunca o assistiu. Quem não ficou, no mínimo, deslumbrado, ao ver Michael Jackson cantar e dançar Billy Jean no lendário espetáculo de aniversário de 25 anos do Motown (que, por isto mesmo, entrou para a história)? Quantos não alcançaram a idéia da injustiça sofrida e ali encenada pelo intérprete, que soube representá-la de forma sublime? Seu rosto expressava toda a dor e a angústia de quem foi enganado; seu corpo treme por inteiro, revelando o desespero de não conseguir provar estar falando a verdade; as mudanças de timbre de sua voz revelavam ora a alegria de ter sido o escolhido, ora a tristeza de ter sido o que foi enganado pela mulher mais desejada da festa; ao cantar o coro, ele mostra claramente o sentimento de revolta com sua inocência traída. A sedução de Michael talvez tenha ido além do seu corpo como obra artística, mesmo que tenha sido nele que ela sempre se manifestou. Teria o seu corpo – uma verdadeira obra 15 Etica, Pte.V, prop.39.
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de arte – sido, em situações como estas, apenas um ‘‘meio para se acessar uma idéia’’, tal qual nos diz Schopenhauer? Seja como for, uma coisa é certa, sua obra produz em nós um grande prazer; seja este intuitivo - da descoberta da Idéia idêntica, tese defendida por Schopenhauer (influenciado por Espinosa que fala sobre o grande prazer do encontro da idéia intuitiva), como veremos abaixo e, portanto, na ordem do intelectual; ou o prazer estético do qual nos fala Kant e Burke, na ordem do sensível. É simplesmente indiscutível que Michael Jackson tenha sabido, melhor do que ninguém, levar multidões do mundo inteiro ao prazer com sua arte. Que o prazer surja de um objeto belo, é tese defendida por praticamente todos os teóricos da estética, levando-nos a crer que a obra de Michael é fortemente artística, posto que belíssima. Sua arte é Pop sim, mas já é ensinada em diversas ‘Academias de Arte’ do planeta e tem influenciado às mais clássicas em diversos aspectos. Michael é assim o exemplo do “artista não-artista”, que enalteceu e revolucionou a Arte Pop a nível mundial, quebrando conceitos e pré-conceitos; estabelecendo novos paradigmas e entrando para a História - ainda vivo - como um dos maiores “artistas” que a humanidade já produziu. Michael Jackson é portanto um artista sim, e um artista completo; pois ele canta, dança, compõe, interpreta, encena, escreve, atua, dirige e … até aprendeu a tocar alguns instrumentos! Certo, Michael Jackson era um artista sem nenhuma formação artística: nem musical, nem teatral, nem cenográfica, nem cinematográfica; e ainda, com sérios problemas em ortografia e gramática, mas conseguiu encantar de forma exuberante os melhores profissionais de todas estas áreas, produzindo neles sentimentos de forte prazer estético. Qual o segredo de Michael? É preciso analisar algumas questões, mesmo aqui já mencionadas, antes de responder a esta difícil pergunta.
A arte e o gênio Na sua obra principal – O Mundo como vontade e como representação, Schopenhauer define a arte como ‘‘contemplação das coisas, independente do princípio de razão’’. Ele considera a Arte um modo de conhecimento intuitivo, próprio do gênio, quem facilmente acessa às Idéias16 diretamente e as torna acessível aos outros através da sua arte. A obra de arte é assim um meio de comunicação da idéia pura, contemplada pelo gênio. “O homem ordinário não se prende à contemplação, não busca a idéia das coisas, pois ele só se preocupa com o seu caminho na vida; o gênio, ao contrário, dele se desliga, o negligencia, se conduzindo de maneira um tanto esquerdista.”17 O sentido de esquerdo aqui não é o político, mas o contrário daquilo que é direito – posição e adjetivo que, por séculos, designou o que é normal, reto, adequado. Esta concepção era tão forte que durante séculos o coração de Jesus foi pintado no centro, ou mesmo um pouquinho à direita. Até hoje fortemente presente nas línguas latinas, mesmo que não apenas (veja o uso de right em inglês), considera-se ‘direito’ algo feito corretamente, “como se deve”; não apenas como adjetivo qualitativo, mas também como juízo deliberativo e substantivo: veja o exemplo do Direito que, em termos gerais, é “o estudo das regras 16 Para ele, verdades eternas - as mesmas em todo o tempo, posto que não sujeitas às mudanças típicas do mundo fenomênico (Cf. Mundo como Vontade e como Representação, Op. cit., livro III, §36). 17 Ibid., p. 243.
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de conduta imposta coercivamente aos homens, por serem consideradas corretas”, logo, direitas. As mudanças de valores na sociedade ocidental não foram tão grandes como as da tecnologia e ainda é difícil aceitar os esquerdistas, ou seja, os que se comportam de maneira diferente da maioria, na contra-mão do padrão, do ‘direito’. Esquerdistas, tais como Michael Jackson, sofrem fortes críticas e mesmo perseguições as mais diversas: todos querem ‘corrigir’ seu comportamento. Por séculos a fio, os canhotos (esquerdistas) sofreram, sendo forçados a aprender a escrever como os destros (direitistas), única forma considerada correta, atitude típica dos considerados ‘normais’, ‘corretos’ e abençoados por Deus, cujo filho, esta à direita do pai. Com um caráter típico do gênio, Michael não se deixava adestrar (endireitar) e, tal como explicado por Schopenhauer, se preocupava e se ocupava muito mais com a sua arte que com a sua própria vida. Sua genialidade o impedia de ser, de agir, e de viver tal qual um homem ordinário, Na vida, Michael é um ser à parte, ele é a mais misteriosa das estrelas, patologicamente tímido e por conseguinte, inacessível. Um ser secreto que se fecha no seu ambiente privado, tendo como companheiros, na maior parte do tempo, seus animais e seus fantasmas. […] este jovem, de aparência fraca e voltada para si mesmo, esconde por trás da máscara da timidez e da fraqueza, uma força moral e uma energia sobre-humanas.18
Tal como se fazia na Idade Média e na Antiga, Michael Jackson foi execrado publicamente por sua maneira esquerdista de ser e de viver, o que, obviamente, lhe causou um enorme sofrimento pessoal. Seu público também sofreu, ao ser privado, nos últimos anos, de sua presença e de novas e belíssimas obras que este tão talentoso artista poderia lhes ter proporcionado. Quantos não sonhavam com seu retorno aos palcos, sedentos de saudade de suas performances tão belas, tão perfeitas, que davam um enorme prazer ao público mais diverso? Crianças, jovens e adultos, oriundos dos mais diferentes povos e civilizações do planeta, se encantavam com a obra artística de Michael. Mas como explicar esta unanimidade de sentimentos entre seres humanos tão distintos se, tal qual nos explica Kant, o juízo de gosto é subjetivo? Kant diz que não há nada que possa fazer para que alguém dê o seu assentimento de belo a algo que ele considera feio, senão hipocritamente, objetivando concordar com alguém, pois “não pode haver regra, baseada na qual, alguém seria obrigado a reconhecer a beleza de algo”.19 Este acordo é hipócrita por que o sentimento subjetivo não muda, o que muda é o discurso deste que ‘diz’ dar o seu acordo, em função do objetivo que tem: agradar o outro. Kant explica que isto ocorre porque o sentimento de belo e de prazer é desinteressado, “o belo não se propõe como objetivo de uma ação, mas satisfaz ou não, apenas pelo estado de espírito em que nos encontramos. […] Ele não inspira nenhum desejo. Diante dele, ficamos desinteressados.”20 Logo, nada nem ninguém pode produzir um juízo estético, senão o próprio sujeito que julga, a partir de uma experiência, de um senti-
18 J. Reynolds, Michael Jackson, sa vie, ses amours, ses success, Paris: Garancier, 1984. 19 Kant, Crítica do Juízo, 1°Pt., §8, op. cit.; in Khodoss, op.cit., p. 21. 20 Kant, Crítica do Juízo, op.cit.; in Khodoss, op.cit., p.10.
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mento, com o objeto estético em questão. A popularidade de Michael, portanto, não pode ser uma mera conseqüência publicitária. Não se conseguiria convencer tantos assim. O encontro de Michael com o público foi sincero, e sempre marcado por grandes emoções, até mesmo entre os profissionais da área. Não houve um, entre os presentes no Grammy Awards de 1988, que não tivesse aplaudido Michael de pé, por vários minutos, emocionados com a melhor e a mais bela apresentação da noite – outra performance jacksoniana que entrou para a História, mesmo que não lhe tenha rendido o devido (e esperado) troféu. Teriam todos ali sido hipócritas? Poucos dos profissionais ali presentes se lembram dos vencedores daquele noite; mas todos se recordam das encenações de Michael. Não houve um na platéia que não tenha compreendido a idéia da dor e da frustração de Michael diante do sofrimento de inúmeros excluídos sociais, ao vê-lo e ouvi-lo cantar Man in the Mirror. Quem não sentiu naquele momento a mesma dor do artista, tão vivamente interpretada, que nos faz questionar até hoje se se tratava realmente de uma representação? Até mesmo o líder do coral que se apresentou com Michael naquela noite, se aproximou do artista para ajudá-lo a se levantar. Ele certamente não acreditou que Michael estivesse apenas encenando. Talvez não estivesse mesmo, pois quando entrava em cena, Michael se transformava e não víamos mais o indivíduo, mas apenas a sua arte. “Ele entra verdadeiramente no personagem.”, dizem todos os seus biógrafos. Quantos espectadores ali presentes, contemplando o sofrimento do artista (real? cênico?) não alcançaram à idéia (idêntica?) do “sofrimento” provocado pela irresponsabilidade civil? Quantos não conseguiram acessar, a partir de sua representação artística, a idéia (ou idéias) presente na mente de Michael naquele instante? Quantos ali não idealizaram com Michael, a necessidade de mudança de atitude? “- a change !” Foi tudo muito mais do que um simples espetáculo; foi um momento de transcendência artística. O reconhecimento artístico do seu trabalho pelos seus pares e a confirmação do sentimento do sublime que sua encenação proporcionou, foi o melhor dos prêmios que um artista poderia ter recebido naquela noite. Mas o mais impressionante é que esse foi apenas um dos inúmeros momentos de êxtase e de perplexidade que Michael conseguiu produzir no seu auditório. Seria porque sua encenação, fruto da sua mente, era mais do que bela, e sim da ordem do sublime? Seria sua arte fruto de um verdadeiro gênio? É preciso analisar um pouco mais algumas questões antes de estabelecer um juízo final. Aliás, o que é mesmo uma obra de arte? e o que é um gênio? Descordando de Leibniz sobre a tese do conhecimento confuso, Schopenhauer defende que a idéia que ela produz é tão clara e adequada quanto é intuitiva. Para este filosofo, “a obra de arte não passa de um meio destinado a facilitar o conhecimento da idéia idêntica”;21 ou seja, esta que é a mesma na mente do artista e na do espectador. Ao contrário das coisas, a idéia permanece imutável, portanto, una, perfeita, eterna. Ela é acessível ao artista intuitivamente e ao observador, de maneira semelhante, num momento de intensa contemplação de uma obra que é fruto de um gênio. Isto ocorre, explica Schopenhauer, quando o observador transcende seu próprio corpo no momento da observação e acessa intuitivamente a idéia idêntica; ou seja, esta que é a mesma na mente (ou espírito) do artista. Tal momento só pode mesmo ser acompanhado de um grande prazer, explica Schopenhauer: o prazer estético do sublime. O objeto de arte que provoca uma contemplação intensa, hipnotizando o observador, fazendo com que ele transcenda seu 21 Mundo como Vontade e como Representação, Op. cit., livro III, § 38.
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próprio corpo - no tempo e no espaço, confundindo-se com a obra observada - só pode mesmo ser obra de um gênio. Nas artes cênicas, o segredo do espetáculo se concentra no artista em ato, e quando esta é perfeita, ou seja, da ordem do sublime, o prazer do espectador também o é. As apresentações de Michael sempre foram deslumbrantes e não apenas nos shows mencionados neste artigo. Desde bem pequeno, ele já provocava no seu público um sentimento contemplativo indescritível, certamente da ordem do sublime. Muitas vezes foi difícil saber se Michael estava realmente representando sua personagem ou vivendo também um momento de total transcendência do seu próprio corpo: “MJ começa a dançar, ele dança, dança e aos poucos, torna-se a própria dança; ele começa a cantar e se torna o próprio canto.” Michael é uma verdadeira obra de arte! – Tal feito só pode mesmo ser fruto de um gênio e sua atuação, considerada perfeita. O perfeccionismo de Michael muitas vezes incomodou os que com ele trabalhavam, e sobre isto ele explicava, “Quando finalmente posso dizer que gosto de uma música, sei que meu público também gostará. Sinto de maneira forte o que ocorre entre meu público e eu.” Seriam este sentimento e esta sintonia decorrentes da intuição da idéia perfeita e o fator causal do sentimento de sublime que sua obra tão freqüentemente provocou no seu público? Seria o sentimento de sublime acompanhado da idéia idêntica do qual nos fala Schopenhauer e do prazer que a acompanha do qual nos fala Kant, isto o que muitos dos espectadores de Michael experimentavam? Seria por isso que muitos dos seus fãs chegavam até mesmo à idolatrá-lo? Muito provavelmente sim; pois o sentimento tão artisticamente solene que Michael conseguiu provocar em tantos é tão raro, que só pode mesmo ser da ordem do sublime, fruto de um gênio.
A genialidade (de Michael) e o sentimento de sublime Antes de Schopenhauer, Kant já analisava a dificuldade de se racionalizar o caráter estético do sublime e chegou a descobertas semelhantes. Ele explica que sua associação a fortes emoções o exclui de uma avaliação estética, pois o aproxima da obra do gênio e esta é justamente a que não tem ainda referência. Foi com o estudo sobre a genialidade, que Kant encontrou alguma possibilidade de explicação sobre a relação “idéia e sensibilidade”, vindo a classificar a obra do gênio como o “ideal espiritual sensível”; pois ele envolve a produtividade das faculdades sensíveis e das intelectuais ao mesmo tempo. “As faculdades da mente cuja união (dentro de certas condições) constitui o gênio são a imaginação e o entendimento.” A obra de Michael Jackson é certamente fruto de sua genialidade e traz não só idéias a serem intuídas, mas relata também fatos históricos: HIStory é a sua historia pessoal, sua versão dos fatos; mas é também o relato de uma época quando que se faz quase o impossível (ou deixa de se fazer o que é possível pelo puro desejo por dinheiro - a mensagem foi bem compreendido por todos: fãs ou não; pois o que não lhe faltou nesta época foram processos judiciais, até mesmo da parte do governo brasileiro. Porém, o mais relevante artisticamente falando não são suas canções, mas sua música; isto que, mesmo sendo
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matemático, foge às explicações lógicas, ao se tentar explicar o seu prazer. Schopenhauer considera um abuso exigir que ela seja racional, pois a Música não fala das coisas, mas da satisfação e da insatisfação que elas nos trazem. Ela não tem nada a dizer diretamente à mente, ela se dirige ao coração. No entanto, isto não a torna incompreensível, segundo o olhar deste filósofo; pelo contrário, ele diz, A música é a verdadeira linguagem universal que se compreende em qualquer lugar […] uma melodia significativa e sugestiva faz rapidamente o seu caminho no globo terrestre, enquanto uma melodia pobre de sentido e que nada diz, se cala e morre rapidamente, o que comprova que o conteúdo de uma melodia é realmente compreensível.22
Não é preciso saber inglês para ser tocado pelas canções de Michael Jackson, tal é a qualidade de suas melodias e a perfeição de sua voz, sem falar novamente da sua interpretação. Quantos não experimentaram fortes emoções ao ouví-lo cantar I’ll be there; Gone too soon; She‘s out of my Life; I just can’t stop loving you; Heal the World; Childhood; Earth; One more chance; Don’t go away; Butterfly, Cry, dentre tantas outras, mesmo sem saber uma palavra em inglês? Mesmo quando ele cantava a capela? Sua musicalidade e teatralidade nos encanta, sem que dela tenhamos um conhecimento adequado, sem que ele mesmo dela tenha um conhecimento adequado. Ele não era músico (segundo os padrões ainda em pauta), e nunca soube explicar muito bem suas composições, alegando serem dádivas divinas. Questões religiosas e místicas à parte, pode-se dizer que o prazer que se tem com a obra de Michael ultrapassa os limites do belo e nos faz alcançar o prazer estético do sublime. Pode-se portanto dizer que, apesar de ser um fenômeno inexplicável, Michael foi compreendido por muitos e por isto mesmo tão amado. Para Kant, isto só é possível a um número pequeno de seres humanos e cuja produção é obra de um gênio. Ora, a obra de um gênio não se submete aos valores estéticos em pauta, como nos diz Kant; ela está fora da ordem e dos padrões pré-estabelecidos; é portanto muito difícil explicar Michael e mesmo impossível revelar o seu segredo. Mas podemos relatar alguns. Ele compunha sua música, por exemplo, de maneira extremamente original, principalmente antes de Thriller, quando ainda não sabia tocar nenhum instrumento. Ele partia literalmente do ideal intuitivo ao concreto; da idéia da música e da canção aos instrumentos e às palavras. Ele mentalizava os sons possíveis e os reproduzia com apenas a sua boca, até conseguir alcançar a combinação de tons e sons intuídos; depois ele gravava esta reprodução, utilizando-se apenas de seus músculos faciais, suas cordas vocais e sua respiração, e apresentava aos músicos com os quais trabalhava, para que eles a reproduzissem com instrumentos musicais. Ninguém compôs assim; só Michael. E quando os músicos apresentavam algo diferente do que Michael havia intuitivamente idealizado, acabam normalmente cedendo, ao comparar posteriormente as versões. Não é à toa que os que com ele trabalhavam sempre disseram “Michael é um gênio”; e “Sua voz é um instrumento incrível; uma
22 Schopenhauer, 1851; O Mundo como Vontade e como Representação, trad. Francesa, op.cit., p.183.
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só nota, apenas um som basta, para se reconhecer Michael”.23 “Ele canta sobre três oitavas, religando os registros, sem passar em falsete […] e vai até ao contra-fá e ao contra-sol […] Ele passa do dó baryton ao contra-sol, mesmo dançando. Ele pode cantar todas essas notas, sem dificuldade e é capaz de cantar em qualquer tonalidade, em função da energia que ele injeta na sua dança.”24 A quem vamos compará-lo? Sua música tinha este talento extraordinário, esta inexplicável mágica de não apenas levá-lo à dançar, mas também de fazê-lo acreditar na possibilidade de voar.25
Fica fácil agora compreender porque foi sempre tão difícil explicar o fenômeno Michael Jackson, a começar pelas potencialidades estéticas e a capacidade artística de seu próprio corpo – sua voz, seus movimentos, suas simples e recalcadas manifestações da Arte Carnal, até à mais forte expressão cênica de suas idéias. Michael é este gênio que produz intuitivamente - sem saber explicar muito bem por que e como produz - e que consegue, por meio de sua obra, levar o espectador ao maior dos prazeres que é o sentimento do sublime. Este prazer é considerado por Schopenhauer como que da ordem do eterno. Ele critica a posição de Thomas Payne, que diz que “do sublime ao ridículo, existe apenas um passo”.26 O autor do Mundo como Representação não pode aceitar tal efemeridade para um sentimento assim tão forte, tão grande; superior a tudo, segundo a classificação kantiana.27 Utilizando-se da tese espinosista do sentimento e conceito de eternidade quando da concepção de algo eterno, Schopenhauer defende a eternidade da idéia do sublime; ele menciona explicitamente Espinosa e cita o escólio da proposição 31, da parte V da Ética, para confirmar que para este autor, a mente se eterniza, na medida em que é capaz de conceber as coisas sob o ponto de vista da eternidade. Destarte, ao se conceber o sublime sobre uma obra de arte, concebe-se sua eternidade, esta que, para Espinosa, não repousa apenas na inteligibilidade.28 Schopenhauer explica que a eternalização da obra do gênio ocorre com a aquisição da Idéia representada [pela arte ou pelo artista] e que supera o sujeito que percebe, o objeto percebido, a representação deste e toda a relação que há entre eles; “este que se regozija nesta contemplação não é mais um indivíduo (posto que o indivíduo se anulou na contemplação mesmo), mas é o sujeito conhecimento puro, desprovido da vontade, da dor e do tempo.” Ora, quem, tendo assistido a um show de Michael não dirá que o tempo parou? No MTV Awards de 1995, os artistas atrás do palco, escalados para se apresentarem naquela noite, só tinham uma preocupação: encontrar uma maneira de poder assistir à performance artística de Michael - sabiam que isto significava prazer certo: beleza, harmonia, perfeição… breve, o sentimento do sublime do qual ninguém queria privar-se. Os que 23 Pierre-Jean Cittrin. Vibrations Collector: num. spécial: Michael Jackson, Lausanne: Consart, 2009, p.13. 24 Ibid. 25 Madonna, no MTV Awards 2009. 26 Citação feita pelo filósofo no Mundo como Vontade…, op.cit, p. 231, sem dar areferência bibliográfica. Esta tese explicar parcialmente porque muitos consideraram Michael patético, extravagante, na ordem do ridículo. 27 Crítica do Juízo: Introdução, §25, op. cit., in F. Khodoss, op.cit., pp.43-45. 28 Cf. Etica, Primeira Parte, que pode ser compreendida pelos metafisicos apenas pela definição de eternities (E.I, def.8).
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conseguiram, ficaram tão absolutamente absorvidos com o canto, com os movimentos, com as expressões do artista - que passavam da tristeza à alegria; da paz à angústia; do prazer ao desprazer; do amor à raiva, na velocidade do som, que não podiam mesmo pensar mais em nada. MJ interpretou alguns dos seus maiores sucessos - com a mesma força interpretativa de sempre - em apenas 15 minutos. Quinze minutos que passaram num instante e se eternizaram neste que foi considerado posteriormente o melhor show da História dos MTV Awards… até hoje. Por que? Como explicar que um homem seja capaz de tantos prodígios? Que possa, com apenas sua boca, reproduzir o som de vários instrumentos - independentemente ou em conjunto - sem jamais tê-los tocado? Que, sem ser músico, consegue compor utilizando-se apenas do seu corpo como instrumento musical e que assim renove os tempos, as pausas e os ritmos musicais? Que sem nenhuma técnica de bailarino, seja capaz de criar passos e coreografias jamais antes executados, e que entraram para a História Universal da dança? Que seja capaz de sentir a música com seu corpo inteiro e não apenas ouvi-la com os ouvidos ? Que seja capaz de tanta originalidade até no seus últimos dias? Michael não pode ser explicado, mas apenas experienciado, sentido, tal qual fazemos com uma obra de arte sublime. Ele não está no ordinário, mas no extraordinário; ele não se enquadra no que é lógico, mas no que é estético; seu corpo não é um instrumento de arte, mas a própria obra artística. Os jornalistas conseguiram bem ver que Michael não era normal, pois não cansavam disso repetir; só não conseguiram identificar esta “anormalidade” com uma ‘genialidade’. Se o tivessem feito, o resultado de seus trabalhos teria sido outro, teria sido bem melhor. Apesar de toda sua genialidade e sucesso (ou talvez por isto mesmo, tal qual nos explicam alguns filósofos), Michael não foi poupado de críticas absurdas e de desmerecimentos os mais diversos, o que o conduziu, aos poucos, à sua destruição. Felizmente, muitas de suas obras foram gravadas e circulam pelos quatro cantos do planeta, via internet, para a felicidade de seus admiradores, colecionadores e demais curiosos. Dentre estes últimos, destacam-se adolescentes e crianças encantados com o artista - uma nova geração que tem se juntado voluntariamente aos fãs de carteirinha das outras gerações, na tentativa de imitar a arte michael-jacksoniana. Alias, quando Michael morreu (25-062009), ele quase levou a internet junto: ele tirou literalmente alguns provedores do ar. Durante os meses que se seguiram à sua morte, multidões oriundos de gerações, culturas e raças as mais diversas, se juntaram voluntariamente em praças públicas para representar algumas de suas coreografias mais famosas. Quem conseguiu provocar tal feito assim, tão espontaneamente, nos quatro cantos da Terra? Fãs e profissionais do mundo inteiro tentaram reviver 45 anos de produção artística de Michael Jackson. Muitos se organizam em Flashmobs29 e conseguiram se apresentar nas maiores cidades do mundo, chegando a aglomerar em torno de 13 mil participantes de todas as idades, com quase 50 mil espectadores na cidade do México, no dia do aniversario de Michael (29-08-09), levando o seu nome mais uma vez para o livro dos recordes. Isto só mostra o quanto a obra de Michael é prazerosa e contagiosa. Esta mimeses também tem ocorrido em clubes, hotéis, colônias de férias, salões de festas, academias, associações, escolas, universidades, teatros, em pequenos e grandes espetáculos, e até mesmo em prisões e asilos. 29 Flashmobs são aglomerações instantâneas de pessoas em um local público para realizar determinada ação inusitada, previamente combinada por alguns e voluntariamente abraçada por outros. Seus organizadores se dispersam tão rapidamente quanto se reuniram e repetem o ato logo depois.
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Todos querem imitar Michael, pois sua expressão corporal hipnotiza com seus movimentos deslumbrantes e muito difíceis de copiar; a harmonia de sua musica é perfeita e sua voz - inimitável, é deslumbrantemente encantadora! Sua arte é assim, sublime! E isto que é sublime está na ordem do eterno. Não, MJ não foi destruído; pois antes de morrer já havia se eternizado e mesmo que alguns insistam em querer mostrar o ridículo disto ou daquilo, ele será eternamente lembrado pelo sentimento inexplicável do sublime que naturalmente soube produzir.
O corpo como verdadeira Obra de Arte Chantal Jaquet, ao começar sua análise sobre a força artística do corpo, lembra que a beleza não pertence “propriamente” ao corpo, mas que resta um conceito muito mais subjetivo, submetido à modalidade do juízo de gosto que a uma propriedade do objeto. Ela inclusive nos lembra o tanto que este juízo pode ser frágil, vindo a mudar segundo às circunstâncias e às condições do observador (sujeito) que julga, tal qual já explicado neste artigo. Ela diz que um exemplo bem claro da relatividade destes valores é o dado por Espinosa à Hugo Boxel sobre a observação da mão no microscópio - que perde toda a sua beleza, e de outros objetos que de perto nada têm de belo (Espinosa, carta 54). No entanto, ela mesmo nos faz compreender em seguida, que esta relatividade da beleza corporal não diminui em nada seu poder de fascinação e de sedução. Ao contrário, “o corpo humano possui nele mesmo uma potência estética imediata, pois ele é capaz de tocar à sensibilidade pela harmonia de suas formas”. E’ neste sentido que ela dirá, tal citado no início deste artigo, que “Natural ou artística, a beleza é sempre obra do corpo; [pois] ela vem ao mundo nele e por ele e ilumina a terra com a sua luz.” Estaria aí uma explicação sobre a fascinação que Michael Jackson exerceu sobre seu público desde sempre, mesmo após tantas transformações que seu corpo sofreu? Pode ser, pois o fascínio que MJ exerceu, até morrer, pode ser comprovado pela rapidez que se venderam os ingressos para sua ultima série de shows – o “This is it ”, previsto para ocorrer em Londres. Ele foi recorde de vendas por ‘segundo’, com compradores originários de toda a parte do mundo - expressão do forte desejo latente de um público sedento para ver seu corpo em ato, em um ato sublimemente artístico. Sua voz, gravada em CD, apesar de toda sua potência, não basta. Os DVD’s só despertam ainda mais o desejo de ver o artista representando ao vivo e em cores. O que é que se busca? Busca-se o prazer! O prazer que se sabe com certeza obter ao observar (e participar) das encenações artísticas de Michael. Desejase ver o artista pessoalmente, cantando, dançando, atuando, pois “quando Michael Jackson canta, com sua voz de anjo, e quando seus pés se movem, você pode ver Deus dançando”.30 Michael Jackson e sua Arte constituem um só ser e o palco, o seu altar, “o palco é o local mais extraordinário do mundo. Tenho a impressão de voar, é magnífico. Enquanto o público nele tiver prazer, eu serei feliz.”31 Mas e as inúmeras transformações que Michael mesmo provocou em seu corpo através de cirurgias plásticas e outros artifícios? Não seria isto tão artificial que já foi mes-
30 Bob Geoldof, in Lavige, Michael Jackson forever. Paris: Hugo & Co, 2009. 31 Catherine & Michel Rouchons. Michael Jackson - coup de cœur. Paris: Dornelles, 1994.
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mo apontado como uma das razões do princípio de sua queda? Lembrando de Thomas Payne, estaria o corpo de Michael na ordem do sublime ou do ridículo? Das transformações que seu corpo sofreu, nestes quase 45 anos de carreira, muitas foram naturais, provocadas pelo tempo e o crescimento, outras artificiais, provocadas pela criatividade humana; mas elas foram muitas vezes confundidas e misturadas pelos sensacionalistas e invejosos que, incessantemente, tentaram, com grande furor, diminuir toda a riqueza e beleza do artista. Apesar de todas as mudanças estéticas que o corpo de Michael Jackson sofreu, sejam elas efêmeras - produzidas por ornamentos, maquiagem e vestimentas; ou permanentes - de ordem natural, como o timbre de sua voz (da infantil à adulta), de suas dimensões e características de menino à de um homem, de sua doença de pele; ou - de ordem artificial, fruto de cirurgias plásticas e de outras técnicas, ele jamais, desde que entrou em cena, deixou de seduzir, de atrair e de provocar a admiração de seu público. Ele jamais deixou de ser belo aos olhos de seu público, que o imitava, tentando seguir, inclusive, suas modificações corporais mais íntimas. Seus inimigos tentaram o máximo possível diminuir esta sua beleza, tecendo-lhe as mais virulentas críticas estéticas. Não foram capazes de perceber que Michael já havia subido ao estatuto de sublime e isto que é sublime já se eternizou e não pode se tornar feio.
O Body Art e a Arte Carnal Necessário é ainda tecer alguns comentários sobre as mudanças artificiais que Michael impôs a seu corpo. Interessante esta descoberta de Michael: que seu corpo podia ser transformado tal qual qualquer peça artística, tal qual uma verdadeira obra de arte. E ele assim o tomou, como algo que realmente lhe pertencia, parte integrante da sua arte e que podia sim estar sujeita à toda e qualquer intervenção, mesmo a cirúrgica. Parece um exagero dizer, mas até nisto Michael foi inovador, se inscrevendo, de uma forma ou de outra na Body Art, e na vanguarda da Arte carnal. Ambas consideram o corpo uma obra de arte, mas a Arte Carnal o toma como um objeto. Nesta o corpo é uma verdadeira “peça de arte”, e assim, portanto, sujeita a toda e quaisquer modificações e intervenções através de todos os meios possíveis e viáveis. A Body Art usa e abusa de meios tecnológicos, como cyberware e vídeos; enquanto a atividade da Arte Carnal se insere na carne: tatuagens e cirurgias plásticas, por exemplo. Sua fundadora é Orlan, professora na Escola Nacional Superior de Artes de Paris-Cergy, que resiste ser chamada de body-artista; pois, como defende, sua arte não se inscreve na tradição da Body-Art. Orlan é considerada por muitos a primeira body-artista a se utilizar do mecanismo da cirurgia plástica, apesar de se posicionar radicalmente contra as cirurgias estéticas em vista a obedecer padrões de beleza estabelecidos pela mídia e pela sociedade ocidental em geral, que ela considera “ainda extremamente machista”. Mas Orlan não se diz adepta da Body Art e sim da Arte Carnal, alegando que esta difere da anterior por não se preocupar com a dor nem com o sofrimento, mas principalmente pelo corpo não ser apresentado como um meio, mas como um fim artístico. A Body-Art, diz ela, utiliza o corpo como um instrumento para exprimir uma mensagem, que tem normalmente, um forte tom político-social e utiliza o corpo como campo de batalha. Na Arte carnal o corpo é a peça de arte a ser moldada e a operação cirúrgica é o meio mais forte desta possibilidade, constituindo sua expressão performática mais intensa. No seu sitio na internet, ela expõe seus trabalhos e os vídeos
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de algumas das nove cirurgias plásticas executadas entre 1990 e 1993. Suas cirurgias foram filmadas e utilizadas como material didático para suas aulas. Muitas encontram-se no Centro Cultural George Pompidou, em Paris, e todas testemunham esta posse que ela toma do seu corpo e que se nega a compartilhar com outros, sejam médicos, juristas, religiosos ou psicanalistas. Seu corpo pertence a ela apenas e dele ela deve poder se servir como quiser, defende a artista veementemente. Embora não se possa dizer que Michael conhecesse ou admirasse essas artes, ele certamente soube, tal como Orlan, tomar posse de seu corpo e transformá-lo a seu bel prazer e em função de sua própria arte. Mas, porque isto incomodou tanto e a tantos, muito mais até que todas as manifestações de Body Art e da Arte Carnal juntas, é que deve ser assunto para análise e psicanálise, como também do jornalismo investigativo. Não se sabe ao certo a quantas cirurgias Michael se submeteu, mas jornalistas do mundo inteiro já falaram sobre elas, e muitas vezes, sem o devido respeito. Ora, Michael era um artista, um grande artista, e um perfeccionista; portanto, é natural que ele, que constantemente inovava e transformava seu canto, sua dança, seus ritmos e suas performances, quisesse fazer o mesmo com isto que é a fonte de toda a sua arte: seu corpo. É normal que ele, que se empenhava tanto em construir belíssimas apresentações para sua música, quisesse também se apresentar belo e que, para isto, recorresse a todos os meios possíveis, inclusive ao das cirurgias plásticas. Assim, ele podia se construir e se reconstruir, como um artista faz com suas obras, à procura da perfeição almejada, visando a concretização da idéia mentalizada. Natural a um artista genial. O que não é natural são as fortes críticas negativas que delas surgiram contra Michael. O que não é natural é que pouco ou quase nada se tenha mostrado na Mídia sobre a Arte Carnal de Orlan, capaz de escandalizar com mais unanimidade que qualquer das piores transformações de Michael; e que isto tenha feito dela uma artista respeitada, enquanto Michael, um objeto de chacota, julgado excêntrico, desequilibrado, quando não psicótico, e outros inúmeros pré-conceitos de seres ordinários que não suportam a impossibilidade de enquadrar alguém. Orlan já remodelou seu corpo e rosto diversas vezes; não segundo os parâmetros de beleza ditados pela sociedade ocidental, mas como verdadeira atuação artística na carne, transgredindo formas pré-estabelecidas e reivindicando inclusive o direito à aparência andrógina e à mudança de nome, para que este possa se conformar à mudança efetuada no seu corpo, que veio a transformar sua aparência geral. Orlan transgride assim concepções religiosas sobre a sacralidade do corpo que deve permanecer intocável, mutável apenas pelas leis da natureza; Orlan transgride teorias psicanalíticas que defendem a importância de se aceitar o seu corpo tal como ele é, mas também as Jurídicas, que estabelecem o nome como identificador público do indivíduo para sempre. Este, intimamente ligado ao seu corpo pela impressão digital e pelo seu código genético e registrado nos arquivos públicos, deve assim ser preservado e garantido por lei, por toda à sua vida, mesmo que o indivíduo mude seu estado civil e portanto, seu sobre-nome. Ora, Orlan nega este princípio. Transgressora por natureza, sua arte poderia ser objeto de grande escândalo, mas até nisso Michael foi campeão e suas mudanças física, bem mais tímidas que as de Orlan, receberam fortes holofotes e inúmeros debates desnecessários. Pobre Orlan, suas cirurgias não conseguiram um décimo da atenção que os jornalistas deram às de Michael. E bem que ela tentou. Há quem diga que não foi justamente por questões artísticas, mas para ser aceito que Michael investiu tanto na sua aparência. Mas por que então isto se deu apenas quando ele
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se desligou de sua religião, época em que já era conhecido e admirado no mundo inteiro? Seja como for, estas investidas também fizeram parte de suas manifestações artísticas, contribuindo para a beleza de suas apresentações, pois o seu corpo é a sua grande obra artística. Quem não se lembra do rosto lindo e encantador de Michael surgindo do pó no inesquecível curta Remember the time? Quem não se lembra de seus longos cachos voando ao vento no super falado Black and White onde ele se transforma em um agressivo (em todos os sentidos, mesmo sexual) animal selvagem? ou ainda, ele de cabelos surpreendentemente curtos – tipo másculo, pela primeira vez com camisa de mangas curtas, transparente e aberta demonstrando o seu torso nu, branco; que sem dançar, mostrava no seu rosto toda tristeza da solidão, ao cantar You’re not alone? Neste mesmo vídeo, outra expressão mais suave, mas não mentos forte, com sua esposa, praticamente nus numa piscina: Michael, homem negro, com o corpo absolutamente branco. Anos depois, um rosto mais andrógino - expressão de seu momento de paternidade impregnada de maternidade? Expressão de quem estava sendo pai e mãe ao mesmo tempo? Nunca saberemos dizer ao certo todas as motivações das transformações de Michael, mas, uma coisa é certa, conscientemente ou não, Michael Jackson também deu sua contribuição à Body Art e talvez tenha sido o maior precursor da Arte Carnal. As transformações no seu corpo foram sempre debatidas, exaltadas, menosprezadas e até mesmo copiadas; jamais despercebidas, elas serão sempre lembradas; até elas se eternizaram. Michael não pode mesmo estar na ordem do ridículo. Em vias de conclusão, diremos apenas poucas palavras, pois como bem disse Kant, o juízo estético é subjetivo; e o objetivo deste artigo não é de convencer ninguém sobre a beleza e a grandeza da obra de Michael Jackson, pois esta fala por si só. Nosso objetivo é (1) defender que a arte é uma manifestação humana e, como tal, está na ordem do sensível e do inteligível ao mesmo tempo, tal qual o homem e tudo o que é corporal, como nos explica Espinosa na Ética ; (2) convidar a reflexões sobre falsos conceitos e pré-conceitos sobre arte e o que é artístico, o que muitas vezes nos impedem de desfrutar de manifestações artísticas portadoras de beleza e de prazer, tais como as de Michael; (3) defender que a arte é antes de qualquer conceituação que dela se possa fazer, uma manifestação humana, meramente humana e sobre o homem; (4) considerar a importância da dedicação e da busca da perfeição, em toda e qualquer criação humana - seja artística, filosófica, ou científica; pois nela pode estar este “sei-lá-o-que” capaz de provocar o sentimento de belo e do sublime que todos buscamos obter; (5) recordar o trabalho sublime de Michael; e assim poder reviver com o leitor momentos de puro prazer.
Bibliografia KANT, Immanuel. Du sens interne. trad. et com. par R. Brandit, G. in Mohr, A. Perrinjaquet, G. Seel et W. Stark» in Cahiers de la Revue de Théologie et de Philosophie. Neuchâtel, Génève Lousanne:s 1988 - tiré à part du vol. 119 1987/IV, pp. 421 à 472. ______. Le jugement esthétique. Textes choisis par KHODOSS, Florence, 7e. édition, Paris: Puf, 1984 (1955). ______. Observation sur le Sentiment du Beau et du Sublime, traduction, introduction et notes par Roger KEMPFT. Paris: J. Vrin, 1969 (1953).
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* Márcia Patrizio é professora de Línguas, Teologia e Filosofia. Mestre em Filosofia pela Universidade Paris-X. Tem artigos publicados nas áreas de sua formação e dois livros sobre o corpo: um de sua autoria: Corpo – um Modo de ser divino, que é uma introdução à Metafísica de Espinosa e A força do Corpo, que é a tradução da 2a parte do livro de Chantal Jaquet, Le corps, onde esta analisa a força artística, ética e sexual do corpo.
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A comunicação do tempo aproximações entre Bergson e Proust Regina Rossetti*
Resumo: Este artigo identifica acordes e dissonâncias entre a filosofia de Bergson e o romance de Proust, Em busca do tempo perdido. Situa a problemática no interior da tradição dos estudos que tratam das distâncias e proximidades entre o filósofo e o romancista e elege Proust como um bergsoniano intermitente. Analisa as páginas finais do romance proustiano para explicitar a concepção de tempo e seu processo de revelação. O tempo proustiano pode, então, ser compreendido em seus aspectos fundamentais: interior, qualitativo e essencial. Comparado à concepção bergsoniana de tempo, a conclusão revela um acorde essencial entre Bergson e Proust: o tempo como duração. Palavras-chave: Bergson e Proust, comunicação e tempo, filosofia e literatura The comunication of time: Bergson and Proust approximations Abstract: This article identify to chords and no chords between the philosophy of Bergson and the romance of Proust, À la recherche du temp perdu. It points out the problematic one into the tradition of the studies that deal with the distances and neighborhoods between the philosopher and the writer, and chooses Proust as an intermittent bergsonian. It analyzes the final pages of the romance and explicit the conception of time and the process of its revelation. The Proust’s time can, then, be understood in its basic aspects: inner, qualitative and essential. Compared the Bergson’s conception of time, the conclusion discloses an essential chord between Bergson and Proust: the time as duration. Keywords: Bergson and Proust, communication and time, philosophy and literature
Introdução O tempo é tema fundamental tanto na obra do filósofo Henri Bergson, quanto no romance do escritor literário Marcel Proust. Ambos viveram em Paris, foram contemporâneos e de famílias aparentadas; respiraram a mesma “atmosfera intelectual”, mas acima de tudo elegeram o tempo como fundamento da existência e exerceram suas vocações filosóficas e literárias. Bergson recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1928 e a obra de Proust tornou-se objeto de estudos filosóficos. Entretanto, apesar das aproximações aparentes, podem surgir algumas indagações de cunho filosófico. Seria Proust, realmente,
um bergsoniano? As tentativas de expressão e comunicação do tempo perdido do romance proustiano corresponderiam às intuições bergsonianas do tempo real apresentados em sua obra filosófica? Enfim, entre o filósofo e o romancista existem mais acordes ou mais dissonâncias?
1. Proust, um bergsoniano intermitente Existe uma vasta bibliografia que trata, ora profundamente ora sucintamente, das relações entre a teoria filosófica de Bergson e a obra romanesca de Proust.1 Raramente um estudioso de Proust não se refere a Bergson, seja para afirmar ou para negar qualquer proximidade de pensamento, intenção, inspiração ou influência.2 Dentre os que discordam de qualquer aproximação está a posição extremada de Poulet: “Ora, se o tempo proustiano assume sempre forma do espaço, é porque ele é de uma natureza diretamente oposta ao tempo bergsoniano. Nada mais diferente da continuidade melódica da duração pura; em revanche, nada que se assemelhe mais ao que Bergson denunciava como sendo uma falsa duração, uma duração cujos elementos estariam exteriorizados uns em relação aos outros, e alinhados uns ao lado dos outros. O tempo proustiano é o tempo espacializado, justaposto.”3 Genette concorda com a opinião de Poulet: Georges Poulet mostrou-o claramente, o tempo proustiano não é um transcorrer como a duração bergsoniana, é uma sucessão de momentos isolados; igualmente, as personagens (e os grupos, não evoluem: um belo dia, surgem diferentes como se o tempo se limitasse a atualizar uma pluralidade que eles continham virtualmente desde toda a eternidade.4
Dresden não hesita em dizer que não vê motivos para se afirmar um paralelismo entre Bergson e Proust e acrescenta Tomemos uma só frase característica de Proust, que me parece excluir toda analogia com o pensamento de Bergson ‘a memória, introduzindo o passado no presente sem modificá-lo, tal qual ele era no momento em que ele era presente’, suprime precisamente essa grande dimensão do Tempo que segue a vida que se realiza.5
Ricoeur para quem o tempo de Proust é um tempo que nos engloba, onde todos os homens têm o seu lugar, lugar mais considerável que o lugar que ocupa no espaço, mas mesmo 1 Para mais informações acerca do estado dos estudos sobre a questão da influência bergsoniana sobre Proust até 1976, ler o primeiro capítulo de Bergson et Proust de Joyce MEGAY. 2 “Impossible de trouver une étude sur Proust dans laquelle le nom de Bergson ne soit au moins mentionné”, Dresden, p. 58. 3 POULET, Georges. O espaço proustiano, p. 93. 4 GENETTE, Gerard. Proust palimpsesto, p. 56. 5 DRESDEN, S. Les idées esthétiques de Bergson, p. 58.
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assim, lugar. Sendo assim, o tempo em Proust se aproximaria mais do tempo espacializado do que da duração bergsoniana. “O extratemporal não passa de um ponto de passagem: sua virtude é transformar em duração contínua os “vasos fechados das épocas descontínuas”. Longe, portanto, de desembocar numa visão bergsoniana de uma duração despojada de qualquer extensão, Em busca… confirma o caráter dimensional do tempo.”6 E Deleuze, ironicamente afirma que “Proust não concebe absolutamente a mudança como uma duração bergsoniana, mas como uma defecção, uma corrida para o túmulo.”7 Dentre aqueles que vêem aproximações, há os que falam explicitamente em influência, como Wilson para quem: Proust criou, neste particular, uma espécie de equivalente ficcional da metafísica em que certos filósofos basearam a nova teoria física. Proust havia sido profundamente influenciado por Bergson, um dos antecessores dos modernos antimecanicistas, e isso auxiliou-o a desenvolver e aplicar, em escala inaudita, a metafísica implícita no Simbolismo.8
Ou como Souza que dedica o capítulo primeiro de seu estudo sobre Proust para tratar da influência de Bergson sobre Proust.9 Outros falam apenas em inspiração, como Maurois que descorre acerca de temas bergsonianos transpostos para o romance proustiano e que Bergson serviu de inspiração para Proust.10 Há os que hesitantes, mudam de opinião no decorrer de seus estudos. A posição de Cattaui evolui no decorrer dos anos; de início fala em influência determinante de Bergson mestre de Proust,11 para em sua última obra falar de oposição entre a duração real de Bergson e o tempo espacializado de Proust. Da mesma forma, Thibaudet fala em “ultra-bergsonismo” de Proust para mais tarde mudar de ótica depois de ler todos os volumes da obra proustiana.12 Há os que em uma posição, talvez, intermediária, negam a influência direta, mas não negam possíveis relações. Segundo Walter Benjamin: Matéria e Memória define o caráter da experiência na durée (duração) de tal maneira que o leitor se sente obrigado a concluir que apenas o escritor seria o sujeito adequado de tal experiência. E, de fato, foi também um escritor quem colocou à prova a teoria da experiência de Bergson. Pode-se considerar a obra de Proust, Em busca do tempo perdido, como a tentativa de reproduzir artificialmente, sob condições sociais atuais, a experiência tal como Bergson a imagina, pois casa vez se poderá ter menos esperanças de realizá-la por meios naturais.13 6 7 8 9 10 11 12
RICOEUR, p. 254. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos, p. 18. WILSON, Edmund. O Castelo de Axel, p. 115. SOUZA, Sybil. La philosophie de Marcel Proust, p. 49. MAUROIS, André. De Proust a Camus, p. 17 e p. 45, respectivamente. CATTAUI, Georges. Marcel Proust, 1952, p. 188 e p. 205; e Proust et ses métamorphoses, 1972, p. 73. THIBAUDET, Albet. Réflexions sur la literature, 1920, p. 426; e Marcel Proust et la tradition française, 1923, p. 138. 13 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. p. 105.
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Segundo Leopoldo e Silva, literatura e filosofia habitam regiões muito distantes uma da outra, mas a distância que separa é a mesma que aproxima: a distância que as separa não nos permite ceder aos paralelismos aparentes ou reencontrar no romance as idéias filosóficas que às vezes ele parece ilustrar, por outro lado o percurso da distância que aproxima a literatura da filosofia nos permite encontrar, na elaboração mais específica da narração, no núcleo mais íntimo da trama romanesca, o impulso de desvendamento da realidade, fruto da inquietude, do espanto e da perplexidade, sentimentos que definem, ao menos em parte, a situação daqueles que buscam a verdade, procurando compreender o real um pouca para além do conjunto de significações que a vida cotidiana nos tornou familiares.14
Brincourt, por sua vez, vê grandes afinidades entre ambos apesar das difernças de estilo: “É assim que Proust é inserido, sem ter nítida consciência, nos caminhos abertas por Bergson, e que ele foi mais longe que o outro, penetrando em territórios até então inexplorados”.15 DeLattre, por sua vez, nos revela na conclusão de seu interessante estudo cujo itinerário foi precioso para o presente estudo, que as idéias do romancista foram fecundadas pelas que dominam o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (e também Matéria e Memória). O romance proustiano constituiria um tipo de desenvolvimento experimental das teses do filósofo, e sua arte uma orquestração dos temas bergsonianos. A filosofia 14 LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Bergson, Proust: tensões do tempo, p. 141. 15 BRINCOURT, André et Jean. Les ouervres et les lumières, p. 40.
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de Bergson, que certamente ajudou Proust a se orientar, seja por sugestão direta seja por influência difusa somente, estava no ar no momento em que Proust inicia sua tarefa no sentido de aprofundar a realidade interior e ter contato direto com ela. As idéias bergsonianas de heterogeneidade e continuidade evolutiva da personalidade humana, Proust, querendo ou não, encarnou de inicio em seus personagens, os quais se movem numa atmosfera flutuante, que se faz e se desfaz sem cessar. Segundo DeLattre, o romance de Proust é uma aplicação concreta, uma repetição incessante de um tema bergsoniano: a duração real concebida como o estofo da realidade. Um tempo criador que transforma tudo e a todos. Entretanto, nem sempre é assim pois há momentos em que Proust, mesmo pretendendo seguir os contornos sinuosos e móveis da realidade, na verdade opera sobre a idéia de um esquema racional sobre o tempo, aproximando-o da idéia de espaço. O que somente revela a imensa dificuldade de se dizer fielmente o que é tempo em sua essencialidade. Mesmo que penetrada da noção bergsoniana de duração concreta, sentida como real e criadora, a obra de Proust está longe de adotar esta noção uniformemente. O termo duração, tipicamente bergsoniano, aparece poucas vezes no romance de Proust, que nitidamente, prefere a palavra tempo, empregada em diversas acepções. Uma dessas acepções é bastante ordinária em sentido de tempo espacial. Podemos notar que as noções bergsonianas de fluidez e escoamento do tempo anunciadas no Tempo Redescoberto, por ocasião da intuição proustiana de sua obra ainda por ser escrita, serão substituídas por expressões espaciais e estáticas que remetem a noção bergsoniana de tempo espacializado, no romance já escrito, quando nos deparamos com expressões do tempo carregadas de imagens espaciais, tais como “séries paralelas”, “espaços da memória”. Fato que evidencia a dificuldade de se tentar narrar o escoamento do tempo sem uma inevitável paralisação de seu movimento. Proust chega a afirmar que as diferentes partes do tempo se excluem mutuamente, e permanecem exteriores umas as outras, o que é oposto ao que afirma Bergson sobre o tempo real. Proust introduz sua narrativa de contornos parados e separações, recaindo assim, na noção de tempo espacializado, do qual ele queria escapar. Ele introduz na realidade uma descontinuidade, uma imobilidade que falseia radicalmente a experiência psicológica, e parcelando-a, a assemelha a materialidade. Onde Bergson percebeu mudanças graduais e nuanças que se irradiam, Proust não renunciou a desenhar linhas sólidas e barreiras. Proust fica, assim, na transcrição literária da duração, a um nível intermediário vagamente definido, que oscila entre a profundidade sempre movente e a superfície que permanece imobilizada.16 Então, em que medida se pode falar ainda de um bergsonismo de Proust? Para DeLattre, Proust é um bergsoniano por afinidade, mas esta afinidade é mais natural que eletiva. É um adepto de Bergson, mas também um sofista recalcitrante; um discípulo que deve muito a seu mestre, mas que somente pronuncia o seu nome uma vez no Em busca do tempo perdido, para discutir sua opinião sobre as inquietações da memória, um aluno de uma geniosidade sem igual, mas caprichoso, inconseqüente, infiel, e que vê em sua infidelidade 16 “De fait, Marcel Proust s’est arête, dans sa transcription littéraire, si difficile il en faut convenir, de la durée concrète, à un niveau intermédiaire assez vaguement definí, et qui oscille entre la profondeur toujours en mouvement, et la surface qu’il est amené souvent à immobiliser.” DE LATTRE, p. 60.
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uma maneira de independência, que ele não deixa, ao excesso, de exagerar grandemente.17
Proust é talvez um bergsoniano intermitente, para empregar um termo que lhe é caro, ou talvez um bergsoniano que se ignora, ou um bergsoniano apesar de si, dado seu esforço de independência. Seja como for, Proust em seu romance, tentou reencontrar a duração interior, e assim, realizou o vôo que Bergson formulou muitas vezes, já que Proust quis fazer entender, a seus pacientes leitores, a continuidade invisível e indestrutível de uma melodia, a melodia de um tempo que dura.
2. Proust e a revelação do tempo Proust intentou narrar o tempo em À la recherche du temps perdu. Tarefa nada fácil, porque se é obrigado a utilizar palavras para comunicar, palavras que fixam o sentido do que é significado, no caso fixam o fluxo essencial do tempo, e fixar o fluxo do tempo é retirar dele o que tem de mais essencial. Problema por nós já estudado anteriormente. Thomas Mann, num trecho de A Montanha Mágica, pergunta se “Pode-se narrar o tempo, o próprio tempo, o tempo como tal e em si?” Tarefa cheia de obstáculos porque o tempo é algo que decorre, escoa, segue o seu curso e que, portanto, sempre foge; e se foge como retê-lo para narrá-lo? É exatamente esta a dificuldade central de qualquer tentativa de narrar o tempo, dificuldade que Proust teve que enfrentar e superar. Para ilustrarmos como Proust realizou a proeza de comunicar sua intuição do tempo por meio da literatura, escolhemos um momento específico de seu romance. Trata-se das páginas finais de sua volumosa narrativa,18 a partir da segunda metade do “Le Temps retrouvé”, quando Proust começa a descrever a recepção na casa da princesa de Guermantes.19 Este momento do romance é privilegiado porque nele Proust se põe a refletir sobre a essência da obra de arte20 e sobre a essência de sua própria obra: o tempo. Ao lermos esta passagem vemos surgir em nossa mente, brotando por meio da fértil eloquência proustiana, a imagem de um tempo fluído e ininterrupto como uma força que passa inexoravelmente transformando tudo: os corpos, as pessoas, as relações sociais e, até mesmo, a própria visão do autor. Essa imagem que surge em nós é a evidência de que Proust alcançou seu intento, isto é, comunicar o tempo. É neste momento final que Proust narra a revelação de sua tão procurada vocação literária ocorrida por meio de uma intuição doadora da própria essência do romance que ainda será escrito. 17 DE LATTRE, p. 123. 18 Na edição francesa da Pléiade a partir da p. 433 do volume IV. Na tradução brasileira da editora Globo a partir da p. 139 do volume VII “O Tempo redescoberto”. Citamos aqui as páginas da tradução brasileira depois da abreviatura T.R. (Tempo Redescoberto). 19 “A grande cena da biblioteca da mansão de Guermantes delimita um antes ao qual o narrador conferiu uma amplidão significativa e um depois onde se descobre a significação última do Tempo redescoberto”. RICOEUR, p. 240. 20 “Eis-no agora no centro da grande cena da visita que decide o primeiro sentido – mas não o último – a ser vinculado à própria noção de tempo redescoberto. O estatuto narrativo daquilo que pode ser lido como uma grande dissertação sobre a arte – e até como a arte poética de Marcel Proust inserida à força em sua narrativa”. RICOEUR, p. 243.
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Vamos a um resumo desta narrativa. Depois de um longo recolhimento, longe da vida social, Marcel recebe um convite para uma recepção na casa da princesa de Guermantes. Nosso herói permaneceu afastado, quase uma década, da vida social; vida mundana, detalhadamente, narrada na maior parte de seu romance. Decidiu aceitar o convite porque o nome Guermantes chamou-lhe a atenção para uma ponta de seu passado guardado nas profundezas de sua memória. Pelo caminho, ao rever um lugar outrora tão familiar, tentou por meio de um esforço voluntário de memória fazer retornar as imagens de um passado ali vivido. Todavia, este esforço consciente e voluntário, tão ligado à inteligência,21 de nada lhe valeram: “bateu-se em todas as portas que a nada conduzem, e na única por onde se poderia entrar, e que se procuraria em vão durante cem anos, esbarra-se por acaso, e ela se abre”.22 Pouco depois, a porta de acesso ao passado abriu-se, inesperadamente, por causa de um incidente casual: ao entrar no pátio da residência dos Guermantes, o narrador pisa na calçada feita de pedras irregulares, a sensação causada lembra-lhe a mesma anteriormente experimentada sobre dois azulejos irregulares no batistério de São Marcos e assim, de repente, surge a sua frente Veneza, com toda sua atmosfera e luz. Note-se que essa experiência é similar àquela descrita no inicio do romance quando ao degustar o sabor da pequena madeleine molhada no chá surgiu para Marcel, Combray e toda sua infância. Logo em seguida, já dentro da residência dos Guermantes, Marcel enxuga a boca em um guardanapo: de repente surge Balbec, com suas cores, cheiros e clima. Atônito, buscando compreender o que acabava de ocorrer, primeiro, nosso herói toma consciência da ineficácia da memória voluntária quando se trata de resgatar o passado: “eu compreendia que as sensações em mim despertadas pelo contato das pedras desiguais, a goma do guardanapo e o gosto da madeleine não se prendiam de modo algum às tentativas de evocar Veneza, Balbec, Combray por meio da memória sem cambiantes”.23 A seguir desenvolve uma longa reflexão sobre a obra de arte e o tempo. Depois destes incidentes Marcel Proust desenvolve uma reflexão sobre o papel da memória. Proust percebe que somente a memória involuntária poderia resgatar, das profundezas adormecidas, o passado remoto esquecido com o passar dos anos.24 A memória involuntária é fundamental na gênese da obra proustiana, porque é capaz de fazer emergir as reminiscências que trazem de volta o passado que é a própria matéria com a qual Proust se põe a dar forma literária, remodelando-o com as mãos do tempo artesão, que modifica incessantemente aquilo que recria. Segundo Cormeau, estes acidentes fortuitos da lembrança involuntária, causadores de um choque afetivo que revelaram ao narrador a essência de seu livro, correspondem ao exato momento do nascimento da sua obra.25 Por meio da identificação misteriosa de dois momentos distantes, passado e presente, a memória faz um apelo 21 Para Bergson a inteligência, enquanto modo de conhecer, é incapaz de conhecer a essência movente da realidade e, portanto, incapaz de conhecer o tempo em sua duração. Se o estofo do passado é o tempo, a inteligência não poder revelar esse passado. 22 T.R., p. 148. 23 T.R., p. 151. 24 “Somente a memória como visão espiritual de essências pode conferir o verdadeiro significado aos eventos, transfigurados em lembranças”, LEOPOLDO E SILVA, Bergson e Proust: o impressionismo como obstáculo e transparência, p. 160. 25 “A ce moment, le véritable proustisme a germé, il est sur le point de naître”, CORMEAU, p. 99.
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à imaginação e provoca em Proust o sentimento de poder apreender um objeto em sua eternidade e conceder a ele a perenidade de uma obra de arte. A arte nos obriga assim, a descobrir o que temos de mais precioso: a nossa verdadeira vida, a realidade tal como a sentimos e quase sempre a ignoramos. Por meio deste choque da memória involuntária “que me fizera vislumbrar na obra de arte o único meio de reaver o Tempo perdido, nova luz se fez em mim. E compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, minha vida passada”.26 Assim, temos na memória a primeira musa que inspira o romancista em direção à realização de sua obra. Dessa maneira, a memória involuntária revelou a Proust, como uma intuição, a forma e o conteúdo que teria a sua obra: o tempo. Mas como pode o tempo governar a elaboração de uma obra literária que pretende narra-lo? Segundo Leopoldo e Silva, o que governa a elaboração da obra “é a percepção do Tempo como dimensão interna e essencial da 27 transitoriedade”. Esta percepção do tempo dá-se por meio de uma sensação presente unida a uma impressão passada, ambas sentidas simultaneamente e que remetem a um conteúdo extratemporal, no qual se poderia encontrar a essência das coisas e a verdade que Proust buscava para compor sua obra de arte. Isso somente é possível porque para Proust a realidade é uma relação entre sensações e lembranças; não existe presente puro, sem influência do passado, porque toda sensação presente está revestida de alguma lembrança do passado. E a tarefa do escritor é encontrar essa relação e unir para sempre sensação e lembrança em sua frase – daí a perenidade como característica essencial da obra de arte. O escritor toma dois elementos diferentes – existentes em dois planos temporais diferentes: sensação presente e lembrança do que foi passado – e extrai deles a essência que expressa em metáforas e assim comunica sua visão. Procedimento muito diferente do adotado pela literatura realista que se limita a “descrever as coisas” num esquema de linhas e superfícies, semelhante a uma visão cinematográfica. O episódio das pedras, do guardanapo, da madeleine, “tudo isto evoca as paisagens interiores de sensações consubstanciadas em impressões e guardadas no fundo da memória, de onde nunca poderia retirá-las a inteligência rememorativa, muito menos a percepção associativa”.28 Somente um instante extratemporal, por meio da memória involuntária, poderia revelar a Proust a essência da vida e da arte: “Só ele tinha o poder de me fazer recobrar os dias escoados, o Tempo perdido, ante o qual se haviam malogrado os esforços da memória e da inteligência”.29 Brincourt pergunta por que esse recurso ao passado é necessário ao conhecimento das impressões, naquilo que elas tem de mais singular. Porque uma impressão presente nunca se desembaraça totalmente de seu caráter utilitário, submetida às exigências da 26 27 28 29
T.R., p. 175. LEOPOLDO E SILVA, Bergson, Proust: tensões do tempo, p. 151. LEOPOLDO E SILVA, Bergson, Proust: tensões do tempo, p. 151. T.R., p. 153.
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vida prática ela é ainda imperfeita. Para realizar sua difícil missão de fixar isto que se esvai, o escritor necessita isolar as lembranças das ações.30 Assim, desvinculado das amarras da ação presente, por meio da memória involuntária que revela um instante intemporal porque remete a um passado imemorial, Proust descobriu a chave que abriria a porta de seu reencontro com o Tempo perdido e que o levaria definitivamente a escrever seu romance para comunicar esta intuição. O sonho, como uma segunda musa, tem para Proust, juntamente com a memória, um papel importante no resgate dos elementos que comporão sua obra. Para Cattaui, podemos perceber que o inconsciente tem um papel relevante no percurso que Proust faz até a verdade das coisas. Assim sendo, o interesse do romance proustiano não reside na matéria da obra, na ação ou em seus personagens, mas nas misteriosas conexões estabelecidas pelo autor entre todos eles, para que sua poesia possa emanar de um modo mais real capaz de revelar e até mesmo encarnar uma visão interior que torna consciente o inconsciente. Não é na plena luz da inteligência e em sua clara consciência das coisas que a verdade da obra de arte revela-se, mas ao contrário, no escuro: “os livros verdadeiros se geram não da diurna luz e nas palestras, mas no escuro e no silêncio”.31 As verdades da inteligência são verdades superficiais, planas, somente a superfície iluminada do objeto pode ser vista; por outro lado, o que está na profundidade da realidade continua escondido. O sonho e sua peculiar relação com o tempo, longe da clareza e nitidez da inteligência desperta e, sobretudo, longe do rígido esquema cronológico do tempo mensurável, pode revelar aquilo que está escondido na alma do escritor: “Pois bem, talvez sobretudo por seu estupendo jogo com o Tempo me fascinassem os Sonhos”.32 O sonho pode aproximar épocas separadas no tempo por enormes distâncias, constituindo um meio de recuperar o Tempo perdido. Assim, como uma segunda musa, uma musa noturna, o sonho, ao lado dos encontros casuais que despertam a memória (a madeleine, o calçamento de pedras, o guardanapo) poderia revelar a Proust a verdade e as impressões que comporiam seu romance. Impressões que somente poderiam ganhar sentido, ser comunicadas e eternizar-se por meio da arte. A terceira musa é a transformação dos seres pelo tempo. Voltando a narrativa da recepção dos Guermantes, depois de reflexões sobre as condições da obra de arte, finalmente, Marcel entra no salão de baile e, então, depara-se com aquilo que poderíamos chamar de sua terceira musa, ou terceira maneira de sentir o tempo com sua verdade e suas impressões. Este terceiro modo vem por meio da percepção súbita das transformações ocorridas nos personagens do romance pela ação destrutiva do tempo. Segundo Benjamin é o fluxo de tempo entrecruzado que se manifesta agora em sua dimensão externa no envelhecimento.33 É o tempo tornando-se visível, concreto e contribuindo substancialmente
30 BRINCOURT, p. 50. 31 T.R., p. 174. 32 T.R., p. 185. 33 “Seu verdadeiro interesse é consagrado ao fluxo do tempo sob sua forma mais real, e por isso mesmo entrecruzada, que se manifesta com clareza na reminiscência (internamente) e no envelhecimento (externamente)”, BENJAMIN, p. 45.
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para o seu livro: “eu verificava essa ação destrutiva do tempo precisamente quando me propunha a evidenciar, intelectualizar numa obra de arte as realidades extratemporais”.34 Segue-se, então, uma longa descrição dos efeitos do tempo decorrido sobre os personagens de seu romance. O que nos mostra que os personagens proustianos estão submetidos à duração; eles vão transformando-se radicalmente durante todo o Romance. Como um caleidoscópio de personalidades, vão revelando com o passar do tempo características múltiplas, imprevisíveis e, muitas vezes, contraditórias: em cada giro do caleidoscópio os personagens vão caindo novamente no mundo do romance, só que agora transformados. Personagens em constante mudança, porque são na realidade, as várias facetas do personagem central: o Tempo.35 Como exemplos podemos observar: Saint-Loup, imaculado até mostrar-se um invertido sexual; o Sr. de Charlus da força e nobreza até a decadência física e moral; a Duquesa de Guermantes de deusa inacessível na catedral de Combray até a esnobe e frívola dama nos salões de Paris; Rachel de prostituta vulgar à amada sublime de Saint-Loup; Odette de coquete à rica Sra. Swann e depois inserida na nobreza como Sra. de Forcheville; e, dentre todos os personagens, o mais cambiante de todos: Albertine, de anônima no meio do grupo de moças de Balbec à amada inesquecível de Proust. Todos os personagens de Proust duram no tempo e revelam mudanças que bem expressam a essencial duração da realidade e dos seres. Os fatos reveladores do tempo – a madeleine, as pedras, o guardanapo, a transformação dos seres pelo tempo – e a noção de tempo intuída por meio desses acontecimentos fizeram Proust ver que sua vida vivida nas trevas era agora iluminada pelo tempo. Tempo que fazia sua vida voltar à verdade original, verdade que devia ser comunicada num livro: “Sim, a esta obra, a noção do Tempo, que acabava de adquirir, me dizia chegada a hora de consagrar-me”.36 Nesse livro a unidade das individualidades seria composta de impressões múltiplas, “muitas moças, muitas igrejas, muitas sonatas, serviriam para constituir uma única sonata, uma única igreja, uma única moça”.37 Para realizar tal obra seria necessário analisar em profundidade as impressões depois de recriadas pela memória. Por meio da memória seriam trazidas do fundo do passado inconsciente, as impressões deixadas pelo Tempo, da análise destas múltiplas impressões sairia a matéria de seu livro. Este processo de renascimento das reminiscências dava-se por um alargamento do espírito, levando o autor a apreender o valor da eternidade. Assim, em seu espírito já estava toda sua obra, bastava apenas fazer-se presente e comunicável por meio da atualização do passado: “Eu tinha certeza que meu cérebro constituía uma rica zona de mineração, com jazidas preciosas, extensas e várias”,38 agora só restava explorá-la e revelar ao mundo o seu brilho interior. Assim é que na recepção da princesa de Guermantes foi intuído por Proust a essência de sua obra, cuja forma seria a do Tempo: “Essa dimensão do Tempo… eu procuraria torná-la continuamente sensível, numa transcrição do mundo por isso mesmo muito di-
34 T.R., p. 200. 35 “O tempo é verdadeiramente a única personagem do romance”, LEOPOLDO E SILVA, Bergson e Proust: o impressionismo como obstáculo e transparência, p. 157. 36 T.R., p. 179. 37 T.R., p. 281. 38 T.R., p. 283.
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ferente da que nos oferecem nossos sentidos tão falazes”.39 Proust, já tinha consciência da inovação literária de que era portador, ao passar para a consciência subjetiva o posto de centro da narrativa. Sob a forma do tempo um homem seria descrito “como se tivesse o comprimento, não de seu corpo, mas de seus anos de vida”,40 um homem que arrasta atrás de si um tempo sempre crescente, e que por fim, sucumbe. E esta verdade evidente do tempo, entrevista por todos, só cabia ao artista elucidá-la e torná-la comunicada aos seus leitores. Proust revela agora, claramente, o que seria a essência da obra de arte: recriar pela memória as impressões e transformá-las em equivalentes intelectuais. “Ora, a recriação pela memória, das impressões que depois seria mister aprofundar, esclarecer, transformar em equivalentes intelectuais, não seria uma das condições, quase a própria essência da obra de arte tal como a pouco a concebera na biblioteca?”.41 Portanto, a essência da obra de arte é uma essência subjetiva e temporal que tem por condição primeira a memória, seguida do sonho e pelas impressões deixadas pelo tempo.
3. O tempo proustiano A intuição que acabará de ter revelou a Proust o assunto principal de sua futura obra: o tempo. Não um tempo exterior – linear e homogêneo, mas um tempo duração – qualitativo e vivido. Um tempo em estado puro, guardado na interioridade da memória longe das deformações da exterioridade.”42 Esse tempo que dura tem um papel fundante na elaboração da Recherche; buscar o Tempo perdido e revelar o Tempo essencial, e com ele a verdade do que foi vivido de forma fugaz e efêmera, é a tarefa que Proust se propõe. Esse tempo interior é ainda vivente na memória, conseqüentemente, é no passado que Proust encontrará a matéria primordial de sua obra, acessado pela introspecção. Sendo no interior de sua própria memória que Proust mergulhará em busca do conteúdo e da forma de seu romance, sua atenção não pode estar voltada para a observação exterior dos fatos ocorridos, tal como se deram “em si”, mas deve voltar-se para o seu próprio interior, em busca das impressões retidas nas profundezas memória, com o passagem das vivência dos acontecimentos exteriores. Impressões interiores que diferem dos fatos exteriores; um fato qualquer, efêmero em sua existência exterior, que não levou mais do que alguns segundos marcados pelo relógio, pode ser narrado por Proust em páginas e páginas de seu romance, porque a duração deste fato depende da duração interior do artista e não de sua existência exterior. Em outras palavras, narrado como ele foi significado pelo autor, o mais simples dos incidentes pode ter na alma de Proust uma espessura e uma intensidade que a observação simplesmente exterior do fato não consegue revelar em sua profundidade. Porque nas profundezas do espírito, as impressões dos fatos estão rearranjadas de outra maneira, conforme a subjetividade do indivíduo que lhe confere um novo significado segundo a dimensão de sua duração no tempo interior.
39 T.R., p. 289. 40 T.R., p. 290. 41 T.R., p. 290. 42 “Le premier objet de Proust, tout pareillement, sera d’introduire, de restituer dans son roman la durée vivante. Sa démarche initiale, como celle de Bergson encore, sera celle de l’introspection”, DELATTRE, p. 44.
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Para Proust, o Tempo tem uma dimensão interior: “Uma hora não é apenas uma hora, é um vaso repleto de perfumes, de sons, de projetos e de climas”.43 Um tempo-duração qualitativo no qual uma hora possui qualidades únicas em conformidade com o modo como é vivida pela consciência psicológica. Essa hora vivida pode ser tão intensa que quase toca a eternidade, ou pode ser tão vazia e sem sentido que beira o abismo do nada, dependendo do estado psicológico da consciência naquele momento. A composição harmônica dos elementos da consciência, no momento da vivência daquela hora, leva a uma sinfonia inédita, que transforma a vivência daquela hora em algo infinitamente mais rico e precioso que qualquer sessenta segundos passados identicamente um após o outro. O tempo narrado por Proust não é o tempo cronológico, mas um tempo psicológico que busca remeter-se a um Tempo eterno, seguindo a seqüência das lembranças que ressurgem de sua memória e não da seqüência exterior das datas do calendário. Segundo Delattre, o texto proustiano é repleto de anacronias e discordâncias cronológicas; ele não segue as estações do ano, mas as estações da alma. Estações onde encontramos a atmosfera, o clima e os ares de suas impressões revividas. Assim, “Du Côté de Chez Swann” é todo primaveril, com o perfume das flores, da culinária de Françoise, dos campos. “À l’ombre des jeunes filles en fleurs” é verão, iluminado pelo sol, sensualmente quente e dinâmico. “La prisionnière” é invernal, retraída, íntima, às vezes aconchegante, às vezes angustiada. E “Le Temps retrouvé” é outono, preparação para a morte, quando as folhas caem e revelam a nudez essencial que estava escondida, mostrando o tronco que sustenta a árvore, outrora tão verde e florida. E igualmente cíclica como a natureza é a obra de Proust, que ao final da narrativa explode, revelando com toda energia e impulso seu pleno significado. Significado que remete à eternidade das impressões do artista na obra de arte, que assim, busca sair do tempo como mudança e ascender a um Tempo Eterno. O assunto da obra de Proust, não é a vida de um menino chamado Marcel, de seus amigos e parentes. O verdadeiro assunto da obra é uma certa maneira de evocar o passado. E esta maneira de evocar o passado ocorre por meio da memória involuntária”.44 Tal evocação involuntária, como já vimos, ocorre pela coincidência entre uma sensação presente e uma lembrança passada, que de tão poderosa faz o passado ressurgir brotando espontaneamente na mente do escritor. Isto porque a impressão não tendo mais a sensação na qual se originou apoia-se em outra sensação, a presente, que é sempre diferente da primeira, mas que em alguma dimensão do tempo une-se a ela para tornar presente o passado.45 Segundo Maurois, é por meio do par Sensação Presente - Lembrança Passada, que funcionando como um estereoscópio temporal, possibilita a Proust criar a ilusão de um relevo temporal que lhe permite reencontrar e sentir o tempo. E é exatamente por meio deste par que Proust pode experimentar le “bonheur” do artista, e ver revelado seu dever de ir atrás de tais sensações, ir em busca do tempo perdido. Sua tarefa era a de recriar pela memória as impressões perdidas e transformar suas lembranças em obra de arte, comunicando assim suas reminiscências na dimensão da eternidade.
43 T.R., p. 167. 44 “A la naissance de l’oeuvre proustienne, il y a une évocation du passé par la mémoire involontaire”, MAUROIS, p. 29. 45 “Parce qu’alors les images du souvenir, qui généralement sont fugitives n’ayant pas de sensations fortes pour s’y appuyer, trouvent le support de la sensation présente”, MAUROIS, p. 28.
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Segundo Ricoeur,46 o tempo do romance pode romper com o tempo real: é a própria lei de entrada na ficção, e o reconfigura conforme novas normas de organização temporal. A Morfologia poética de Günther Muller afinal legou-nos três tempos: o do contar, o do que é contado e, finalmente, o tempo da vida. O primeiro é um tempo cronológico: é um tempo de leitura mais do que de escrita; só se mede seu equivalente espacial que se consta em número de páginas e de linhas. Quanto ao tempo narrado, é contado em anos, meses, dias e, eventualmente, datado na própria obra. Por sua vez, procede por “compressão” de um tempo “economizado”, que não é narrativa, mas vida.47
O tempo da narrativa proustiana não é o tempo cronológico, histórico, linear e espacial, mas um tempo absoluto, primordial, psicológico, o tempo real que dura. O tempo de Proust não é o cronológico, com sua sucessão de fatos e datas, linear e orientado, não é o tempo espacial do relógio onde um minuto é sempre igual a outro minuto. O tempo de Proust é um tempo denso, repleto de diferenças, cada minuto é aquilo que nele se viveu, se sentiu ou se pensou, não é um tempo que vai sempre rumo ao futuro, mas um tempo que pode retornar ao passado já vivido pela memória e encontrar aí significado para o presente, tempo em que podemos sobrepor vários momentos passados ao presente vivido, quebrando assim sua ilusória linearidade e seqüência espacial. A revelação e a comunicação da intuição da essência temporal da realidade é o objetivo da busca de Proust. Assim, sua narrativa é guiada pela reflexão acerca “dos tempos”: o tempo que passa, o tempo que se perde, o tempo que se redescobre no âmago do tempo perdido, o tempo original transformado na verdadeira eternidade que se afirma na arte, nas palavras de Deleuze. Tempo que passa sem cessar e que nos escapa, tempo que esquecemos e perdemos num passado distante, tempo que reencontramos através da memória e que se revela como absoluto e eterno por meio da comunicação da intuição de um artista. “Era essa noção de tempo incorporado, dos anos escoados porém inseparáveis de nós que eu tencionava fazer ressaltar em minha obra”.48 Tempo longo e pesado que todos nós carregamos conosco e que nos dá uma dimensão muito maior do que aquela expressa por nosso lugar no espaço. Tempo espesso formado por nossas próprias vidas vividas, nosso próprio ser gigantesco, pleno de impressões, lembranças, experiências, pensamentos, sobre cujo cimo podemos ver toda existência e alguns podem transformá-la em uma obra de arte que comunica a eternidade. Tempo que faz dos homens seres enormes, porque ocupam no Tempo um lugar desmesurado, e porque podem tocar simultaneamente, pela memória, todas as épocas de suas vidas, mesmo que estas épocas estejam muito distantes no tempo. Assim, o romance de Proust termina da mesma forma que começou: sobre o tempo.
46 RICOEUR, Tempo e Narrativa II, p. 41. 47 RICOEUR, p. 138. 48 T.R., p. 291.
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4. Um acorde essencial entre Bergson e Proust: o tempo como duração Para Bergson um filósofo jamais tentou dizer mais do que uma única coisa, isto é, sua intuição original que deu impulso ao conjunto de seu pensamento, que nada mais é que o esforço de exprimir por meio de palavras essa intuição original. Do mesmo modo, Proust afirma de seu lado que, os grandes literários jamais fizeram mais do que uma só obra ou, sobretudo, refletiram por meios diversos uma mesma beleza que elas trazem ao mundo. Buscando fazer um inventário dos possíveis acordos entre a teoria filosófica de Bergson e a obra romanesca de Proust, na lista de temas caros à filosofia bergsoniana, encontramos: a busca do Tempo-duração que passa e foge incessantemente e que é a própria essência da realidade; a Criação, própria de um tempo que evolui; a Memória como o próprio modo de ser da consciência; o Passado, vivido e imemorial, contido por inteiro na memória; o Eu profundo que rompe a crosta superficial de nossa personalidade social, revelando nossa duração essencial; a crítica da Inteligência que paralisa o movimento contínuo da realidade; o problema da Linguagem que não consegue expressar este movimento essencial, sem deformá-lo; a sugestão da Arte como paradigma da filosofia para expressar o fundamento último da realidade: a duração; a Metáfora como modo de expressão da mudança e da duração. Correspondentemente, podemos observar na lista dos temas do romance proustiano: o papel essencial do Tempo que tem nele sua forma e matéria; a Criação e a transformações que o tempo ocasiona nos seres, em suas visões e associações; a Memória como forma de acesso ao tempo vivido; o Passado que revela o significado essencial das coisas; o Eu Profundo e o olhar introspectivo das profundezas da consciência do indivíduo na qual estão as verdades essenciais da vida; os limites da Inteligência que restrita à ação e à exterioridade é incapaz de recuperar o tempo perdido; o jorrar de uma Linguagem e de um estilo que seguem o fluxo fugaz da realidade interior, expressa em uma narração que se utiliza quase excessivamente de metáforas e imagens; a Arte como única forma de eternizar a vida temporal fugitiva; o uso constante de Metáforas para comunicar a essência do tempo e das coisas. Dentre tantos acordos possíveis existe um que é essencial: a duração, tema central do pensamento de Bergson e assunto da obra de Proust. Segundo Tenório, a duração é o problema proustiano por excelência.49 Proust fala em duração: “a duração da vida”, “a duração do tempo”, “duração de lembranças” “período de duração”;50 e em sua obra podemos encontrar muitas expressões tipicamente bergsonianas, mas a duração é a mais importante delas. Para Bergson a duração é a própria essência da realidade. O real, para Bergson, é “o fluxo, é a continuidade de transição, é a mudança ela mesma. Esta mudança é indivisível, e mesmo substancial. O que há é um progresso ininterrupto de mudança – uma mudança sempre aderente a si mesma numa duração que se alonga sem fim”.51 Neste sentido, a realidade é entendida como temporal, pois o tempo é aquilo que passa incessantemente e, portanto, dura essencialmente, tanto para Bergson quanto para Proust. 49 “A duração, é o que há de mais problemático em Proust. Vocês certamente não ignoram que ela é o problema proustiano por excelência”, MOTTA, p. 443. 50 T.R., “A recepção da Princesa de Guermantes”. 51 P.M., p.104.
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Entre a filosofia de Bergson e a literatura de Proust, existem acordes e dissonâncias, usando a metáfora musical52 de Delattre, ou seja, existem acordos e desacordos. Poderíamos dizer, de forma mais imprópria, porque dito por meio de uma metáfora espacial, que existem proximidades e distâncias entre os dois autores. Portanto, não há um paralelismo perfeito: Proust não é uma aplicação literária da teoria bergsoniana, seria simplista demais pensar assim, além de ser uma desconsideração à originalidade e genialidade de Proust. Dessa maneira, para quem já leu Bergson, percorrer o universo proustiano de seu romance é deparar-se com analogias flagrantes e, também, com espantosas contradições. Todavia, se atentarmos aos acordos existentes entre ambos, muitos podem ser os acordes entre Bergson e Proust para um ouvinte habituado à melodia bergsoniana. Entretanto, é no tema central, o mesmo para ambos, que encontramos o maior acordo; o tempo. Não um tempo comum e vulgar, mas o tempo como duração, criador da vida e da arte.
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* Regina Rossetti é Doutora com pós-doutorado em Filosofia pela USP, professora na Universidade Imes e pesquisadora do NECI – Núcleo de Estudos em Comunicação e Inovação.
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Eu sublimo, tu sublimas… eles sublimam a sublimação freudiana em questão Maria Vilela Pinto Nakasu*
Resumo: Devido à complexidade da concepção de sublimação, o fato de ela não ter ganho um tratamento especial e não ter sido sistematizada ao longo de toda produção de Freud, inúmeros são os mal-entendidos que deixa entrever a apreensão desta noção. Ora a sublimação é considerada um destino da pulsão sexual, ora uma modalidade de defesa, ora um meio de gratificação do homem civilizado, ora a condição dos vínculos de identificação. No entanto, é em torno da confusa relação que Freud estabelece entre sublimação, arte e ciência que este trabalho se situa. Trata-se, mais precisamente, de argumentar em favor da idéia de que a sublimação não é privilégio de artistas e cientistas, como parece sugerir alguns textos de Freud. A sublimação é mais democrática do que parece. O critério valorativo inerente à definição de sublimação será igualmente discutido. Palavras-chave: Freud, sublimação, arte e ciência I Sublimate, you sublimate, ... they sublimate: an analysis of the Freudian Sublimation theses Abstract: Due to the complexity of the idea of sublimation, to the fact that it has neither won special attention nor earned systematic treatment in Freud’s works, there have been numerous misunderstandings surrounding this notion. Sublimation is sometimes considered one of the goals of the sex drive; sometimes a means of defense; sometimes a means of satisfaction for the civilized man; sometimes a condition of the associated identification. Nevertheless, this paper centers on the confused relationship that Freud establishes between sublimation, art and science. It deals particularly with the argument in favor of the idea that the sublimation is not peculiar to artists and scientists, as some of Freud’s texts may imply. Sublimation is more democratic than it seems. The value criteria attached to its definition is also discussed. keywords: Freud, Sublimation, Art and Science
Introdução Certamente o conceito de sublimação não teve um tratamento especial como outros conceitos metapsicológicos, tais como a repressão, o narcisismo, o inconsciente ou o superego. Não se trata, aqui, de especular sobre as razões pelas quais Freud não concedeu à sublimação um lugar de destaque na construção do seu edifício teórico; mesmo porque, se é verdade que um dos trabalhos metapsicológicos perdidos foi dedicado à sublimação,
talvez esse empenho tenha sido feito. De qualquer modo, são numerosas as passagens na obra freudiana as quais a sublimação aparece. Mas é certo e consensual entre os comentadores que seu sentido vem sempre acompanhado de um caráter ambíguo e confuso. É de Laplanche (1989) a afirmação de a sublimação é uma das cruzes da psicanálise, em todos os sentidos do termo, enquanto ponto de convergência e de cruzamento. A história da sublimação na obra de Freud é confusa. Do início ao fim a sublimação será mais citada do que desenvolvida ou analisada. Além de apresentar o primeiro modelo de funcionamento do aparelho mental, A interpretação dos sonhos (1900) propõe um método de interpretação para os fenômenos normais, patológicos e culturais. O método freudiano da interpretação dos sonhos é paradigmático pelo fato de o sonho representar um desejo infantil e implicar o fenômeno da regressão. O sonho marca a regressão do aparelho psíquico no tríplice sentido formal: de retorno à imagem, cronológico; de retorno à infância, tópico; de retorno ao curto-circuito do desejo e do prazer, segundo o tipo de satisfação alucinatória chamado processo primário. Assim o sonho nos dá acesso ao fenômeno da regressão. (RICOEUR, 1977, p. 139)
A obra de arte significaria uma espécie de sonho compartilhado, um sonho conscientemente produzido, um processo deliberado que mostra os conteúdos internos do artista. Sabemos, aliás, que não importa se o conteúdo representado foi vivido ou fantasiado, se o artista pensou consciente ou inconscientemente: a interpretação psicanalítica repousa sobre a realidade psíquica do artista, do mesmo modo que se apóia sobre a realidade psíquica do neurótico ou do sujeito que sonha. O estudo dos chistes permitiu a Freud (1901) reunir elementos para evidenciar alguns aspectos relevantes da sublimação. As principais características de numerosos processos mentais aparentemente sem relação, como os sonhos, os sintomas, os lapsos e os chistes, reaparecem nos mecanismos da criação artística. Tais processos encontram-se em íntima relação com a fantasia, com a realização de desejos inconscientes, e com a reanimação de recordações infantis. Se o sonho é considerado uma “quase obra”, o chiste aparece como uma “mini-obra literária”, pois dele Freud extrai o modelo do prazer estético que inclui o tipo de prazer preliminar. O prazer sentido nas piadas será da mesma ordem do gozo genuíno da obra poética: ambos provêm da liberação de tensões no interior do psiquismo e da economia no gasto psíquico.1 Os chistes e sua relação com o inconsciente (1901) tem o mérito de ampliar a reflexão das experiências circunscritas ao plano individual – sonho, lapso, sintoma e lembranças encobridoras – para as experiências coletivas que implicam uma relação de alteridade. Tal ampliação resulta na elaboração de uma 1 […] o chiste é, por seu turno, uma forma elaborada de jogo que tem sucesso em driblar a proibição; as repetições ecolálicas e as combinações absurdas adquirem, com o gracejo, um determinado formato de modo que, frente à faculdade crítica, passam a ter um sentido qualquer, sendo assim permitidos. O universo do gracejo coincidirá com o dos chistes “inocentes” ou não tendenciosos, cujos exemplos maiores são o trocadilho e o nonsense. O que se revela assim, através do gracejo, são as técnicas ou as formas verbais dos chistes, as fontes a partir das quais os chistes propriamente ditos – os chistes “tendenciosos” – fornecem prazer. A função exclusiva dos jogos e dos gracejos é, portanto, a produção de prazer. (KUPERMANN, 2003, p. 47)
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teoria estética que postula as modalidades de prazer envolvidas na experiência estética e no trabalho artístico. (FREUD, 1901) A arte configura, na obra de Freud, o paradigma da sublimação, pois esclarece os processos por meio dos quais é operada a transformação dos conteúdos internos, de teor sexual e infantil, em atividades humanas distantes da finalidade sexual e valorizadas socialmente. A investigação freudiana da arte enriquece o conceito de sublimação ao trazer os elementos que evidenciam a fonte de onde a sublimação extrai seus conteúdos – complexos, fantasias e desejos recalcados - e a técnica de transformação de tais conteúdos em obra de arte. Embora a criação artística ocupe um espaço significativamente maior na reflexão de Freud que a elaboração científica, a ciência é situada ao lado das artes, outra atividade sublimatória por excelência. Muitas são as passagens na obra freudiana diante das quais o leitor tem a sensação de que somente os artistas e cientistas são capazes de sublimar suas pulsões. Como se a sublimação se restringisse às expressões artísticas e científicas, expressões “elevadas culturalmente”, às quais as pulsões originalmente sexuais e destrutivas, desviadas de suas finalidades, seriam conduzidas. Um exame atento dos principais textos de Freud sobre a sublimação mostra, contudo, que sublimar é uma operação universal, presente em todos os indivíduos com algumas variações, mas fundamental para o bom funcionamento do aparelho psíquico. O presente trabalho se propõe a desfazer alguns mal-entendidos em torno da complexa relação que Freud estabelece entre sublimação, arte e ciência, à qual tem gerado inúmeras controvérsias entre psicanalistas, críticos literários e filósofos. Mais
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precisamente, pretende-se sustentar que apesar de a sublimação estar presente na produção artística e na investigação científica, ela é, em primeiro lugar, mais democrática do que parece, pode estender-se até mesmo ao ócio, ao lazer e ao trabalho. Em segundo lugar, argumentaremos que o critério valorativo é apenas aparentemente dependente da definição de sublimação e que, na verdade, ele pode ser repensado a partir de algumas considerações extraídas da análise de textos freudianos.
Leonardo da Vinci: a sublimação em foco Uma recordação infantil de Leonardo da Vinci (1910) tem o mérito de explicitar a relação entre neurose e sublimação e as variáveis que resultam na formação da neurose e de dons artísticos. Sua hipótese principal é a de que Leonardo se tornara sexualmente inativo ou homossexual depois de haver convertido sua sexualidade infantil numa pulsão de saber. Circunstâncias acidentais de sua infância teriam exercido um profundo efeito perturbador: seu nascimento ilegítimo o subtraiu, até o quinto ano, da influência do pai, deixando-o livre para uma terna sedução de uma mãe de quem ele é o único consolo. Devido a sua constituição psíquica sexual, Leonardo era dotado de uma quota particularmente intensa da pulsão de investigar; pulsão sobre a qual Freud se apóia para situar o conceito de sublimação. (FREUD, 1910) O período da investigação sexual infantil de Leonardo inicia-se por volta do terceiro ano de vida, período geralmente marcado pelo nascimento do irmão, que ameaça seus interesses egoístas. Como um meio de evitar a perda de seu “trono”, Leonardo investiga a origem das crianças, mas como sua constituição sexual não o permite engendrar filhos ele abandona a investigação e reprime seu anseio de saber. A pulsão de investigar, segundo Freud (1910) poderia seguir três direções: ser reprimida e resultar em uma fraqueza intelectual duradoura, reforçada pela iniciação religiosa; ser reprimida e originar a sexualização do pensar, fruto de uma operação em que a inteligência se fortalece e vence a repressão, fazendo que a investigação sexual regresse do inconsciente como compulsão, desfigurada, mas potente o suficiente para gerar a angústia típica dos processos compulsivos; finalmente, no terceiro destino da pulsão de investigar, “raro e perfeito” nas palavras de Freud, do qual Leonardo figurava um exemplo paradigmático, […] a repressão do sexual não consegue conduzir para o inconsciente uma pulsão parcial do prazer sexual, mas a libido escapa ao destino da repressão sublimando-se desde o início em um apetite de saber e somando-se como reforço a uma vigorosa pulsão de investigar. (FREUD, 1910, p. 75)
Devido a essa especial aptidão para a sublimação, reforçada pela pulsão de investigar, na puberdade – período em que a excitação sexual se potencializa – ao invés de se tornar neurótico, Leonardo submete suas pulsões à “segunda sublimação das pulsões eróticas”, operação que resulta no seu interesse e habilidade como artista. Ao invés do retorno do reprimido ocorre a sublimação. A identificação com a figura materna após a repressão de suas fantasias edipianas favorece uma escolha objetal de tipo narcísico, e uma orientação de sua libido para a homossexualidade. No entanto, no inconsciente se conserva a fixação à mãe e as recordações beatíficas dos carinhos dela, as quais Mona Lisa
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e Santa Ana, a virgem e a criança parece aludir. Para ressarcir-se da falta do marido e para ressarcir Leonardo de não ter pai, Freud (1910) supõe que a mãe o acariciava, tomando o filho como substituto do marido. Santa Ana ocultaria justamente a imagem reprimida dos lábios ternos de sua mãe. A análise de Leonardo da Vinci fornece um exemplo de uma sublimação bem-sucedida. No nível manifesto, o que caracteriza o destino via sublimação seria a capacidade do indivíduo de se interessar por temas outros, distintos dos objetos iniciais da investigação infantil. (MEZAN, 1997) Nesse sentido, a sublimação envolveria a transformação da sua finalidade pulsional: ao investir em atividades socialmente mais valorizadas, a pulsão sexual renuncia à satisfação direta para despender sua energia em atividades que, embora sob a interpretação se revelem como substitutos daquela, consistem precisamente em substitutos dela, e não em rodeios para atingi-la de modo neurótico. Na operação sublimatória não há retorno do reprimido nem repressão propriamente dita da libido, a pulsão sexual escapa à repressão, culminando em um tipo de investimento libidinal sobre objetos que substituem o conteúdo reprimido. Isto implica a aceitação do princípio de realidade, já que todos os objetos e atividades que envolvem esse destino da libido só existem fora do psiquismo. Mas não é apenas a pulsão que é referida como objeto da sublimação, a imago de pessoas significativas também pode aparecer nos conteúdos representacionais sublimados, como a figura de Deus e da Natureza. Ouçamos Freud (1917, p. 125): “O Deus todo-poderoso e a Natureza bondosa aparecem-nos como […] sublimações do pai e da mãe, ou melhor, como reminiscência e restaurações das idéias infantis sobre os mesmos”.
A arte e a ciência e suas relações com a sublimação As análises das peças, das esculturas e narrativas literárias levadas a cabo por Freud, como a de Leonardo, revelam jogos de forças das pulsões sexuais e destrutivas, e os grandes complexos em torno do qual esses jogos se dão privilegiadamente: o complexo de Édipo e o complexo de castração. Tais são os complexos, por assim dizer, sublimados pelos artistas. Em uma breve retrospectiva da análise freudiana da arte – de textos literários, peças teatrais, obras de arte, etc. – evidenciaremos, aqui, os conteúdos salientados por Freud que teriam sido sublimados mediante a criação artística. A fantasia de Hanold, na leitura de “Gradiva…”, por exemplo, é situada como uma luta entre conteúdos eróticos reprimidos e a força da resistência que os impede de se tornarem conscientes. Ao mesmo tempo, Hanold representava para Zoé – sua amiga – o substituto do pai. A chave para compreender a personalidade de Leonardo da Vinci, como vimos, é a investigação do desenvolvimento de sua sexualidade infantil e a travessia pelo complexo de Édipo. Para compreender a vida infantil de Goethe, Freud parte da rivalidade com o irmãozinho pelo amor integral da mãe e, diante de Moisés de Michelangelo ele muda de direção: da pulsão sexual como fonte dos conflitos para o componente destrutivo da pulsão e seu incremento em um superego tirânico: Moisés consegue controlar sua raiva e renunciar à expressão de sua agressividade sobre o povo judeu. Ricardo III, de Shakespeare, sente-se no direito de praticar o mal, pois acredita ser “exceção”, que a natureza e o destino afrontaram seu narcisismo desde muito cedo. Em um caso, a pulsão destrutiva é reprimida; no outro, é exteriorizada sob o império de uma consciência moral
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violenta. Os vestígios da pulsão de morte continuam em evidência na interpretação de Rosmersholm, de Ibsen, que descreve as maldades de Rebecca para conseguir se casar com o pastor Rosmer. Este período da produção estética freudiana tem como temática principal os efeitos da consciência moral e sua relação com as pulsões destrutivas. Na leitura de Macbeth, de Shakespeare, reaparece o ódio e a culpa de Rebecca, mas desta vez divididos em duas personagens: Macbeth e Lady Macbeth, que ficam doentes após assassinarem Duncan, o rei da Escócia, e ocuparem o seu lugar. Em Dostoievski e o parricídio, Freud investiga o destino de sua pulsão mortífera que, em parte é exteriorizada como traços sádicos, e em parte direcionada contra o próprio ego originando um funcionamento masoquista e culpabilizador. A interpretação é, no entanto, igualmente interpretação do complexo de Édipo, dos impulsos parricidas de Dostoievski. A mesma equação repete-se na resumida interpretação de Édipo Rei, Hamlet, e Vinte e quatro horas na vida de uma mulher. Na lenda de Édipo, os desejos edipianos aparecem na sua expressão mais transparente; em Hamlet, na sua expressão indireta. Na novela de Zweig eles aparecem na relação mãe e filho. E na relação de Christoph Haizmann com o Diabo não é senão de forma oculta que ele está presente. Finalmente, O Homem de Areia revela o complexo de castração e as faces boas e más da figura paterna. Este são, por assim dizer, “os metais puros” das interpretações de Freud.2 O que estamos chamando de “metal puro” é a matéria-prima da criação artística e do processo de sublimação. Enquanto o psicanalista conhece a alma do homem observando o outro, o artista olha para dentro de si, para o próprio inconsciente, e submete suas fantasias a um tratamento deformador análogo aos processos da elaboração onírica sobre o pensamento onírico latente do sonho. Apenas de forma alusiva o espectador identificará as fantasias. O artista sublima o conteúdo dos seus complexos e os 2 Convém observar que a mudança de direção da revelação de conteúdos sexuais para conteúdos agressivos sugerida por nós é harmônica com o movimento da teorização freudiana de considerar cada vez mais fortemente as diversas expressões da pulsão de morte, inclusive na participação da severidade do superego.
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exterioriza, ultrapassando as barreiras psíquicas impostas pela censura. Em Caracteres psicopáticos no cenário, (1906) a técnica do prazer estético é apoiada na desfiguração, nos deslocamentos, nas condensações, nas insinuações, nas divisões do eu do personagem, na transformação para o contrário, no simbolismo, nas mesmas operações inconscientes presentes na formação dos sonhos. Estamos falando, nas palavras de Loureiro, (1994, p. 114) nos “dotes artísticos”, isto é, “na habilidade em elaborar/deformar os conteúdos inconscientes de modo a torná-los menos repulsivos”. Se não passarem pelo processo de maquiação, tais conteúdos não favorecerão a obtenção de prazer, mas sensações de nojo, raiva e repulsa. A sublimação parece ter, portanto, uma via de mão dupla no processo de criação artística. Está presente no artista, no momento em que ele representa seus conteúdos mais arcaicos em uma obra, e no processo de fruição artística em curso no espectador. Nele é operada uma espécie de vivencia catártica. Do aspecto formal da obra, ele obtém a primeira gratificação. Somada a essa gratificação, ele sente um prazer mais forte, que mobiliza maior quantidade de afeto. Tem-se, assim, a economia da despesa psíquica mediante a suspensão das resistências e a conseqüente liberação de conteúdos reprimidos. A percepção de tais conteúdos pode não ser consciente, mas, de qualquer maneira, o desejo é liberado das forças da repressão e escoado. Ao ativar em alguma medida esses complexos, o artista determinaria uma condição do gozo para o espectador; e seria justamente esta condição que o aproximaria do neurótico. Loureiro (1994, p. 93) atenta para uma espécie de prazer positivo favorecido pela arte. A seu ver, “o prazer estético é “improdutivo”, “inútil”, mas ao mesmo tempo pode-se dizer que não há gratuidade alguma na fruição estética, o prazer ‘desinteressado’ obtido com ela é importantíssimo para a manutenção do bom funcionamento mental”. Em relação à economia psíquica em jogo nas investigações científicas, Sobre um tipo particular de eleição de objeto no homem (1910) fornece-nos algumas pistas. Esta economia favoreceria menor obtenção de prazer do que as produções artísticas, em contrapartida, possuiriam maior valor cognoscível. Os artistas, atados à condição de obter prazer intelectual e estético, não poderiam representar tal qual o material da realidade: isolariam fragmentos dela, dissolveriam os nexos perturbadores, introduziriam novos elementos no conjunto da criação e substituiriam o que falta. Em relação às artes, Freud (1910, p. 159) considera as mãos da ciência mais toscas. Ele se explica: “É que a ciência implica o mais completo abandono do princípio do prazer de que é capaz nosso processo psíquico”. Observação número um: tendo em vista que a arte e a ciência são descritas como atividades sublimatórias por excelência, a sublimação favorece tanto uma grande obtenção de prazer – caso da arte – como uma obtenção de prazer menos expressiva – caso da ciência. Observação número dois: os textos da década de dez voltados à reflexão das produções artísticas elegem a arte como paradigma da sublimação. Observação número três, a arte e a ciência são atividades por meio das quais se mergulha em dois domínios, o domínio do inconsciente e o domínio da realidade. O poeta dispõe de uma sensibilidade fina para revelar o mundo da fantasia, das forças psíquicas inconscientes. O cientista também envereda pelo mundo exterior. “Leonardo dissecava cadáveres e seres humanos, construía aparelhos de voar, estudava a nutrição das plantas e sua reação frente a alguns venenos”. (FREUD, 1910, p. 61) Se depende do total abandono do princípio do prazer, é no domínio do princípio da realidade que a ciência opera. Tal princípio, como revela Freud em Formulações sobre
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os dois princípios do trabalho psíquico (1911), retarda a obtenção imediata de prazer em nome de um prazer mais seguro. Inclui as funções da memória e do juízo, opera com a energia ligada e com as funções do pensamento, que possibilitam ao aparelho suportar quantidades de estímulos elevados sem recorrer à descarga imediata. A religião tenta subordinar o princípio do prazer ao princípio de realidade, mas fracassa. “A ciência foi a primeira a conseguir este triunfo, […] ela oferece um prazer intelectual e promete uma obtenção prática ao final”. (FREUD, 1911, p. 229) O cientista seria dotado de particular aptidão à investigação e extrairia prazer dos seus processos de pensamento.
Para uma metapsicologia da sublimação: o estatuto do “valorizado socialmente” Baseando-se na pré-história do termo sublimação, Anzieu (1992, p. 12) remonta sua origem à noção de purificação espiritual. Este termo encontra-se, por uma derivação metafórica muito anterior à psicanálise, transposto para o domínio da purificação moral. A pulsão sexual se livra de seus componentes biológicos ligados à reprodução da espécie por visar alvos elevados na ordem estética, intelectual, religiosa, ou seja, alvos habitualmente qualificados de sublimes.3
O conceito freudiano de sublimação parece encontrar ressonâncias na antiga noção de purificação moral. Aos olhos da sociedade, as perversões e outras formas que assumem as pulsões parciais são consideradas bestialidades humanas ou “degenerações no sentido patético da palavra”. (ANZIEU, 1992, p. 12) Ao transformar a bestialidade em virtude, a sublimação livraria e desembaraçaria a pulsão de substâncias que as tornam depreciadas. Nesse sentido, ela purificaria as pulsões associais tornando-as virtudes socialmente valorizadas. Uma das particularidades de O mal-estar na civilização (1930) é inserir a discussão da sublimação no âmbito da cultura, esclarecendo alguns pontos até o momento obscuros. A sublimação aparece como uma técnica de defesa contra o sofrimento pelo fato de promover deslocamentos libidinais e de produzir tipos de satisfação aceitos pelo mundo exterior. Partindo da hipótese econômica que atribui à sublimação a obtenção de um tipo de prazer, Freud retoma a discussão de A moral sexual civilizada e o nervosismo moderno e do trabalho sobre o Leonardo e precisa a maneira pela qual a elevação da obtenção de prazer aparece na cultura. A sublimação potencializaria o prazer favorecido 3 O autor observa, por exemplo, que em química a sublimação designa a operação por meio da qual um corpo sólido transforma-se em vapor. O termo também aparece na obra de Victor Hugo, Novalis, Schopenhauer e Nietzsche. Para este último, diz Anzieu (1992), a sublimação resulta da “inibição” – que Freud chamará recalcamento – e aplica-se igualmente bem às pulsões agressivas e sexuais – enquanto que Freud falará apenas destas últimas. Mesmo sob as formas mais sublimadas, as pulsões se manteriam, segundo Nietzsche, reconhecíveis. “Como Lou Andréas-Salomé dirá, mais tarde, a Freud, há uma semelhança entre o resultado feliz de uma psicanálise e o super-homem nietzscheano, que superou e sublimou o conflito entre suas pulsões e a moral convencional, fonte da humilhação e do ressentimento, que se tornou interiormente livre, e que, erigindo sua própria escala de valores e sua própria moral se situa além do bem e do mal”. (ANZIEU, 1992, p. 12)
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por dois tipos de realizações consideradas supremas pelo autor: o trabalho artístico e o trabalho intelectual. Freud traz a discussão para o plano cultural: Satisfações como a alegria do artista no ato de criar, de personificar – ou corporificar – os produtos de sua fantasia, ou como a que procura o investigador a solução de problemas e o conhecimento da verdade, possuem uma qualidade particular que, por certo, algum dia poderemos caracterizar metapsicologicamente. Por ora, só podemos dizer, de modo figurado, que nos parecem “mais finas e superiores.4
O movimento oscilatório em relação ao alcance da sublimação, entre descrevê-la como uma capacidade universal ou restrita a uma minoria está sempre presente nos trabalhos de Freud sobre esta noção. A passagem de O mal-estar na civilização insinua que a sublimação favoreceria a experiência de sensações “mais finas e superiores”, às quais o investigador ou o artista poderiam aceder. Nesse sentido, reforça a hipótese da sublimação como uma operação circunscrita a poucos. Se tomada ao pé da letra, esta idéia pode dar margem a equívocos. Freud parece querer dizer que poucos possuem a aptidão “completa” para a sublimação, a “autêntica” sublimação, em suas palavras, a obtenção de um estado intenso de felicidade propiciado pelas atividades artísticas e intelectuais. O que não significa que essa operação se restrinja ao círculo dos artistas e dos intelectuais nem, tampouco, que ela não possa produzir uma elevação na obtenção de prazer em atividades variadas, em menor grau, dependendo da disposição pulsional de cada um. Se acompanharmos a genealogia da concepção freudiana de sublimação nos trabalhos teóricos e metapsicológicos de Freud, compreenderemos a sublimação como uma aptidão universal. Na 32a das Novas conferências de introdução à psicanálise (1933) é retomada a definição de pulsão e a idéia apresentada nos Dois artigos de enciclopédia: “Psicanálise” e “Teoria da libido” (1923) em relação à mudança de via do objeto pulsional: “Distinguimos com o nome de sublimação certa classe de modificação da meta e mudança de via do objeto na qual intervém nossa valoração social”.5 O fato de a sublimação aparecer associada à mudança de objeto e não apenas ao desvio da meta pulsional reafirma a opção de Freud de ampliar a teoria da sublimação, agregando à sua definição os elementos do campo das atividades ditas sublimadas, que inclui os tipos de objetos por meio dos quais esta operação é consumada. A origem da sublimação é remontada ao período de latência, no qual a energia sexual é empregada para outros fins, distintos dos sexuais. Ao lado da repressão e da formação reativa, a sublimação é caracterizada como um mecanismo de reação ou contra-força voltado para a eliminação de sensações de desprazer. Porém, não confundamos sublimação com repressão e formação reativa. São operações distintas. A par de terem em comum o fato de serem formas de reação ao sentimento de desprazer produzido pela satisfação das moções perversas, e nesse sentido são consideradas mecanismos de defesa, diferem em outros aspectos. A tarefa da sublimação é drenar as excitações hiperintensas que se originam das diversas fontes da sexualidade e empregá-las em outros campos, tornando a disposição em si perigosa em um incremento da capacidade 4 S. Freud, O mal-estar na civilização (1930), AE XXI, 1989, p. 80. 5 32a das Novas de introdução à psicanálise - “Angústia e vida pulsional”, AE XXII, p. 124.
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de rendimento psíquico. Ao canalizar os componentes sexuais do período de latência em sentimentos qualificados “sociais”, ela evita que desta energia sejam produzidos formações repetitivas e neuróticas. (FREUD, 1905) Notemos que as pulsões parciais de maneira geral - entre elas a pulsão de ver - compõem a “matéria-prima”, digamos assim, da operação sublimatória. A proporção de capacidade de rendimento psíquico, de perversão e neurose variaria de pessoa para pessoa. A sublimação participaria da formação de caráter, já que este seria construído em boa parte com o material das pulsões associais e perversas.6 Nos Três ensaios da teoria sexual (1905), ela é considerada uma função do eu, fundamental para o bom funcionamento do aparelho psíquico. Seu aspecto profilático reside precisamente sobre sua capacidade de escapar ao recalque e destinar parcelas significativas da pulsão sexual para atividades sociais, evitando, com isso, a produção de formações repetitivas e neuróticas. Na verdade, as pulsões, a fantasias, as lembranças e tudo que envolve conteúdos de alguma forma repreensíveis podem ser desviados de suas finalidades originais pela sublimação.7 Gonçalves (2004, p. 101) opina que a capacidade de sublimação para atividades artísticas é considerada, por Freud, um dom especial decorrente da herança biológica, um fator alheio à psicanálise, e, por isto, uma possibilidade de sublimação aberta apenas para os indivíduos que possuem tais talentos.
A nosso ver o fator biológico não é o único que prevalece. Como operação atuante em artistas e não artistas, cientistas e não cientistas, quanto mais plástica e móvel for a pulsão, quanto menos ela se fixar com particular tenacidade sobre os objetos, mais disponível estará para ser sublimada. É a constituição psíquica sexual de cada um que definirá a plasticidade e a capacidade de deslocamento pulsional. Somam-se a isso os aspectos disposicionais - tanto biológicos como resultantes das experiências infantis -, os fatores socioculturais, envolvendo a repressão da sexualidade e o desenvolvimento da civilização, e finalmente os fatores atuais ligados à intercorrências orgânicas ou acidentais na vida do indivíduo. A respeito da aptidão máxima a sublimar podemos afirmar, primeiro, que ela inclui uma quota significativa de pulsões pré-genitais cuja plasticidade permite a aquisição de metas secundárias que podem resultar, por exemplo, na intensificação das pulsões de saber. (FREUD, 1905) Em segundo lugar, a aptidão máxima a sublimar implica um processo de resgate das fantasias reprimidas em um tratamento que lhes permite serem representadas; vale frisar que a condição para isso é o mergulho da pessoa no mundo da fantasia e o retorno para a realidade. Se a saída é delirante, entramos no campo da psicose e saímos do campo das artes. O produto do processo sublimatório envolve a pulsão dessexualizada em 6 Em uma passagem de um artigo de 1913, O interesse pela psicanálise (1913), a mesma idéia é encontrada: “A psicanálise pode ensinar quão valiosas contribuições à formação do caráter prestam as pulsões associais e perversas da criança quando não são submetidas à repressão, mas afastadas de suas metas originárias e dirigidas a metas mais valiosas, em virtude do processo da chamada ‘sublimação’”. S. Freud, O interesse pela psicanálise (1913), AE XI, 1989, p. 192. 7 A terminologia empregada por Freud desde 1920 para designar a passagem de uma meta sexual a uma meta não sexual é diversificada, mas “[…] a insistência de Freud parece se focalizar principalmente sobre a inibição (Hemmung), o desvio (Ablenkung) e o abandono (Aufgeben) da meta”. (PORRET, 1994, p. 60)
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sua finalidade e um novo modo de satisfação pulsional com uma mudança de valor diante da censura. (FREUD, 1915) Trata-se de uma mudança para um valor positivo, que caracteriza o sublime, e, como observa Gonçalves (2004), é definida por Freud com qualificativos da ordem de “psicológica e socialmente irrepreensíveis”, “fins mais distantes da sexualidade e de maior valor social”, “enobrecimento”, “dignificação”, “moderação”, “restaurações das idéias infantis”, “aceitável”, “mais elevados”, “mais altamente valorizados”, etc. Embora a arte seja considerada o paradigma da sublimação, oferecendo as evidências do mecanismo sublimatório, as formas de obtenção de prazer mediante objetos não sexuais, etc, com exceção dos neuróticos e psicóticos, para Freud todos são aptos à sublimação. No entanto, na medida em que a arte oferece satisfações substitutivas compensadoras das primeiras e mais antigas renúncias impostas pela civilização ao indivíduo, ela se torna uma via de gratificação alternativa privilegiada para o homem moderno. Por meio da arte o homem experimentaria o que Freud chama de “sensações elevadas”. (FREUD, 1930) Além disso, como é indicado em O futuro de uma ilusão (1927), a arte contribuiria para a satisfação narcisista ao representar produções de uma civilização especial, fortalecendo, do mesmo modo, os ideais de uma dada coletividade. Mellor Picaut (1979) torna independente o conceito de sublimação dos chamados “valores sociais”. Em sua opinião, uma das maiores fraquezas da noção de sublimação reside em não estabelecer independência suficiente em relação à determinação sociocultural. Reconhecemos a presença de um critério valorativo na concepção de sublimação. No entanto, o sublime enquanto elevado culturalmente não corresponde, necessariamente, a uma adequação aos valores sociais. No estudo de Leonardo, por exemplo, embora a investigação científica seja qualificada de sublime e portadora de alto valor social, “[…] este valor não implica a sua aceitação pelas autoridades científicas da época, nem tampouco a adequação de Leonardo ao método científico aceito socialmente naquele momento histórico”. (GONÇALVES, 2004, p. 111) Parece-nos que a sublimação independe da idéia de adequação necessária aos valores de uma dada sociedade. Ela depende da adoção de certos valores por meio de um julgamento crítico do próprio indivíduo. Se levarmos às últimas conseqüências a idéia de que a sublimação produz tipos de satisfação aceitos pelo mundo exterior, talvez pudéssemos incluir no rol das atividades ditas sublimadas as brincadeiras, os chistes, o humor, o esporte, o ócio, o lazer e o trabalho. Atividades nas quais as pulsões sexuais e agressivas são desviadas de suas metas originais e propiciam um tipo de satisfação substitutiva, isto é, uma “válvula de escape” pulsional. Nos casos específicos das artes, dos chistes, das brincadeiras e do humor é mais clara a forma pela qual o prazer se vincula à satisfação de desejos que não podem ser satisfeitos pela realidade. Entretanto, podemos conceber a sublimação em Freud como uma operação mais democrática do que se costuma dizer por aí.
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* Maria Vilela Pinto Nakasu é Mestre e Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos. Pós-doutoranda em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Bolsista FAPESP. Dados: e-mail <marianakasu@hotmail.com>.
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