Revista Olhar nº24-25

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Ano 13. Número 24-25 (Jan-Dez/2011). São Carlos: UFSCar, 2011. Semestral ISSN 1517-0845 1. Humanidades - Periódicos. 2. Artes - Periódicos. I. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. CDU 168.522 (05)


ANO 13 – NÚMEROS 24-25 – JAN-DEZ/2011 CECH - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


Revista Olhar Ano 13 – Números 24-25 – Jan-Dez/2011 Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Administração Superior Prof. Dr. Targino de Araújo Filho Reitor Prof. Dr. Pedro Manoel Galetti Junior Vice-Reitor Profa. Dra. Wanda Hoffmann Diretora do CECH Prof. Dr. Eduardo Baioni Vice-Diretor do CECH Coordenação Editorial Editores Bento Prado Jr. (in memoriam) Josette Monzani Júlio César de Rose CONSELHO EDITORIAL Conselho Executivo Antônio Zuim – DEd (UFSCar) Clarice Cohn – DA (UFSCar) João Roberto Martins Filho – DCSo (UFSCar) Lucia Williams – DPSI (UFSCar) Marina Cardoso – DA (UFSCar) Rejane Rocha – DL (UFSCar) Richard Simanke – DFMC (UFSCar) Suzana Reck Miranda – DAC (UFSCar) Tânia Pellegrini – DL (UFSCar) Wolfgang Leo Maar – DFMC (UFSCar) Conselho Consultivo Ana Paula dos Santos Martins Arley Moreno (Unicamp) Arlindo Machado (PUC/USP) Benedito Nunes (UFPa) in memoriam Bóris Schnaiderman (USP) Bruno Pucci (UNIMEP) Carlos Alberto Ribeiro de Moura (USP) Cecília Almeida Salles (PUC) Celso Castro (FGV) Cibele Rizek (USP) Débora M. Pinto (UFSCar) Diléa Z. Manfio (UNESP – Assis) Fernando da Rocha Peres (UFBa) Fernão Ramos (Unicamp) Flavio Loureiro Chaves (UFRS) Franklin Leopoldo e Silva (USP) Gilmar de Carvalho (UFC) Haroldo de Campos (in memoriam)

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José Serralheiro (Página da Educação – Portugal) Sônia Stella Araújo Oliveira (Universidad Autônoma del Estado de Morelos – Cuernavaca/México) Vania Schittenhelm (pesquisadora – Londres) Assessores Márcia Patrizio dos Santos Mark Julian Cass Massao Hayashi Jornalista responsável Hugo Leonardo Castilho dos Reis Equipe Técnica Redator-Assistente: Hugo Leonardo Castilho dos Reis Projeto Gráfico: Vítor Massola Gonzales Lopes Editoração e Arte Final: Vítor Massola Gonzales Lopes Capa: Juliana Caldeira Monzani Impressão: Departamento de Produção Gráfica – UFSCar Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es). Permitida a reprodução parcial ou integral dos textos, desde que mencionada a fonte. Permuta e solicitação de assinaturas: CECH/UFSCar – Universidade Federal de São Carlos


Editorial

N

este número da Revista Olhar, o leitor poderá vagar entre vários artigos interdisciplinares interessantes e bastante distintos entre si: um referente à pedagogia política de Paulo Freire, outro à estereoscopia e o documentário, além daqueles que tratam do cinema enquanto instrumento pedagógico, das relações entre Foucault e a antropologia, do pensamento filosófico de Torres Garcia em comparação com seus modos de expressão plástica, da arte do documentário frente à forma ensaística e da literatura recriada pelo cinema. Irá dar seqüência à sua reflexão sobre os caminhos da instrução através da entrevista com Wolfgang Jantzen, a respeito do problema educacional dos povos indígenas, e sobre a estética cinematográfica – na sensível análise de Yi Yi; enfim, poderá navegar nos domínios da criação poética, das teorias das ciências humanas e da filosofia, no molde crítico-dialógico sempre quisto por este periódico. Completam esse quadro, os belos contos de Guto Cavalcanti (Acantiza) e Ivan Spacek, e a resenha do livro Uma certa paz, do escritor israelense Amós Oz. Que o leitor encontre aqui instrumentos para aguçar seu olhar de si e do outro neste presente que esperamos se faça, antes de tudo, pelo romper dos exílios ou o abreviar das fronteiras entre os indivíduos. Josette Monzani Júlio César de Rose

Capa: Foto de Juliana Caldeira Monzani

Mostra do templo de Amon em Luxor (antiga Tebas), visto de cima, de um balão Blog de divulgação da cultura grega antiga, arqueologia, pré-história e história antiga: http://hotelhelenico.blogspot.com/ Blog sobre história: http://sobrehist.blogspot.com


Sumário 8

Joaquín Torres García: um exemplo da influência da metafísica do belo de Schopenhauer na estética latino-americana Natalia Costa Rugnitz e Guilherme Marconi Germer

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44

La “concientización” en la pedagogía de Paulo Freire Enrique Dussel

O cinema como recurso para o estudo e prevenção da violência: um olhar crítico para Elefante Paolla Magioni Santini e Lucia Cavalcanti de Albuquerque Williams

51

A representação visual do espaço físico através do documentário estereoscópico S3D Hélio Augusto Godoy de Souza

66

O problema da fronteira com base em teoria anticolonial da educação dos povos indígenas: uma entrevista com Wolfgang Jantzen Maria Sílvia Cintra Martins

85

98

Foucault e a questão antropológica Ana Carolina Soliva Soria

Conto Ivan Spacek


100

O (des) arranjo das lembranças: notas sobre o ensaísmo fílmico em “Sem Sol” Edson Pereira da Costa Júnior

115

125

135

As representações e o real: Vidas secas, do livro ao filme Mirian Tavares

A insustentável leveza do ser em Yi-Yi Ana Catarina Pereira

Edição fac-similar celebra os cinquenta anos do suplemento paranaense “letras e/& artes” Amor e orgulho de uma geração Sylvio Back

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A condição humana entre a liberdade e o pertencer Elizângela Inocêncio Mattos

O assassino de Linda Júlia Acantiza


JOAQUÍN TORRES GARCÍA

um exemplo da influência da metafísica do belo de Schopenhauer na estética latino-americana NATALIA COSTA RUGNITZ* GUILHERME MARCONI GERMER**

Resumo: O presente artigo pretende representar uma introdução ao pensamento estético do artista plástico e escritor Joaquín Torres García (1874-1949), por meio da análise e interpretação de seu vínculo com a metafísica do belo de Arthur Schopenhauer (1788-1860). Entre as suas concordâncias, se destacarão as suas concepções da visão artística como o meio próprio do conhecimento do quê das coisas (suas essências ou Idéias), elevado por sobre a individualidade e o devir passageiro das coisas – bem como as suas reinterpretações violadoras (e veneradoras) de Platão. Quanto à distância de Torres García do alemão, se diferenciará que ele é mais artista do que filósofo e se apresenta como um militante mais ativo à transformação social de seu continente. Nossa guia e interlocutora historiográfica será a sistematização da “escola de Schopenhauer”, por D. Fazio, L. Lütkehaus e M. Kossler, diante da qual questionaremos se Torres García não exemplifica um caso de artista na periferia ou limite dessa escola. PALAVRAS-CHAVE: TORRES GARCÍA, SCHOPENHAUER, METAFÍSICA DO BELO Joaquin Torres García: an example of the influence of Schopenhauer’s metaphysics of the beautiful in Latin-American aesthetics Abstract: This article is an introduction to the aesthetic thought of the painter and writer Joaquin Torres García (1874-1949) based on the analysis and interpretation of his thought on Schopenhauer´s metaphysics of the beautiful. Among their points of agreement, emphasis is given to his conceptions of the artistic perspective as a means of grasping the essence of things, over and above their individuality and becoming, as well as his critical (and venerating) reinterpretations of Plato. With respect to the distance between Torres García and Schopenhauer, it should be pointed out that he was more of an artist than a philosopher, and saw himself as a militant for the social transformation of his continent. We establish a dialogue with the systematization of the “school of Schopenhauer” by D. Fazio, L. Lütkehaus and M. Kossler, and question whether Torres García is an example of the artist in the periphery or limit of that school. KEYWORDS: TORRES GARCÍA, SCHOPENHAUER, METAPHYSICS OF THE BEAUTIFUL


I Arthur Schopenhauer (1788-1860) é frequentemente citado pelos manuais de filosofia como um pensador “misantropo, sem voz nem seguidores”. Contudo, este preconceito foi desmentido, de modo amplo e manifesto, pelo recente livro La Scuola di Schopenhauer: Testi e contesti, de D. Fazio, L. Lütkehaus e M. Kossler. Segundo os autores, o filósofo de Frankfurt inspirou profundamente um grande grupo de intelectuais, que delimitam a sua “escola filosófica”. De acordo com esta análise, o pensador já usava este termo para se referir, de modo cômico e irônico, aos discípulos que influenciara em vida.1 Depois de sua morte, porém, os europeus contam que a expressão passou a ser usada para A. Schopenhauer, 1788-1860 designar os pensadores que, “embora não sendo discípulos diretos seus, foram inspirados por várias razões em seu pensamento e desenvolveram-no seguindo direções autônomas e às vezes originais”.2 Este segundo grupo permitiu a delimitação científico-historiográfica – mas nem por isto menos bem humorada – da “escola de Schopenhauer em sentido lato”, cujas três ramificações principais seriam: metafísicos, hereges e “pais da igreja”.3 Nessas três divisões, os autores classificam, comentam e, assim, difundem as interpretações e doutrinas de filósofos alemães que se apresentaram ou foram apresentados como schopenhauerianos.4 Deste modo, aquilo que pareceria ser uma tarefa limitada ou mesmo impossível aos manuais de filosofia dá à luz uma extensa obra de comentário e compilação de texto, que, ademais, enseja e instiga a uma exploração,

1 Entre estes, Schopenhauer destacava doze seguidores: os “discípulos” ou “apóstolos” J. Becker, A. von Doss e M. Emden, e os “evangelistas”, que “pegaram a caneta por ele”, F. Dorguth, J. Frauenstädt, E. Lindner, A. Kilzer, D. Asher, C. Bähr, W. Gwinner, C. Weigelt e G. Körber. FAZIO, D., KOSSLER, M., LÜTKEHAUS, L. La Scuola di Schopenhauer: Testi e contesti. Lecce: Pensa Multimedia, 2009, P. 16-65. 2 Idem, p. 66. 3 De acordo com os autores, entre os metafísicos se incluem os filósofos E. von Hartmann, P. Mainländer e J. Bahnsen, que, partindo do seio da filosofia schopenhaueriana, “desenvolvem muitas propostas de modificações de sua metafísica da Vontade e sua concepção pessimista de mundo” (Idem, p. 72). Entre os hereges, situam-se F. Nietzsche, P. Rée, G. Simmel e M. Horkheimer, cujos desenvolvimentos, sobretudo a partir da doutrina ética schopenhaueriana, se caracterizam menos pela lealdade e mais pela “atitude crítica e busca de autonomia e originalidade” (Idem, p. 132). E entre os “pais da igreja”, destacam-se P. Deussen, H. Zint, A. Hübscher e R. Malter, a saber, os quatro presidentes da “Schopenhauer-Gesellschaft” (Sociedade Schopenhauer) desde seu fundamento, em 1911, até 1983, quando ela, embora criada com o fim de “estimular e promover o estudo e a compreensão da filosofia de Schopenhauer”, assemelhou-se mais uma fechada comunidade religiosa. Segundo D. Fazio, “Deussen, Zint e Hübscher, antes de estudiosos, foram seguidores de Schopenhauer”, ao passo que sob a presidência de R. Malter e M. Kossler, a “Schopenhauer-Gesellschaft” passou a ser vista como “uma instituição eminentemente científica, com o objetivo principal de promover a pesquisa e (…) voltada sobretudo ao mundo universitário” (Idem, p. 189). 4 FAZIO, D., KOSSLER, M., LÜTKEHAUS, L. La Scuola di Schopenhauer: Testi e contesti. Lecce: Pensa Multimedia, 2009, p. 14.

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precisão e extensão historiográfica da “escola de Schopenhauer” sem precedentes.5 A partir deste novo horizonte hermenêutico, pode-se indagar: além do núcleo de “discípulos” circunscrito pelos europeus, de semelhante índole filosófica e compatriotas do mestre, que outras “espécies” e “gêneros” de genialidades, não menos dignas da atenção especializada, figurariam na periferia ou no limite da “escola de Schopenhauer”? A mero título de hipótese, dois “gêneros” podem ser arriscados nesta fronteira: o dos artistas e o dos cientistas.

Joaquín Torres García, 1874- 1949

No presente artigo, se buscará apresentar como uma individualidade latino-americana, absolutamente genial, representa de modo muito satisfatório um exemplo do primeiro grupo: o uruguaio Joaquin Torres García (1874-1949); em cuja renomada obra plástica, estética e metafísica destaca-se a não tão famosa – na realidade, nunca antes apontada – influência de A. Schopenhauer. Como se defenderá aqui, o caso de Torres García é paradigmático por se tratar de algo bem mais profundo do que uma mera referência a Schopenhauer: trata-se de uma adesão ao espírito da metafísica do belo do último, irredutível a um elemento acidental em sua obra plástica e, sobretudo, em sua desconhecida obra escrita. Assim, como as duas últimas são indissociáveis, mas é a segunda que melhor evidencia a comunhão de ambas as genialidades, é ela que proverá o material primário deste artigo: primeiro se comentarão, aqui, os seus aspectos gerais, depois se analisarão as suas raízes filosóficas, onde a herança schopenhaueriana será destacada, e finalmente, se retornará ao debate historiográfico da “escola de Schopenhauer” com uma argumentação provavelmente mais concreta e acurada.

5 A propósito, D. Fazio, L. Lütkehaus e M. Kossler fundaram, em 2005, um centro de pesquisa inter-universitário sobre a “escola de Schopenhauer” na Università del Salento, em Lecce / Itália.

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II Visitar a obra escrita que Torres García desenvolveu paralelamente a seu trabalho artístico é uma tarefa muito interessante, embora não por isso menos exigente e fatigante. Interessante de inúmeras maneiras, em primeiro lugar, pelo contagiante que é ser testemunha da paixão com a qual este excepcional e excêntrico personagem plasmou e defendeu as suas ideias; em seguida, pelas ideias mesmas, que apesar de possuírem profundas raízes filosóficas se esquivam de serem definidas como filosofia propriamente dita, pois se apresentam ora como insolentes provocações, ora como “verdades incontestáveis”, chocam-se umas às outras em contraditórios redemoinhos, sem que o artista-escritor sinta-se muito preocupado com isto e etc. Por outro lado, exigente e fatigante é a tarefa de interpretá-lo, porque o devir acelerado do seu pensamento parece estar constantemente impulsionado por uma galopante ansiedade de resolver os problemas que o inquietam – ansiedade essa que se desliza até o texto e o torna denso e árduo. Alheio a todo método, a toda disciplina, Torres-escritor lança mão de uma plêiade de assuntos para intentar iluminar a essência do artístico: desde a religião à psicanálise, desde as matemáticas à antropologia, salta de uma temática a outra de modos que parecem completamente caprichosos, encontrando sempre, no final, e astutamente, a via que o devolve ao tema da arte. Seus escritos são desordenados e repetitivos, sua retórica similar, em certas ocasiões, à de um pastor protestante; muitas vezes se perde em aporias insolúveis entre as suas especulações teóricas e o que lhe sussurra o seu divino “daimón” (o seu “temperamento de pintor”);6 na grande maioria dos casos não cita a fonte em nota de rodapé, ou torna suas ou despreza teorias alheias sem explicitá-lo nem justificar-se, etc. Mas se apesar disto tudo, o bom leitor é capaz de não perder o interesse – e para alguns o fascínio – por exemplo, nas 1011 páginas de sua obra magna Universalismo Constructivo (1944), provavelmente também o seja de transmutar-se a uma dimensão de sentido respeitável e digna de ser considerada com a maior seriedade, não apenas no domínio da problemática cultural latino-americana, como também no da história da arte, estética e metafísica do belo. Apresentemos, pois, a seguir, a essência da resposta do escritor a um dos problemas principais deste livro: o que é a arte?7

6 Por exemplo, quando se vê levado a sustentar, pois se segue como conclusão inevitável de suas premissas, que a arte da Grécia Clássica ou todo o Renascimento estão fora da História da Grande Arte Universal: atrocidade frente à qual ele mesmo se rebela. 7 Embora Torres Garcia tenha publicado uma enormidade de obras escritas, por exemplo, El descubrimiento de si mismo (1914), Raison et Nature (1932), La tradición del Hombre Abstracto (Doctrina Constructiva) (1938), Historia de mi vida (1939), Metafísica de la Prehistoria Indoamericana (1939), Mística de la Pintura (1947), Lo aparente y lo concreto en el Arte (1948), e etc., há consenso em que o Universalismo Constructivo (1944) seja a sua obra capital. Por isto, este livro será a fonte principal da investigação deste artigo.

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Torres García em uma exposição conjunta com os seus colegas co-fundadores da revista Cercle et Carré, primeira publicação francesa de arte abstrata, entre eles Michel Seuphor, Piet Mondrian e Hans Arp, Galeria 23, Paris, 1930

III Em Universalismo Constructivo, Torres demole várias das visões mais comuns sobre o sentido da arte: a arte não tem como propósito a realização da beleza8 – defende – nem o expressar qualquer dos elementos da vida subjetiva do artista, por mais especial que esta seja,9 tampouco o plasmar os acontecimentos relevantes de uma época,10 e muito menos o reproduzir ou imitar qualquer aspecto da realidade. A rejeição do pintor a estas estéticas é obstinada e radical: segundo o seu juízo, toda a arte da Grécia e Roma Clássicas, Pré-Renascimento, Renascimento, Naturalismo e Dadaísmo ou Superrealismo ficam “fora” do que ele louva como “el Arte de la Gran Tradición del Hombre Universal”, por se identificarem com alguma destas opções (em geral com a última). Adversativamente a todas elas, Torres defende que a finalidade da arte é “dar testemunho” ou “dar constância”.11 Para entender este enigmático ditame, é necessário meditar sobre a concepção de artista do autor: segundo ele, a arte dá testemunho de algo essencial que o artista percebe graças a um dom que lhe é dado pela natureza. O que diferencia o artista do resto dos homens é – afirma – uma “capacidade de visão” especial que lhe permite “ver” o fundamental das coisas, em outras palavras, apreender o universal no particular. 8 9 10 11

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Cfr. por exemplo TORRES GARCÍA, J., Universalismo Constructivo, Buenos Aires: Poseidón, 1944, p. 97, 269, etc. Idem. p. 25. Idem., p 279. Idem, p. 97, p. 277.

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Muito mais do que uma habilidade sensorial, esta vocação – que Torres denomina por “visão estética” – permite, por exemplo, ao pintor, captar o universal no plástico intuitivamente, adquirindo assim, sem mediação e não menos com o intelecto do que com a vista, uma “sapiência” direta do conteúdo do objeto: En Pedro o Juan ve al hombre; en María a la mujer; en cualquier perro al perro… es decir la idea de la cosa con independencia de la cosa… En tal suceso verá el bien o el mal, lo justo o lo injusto, por encima de lo que hacen los hombres… y tales objetos serán espacios blancos, rojos, negros; y serán ángulos y esferas; y verá entre todo eso formas que armonizan, que se corresponden.12

Arte Construtiva, 1943

Este “ver a ideia da coisa com independência da coisa” é o que o artista possui de modo originário. Também de modo originário – afirma Torres – o artista é afetado por uma necessidade de plasmar aquilo que lhe é revelado. A técnica que o artista adquire ou desenvolve para “transpassar” aquilo que “vê” a uma obra objetiva é, justamente, fruto desta necessidade. Para cumprir esta tarefa, a técnica deve ser capaz de incorporar à matéria, de alguma maneira, o conteúdo abstrato (nunca concreto) que constitui o universal da ideia. Neste contexto adquire sentido, para citar um exemplo, o uso da abstração figurativa como modo de expressão plástica: a pintura jamais representará um homem qualquer, em um lugar qualquer, fazendo uma coisa qualquer, mas sim que da maneira mais concisa possível sugerirá ao espectador a ideia do homem em geral (por isso o homem sem traços, sem rosto, nem especificações).

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Idem. p. 585.

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Ademais desta “norma”, Torres apresenta uma extensa lista de critérios capazes de comunicar o conteúdo ideal às obras de arte particulares, e os agrupa sob a denominação de “La Regla”: o uso da seção áurea, da quadrícula geométrica, das cores primárias, etc. Todas estas questões formais são defendidas pelo Torres-escritor de uma maneira radical e, inclusive, fanática. Mas dado que é impossível estendermos-nos aqui em sua fundamentação a cada uma delas, e que se trata, ademais, de opções estilísticas muito pessoais suas, sinalizaremos apenas que são por estas vias que se abre para a arte a possibilidade de dar testemunho. Dar testemunho é, sinteticamente, evidenciar, manifestar, revelar, oferecer provas em favor de algo. Assim, para Torres, o sentido da arte é incorporar à matéria uma forma que dê, neste sentido, constância de certa universalidade existente além do aspecto individual da coisa; universalidade à qual o criador acede por um dom e uma necessidade que lhe sobrevêm de modo inato. “En toda obra de arte superior” – argumenta o esteta – “la idea de cada objeto, más que su realidad o particularismo, es lo esencial (…) él [el artista] ve en el color y en la forma la expresión de aquella idea”.13

J. Torres García assinalando a Régra Áurea, Montevidéu, 1939

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Op. Cit, p. 190.

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Tal como é usado aqui, o termo “ideia” remete a Platão – o que Torres mesmo explicita em Lo Aparente y lo Concreto en el arte,14 onde diz: “No vamos [en tanto artistas] en busca de lo externo de las cosas, sino de la idea (en el sentido platónico)” (grifo nosso). Levando isto em consideração, a concepção torresgarciana da arte pode ser resumida, grosso modo, assim: a arte é um sítio (o sítio) onde o essencial, enquanto Ideia Platônica, se manifesta. Esta é uma teoria, de fato, surpreendente. Uma derivação da doutrina platônica que, a rigor, Platão nunca defendeu.15 O sentido e a natureza da arte repousam, precisamente, em seu ser suporte do conteúdo eidético que se esconde por trás das aparências, e que comunica o artista, que ajusta a sua criação à “Regra”. Será Torres, portanto, um mau leitor dos clássicos diálogos? Este artigo buscará mostrar precisamente que não.

IV

Arte Construtiva, 1932

Quem se submirja nos escritos publicados por Torres García com a intenção de resolver o enigma da origem desta teoria, se defrontará com a dificuldade de que existem pouquíssimas referências que indiquem as suas fontes e leituras prediletas. Nós nos encontrávamos neste ponto da investigação quando começamos a vislumbrar um laço que aproximava a sua inusitada interpretação da arte e de Platão à do filósofo alemão A. Schopenhauer. Contudo, dada a ausência de qualquer referência a esta influência nos textos dos principais comentadores do uruguaio, esta hipótese permaneceu por um longo tempo como uma mera suspeita. A sua confirmação, todavia, não tardou em chegar; veio com a visita ao arquivo do artista, no Museu Joaquín Torres García, em Montevidéu / Uruguai. Entre a enormidade de manuscritos inéditos do autor guardados ali, junto a uns pequenos fragmentos de Horácio, Píndaro e Marco Aurélio, há um grande volume de aproximadamente 300 páginas copiadas a mão pelo próprio pintor (infelizmente sem intervenções pictóricas), sob o título de El Mundo como Voluntad y Representación – a saber, a tradução espanhola do segundo tomo da obra principal do alemão, Die Welt als Wille und Vorstellung.16 O índice desta obra se encontra transcrito ali em sua totalidade por 14 TORRES GARCÍA, J. Lo Aparente y lo Concreto en el Arte, Montevideo: Centro Editor de América Latina, 1969, p. 177. 15 Se bem seja certo que a distinção entre a boa e a má arte esteja baseada na “proximidade à verdade” que cada uma deles possua, em República, jamais é estabelecida uma relação deste tipo entre a arte e as Formas. 16 Cabe destacar que, fora esta cópia, não há no arquivo nenhum livro original da biblioteca do uruguaio, o que torna o achado schopenhaueriano ainda mais especial.

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Torres. Entre os vários temas e subtemas, é possível reconhecer uma seleção feita por ele, já que muitos dos capítulos estão destacados com tinta vermelha; seleção esta que se acha copiada literalmente nas extensas páginas seguintes.17 O achado deste manuscrito foi um acontecimento bastante alentador à inédita investigação da influência do europeu sobre o latino-americano. Apresentemos, pois, resumidamente, a estrutura básica da metafísica do belo schopenhaueriana, para depois avançar nesta aproximação.

Homem Universal com peixe e relógio, 1943

V Segundo Schopenhauer, a coisa em si de Kant, incognoscível para este por excelência, é, sim, cognoscível, dado que flameja em nós imediatamente como Vontade. A autoconsciência, destarte, nos revela que a nossa própria essência, que experimentamos em 17 Pode-se resumir que a seleção de Torres García orbitou mais em torno do Livro III, dedicado à metafísica do belo, e depois do Livro IV, correspondente à metafísica dos costumes. Se encontram também outras cópias manuais dos seguintes textos: “III. La representación independiente del principio de razón; la idea platónica; el objeto de arte”, e “IV. Afirmación y negación del deseo de vivificar la voluntad que ha llegado a la conciencia de sí misma”; que pertencem, respectivamente, ao Livro III e IV. Por fim, há ainda outro pequeno núcleo de escritos sob o título “Ensayo sobre el libre albedrío”, correspondente à obra premiada de Schopenhauer Über die Freiheit des Willens, em que o problema da liberdade da vontade é abordado analiticamente.

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si, consiste em uma Vontade ou “querer” originários, que se dirigem aos mais distintos objetos e se expressam sob as mais diversas modalidades, permanecendo, porém, idênticos em todas elas. Usando o léxico schopenhaueriano, o homem é essencialmente “sujeito do querer”. Partindo desta perspectiva, Schopenhauer observa as demais coisas do mundo e conclui que também nelas se expressa esta mesma força cega, irresistível e infinita, que de um modo amplo e original ele denomina por “Vontade” ou “Vontade de viver”. Este esquema básico da metafísica schopenhaueriana é encontrado, excepcionalmente, em Universalismo Constructivo, nas seguintes palavras de Torres García: Kant llegó a la conclusión de que el “NOÚMENO”, la cosa en sí, era algo incognoscible. Pero luego, el que puede calificarse su discípulo, Arturo Schopenhauer, demostró, y bien ampliamente, que no sólo era algo que podía conocerse, sino que además era algo que conocíamos íntimamente. Y que no era otra cosa que lo que podemos llamar voluntad de vivir. Fuere, pues, en los seres organizados (animales y plantas) o en la materia inerte (inanimada) se muestra igual deseo: una fuerza, cuya manifestación en diverso grado es el mundo fenoménico, la realidad. La voluntad de vivir es, pues, la esencia de la vida.18

Em sua obstinada insistência por manifestar-se, Schopenhauer sustenta que a Vontade “torna-se mundo” objetivando-se imediatamente como Ideia (em sentido platônico) e posteriormente como os fenômenos (nos moldes do principium individuationis: tempo, espaço e causalidade). No que concerne aos fenômenos, o autor postula que eles não podem ser, em sentido estrito e platônico, objeto de conhecimento (episteme), pois “devêm sempre, nunca são e só têm um ser relativo” (“O Mundo…”, 168-9). Episteme é, para Schopenhauer, compreensão do em si, do que é, da Ideia. O “conhecimento” do fenômeno, por sua vez, se limita a porquês, ondes, quandos e comos – é relativo, portanto, além de ser inevitavelmente “interessado”, isto é, útil à Vontade e por isto vinculado, de uma maneira mais ou menos explícita, à individualidade. Disto resulta que, enquanto indivíduo, o homem conhece coisas também individuais e particulares: somente em relação a seus interesses e “ao inteiro serviço da Vontade”. Sem embargo, este não é o limite do caminho do conhecer. O conhecimento do quê das cosas é possível, defende Schopenhauer, como conhecimento da Ideia (que não pode ser apreendida como fenômeno). O que há no mundo (se é que há) de alheio e independente a toda relação, só pode ser acessível ao homem em condições especiais. O importante, aqui, é destacar que uma destas ocasiões é, para o filósofo, a experiência estética.

18 TORRES GARCÍA, J., Universalismo Constructivo…, p. 622.

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Na experiência estética ocorre um câmbio radical tanto no “modo de ver” do sujeito como no objeto visto. Em relação ao sujeito, o peculiar dessa experiência é que ela consiste numa contemplação absolutamente desprovida de interesse pessoal – nela, o desejo se apaga, o sujeito se esquece de si e se volta inteiramente àquilo que lhe é apresentado, anulando, em certo sentido, a sua singularidade. O objeto, por sua vez, se revela não em sua particularidade, mas sim essencialmente, isto é, como Ideia, de uma maneira alheia a qualquer relação com outra coisa. Quem desta posição contempla o mundo é chamado pelo autor de “puro sujeito do conhecimento”, em oposição ao “sujeito do querer”, já que se encontra completamente destituído de Vontade. O puro sujeito do conhecimento – que não é mais indivíduo - acede assim, por meio da intuição estética, ao “modo de consideração” objetivo das coisas. Todos os homens possuem, segundo Schopenhauer, a capacidade de conhecer a Ideia e de fruir o estado do puro sujeito do conhecimento. Contudo, eles não a possuem no mesmo nível: o gênio é quem a detém em grau superlativo. Desta maneira, o alemão afirma que, em seu trabalho, o gênio - ou o artista-, “retira” o objeto da torrente fenomênica e o “situa” diante de si, permitindo a penetração em seu quê; ergo, em sua Ideia. Em sua obra o artista “põe” o que vê, e deste modo a arte encontra o seu quid em ser o “meio facilitador” da Ideia. Como escreve Schopenhauer: [O artista] só contempla a Ideia e não a realidade; em sua obra, só reproduz aquela, isolando-a e omitindo toda contingência perturbadora […] [e] nos faz ver o mundo com seus olhos. O próprio do gênio […] é que sua mirada descobre o mais essencial das coisas, o que estas são em si e fora de toda relação; mas a faculdade de fazernos ver assim, de emprestar-nos a sua mirada, isto é o adquirido, a técnica da arte.19

VI Levando estas teorias em consideração, resulta bastante evidente que, ademais da “visão estética” (que remete claramente ao “olhar do gênio que descobre o essencial das coisas”), o “dar testemunho da ideia” torresgarciano se aproxima notavelmente da teoria schopenhaueriana da arte como meio facilitador: “através da obra de arte o gênio nos 19 SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Representação, SCHOPENHAUER, Arthur, El Mundo como Voluntad y Representación, Buenos Aires: Biblioteca Nueva, 1927, p. 190.

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comunica a intuição da Ideia”, defende Schopenhauer (O Mundo…, 189). Assim apesar de existirem questões metafísicas em que ambos difiram de modo irreconciliável,20 consciente e inconscientemente, fato é que Torres comunga profundamente do espírito da metafísica do belo schopenhaueriana e de seu agudo idealismo. Como se evidencia em suas seguintes palavras: Nada más ilusorio que la realidad: esto que se teje y desteje de continuo (…) Formas, aspectos, movimiento, con todo el dramatismo inherente que trae ese eterno vibrar, ese eterno desear, que es, ante todo, deseo de permanecer. Por eso hubo que buscar aquello que de todo esto pueda quedar como algo inmutable, lo que es (…) Entre esas contingencias (…) la vida no es lo que vemos y palpamos, sino algo más hondo. La existencia total de una cosa (…) está no en su existencia real y material, que será solo un aspecto, sino en la idea (…) Comprendemos, vemos, sentimos, que la IDEA TIENE VIDA PROPIA E INDEPENDIENTE, QUE LA IDEA ES (…) y de no admitirse esta vida independiente de la idea (…) tendríamos, en primer lugar, que todo es efecto de una causa anterior, y no algo existente – como yo quiero, aunque no se comprenda – por sí mismo, y no se comprende, porque todo lo vemos condicionado por el tiempo y el espacio; pero fuera de estas formas (…) tiene, por necesidad, que comprenderse de otra manera.21

E no cume de seu êxtase artístico afirma: “Supongamos – como realmente es – que todo es presente y eterno; que los huecos o separaciones entre las cosas no existen […] Pues bien: el arte (hoy como antes) ha buscado también ESO QUE ES” (as maiúsculas são do autor em todos esses casos). É verdade que este idealismo torresgarciano tem outra grande referência anterior a Schopenhauer, e já há muito reconhecida por seus comentadores: Platão. Segundo o alemão, a doutrina platônica é a primeira grande exposição do idealismo no ocidente, embora seja mais mítica do que filosófica, e consiste, resumidamente, na lição de que “o mundo que aparece nos sentidos não possui nenhum verdadeiro ser, mas apenas um incessante devir; ele é, e também não é; sua apreensão não é tanto um conhecimento mas uma ilusão”.22 Pois bem, não menos apaixonadamente do que Schopenhauer, Torres García endossa o idealismo platônico com sua constante referência à ideia, à preeminência do 20 Torres García confia, por exemplo, em uma ordem e equilíbrio na base do cosmos, enquanto Schopenhauer defende que a essência do mundo – a Vontade – é um “ímpeto cego”, sem limite e insaciavelmente autodiscordante. 21 Idem, p. 154-7. 22 Kritik der Kantischen Philosophie, p. 566. Crítica à Filosofia Kantiana, p. 527. Segundo Schopenhauer, este idealismo compõe a essência da passagem “mais importante” da obra platônica: o mito da caverna, em República VII.

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universal-abstrato sobre o real-concreto, ao ilusionismo e transitoriedade da realidade material, etc. Entretanto, no que concerne especificamente à concepção da arte, ambos os metafísicos se apartam de modo bastante significativo da doutrina do antigo. A discordância existente entre eles repousa, sobretudo, no “fato desconcertante, e, contudo, incontestável” – nas palavras de M. Heidegger – “de que a filosofia platônica (…) tenha desacreditado a arte”,23 enquanto que para Torres e Schopenhauer, a arte abre as portas ao encontro com uma realidade transcendente. A arte é “arte-verdade”, antes de qualquer outra coisa24 – afirma o uruguaio. E essa preferência inexiste em Platão, para quem as artes não são uma via privilegiada a uma tal transcendência; muito pelo contrário, em República, o grego as condena por: (1) seu caráter imitativo, “situado em terceiro lugar a partir da verdade”25 (595a-602c), (2) sua diTorres García, Paris, 1929 reta correspondência não com a melhor parte da alma, a razão, mas com as piores, a apetitiva e a irascível (602c-605c), e (3) sua capacidade de prejudicar inclusive os “homens de bem” (605c-608c). Apesar disto, Platão reserva um lugar às artes na polis ideal, pois as considera um elemento clave na educação dos cidadãos e da juventude, e sobretudo por sua capacidade de suscitar as qualidades necessárias à formação do bom caráter.26 Assim, são erradicadas da cidade, autoritariamente, apenas certas modalidades artísticas, e exilados os artistas cujas criações, de uma maneira ou de outra, induzam a falsas opiniões, propiciem disposições perniciosas, e distanciem, em geral, os pupilos do caráter nobre que neles se pretende inculcar. Neste sentido, o pensamento de Platão a respeito da arte implica duras exigências para os criadores, e todas elas subordinadas à “proximidade do belo, do verdadeiro e do bom”. Mas ainda que seja possível sustentar que Torres García, com sua defesa de que a arte deve comunicar “o que é” não deixa de estar impregnado de certo espírito platônico, o núcleo de sua 23 HEIDEGGER, M. Nietzsche. Verlag Günther Neske Pfulligen, 5ª edição, 1961, I, p.191. Apud BENOIT, H. Em busca da odisséia dialógica: a questão metodológica das temporalidades – I. Campinas/SP: Tese de livre-docência, IFCH/UNICAMP, 2004, p. 7. 24 Idem., p. 140. 25 Sócrates esclarece este argumento com o exemplo da cama: em primeiro lugar está a Ideia da cama, única, “criada por Deus” e coincidente com sua verdade (597b); depois, e baseada nela, vêm as camas criadas pelos fabricantes e utilizadas pelos usuários; e finalmente, “em terceiro lugar a partir da verdade” e com base somente nas últimas, aparece a cama imitada pelo pintor e pelo poeta (602c). 26 Sobre o papel formador do artístico, Platão escreve o seguinte: “A educação musical [que engloba todas as artes] é de suma importância dado que o ritmo e a harmonia são o que mais penetra no interior da alma e a afeta mais vigorosamente, trazendo consigo a graça, e cria a graça se a pessoa está devidamente educada, e não se não está. Ademais, aquele que foi educado musicalmente como se deve […] alabará as coisas belas, regozijando-se com elas e, acolhendo-as em sua alma, se nutrirá delas até converter-se em um homem de bem. Pelo contrário, reprovará as coisas feias – também justificadamente – e as odiará desde jovem, antes de ser capaz de alcançar a razão das coisas; mas, ao chegar à razão, aquele que foi educado do modo descrito lhe dará a boa vinda como a algo familiar” (Rep., 401d-402a).

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concepção do artístico, fundado na intenção de identificar o conhecimento das Ideias com a experiência artística, se distancia claramente deste espírito. Há em Torres uma evidente maneira de apartar-se da doutrina do grego; uma espécie de “heresia” a respeito do pensamento de Platão, que foi diagnosticada pelo seu comentador J. Fló como um caso de “platonismo anômalo” ou “platonismo de pintor”.27

Estrutura Abstrata Tubular, 1937

Esta violação, contudo, deixa de ser surpreendente, exótica e, para alguns, infundada nos anais da teoria da arte, ao se detectar que Torres endossa o platonismo de Schopenhauer – dado que esse defende explicitamente a mesma diferença em relação ao antigo, mas igualmente não deixa de venerá-lo por isto.28 A filiação platônica existe, sim, em Torres; mas o Platão ao qual ele se remete é um Platão, de certa maneira, reinterpretado

27 Com as seguintes palavras Fló apresenta esta crítica: “En los escritos del artista se produce el sincretismo entre una concepción platonizante, una fe religiosa y un sentimiento de participación en un universo regido por un orden que el arte realiza y comunica; estos diversos fundamentos fueron siempre reacios a una síntesis satisfactoria. Esa oscura doctrina de Torres García se inicia probablemente con una fe quizá confesional y se reelabora y combina con un platonismo anómalo que se puede llamar ‘platonismo de pintor’ porque le atribuye al pintor la capacidad de llegar a lo ideal desde la percepción del mundo”. FLÓ, Juan, en: Joaquín Torres García y el arte prehispánico, p. 34. 28 Embora afirme que Platão e Kant tenham sido “os dois maiores filósofos do ocidente” (Die Welt, p. 247), Schopenhauer não deixa de se opor à estética do primeiro com duras palavras: “Platão ensina (República X, 597d-598a) que o objeto cuja exposição a bela arte busca, o modelo da pintura e da poesia, não seria a Ideia, mas a coisa individual. A minha visão inteira da arte e do belo afirma justamente o contrário, e tampouco a opinião de Platão nos fará errar; na verdade, ela é a fonte de um dos maiores e mais reconhecidos erros daquele grande homem, a saber, a depreciação e rejeição da arte, em especial da poesia”. (O Mundo, p. 286). Torres García, pelo seu turno, radicaliza esta contradição ao afirmar, por um lado: “Este gran filósofo [Platão] ya tuvo evidencia de lo que debía ser el arte […] y que tantos siglos después (ahora) se comienza a realizar. Esta pintura (…) cuya total teoría exponemos, sería la pintura tal como Platón pudo concebirla” (Citado en: CÁCERES, Alfredo, Torres García: estudio psicológico y síntesis crítica, Montevideo, 1941, p. 31). Por outro lado, porém, é inegável que a sua posição artística vai além de e contra Platão, ao fixar, junto com Schopenhauer, as Ideias no domínio estético. Deste modo, não há em Torres Garcia nem platonismo estrito, como tampouco um meramente “anômalo” ou “de pintor”: há, sim, um platonismo schopenhaueriano, que não deixa de ter algo próprio por isso.

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por Schopenhauer. Afinal, é Schopenhauer quem, no século XIX, relacionou explícita e diretamente o trabalho artístico com o mundo das Formas.

Estrutura Abstrata com formas geométricas intercaladas, 1935

VII Contudo, há, naturalmente, diferenças fundamentais entre o pensamento estético de Torres García e o de Schopenhauer, que também os afastam um do outro. A primeira e mais evidente delas repousa no fato do primeiro ser indissociável e mesmo subordinado a uma prática artística prioritária, o que não ocorre com o segundo. Como importante consequência disto, tem-se que a escrita e as teorias torresgarcianas não possuem a originalidade e a fecundidade das de Schopenhauer; assim como, inversamente, a disciplinada e esmerada prática musical schopenhaueriana não alcança a transcendência artística de Torres García. Diante dessas incontornáveis diferenças, conclui-se que esse é mais artista do que filósofo, enquanto aquele é mais filósofo do que artista. Mais precisamente ainda, esse é um artista-filósofo, aquele um filósofo-artista.

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Homem Universal, 1943

Outra grande diferença entre ambos os espíritos reside no fato do latino-americano se apresentar, e ser apresentado, biográfica e conceitualmente, como um grande militante da transformação e evolução cultural – sobretudo estética – de sua sociedade, a nível continental: algo que inexistiria em Schopenhauer, ao menos, a nível de uma militância tão retórica e ativa como a de Torres García.29 No discurso do uruguaio, esta prática e cobrança 29 Para esta distinção, cabe sublinhar que, com maior ou menor êxito, Torres realizou desde seu ateliê uma militância ativa que incluiu publicação de revistas, ciclos de intermináveis conferências e etc., em favor da direção que deveria tomar a arte de seu continente, de modo a chegar a dar à luz algo autêntico e próprio. As ideias que ruminou durante toda a sua vida foram condensando-se, até o final de sua existência, ao redor do “problema” do destino da arte, e em geral, de e na cultura americana. O título completo de sua obra principal é, por exemplo, “Universalismo Constructivo, contribución al arte y la cultura de América”.

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de responsabilidade social é exposta de modo indissociável ao seu conceito de “Hombre Universal” ou “Hombre Abstracto”, a saber, o sujeito que transcende toda particularidade, se eleva sobre o ocasional e mede os acontecimentos e suas ações com a sua consonância com o universal. Uma descrição mais detalhada desta concepção é apresentada por Torres com as seguintes palavras: [El Hombre Universal] se pone siempre en la totalidad, sea en el orden que sea; sus problemas son de orden cósmico, antes que personales: el destino humano en general (…) le afecta más que el hecho particular, sea o no suyo (…) Respecto al ambiente en el cual vive (…) está siempre en lo constante, eliminando, en cierto sentido, tiempo y espacio: la realidad, el hecho real, quedan al margen.30

Nas antípodas do “Hombre Universal”, Torres afirma encontrar-se o “hombre-individuo”, “concreto” ou “real”; a saber: o indivíduo que se mantém na estreiteza de sua circunstância espaço-temporal e nunca transcende a sua maior criação: “el arte chico”. Aqui novamente, não é difícil reconhecer por trás deste dualismo do “Hombre Universal” e “individuo” aquele existente, em Schopenhauer, entre o “(puro) sujeito do conhecer” e o “sujeito do querer”. Analogamente à dupla torresgarciana, o “(puro) sujeito do conhecer” consiste no contemplador da essência do mundo, que se liberta das ataduras do fenômeno e da pequenez circunstancial, enquanto que o “sujeito do querer” se corresponde com o indivíduo restrito às coisas particulares e quimericamente desejáveis. De modo semelhante ao filósofo da Vontade, Torres García também defende que a arte genuína é somente aquela realizada pelo “Hombre Universal”. Mas isto não implica um desprezo radical pelas circunstâncias existenciais. Aqui, pois, repousa a ênfase particular do latino-americano: conforme o seu discurso, o existencial é a única plataforma desde a qual é possível aceder à experiência universal, caso não se restrinja ao biográfico e ao devir ilusório acidental. Em outras palavras, o universal só é alcançado, para Torres, com o esgotamento do particular; e neste sentido, se perfila o caminho a se percorrer, por ele vislumbrado e recomendado, para a transformação construtiva de seu povo continental. Segundo Torres, há certas limitações que mantêm a cultura ocidental latino-americana do século XX como um “falso armazón de cultura”. Ele se empenha energicamente em denunciar e iluminar o caminho que permita eliminar esses vícios sociais. Naturalmente, a sua crítica tem por alvo central o que ele denomina pela “crise e decadência estéticas” de seus tempos. Pois assim como para o seu contemporâneo J. E. Rodó, ele lamenta que a necessidade do refinado e da arte, que definem o “verdadeiro” nível cultural individual e social, tenham sido suplantada por interesses estritamente materiais e tecnocratas. A princípio, o pintor não tem nada contra os avanços das ciências e das tecnologias: os barcos e trens, por exemplo, 30 Idem., p. 585.

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povoam belamente a sua plástica como belos sinais de aplauso. A sua crítica ao mundo capitalista e maquinal ocidental se dirige, outrossim, a vícios tais como os seguintes: a automatização (“idiotización”, como escreve) inconsciente do homem, a “artificialização” das coisas e dos costumes, o esquecimento da natureza, a “brutalização” e a massificação, a perda dos valores refinados e elevados, o império do egoísmo, a supervalorização da ação, a contaminação do meio ambiente, a obstrução à receptividade da beleza e da intuição de reconhecer-se como parte do todo universal, e etc. No que concerne especificamente à cultura latino-americana, Torres também se opõe, de modo não menos severo, ao que ele diagnostica como a sua teimosia em imitar excessivamente os padrões estéticos estrangeiros. Segundo o seu juízo: “Tenemos (…) que rechazar lo que aquí de ordinario recibe indebidamente el nombre de cultura, que es (…) trasplante de algo que tendrá que crecer artificialmente e quedar como algo postizo, resultando por esto ‘nuestra cultura’ un verdadero traje de arlequín: conjunto sin unidad”.31 Para ele, a tendência à imitação que contamina a América Latina pode ser superada dado que existe algo próprio a ser recuperado – como declara a seguir: Existió aquí una cultura, y ya que es esto lo que buscamos, no hay por qué ir a buscarla lejos (…) Tal cultura se formó natural y espontáneamente, que es decir de acuerdo con el medio en que nació. O sea, que no fue importada. Porque no puede admitirse que exista una verdadera cultura sino cuando en tal forma se produce.32

Nosso Norte é Sul, 1943

31 Idem., p. 22. 32 Idem., p. 24

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Arte Construtiva, 1932

Torres García acredita, portanto, que a revitalização da pré-história latino-americana é um interessante ponto de partida para o reendereçamento de sua cultura à “Gran Tradición Del Hombre Universal”,33 e sobretudo no que diz respeito ao seu sentimento metafísico de compreender-se como parte integrada, subordinada e sincronizada com o cosmos. Contudo, Torres também condena qualquer tentativa de imitação do passado: “¡Nada de arte incaico, ni maya ni azteca! Otro arte: el arte que debe realizar, a pesar de todo, un hombre de hoy”.34 Infelizmente, uma análise mais específica das posições do pintor sobre esta revitalização foge dos limites e objetivos deste artigo. De acordo os mesmos, basta sinalizar que Torres entende que toda verdadeira cultura requer a participação no que denomina pela “Gran Tradición de la Humanidad” ou “del Hombre-Universal”. Entidade essa cuja existência é afirmada por ele com a seguinte retórica: “Pero ¿hay una verdad? (…) ¡Sí que la hay! Es lo que ha quedado en el harnero después del trasiego de los siglos, y que (…) constituye lo que hemos llamado la Tradición”.35 Essa “verdad”, pelo seu turno, também é postulada por Torres de modo repetido e insistente. Trata-se daquela cujo fundamento, origem e conteúdo é, foi e será válido para o homem em geral, que se tornou manifesta ao longo da história graças à ação do “Hombre Universal”, e que foi 33 É com base neste pensamento que ele propõe o seu famoso primitivismo estético. Cfr. por exemplo Universalismo Constructivo, p. 882; Metafísica de la Prehistoria Indoamericana, p. 26. 34 Idem, p. 311. 35 Idem., p. 1002.

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se amalgamando paulatinamente de modo a consolidar a autêntica tradição do mesmo. Como ele defende a seguir: “Por resumir los conceptos más universales, y sintetizar (…) todo el saber humano en su sentido general y más profundo, tal tradición quiere excluir qualquer otra y, por esto, ya no es una tradición sino la Tradición”.36 O sujeito contemporâneo tem apartado-se da “Gran Tradición” – pode-se sintetizar, no espírito torresgarciano – e nisso consiste a decadência e a crise na qual vê afundada a sua cultura.

VIII A título de conclusão, pode-se afirmar que a descoberta da leitura e cópia manual de Torres García de grande quantidade de texto schopenhaueriano não foi infrutífera. A partir dela, pôde-se defender com fundamentos que Schopenhauer é uma das maiores influências do artista, e executar um estudo comparativo entre ambos que ajuda a aclarar as polêmicas teorias do latino-americano. Entre as concordâncias encontradas, destacaram-se as suas concepções de que a experiência e a visão estética ou artística são o meio próprio e privilegiado do conhecimento do quê das coisas, isto é, de suas Ideias permanentes, essenciais e eternas, em sentido platônico. De modo associado a isto, a contemplação artística foi defendida por ambos como propiciadora de uma certa elevação por sobre a ilusão da minúscula individualidade, do fluxo efêmero da realidade material, da unilateralidade da visão “condicionada por el tiempo y el espacio”, e da acidentalidade de tudo o que não é permanente e ideal. Em última instância, concluiu-se que ambos os espíritos comungam da mesma leitura de Platão: por um lado, ambos o veneram, já que a ele é atribuída uma das primeiras filosofias idealistas no ocidente, mas por outro, ambos reinterpretam a sua doutrina de modo muito próprio, ao fundarem o conhecimento das Ideias no domínio estético e artístico. Em face dessas concordâncias, coloca-se a questão de se Torres García foi mais um discípulo de Schopenhauer, e compôs, portanto, a sua escola filosófica. Contudo, duas particularidades suas também foram apontadas como obstáculos a esta associação: primeiramente, Torres García é uma genialidade mais artística do que filosófica; e em segundo lugar, figura entre os aspectos mais essenciais de seu discurso o imperativo da prática de responsabilidade social, no sentido, sobretudo, de transformação ativa das condições estéticas e sociais de seu continente. Muitas outras diferenças poderiam ser assinaladas, mas atendo-se às que o foram, pode-se afirmar que Torres García possui dois compromissos – o artístico e o da militância ativa – mais originais e prioritários do que a sua atividade propriamente filosófica, nos moldes de Schopenhauer, a saber: aclarar a essência da arte, no caso da filosofia da arte. Sendo assim, é muito mais difícil dizer que Torres García é um

36 Idem., p. 735.

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discípulo integrante da escola de Schopenhauer, do que realizar a mesma afirmação, por exemplo, de P. Mainländer, F. Nietzsche ou R. Malter. Ainda assim, porém, a influência schopenhaueriana sobre Torres García não pode ser desprezada. Como se apresentou, as concordâncias entre ambas as genialidades concernem à essência do pensamento estético de Torres – o qual é apresentado, por sua vez, e por ele mesmo, como indissociável às suas atividades plásticas e à sua militância cultural. Deste modo, uma solução historiográfico-científica possível seria a de entender o latinoamericano como um caso exemplar de limite, fronteira ou mesmo periferia na “escola de Schopenhauer”. Se ela fosse aceita, Torres García permitiria uma precisão e extensão adicional, ainda que periférica, na sistemática da última. Mais precisamente, se D. Fazio, L. Lütkehaus e M. Kossler demonstram que a “escola de Schopenhauer em sentido lato” é formada propriamente pelos metafísicos E. von Hartmann, P. Mainländer e J. Bahnsen, os hereges F. Nietzsche, P. Rée, G. Simmel e M. Horkheimer, e os pais da igreja P. Deussen, H. Zint, A. Hübscher e R. Malter – caberia ainda – por que não? – entender que essa mesma escola possui duas classes-limite, periféricas ou “bastardas”, compostas por genialidades mais hereges do que os seus próprios hereges: os artistas e os cientistas. Se há alguma pertinência nesta tese historiográfica, J. Torres García certamente consiste em um caso exemplar do primeiro grupo. Assim como S. Freud, por exemplo, representaria um do segundo. A partir dos fundamentos deste artigo, não é inadequado sugerir esta hipótese.

Bibliografia FAZIO, D., KOSSLER, M., LÜTKEHAUS, L. Arthur Schopenhauer e La sua Scuola. Lecce: Pensa Multimedia, 2006. ______. La Scuola di Schopenhauer: Testi e contesti. Lecce: Pensa Multimedia, 2009. FLÓ, Juan. Joaquín Torres García y el arte prehispánico. In: Imaginarios Prehispánicos en el Arte Uruguayo: 1870-1970. Fundación MAPI, 2006 FREUD, S. Gesammelte werke: chronologisch Geordnet. Frankfurt: S. Fischer, 1991. 18v. SCHOPENHAUER, Arthur. Sämtliche Werke in fünf Bänden. Suhrkamp: Stuttgart/Frankfurt am Mein, 1986. ______. O Mundo como Vontade e como Representação. Tradução: Jair Barboza, São Paulo: Editora Unesp, 2005. 695p. PLATÃO. Obras Completas. Tradução: Conrado Eggers Lan. Biblioteca Básica Gredos, Madrid, 1998 TORRES GARCÍA, Joaquín. Universalismo Constructivo. Buenos Aires: Editorial Poseidón, 1944. ______. El descubrimiento de si mismo. Gerona, 1917. ______. Historia de mi vida. Paidós, Montevideo, 1990. ______. La tradición del Hombre Abstracto (Doctrina Constructiva). Montevideo, Asociação de Arte Constructivo, 1938.

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______. Metafísica de la Prehistoria Indoamericana. Montevideo, Asociação de Arte Constructivo, 1939. ______. Mística de la Pintura. Montevideo, Asociação de Arte Constructivo, 1947. ______. Lo aparente y lo concreto en el Arte. Centro Editor de América Latina, Montevideo, 1969. ______. La recuperación del objeto. Montevideo, [Montevideo, Biblioteca Artigas, 1965, 2 tomos]. ______. New York. Cortesía Museo Torres García

JTG pintando, 1948

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Natalia Costa Rugnitz é Mestranda em Filosofia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com a dissertação: Estrutura e Dinâmica da Psique na Filosofia Platônica. Agência de Fomento: FAPESP. Este artigo incorpora parte dos resultados da pesquisa de graduação intitulada: Forma, Construcción y Verdad en el Arte. Una aproximación a la Estética de Joaquín Torres García, orientada pelo Prof. J. Ramiro Podetti e defendida na Universidade de Montevidéu em fevereiro de 2010.

** Guilherme Marconi Germer é Mestre em Filosofia, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com a dissertação: O Belo e o Bom em Schopenhauer. Orientador: Prof. Dr. Luiz Roberto Monzani. Agência de Fomento: CNPq. Doutorando em Filosofia na UNICAMP, com a tese: Freud no limite da ‘Escola de Schopenhauer’. Orientadores: Profs. Drs. L. R. Monzani e O. Giacoia Jr. Agência de Fomento: FAPESP.

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La “concientización” en la pedagogía de Paulo Freire1 ENRIQUE DUSSEL*

Resumo: O autor destaca os méritos da epistemologia freireana no contraste com a abordagem dos psicopedagogos, que descreve como cognitivista, e com o enfoque psicanalítico freudiano. Chama a atenção para seu cunho histórico, cultural e intersubjetivo. Com o intuito de destacar a importância do pensamento de no âmbito de uma ética e de uma política crítica, o autor explora alguns pontos-chave de sua teoria: a situação-limite, a conscientização, a consciência ingênua, o medo da liberdade, o papel do educador e do sujeito histórico no processo de transformação, a intersubjetividade comunitária, a consciência ético-crítica, a práxis da liberação. “Awareness” in the pedagogy of Paulo Freire

F

recuentemente1 los psicólogos del desarrollo infantil o psico-pedagogos son cognitivistas, no porque sólo traten la inteligencia (ya que se ocupan de las motivaciones, la afectividad, los juicios morales, etc.), sino porque se proponen, al final y siempre, aumentar, corregir o desbloquear el performance intelectual (sea teórico o moral) del niño. Freud, por su parte, se ocupa de modificar pedagógicamente (¿qué es el psicoanálisis sino una pedagogía dialógica?) el orden de las pulsiones cuando cae en patologías incontrolables. Todos usan la mediación del experimentado pedagogo o psicoanalista (que es igualmente un mediador entre la “conciencia” y el “pre”- e “inconciente” a través del “Super-yo”), mediador individual ante los educandos (con alguna patología pulsional psíquica) considerados igualmente por lo general como individuos. Todo dentro de un orden social, cultural, político y económico que es tratado simplemente como “dado”, y cuya transformación nada tiene que ver con la tarea del pedagogo o psicoanalista. La posición de Paulo Freire en radicalmente distinta, ya que ha descubierto que

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Sobre Paulo Freire véase Torres, 1992. Agradezco a Sonia Araújo-Olivera por el apoyo en la bibliografía.


es imposible la educación sin que el educando se eduque a sí mismo en el proceso mismo de su liberación,2 y por ello cambian sus propósitos pedagógicos -si así pudieran llamarse, ya que se trata de algo más universal y radical-. En efecto, Freire tiene por propósito el llegar a algo distinto que todos los nombrados (y esto no está claro, no sólo entre los psico-pedagógos “científicos” que en cierta manera y, por esto, desprecian a Freire como un “político”, sino aún para los que intentan desarrollar la pedagogía de nuestro autor, aceptando sus enseñanzas). Comparados con Freire los psico-pedagogos del desarrollo infantil o psicoanalistas son, primeramente, cognotivistas (porque se ocupan de la inteligencia teórica o moral, o de la conciencia como mediación de la patología), conciencialista (en cuanto no desarrollan una teoría dialógica, linguística), invididualistas (en cuanto se trata de una relación del pedagogo individual con los educandos individualmente), pero, principalmente, ingenuos, en cuanto 2 Aquí habría que compararlo con los pragmáticos norteamericanos. Mientras estos afirman, con razón, que la verdad se alcanza en el proceso comunitario de verificación, Freire indica que el proceso de educación crítica se realiza exclusivamente cuando el oprimido efectúa su aprendizaje en el propio proceso de liberación práctico como transformación de su realidad. No es, como en los pragmáticos, un proceso intelectual solamente (aunque también), es un proceso integral de la praxis crítica.

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no intentan transformar la realidad contextual ni promover una conciencia ético-crítica en el educando – que es el propósito fundamental de toda la tarea educativa de Freire. Es decir, Freire, a diferencia de los psicopedagogos, define precisamente las condiciones de posibilidad del surgimiento del nivel del ejercicio de la razón políticoo-crítica, como condición de un proceso educativo integral. Por ello, el educando no es sólo el niño, sino igualmente el adulto, y particularmente el oprimido, culturalmente analfabeto, ya que la acción pedagógica se efectúa dentro del horizonte dialógico intersubjetivo comunitario3 a través de la transformación real de las estructuras que han oprimido al educando. Se le educa en el mismo proceso social, y gracias al hecho de emerger como “sujeto histórico”. El proceso transformativo de las estructuras de donde emerge el nuevo “sujeto social” es el procedimiento central de su educación progresiva, libertad que va efectuándose en la praxis liberadora. Por ello, no es la sola inteligencia teórica o moral (esto se supone, pero no es el objetivo principal), ni siquiera el desbloqueo pulsional hacia una normal tensión del orden afectivo (à la Freud, que también se supone), sino algo completamente distinto: Freire intenta la educación de la víctima en el proceso mismo histórico, comunitario y real por el que deja de ser víctima: Así como el ciclo gnoseológico no termina en la etapa de la adquisición del conocimiento ya existente, pues se prolonga hasta la fase de creación de un nuevo conocimiento, la concientización no puede parar en la etapa de revelación de la realidad. Su autenticidad se da cuando la práctica de la revelación de la realidad constituye una unidad dinámica y dialéctica con la práctica de transformación [!] de la realidad.4

Lo que dicho de otra manera sería: Leer el mundo es un acto anterior a la lectura de la palabra. La enseñanza de la lectura y de la escritura de la palabra a la que falte el ejercicio crítico [!] de la lectura y la relectura del mundo es científica, política y pedagógicamente manca.5

Se trata de una revolución copernicana pedagógica que está lejos de haber sido comprendida. Por ello, escribe Freire, es necesario:

3 No es tampoco como en el caso de la Comunidad Justa de Cambrigde (véase Hersh, 1979, p. 174-181, esnel ejemplo de una escuela primaria como comunidad), ya que Freire parte de una auténtica comunidad real popular existente. 4 Freire, 1993, p. 98-99. 5 Freire, 1993, p. 75. Considérese que para Freire no es “científico” un análisis cuando falta la “criticidad ética”, como veremos.

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Criticar la arrogancia, el autoritarismo de intelectuales de izquierda o de derecha, en el fondo igualmente reaccionarios, que se consideran propietarios, los primeros del saber revolucionario, y los segundos del saber conservador; criticar el comportamiento de universitarios que pretenden concientizar a trabajadores rurales y urbanos sin concientizarse también ellos; […] buscan imponer la superioridad de su saber académico a las masas incultas.6

Muchos opinan que la de Freire no es pedagogía, o que no es científica; que sólo tiene “propósitos sociales y políticos”. A lo que responde: Como si fuera o hubiera sido alguna vez posible, en algún tiempoespacio, la existencia de una práctica educativa distante, fría, indiferente a propósitos sociales y políticos.7

Veamos resumidamente cómo trata la cuestión pedagógica. Hablando con algunos amigos en el CIDOC de Cuernavaca, donde Ivan Illich (que se ocupó en esa época de la cuestión pedagógica) nos reunía frecuentemente, y allí es donde Freire conoció a Erich Fromm (que vivía en Cuernavaca en ese momento), Freire expresó: Hablar de concientización exige una serie de consideraciones previas […] Generalmente se piensa que soy yo el autor de este extraño vocable, por el hecho de que él es un concepto central de mis ideas sobre educación […] Ella nació de una serie de reflexiones que un equipo de profesores desarrolló en el Instituto Superior de Estudios del Brasil (ISEB).8 […] La palabra fue creada por uno de los profesores de aquella época. […] Recuerdo entre otros al profesor Alvaro Vieira Pinto un gran filósofo que escribió el libro llamado Conciencia y realidad nacional.9 […] Cuando escuché por vez primera la palabra concientización, y al oírla, percibí inmediatamente la profundidad de su significado, pues estaba absolutamente convencido de que la educación, como práctica de la libertad, es un acto de conocimiento, un acercamiento crítico de la realidad.10

6 Ibid., p.76. 7 Ibid. 8 Freire publicó en 1963 un artículo titulado: “Conscientizaçâo e alfabetizaçâo: uma nova visâo do processo”, en Revista de Estudos Universitarios (Recife), 4, p. 5-23. 9 Véase Vieira Pinto, 1961. 10 “Concientizar para liberar”, en Contacto (México), 8 (1971), p. 42; citamos de Torres, 1992, p. 107.

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Dividiré el asunto en cortos apartados, mostrando la importancia que Freire tiene por una ética y política críticas, tan importante en numerosos movimientos de liberación contemporáneos en América Latina y África. 1. La “situación límite”: el “punto de partida”. Freire explica, inspirándose en Jaspers, aunque dándole nuevo sentido: Estudiemos por ejemplo la situación límite11 de los campesinos del Nordeste del Brasil. Ellos tienen una conciencia fuertemente oprimida que les impide tener una percepción estructural de la realidad. Son incapaces de percibir el hecho, la situación límite como algo que se construye en la realidad objetiva y concreta en que el hombre está. Pero, a pesar de ello y por el hecho de ser hombre, necesita explicar la realidad en que vive. ¿Cómo se cuestiona? ¿Cuáles son las razones que da? ¿Cómo analiza este caso su conciencia oprimida?12

Se trata de un punto de partida “material”, analítico económico y político.13 Toda educación posible parte de la “realidad” en la que se encuentra el educando. Son estructuras de dominación que constituyen al educando como oprimido. En su obra cumbre de 1969,14 en el exilio en Chile, Freire trata el tema de la existencia de una contradicción fundante: opresores-oprimidos. ¿Por qué Freire parte del oprimido, del marginal, del analfabeto? Porque es el “educando” en el límite, en cuanto tal, aquel que necesita como nadie ser educado. Freire se sitúa en la máxima negatividad posible:15 “La crítica y el esfuerzo por superar esas negatividades son no sólo recomendables sino indispensables […] Ha habido diferentes formas de comprensión negativa, y en consecuencia de crítica”.16 Si Horkheimer nos dice que negatividad y materialidad son las condiciones de la Teoría Crítica, aquí no sólo tenemos una “teoría”, sino una Práctica Crítica de mucho mayor negatividad y materialidad: no son ya los obreros alemanes, son los “condenados de la Tierra” de F. Fanon -campesinos sin tierra del Nordeste; unos cuarenta millones de los más pobres del Planeta-; no es ya Teoría Crítica de científicos que buscan después un “sujeto” histórico; son los “sujetos históricos” los que buscan antes quién pueda educarlos.

11 Noción clave en su vocabulario. 12 Torres, Ibid., p. 108. 13 Véase “A Sociedade brasileira em transiçâo”, en Freire, 1980, p. 39ss. 14 Véase Freire, 1994, p. 31-67. 15 Refiriéndose a Lucien Goldman habla de la “conciencia crítica máxima posible” (“Acción cultural liberadora” (1969), en Torres, 1983, p. 22). 16 Freire, 1993, p. 80-81.

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2. ¿”Prise de conscience”? Ante Piaget,17 Freire indica que la “concientización” (que comienza por ser conciencia crítica) es mucho más que una mera “prise de conscience” cognoscente del mundo: Esta prise de conscience no es todavía la concientización. Ésta es la prise de conscience que se profundiza. Es el desarrollo crítico de la prise de conscience; la concientización implica la superación de la esfera espontánea18 de aprehensión de la realidad, por una esfera crítica en que la realidad se da ahora como un objeto cognoscible en que el hombre asume una posición […] en que busca conocer.19

“Concientizar” indicará el proceso porque el que el educando irá efectuando lentamente toda una dicronía desde una cierta negatividad hasta la positividad, como un movimiento espiral, de continuas decisiones, retornos, evaluaciones. La pedagogía de los oprimidos es la pedagogía kath’exokhén, por cuanto situándose en el máximo de negatividad puede servir de modelo a todo otro proceso pedagógico crítico posible. 3. Estadio 1: La “conciencia ingenua”, la “cultura del silencio”, la “mitificación de la realidad”, etc. Freire describe muchas determinaciones como el punto de partida negativo (que nunca es superado por los psico-pedagogos antes nombrados). Se trata, estrictamente, del pasaje de una “conciencia mágica”, masificada o fanática, y aún moderna y urbana pero ingenua,20 a una “conciencia crítica”. En esta situación se trata de una “conciencia intransitiva”21 que no logra expresarse (se encuentra en sí y no alcanza la autoconciencia del para sí). Desde la “conciencia ingenua” emerge la “conciencia crítica”; ante la “cultura del silencio” el “poder hablar”; ante la “mistificacion de la realidad” la “desmitificación”… En su acercamiento al mundo, hacia la realidad, en su movimiento en el mundo y con el mundo, los hombres tienen un primer momento en el cual el mundo, la realidad objetiva no se da a ellos como un objeto cognoscible de su conciencia crítica […] sino que es una conciencia ingenua.22

17 Véase Piaget, 1985. 18 Es todo el orden del “mundo” heideggeriano, del “sistema” luhmanniano, del “mundo de la vida cotidiana (Lebenswelt)” habermasiano, la “totalidad” levinasiana, la conciencia fetichizada dentro del horizonte del “capital” de Marx, donde se sitúan sin superarlo o Piaget, o Kohlberg, oVigotsky o Feuerstein. 19 Torres, 1992, p. 111. 20 “Educaçâo que lhe pusesse à disposiçâo meios como os quais fôsse capaz de superar a captaçâo mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica” (Freire, 1980, p. 106). 21 Véase Freire, 1980, p. 59. 22 Torres, 1992, p. 109.

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Sin embargo, esta “conciencia crítica” es riesgosa, pulsionalmente hablando, el oprimido no está preparado para afrontarla. 4. “Miedo a la libertad”. Pulsionalmente, inspirándose ciertamente en Fromm -y en esto Freire es sucesor de la primera Escuela de Frankfurt en su materialidad negativa-, los oprimidos tienen “miedo a la libertad”.23 Es la “imposibilidad ontológica” de los oprimidos para ser “sujetos”, para enfrentar su liberación. La víctima, el oprimido, está en un primer momento “bloqueado” pulsionalmente para abrirse al ancho mundo de la crítica: No son pocas las veces en que los participantes a estos cursos, en una actitud con la que manfiestan su miedo a la libertad, se refieren a lo que denominan el peligro de la concientización. La conciencia crítica, señalan, es anárquica. A lo que otros añaden: ¿No podrá la conciencia crítica conducir al desorden? Por otra parte, existen los que señalan: ¿Por qué negarlo? Yo temía a la libertad. Ya no la temo.24

Freire se refiere continuamente a este “bloqueo” pulsional, ya que, como Levinas lo advierte, el que cobra conciencia crítica se enfrenta a una riesgosa situación de perder su felicidad, ya que se transforma en un “rehén” perseguido en y por el sistema opresor en nombre de su comunidad de víctimas. Aquí se encontraría la dificultad de superar aquella “felicidad” del utilitarismo que “esclaviza” en la falsa “seguridad vital”,25 o del Nietzsche cuando habla del “rebaño” (Zarathustra se arriesga a poner en peligro su “felicidad” por el “instinto del placer” creador). 5. La participación del educador crítico. Este es un momento muy delicado. Es necesario “no separar el acto de enseñar del acto de aprender […] Las experiencias no se trasplantan, sino que se reinventan”.26 Cuando Freire llega a Guinea-Bissau, un país con una reciente revolución, y debe comenzar un proceso pedagógico, escribe: Lo que se plantea un tal educador es la búsqueda de los mejores caminos, de las mejores ayudas que hagan posible que el algabetizando ejerza el papel de sujeto de conocimiento en el proceso de su alfabetización. El educador tiene que ser un inventor y un reinven-

23 Este es el primer tema siempre repetido al Freire joven (véase Freire, 1980, 1978b, 1980b, etc.). La “libertad” en Freire no es un punto de partida, es una meta difícil que debe vencer obstáculos, “bloqueos” afectivos inmensos, tradicionales, introyectados por el castigo, la dominación, la tortura que soporta el pueblo oprimido. Estos temas pulsionales, aunque hace referencia a Freud, no los ha profundizado nunca suficientemente. 24 Freire, 1994, p. 21. 25 Ibid., p. 22. 26 Freire, 1977, p. 16-17.

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tor constante […] Lo importante es el ejercicio de la actitud crítica ante el objeto.27

El educador debe comenzar por educarse con el “contenido” que le dona el mismo educando: Lo que he dicho y repetido sin cansarme es que no podemos dejar de lado, despreciando como inservible, lo que los educandos […] traen consigo de comprensión del mundo […], su habla, su manera de contar, de calcular, sus saberes en torno al llamado otro mundo, su religiosidad, sus saberes en torno a la salud, el cuerpo, la sexualidad, la vida, la muerte, la fuerza de los santos, los conjuros.28

El educador debe entonces “aprender” el mundo del educando. Sólo así puede intervenir: Los campesinos analfabetos no necesitan un contexto teórico para llegar a una toma de conciencia de su objetiva situación opresora […] Pero lo que la toma de conciencia surgida de la inmersión en las condiciones de vida diaria no les da es la razón de su condición de explotados. Esta es una de las tareas que tenemos [los educadores] que lograr en el contexto teórico.29

Freire entonces reconoce que es la víctima la que toma conciencia crítica. El educador le aporta el descubrimiento de su condición de víctima. Es decir, la “conciencia” no le llega a la víctima “de afuera”, sino desde “dentro” de su propio conciencia desplegada por el educador. La importancia del educador consiste en que aporta mayor criticidad,30 al enseñar a interpretar la realidad objetiva críticamente (para ello es necesaria ciencia social crítica). Volveremos sobre el tema en el próximo parágrafo. 6. Estadio 2: La conciencia ético-crítica. Se llega así al momento de la crisis por excelencia, el momento en que el oprimido da el salto de la “crítica”, que, como veremos, es comunitaria. ¿Cómo se alcanza este primer grado de “conciencia crítica”? Freire insiste que es por el análisis teórico de las causas de la opresión del oprimido, el medio por el que 27 Ibid., p. 18. 28 Freire, 1993, p. 81. Escribíamos en La pedagógica latinoamericana en 1973: “El futuro maestro liberador es conducido de la mano, ciego y débil, por las tinieblas del mundo nuevo (el Otro es una realidad), por su hijo, la juventud, el pueblo. Sólo la confianza en su palabra lo guía y le evita el error, el errar fuera del camino que lo lleva al Otro […] La voz del Otro es ex-igencia, perentorio llamado a un trabajo liberador” (Dussel, 1973, § 53; t.3, p. 190). 29 “Concientización y liberación” (1973), en Torres, 1983, p. 86. 30 “La tarea del educador dialógico es, trabajando en equipo interdisciplinario este universo temático recogido en la investigación, devolverlo no como disertación sino como problema a los hombres de quienes lo recibió” (Freire, 1994, p. 132).

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se toma conciencia de la realidad objetiva que produce su opresión, permitiéndole una captación explicativa mínima del argumento de carácter reflexivo, teórico, crítico:31 La transitividad crítica, por otro lado, a la que llegamos por una educación dialogal y activa, que asume la responsabilidad social y política, se caracteriza por la profundidad en la interpretación de los problemas. Por la sustitución de las explicaciones mágicas por la de principios causales […] Por la seguridad en la argumentación.32

Nada más lejos de Freire que el irracionalismo postmoderno. El oprimido necesita de la razón teórica, explicativa, desde los criterios del contenido económico y político bajo el imperio de la razón crítica. Es el momento central del proceso de concientización propiamente dicho: la toma de conciencia explícita, crítica. Es aquí cuando comienza el diagnóstico de la “cultura de dominación” y la “pedagogía bancaria” que las víctimas han sufrido en su proceso de domesticación, masificación, formándose en su interior una “conciencia dual”, que confunde la propia conciencia con la introyección de la conciencia del dominador (como enseñaba Memmi en el Retrato del Colonizado). Esto es fruto de una pedagogía de la dominación, la llamada “educación bancaria” del sistema: La narración, cuyo sujeto es el educador [dominador], conduce a los educandos a la memorización mecánica del contenido narrado […] Cuando más se deje llenar dócilmente [como una vasija], tanto mejor educandos serán.33

Con esto Freire llama la atención a la psico-pedagogía del desarrollo infantil, que educa el performance teórico de un niño para convertirlo en un miembro disciplinado de un sistema que lo oprime. Sin conciencia polìtico-crítica no hay educación auténtica. Y por ello el educador debe insistir, junto al educando, “que la estructura social es obra de los seres humanos y que, por esto, su transformación será igualmente obra de los seres humanos.34 7. El “sujeto histórico” de la “transformación”. Freire repite frecuentemente que el “sujeto” de la educación es el mismo oprimido, cuando por la “conciencia crítica” se vuelve reflexivamente sobre sí mismo y descubriéndose oprimido en el sistema emerge como sujeto histórico, que es el “sujeto pedagógico” por excelencia: 31 Sería, exactamente, una explicación de una Teoría Crítica. Como veremos, aquí la intervención del “intelectual” o educador es imprescindible; de lo contrario se caería en el “espontaneísmo”, que sin embargo se opone al “vanguardismo”. 32 Freire, 1980, p. 61. “La conciencia crítica es una representación de las cosas y de los hechos como se dan en la existencia empírica. En sus correlaciones causales y circunstanciales” (Ibid., p. 105). Lo contrario es la “conciencia mágica” que entiende los hechos por causalidad mítica. 33 Freire, 1994, II, p. 72. 34 Freire, 1979, p. 48.

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La concientización […] es inserción crítica en la historia. Implica que los hombres asuman el rol de sujetos hacedores del mundo; rehacedores del mundo; pide que los hombres creen su existencia con el material que la vida les ofrece.35

Es un proceso ético “material”: la vida es el tema, el medio, el objetivo, la alegría alcanzada. Y situándose en el “lugar” desde donde la crítica ética es posible, precisa que, como es evidente, el sujeto es tal cuando es origen de la transformación de la realidad misma. No es una pedagogía que ponga ejemplos hipotéticos para que los alumnos de la democrática comunidad escolar de Cambridge argumenten con mucho ingenio. No. Se trata de un proceso realísimo, concreto, objetivo: Descubrirse oprimidos sólo comienza a ser proceso de liberación, cuando ese descubrirse oprimido se transforma en compromiso histórico […], inserción crítica en la historia para crearla […] Concientización implica esta inserción crítica en el proceso, implica un compromiso histórico de transformación.36

La praxis de “transformación” no es el lugar de una “experiencia” pedagógica; no se hace para aprender; no se aprende en el aula con “conciencia” teórica. Es en la misma praxis transformativa de la “realidad real”37 e histórica donde el proceso pedagógico se va efectuando como progresiva “concienti-zación” (“acción”-en-la-que-se-va-tomando-concienciaético-transformativa: liberación). Esto supone, es evidente, una teoría del “sujeto social” y muy especialmente en una obra futura sobre los “frentes de liberación” (donde cada uno de ellos tiene un “sujetos” distintos, no “metafísicos” sino surgido dentro de la coyuntura histórica, algunos de los cuales puede desaparecer cuando dicha coyuntura cambia). 8. Intersubjetividad comunitaria: la razón ético-discursiva. Cuando Rousseau definió el sujeto de la pedagógica moderna, lo expuso en Emilio, un joven, masculino, solipsista, sin padres ni tradición, con un curriculum burgués para formar un espíritu técnicoindustrial que se debía oponerse al antiguo régimen monárquico. Freire, en cambio, en su pedagogía transmoderna de liberación, se apoya en una comunidad, de víctimas oprimidas, inmersas en una cultura popular, con tradiciones, aunque analfabetos, miserables… “los condenados de la tierra”. La causa de un educador en estas circunstancias pareciera desesperada; es el máximo de negatividad posible. Sin embargo, Freire opina lo contrario. Por ello, en el capítulo III de la Pedagogía del oprimido, se ocupa del tema de la “dialogicidad” como el método que permite la práctica de la libertad a los no-libres; es la acción 35 Torres, 1992, p. 111. 36 Ibid., p. 112. 37 Expresión de Marx en los Grundrisse.

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discursiva de la comunidad de los sujetos de su propia liberación.38 La concientización continúa su proceso y se va desarrollando como movimiento de radicalización creciente. Podríamos decir que Freire, anticipadamente, ha subsumido “dialógicamente” el procedimiento de la Ética del Discurso, y por ello no puede concordar con la conclusión de J. Habermas de que la ética no proporciona orientaciones de contenido, sino solamente un procedimiento lleno de presupuestos que debe garantizar la imparcialidad en la formación del juicio. El discurso práctico es un procedimiento no para la producción de normas justificadas, sino para la comprobación de la validez de norma postuladas de modo hipotético.39

Sin embargo, cuando el propio Habermas indica un problable estadio 4 1/2 en la clasificación de Kohlberg, abre la puerta a la solución de Freire: En este estadio, la perspectiva es la de una persona que se encuentra fuera de su propia sociedad y que se considera a sí mismo como una persona que adopta decisiones sin un compromiso o contrato generalizados con la sociedad.40

¿No se encuentran los oprimidos de Freire en la “exterioridad” (como víctima excluidas) social, cuyo “diálogo empieza en la búsqueda del contenido programático”41? ¿No arranca todo el pensamiento crítico de Freire desde dicha “exterioridad”, y, por lo tanto, se convierte, todo el procedimiento democrático participativo que crea nueva validez antihegemónica, en una mediación de la “conciencia ético-crítica” para “transformar el mundo”?42 El diálogo (el ejercicio dialógico) tiene un “contenido”, tiene la exigencia de la superación de la asimetría en la dialéctica dominador-dominado: Ésta es la razón que hace imposible el diálogo entre […] los que niegan a los demás el derecho de decir la palabra y aquellos a quienes se ha negado este derecho. Primero, es necesario que los que así se encuentran, negados del derecho primordial de decir la palabra, reconquisten ese derecho prohibiendo que continúe este asalto deshumanizante.43 38 Es la indicación del momento procedimental formal-moral intersubjetivo que alcanza validez antihegemónica, en relación con los contenidos materiales éticos de las víctimas que han devenido sujetos de su propia liberación. 39 Habermas, 1983, p. 132; p. 143. 40 Ibid., p. 197; p. 216. 41 Freire, 1994, III, p. 97. 42 Ibid., p. 99. 43 Ibid., p. 101.

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El diálogo de la comunidad tiene siempre un “contenido”: El diálogo […] siendo el encuentro que solidariza la reflexión y la acción de sujetos encauzados hacia el mundo que debe ser transformado […] no puede reducirse a un mero acto de depositar ideas de un sujeto en el otro […].44

El diálogo es “decir la palabra, referida al mundo que se ha de transformar, como un encuentro de los hombres para esta transformación”.45 Freire concibe, entonces, el diálogo como un “encuentro” entre sujetos revelándose unos a los otros las mediaciones para transformar al mundo, los contenidos para que todos puedan vivir en él. Partía de una larga experiencia del MEB (Movimiento de Educación de Base) y de las posteriormente llamadas Comunidades de Base. Los analfabetos, los oprimidos, los pobres, aprendían a hablar sobre su miseria, sobre sus sueños… 9. La “denuncia” y el “anuncio”. Freire indica que hay un momento negativo (cuando se critica el sistema como causa de opresión) y otro positivo (la “utopía” o lo “viable inédito”): Utópico para mi no es lo irrealizable, no es el idealismo. Utopía es la dialectización en los actos de denunciar y anunciar. El acto de denunciar la estructura deshumanizante y el acto de anunciar la estructura humanizadora […] ¿Cuál es el futuro del opresor, sino la preservación de su presente de opresor? ¿Cuál es el área de denuncia que pueden tener los opresores, sino la denuncia de quienes los denuncian? ¿Cuál es es el área de anuncio de los opresores sino el anuncio de sus mitos y cuál puede ser la esperanza de los que no tienen futuro? […] La concientizacion es esto: un apoderarse de la realidad.46

La “denuncia” es el fruto conjunto de la comunidad dialógica de los oprimidos con conciencia crítica en dialéctica colaboración con los educadores (intelectuales, científicos, en posición interdisciplinar, etc.).47 Mientras que la utopía es el uso de la imaginación creadora de alternativas: El momento en que estos [los oprimidos] las perciben [a las “situaciones límites”] ya no más como una frontera entre el ser y la nada, sino como una frontera entre el ser y el más-ser, se hacen cada vez 44 45 46 47

Ibid., p. 101. Ibid. Véase sobre el diálogo en Freire, 1979, p. 68ss: “A organizaçâo reflexiva do pensamento”. Ibid., p. 112-114. Así Marx ejerció en El capital una “denuncia” (científica) del sistema capitalista.

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más críticos en su acción ligada a aquella percepción […] en que se encuentra implícito el inédito viable.48

Este “inédito viable” (lo todavía no dado y sin embargo posible) es el proyecto de liberación de la comunidad sujeto de transformación. 10. La “praxis de liberación”. Lo que sostiene todo el proceso es la praxis realizadora, transformadora: En mi punto de vista, no podemos liberar a otros; los seres humanos no pueden liberarse tampoco solos, porque se liberan a sí mismos en común, mediante la realidad a la cual ellos deben transformar.49

La “praxis de liberación” para Freire no es un acto final, sino el acto constante que relaciona los sujetos entre ellos en comunidad transformadora de la realidad que produce los oprimidos. Es el agua en la que nada el pez de la pedagogía crítica. El acto pedagógico sólo se da dentro del proceso de la praxis de liberación, que no es sólo un acto revolucionario, sino todo acto transformativo humanizante en favor de los oprimidos y para dejar de serlo. Inspirándose en Hegel, Merleau-Ponty, Sartre, Marcel, Mounier, Jaspers, Marx, Lukács, Freud, y tantos otros, Freire desarrolla un discurso propio a partir de la realidad de las víctimas del Nordeste brasileño y de América Latina, para generalizar su teoría y práctica pedagógica en el África primero,50 y posteriormente otros países periféricos, e igualmente centrales (como en Suiza). Es una pedagogía planetaria que se propone el surgimiento de una conciencia ético-crítica. Su acción educadora tiende, entonces, no sólo a un mejoramiento cognitivo, aún de las víctimas sociales, o afectivo pulsional, sino a la producción de una conciencia ético-crítica que se origina en las mismas víctimas por ser los sujetos históricos privilegiados de su propia liberación. El acto pedagógico crítico se ejerce en el sujeto mismo y en su praxis de transformación: la liberación así es el “lugar” y el “propósito” de esta pedagogía. Desearíamos terminar este artículo con una expresión de Freire: Como en cualquiera de las categorías de la acción dialógica, el problema central con que nos enfrentamos en ésta [la vinculación del liderazgo con los oprimidos], como en las otras, es que ninguna de ellas se da fuera de la praxis.51 48 49 50 51

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Freire, 1994, p. 121. “Educación para un despertar la conciencia” (1973), en Torres, 1983, p. 43. Véase Freire, 1977. Freire, 1994, p. 223.

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Enrique Dussel é filósofo argentino exilado desde 1975 no México. É um dos maiores expoentes da Filosofia da Libertação e do pensamento latino-americano em geral. Autor de uma grande quantidade de obras, seu pensamento discorre sobre temas como: filosofia, política, ética e teologia. Tem se colocado como crítico da pós-modernidade chamando por um novo momento denominado transmodernidade. Tem mantido diálogos com filósofos como Apel, Gianni Vattimo, Jürgen Habermas, Richard Rorty, Lévinas. É um crítico do pensamento eurocêntrico contemporâneo.

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O cinema como recurso para o estudo e prevenção da violência um olhar crítico para Elefante PAOLLA MAGIONI SANTINI* LUCIA CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE WILLIAMS** Meus filmes são exercícios poéticos. Nunca quis criar situações de cinema, mas momentos quaisquer. (Gus Van Sant)

Resumo: Na temática da violência, o uso de filmes para o ensino-aprendizagem é um recurso importante a fim de ilustrar suas diversas modalidades, como a violência conjugal; os maus-tratos contra a criança e a violência na escola. Além disso, os filmes permitem interpretar tais situações pelo escopo da Psicologia. A título de exemplo, as autoras analisam o filme Elefante à luz do conhecimento das pesquisas sobre os atiradores escolares. O filme, embora bem conceituado por críticos de cinema, deixa a desejar em termos das motivações e comportamentos dos personagens que realizaram o atentado à escola. PALAVRAS-CHAVE: VIOLÊNCIA NA ESCOLA, CINEMA COMO RECURSO PEDAGÓGICO, VIOLÊNCIA E CINEMA The film as a resource for the study and prevention of violence: A critical look at Elephant Abstract: Films can be an important resource for teaching and learning about violence in its various forms, such as domestic violence and the abuse and violence against children in school. Moreover, films allow us to interpret such situations within the scope of psychology. For example, the authors analyse the film Elephant in the light of research on school sharp-shooters. The film, although well-regarded by film critics, is superficial in terms of the motivations and the behaviour of the characters who attacked the school. KEYWORDS: VIOLENCE IN SCHOOLS, THE CINEMA AS A TEACHING RESOURCE, VIOLENCE AND CINEMA

O

cinema é uma arte que tem o poder de influenciar o público, por vários motivos: engloba os elementos de outras artes (música, dança, literatura, fotografia); é possível de se reproduzir os filmes em vários lugares ao mesmo tempo; além de ser fonte de entretenimento (BERNADET, 1980). Por isso, é um recurso singular para o ensino-aprendizagem, para o desenvolvimento do senso crítico e para a promoção de debates.


Especificamente na temática da violência, existe uma ampla gama de filmes, fictícios ou baseados em fatos reais, que abordam a questão da violência contra a mulher, maus-tratos contra crianças, violência sexual, exploração infantil, abuso sexual infantil, a violência na escola e o bullying. Devido à complexidade do tema – e o fato de muitos atos violentos ocorrerem “entre quatro paredes” – considera-se que o cinema pode atuar como facilitador no entendimento e/ou crítica de situações de violência que permeiam determinada cultura. O Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (LAPREV), do Departamento de Psicologia da UFSCar, vem utilizando filmes como materiais de apoio em disciplina do curso de graduação, “Intervenção Psicológica a Vítimas de Violência”, desde 1998; capacitação a profissionais da rede de atendimento a indivíduos vítimas de violência, tais como policiais, advogados, médicos, enfermeiros e psicólogos; capacitação a professores; bem como em projetos de intervenção e palestras informativas. No endereço eletrônico do LAPREV (www.ufscar.br/laprev) é possível encontrar um link com uma lista de filmes sobre a temática da violência, incluindo análises realizadas por pesquisadores do laboratório, bem como alunos de graduação (nesse caso, revisadas pelos pesquisadores). Cada análise apresenta os dados técnicos do filme, a sinopse, uma análise crítica resumida – não como crítico de cinema, mais sim do ponto de vista de um especialista na área de violência – e palavraschave, indicando o(s) tipo(s) de violência(s) abordada(s) no filme em questão. O objetivo da divulgação das análises no site consiste em auxiliar profissionais, sendo ferramentas para o ensino ou intervenção; bem como para o aprofundamento do tema a estudantes.

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A título de exemplo, as autoras apresentam a seguir uma análise do filme Elefante (GUS VAN SANT, 2003), ganhador de três prêmios no Festival de Cannes (Palma de Ouro, Melhor diretor, Prêmio de Cinema do Sistema de Educação Nacional Francês), inspirado no massacre na escola de Columbine, Estados Unidos, no ano de 1999. O enredo consiste em apresentar a rotina de adolescentes em uma escola norte-americana, os locais de atividades comuns e as relações entre eles e entre os adultos (professores, pais, diretor, funcionários da escola). A narrativa é conduzida através de cenas repetidas, porém vistas por ângulos diferentes, na tentativa de representar a ligação entre as vidas dos adolescentes, até o momento do episódio violento. A obra apresenta pontos importantes em diversas cenas. Nas interações entre os adolescentes ao longo do filme, é possível identificar situações de bullying tanto entre indivíduo-indivíduo quanto entre grupo-indivíduo; ‘panelinhas’ das garotas reforçando práticas inadequadas, como bulimia; fofocas; etc; e, nas interações entre os adultos e adolescentes, observa-se o problema de alcoolismo do pai de um dos personagens; bem como a provável atuação inadequada do diretor da escola, retratada na fala de Eric, um dos atiradores: Yeah, you did, and I should shoot you right now for it, you know I should. But I think I just might let you live, maybe, because I want you to know this… and the next kids that come up to you with their problems… that they’re being picked on, you should listen to them… no matter what twisted shit they say.1

Próximo ao final, são apresentadas cenas na casa de um adolescente, o Alex, na qual ele está tocando piano. Seu colega, Eric, vai até seu quarto e passa a jogar um jogo de videogame, de atirar com armas. Em seguida, visitam um site de compras de armas norteamericano e encomendam uma metralhadora semi-automática, a qual é entregue pelo correio poucas cenas depois - quando a mãe não está em casa. Nesse dia, ambos planejam o ataque à escola detalhadamente, estudando os locais e horários, munidos de outras armas e explosivos que, provavelmente, estavam acumulando. Ao planejar, concordam que o objetivo é se divertir, atirando em alunos em geral e citam o diretor da escola e atletas como sendo alvos de interesse especial. Então, Alex e Eric adentram calmamente a escola e colocam em prática o plano. O contexto geral do filme parece estar relacionado com alguns pontos da literatura, pois escolas que possuem amplo número de estudantes; que não estabelecem uma supervisão adequada das atividades das crianças, como a prática do bullying; e cujos funcionários (incluindo, aqui, o diretor) não são próximos dos alunos, apresentam maior 1 Sim, você fez isso, e eu deveria atirar em você agora mesmo por isso, você sabe que eu deveria. Mas eu acho que eu vou deixá-lo viver, talvez, porque eu quero que saiba disso…e as próximas crianças que vierem até você com seus problemas… elas estão sendo zoadas, você deveria escutá-las…não importa as besteiras que digam. (Traduzido pelas autoras).

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probabilidade de ocorrência de situações de violência (BOWEN, BOWEN & RICHMAN, 2000; KHOURY-KASSABRI, BENBENISHTY, ASTOR & ZEIRA, 2004; WALKER & GRESHAM, 1997). No entanto, no que se diz respeito às características comuns de atiradores escolares, o filme parece falhar ao apresentá-las. Alex e Eric, autores do atentado à escola, foram retratados ao longo do filme praticamente com o mesmo peso de conteúdo do que os outros personagens, ou seja, superficialmente. Por isso, só podemos dizer que são os personagens principais por ter colocado em prática o ato violento, ao final do filme. São apresentadas cenas em que ambos estão na escola, tocam piano, jogam videogame, ocasionalmente são vitimas de bullying, além de cenas do plano sobre o atentado e o fato em si. Segundo entrevista2 com o diretor, Van Sant teve a intenção de retratar o episódio, inspirado em um documentário homônimo (CLARKE, 1989), fazendo uma analogia à parábola oriental sobre cegos descrevendo um elefante por meio do tato, afirmando sobre o animal em suas partes ao invés do todo. Nesse sentido, Van Sant pretendeu descrever uma história fragmentada e superficial, pois, nas palavras dele, “You can’t really get to the answer, because there isn’t one”.3 No entanto, do ponto de vista da psicologia do atirador escolar, o referido diretor pode estar equivocado. Vários casos de atiradores escolares foram objetos de estudo por especialistas, tendo sido analisados fatores de risco, prováveis perfis e sinais que podem indicar a possibilidade de um indivíduo planejar e atacar uma escola. Na maioria dos casos, o aluno agressivo apresenta um conjunto de fatores de risco associados em sua história de desenvolvimento, como o fato de pertencer a lares no qual ocorre a violência familiar; pertencer a uma comunidade violenta; apresentar problemas na escola como dificuldade de engajamento escolar; baixa renda e predisposições genéticas em associação com tais fatores ambientais (FELITTI, 1998; HERRENKOHL, EGOLF & HERRENKOHL, 1997; MILNER et al., 2010; WARNER, WEIST & KRULAK, 1999). Além disso, de acordo com um relatório elaborado pelo Serviço Secreto Americano em conjunto com o Departamento de Educação dos Estados Unidos, sobre prevenção de ataques escolares (VOSSENKUIL, FEIN, REDDY, BORUM & MODZELESKI, 2002), o que há de comum entre os 37 casos de atiradores escolares, analisados com 41 indivíduos, é a questão do planejamento, os quais os agressores geralmente contavam para as outras pessoas; essas os identificavam como indivíduos com algum tipo de problema, mas mesmo assim não faziam nada; a existência de algum evento traumático que pode ter sido o motivo para o planejamento do ataque, sendo que a escolha da escola como alvo é pela razão de ter sido lá a ocorrência de algum tipo de sofrimento. LANGMAN (2009) complementa tais sinais, indicando características depressivas e potencialmente suicidas do atirador escolar. Casos de atiradores escolares têm ocorrido em diversos países, inclusive no Brasil. WILLIAMS (2004) menciona o caso de Edmar Aparecido Freitas, de 18 anos, que invadiu 2 3

http://www.guardian.co.uk/film/2004/jan/24/features.weekend1 (acessado em 26/03/2012). “Você não consegue chegar à resposta, porque ela não existe”.

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a escola em que estudou na cidade de Taiúva, interior de São Paulo, munido de um revólver calibre 38 e disparou 15 tiros, no ano de 2003. Em consequência, feriu gravemente seis alunos, a vice-diretora e um funcionário, tendo se suicidado em seguida. WILLIAMS, D’AFFONSECA, CORREIA E ALBUQUERQUE (2011) também citam o caso de Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, que invadiu uma escola de Realengo, Rio de Janeiro, armado com dois revólveres e disparou contra os alunos, no ano de 2011. No total, 12 alunos com idades entre 12 e 14 anos morreram, sendo que Wellington suicidou-se em seguida. WILLIAMS (2004) descreve informações compiladas sobre o histórico de Edmar, indicando vitimização por bullying, sintomas depressivos e uma vida privada sobre os quais amigos e seu pai não tinham conhecimento (armas, facões, veneno de rato, espingarda, munição e cartas alemãs de neonazistas). No caso de Wellington, segundo WILLIAMS et al (2011), a imprensa relatou diversos depoimentos gravados por ele em seu computador, identificando-se como vítima de bullying, bem como afirmações dos próprios colegas apontando para histórico grave de bullying. LANGMAN (2009) discute 10 casos de atiradores escolares, a partir dos quais conseguiu um grande volume de informações, tendo-os avaliado clinicamente. De acordo com sua análise, o comportamento violento dos atiradores escolares pode ser entendido como um resultado de suas histórias pessoais (componentes ambientais) e personalidades (componentes genéticos), as quais podem ser divididas em três: os psicopatas, os psicóticos e aqueles que sofreram traumas. Os psicopatas reúnem traços egoístas (narcísicos), falta de preocupação sobre a moral (o que é certo e errado, sobre os sentimentos do outro), são agressivos ou exploram as pessoas para conseguirem aquilo que querem e, especialmente nos atiradores escolares, os psicopatas apresentam traços sádicos, ou seja, realizam-se pelo sofrimento alheio. Os psicóticos experienciam episódios de alucinações e delírios, sendo que os mais comuns em atiradores são os delírios de grandeza e os paranóides; podem ter esquizofrenia ou transtorno de personalidade esquizotípica, apresentando dificuldades em estabelecer e manter relacionamentos, em expressar sentimentos ou expressá-los em maneiras bizarras, e levar ao isolamento. Por último, aqueles que sofreram traumas são os que sofreram maus-tratos (violência física, psicológica, sexual e/ou negligência) ou bullying, sentem-se constantemente ameaçados (hipervigilância), podem apresentar uso abusivo de álcool e drogas, depressão, ansiedade, hostilidade, vergonha, falta de expectativas sobre o futuro, além de comportamentos violentos em direção a si próprio (tentativas de suicídio), ou em direção aos outros. Apesar de um episódio traumático já poder ter um impacto significativo na vida de uma criança, LANGMAN (2009) encontrou que os atiradores traumatizados haviam experienciado múltiplos traumas. No filme, a trajetória dos atiradores é apresentada de maneira simplista e superficial – os elementos em evidência associam o fato de ser alvo de bullying com a falta de envolvimento do diretor nas questões pessoais dos alunos, como antecedentes pessoais na execução do ataque à escola. Obviamente, são questões importantes, mas poderia ter sido explorada a questão familiar e da comunidade em que os alunos conviviam; suas relações 48

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interpessoais com outras pessoas que não os intimidadores escolares, a fim de identificar o repertório de habilidades sociais e resolução de problemas; quais outros fatores podem ter contribuído para a tomada de decisão em realizar o ato violento, como outros problemas de saúde, físicos ou de ordem emocional (estresse, depressão, transtornos psiquiátricos), entre outros. Talvez Van Sant esteja querendo afirmar que a violência é gratuita, o que não é verdade – há muitas respostas e explicações sobre os atos violentos. Esse debate, entretanto, apenas reforça a utilidade de filmes como recurso para o ensino-aprendizagem, pois permite uma análise crítica à luz da literatura. Os filmes baseados em fatos reais podem retratar o que geralmente ocorre nas sociedades e culturas diversas, mas nem sempre são fiéis aos dados empíricos. De maneira geral, os críticos de arte são seduzidos por outros aspectos do filme, como as técnicas e a estética, e não é atribuído o mesmo valor para a factualidade dos conceitos reproduzidos. Especialmente quando a temática é a violência, é preciso ter um cuidado especial, pois ao apresentá-la de forma banalizada, o telespectador pode entender atos violentos, como assassinatos, de forma glamourizada, correndo o risco de legitimá-la.

Bibliografia BERNARDET, J. C. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980. BOWEN, G. L.; BOWEN, N. K.; RICHMAN, J. M. School size and middle school student’s perceptions of the school environment. Social Work in Education, 22 (2), 69-82, 2000. ELEFANTE. Alan Clarke. Reino Unido, 1989, filme 35 mm. ELEFANTE. Gus Van Sant. EUA, 2003, filme 35 mm. FELITTI, V. J.; ANDA, R. F.; NORDENBERG, D.; WILLIAMSON, D. F.; SPITZ, A. M.; EDWARDS, V.; KOSS, M. P. & MARKS, J. S. Relationship of childhood Abuse and Household Dysfunction to Many of the Leading Causes of Death in Adults: The Adverse Childhood Experiences (ACE) Study. American Journal of Preventive Medicine, 14(4), 245-258, 1998. HERRENKOHL, R. C.; EGOLF, B. P.; HERRENKOHL, E. C. Preschool antecedents of adolescent assaultive behavior: A longitudinal study. American Journal of Orthopsychiatry, 67, 422-432, 1997. KHOURY-KASSABRI, M.; BENBENISHTY, R.; ASTOR, R. A.; ZEIRA, A. The contributions of community, family, and school variables to student victimization. American Journal of Community Psychology, 34 (3), 187-204, 2004. LANGMAN, P. F. Why kids kill: Inside the minds of school shooters. New York: Pallgrave Macmillan, 2009. MILNER, J. S.; THOMSEN, C. J.; CROUCH, J. L.; RABENHORST, M. M.; MARTENS, P. M.; DYSLIN, C. W.; GUIMOND, J. M.; STANDER, V. A.; MERRILL, L. L. Do trauma symptoms mediate the relationship between childhood physical abuse and adult child abuse risk? Child Abuse and Neglect, 34, 332-334, 2010.

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WALKER, H. M.; GRESHAM, F. M. Making schools safer and violence free. Intervention in School and Clinic, 32 (4), 199-204, 1997. VOSSENKUIL, B.; FEIN, R. A.; REDDY, M.; BORUM, R.; MODZELESKI, W. The Final Report and findings of the safe school initiative. Washington, D.C.: U.S. Secret Service and U.S. Dept. of Education, 2002. WARNER, B. S.; WEIST, M. D.; KRULAK, A. Risk factors for school violence. Urban Education, 34 (1), 52-68, 1999. WILLIAMS, L. C. A. Violência e suas diferentes representações. In: G. C. Solfa. (Org.). Gerando Cidadania – Reflexões, propostas e construções práticas sobre direitos da criança e do adolescente. 1a ed. São Carlos: Rima, 2004, v. 1, p. 141-153. WILLIAMS, L. C. A.; D’AFFONSECA, S. M.; CORREIRA, T. A.; ALBUQUERQUE, P. P. Efeitos a longo prazo de vitimização na escola. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 4 (2), 187-199, 2011.

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Paolla Magioni Santini é Psicóloga, Mestre em Psicologia com ênfase em Comportamento e Cognição pela UFSCar, com apoio da FAPESP; doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSCAR. Bolsista FAPESP, com apoio do CNPq. paolla_@yahoo.com.

** Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams é Doutora em Psicologia Experimental (USP), Mestre em Psicologia (Universidade de Manitoba, Canadá), Professora Titular do Departamento de Psicologia da UFSCAR e Coordenadora do Laboratório de Análise e Prevenção de Violência (LAPREV). williams@ufscar.br.

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A representação visual do espaço físico através do documentário estereoscópico S3D HÉLIO AUGUSTO GODOY DE SOUZA*

Resumo: Este artigo pretende verificar questões teóricas relacionadas com a utilização da tecnologia de filmagem S3D em documentários e sua função imersiva. O atual estágio dessa tecnologia implica em um retrocesso nos métodos de filmagem documentária que foram aprimorados a partir da experiência do Direct Cinema americano e do Cinémà Véritè francês, com fortes implicações na linguagem cinematográfica. PALAVRAS-CHAVE: DOCUMENTÁRIO, ESTEREOSCOPIA, 3D The visual representation of physical space through the stereoscopic S3D documentary Abstract: This paper investigates the theoretical issues related to the use of technology in S3D filming in documentaries and its immersive function. The current stage of this technology involves a setback in the methods of documentary filming, which were improved from the experience of the American Direct Cinema and French Cinema Verité, with strong implications for the language of film. KEYWORDS: DOCUMENTARY, STEREOSCOPIC, 3D

INTRODUÇÃO Este texto analisa as relações entre as técnicas estereoscópicas1 e a linguagem cinematográfica na realização de documentários. Esta linha de pesquisas vem sendo desenvolvida

1 Estereoscopia é a técnica de recriação da percepção de profundidade espacial a partir de duas imagens 2D, referentes à visão de cada um dos dois olhos; essas imagens ao serem vistas independente e separadamente em cada um dos dois olhos, permitem uma percepção visual reconstruida no cérebro, que se aproxima daquilo que o ser humano denomina de profundidade espacial.


no Laboratório de Pesquisas em Imagem e Som (LAPIS DIGITAL) do Curso de Artes Visuais do CCHS/ UFMS, sob a coordenação do autor desde 20032 (SOUZA, 2009).3 A tecnologia de filmagem estereoscópica utilizada em filmes S3D4 vale-se de duas câmeras sincronizadas que devem ser posicionadas lado-a-lado para se obter um par de imagens estereoscópicas. O maior problema da atividade cinematográfica estereoscópica consiste na correta determinação da distância entre os eixos ópticos das objetivas dessas duas câmeras. Essa distância, é denominada de “base-estéreo”, tomando-se emprestado esse termo do seu equivalente inglês “stereo-base”, e é o resultado de uma função que relaciona a distância focal das objetivas e a distância entre o objeto e a câmera. Alguns especialistas desenvolveram calculadoras que facilitam grandemente o trabalho de determinação da base-estéreo durante as filmagens. Todavia, de uma forma bastante evidente, ainda não resolveram as necessidades operacionais de tomadas de decisões rápidas durante as filmagens de documentários. Nestes casos fica muito difícil ao operador de câmera parar o processo de filmagem, calcular a base-estéreo e ainda posicionar as câmeras à correta distância. Em alguns casos de filmagens estéreo 3D, nas quais ocorre transmissão em broadcasting, são utilizados analisadores computacionais de imagens estereoscópicas que enviam, através de retroalimentação, informações de controle da base-estéreo para o acionamento de motores que controlam parafusos que determinam a posição das câmeras. Para isso são utilizados RIGs totalmente motorizados como é o caso do modelo TS5 da 3alitydigital5 ou da câmera desenvolvida pela Disney Research-Zurich6 (HEINZLE et al., 2011). Dessa forma há um controle da paralaxe7 diretamente a partir da base-estéreo. Esta é a situação do estado da arte dos sistemas de filmagem S3D estéreo, todavia, o tamanho e o peso dos equipamentos acabam por tornar inviável sua utilização em documentários. No âmbito da linguagem, a paralaxe é a principal variável a ser considerada em um filme S3D, para se determinar a sensação de profundidade durante a visualização. Essa profundidade possui caráter semiótico, na medida em que representa o próprio espaço, mas pode também, de modo metafórico, representar outras dimensões narrativas do filme. Em um filme de caráter ficcional, onde existe um maior controle do processo de construção da imagem, o aspecto estereoscópico pode representar uma sensação de ampliação de espaço, ou de opressão espacial, sensações obtidas pelo espectador em função 2 Como resultado parcial das pesquisas foi produzido um filme documentário intitulado “O Lago 3D” – 1999, disponível em http://youtu.be/_yC2lBsSDLo (versão em inglês) e em http://youtu.be/GyHsgwm_zs0 (versão em português). 3 Este autor também pode ser encontrado pela referência ao nome GODOY-DE-SOUZA. 4 A sigla S3D ou Stereo 3D (3D estéreo), é utilizada para representar o sistema estereoscópico; evita-se assim confusão com as imagens 3D produzidas por modelagem computacional em ambiente tridimensional, que são em sua maioria bidimensionais. 5 Vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=iJGxpKoYzQs, acesso em 27/12/2011. 6 Vídeo mp4 disponível em http://people.csail.mit.edu/wojciech/CompStereo/index.html, acesso em 28/12/2011. 7 A imagem estereoscópica contém uma representação distinta para a visão de cada um dos olhos; as diferenças entre uma imagem e outra é denominada de paralaxe, que é a distância entre pontos correspondentes ao olho direito e esquerdo na imagem estereoscópica projetada na tela.

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da percepção espacial promovida pela paralaxe. Além disso outras relações poderiam ser criadas entre a profundidade e a caracterização das personagens ou ainda em relação ao próprio desenvolvimento das tramas de uma estrutura narrativa. É necessário observarse que a utilização da estereoscopia e sua relação com as estruturas narrativas ainda está sendo configurada pelos autores, diretores e produtores. Todavia em um filme documentário a questão torna-se muito mais complexa. O controle dessa paralaxe durante as filmagens quase sempre é dificultada pela imprevisibilidade dos eventos a serem filmados. Sabe-se que a percepção visual torna-se mais imersiva, o que pode ser utilizado para a melhor compreensão de eventos ou de estruturas espaciais apresentadas em um documentário. As relações espaciais tornam-se mais evidentes, mas para melhor representá-la necessita-se de um maior controle operacional na hora das filmagens. Portanto, frente às considerações apresentadas acima, fica evidenciado que todos os procedimentos metodológicos de filmagens de documentários que vem se desenvolvendo desde o Direct Cinema americano e do Cinémà Vérité francês nos anos 60, e que se constituiram no paradigma técnico e artístico para a realização de documentários em todo o mundo, necessitam de uma boa revisão com o surgimento do filme estéreo 3D. Naquela época, o surgimento do Som Síncrono (com os gravadores Nagra) e as Câmeras Eclair (com um design ergonomicamente revolucionário – a câmera no ombro) desempenharam o grande diferencial em torno da liberdade, mobilidade e miniaturização necessárias para o bom desenvolvimento da atividade documentária (JACOBS, 1979; ROSENTHAL, 1988; BARNOW, 1993 e GAUTHIER, 1995). Hoje com os sistemas de filmagem estéreo 3D a metodologia das filmagens praticamente retornou à década de 40 e 50. A utilização do Rig Estéreo implica em perda de mobilidade e as câmeras estéreo portáteis lançadas no mercado audiovisual não possuem a mesmas versatilidade das câmeras 2D. Nessas câmeras S3D portáteis, não se pode, por exemplo, filmar um objeto muito de perto, e objetos situados a grande distância não podem ser filmados com teleobjetiva; em ambos os casos a estereoscopia não funciona muito bem. O problema técnico é que seriam necessários controles de base-estéreo que essas câmeras não possuem. Assim, por um lado, o uso de duas câmeras com Rigs atrapalha a mobilidade e de outro as câmeras portáteis não possuem o controle de base-estéreo para o uso criativo e variável dos enquadramentos (plano geral, plano médio, close-up, etc) durante a montagem. Em ambos os casos, quem perde é a linguagem cinematográfica.

FUNDAMENTOS BIOPSICOFISIOLÓGICOS A Teoria do Umwelt proposta por Jacob von Uexküll (UEXKÜL, 1992; VIEIRA, 1994; SOUZA, 2001), apresenta-se como ferramenta fundamental para a compreensão do processo de representação do espaço observado nas imagens estereoscópicas. O Umwelt é uma espécie de mapeamento da realidade que a Natureza, durante o processo evolutivo, permitiu ao ser vivo construir interiormente. A espécie humana também representa a

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Realidade em seu Umwelt, com isso os sistemas audiovisuais podem e devem ser considerados como expansões ou próteses de seus orgãos dos sentidos, cujas elaborações sígnicas vêm colaborando para a Dilatação de seu Umwelt.8 A teoria de Uexküll reconhece uma Realidade, externa ao sujeito, que atua influenciando-o. Por isso, nos animais que têm grande capacidade de aprendizagem pode ser observada uma Dilatação do Unwelt de modo a caminhar para uma compreensão da realidade cada vez maior, adaptando-se e mantendo as condições de sobrevivência. Sem uma “flexibilidade” de adaptação dessas condições, dificilmente se manteria vivo em um meio ambiente caracterizado por mudanças contínuas. Para dar conta dessa ligação entre o sujeito, que tem acesso a Realidade Última por meio de um processo fenomenológico, a teoria do Umwelt traz o conceito de Plano da Natureza, que nos diz que existe a perfeita complementaridade entre o aparato biológico do ser vivo e a Realidade. Assim, é possível afirmar-se que a visão binocular frontal humana é consequência necessária e ao mesmo tempo a causa da percepção tridimensional do espaço físico. Sabese que os animais predadores necessitam da visão estereoscópica muito utilizada na perseguição de suas presas. No caso dos primatas, sua origem arborícola parece ser a motivação da binocularidade frontal. Estudiosos da estereoscopia como (GALIFRET, 1954; OKOSHI, 1976; LIPTON, 1982 e MENDIBURU, 2009), em certa medida apoiados nos estudos de percepção visual desenvolvidos por GIBSON9 (1950), dedicam parte de seus estudos a compreensão do funcionamento da percepção visual de profundidade no ser humano. De acordo com os autores citados, os indutores de percepção de profundidade podem ser classificados em duas categorias: os fisiológicos e os psicológicos. Inicialmente, como aspectos indutores pertencentes à categoria psicológica, devem ser considerados: 1) o tamanho relativo das imagens dos objetos, de modo que os maiores pareçam estar mais próximos que os menores;

8 A Dilatação do Umwelt humano (uma característica evolutiva da espécie) se dá através de elaboração sígnica. Os sígnos indiciáticos que mostram diferentes aspectos da realidade não observáveis pelos transdutores orgânicos que a espécie humana possui, são por si só insuficientes para transcender os limites da bolha de universo subjetivo (Umwelt). Torna-se necessário o desenvolvimento de signos muito mais complexos, que dão coerência aos aspectos da realidade que se encontram ocultos na forma de dados indiciais do mundo. Conforme foi discutido em “Documentário, Realidade e Semiose” (SOUZA, 2001: 130), um documentário é uma dessas formas de complexificação sígnica que pode garantir a Dilatação do Umwelt. 9 J.J. Gibson, fundador da psicologia ecológica, afirma que quando observamos o mundo estamos estabelecendo uma relação de percepção direta, enquanto que a percepção das representações é uma percepção mediada, que ocorre por meio do que ele chama de substitutos visuais, estes substitutos são, por exemplo, o desenho, a pintura, a fotografia, cinema, televisão e etc.

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2) a perspectiva linear, enquanto forma de representação que ocorre na superfície da retina e que em certa medida guarda relação apropriada com as técnicas de desenho artístico, desenvolvidas no quattrocento;10 3) a perspectiva aérea, as imagens dos objetos tornam-se mais enevoadas com o aumento da distância por causa da difusão dos raios luminosos; 4) a oclusão dos objetos, os objetos opacos mais próximos ocultam os objetos mais distantes; 5) o sombreamento e sombras, a incidência da luz ao provocar o aparecimento das sombras provoca a evidenciação dos formatos e dos relevos dos objetos; 6) o gradiente de texturas, trata-se de um aspecto da perspectiva relacionado aos padrões de textura que se tornam aparentemente maiores quanto mais próximos; como exemplo pode ser citada a imagem de uma parede com tijojos expostos, ou uma rua de pedras, que se tornam menores, quase imperceptíveis à medida que ficam mais distantes do observador. Estes indutores são largamente utilizados, como forma de representação da profundidade espacial nas expressões pictóricas presentes no desenho, na pintura, na fotografia, no cinema e no vídeo. Em relação aos indutores da categoria fisiológica, devem ser considerados: 1) a acomodação visual monocular: trata-se da propriocepção da tensão muscular exercida pelo corpo ciliado do globo ocular, que controla o ajuste da distância focal do cristalino através da mudança de sua curvatura; essa percepção adequa-se apenas para distâncias inferiores a 2 metros de distância; 2) a paralaxe de movimento monocular: trata-se da percepção de profundidade quando ocorre deslocamento da posição de observação dos objetos, permitindo sua visualização de vários pontos de vistas; com o observador em movimento, os objetos mais próximos parecem mover-se em maior velocidade que os objetos mais distantes; este indutor é amplamente utilizado na cinematografia, através dos movimentos de câmera conhecidos como “travelling” e “grua”;11 3) a convergência ocular: trata-se do ângulo formado pelos eixos de visão ao se olhar com os dois olhos para um certo ponto sobre um objeto, são as tensões 10 Como já foi destacado em “Documentário, Realidade e Semiose, os sistemas audiovisuais como fontes de conhecimento” (SOUZA, 2001), a perspectiva central foi um ganho nas formas de representação espacial; foi a forma que se disseminou pelo planeta (fotografia, cinema e televisão). A representação espacial pela perspectiva central simula o espaço, não porque mimetiza o espaço, mas sim porque é um modelo coerente com a forma pela qual o Homo sapiens mapeia o espaço em seu Umwelt. 11 De acordo com Christian Metz, um “efeito estereocinético, cuja importância para o cinema foi salientada por Cesare L. Musatti no seu artigo intitulado “Os fenômenos estereocinéticos e os efeitos estereoscópicos do cinema normal”, artigo da Revue International de Filmologie, n29 de janeiro/março de 1957 (METZ, 2004: 20).

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dos músculos que rotacionam os globos oculares que enviam essa informação para o cérebro; 4) a paralaxe ou disparidade binocular: trata-se do principal indutor utilizado pela imagem estereoscópica; quando os olhos fixam um ponto de um objeto M, os raios de luz que partem desse ponto atingem a retina na fóvea central (uma região da retina com grande quantidade de células fotosensíveis); os dois pontos (m1 e m2) das fóveas centrais das retinas de cada um dos olhos são correspondentes e a focalização daquele ponto projetado pelo objeto sobre a fóvea dá indicações a respeito da convergência dos olhos; sempre haverá correspondência entre a projeção de pontos sobre a retina, daqueles objetos (M e P) que estiverem situados em uma circunferência determinada pelo ponto do objeto, e os pontos médios das duas pupilas dos olhos observadores (O1 e O2); essa circunferência é denominada de holóptero; as disparidades entre o posicionamento de pontos projetados sobre a retina, projetados por objetos situados sobre (M e P), dentro, e fora (Q) do holóptero serão as indutoras da percepção de profundidade. No esquema abaixo, a circunferência S-M-P-T representa o holóptero

Figura 1 – representação gráfica do holóptero (modificada de OKOSHI, 1976: 51)

Isto posto, cabe considerar ainda que as distorções relativas da imagem de cada objeto representado sobre a retina parece contribuir na percepção da profundidade espacial. Retoma-se aqui a Teoria do Umwelt para a justificativa do uso da imagem estereoscópica como forma de representação do espaço tridimensional. Ao que tudo indica, essa forma de representação pictórica apresenta-se em um grau elevado de coerência com a representação do espaço no Umwelt humano. É possível afirmar-se que o aprimoramento dessa forma de

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representação permitiria o desenvolvimento de atividades de produção de conhecimento e Dilatação do Umwelt, mais sofisticadas que as atuais permitidas pelos documentários e suas imagens bidimensionais.

REFLEXÕES HISTÓRICO EVOLUTIVAS Partindo-se da premissa de que o ser humano complexificou sua relação de representação com os seus substitutos visuais, incorporando aspectos da percepção direta na representação figurativa (GIBSON, 1950); observa-se na evolução12 histórica das formas de representação visual do espaço uma tendência à representação cada vez mais coerente com a forma pela qual o Umwelt humano representa visualmente o espaço, apenas seguindo de modo objetivo o Plano da Natureza de acordo com os conceitos de Uexküll. No Renascimento a representação figurativa avança consideravelmente, atingindo uma impressionante definição. Essa grande revolução foi provocada na imagem graças à descoberta da representação do espaço através da perspectiva artificialis, que é uma técnica de representar objetos tridimensionais em uma superfície bidimensional. Em relação à função da perspectiva no desenvolvimento das artes considera-se aqui apenas o ponto de vista biopsicofisiológico: acredita-se que esse tipo de representação mantém coerência com o sistema perceptivo humano e, portanto, apesar de não ser exatamente como o ser humano enxerga o mundo através da binocularidade frontal, a perspectiva artificial parte de aspectos da própria visão humana para se chegar a uma codificação. Dessa forma, a descoberta feita no Renascimento pode ser classificada como uma Dilatação do Umwelt Humano, baseada que estava nos mesmos princípios inerentes à visualização do espaço pela espécie humana, mas exteriorizados na forma de imagem (SOUZA, 2001). Dito isto, é possível considerar-se o salto que o uso da perspectiva foi para a representação figurativa; nota-se por exemplo, na Figura 2, que a imagem se tornou mais semelhante ao modo como visualizamos o espaço. Nessa obra de Giotto,13 precursora das mudanças figurativas provocadas pela retomada da antiguidade clássica, os indutores de percepção que existem na imagem são: oclusão, sombras, tamanho da imagem, perspectiva artificial e gradiente de texturas.

12 É importante deixar claro que, quando utilizamos o termo evolução não estamos empregando-o com juízo de valor, daquilo que é melhor ou pior, mas sim como um processo de continuidade e mudança, em qualquer sistema dinâmico, incluindo, mas não limitado a sistemas biológicos (ANDERSON, 1984). 13 Giotto di Bondone (1267-1337), da escola de Florença, é considerado um precursor do uso da perspectiva artificial na pintura, no início do século XIV. “Giotto redescobriu a arte de criar a ilusão de profundidade numa superfície plana” (GOMBRICH, 1999:201). Imagem disponível em: http://www.wga.hu/art/g/giotto/assisi/lower/ceiling/04christ.jpg, acesso em 26/12/2011.

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Figura 2 – Giotto. Apresentação de Cristo no Templo, 1310

Com a fotografia, os indutores de percepção de profundidade continuam os mesmos. Isso se deve também ao fato de que tanto a pintura renascentista quanto a fotografia foram influenciadas pelo mesmo principio técnico, a câmara escura, que por sua vez tem um funcionamento semelhante ao olho humano. Por exemplo, o orifício por onde passa a luz, na câmera fotográfica conhecido como diafragma, no olho é a íris, já o suporte onde a imagem é formada no dispositivo fotográfico é o filme ou o CCD ou CMOS na imagem digital; e no sistema biológico a imagem é formada na retina onde se encontram as células fotoreceptoras que decodificam a imagem luminosa transformando-a em sinal neuroquímico e enviando-o ao cérebro. Considera-se que a diferença fundamental entre a pintura e a fotografia seja o aspecto indicial desta última. O efeito da indicialidade que surgiu na fotografia reside na ontologia de sua imagem. A relação com o objeto que ela representa é de ordem física, ou seja, há a ação da luz que automaticamente impressiona o material sensível. No âmbito da Semiótica Peirciana, podemos dizer que tal signo é um índice genuíno, ao contrário das representações imagéticas apresentadas até então (SANTAELLA, 2005). O surgimento do dispositivo cinematográfico no final do sec. XIX, incorporou o movimento à representação figurativa, e com isso, incorporou também o indutor de paralaxe de movimento. A perspectiva é plenamente percebida na imagem fotográfica ou cinematográfica se, e somente se houver suficiente profundidade de campo, caso contrário a perda de foco embaça a continuidade das linhas da perspectiva. Ao final do século XIX, também houve uma disseminação das fotografias tridimensionais. Essas fotografias valeram-se da descoberta de Charles Wheatstone que, em 1838, construiu um aparato denominado “estereoscópio” que permitia reproduzir desenhos tridimensionais de figuras geométricas e de objetos. As fotografias estereoscópicas eram comercializadas em coleções que incluiam os aparelhos para sua visualização. De acordo com Adams (2001), o processo de visualização estereoscópica constituiu-se em verdadeiro

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hábito das famílias de classe média alta, que se reuniam em torno da visualização de fotografias de lugares exóticos. Boa parte das fotografias conhecidas daquele período era estereoscópica. Essas fotografias estereoscópicas entraram em declínio comercial, mas encontraram aplicações científicas na fotogrametria aérea e fotointerpretação de imagens de satélite. Na década de 50, as produtoras cinematográficas norte-americanas usaram o cinema em terceira dimensão (S3D), durante um curto período, na reconquista do público perdido para a TV. Foram produzidos vários filmes S3D tais como House of Wax (1953) dirigido por Andre de Toth, Creature from the Black Lagoon (1954) dirigido por Jack Arnold e Dial M for murder (1954) dirigido por Alfred Hitchcock. É bom considerar-se que a televisão estereoscópica, não se estruturou economicamente em função de motivos de ordem técnica: a degradação do sinal de vídeo analógico prejudicava a qualidade da imagem, essencial para uma boa visualização tridimensional. Essa limitação de ordem tecnológica atualmente já foi superada. Com o desenvolvimento da tecnologia de vídeo digital, as possibilidades de preservação das informações do sinal de vídeo e as facilidades de manipulação das imagens, permitem melhores condições de obtenção da imagem estereoscópica. O desenvolvimento da tecnologia dos óculos com filtros obturadores de cristal líquido, permitiu o surgimento de um novo método de visualização estereoscópica. Esses óculos, desde a década de 80 eram itens de consumo entre aficcionados e usuários de computação, envolvidos com desenvolvimento de projetos científicos e tecnológicos que necessitavam de visualização S3D, como é o caso da engenharia aeronáutica, automobilística, naval e de extração de petróleo. Atualmente é possível encontrar-se algumas emissoras de TV que já transmitem em S3D. Observa-se aumento da demanda nesses canais para coberturas de esportes, shows musicais e espetáculos de dança. O documentário também aparece na programação com certo destaque, principalmente aqueles que tratam de questões ambientais. Em âmbito internacional, sabe-se que o sistema das emissoras S3D ainda não proporciona o devido retorno econômico do investimento devido à ausência de um número adequado de televisores S3D instalados nas casas. Supõe-se que na Copa do Mundo de 2014 seja possível atingir o número mínimo de televisores a partir do qual o negócio das emissoras S3D seja viabilizado. Assim, encontramos ainda uma pequena exibição de documentários em S3D, boa parte deles ainda relacionados com produções realizadas para os cinemas IMAX3D.14 Não se pretende aqui neste artigo um levantamento pormenorizado dessas obras mas sim uma análise sumária de aspectos de liguagem relacionados à incorporação do S3D no discurso documentário e sua função imersiva.

14 IMAX 3D projeta filmes em telas de grandes dimensões (o padrão é: 20m de largura por 16m de altura), nas quais a sensação de imersão é muito intensa já que o espectador não inclui a borda da tela em seu campo de visão. O sistema de filmagens utiliza câmeras de grande formato (65 mm) com base-estéreo fixada em 64mm de distância entre as objetivas, o que provoca surgimento de imagens com paralaxes de grandes dimensões.

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ASPECTOS IMERSIVOS DO DOCUMENTÁRIO E O S3D Neste artigo também não se pretende uma definição exaustiva do termo “imersão”, apenas acredita-se que seja um parâmetro em torno do qual se poderia desenvolver alguma comparação entre os ganhos de linguagem obtidos na década de 60 e os ganhos obtidos com a imagem S3D no documentário. Assim utilizar-se-á a seguinte definição de imersão: é um estado mental no qual a consciência do indivíduo torna-se envolvida por outra dimensão de tempo diferente daquele vivenciado normalmente, ou ainda por um espaço quase semelhante à representação que o cérebro faz do espaço tridimensional. Tem-se aqui evidentes relações com o conceito de Metz de “impressão de realidade”;15 ou ainda com as idéias de negação das descontinuidades de montagem promovidas pela ilusão de continuidade narrativa, como na forma como definiu Baudry.16 Considere-se portanto os efeitos de imersão narrativa proporcionados pela tecnologia portátil utilizada pelo Direct Cinema americano, ou pelo Cinémà Vérité francês. Em Primary (1960) de Robert Drew, filme paradigmático do Direct, a imersão ocorre no tempo/espaço de uma campanha presidencial desenvolvida nos Estados Unidos. A mobilidade da câmera e do som direto coloca o espectador no meio dos acontecimentos, aumentando a “impressão de realidade”; ou de acordo com as idéias de Uexküll, representam-se os acontecimentos de forma muito coerente e compatível com o Umwelt humano, permitindo o envolvimento dos sentidos. Os deslocamentos de câmera são sentidos como um deslocamento que o indvíduo realizaria dentro dos próprios eventos retratados pelo filme de Drew. Os ruídos altamente envolventes, as vozes das pessoas sincronizadas com suas imagens e os movimentos resultantes dessa sinergia, elevaram a imersão do espectador nas narrativas apresentadas nos documentários desde então. Os ganhos de mobilidade possibilitados pela tecnologia a partir daquela época (câmeras ergonômicas e som direto) sofrem um grande revés com o surgimento da tecnologia S3D principalmente nos documentários produzidos para o IMAX 3D. As câmeras de grande formato não possuem mobilidade, a não ser quando suportadas por sistemas de deslocamento tais como gruas e trilhos. Dessa forma, praticamente todos os documentários S3D produzidos entre 1990 e 2010, para o IMAX, não contém imagens de deslocamento de câmera com a mesma agilidade que se vê nos documentários 2D pós Direct/Vérité. Todavia, deve ser considerado que há outro nível de imersão promovido por esses documentários S3D que se refere à representação tridimensional do espaço. Aqui esses documentários exibem com toda a plasticidade possível do sistema estereocópico os elementos volumétricos e espaciais que justificam sua própria existência. Filmes como: 15 Em texto de Metz intitulado: “A respeito da impressão de realidade no cinema” (METZ 2004). 16 Em texto de Baudry intitulado: “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base” (em XAVIER 1983).

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Galápagos (1999) de Al Giddings e David Clarck; Space Station (2002) de Toni Myers; Bugs! (2003) dirigido por Mike Slee; Hubble (2010) de Toni Myers; apesar de apresentarem dinâmicas narrativas, semelhantes aos filmes documentários anteriores ao Direct/ Vérité, permitem todavia, uma imersão espacial nunca observada em documentários. No caso dos filmes para o IMAX3D, explica-se a falta de mobilidade pelo tamanho das câmeras de mais de 100kg com duas objetivas lado-a-lado. Essas câmeras apesar de permitirem uma grande resolução de imagem, são impeditivas da realização de um documentário mais dinâmico e ágil. Mesmo a tecnologia digital ainda não resolveu esse aspecto da mobilidade. No início deste artigo foi discutido que os Rigs, que suportam as duas câmeras envolvidas nas filmagens S3D, também são equipamentos volumosos e pesados. Já as câmeras digitais estéreo portáteis, com lentes duplas, fabricadas pela JVC, Panasonic e Sony, possuem problemas estereoscópicos, pelo fato das lentes estarem sempre situadas a uma mesma distância (sem controle da base-estéreo). Ainda que esse tipo de câmera resolva o problema da mobilidade, fica a dever no quesito estereoscópico de representação do espaço tridimensional, principalmente em objetos situados a grande distãncia (grandes planos gerais) e objetos muito próximos (close-up). Todavia a tecnologia evolue e as demandas de linguagem acabam por criar uma pressão para o aperfeiçoamento dessa tecnologia. Isso é o que se deduz da análise um pequeno filme documentário digital feito para a TV ZDF alemã, intitulado Die Huberbuam17 (2011) de Jens Monath. O documentário trata do trabalho de alpinismo realizado por dois irmãos. As imagens S3D utilizam diferentes tipos de câmeras adequadas a cada situação do filme: entrevistas feitas com os dois irmãos dentro de uma casa, deslocamentos aéreos entre as montanhas, acompanhamentos das escaladas em grande proximidade. O resultado é um filme extremamente imersivo, tanto do ponto de vista narrativo temporal (no acompanhamento dos eventos), como também no âmbito da representação tridimensional do espaço. Fica evidente que o documentário Die Huberbuam apropria-se da tecnologia S3D sem perder de vista as aquisições da linguagem cinematográfica obtidas desde o Direct e o Vérité. Apesar de ser um documentário feito em situação controlada, o uso de diferentes câmeras permitiu a superação dos limites de linguagem que o uso de uma única câmera acarretaria. Supõe-se que em breve teremos grandes modificações na estrutura narrativa dos documentários S3D, propiciados em parte pela tecnologia, e em parte por um método que se utiliza de câmeras diferentes para diferentes imersões ao longo da narrativa. A tecnologia depende dos avanços no conhecimento computacional do tratamento de imagens que está nas mãos dos engenheiros de computação; mas o método de filmagens, este sim é ainda o grande espaço de articulação representacional dos documentaristas.

17

Vídeo disponível em: http://huberbuam.zdf.de/ZDFde/inhalt/7/0,1872,8352935,00.html?dr=1, acessado em 21/12/2011

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O efeito de percepção do espaço tridimensional permitido pela estereoscopia é determinado pelo controle da paralaxe entre as duas imagens. Existem conhecimentos bastante precisos para a determinação dessa paralaxe, dentro de parâmetros aceitáveis ao conforto visual e também à formação de uma imagem tridimensional no cérebro. Estudos oftalmológicos (UKAI & HOWARTH, 2008; BANKS et al., 2011) demonstram que é possível determinar a paralaxe mais adequada a partir de proporções referentes à largura da tela. Assim é possível, através de um monitoramento analítico, a determinação de valores para a paralaxe, definindo com bastante precisão a percepção de profundidade da imagem estereoscópica. Aqui reside um ponto importante, ainda que parcial, do método a ser utilizado pelo documentarista: é necessário e possível determinar-se a paralaxe sem utilização de óculos especiais para visualização da paralaxe. Na figura 03 é apresentada uma imagem estereoscópica anaglífica na qual é possivel observar-se as diferentes paralaxes18 existentes na construção da percepção tridimencional desse espaço.

Figura 3 – Exemplo de imagem anaglífica sendo utilizada para monitorar a porcentagem de paralaxe negativa em relação à largura da tela.

18 Entende-se por paralaxe positiva a percepção de imagens de objetos situados em um plano situado atrás da tela; enquanto que por paralaxe negativa entende-se a percepção de imagens de objetos situados à frente da tela. À percepção de imagens de objetos no plano da tela, denomina-se paralaxe zero.

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Steve Schklair19 (MENDIBURU, 2011) afirma e defende a idéia de que os óculos deveriam ser utilizados apenas para a confirmação de que algum excesso de paralaxe não vai ferir os olhos dos espectadores, mas que a decisão deve ser tomada através da visualização direta (não mediada pelos óculos) das representações bidimensionais das paralaxes negativas e positivas observáveis nas imagens semelhantes a essa apresentada acima.20 O problema que ainda se observa nos sistemas de câmeras portáteis utilizados para S3D, é que os fabricantes não incorporaram esse método e tanto a JVC, a Panasonic e a Sony, fabricantes dessas câmeras, insistem com a visualização da imagem autoestereoscópica21 como forma de se obter as informações necessárias para a estereoscopia de uma determinada cena. Infelizmente esse tipo de visualização é muito ruim para as tomadas de decisão a respeito da paralaxe no quadro estereoscópico pois não possui a precisão necessária para essa atividade. Desse modo, ainda são necessários sistemas de monitoramento externos às câmeras para que se tenha acesso às informações mais precisas de paralaxe, de modo que, mesmo com a utilização de uma câmera portátil, há que se incorporar também o sistema de monitoramento, fato que se interpõe à portabilidade. Encerra-se este artigo com a explicitação da clara relação entre os efeitos da tecnologia sobre o método e a linguagem do documentário S3D. Isso não representa propriamente uma novidade, uma vez que a história recente do documentário, em grande parte, é mediada pela relação entre tecnologia, método e linguagem. Todavia, sempre que a tecnologia interpõe-se ao desenvolvimento da linguagem, é o método que irá experimentar os limites e determinar as verdadeiras possibilidades expressivas do documentário.

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FILMOGRAFIA Bugs! (2003) de Mike Slee. Creature from the Black Lagoon (1954) de Jack Arnold. Dial M for murder (1954) de Alfred Hitchcock. Die Huberbuam (2011) de Jens Monath Galápagos (1999) de Al Giddings e David Clarck. House of Wax (1953) de Andre de Toth. Hubble (2010) de Toni Myers. Primary (1960) de Robert Drew. Space Station (2002) de Toni Myers.

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Hélio Augusto Godoy de Souza é professor do PPG em Artes da UFMS e doutor em Comunicação e Semiótica – PUC-SP; mestre em Artes/Cinema – ECA-USP; graduado em Ciências Biológicas – IBUSP. E-mail: hgodoy@uol.com.br

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O problema da fronteira com base em teoria anticolonial da educação dos povos indígenas uma entrevista com 1

WOLFGANG JANTZEN MARIA SÍLVIA CINTRA MARTINS*

The problem of the frontier based on the anti-colonial theory of education of indigenous peoples: an interview with Wolfgang Jantzen

Maria Sílvia: Para muitos teóricos, chamados pós-modernos, o marxismo é considerado ultrapassado, particularmente no que se refere aos conceitos de trabalho e classe operária. Como você vê essa questão?1 Wolfgang Jantzen: Não acredito que possamos considerar que Marx não seja realmente moderno. Ele apontou para a auto-similaridade no desenvolvimento da sociedade a partir das fases primordiais, e para a mercadoria como unidade dialética fundamental, enquanto unidade dialética do valor de uso e do valor propriamente dito: através do trabalho concreto se produz valor de uso; do trabalho abstrato, valor. A base do valor de uso é o trabalho concreto; completando a unidade dialética da mercadoria Marx usa a noção de trabalho abstrato. Sobre o trabalho abstrato, podemos lembrar que Marx e Engels tinham em mente o conceito de trabalho da Física de sua época, especificamente a Termodinâmica que se preocupava com o fluxo de energia nas máquinas. Assim sendo, o trabalho é o resultado do fluxo de energia na matéria e o que provoca sua transformação. Trata-se de um processo de transformação em que parte da energia se dissipa numa forma mais entrópica: como no caso do carvão, que ao produzir calor se desfaz na forma de cinzas. Então, obtemos energia para fazer um trabalho concreto, mas no processo de trabalho abstrato perdemos algo. Ou melhor: na verdade não perdemos, mas a energia se transfor-

1 Wolfgang Jantzen é doutor em Filosofia, psicólogo e professor na Universidade de Bremen (Alemanha), na área de Teoria Geral sobre Educação Especial e Inclusão, onde desenvolveu, no período de cerca de 30 anos, uma teoria bastante complexa na linha da reflexão histórico-cultural do Marxismo e do Spinozismo. Publicou mais de vinte livros e 400 artigos. Mais informações podem ser encontradas em: http://www.basaglia.de/.


ma de modo que provoca a transformação da matéria. Nesse sentido, quando se produz valor de uso, o nível de energia decai e é necessário que seja restabelecido. Maria Sílvia: Mas alguns dos que criticam Marx alegam que não podemos mais pensar no trabalho como atividade fundamental… Wolfgang Jantzen: Eles não entendem de Física. Todo processo de transformação da matéria tem uma base física. E a base consiste no fato de a energia transformar a matéria. Sem a transformação da energia, não há trabalho em lugar algum. Podemos utilizar recursos naturais para isso, podemos usar máquinas, não precisamos usar nossa própria energia de forma mais direta. O que ocorreu no desenvolvimento da história prova isso, visto que no passado precisava-se de muitas pessoas que trabalharam duro, duro, duro… Maria Sílvia: E sobre não haver classes? Considera-se que hoje não há mais classes sociais… Wolfgang Jantzen: Nós temos classes, mas o problema é como defini-las. A definição de classe não é dada pelo trabalho, mas pela sua exploração. Essa é a base para definir. No nosso sistema, todo o dinheiro tem que ser investido na produção para gerar valor de uso e mais-valia. Assim, nos encontramos numa situação perigosa, em que o capital acumulado está todos os dias sujeito à especulação. Além disso, nossas reservas naturais de energia não são ilimitadas, elas estão se esgotando, o que põe nosso planeta em risco. Maria Sílvia: Por outro lado, se, ao que parece, particularmente na linha do pensamento da Escola de Frankfurt, não podemos mais ver o proletariado como classe revolucionária, qual seria então a classe que teria o potencial para a transformação? Wolfgang Jantzen: Esta questão é muito, muito importante. De acordo com o entendimento clássico a respeito da classe trabalhadora, ela foi pensada como o elemento mais importante, mas se olharmos no manifesto do partido comunista, veremos que a educação dessa classe é também tida como de importância fundamental. Isto está presente também em Gramsci, mas grande parte do partido comunista deixou esse contexto de lado. Maria Sílvia: Então a educação adquire uma importância fundamental nesse processo… Wolfgang Jantzen: A educação, a inteligência como parte das classes sociais, a inteligência orgânica da classe trabalhadora é que vai construir uma humanidade sem opressão. Esse é o pensamento comunista – em Gramsci isto está claro, nas “Cartas do Cárcere” essa questão foi retomada, a possibilidade do intelectual do proletariado. Daí deriva também a responsabilidade dos intelectuais. Maria Sílvia: E como fica a questão filosófica presente na Escola de Frankfurt – Adorno, Horkheimer – quando falam do poder da mídia, de um mundo dominado pela comunicação em massa?

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Wolfgang Jantzen: Em certo sentido isso também faz parte do pensamento dialético, na medida em que temos um lado escuro e um lado claro. Por isso também precisamos pensar que nem tudo é racional; além do lado racional, além da razão, temos também a vulnerabilidade do ser humano. Temos que levar em conta a vulnerabilidade geral de todo o ser humano. Este é o lado escuro: como pôde acontecer que o fascismo pudesse ter lugar, por exemplo? Como pensar em Auschwitz? Há problemas enormes que precisam ser superados. Daí a responsabilidade de cada ser humano, pois cada ser humano tem uma potência messiânica. Na linha do pensamento de Spinoza, nós somos responsáveis pela criação de Deus. E só podemos criar Deus através de trabalhos humanizadores. Se pensarmos na noção famosa presente no manifesto comunista, de que o desenvolvimento livre de cada um é a base do desenvolvimento livre de todos, isto também significa que temos que lutar contra todos os poderes de opressão. Temos que refletir, então, sobre o que é a razão. A razão é uma função social, um processo social. Se reduzirmos as funções sociais, cairemos no individualismo; se, por outro lado, superestimarmos o lado social, cairemos no estruturalismo – temos o exemplo clássico do pensamento de Althusser, o famoso pensador marxista francês. Temos que levar em conta o lado dos indivíduos e também o lado da sociedade. Nesse sentido, temos o pensamento de Spinoza e o pensamento de Marx, e temos que considerá-los juntos. Maria Sílvia: Não sei se eu entendi: o senhor quer dizer que Althusser modificou o pensamento de Marx? Wolfgang Jantzen: Althusser é um tipo de marxista estruturalista. Não que deixe de ter interesse, eu nunca digo isso… Maria Sílvia: Já sobre o conceito de função recursiva que o senhor mencionou repetidamente durante seu mini-curso, ele pode ser adotado para entender como o trabalho se manifesta na atualidade?2 Wolfgang Jantzen: Essa função está presente em toda existência humana. De outra forma não poderíamos compreender o processo de desenvolvimento cultural e nem mesmo o processo de evolução como um todo. Na reprodução de todo o ser vivo, em todo esse processo de evolução, nós temos a função recursiva. Todo ser vivo evolui nessa base, sempre recorrendo às formas anteriores de geração em geração, através de feedbacks e de loops na relação com o meio ambiente. Maria Sílvia: Então podemos entender que é como resultado da função recursiva que passamos a ter uma nova forma de trabalho?

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Mini-curso proferido por Jantzen no Lael, PUC/SP, em 2009.

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Wolfgang Jantzen: Os críticos de Marx não se dão conta de grande parte do desenvolvimento moderno na sociedade, não notam que o desenvolvimento da cibernética, o desenvolvimento nas ciências naturais modernas e na tecnologia têm como base o passado. Maria Sílvia: É na mesma função recursiva que o senhor se baseia quando remete às formas primárias de vida que seriam úteis para se compreenderem as formas complexas? Wolfgang Jantzen: Sim… Há processos de recursividade, que produzem auto-similaridade em todos os níveis, mas, nível a nível, os processos se tornam mais complexos, e esta similaridade é a auto-similaridade de todos os seres humanos. A auto-similaridade presente na sociedade humana é, à sua maneira, a auto-similaridade presente no início do desenvolvimento do ser humano. E a similaridade da expropriação presente na produção capitalista contemporânea está vinculada ao desenvolvimento do dinheiro e ao uso deste dinheiro para a apropriação e a exploração da força de trabalho, ou seja, há uma similaridade entre as formas de expropriação capitalista contemporâneas e as formas primárias de capitalismo. Maria Sílvia: Assim podemos dizer que há uma forma similar de se olhar para os organismos vivos e para a vida social? Wolfgang Jantzen: Sim, sim, há um grande número de princípios iguais, mas há diferenças, pois a função recursiva, na sociedade humana, adquiriu uma outra qualidade, em função da linguagem e em função do trabalho… Maria Sílvia: Ah, que interessante, pela linguagem e pelo trabalho… Uma outra qualidade… Wolfgang Jantzen: A linguagem e o trabalho, por estes meios foi construída a memória da sociedade. Maria Sílvia: A memória? Wolfgang Jantzen: Eles deram forma à história, à memória histórica de grupos de pessoas e da sociedade. Foi com base em ambos que a cultura foi produzida. Mas esse tipo de cultura, para produzir e reproduzir a memória histórica, baseou-se no artefato – como isto aqui, que é um artefato (referindo-se ao próprio gravador), ou meus óculos… Maria Sílvia: Podemos dizer, então, que a função recursiva que o senhor mencionou antes é a base do pensamento dialético? Wolfgang Jantzen: Gotthard Günther, um filósofo famoso da Alemanha, construiu a teoria lógica da dialética multidimensional, por ela se vê que a função recursiva é a base da dialética. O movimento recursivo pode produzir ressonância ou dissonância. Nos termos de Spinoza, podemos ter ressonância, que implica supressões, contradição. Preciso encontrar aqui a palavra que estou querendo dizer: sustentabilidade. Através da função recursiva, temos que produzir soluções, e não novos problemas. Por meio de processos

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sociais, chegamos a questões que foram desenvolvidas antes na Matemática, nas equações iterativas: o resultado de um primeiro passo influencia o resultado de outro, e assim por diante. É a mesma lógica que está presente na teoria da função recursiva na cibernética. Neste sentido, a postulação de Marx era muitíssimo avançada. Maria Sílvia: Bem, vou passar para uma outra pergunta bastante polêmica hoje em dia: podemos ou não dizer que há formas culturais mais avançadas? Nessa medida, como podemos interpretar a tendência atual do multiculturalismo e para a consideração da equivalência entre culturas diferentes? Wolfgang Jantzen: Em certos aspectos, podemos falar em termos de formas culturais mais desenvolvidas, particularmente no sentido da conquista de direitos humanos fundamentais. Maria Sílvia: O senhor quer dizer que no sentido moral, ético, há desenvolvimento? Wolfgang Jantzen: Sim, no sentido do desenvolvimento do senso de dignidade, neste sentido, dos direitos humanos comuns, eu acredito que temos o desenvolvimento cultural. Maria Sílvia: É que existe hoje entre nós uma postulação de conotação política que não admite que se fale em formas mais avançadas ou menos avançadas, ou se fazemos referência a culturas primitivas, muitas vezes não se admite essa referência nesses termos… Wolfgang Jantzen: Cada cultura é a mais desenvolvida a seu tempo, mas há também evolução e involução na cultura. Não direi que é melhor, mas poderei dizer que é mais humana no que diz respeito ao cumprimento dos direitos humanos. Temos a convenção anti-racista, a convenção anti-sexista, e a convenção referente às necessidades especiais é uma das últimas. Maria Sílvia: Gostaria de passar então para a temática da educação escolar indígena diferenciada, que resultou da Constituição brasileira de 1988. Compreende-se que as crianças e jovens indígenas precisam de uma educação escolar centrada em sua língua nativa e em suas tradições. Nós visitamos juntos várias escolas de São Gabriel da Cachoeira (AM) que praticam essa ideia, também presente na própria Secretaria de Educação de São Gabriel. Você acha que seria de fato possível uma educação simultaneamente voltada para a tradição indígena e também que os prepare, por exemplo, para o ingresso nas universidades? Wolfgang Jantzen: Com a finalidade de se comunicar efetivamente, tanto o pedagogo como o político precisam entender as condições estruturais nas quais existem e se desenvolvem, dialeticamente, o pensamento e a linguagem de um povo. Trata-se da demanda e do desafio de Paulo Freire. O pensamento dos povos indígenas não só contém e abarca a história cultural de seus pensamentos e de suas linguagens, como também as três ondas da colonização: assassinar, catequizar e neoliberalizar os povos indígenas. Ou seja: roubar sua terra, quebrar seus corações e destruir sua dignidade própria. Vimos o filme 70

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“Enterre meu coração na curva do rio” na casa grande de um povoado indígena do Alto Río Negro. Ele mostra muito bem como os brancos quebraram os corações dos indígenas para catequizá-los. E os efeitos da terceira onda podem ver-se pela orientação de muitos jovens desses povoados só para a aparência: segundo a moda das celebridades e da clase alta, e pela imitação de seus traços corporais, seu comportamento e sua roupa com a consequência de perderem sua dignidade própria e sua auto-estima. Com relação a sua pergunta: é claro que pode existir uma educação que combine as tradições com o futuro. Porém, em primeiro lugar, é necessário liberar as almas dos indígenas do peso de sua falta de auto-estima, do senso de inferioridade que sofrem como resultado do racismo da sociedade contemporânea. Lembre-se de nossa reunião com os estudantes indígenas na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Eles nos contaram histórias, experiências muito impressionantes, portadoras destas formas de racismo. Superar a opressão é tarefa dos oprimidos – essa é a mensagem de Freire. Com base em nossas experiências com os professores indígenas do Alto Rio Negro, estou seguro de que existe esta possibilidade e, além disso, que uma educação diferenciada é uma das condições necessárias para o desenvolvimento da auto-estima e da dignidade pessoal. Para isso, é necessário mudar o tipo de educação desde o princípio. Maria Sílvia: Existe um grande abismo entre a educação que as crianças e jovens indígenas vivenciam em sua comunidade e as demandas da educação acadêmica. No Canadá, vi que existem duas alternativas para enfrentar esse desafio: a frequência prematura dos jovens no ambiente acadêmico, antes ainda de terminarem os estudos de Ensino Médio (“High School”), e cursos especiais (de Matemática, Inglês. Projetos Acadêmicos) para os indígenas ao ingressarem na universidade. Que outros tipos de medidas institucionais podem ser sugeridas para fazer frente a esta problemática? Wolfgang Jantzen: Claro que gosto dessas ideias, mas em minha opinião necessitamos, ainda, e antes de tudo, de uma mudança na estrutura de ensino/aprendizagem combinando-se os métodos de Paulo Freire com a teoria sócio-histórico-cultural. Vou dar alguns exemplos sobre a abordagem dialética da teoria sócio-histórico-cultural quando aplicada ao ensino: 1) A introdução do “zero” na Matemática como mudança de unidade de medida (de capacidade). Esta questão teórica pode ser introduzida através de procedimentos práticos. Se você tiver alguns copos pequenos (de água, por exemplo) e passar a água para um copo grande, que a absorve completamente, terá então o número “um” (1) para o copo grande e o número “zero” (0) para os pequenos. Quando temos dez copos pequenos e um grande, que passa a estar cheio com o conteúdo dos copos pequenos, o “10” expressa o dez do sistema decimal. Os estudantes aprendem muito rápido com base nessas experiências de deslocar e comparar não só o significado do zero, mas também

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o significado dos sistemas numerais da matemática. Também aprendem que a multiplicação implica a mudança da unidade de medida.3 2) A introdução da geometría com base em experiência prática. O ângulo definese pela união de duas linhas retas. O retângulo pela união de uma linha vertical com uma linha reta horizontal. Essas linhas existem na prática da vida cotidiana, na construção das casas, por exemplo. Com base no conceito de ângulo, pode-se introduzir o triângulo que envolve diferentes ângulos com linhas retas de longitudes diferentes por meio de uma terceira linha entre os pontos finais das duas linhas que formam as bases do ângulo. É muito importante desenvolver a geometría com base em experiências práticas, como na construção de casas ou na divisão de campos, na orientação com base na altura do sol etc. E é também muito importante definir as regras exatas para construir esses corpos geométricos com base em construções práticas. É importante, assim, introduzir as regras da álgebra com base na experiência: medir e comparar quantidades de frutas, de cereais, de dinheiro. É muito importante conhecer o porquê dessas regras da geometría e da álgebra em todos os processos de aprendizagem dessas ferramentas. Por exemplo: por que necesitamos de porcentagens? 3) A introdução das relações e não só dos objetos. Por exemplo: não devemos falar só da ecología, mas também das relações entre (a) os seres humanos, (b) suas comunidades/sociedades e (c) a natureza com base na história cultural/ perssoal, social e natural. São relações em forma de trabalho (com formas diferentes) como (i) a relação entre homens/mulheres e a sociedade, tendose como base a divisão do trabalho e do poder institucional e de governo, (ii) a relação entre homens/mulheres e a natureza nestas formas, que (iii) resultam, existem e se desenvolvem com base em interações. Não basta perguntarmos como estas relações existem; é importante saber também por quê. Os mesmos princípios valem para o proceso de ensino e aprendizagem na universidade. Por exemplo: quando queremos ensinar questões elementares da psicología e da educação, temos que começar pela relação entre o indivíduos e os processos sociais e culturais. Daí ser necessário ter acesso às unidades básicas para entendermos o desenvolvimento do indivíduo. Na psicología de Vygotski, trata-se da unidade dialética dos pensamentos – medida pela forma social dos significados – e dos sentimentos – ou seja, a vivência. A unidade básica das sociedades, segundo Marx, é a mercadoria. As relações dialéticas entre as mercadorias, ou seja, a forma de produção das mercadorías é a forma básica para se entender o que significa a expressão “sociedade”. Por isso mesmo, eu sempre 3 Cf. V.V. Davydov (1991): “Psychological analysis of the operation of multiplication”. In: Steffe, L. (ed.): Psychological abilities of primary school children in learning mathematics. Reston/Virginia, 9-85.

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partia dessas relações nas minhas aulas do curso de Educação Especial na universidade. Eu começava mostrando a relação de isolamento que existe entre os deficientes e a sociedade em geral, pois seus problemas físicos podem se tornar barreiras muito difíceis de se superar se não houver uma mudança especialmente adequada para seus problemas. Estes exemplos devem ser suficientes para ilustrar minhas ideias. Em suma: é necessário transformar pela base o tipo de educação. Maria Sílvia: Yuri Lotman refere-se à zona destrutiva da fronteira (“outskirts”) que estaria em contato direto com o centro. A periferia (“outskirts”) é entendida como parte da cidade, mas também como pertencente a um lugar que destrói a cidade. Gostaria de escutar de você algumas considerações sobre centro/periferia com base no pensamento sócio-histórico de Lotman. Wolfgang Jantzen: Para Yuri Lotman a diferença mais importante é aquela entre o centro e a periferia. É a base do desenvolvimento das semiosferas. Como na teoria dos sistemas funcionais de Anokhin (e também na teoría de sistemas sociais e biológicos de Luhmann ou Maturana e Varela) a periferia tem que ser conservadora, porque contém o mecanismo de tradução entre semiosferas diferentes por meio do bilinguismo dos participantes. A periferia tem a forma conservadora para poder realizar uma comunicação aberta. Existem diferentes níveis linguísticos e sociais de tradução bilingue para desenvolver os significados dos conteúdos da comunicação com base em sentidos pessoais, envoltos em sentidos sociais/culturais diferentes nos diversos espaços temporais da cultura (cronotopos, na terminología de Bakhtin) (cf. Luria4 no que se refere a estes processos de construir ou entender atos de linguagem). Com base em estruturas conservadoras linguísticas (fonética, fonología, semântica, pragmática) e também sociais (campos espaço-temporais de diálogo, de reconhecimento mútuo como descrito, p.ex., nas obras de Bourdieu), os participantes abrem a semiosfera para as influências de outra cultura e, às vezes, exercem transformações através de uma mudança na periferia. É necessário que se entenda que há semiosferas em semiosferas em semiosferas, entre os polos da humanidade como um todo e, no outro polo, os seres humanos, as pessoas, e, entre esses polos, as sociedades, as instituições, as famílias etc. E estas semiosferas existem na forma de fluidos espaço-temporais. Em função da forma conservadora da periferia existe uma mudança dos conteúdos das diferentes semiosferas em cada momento, fato que conduz à transformação do significado e do sentido dos participantes. Por sua vez, desenvolve-se uma semiosfera bicultural. Já o centro tem uma forma contrária: em função da reunião de muitas vozes, necessita de uma forma aberta, embora o conteúdo seja conservador. Não vou descrever isso em detalhe aquí, mas indico o livro de Berger e Luckmann sobre os processos de institucionalização.5 Para se compreender a relação entre centro e periferia, é muito interessante notar que, na 4 5

Alexander Romanovich Luria (1985): Lenguaje y pensamiento. Barcelona, Martínez Roca. Cf. Berger, Peter L. & Luckmann, Thomas (1968): La construcción social de la realidad. Amorrortu, Buenos Aires.

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concepção de Lotman, não só existem espaço-tempos semióticos, mas também espaços extra-semióticos, que implicam o trabalho dos trabalhadores e artesãos. E, além disso, como consequência de suas ideias referentes ao polo das pessoas, a semiótica tem que existir incorporada nas pessoas. O corpo por si mesmo é um espaço-tempo extra-semiótico. Por isso, existem zonas bilingues, não só entre as pessoas, mas também nas pessoas. E a produção da subjetividade das pessoas nas ações produz uma transformação permanente nessas pessoas, que o centro do poder (o Estado, o Capital) tenta controlar; isso se dá, dentre outras formas, através da consciência intransitiva. Porém, com base na estrutura da periferia, é possível transformar essas formas em formas transitivas, através dos processos de ensino/aprendizagem, como Paulo Freire descreveu em suas obras. Maria Sílvia: São Gabriel da Cachoeira (AM) – uma cidade que visitamos juntos em julho/2010 – fica perto da fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Em que sentido as considerações de Lotman sobre centro/periferia podem nos servir para entender esse lugar? Wolfgang Jantzen: Em primeiro lugar, é necessário nos darnos conta dos signos semióticos corporais e urbanos para registrar a aparência da cultura da fronteira, nesse caso. Falo de uma cultura da fronteira, porque todos os signos demonstram a existência de uma zona bilingue, também uma mescla das culturas, mesmo uma luta entre culturas. Signos corporais são, por exemplo, os ombros muito fortes das mulheres indígenas (como resultado de seu trabalho muito duro na infância), por um lado; e, por outro, a semelhança com Barbie ou afins, além de outras formas de imitação da semiótica corporal da cultura hegemônica ocidental. É possível presenciar esta mescla de semiosferas culturais em muitos lugares, por exemplo, na missa na Igreja dos Salesianos, a que assistimos em São Gabriel. Nela se encontravam signos semióticos do catolicismo e das culturas indígenas. Por isso podemos dizer que a semiosfera da fronteira é uma semiosfera da cultura dominante e também da cultura do povo oprimido. Falando na linha da teoria de Bourdieu: é um campo (espaçotemporal) de lutas de poder. A base das lutas na fronteira não está somente no comportamento presente nas atividades individuais e conjuntas das pessoas, das instituições, dos povos indígenas, mas também nas atividades do governo brasileiro e do governo do estado do Amazonas. E, além disso, esses processos se dão dentro dos processos de globalização que se manifestam, de um lado, na destruição de grandes partes da Amazônia como resultado de intereses econômicos, e, de outro, nos interesses humanos, como aqueles que se encontram na “Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas”. Por isso, é necessário entender a fronteira como um espaço-tempo, uma semiosfera (Lotman), um cronotopo (Bakhtin), um sistema social (Luhmann) ou um campo de luta, campo de poder (Bourdieu). Vemos componentes destes compartimentos diferentes na semiosfera da fronteira. Como processos semióticos, têm conteúdos semióticos e pragmáticos (ou seja, significados), mas, além disso, contêm sentidos pessoais e sociais como base emocional e motivacional das ações dos participantes. Para mim, a mitología é a forma mais importante de reunião dos sentidos pessoal e social para os povos indígenas. É uma forma 74

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constituinte da identidade, da cultura e da subjetividade, e creio que pode ser vista como a base (mais ou menos oculta) do orgulho e da união política cotidiana desses povos, junto com a declaração de seus direitos. É possível perceber isso na sobrevivência dessa mitología, não só entre os diferentes povos indígenas, mas também entre os caboclos,6 além das formas de assimilação nas religiões cristãs. Por isso é muito importante descobrir e conhecer o núcleo dessa mitología, que é diferente do núcleo das culturas ocidentais, baseado no desenvolvimento do capitalismo, a partir do feudalismo, conforme foi analisado por Marx no “Capital”, envolvendo a transição da lei de valor para a lei de mais-valia. Esses procesos se manifestam na forma de ideologias, tanto nas ideologías antigas presentes nas religiões cristãs, no catolicismo e também no protestantismo, como na religiões atuais, como o neoliberalismo com seu Deus do mercado livre. Por isso tudo, temos que desvendar o outro polo das ideologías na semiosfera da fronteira. Não posso analisar aquí a base econômica, mas posso me referir à ideologia que não tem na sua base a demanda de se submeter a Deus e aos poderosos. Ao contrário das ideologías ocidentais, a mitología indígena presente entre os povos baniwa, por exemplo, abarca a ideia de que os seres humanos foram os criadores da criação e também tiveram a responsabilidade para com as crianças que ainda não haviam nascido.7 Por isso, na minha opinião, a fronteira geográfica não é um lugar diferenciado, trata-se de uma semiosfera de luta com vistas a se ganhar um sentido social adequado para os processos de libertação. Maria Sílvia: Poderia me explicar em que sentido – com base em enfoque socio-histórico – a periferia é uma área de processos acelerados? De que maneira a compreensão desse fenômeno pode nos ajudar a compreender realidades como aquela presente em São Gabriel da Cachoeira, e também em outras comunidades indígenas em processo de transição para a vida urbana? Wolfgang Jantzen: O núcleo da periferia é o diálogo e a base do diálogo é a subjetividade dos seres humanos. Esta não se deve desconsiderar. Porém, elas se expressam de formas diferentes em função das ideologías e dos lugares diferentes para se viver e da própria vivência. Vale lembrar: a periferia é conservadora por si mesma, por causa de sua natureza extra-semiótica, por causa de sua natureza corporal, e tem que se desenvolver em todas as circunstâncias. Por isso ela pode se expressar e se expressa de formas diferentes, seja, de um lado, pelo uso de drogas, pelo narcotráfico, a prostituição, a violência e, de outro, no compromisso com a humanidade, ou seja, respeitando-se e reconhecendo-se a multiplicidade, a diversidade, a variedade dos seres humanos. Além disso, pode expressar-se em muitas formas de aprendizagem e de trabalho, e também no compromisso político. Por isso tudo, existe a possibilidade de se dar um processo de transformação, às vezes 6 Cf. Chernela, Janet & Pinho, Patricia (2004). “Constructing a Supernatural Landscape through Talk: Creation and Recreation in the Central Amazon of Brazil”. Journal of Latin American Lore 22:1 (Winter), 83–106. 7 Cf. Wright, Robin (1998). Cosmos, Self, and History in Baniwa Religion. For Those Unborn. Texas UP, Austin.

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na forma de uma revolução, como se pode ver nos processos políticos atuais nos países árabes (Tunísia, Egito, Líbia). Você pode notar que nesses movimentos os diferentes sentidos pessoais se transformam num sentido social da multidão, um sentido comum, que, por sua vez, transforma os diferentes sentidos pessoais (esta transformação do sentido é o núcleo dos processos da aceleração na zona bilingue da periferia). Para acelerar os processos da periferia é necessário superar a consciência intransitiva das pessoas isoladas e gerar uma concordância, uma coerência na forma da emergência de uma psicologia de massas, a qual desenvolve uma consciência transitiva com base nesses processos (para citar esta ideia de Paulo Freire). Componentes parciais desse proceso se transformam em novas formas de auto-estima e de dignidade própria dos participantes. A participação nesses movimentos constrói uma semiosfera de orgulho na alma dos participantes, modifica o sentido pessoal, as emoções e as motivações. Em minha opinião, existe uma tarefa muito importante da educação, com vistas a desenvolver e aprimorar a auto-estima e a dignidade própria dos estudantes. Existe o dever de desenvolver e conectar as experiências individuais, sociais e históricas (por exemplo, a mitologia) no sentido da coletividade comprometida com os direitos humanos, contra a pobreza e contra a exclusão, não só para os povos indígenas, como também para todos os seres humanos. Em minha opinião, a educação comprometida com a totalidade dos direitos humanos é a base central dessa aceleração e poderá ser o caminho mais importante para realizá-la. Maria Sílvia: Gostaria de escutar de você uma explicação sobre o “mecanismo de espelho” mencionado por Lotman em “On the semiosphere”. Wolfgang Jantzen: Uma psicología completa não trata só do indivíduo como sujeito, mas também do envolvimento desse indivíduo em seu ambiente natural, social e históricocultural. Por isso, temos que usar teorias elaboradas nas Ciências Sociais, e também na Psicologia e na Linguística. Lotman se serve da figura da simetria de espelho como base do diálogo. É semelhante às soluções do psicanalista René Spitz.8 Segundo Spitz, o diálogo é uma função circular entre os participantes e, por isso, constitui uma ponte dos processos sociais que influenciam o bebê. Corresponde à ponte entre o indivíduo e a sociedade na forma dos reflexos condicionados pelos quais a libido entra em contato com o mundo. Na teoria do sociólogo Niklas Luhman, podem se encontrar estas pontes mútuas na forma da dupla contingência. “Ego” diz uma coisa e “Outro” responde outra a “Ego”. Mas “Ego” não pode saber como e o que “Outro” vai responder, e “Outro” tampouco vai saber como “Ego” vai responder a sua resposta. Esta contingência dupla, que se desenvolve entre ambos por sua comunicação dentro de um processo espiral, é a condição necessária para o

8 Emde, Robert N. & Spitz, René (1984). Dialogues from infancy. International UP, Madison, CT; Spitz, René (1988). Vom Dialog: Studien über den Ursprung der menschlichen Kommunikation und ihrer Rolle in der Persönlichkeitsbildung. Klett-Cotta Verlag, Stuttgart.

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desenvolvimento dos sistemas sociais de Luhmann.9 É a base do desenvolvimento do sentido social, na teoria de Luhmann é a fonte, é o núcleo da auto-organização dos sistemas sociais. Se olharmos mais adiante, veremos nas investigações sobre o apego da criança em fase de amamentação uma diferença muito interesante e importante que tem muitas vantagens para explicar essas teorias. Encontramos aí a diferença muito importante entre ressonância e reciprocidade. Para realizar a relação de um espelho em mutualidade e reciprocidade para com o outro (a simetria do espelho), como base do diálogo, os participantes necessitam construir uma sincronização de suas expressões. Com base nessa sincronização, cria-se uma ressonância afetiva como base e fonte de desenvolvimento do sistema social entre ambos, e essa sincronização é o apego. Com base na ressonância emocional, a criança de peito começa a repetir gestos e gritos para exercer influência sobre sua mãe, e a mãe também repete os gestos e gritos da criança conforme as formas de sua cultura, enriquecendo-os com novos gestos, trejeitos e palavras para estimular ou tranquilizar a criança. Com esta troca de expressões circular e em espiral, constitui-se, pelo diálogo e pela mediação social, o desenvolvimento social da criança em recursividade, que se pode comprender como proceso de interiorização na “zona de desenvolvimento próximo” (Vygotski).10 Novas semiosferas bilingues (ou seja, a estrutura da periferia) reescrevem as experiências dos participantes e, como se explica nas obras de Vygotski, a forma rudimentar dos participantes se transforma com base na reinscrição cultural de sua vivência. Existe um problema na teoria de Lotman: ela não mantém as emoções, nem as motivações, por isso as semiosferas são só cronotopos, espaço-tempos de conteúdos, tomando este termo “cronotopo” de Bakhtin.11 Porém, todos os conteúdos, todos os significados que o indívíduo aprende e está em vias de aprender estão envoltos no sentido pessoal dessas pessoas, envoltos em e acompanhados por suas necessidades, motivações e emoções. Por isso tudo, tem que existir primeiro um espaço-tempo na forma de um cronotopo afetivo entre a mãe e o bebê como forma de sentido social que pode realizar a transição dos significados para o individuo, transformados por sua vivência e envoltos em seu sentido pessoal. Julia Kristeva desenvolveu esta ideia através do conceito de “chora” (do grego para “útero”):12 há uma semiosfera afetiva entre a mãe e a criança de peito que mantém uma troca de movimentos e êxtase antes do desenvolvimento da semiótica (semiosfera proto-semiótica). Corresponde muito bem à sincronização dos afetos como base do diálogo, que produz ressonância para os participantes.

9 Niklas Luhmann (1991). Sistemas Sociales. Lineamientos para una Teoría General. Alianza/Universidad Iberoamericana, México 10 Vygotski, L. S. (2001). “Pensamiento y lenguaje”. En: ibid.: Problemas de psicología general. Obras escogidas II. A. Machado libros, Madrid 9-348; cf. 256pp. 11 Bajtín, Mijail (1989). “Las formas del tiempo y del cronotopo en la novela. Ensayos sobre Poética Histórica”. En: Teoría y estética de la novela. Taurus, Madrid. 12 Kristeva, Julia (1984). Revolution in poetic language. Columbia UP, New York; cf. además: Margaroni, Maria: “The Lost Foundation”: Kristeva’s Semiotic Chora and Its Ambiguous Legacy. In: Hypatia 20.1 (2005) 78-98.

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Maria Sílvia: Em São Gabriel presenciamos situações muito peculiares, como aquela da plaqueta escrita “banco”, sem que fosse de fato uma instituição bancária; também uma escultura com aparência clássica sobre uma casa. Parece-me que podemos ver, nestes casos, exemplos do que, para Lotman, seriam fragmentos de textos, característicos das regiões periféricas, que podem servir para a reconstrução dos textos que tiveram existência no núcleo da semioesfera. O que acha desta análise? Pode comentá-la? Wolfgang Jantzen: Vou lhe dar um exemplo como reposta a sua pregunta. Você se lembra do fugitivo indígena da Colômbia que encontramos na frente do nosso hotel en São Gabriel? Vou reproduzir essa situação com base nas notas de meu diário. Este senhor me perguntou alguma coisa que de pronto eu não entendia, mas, depois de mudar da língua portuguesa para a espanhola, eu lhe perguntei: “Por que o senhor está aqui?” Ele respondeu: “Por causa da liberdade no Brasil.” Eu retruquei: “Por causa da guerra civil, não?” Ele chorou. Pus minha mão no seu ombro e você perguntou a ele: “Você tem família? Está com você?” Ele chorou e disse que sim. Parecia que não tinha casa, estava muito desesperado. Eu lhe dei vinte reais. “Você pode comprar algo de que precisa para você e sua família. Não podemos ajudar mais, mas desejamos o melhor de todo coração.” Nos despedimos. Ele olhou o dinheiro por alguns segundos como se não compreendesse a situação. A quantidade de dinheiro foi importante. Não foi só um pouco para um mendigo qualquer, nem foi a expressão de compaixão. Foi um gesto de solidariedade. Você pode pegar essa situação como parte de um texto característico da situação de fronteira daquele lugar, nessas regiões da Amazônia. Pode-se, a partir dela, desenvolver todas as contradições e todos os problemas da situação atual dos povos indígenas: a contradição entre o terror e a liberdade, a história do continente que se expressa na liberdade deste fugitivo. É uma dupla liberdade: a liberdade do terror e a liberdade para manter sua existência pelo trabalho que não existe para esse senhor. Existe a situação normal deste grande continente latino-americano para grande parte de suas populações: não só a pobreza, mas também a exclusão do trabalho. Pode-se reconstruir, com base nesse fragmento, toda a história da América Latina, por exemplo, as ondas de colonização, as ditaduras militares, a expropiação pelos espanhóis, pelos portugueses, pelos americanos, pelos ricos, pelos grandes consórcios internacionais. Mas podemos também reconstruir a necessidade e o efeito do reconhecimento e da solidariedade. Podemos reconstruir, com base nesse fragmento, os movimentos da liberação na história deste continente, os movimentos grevistas dos trabalhadores, a resistência das mulheres da Praça de Maio, o discurso de Pablo Neruda ao receber o prêmio Nobel, a literatura progressista, os movimentos dos povos indígenas, que hoje conta com o primeiro presidente indígena na Bolívia, a teologia da libertação etc. Pode-se ver o papel internacional do Brasil, sua cooperação com os chineses, a situação mudando entre a América Latina e os Estados Unidos, que não só se pode identificar na mudança da política oficial, mas também nos resultados diferentes dos golpes de Estado em Honduras e no Equador no passado, ambos apoiados por instituições do Estado dos Estados Unidos, como a CIA. Podemos ver que a ideia de generalidades só se expressa na singularidade mediada pela particularidade, conforme as ideias desenvolvidas 78

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pelos grandes filósofos dialéticos Spinoza, Hegel e Marx. Resumindo: É possível reconstruir a totalidade de uma situação social se tivermos fragmentos de textos importantes que expressam a semiótica corporal, urbana e linguística de um lugar de fronteira, como esta situação que presenciamos em São Gabriel. Maria Sílvia: Gostaria, ainda, de poder escutar algo de suas impressões sobre Brasília e sobre aspectos de hibridismo, de mistura, ou seja, da convivência de elementos típicos do centro com aqueles mais próprios da fronteira ou da periferia. Wolfgang Jantzen: A fronteira existe tanto em Brasília como nos lugares da Amazônia que visitamos. É necessário distinguir a aparência do centro de sua essência. Como lugar geográfico e político, Brasília expressa o ser do centro, mas não é o centro. Vou deixar claras minhas ideias sobre as relações existentes entre centro e periferia – depois voltarei ao problema da fronteira, com base na análise efetuada por Marx, de forma a desvendar o núcleo da construção das figuras do centro e da periferia que aparecem tanto em Brasília, como na Amazônia. Para Karl Marx, a mercadoría é o núcleo de todos os processos sociais. Em função desse núcleo, desenvolvem-se as sociedades que traduzem o núcleo em níveis novos, através de processos de recursividade e de reinscrição representável. Isso corresponde à ideia de Hegel do Aufhebung ou superação de forma dialética, que implica, ao mesmo tempo, consevação. Podem-se explicar esses processos por meio das ideias da cibernética da segunda ordem:13 existe uma reinscrição recursiva da mercadoria na forma de um “Eigenwert” (valor próprio) ou de um “Eigenverhalten” (comportamento próprio). A mercadoria que expressa a unidade de troca enquanto relação com o núcleo (relação entre o valor de uso e o valor) se desenvolve por meio de novas formas sociais e econômicas que trasformam toda a economia. Isso depende da totalidade dos processos de produção, circulação, consumo e distribuição. Podemos acompanhar esse fenômeno da troca de bens na transformação da economia local em economia global e no desenvolvimento de especulações que reescrevem (veja-se a recente crise dos bancos) toda a economía do mundo. Por isso: a mercadoria é um núcleo, é o mecanismo constituinte, tanto para o centro, como para a periferia, tanto para a produção de bens, como para a produção e reprodução dos indivíduos. Deste núcleo, enquanto “valor próprio”, dependem todas as formas de desenvolvimento das relações sociais. Mas, é claro, não existe um determinismo direto. Como no caso de Deus (Deus=natura), na filosofia de Spinoza, a “natura naturans” (a natureza que cria) não mantém determinação total. Dito nas palavras do filósofo Della Rocca sobre Spinoza “Deus apenas faz parte do pacote”,14 13 Cf. Heylighen, Francis & Joslyn, Cliff (2001). “Cybernetics and Second-Order Cybernetics”. In: R. A. Meyers (ed.), Encyclopedia of Physical Science & Technology. (3rd ed.). Academic Press, New York (enlace en http://es.wikipedia.org/ wiki/ Cibernética_de_segundo_orden) (05.03.2011) 14 Cf. Della Rocca, Michael (2008). Spinoza. Routledge, London. “A mode follows not absolutely from God is to say that its follows from God only as a part of a package” (p. 70). “Determinism does not require that the antecedent conditions are themselves necessary” (p. 75).

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ou seja, dos processos recíprocos, das interações da natureza criada (natura naturata). A mercadoria é o núcleo da produção (o gameta) tanto dos indivíduos como das sociedades. Entende-se que esse núcleo se constiuiu com base na transformação dos animais aos seres humanos. A partir dessa constituição, se desenvolveu o centro como “trabalhador social geral” (“gesellschaftlicher Gesamtarbeiter”)15 e a periferia como trabalhadores em diferentes formas de trabalho, não só na produção, mas também na reprodução (e ainda como exclusão do trabalho em algumas partes da sociedade - ou seja, como exército industrial de reserva).16 Através da transformação do centro, se constituíram novas relações no feudalismo e no capitalismo, e neste último se deu a transição do capital financeiro para o capital global, que regula de novo os processos sociais através do poder dos grandes consórcios internacionais para além dos estados nacionais. Porém, temos que reter no pensamento que, nesta análise, o capital, compreendido como forma histórica do trabalhador social geral, é um parâmetro de análise para reconstruir os processos da essência. Claro que por isso existem diferentes lugares nas sociedades que expressam sua função de mediação, tanto no centro, como na periferia. Para os trabalhadores, por exemplo, da bolsa ou do estado ou das instituições jurídicas, estes lugares são periferias que produzem e expressam o centro em formas diferentes de sua estabilidade e de sua gramática social. Não é possível tratar de todas estas interações, vamos tratar do problema “sem frase” (de acordo com Marx). Como pensar a periferia entre os trabalhadores singulares e o trabalhador social geral nas condicões do capitalismo? De acordo com as palavras de Karl Marx, é pela interação dialética que a forma natural e a forma de valor se reúnem na mercadoria. É a relação entre o trabalho concreto, que produz bens, e o trabalho abstrato, que expressa a energia, que o trabalhador tem que inverter para a produção destes bens. Da perspectiva do trabalhador geral, só lhe interessa toda a energia de que necessita o trabalhador para produzir a forma natural, a forma dos bens, só lhe interessa a força de trabalho, claro, pela mediação da forma natural. Por isso, o trabalhador social geral regula essa troca com base na energía média de que os trabalhadores dessa sociedade necessitam para produzir esse bem. Entretanto, a forma de mediação transformou-se na transição para o capitalismo. Mediado pela forma natural do dinheiro (que expressa a forma de valor) e também pela possibilidade de usar, para desenvolver a produção, a força de trabalho de todo trabalhador só sob o aspecto da energia, o trabalhador só conta do ponto de vista de sua força de trabalho. Em consequência, o salário do trabalhador individual expressa mais ou menos esta forma de energia média. A forma capitalista das sociedades se expressa pelo interesse dos capitalistas em comprar esta força de trabalho muito barata e ganhar dinheiro com a venda dos bens produzidos pela prática 15 Cf. Carlos Marx (1980). Elementos fundamentales para la crítica de la economía política. (Grundrisse) 1857-1858. Siglo veintiuno editores, México. 16 “El conjunto de la fuerza de trabajo de la sociedad, representado en los valores del mundo de las mercancías, hace las veces aquí de una y la misma fuerza humana de trabajo, por más que se componga de innumerables fuerzas de trabajo individuales” (Carlos Marx: El Capital, libro 1, 48).

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do trabalhador. Em função disso, a interrelação mútua, na periferia, entre os incontáveis trabalhadores e o trabalhador social geral depende da totalidade das relações sociais neste momento histórico, as quais se traduzem na “magnitude de valor” de cada trabalhador na “forma de valor” (que expressa a média de trabalho abstrato necessário, ou seja, da energia necessária para se trabalhar neste momento espaço-temporal). Expresso em termos matemáticos: o trabalhador social geral tem que diferenciar os pontos singulares do trabalho concreto (produção dos bens como mercadorias) de forma a integrar o centro de novo. O centro, por isso, é o próprio movimento do trabalhador geral como processo. Este processo depende, de toda forma, da produção de diferentes bens que têm valor para a sociedade (pode ser uma mercadoria) e da energia que um trabalhador tem que realizar na produção para gastar o dinheiro para restabelecer-se em sua reprodução. Por isso mesmo, temos em todos os lugares de uma sociedade tanto a periferia como o centro. É possível perceber, no entanto, que o poder social das pessoas em diferentes lugares da periferia depende dos diferentes lugares de produção e reprodução nos quais estas pessoas trabalham, depende de seus capitais econômicos, sociais, culturais e simbólicos, nos termos de Bourdieu. É por isso que podemos ver, em Brasília, a expressão de ambos os polos da sociedade. A expressão da riqueza e do poder parecem tornar invisível o povo do polo da pobreza, que não conta com um salário adequado para sobreviver. O hibridismo não impede que se veja a pobreza: os ônibus, o transporte popular para os trabalhadores nas cidades satélite; os carros e, claro, os helicópteros, para os ricos. Podemos presenciar figuras do colonialismo nos hotéis e nos serviços sociais: os negros, os indígenas como subalternos; e, claro, a presença do sexismo como outra forma de exclusão. Na lista telefônica, entre os números de emergência, encontram-se aqueles de ajuda em caso de abuso sexual de crianças, e, no balcão de entrada do hotel em que nos hospedamos, uma placa advertia para não se levarem crianças nos quartos. Presenciamos, ainda, a greve de servidores do judicário, as manifestações de indígenas contra o desprezo ou negligência com que são tratados, ou seja, a luta coletiva bem diferente da miscelânea da classe governante. Respondendo de forma mais direta a sua pregunta, você pode ver que a dialética entre o centro e a periferia existe em todas as partes da sociedade. Porém, a fronteira não é a mesma na periferia. Ela contém formas institucionais, culturais, históricas contra o poder do centro na forma capitalista, contra todas as formas de exclusão que se podem identificar com base nos direitos humanos. Na fronteira, vista como um espaço-tempo, como cronotopo, se desenvolvem outras formas de regulação da sociedade, que visam controlar as relações com o trabalhador social geral através de formas novas, organizar outra distribuição da riqueza, superar a pobreza etc. O sentido da minha resposta deveria mostrar que, com vistas a desvelar o problema da fronteira e as estruturas da fronteira, é preciso analisar, não só as estruturas da semiosfera, mas também a estrutura da noosfera. Trata-se do espaço-tempo do planeta terra na forma da transformação da biosfera pelos seres humanos. A base dessa transformação até o presente é o trabalho humano na sua forma dupla: produzir bens e ganhar outros bens com base na

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energia gasta (através do dinheiro que expressa esta energia), de forma a ganhar sua vida. Por isso tudo, as explicações de Karl Marx, agora como antes, têm muita importância entre as teorias citadas (e entre muitas outras teorias), aqui, para desenvolver formas adequadas de entender o problema da fronteira. Maria Sílvia: Appadurai,17 em seu texto sobre a globalização, defende a necessidade do diálogo entre regiões centrais e periféricas neste momento atual. Como você vê essa possibilidade, sem a primazia do eurocentrismo? Wolfgang Jantzen: Com base em minhas respostas anteriores, você pode ver que, para mim, o centro e a periferia não são lugares, mas espaço-tempos fluidos, conforme Appadurai prevê. Por isso, os lugares dos países desenvolvidos só aparentemente são centrais, e aqueles dos países subdesenvolvidos, só aparentemente periféricos. O centro verdadeiro é a atividade, o qual pode ser visto, também, como um cronotopo fluido, ou seja, o movimiento e a pulsação do trabalhador social geral em sua forma histórica no capitalismo de hoje. O poder deste centro se expresa pelo poder dos capitalistas, que pode ser visto, também, na forma genérica, como “capitalista coletivo ideal”. É semelhante à ideia do “Império” bem conhecido pelos livros de Michael Hardt e Antonio Negri,18 embora não me agrade a superficialidade de suas argumentações, tanto no que diz respeito aos movimentos do capitalismo, como no que concerne aos movimentos do povo do mundo globalizado. Desaparecem, neste caso, todas as diferenças institucionais, locais, de qualificação, de exclusão pelo trabalho e também do trabalho, na sua visão total de uma “multidão” como sujeito novo da revolução. Com isso volto ao núcleo de sua pergunta. Para explicar esta situação, não podemos nos basear na ideia de centro e de periferia, mas na ideia de fronteira. A cooperação entre as diferentes regiões da periferia econômica do capitalismo (os países subdesenvolvidos) e suas regiões centrais se pode entender com base no nascimento de uma cultura humanística global, que respeita as diferenças com base nos dereitos humanos e rumo a uma democracia verdadeira. Podemos presenciar esta globalização das culturas democráticas em oposição às ideologias dos dominantes em suas formas cambiantes entre os ditadores, por um lado, e uma democracia só representativa e não participativa, por outro lado. Podemos analisar esta mudança nas formas do domínio com base na figura da mercadoria como forma basal da sociedade. As pessoas que dominam transformam sua força de trabalho para adquirir o poder como base de seu capital social, cultural, simbólico e, também – muito claro – de seu capital econômico. Elas conhecem sua alienação, porém gostam e desfrutam de seu bem-estar – expresso num trecho da obra

17 Appadurai, Arjun (2001). “Grassroots globalization and the research imagination”. In: Ibid. (ed.): Globalization. Duke UP, Durham 1-21. 18 Hardt, Michael & Negri, Antonio (2005). Imperio. Paidos Iberica. Barcelona; Hardt, Michael & Negri, Antonio (2004). Multitud: guerra y democracia en la era del Imperio. Debate, Madrid.

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de Karl Marx.19 Podemos ver, atualmente, que a fronteira está se modificando, de formas locais e nacionais para formas globalizadas com o uso da internet e dos meios de comunicação eletrônicos pela juventude de muitos países. É claro que existem movimentos contrários que visam enredar esses movimentos, e existe o perigo de enredar-se na teia, no emaranhado das ideologias dominantes. Trata-se, no entanto, da situação de fronteira presente em todos os lugares, tanto nos processos da globalização, como nos processos que vimos em São Gabriel da Cachoeira (AM) e que estamos analisando. Maria Sílvia: Você me contou que proferiu, no final de 2010, com base em nossa expedição ao Alto Rio Negro, uma conferência com o título “A educação dos povos indígenas na Amazônia – por que Luria não tinha razão em seu relato de Usbekistan”. Pode nos explicar, de forma sintética, sua discordância com relação a este famoso relato de Luria?20 Wolfgang Jantzen: Minha crítica em relação a Luria tem a ver com o dualismo de funções superiores e inferiores com base em suas interpretações teóricas, como no caso de explicar o uso diferente de soluções de silogismos em situações familiares ou não familiares. As respostas que os trabalhadores rurais de Uzbekistán forneceram a Luria apenas lhe pareceram subdesenvolvidas sob a ótica da forma lógico-funcional, e não propriamente como forma de pensamento, que pode até expressar-se através das soluções dos silogismos, porém, em função de seu contexto histórico-cultural, só se expresa para explicar situações conhecidas. Luria não deixou claro qual seria a importância do pensamento formal baseado em silogismos. Creio que considerava só a base como natural e as funções superiores como históricoculturais. Já Vygotski em seu livro “A teoría das emoções”21 criticou esta solução que ele próprio havia utilizado durante muitos anos. Esse dualismo parecia-lhe a expressão muito clara da visão dualista do cartesianismo. Em lugar disso, estabeleceu, em sua obra tardia, a diferença entre a forma rudimentar e a forma ideal. A forma rudimentar já contém, em suas origens, em seu núcleo, também a forma ideal. Em nenhum momento ela é só natural – ou seja, é social desde o princípio.22 Com base nessa ideia, Vygotski questionou definitivamente o cartesianismo presente na psicología. Ele reelaborou toda sua teoria a partir de sua conferência sobre “o primeiro ano” de novembro de 1932.23 Não obstante seus grandes 19 Marx, Carlos & Engels Frederico (1971). La sagrada familia ou crítica de la crítica crítica. Editorial Claridad, Buenos Aires: “La clase poseedora y la clase proletaria presentan el mismo estado de desposesión. Pero la primera se complace en su situación, se siente establecida en ella sólidamente, sabe que la alienación discutida constituye su propio poder y posee así la apariencia de una existencia humana; la segunda, por el contrario, se siente aniquilada en esta pérdida de su esencia, y ve en ella su impotencia y la realidad de una vida inhumana. Ella se encuentra, para emplear una expresión de Hegel, en el rebajamiento en rebelión contra ese rebajamiento, rebelión a la cual es empujada, necesariamente, por la contradicción que existe entre su naturaleza humana y su situación, que constituye la negación franca, neta y absoluta de esa naturaleza.” (p. 50). 20 Luria, Alexander R. (1987). Desarrollo histórico de los procesos cognitivos. Akal, Madrid. 21 Vigotsky, Lev S. (2004). Teoría de las emociones. Estudio histórico-psicólogo. Akal, Madrid. 22 Vygotskij, Lev S. (1994). “The problem of the environment”. In: van der Veer, René & Valsiner, Jan (eds.). The Vygotsky Reader. Blackwell, Oxford 338-354. 23 Vygotski, L. S. (1996). “El primer año”. En: ibid.: Psicología infantil. Obras escogidas IV. A. Machado libros, Madrid. 275-318.

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méritos, Luria nunca entendeu corretamente esta virada teórica fundamental, o que podemos perceber em sua compreensão bastante rudimentar da ideia de vivência que Vygotski considerava como unidade básica da psicología; também em sua compreensão da ideia de sentido pessoal de Leontiev,24 o qual buscaba desenvolver a ideia de Vygotski. Resultou com isso, no relato de Luria, uma ontologia das coisas, porém ele não chegou a entender os procesos dialéticos que se realizam como “autoignição”,25 da forma com que Vygotski descreveu o problema do desenvolvimento da linguagem por sinais dos sordomudos. Esses sinais espontâneos apresentam-se como fundamento de uma cultural especial dos sordomudos, mesmo daqueles sem educação formal. Com base nessa ideia, Vygotski levou mais adiante sua teoria nova da espontaneidade em “Pensamento e Linguagem”. Esta diferença e conexão das formas rudimentar e ideal pode-se encontrar, de forma muito semelhante às ideias de Vygotski, na distinção entre desenvolvimento funcional e ótimo do psicólogo Kurt Fischer da universidade de Harvard.26 Resumindo: Luria não conseguiu ver que a forma rudimentar já é dialética por natureza. Por isso interpretou os resultados de sua investigação do ponto de vista da forma lógico-analítica do pensamento. Porém, se não nos dermos conta da mitologia dialética como filosofia e também enciclopédia dos povos chamados primitivos – tanto os povos de Uzbekistán como os povos indígenas de hoje – cometeremos uma falta fundamental: aquela de não reconhecer essa forma dialética, não a reconstruir e não tomá-la como base no processo de ensino e aprendizagem das crianças, dos estudantes indígenas. Nesse sentido, se só confrontarmos o pensamento dialético das culturas indígenas dentro de uma orientação para os objetos e não para os processos, estaremos contribuindo para uma nova onda de colonização; ou, na linha do pensamento de Paulo Freire, praticaremos uma educação “bancária” e não uma “educação problematizadora”, “em cujo centro se acha a pregunta: por quê?”27 24 Leontiev, Alexei N. (1981). Actividad, conciencia y personalidad. Editorial Pueblo y Educación, La Habana. 25 Vygotski, Lev S. (1997). “La defectología y la teoría del desarrollo y la educación del niño anormal”. En: ibid.: Fundamentos de defectología. Obras escogidas V. A. Machado libros, Madrid 181- 188, p. 187. 26 Fischer, Kurt W.; Yan, Zheng (2002). “The development of dynamic skill theory”. In: Robert Lickliter & David Lewkowicz (Eds.) Conceptions of development: Lessons from the laboratory. Psychology Press, Hove/UK 279-312. 27 Wagner, Christoph (2001). “Paulo Freire (1921-1997) - Alfabetización: educación para la liberación”. En: D+C Desarrollo y Cooperación. N. 6, Noviembre/Diciembre p. 26-29) http://www.inwent.org/E+Z/zeitschr/ds601-10.htm (05.03.2011).

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Maria Sílvia Cintra Martins é Doutora em Linguística com pós-doutorado em Linguística Aplicada. Professora do Departamento de Letras da UFSCar; Líder do Grupo de Pesquisa “Linguagens, etnicidades e estilos em transição” (CNPq). Coordenou em julho/2010 expedição científica ao Alto Rio Negro, da qual participou o professor Wolfgang Jantzen. Parte desta entrevista lhe foi concedida pessoalmente por Jantzen em língua inglesa, no final do ano de 2009, ainda antes da ida conjunta à Amazônia. A segunda parte lhe foi concedida online, em língua espanhola, sendo as duas partes traduzidas pela mesma pesquisadora para a língua portuguesa com a finalidade desta publicação. E-mail: msilviam@ufscar.br.

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FOUCAULT e a questão antropológica

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ANA CAROLINA SOLIVA SORIA*

Resumo: Segundo Michel Foucault, o homem passou a ser objeto de investigação da cultura ocidental apenas no final do século XVIII e início do XIX. Ocupando-se em épocas anteriores de Deus, do infinito, da verdade, a filosofia passa a pôr o homem em questão apenas recentemente. As ciências positivas, criadas no século XVIII, apropriam-se da questão filosófica e dão-lhe novo contorno, a começar pela psicologia. O homem é a partir de então conhecido de modo positivo, racional, científico. Perguntamo-nos então: dar ao homem um contorno preciso e positivo não é, ao mesmo tempo, destruir o próprio objeto de investigação e sentenciá-lo, como objeto do saber, à morte?1 PALAVRAS-CHAVE: FOUCAULT, FILOSOFIA, ANTROPOLOGIA, PSICOLOGIA Foucault and the anthropological problem Abstract: According to Michel Foucault, man became an object of investigation in Western culture in the end of the 18th century and beginning of the 19th. Philosophy – which was before then occupied with God, the infinite and truth – only recently began to focus on man. The positive sciences, created in the 18th century, took over this philosophical question and gave it a new perspective, beginning with psychology. Since then, man was studied in a positive and scientific manner. We ask therefore, “Is man, as an object of knowledge, sentenced to death – is he destroyed as an object of investigation – when he is considered from a positive perspective? KEYWORDS: FOUCAULT, PHILOSOPHY, ANTHROPOLOGY, PSYCHOLOGY

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vastidão dos assuntos abordados por Foucault por vezes dificulta uma justa apreciação de seu trabalho. Os temas tratados por ele são continentais: vão das questões médicas ao exercício do poder, do estudo arqueológico do saber à revolução iraniana, trata ainda da economia, das ciências naturais, da linguística,

1 Gostaríamos de agradecer à professora Thelma Lessa da Fonseca pelas indicações bibliográficas gentilmente cedidas de Nietzsche e Marx.


das instituições sociais, dentre outros assuntos. Como tomar um ponto de apoio seguro para não nos perdermos em meio a essa massa de saberes? Os Ditos e escritos podem nos oferecer uma boa chave de leitura para o conjunto da obra de Foucault. Bernard Vandewalle, em seu artigo A análise do dispositivo antropológico nos Ditos e escritos de Michel Foucault, afirma que essa volumosa coleção é conduzida por um fio que a guia do começo ao fim, a saber: o motivo antropológico, ou, mais precisamente, a questão das condições de possibilidade das disposições antropológicas. Para o comentador, o que os Ditos e escritos nos revelam é que, para além das diferenças que separam a vastidão dos temas explorados por Foucault, há um ponto que marca a continuidade de seu trabalho. Como se sabe, os Ditos e escritos reúnem uma série de conferências, entrevistas, mesas redondas e artigos produzidos entre 1954 e 1984, ano da morte do filósofo. Essas três décadas dizem respeito ao período em que a obra de Foucault chegou a uma enorme difusão em meio ao público em geral. Esse período recobre também a apresentação de suas duas teses à Sorbonne, a publicação do Nascimento da clínica, As palavras e as coisas, Arqueologia do saber, Vigiar e punir, História da sexualidade e suas preleções no Collège de France, iniciadas em 1970. Desse modo, ao aceitarmos a tese proposta por Vandewalle, segunda a qual o motivo antropológico é o tema que une a diversidade contida em Ditos e escritos, admitimos também que esse mesmo tema poderia ser tomado como um guia que permitiria pensar a obra de Foucault – feita entre os mesmos decênios de 50 a 80 – como um todo. Nesse texto, procuramos entender a questão antropológica no pensamento de Foucault, tendo em vista a importância que ela assume em diferentes e variados momentos de sua produção.

Kant e a Antropologia A relação entre o motivo antropológico e a obra de Foucault pode ser evidenciada no texto de sua tese complementar de doutoramento. Em 1961, Foucault apresenta junto à sua tese principal acerca da história da loucura uma extensa introdução à Antropologia de um ponto de vista pragmático, de Immanuel Kant, seguida de sua tradução. Publicada na fronteira entre os séculos XVIII e XIX, ou mais precisamente em 1798, a obra de Kant aponta para um problema que ganhará forma no século XIX. Kant teria proporcionado para esse século a saída do sono dogmático no qual nos encontrávamos; saída que não significa para Foucault propriamente um despertar, mas a entrada em outra forma de sono, a saber: o “sono antropológico” (VANDEWALLE, 2003, p. 53). A entrada de nossa cultura em uma época antropológica teria como ponto fundamental o desenvolvimento do projeto crítico de Kant. As três questões expostas já em sua Lógica seriam retomadas, segundo Foucault, na Antropologia e iniciam um dispositivo no qual ainda hoje vivemos. Nas palavras do autor:

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Ora, retomemos o texto da Lógica, onde o havíamos deixado: isto é, no momento em que as três questões eram referidas a esta: o que é o homem? Esta questão, por sua vez, não permanece estável e fechada sobre o vazio que ela designa e interroga. Tão logo é formulado o “was ist der Mensch”, três outras questões nascem; ou melhor, formulam-se três imperativos do saber que dão à questão antropológica seu caráter de prescrição concreta: “Der Philosoph muβ also bestimmen können [o filósofo tem, portanto, de poder determinar]: 1. Die Quellen des menschlichen Wissens [as fontes do saber humano]; 2. Der Umfang des möglichen und natürlichen Gebrauches alles Wissens [o domínio do uso possível e natural de todo saber]; 3. Und endlich die Grenzen der Vernunft [e, finalmente, os limites da razão]” (FOUCAULT, 2008, p. 51).

Na sequência do texto, Foucault expõe que a determinação do primeiro ponto (as fontes do saber) dá conteúdo à questão posta na primeira Crítica: O que posso saber?. A determinação do segundo (o domínio do uso natural e possível de todo saber) dá conteúdo à questão norteadora da segunda Crítica: O que devo fazer?. E a determinação do terceiro ponto (os limites da razão2) dá sentido à questão que norteia a terceira Crítica: O que é permitido esperar?. Para Kant, a questão antropológica (a pergunta pelo que é o homem) faz referência, como nos mostra Foucault, às três perguntas que dão sentido à empreitada crítica e não pode ser separada dela. Dito de outro modo, trata-se de delimitar o homem simultaneamente a partir da delimitação do que se pode saber (pergunta referente à delimitação das fontes – Quellen – do saber), delimitação do que se deve fazer (pergunta referente ao domínio do uso – Gebrauch – natural e possível de todo saber), e delimitação do que é permitido esperar (pergunta referente aos limites – Grenzen – da própria razão). Para Foucault, a questão antropológica é aquela a que, no limite, toda a crítica kantiana se refere. Ela não esgota as três primeiras perguntas – que são mais evidentes na filosofia kantiana. O que Foucault nos diz é que todas essas três questões têm um ponto inicial e 2 Entendido como livre jogo entre razão e imaginação, em que a razão não assume o controle sobre a imaginação (não a constrange), mas sabe o seu lugar de atuação e dá espaço para que a imaginação movimente-se ao seu lado livremente.

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final, que é a quarta questão: “o que é o homem?” A pergunta pelo que posso saber, pelo que devo fazer e pelo que me é permitido esperar são questões específicas, particulares da filosofia. A pergunta mais geral, inaugurada por Kant na Lógica, é, como nos mostra Foucault, a questão antropológica. Esses três pontos não podem ser tomados separadamente, pois o homem não se esgota apenas na delimitação das fontes do saber, assim como não se esgota unicamente no uso natural e possível do saber, e muito menos na delimitação da razão. Se as três questões estão intrinsecamente ligadas, a direção na qual elas apontam não nos leva a um elemento que ultrapassa o próprio homem. Toda a filosofia kantiana se resolveria, segundo Foucault, em uma antropologia; a questão: “o que é o homem?” seria assim o ponto de partida e de chegada das outras três questões. “A Antropologia”, escreve ele em sua introdução ao texto de Kant, “não diz nada além do que diz a Crítica; e é suficiente percorrer o texto de 1798 para constatar que ele recobre exatamente o domínio da empreitada crítica” (FOUCAULT, 2008, p. 52). Ora, certamente Foucault não ignora o fato de haver uma reflexão sobre o homem nos filósofos anteriores a Kant. Podemos nos perguntar, assim, o que muda, segundo o filósofo francês, com a antropologia kantiana? Para ele, impregnada por um discurso matemático, a filosofia nos séculos XVII e XVIII tinha como questão fundamental o infinito. A questão “o que é o homem?” não fazia sentido senão quando vista por esse problema maior (o infinito), que a sustentava e a originava. O homem era assim um problema secundário e derivado. Ele só suscitava questão quando referido à filosofia do infinito; tomado nele mesmo, o homem não era a questão fundamental da filosofia. Em uma entrevista concedida em 27 de fevereiro de 1965 a Alain Badiou, intitulada Filosofia e Psicologia (FOUCAULT, 2001a, p. 466 et seq.), Foucault afirma que o homem suscitava inquietação quanto ao seguinte problema: sendo um ser finito, como pode ter, por um lado, o conhecimento do verdadeiro (e, consequentemente, do infinito) e, por outro, ser continuamente reenviado à finitude, tal como o sonho, o erro e a loucura. Tomemos o que Foucault escreve sobre Descartes no segundo capítulo da História da loucura: nas Meditações metafísicas, o sonho, o erro e a loucura não são evitados por Descartes. Contudo, o sonho e o erro são dissipados pelo exercício da dúvida. Esta “desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens do sonho, sempre guiada pela luz das coisas verdadeiras” (FOUCAULT, 2000, p. 47). No que diz respeito à loucura, é banida com o exercício da razão, que percebe a verdade. O pensamento não pode ter espaço para a desrazão quando realizado “como exercício de soberania de um sujeito que se atribui o dever de perceber o verdadeiro” (FOUCAULT, 2000, p. 47. Grifo nosso). O homem cartesiano, enquanto pensa, alcança o verdadeiro, e este, no exercício do pensamento, lhe é transparente. Há para Descartes uma comunicação imediata entre a representação e a verdade do ser, e o ser se anuncia imediatamente na representação cuidadosamente percorrida pelo método. Em Descartes, a transparência do mundo para o homem e do homem para consigo mesmo não o põem em questão.

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É exatamente isso que será modificado por Kant. Para Foucault, a diferença do filósofo alemão em relação a Descartes é que Kant põe termo à clareza representativa que caracterizava a idade clássica. Com isso, a verdade (ou o infinito) deixa de ser a questão fundamental da filosofia. Kant muda a perspectiva pela qual vemos o homem: pela primeira vez se interrogará sobre a finitude, e será a partir desse limite que a filosofia se desdobrará. O que Kant põe em evidência é que a representação é sustentada pelo obscuro da questão antropológica. Certamente o que devemos ter em vista é que o que interessa a Foucault não é determinar a verdade da representação clássica ou crítica, de responder à questão “o que é o homem?”, mas o que denomina como algo mais fundamental, a saber: tornar visível o dispositivo conceitual desta questão, o dispositivo conceitual que permite a formulação da noção de homem. Dito de outro modo, o que investiga é a condição que possibilita Kant colocar essa questão. O que tornou possível a aparição de uma inquietação frente ao tema do homem em nossa sociedade? É essa inquietação que legitima o aparecimento das ciências que têm no homem o seu objeto, a saber: as ciências humanas.

A reestruturação das ciências humanas, a começar pela psicologia O saber que traça o contorno da figura humana é, para Foucault, uma invenção do século XIX e supõe a determinação de um limite que impeça a delimitação de uma verdade fundamental do homem. Em seu artigo Nietzsche, Freud, Marx, Foucault faz referência ao limite interpretativo como um obstáculo intransponível para as ciências humanas: O inacabamento da interpretação, o fato de ela ser sempre despedaçada, e de ela ficar em suspense à margem dela mesma, acha-se, creio, de uma maneira bastante análoga em Marx, Nietzsche e Freud, sob a forma da recusa do começo. Recusa da “jornada de Robinson”, disse Marx; distinção, tão importante em Nietzsche, entre o começo e a origem; e caráter sempre inacabado da marcha regressiva e analítica em Freud. Alias, é sobretudo em Nietzsche e em Freud, em um grau mínimo em Marx, que se vê desenhar essa experiência que creio ser tão importante para a hermenêutica moderna, que quanto mais adentramos na interpretação, mais, ao mesmo tempo, aproximamo-nos de uma região absolutamente perigosa, onde não apenas a interpretação encontrará seu ponto de retorno, mas onde ela própria vai desaparecer como interpretação, encadeando talvez a desaparição do próprio intérprete. A existência sempre aproximada do ponto absoluto da interpretação seria ao mesmo tempo aquela de um ponto de ruptura (FOUCAULT, 2001a, p. 597-98).

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O que Foucault nos mostra é que, após Kant, avançar em direção à verdade fundamental e última impõe para aquele que avança a dissolução de seu objeto de investigação e, consequentemente, do próprio sujeito – já que o sujeito é também o objeto de investigação. No trecho acima citado, podemos enumerar alguns pontos que constituem o saber antropológico fundado no século XIX: 1º. Vemos que no artigo Nietzsche, Freud, Marx, a figura humana supõe, do ponto de vista filológico, psicológico e econômico, a instituição de um limite; 2º. Que não há verdade primeira e absoluta do homem; 3º. Que a atualização do motivo antropológico leva, ao mesmo tempo, ao desaparecimento de seu objeto; 4º. Que é necessário falar de um obstáculo intransponível que se opõe e que impede a análise antropológica. Esses pontos fazem clara referência ao que encontramos, por exemplo, em A interpretação dos sonhos, em que Freud analisa os próprios sonhos e invoca as razões de pudor ou de impossibilidade de revelar um segredo pessoal para interromper o fio interpretativo. Põe-se termo à análise sem que se tenha chegado ao “umbigo do sonho” (Nabel des Traumes) (FREUD, 1999, p. 116). O limite interpretativo é o ponto máximo do “delírio passageiro” (vorübergehenden Wahnwitze) (Freud, 1999, p. 108), para além do qual se dissolve a fronteira entre consciente e inconsciente, ou ainda, entre intérprete e interpretação. O trabalho analítico ganha com isso um caráter aberto e inacabado, pressupondo sempre um resto que não pode ser expresso pela linguagem, pois, como escreve Foucault, “não há nada de absolutamente primeiro ao interpretar, pois no fundo tudo já é interpretação, cada signo não é nele mesmo a coisa que se oferece à interpretação, mas interpretação de outros signos” (2001a, p. 599). O mesmo é válido para Nietzsche, cujo o limite interpretativo e linguístico pode ser encontrado no § 22 de Para além de bem e mal. Dedicado a criticar as interpretações e filologias ruins, hostis a tudo o que é “privilegiado e senhor de si”, o referido parágrafo se encerra com a seguinte declaração: “Posto que também isto [sua intenção e sua arte de interpretação opostas às artes-de-interpretação ruins] seja somente interpretação – e sereis bastante zelosos para fazer essa objeção? – ora, tanto melhor! –” (NIETZSCHE, 1987, p. 52). Quanto à crítica da economia-política, o limite interpretativo pode ser encontrado nos parágrafos iniciais do 18 brumário de Louis Bonaparte. Nele, Marx escreve que os homens fazem sua própria história, contudo não mediante escolhas voluntárias; fazemna sob condições transmitidas por seus antepassados. Para ilustrar esse problema, Marx toma como exemplo o aprendizado de uma língua estrangeira: um aluno principiante que sempre traduz as palavras do novo idioma para sua língua natal ainda não é capaz de fazer uso dele. Ele apenas poderá manejar o novo idioma quando não mais fizer apelo ao passado e esquecer sua própria língua no uso da nova. O mesmo se passa com os períodos de crise revolucionária, em que as gerações mortas oprimem as novas gerações. Estas, ansiando criar algo que nunca existiu, chamam em seu auxílio os espíritos do passado, tomam emprestados seus nomes, gritos de gerra, roupagens, com o intuito de continuar a mesma linhagem. Contudo, as novas gerações não podem produzir livremente enquanto

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não assimilarem o espírito do presente. Para Marx, quanto mais se apela ao passado, mais se perde o fio daquilo que se põe no presente. O problema do limite interpretativo, da impossibilidade de se encontrar uma verdade originária, dá à filosofia, mediante o conceito de inconsciente, um contorno à pergunta antropológica iniciada por Kant. Segundo Foucault, existe um limite interpretativo para a noção de homem, limite que impossibilita encontrar a origem última ou o fundamento último do objeto antropológico. Esse limite retira da consciência o poder de conhecer o ilimitado, o verdadeiro – como vemos no século XVII, por exemplo – e une a investigação antropológica a uma nova concepção: a de inconsciente. O inconsciente passou a ser objeto filosófico de investigação a partir do filosofo alemão Schopenhauer e é, segundo Foucault, essa concepção que reorganiza e recorta as ciências humanas.

No século XVIII, a psicologia se preocupa explicitamente em analisar a consciência (pensamentos, sentimentos etc.), e pode, portanto, ser definida como uma ciência da consciência. É apenas no final do século XIX que a psicologia ganha um contorno completamente novo, e o inconsciente passará a ser questão para ela. A psicologia, para Foucault, será a primeira das ciências humanas a se remodelar a partir desse novo ponto de vista e determinará a conversão das demais. Segundo o autor, no período que vai, grosso modo, de Schopenhauer a Nietzsche, ainda é possível dizer que a psicologia é uma ciência separada da filosofia (FOUCAULT, 2001a, p. 468). A definição herdada do século XVIII, da psicologia como ciência da consciência e do indivíduo, perde completamente valor com Freud, que reformula as bases da psicologia segundo a concepção de inconsciente dada pela filosofia. Para Foucault, são os pressupostos da filosofia que abrem espaço para

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a reformulação da psicologia. Em seguida, Freud transforma a relação estabelecida entre as diferentes disciplinas que têm no homem sua questão: se antes dele a psicologia estava separada da ordem fisiológica, com ele o inconsciente passará a ter sua fonte no corpo, e permeará inteiramente o campo fisiológico; corpo e alma não terão mais um limite rigidamente estabelecido, mas, antes, uma porosidade que permite que o corpo haja sobre a alma e vice-versa. O mesmo se dá com a separação entre indivíduo e coletividade, articulados a partir de então pela concepção de inconsciente: o que Freud propõe é que a coletividade a que pertencemos, a cultura em que vivemos faz parte de um núcleo original do ser humano, do qual ele é inconsciente. A coletividade está no indivíduo não apenas como a manifestação da expressão do agrupamento social que nos é dado no presente – seja a da grande massa (os fenômenos culturais de nosso tempo) ou do pequeno núcleo social (a família) –, mas também das vivências das gerações que nos antecedem. Dito de outro modo, as vivências de nossos antepassados se depositam nas camadas mais profundas do psiquismo, inacessível à linguagem e à interpretação, e dão forma à nossa individualidade. As ciências humanas, sobretudo as que circundam a psicologia, a saber: a fisiologia, a biologia, a filologia, a economia e a sociologia, passarão a estar impregnadas da cientificidade e positividade inauguradas pela concepção de inconsciente oriunda da psicologia. Esta não apenas reorganiza o espaço psíquico de tal modo que a consciência deixa de ter o lugar privilegiado nas ciências humanas, mas rompe, ao mesmo tempo, com uma separação epistemológica que havia entre indivíduo e coletividade, entre corpo e alma. A noção freudiana de pulsão permite pensar, por sua vez, o desaparecimento da própria diferença ontológica entre indivíduo e coletividade, entre corpo e alma. Com as pulsões – impulsos cegos que lutam entre si e movem o destino de todos os seres vivos – passamos do indivíduo à espécie e da espécie humana a todas as outras espécies em uma continuidade ininterrupta. As conformações corporal e psíquica do homem passam igualmente pela ação da pulsão sobre corpo e psiquismo. Nesse sentido, não se pode dizer que o corpo tenha um valor de existência maior ou menor do que o psíquico; ou que o indivíduo exista mais do que a cultura ou que a espécie. Não se pode também dizer que a psicologia encontra-se oposta à fisiologia ou à sociologia. Ao expandir a psicologia para além na ciência da consciência, Freud permite que se reestruture todo o domínio das ciências humanas. Isso faz da psicologia, segundo Foucault, a mais importante das ciências do homem, pois rege todas as outras. A esse respeito, citamos Foucault em sua entrevista concedida a Alain Badiou: […] descobrindo o inconsciente, drenou-se ao mesmo tempo todo um montante de problemas que não concerniam mais, precisamente, ao indivíduo e à alma oposta ao corpo, mas que se remetia ao interior da problemática propriamente psicológica, o que, até o presente, estava excluído da fisiologia (e reintroduz-se o problema do corpo) e da sociologia (e reintroduz-se o problema do indivíduo, com seu meio, o grupo ao qual ele pertence, a sociedade na qual

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ele está preso, a cultura na qual ele e seus ancestrais continuam a ser pensados); […] é realmente o confisco, pela psicologia da maior parte dos domínios que cobrem as ciências humanas, de tal modo que se pode dizer que a partir de Freud todas as ciências humanas tornaram-se, de um modo ou de outro, ciências da psyché. (FOUCAULT, 2001a, p. 469)

Para Foucault, o homem começa com um limite; limite este que é constitutivo de seu objeto – o próprio homem. A impossibilidade de chegar ao ponto fundamental da interpretação, como vimos com Nietzsche, Freud, Marx, nos mostra, segundo Foucault, um problema da própria linguagem em dizer o homem. A impossibilidade de se chegar a um fundamento mediante a atividade da filologia, do trabalho e do psiquismo dá à própria interpretação um caráter inconcluso. Com isso, afirma Foucault que se a interpretação não chega a um fim é porque nada há de objetivo para se interpretar. O homem que interpreta não é senão, ele mesmo, uma interpretação. Ora, podemos nos perguntar, então: definir o homem pelo trabalho, pela linguagem, pela alma e pretender lhe dar uma positividade, tal como o faz as ciências humanas, não é também condenar o homem, como questão fundamental, ao perecimento? Se a filosofia abre espaço para a psicologia, e esta para as demais ciências humanas, o caminho não é de mão única – também a psicologia, ao voltar-se para o tema do inconsciente, irá contaminar a filosofia com uma nova perspectiva: a do desaparecimento do homem – o que faz com que a positividade da psicologia (e, consequentemente, das demais ciências humanas) esteja apoiada sobre uma aberração, um vazio, uma lacuna. O que a filosofia faz é pôr em questão a concepção que ela mesma cria: o homem.

A morte do homem A questão antropológica é aquela à qual a filosofia está destinada desde o início do século XIX. Quando Foucault faz referência à antropologia como a questão central da filosofia, não entende por ela, tal como comumente fazemos, uma ciência com um campo ou objeto particular (ao lado da sociologia e da etnologia); a pergunta pelo homem é deslocada para um nível mais fundamental ou primordial: a antropologia ganha o significado de uma “estrutura propriamente filosófica que faz com que no presente os problemas da filosofia sejam todos alojados no interior do domínio que se pode denominar como sendo aquele da finitude humana” (FOUCAULT, 2001a, p. 467). O problema antropológico impõe imediatamente um limite interpretativo ao homem, que passa a determinar um espaço que é o da investigação filosófica. Se a partir de Kant a filosofia passa a ser, no fundo, uma antropologia, todas as ciências humanas somente se tornam possíveis no interior da filosofia. Em sua entrevista intitulada O homem está morto?, concedida a Claude Bonnefoy em 1966, Foucault expõe sua ideia de que a finitude do homem trouxe para a filosofia não

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apenas o fundamento, mas também a extinção dessa antropologia com a qual ela se ocupa. Proposto pela filosofia, a noção de inconsciente é retomada no final do século XIX pela psicologia, que se reestrutura a partir dela, remodelando os demais saberes que têm no homem sua questão. E é justamente no momento em que as ciências humanas se fundam em sua positividade que o homem desaparece filosoficamente. A positividade da psicologia e das outras ciências humanas faz com que elas não tenham como fundamento senão um vazio que é a existência do homem. O desenvolvimento das ciências humanas nos conduz, desse modo, muito mais ao desaparecimento do homem do que à sua apoteose. Quando Foucault fala da morte do homem, é necessário imediatamente precisar que é sempre uma morte em relação ao seu recente aparecimento, posto na forma da questão antropológica. Não devemos nos esquecer que, para o autor francês, antes de Kant, o homem não era posto em questão e, consequentemente, não existia. Trata-se da morte do homem como figura do saber. O que Foucault designa como nascimento do homem é o momento em que o saber se ordena em torno da figura do homem, ou ainda, no interior da finitude humana. Em As palavras e as coisas, Foucault escreve que no Renascimento o sistema de determinação por semelhança vigorava como um ponto estrutural de todo o saber da época. É o que permite a um médico, por exemplo, encontrar uma simpatia entre a noz e o cérebro, significada por uma analogia entre ambas, e receitar a casca verde da noz para as doenças que afetam o invólucro cerebral. A semelhança assegura um sistema universal das coisas entre si e do conhecimento que temos delas. Na idade clássica, o paradigma que estrutura os saberes é modificado. O mundo já não se revela diretamente por relações de analogia; ao contrário, tudo passa a ser representação. O ser da representação é imediatamente representação do ser; não há obstáculo entre eles. Existe, na idade clássica, uma natureza dupla do signo: este encerra a ideia da coisa que representa e da coisa representada. Todo signo apresenta simultaneamente seu ser representativo e o ser representado. É possível se chegar à verdade do ser pelo seu desdobramento em um signo. O discurso, como representação da representação, análise espontânea das representações, encontra nessa configuração do saber um privilégio decisivo. No século XIX, as coisas encontram sua verdade fora da representação. É isso que a concepção de inconsciente traz para o homem – sua verdade está fora de qualquer possibilidade de representação. Quando a duplicidade do signo no discurso clássico desaparece, o homem surge como questionamento filosófico – um homem finito, no qual se articulam processos orgânicos, mecanismos de produção, sistemas de conjugação. O homem é, assim, entrecortado pelo desejo, pelo trabalho e pela linguagem. A finitude humana se anuncia na positividade dos saberes desse ser que sofre, fala e trabalha. Positividade essa que já se constitui no interior de um sistema de códigos que faz referência ao desejo, à linguagem e à sociedade, e que só pode ser enunciada a partir da limitação do homem. O desejo, a linguagem e a sociedade não são o fundamento das ciências humanas, mas antes, a finitude que caracteriza o homem que é posto em questão. A finitude é 94

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simultaneamente princípio e resultado, abertura e fechamento. Pensamos objetos finitos, a partir de aberturas finitas do pensamento. Se na renascença tínhamos a semelhança do mundo, na idade clássica, a representação dos signos, o século XIX inaugura a finitude do homem que constitui a massa dos saberes: aquele do homem que quer, que trabalha e que fala. É a isso que Foucault denomina dispositivo antropológico do saber. O campo do pensamento aparecerá, desde então, cindido entre o pensador da finitude constituinte do homem – do lado da filosofia, e o sábio da finitude constituída – do lado do saber positivo acerca do homem. O que as ciências humanas não conseguem encontrar é o núcleo, o nó concreto e positivo de seu objeto de investigação: a existência humana. Quando se investiga o desejo, o trabalho, a linguagem, não encontramos o homem em sua verdade positiva, o que descobrimos são grandes sistemas de pensamento, grandes organizações formais que são o solo sobre o qual a individualidade histórica aparece. Sem esse substrato primeiro, cada interpretação dada não se refere senão a outra interpretação, sem que haja algo absolutamente primeiro a interpretar. Um tal pensamento pode assim reconstituir esses sistemas de pensamento, mas não a existência do próprio homem. A consciência que se tem ser humano como limitado, entrecortado por uma zona inconsciente, impede a própria pressuposição de um fundamento último para o homem. Estudamos o trabalho, o desejo e a linguagem, mas desconsideramos que os conhecemos com toda uma categoria de saberes já estabelecida, pela qual conheçamos a nós mesmos. O homem é, segundo Foucault, uma função tomada em um tecido sistemático da linguagem e não um fundamento. Para finalizar, voltemos à quarta questão posta por Kant em sua Antropologia, agora a partir de outro ponto de vista expresso pelo próprio Foucault, a saber: como pudemos sair desse grande sono antropológico? As chances de se pensar de outro modo, fora do lugar antropológico desenhado pelo século XIX, só podem surgir do anúncio de um desaparecimento do homem. A saída do sono antropológico faz com que a pergunta pelo sujeito do saber, por sua natureza ou existência, desapareça frente ao problema do próprio saber e das relações que se podem estabelecer “por um lado, entre os diferentes domínios do saber e, por outro, entre saber e não-saber” (FOUCAULT, 2001a, p. 571). No final da introdução à Antropologia, Foucault se pergunta sobre a possibilidade de ultrapassar essa configuração antropológica inaugurada por Kant. “A trajetória da questão: Was ist der Mensch? no campo da filosofia se completa na resposta que a recusa e a desarma: der Übermensch” (FOUCAULT, 2008, p. 79). Sair dessa configuração antropológica obriga imediatamente a criação de formas de existência até então inexistentes, aquelas, para usar o terno nietzscheano empregado pelo próprio Foucault, do além-do-homem (Übermensch).3

3 Seguimos aqui a tradução além-do-homem de Rubens Rodrigues Torres Filho para o termo alemão Übermensch, tal como exposta no volume Nietzsche de Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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Bibliografia FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1966. ______. Dits et écrits. Vol I. Paris: Gallimard, 2001a. ______. Dits et écrits. Vol II. Paris: Gallimard, 2001b. ______. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. Introduction. In: KANT, I. Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Vrin, 2008. FREUD, S. Die Traumdeutung. In: Gesammelte Werke. Vol. II/III. Frankfurt am Main: Fischer, 1999. KANT, I. Anthropologie du point de vue pragmatique. Tradução e introdução de Michel Foucault. Paris: Vrin, 2008. MARX, K. Os 18 brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Paz e Terra, 1978. MIOTTO, M. L. O problema antropológico em Michel Foucault. Tese (doutorado em Filosofia) – Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências, Universidade Federal de São Carlos, 2011. MONZANI, L. R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Ed. da Unicamp, 1989. NIETZSCHE, F. Para além de bem e mal: prelúdio de uma filosofia do porvir. In: Obras incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun, tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. Vol. II. São Paulo: Nova Cultural, 1987. SCHOPENHAUER, A. Le monde comme volonté et comme représentation. Paris : PUF, 2003. VANDEWALLE, B. L’analyse du dispositif anthropologique dans les Dits et écrits de Michel Foucault. In : MOREAU, P.-F. Lectures de Michel Foucault: Sur les Dits et écrits. Vol. 3. ENS Éditions: Lyon, 2003.

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Ana Carolina Soliva Soria é Doutora em Filosofia pela USP.

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Conto IVAN SPACEK*

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antínhamos uma relação de respeito mútuo. Tolerava-me sem demonstrar emoção alguma. Sempre acreditei não incomodá-lo com minhas visitas rápidas e esporádicas, ora para uma ducha sem pressão, ora para escovar os dentes diante de seu espelho barato. Aquele pedaço de vidro rachado, testemunha complacente, distorcia-me graciosamente salpicado por restos secos de Kolynos, perdigotos e mofo enegrecido. Confesso que me apeguei ao reflexo aquarelado e borrado que ele reproduzia diariamente de minha máscara preferida. Nunca me acostumei à imagem realista que outros espelhos bem tratados lançavam-me sem piedade. Convivemos assim por muitos anos. Eu deixava florescer fungos e bactérias, multicoloridos pontinhos em sua louça viscosa, e ele poupava-me de minha humanidade. Uma troca justa, escambo de ilusão por um banheiro sujo, com direito a visitas de baratas vagabundas.


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Ivan Spacek é artista plástico, escritor, roteirista e curta-metragista. E-mail: ivan@atibaia.com.br

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O (des) arranjo das lembranças notas sobre o ensaísmo fílmico em “Sem Sol” EDSON PEREIRA DA COSTA JÚNIOR*

Resumo: O ensaio como enunciado audiovisual permite ao cinema jogar com os elementos que configuram sua linguagem, experimentando e reinventando suas formas de expressão. Analisamos a inclinação ensaística de Chris Marker a partir de seu filme Sans Soleil (1982). Apontamos as contribuições do ensaio no que tange ao trabalho com a linguagem e ao pensar sobre a memória – tema que atravessa a película. PALAVRAS-CHAVE: FILME, ENSAIO, LINGUAGEM AUDIOVISUAL, MEMÓRIA, CHRIS MARKER The (dis)arrangement of memories: notes on the video essay in Sans Soleil Abstract: The essay considered as an audiovisual statement that allows the cinema to play with the elements of its language, experimenting and reinventing its forms of expression. We analyze the essayistic inclination of Chris Marker in his film Sans Soleil (1982). We point to the contributions of the essay to work with the language and to thought about memory – a theme that runs through the film. KEYWORDS: MOVIE, ESSAY, AUDIOVISUAL LANGUAGE, MEMORY, CHRIS MARKER

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ensaio surgiu na literatura como uma forma de escrita pautada sobre a liberdade de espírito. Nega o rígido, o vitalício ou qualquer tentativa de prescrição que vise a encerrá-lo em modelos pré-concebidos e duradouros. Sua natureza é lúbrica. Desliza por sobre as categorizações, agregando, por vezes, traços de umas e de outras sem, no entanto, fixar-se a alguma delas. O ensaio só pode ser apontado nas particularidades. Seguindo essa linha oblíqua, empreendemos um pensamento sobre a inclinação ensaística que permeia e dá forma ao filme Sem Sol (Sans Soleil, 1982), realizado pelo artista multimídia francês Chris Marker. É o ensaio, em sua configuração itinerante, que possibilita a Marker desdobrar o audiovisual para escrever1 sobre e através da memória.

1 Partimos da definição de Alexander Astruc (2008), em seu artigo “The birth of new avant-garde: la camérastylo”, sobre a câmera-caneta. O texto foi publicado inicialmente sob o título “Naissance d’une nouvelle avant-garde: la


Antes de nos determos sobre o filme, retomaremos brevemente a trajetória do ensaio dentro da literatura, indicando algumas matrizes que serviram como eixo comum às obras que o configuram. Foram as primeiras aparições no meio literário, pois, que abriram caminho para o uso das propriedades daquela genealogia, tempos depois, no cinema e em outras formas de expressão artísticas. Quem dá o primeiro passo em direção ao que hoje denominamos como ensaio é o francês Michel Eyquem de Montaigne, com sua publicação Essais, de 1580. Apesar de iniciar uma tradição literária, esta obra de Montaigne não significou a deliberação de preceitos ou normas que, daquele momento em diante, constituíram uma fórmula para a literatura ensaística. A produção de diversos pensadores e escritores que, ao longo desses quatro séculos, recebeu o título de ensaio nem sempre se assemelha ou carrega as características dos Essais de Montaigne (STAROBINSKI apud SIQUEIRA, 2006). A dificuldade de categorização do ensaio vem justamente das várias formas que este ramo da literatura assumiu desde suas primeiras manifestações. Não podemos atribuirlhe uma estética que sirva universalmente, muito menos um tema que seja comum. O ensaio vai de encontro à ideia de gênero. Por mais que este tenha capacidade de renovar alguns de seus elementos conforme o tempo, não é suficiente para circunscrever um texto ensaístico. Quando encontramos o gênero é, se assim podemos dizer, submetido a uma espécie de mestiçagem. Haroldo de Campos (1977), ao se referir à ruptura com os gêneros na Literatura Latino-Americana, considera que o barroco foi responsável por provocar uma fusão, um confronto entre culturas diferentes que culminou na não conformidade à partilha clássica do gênero e suas convenções literárias. As obras passaram a reunir elementos de outras correntes literárias ou que antes eram específicos a determinadas culturas. O caso ilustra o que acontece ao ensaio: ou recusa o gênero ou o trabalha em parceria com outros. A dimensão ensaística estabelece uma escrita que impede o leitor (ou espectador) de prever o próximo movimento. O que rege o ensaio é a incerteza. A não filiação a modelos estéticos e temáticos específicos não impede a existência de um eixo, uma linha que sirva de direção, mesmo vagamente. A preocupação com a linguagem e o olhar crítico sobre o meio no qual se desenvolve são fundamentais para a configuração da inflexão ensaística. Dentro das seis funções de linguagem definidas por Roman caméra-stylo, na L’Écran français, nº 144, em 30 de março de 1948. Esse artigo foi originalmente publicado na revista Montajes, da UNAM, México. Agora, revisto e modificado, vem a ser aqui editado.

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Jakobson (1977), o ensaio enfatiza a metalinguística e a poética, em detrimento das demais: referencial, emotiva, conativa e fática. O texto ensaístico tende ao desdobramento, principalmente, do código e da mensagem. A metalinguagem, reservada inicialmente à estética e à ciência da literatura, é desenvolvida no domínio literário por Mallarmé em Un Coup de Dés (1897). Trata-se, para Haroldo de Campos (1997), de um poema que questiona a si mesmo sobre a essência de poetar, marcando um momento em que a reflexão sobre a arte acaba sendo mais importante que a própria arte. A dimensão metalinguística nada mais é que um lançar-se sobre o código, um momento em que a linguagem fala da própria linguagem. Desnuda-se o processo, a forma pela qual a mensagem é transmitida para revelar “a arquitetura mesma da obra à medida que ela vai sendo feita, num permanente circuito autocrítico” (CAMPOS, op. cit., p. 36). O texto ensaístico volta-se para si através de operações metalinguísticas que compreendem desde a interpretação de um signo linguístico por meio de outros signos da mesma língua – como é o caso das substituições por sinônimos – (JAKOBSON, 1977) até a remissão direta (ou indireta) ao código, como costuma fazer Jorge Luis Borges ao mencionar e criar dentro de suas ficções e ensaios histórias ou enredos referentes ao universo literário. Juntamente à metalinguagem, o ensaio desenvolve a função poética. Debruça-se sobre o aspecto material dos signos, sobre a estética da própria mensagem. Molda o texto e seus componentes a fim de transmitir o conteúdo de maneira mais desenvolvida, através de uma forma que também é discursiva. O escrutínio da mensagem vem acompanhado de jogos e relações textuais entre os signos, tornando-a mais eficaz ao que propõe comunicar. Ao falar ou escrever, o sujeito seleciona entidades linguísticas e as combina em unidades linguísticas. Jakobson (1977) distingue duas formas de arranjo dos signos da linguagem: a combinação, pois todo signo é composto de signos constituintes e/ou aparece em combinação com outros; e a seleção, que consiste na escolha entre termos alternativos, substituindo um por outro – equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro. Saussure (apud JAKOBSON, op.cit.) complementa a esta distinção as características “in prasentia” e “in absentia”. O linguísta considera que na combinação as entidades estão situadas, necessariamente, na mensagem. Estão, portanto, em presença. A seleção, por outro lado, se dá em ausência, pois se refere às entidades associadas no código e não na mensagem. Em outras palavras: o enunciado dado (mensagem) é uma combinação de partes constituintes (frases, palavras, fonemas etc.), inseridas no próprio contexto, selecionadas do repertório de todas as partes constituintes possíveis (código). A seleção se opera na equivalência (semelhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia), enquanto a combinação se ampara na contiguidade, na construção de uma sequência. Recapitulamos os modos de arranjo dos signos linguísticos a fim de enfatizar que, na função poética, a equivalência do eixo de seleção se projeta sobre o eixo de combinação. Isso, segundo Jakobson (1977) significa que a equivalência adquire funcionalidade não apenas na seleção, mas é adotada como um recurso de configuração da sequência. Retomaremos as funções metalinguística e poética na análise da estrutura de Sem Sol. 102

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Ao apuramento estético, herança do meio literário de onde adveio, o ensaio alia a reflexão tenaz sobre o seu objeto. A forma é, antes de uma finalidade, um meio que se complementa ao exercício teórico. Aqui, há um cruzamento da arte literária com o desejo acadêmico da busca pelo conhecimento, do pensar sobre uma questão que inquieta o autor. O ensaísta incorpora o refinamento do escritor à curiosidade do filósofo, borra as fronteiras que separam a arte da ciência. Para Arlindo Machado (2009, p. 20), o ensaio nega a dicotomia entre literatura e ciência, entre experiência sensível e cognitiva: nele, “as paixões invocam o saber, as emoções arquitetam o pensamento e o estilo burila o conceito”. Não devemos confundir o desejo em explorar o objeto, com o rigor do cientificismo. O ensaísta mergulha no conhecimento, mas sem recorrer à busca por uma verdade universal, definitiva e irrevogável. O texto com inflexão ensaística tenteia sem vaidade, rebelando-se “contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável, o efêmero, não seria digno da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustiça cometida contra o transitório” (ADORNO, 1986, p.174). O ensaio se satisfaz com o parcial diante do total, com um saber fragmentário, não totalizante. A liberdade de espírito é fundamental àquele que se lança à tradição ensaística. Ao preferir a modéstia à vaidade do cientificismo, o parcial ao total, o ensaio também abdica da obrigação de começar de algo primeiro, de uma introdução que busca os dados mais longevos sobre o assunto, e do fechamento com uma conclusão que dispensa adendos. O ensaio começa de onde acha preferível e “termina onde ele mesmo acha que acabou, e não onde nada mais resta a dizer: assim ele se insere entre os despropósitos” (ADORNO, op. cit.). Não há contrato com uma visão absoluta, total. Compreendemos o porquê da tradição positivista, fiel ao espírito científico que se acredita capaz de apreender a realidade integral e objetivamente, posicionar-se na defensiva contra o ensaio, forma que pressupõe a impossibilidade de alcançar a verdade, evitando uma certeza indubitável. A distinção entre sujeito e objeto, tão cara ao positivismo, é recusada pela tradição ensaística, que não esconde a influência das emoções, do “eu” de seu autor dentro do texto que escreve. O relato objetivo cede espaço à tendência que Machado (2009) caracteriza como a subjetividade do enfoque que, em determinados casos, consiste na explicitação do sujeito que fala. É Adorno (1986, p.169), mais uma vez, quem precisa essa inclinação: A objetiva pletora de significações encapsuladas em cada fenômeno espiritual exige de seu receptor, para ser descoberta, exatamente aquela espontaneidade da fantasia subjetiva que se condena em nome da disciplina objetiva. Nada pode ser extraído pela interpretação que, ao mesmo tempo, não seja introduzido pela interpretação.

A permeabilidade do objeto aos sentimentos e outros aspectos pessoais do sujeito não deve encerrar o ensaio dentro do gênero autobiográfico. O texto ensaístico pode carregar, sim, marcas da experiência de vida de seu autor, mas não se resumo ao relato dos

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fatos diários e cotidianos concernentes à vida do sujeito. Por meio das cartas enviadas pelo personagem Sandor Krasna (heterônimo do diretor) em Sem Sol, encontramos marcas da subjetividade de Chris Marker. Isso não significa a adesão do filme à autobiografia. Enquanto esta se centra na descrição de fatos e ações da vida que se conta, o ensaio utiliza a experiência do autor como ponto de partida para refletir sobre questões externas e mais amplas que, na medida do possível, reverberam uma interioridade (SIQUEIRA, 2006). As produções ensaísticas não obliteram o cotidiano e a narração das intimidades do autor, o sujeito aceita seu envolvimento com o processo, direcionando sua reflexão sobre o objeto a partir de um olhar descrente da neutralidade. Há correlação com o que Benjamin (1994) escreve sobre a figura do narrador, que se desenvolveu sobre dois grupos: o dos marinheiros comerciantes e o dos homens sedentários. Os primeiros viajavam pelo mundo e, ao voltar, contavam suas aventuras além-mar. Os segundos viviam durante toda a vida na mesma terra, conhecendo os costumes e tradições dos que lhe antecederam. Chris Marker parece um meio-termo entre os dois conjuntos: comporta-se como globe-trotter e, simultaneamente, preocupa-se com a tradição e a cultura dos lugares por onde passa – incluindo sua terra natal, a França. De um modo ou de outro, imprime sua experiência.

Eloquência, liberdade, afeto: a escrita ensaística de Chris Marker O primeiro filme da história do cinema a utilizar a forma ensaística não é precisado ao certo. Sabe-se, porém, que Chris Marker foi um dos pioneiros a experimentar tal tradição literária nos domínios do audiovisual. O realizador, juntamente a Agnès Varda e Alain Resnais, criou a gramática de um novo cinema, na metade da década de 50. O grupo atuou junto no coletivo de cineastas Left Bank Group e estabeleceu novas práti-

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cas para o documentário, deslocando-o do “docucus” 2 (didatismo documental em que a imagem é mero ilustrativo do texto), a partir da inventividade sobre as problemáticas teóricas: confrontação de temporalidades e conciliação de heterogeneidades, reflexão sobre as formas de montagem e composição, exploração da divisão entre real-imaginário, inteligência da imagem e reflexões sobre a imagem a partir do comentário (LAMBERT, 2008). O cuidado em jogar com os componentes da narrativa cinematográfica marca toda a filmografia do diretor de Sem Sol. É com Cartas da Sibéria (Lettre de Sibérie, 1957) que Marker instaura um divisor dentro do que vinha sendo feito até então no documentário, demonstrando a capacidade do audiovisual em incluir, na sua linguagem, a inflexão ensaística. O artigo homônimo de André Bazin sobre o filme se tornou célebre ao abordar a hipótese do ensaio no cinema. Na tentativa de propor uma definição para a natureza do filme de Marker, Bazin (1998, p. 258) o conceitua como um “ensaio documentado pelo filme. A palavra importante sendo a do ensaio, entendido no mesmo sentido que na literatura: um ensaio ao mesmo tempo histórico e político, ainda que escrito por um poeta”.3 O autor enfatiza o papel que a inteligência – e sua expressão imediata, a língua – recebe em Cartas da Sibéria, ao inverterem a tradicional construção de sentido de plano a plano, em prol de uma montagem que vai do comentário à imagem ou “da orelha ao olho”4 (BAZIN, op. cit., p. 259). Resgatamos também os dizeres de Ricard Roud5 (2009, p. 42), para quem o diretor escreve um filme como se escreve um livro: O mais notável aspecto dos filmes-ensaio de Marker é que seus fascinantes e enlouquecedores comentários extremamente literários não parecem ter precedido a filmagem e nem se seguido a ela. A imagem, o texto e a ideia parecem milagrosamente criados simultaneamente.

Os autores sublinham o lirismo e a importância que a palavra (através da voz over) tem ao estabelecer novas articulações com a imagem, extrapolando seu papel usual de reforçar o que é visto. Estabelece-se uma nova ordem na qual o comentário dialoga com a imagem, podendo concordar, desmentir ou complementá-la. Averiguamos nos filmes de Marker uma concepção da imagem que recusa o estatuto indicial e indubitável, provindo da relação direta que a imagem captada pela câmera tem com o mundo real. Em Cartas da Sibéria como em Sem Sol, Nível cinco (Level Five, 1997) e outros filmes do 2 O termo é utilizado por Arnauld Lambert (2008). 3 No original: “(…) un essai documenté par la film. Le mot important étant celui d’essai entendu dans la même sens qu’en littérature : essai à la fois historique et politique encore qu’écrit par un poète” (tradução nossa). 4 No original: “(…) de l’oreille à l’oeil” (tradução nossa). 5 O artigo que utilizamos do autor foi originalmente publicado sob o título “Left Bank Group”, na revista Sight and Sound, vol.32, nº1, 1962-1963.

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diretor, a imagem é, antes de tudo, fonte de enunciados, discurso, e não um documento objetivo e imparcial. Já aqui encontramos o que Adorno (1986) entende pela tendência do ensaio em se rebelar contra o purismo científico e sua arrogância por apreender a realidade objetivamente. Trata-se não da perda do valor documental da imagem, mas, antes, de lembrar que a imparcialidade é uma ilusão (BAZIN, 1998). Corresponde-se ao que Jost (2009) pondera sobre todo plano cinematográfico conter, virtualmente, uma pluralidade de enunciados narrativos que se sobrepõem. A sequência inicial de Sem Sol mostra três crianças de mãos dadas caminhando em uma encosta, na Islândia. O plano isolado pode remeter ao espectador uma série de significados. A narração, porém, sobrepõe à imagem uma camada de significação: “A primeira imagem de que ele me falou foi a de três crianças em uma estrada, na Islândia, em 1965. Ele disse que, para ele [grifo nosso], era a imagem da felicidade.” A fala não reduz a imagem a um sentido único, não se constitui como uma verdade, mas se mostra relativa a um olhar. O apuramento dos comentários em voz over nos filmes de Chris Marker traz à tona a influência do meio literário. As primeiras manifestações do diretor no meio cultural francês se deram em periódicos culturais e políticos (como o jornal Esprit), nos quais publicou poesias, contos, críticas de filmes e livros, e ensaios sobre literatura e política. Também é autor do romance Le coeur net (1949), que anunciou um procedimento de montagem frequente em seus filmes: uma aparente ou suposta ubiquidade (GAUTHIER, 2001). Verificamo-la em Sem Sol quando o diretor aproxima imagens feitas na África, Japão, Islândia, Île-de-France e Estados Unidos, como se se fizesse presente em todos os lugares ao mesmo tempo. A eloquência característica da voz over pode levar a crer em uma seriedade exacerbada. Isso de fato aconteceria se Marker não aliasse, como faz, o lirismo verbal a um senso de humor crítico e provocador. Os comentários de seus filmes estão mais próximos de impressões, interpretações livres sobre o que chama a atenção do realizador: desde a banalidade (como ressalta em Sem Sol) até as grandes questões, como a memória e a história. Existe no comentário markeriano um tom de despojamento típico do ensaio no que tange a renunciar às ideias conclusivas para adotar uma postura reflexiva que se constrói por meio de conexões que não distinguem entre o saber fruto do conhecimento científico e o saber afetivo, fincado na experiência. O que permite a Marker trafegar sobre as várias formas de conhecimento e, ainda assim, assumir uma postura de proximidade com o espectador, como quem compartilha algo precioso, é a estrutura epistolar adotada em parte de sua filmografia, a exemplo de: Cartas da Sibéria, O mistério Koumiko (Le mystère Koumiko, 1965), Sem Sol e O túmulo de Alexandre (Le tombeau d’Alexandre, 1993). Os filmes são constituídos como se fossem correspondências endereças ao espectador ou a alguém da própria diegese. A carta como parte da estrutura fílmica permite o enfoque do “eu” e remete diretamente a um gênero referente à literatura de viagem. “Eu te escrevo de um país distante”, frase que inicia Cartas da Sibéria, foi uma das grandes contribuições de Marker para a história do cinema moderno. 106

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O diretor reformulou “a enunciação tradicional do documentário, supostamente neutra e objetiva, assumindo o discurso da primeira pessoa e a subjetividade do olhar – reivindicações clássicas do ensaísmo”6 (LAMBERT, p. 63, 2008). Daquele momento em diante, continuou partidário à explicitação das marcas subjetivas. O modo de reflexão perpassado pela pessoalidade do autor vem desde Montaigne. O escritor francês afirmava que a matéria de seus Essais constituía-se de si próprio. Acrescentava a isso sua ideia de que “a abertura para o mundo vai de par com a abertura para si mesmo” (MONTAIGNE apud SIQUEIRA, 2006). O “eu” é uma porta de entrada para pensar o que nos rodeia. Ancorar uma reflexão na voz pessoal é mais um modo de se dirigir ao outro. Chris Marker não foi o único a fazer valer a ideia de uma biografia do mundo que se desenvolve, inicialmente, a partir do sujeito. Outros cineastas contribuíram para o desenvolvimento dessa forma de escrita audiovisual: Jonas Mekas, David Perlov,7 Agnès Varda, Jean-Luc Godard, entre outros. Apesar das fases que cada um atravessou ou vem atravessando, suas obras, em algum momento, colaboraram para um cinema que pensa o mundo pelo crivo da subjetividade do autor. As maneiras são as mais diversas possíveis: podemos pensar nos diários fílmicos de Mekas e Perlov; na aparição física do diretor, como Godard em Longe do Vietnã (Loin du Viêt-nam, 1967) ou Varda em Os catadores e a catadora (Les glaneurs et la glaneuse, 2000); nas cartas de Marker; entre uma série de outros exemplos. Em Sem Sol, as missivas são enviadas pelo personagem e alter-ego de Marker, Sandor Krasna, para a narradora que as lê e as comenta durante toda a projeção. Temos um cruzamento da primeira com a terceira pessoa do singular. O diretor cria uma estrutura que joga com as formas de enunciação que se convencionou utilizar no meio documental: à subjetividade oriunda da forma epistolar, acrescenta personagens e, a partir deles, cria associações que potencializam a voz em off. Os comentários da narradora criam novos sentidos para o que Sandor Krasna lhe escreve. Está-se bem distante da narração que o documentário vinha adotando, cujo papel se restringia a comentar e dar um sentido às imagens. Aqui, temos a enunciação provinda das cartas de Sandor Krasna, os comentários que a narradora faz sobre as missivas, e a relação que estas duas camadas de significação estabelecem com a imagem, a montagem e o som. Os elementos narrativos não funcionam como meros adornos do que se vê, atuam, antes, como instâncias narrativas. Aos nove minutos do filme, a narração diz: Ele me falou sobre Sei Shônagon, dama de honra da princesa Sadako, no século 11, no período de Heian. Sabe-se lá onde se faz a História! Os governantes governaram, afrontavam-se em 6 No original: «(…) l’énnonciation traditionnelle du documentaire, supposée neutre et objective, en assumant le discours à ça première personne et la subjectivité du regard – revendications classiques de l’essayiste.» (tradução nossa). 7 O realizador foi tema da mostra “David Perlov: Epifanias do Cotidiano”, realizada no Brasil, em 2011. O título faz alusão a um traço que lhe característico: o dia-a-dia, o cotidiano como princípio do seu cinema.

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estratégias complicadas. Mas o poder pertencia a uma família de regentes hereditários. Na corte do Imperador, apenas intrigas e diversão. E esse pequeno grupo de ociosos deixou na sensibilidade japonesa um traço mais marcante do que todas as imprecações da classe política, levando a tirar da contemplação das menores coisas um tipo de reconforto melancólico. Shônagon tinha mania de listas: lista das coisas elegantes, das coisas tristes ou das coisas que não valia a pena fazer. Fez, até, a lista das coisas que fazem bater o coração. Não é um mau critério, eu percebi isso ao filmar.

Enquanto a voz menciona Shônagon e os governantes do período Heian, as imagens mostram o foguete Polaris emergindo do mar e percorrendo uma longa trajetória em direção ao céu, até perder-se de vista. A este, sucedem-se planos de aviões no céu. A imagem não ilustra o texto ou vice-versa. As duas instâncias narrativas (imagem e voz) fazem parte de uma rede de conexões balizada, entre outros, pela montagem. São como pontos a serem atados a outros momentos do filme, gerando redes de significação que se entrecruzam. A lenda sobre Shônagon, por exemplo, é verbalmente aludida neste trecho que citamos, mas implicitamente percorre toda a duração de Sem Sol, onde Marker filma as “coisas que fazem bater o coração”. A relação dialética não se dá apenas entre palavra e imagem. O som de Sem Sol é minoritariamente direto, sendo substituído por ruídos, sons e músicas geralmente sintetizados. O mesmo procedimento acontece em O fundo do ar é vermelho (Le fond de l’air est rouge, 1977). A música sintetizada distancia e abstrai nos trechos sem o som original e onde a voz se pronuncia. Em outras sequências, reforça – isoladamente ou misturada com o som original – o que se passa na imagem (LANGMANN, 1986). A tensão entre som e imagem potencializa o papel do primeiro como uma das instâncias narrativas, pois é utilizado como um discurso, e não só com a finalidade de intensificar o caráter “real” da imagem por meio do som concernente ao momento em que a imagem-câmera foi captada. À inteligência que Bazin (1998) exortou como matéria-prima do cinema markeriano, devemos aliar a liberdade. É ela quem permite a construção de uma relação dialética entre palavra, trilha musical, som e imagem, além da outras articulações narrativas presentes em Sem Sol e outros filmes do diretor. A liberdade é presente, sobretudo, no trabalho com os elementos que compõem o código audiovisual. As experimentações que burilam as construções de significação dentro do cinema nos remetem à inquietação dos ensaístas da literatura em trabalhar em cima da própria linguagem verbal, assumindo uma dimensão metalinguística. Semelhantes àqueles escritores, Chris Marker faz de seu filme um campo de reflexão sobre o objeto que explora e simultaneamente sobre a forma, o código de linguagem que utiliza para se expressar. Mas a estrutura adotada por Sem Sol revela muito mais que o desejo de seu realizador em usar a arte para falar da própria arte. A adesão ao ensaio como um modo de 108

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construção audiovisual se concatena aos temas que constituem os objetos de reflexão do diretor: imagem, história e memória. Diante da extensão que temos neste artigo, optaremos pelo último elemento. Investigaremos o ensaio enquanto expressão que permite ao cinema explorar a estrutura mnemônica.

Sem Sol: movimento e ficção da memória As cartas enviadas por Sandor Krasna à narradora são como diários em que o cinegrafista fictício comenta as imagens que gravou ao redor do mundo. As alusões à memória são frequentes nas correspondências, onde o personagem reflete sobre a tensão permanente entre suas lembranças e as imagens que gravou. Escreve em uma das missivas: “Eu passaria a vida a indagar sobre a função da lembrança, que não é o oposto do esquecimento, mas seu avesso. Nós não lembramos, recriamos a memória, como recriamos a história.” Este excerto se conecta a outros momentos em que a narradora ou o próprio Sandor comentam a fixação deste sobre o ato de rememorar. O texto não é o único a se deter no tema. A montagem do filme carrega em sua articulação uma estrutura que remete à capacidade do aparelho mnemônico ou do imaginário de conectar espaços, tempos e documentos heterogêneos. A montagem de imagens em Sem Sol abdica o modelo linear. O avanço do filme não obedece a uma lógica cronológica dos acontecimentos. O primeiro plano, o das crianças que caminham em uma estrada da Islândia, é sucedido pelo de um avião de guerra e posteriormente por sequências feitas em uma embarcação que parte de Hokkaido, ilha no norte do Japão. Seguem-se imagens de trens em Tóquio, de uma ema na África, do rosto de uma moradora da Ilha de Bijagos e de um templo de gatos novamente em Tóquio. O curto trecho sobre a capital do Japão será sucedido pelo de um vulcão que se esconde entre as nuvens, das ondas do mar, de cachorros correndo pela praia, de imagens aéreas, até chegar a uma cabo-verdiana que olha para a câmera. Esse movimento de ir e vir por espaços e tempos é permanente em Sem Sol. A estrutura alude à liberdade da consciência reflexiva, entrando em simbiose com o que Alexander Astruc (2009) escreve sobre os filmes como meio capaz de expressar pensamentos, por mais abstratos que sejam, ou traduzir obsessões exatamente como fazem os ensaios ou romances. Baseando-se nessa influência literária, o autor optou por denominar essa fase do cinema como a era da câmera-caneta (caméra-stylo). Os realizadores que fazem uso deste recurso para escrever sobre os significados do mundo aderem a um modelo de expressão tão flexível e sutil como a linguagem escrita. Para Astruc (2009), o cinema se tornou o meio ideal para as meditações filosóficas que versam sobre psicologia, ideias, paixões e metafísica. Posiciona-se a favor de uma forma de cinema que não utiliza métodos convencionais para refletir sobre seu objeto, não recorrendo a associações pesadas e tradicionais de imagens: “com o objetivo de sugerir a passagem de tempo, não

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há necessidade de mostrar folhas caindo e pés de maçã dando frutos”.8 O cinema deixa de ilustrar uma reflexão com imagens para estabelecer o processo de reflexão nas próprias imagens, pensar por meio delas (CATALÁ, 2005). É dessa maneira que o filme pode se tornar equivalente (em profundidade e significado) a obras como as de Sartre e de Camus, como desejava Astruc (2009). A montagem não linear é um meio que Marker utiliza para representar as construções do consciente/inconsciente através da estrutura audiovisual. Sua câmera-caneta escreve sobre e por meio (metaforicamente) da memória. A relação que Catalá (2005) faz entre o filme-ensaio e dispositivos da Idade Média relacionados à Arte da Memória é um ponto de partida para compreendermos o processo de construção de Sem Sol. O autor cita a pesquisadora Mary Carruthers para mencionar a prática de meditação monástica composta por imagens mentais, um dispositivo de reflexão baseado na memória, que é convertida em técnica (ou arte) com a capacidade não só de reproduzir algo. A memória atua como matriz de um exercício reminiscente que embaralha e justapõe elementos armazenados em um esquema mnemônico cujo acesso é aleatório, funciona como uma biblioteca de imagens mentais erguida, ao longo da vida, com a intenção expressa de ser usada inventivamente. Catalá (op.cit.) recobra a meditação monástica a fim de tentar compreender sua possível similaridade com o filme-ensaio no que concerne ao trabalho que ambos efetuam com o intuito de processar experiências e transformá-las em novas experiências. Os monges medievais realizavam, através da memória, uma reflexão em que o pensamento era moldado a partir de uma prática de gestão mental das imagens mnemônicas. Com o cinema de inflexão ensaística, o que antes era um processo mental “se converteu em um trabalho material: a memória foi objetivada em imagem e o cineasta pode manipulá-la através de uma hermenêutica basicamente visual” (CATALÁ, 2005). É no mesmo sentido que o cinegrafista Sandor Krasna percebe a questão. Em uma das cartas, escreve que não entende como o homem fazia para recordar antes do advento da fotografia e do filme. Chega a afirmar que suas memórias se confundem com suas imagens. Chris Marker encena o funcionamento da estrutura mnemônica em Sem Sol. O anacronismo da montagem condensa tempos, espaços e imagens heterogêneas. O encadeamento não é feito à toa. Os planos são entrelaçados a partir de uma lógica subjetiva e não pela continuidade convencional. Ao invés do tradicional raccord, que liga os planos a partir de uma relação de continuidade de movimento ou através da lógica do olhar, utiliza-se o que Barbara Lemaître (2002, p.66) denomina de raccord de souvenir (raccord da lembrança), que permite:

8 No original: “in order to suggest the passing of time, there is no need to show falling leaves and the apple trees in blossom” (tradução nossa).

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(…) transpor a distância entre dois motivos, duas imagens, dois tempos, dois espaços, dois pontos de vista ou ainda dois acontecimentos em princípio distantes ou desconectados radicalmente. Ele pode ser induzido por um comentário ou um parentesco visual, e é mais ou menos explícito. Assim, qualquer coisa em um rosto japonês, um olhar particular, pode evocar, chamar ou lembrar outro olhar que aparece sobre um rosto africano. (…) O raccord da lembrança descobre o imaginário não apenas como possibilidade para o indivíduo ser visto como interlocutor, mas como instrumento de ligação de elementos heterogêneos.9

O filme pode ser pensado como uma encenação da memória de Sandor Krasna. A montagem das imagens demonstra o que Adorno (1986) abordava sobre as conexões transversais que o ensaio permite estabelecer entre os elementos. A função poética mencionada por Jakobson (1977) é uma pista para a compreensão dos modos de arranjos das imagenslembranças. O eixo de seleção dos planos por critérios de equivalência (semelhança e dessemelhança, sinonímia e antonímia) passa a contribuir para a construção da sequência, para a montagem. A equivalência dos planos se dá por meio das relações subjetivas encontradas nas imagens e fincadas na memória do diretor, representado pelo personagem Sandor Krasna. Aos 28 minutos, uma cerimônia em Tóquio é justaposta a uma festa ou ritual na África. Quando monges japoneses jogam um objeto semelhante a uma hóstia no chão, o plano que o sucede mostra confetes caindo na cabeça de crianças africanas. Opera-se a sutura entre dois elementos inicialmente distantes, mas que encontram sua equivalência a partir do trabalho da reminiscência, no qual uma imagem leva a outra a partir de um laço tecido pelo imaginário. É apropriado pensarmos na definição de Jacques Rancière (2006) sobre a ficção da memória. Ficção não no sentido de histórias inventadas ou mentiras que se opõem à realidade. O filósofo emprega a palavra em sua referência com o termo do qual deriva: “fingere”, cujo significado não é “fingir”, mas “forjar”. A ficção é pensada por Rancière como a arte de construir um sistema de ações representadas, relacionando formas e signos coerentes. O que Marker faz em Sem Sol seria justamente essa criação de um sistema de signos que forja, encena os mecanismos de associação da memória a partir da liberdade que a estrutura ensaística permite no que diz respeito à sistematização do conteúdo e à construção de significações transversais.

9 No original: “ (…) franchir l’écart entre deux motifs, deux images, deux temps, deux espaces, deux points de vue ou encore deux événements, en principe éloignés ou déconnectés radicalement. Il peut être induit par un commentaire ou une parenté visuelle et il est plus ou moins explicite. Ainsi, qulque chose dans un visage japonais, un regard particulier, peut évoquer, appeler ou rappeler un autre regard, apparu sur un visage africain. (…) Le raccord de souvenir découvre l’imaginaire, non plus seulement comme possibilité pour individu de se prendre comme interlocuteur, mais comme intrsument de liaison d’éléments hétérogènes”. (tradução nossa)

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A inventividade e o gosto por redescobrir as formas de expressão – seja no cinema seja em obras multimídias10 – conduzem Chris Marker a um estado de criação que encontra no ensaio a forma ideal para escrever e registrar o encontro do seu “eu” com o mundo. Sem Sol ocupa em sua obra um ponto essencial neste aspecto, pois a bricolagem com os elementos audiovisuais se faz presente em diversas camadas da linguagem cinematográfica: nos comentários elaborados, na criação de personagens, nos significados oriundos da tensão entre palavra, som e imagem, na subjetividade provinda da narrativa epistolar, na montagem, entre outras instâncias. Dialoga-se com a tradição que vinha sendo adotada até o momento pelo documentário e pela ficção a fim de se explorar novos terrenos. O código transcende seu uso habitual de repertório linguístico para se tornar parte do desenvolvimento de uma reflexão, de um pensar que se projeta sobre o cinema e o movimento inconstante da memória.

Bibliografia ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Adorno. Tradução: Gabriel Cohn. São Paulo: Ática, 1986. ASTRUC, Alexander. The birth of new avant-garde: La caméra-stylo. In: GRAHAM, Peter; VINCENDEAU, Ginette. The French New Wave: Critical Landmarks. Disponível em: <http://www.fadedrequiem.com/zoetrope/wp-content/uploads/2007/11/alexandre_astruc_birth_of_new_avante_garde.pdf>. Acesso em: 10/06/2011. BAZIN, André. Lettre de Sibérie. In: Le cinéma français: de la Liberátion à la Nouvelle Vague. Paris: Cahiers du cinéma, 1998. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7a edição. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. CAMPOS, Haroldo de. Ruptura de gêneros na América Latina. São Paulo: Perspectiva, 1977. CATALÁ, Josep M. Film-ensayo y vanguardia. In: CERDÁN, Josetxo; TORREIRO, Casimiro. Documental y vanguardia. Madrid: Cátedra, 2005. GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Brasília: Editora UNB, 2009. GAUTHIER, Guy. Chris Marker, écrivain multimédia ou Voyage à travers les médias. Paris: L’Harmattan, 2001. JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 9a edição. São Paulo: Cultrix, 1977. LAMBERT, Arnaud. Also known as Chris Marker. Paris: Le Point du Jour, 2008. LANGMANN, Ursula. O manual de história atualizado. In: NEVES, António Lojas Neves (org. da edição portuguesa). O bestiário de Chris Marker. Lisboa: Livros Horizontes, 1986. LEMAÎTRE, Barbara. Sans soleil, le travail de l’imaginaire. In: DUBOIS, Philippe (org.). Recherches sur Chris Marker, Théoreme, no 6. Paris: Sorbonne Nouvelle. 10 Lembramos que o realizador transita pela literatura, instalações artísticas, fotografia etc.

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LINS, Consuelo. A voz, o ensaio, o outro. In: Catálogo da retrospectiva Agnès Varda, o movimento perpétuo do olhar. RJ/SP: CCBB, 2006. Disponível em: <http://www.pos.eco.ufrj.br/docentes/publicacoes/clins_1.pdf>. Acesso em: 03/05/2011. MACHADO, Arlindo. Filme-ensaio. In: MOURÃO, Maria Dora; SAMPAIO, Rafael (org.). Chris Marker: bricoleur multimídia. Rio de Janeiro: CCBB, 2009. RANCIÉRE, Jacques. Documentary fiction: Marker and the Fiction of Memory. In: Film fables. Trad: Emiliano Battista. Oxford: Berg Publishers, 2006 ROUD, Richard. A margem esquerda. In: MOURÃO, Maria Dora; SAMPAIO, Rafael (org.). Chris Marker: bricoleur multimídia. Rio de Janeiro: CCBB, 2009. SIQUEIRA, Marília Rocha de. O ensaio e as travessias do cinema documentário. Dissertação de mestrado disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/ds pace/ bitstream/1843/VCSA6WLHMK/1/mariliarocha_dissertacao.pdf>. Belo Horizonte, 2006.

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Filmografia Le fond de l’air est rouge (O fundo do ar é vermelho, Chris Marker, 1977, França) Le mystère Koumiko (O mistério Koumiko, Chris Marker, 1965) Le tombeau d’Alexandre (O túmulo de Alexandre, Chris Marker,1993, França) Les glaneurs et la glaneuse (Os catadores e a catadora, Agnès Varda, 2000, França) Lettre de Sibérie (Cartas da Sibéria, Chris Marker, 1957, França) Level five (Nível cinco, Chris Marker, 1997, França) Loin du Viêt-nam (Longe do Vietnã, Alain Resnais, William Klein, Joris Ivens, Claude Lelouch, Chris Marker, Jean-Luc Godard, Agnès Varda, etc., 1968, França) Sans Soleil (Sem Sol, Chris Marker, 1982, França)

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Edson Pereira da Costa Júnior é mestrando do PPG em Imagem e Som da UFSCar e bolsista FAPESP.

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As representações e o real

Vidas secas

do livro ao filme

MIRIAN TAVARES* Vejo agora: não é fácil seguir essa ladainha entre uma conta e outra conta, entre uma e outra ave-maria, há certas paragens brancas, de planta e bicho vazias, vazias até de donos, e onde o pé se descaminha João Cabral de Melo Neto

Resumo: Em 1963, o realizador Nelson Pereira dos Santos, adapta para o cinema a obra homônima de Graciliano Ramos, Vidas Secas. O romance, de 1938, inscreve-se na segunda fase do modernismo brasileiro e é considerada uma obra-prima do autor que teve sempre uma atuação bastante política como jornalista e escritor, atitude esta que aparece retratada em suas obras, de maneira direta e indireta. Este texto fala sobre o filme de Nelson Pereira, das suas escolhas poéticas e estéticas e, sobretudo, da maneira como o cinema, neste caso, conseguiu captar a essência da obra literária e converter o regime do escrito no regime do visual sem trair a obra que o originou. PALAVRAS-CHAVE: CINEMA, NEO-REALISMO, CINEMA NOVO Representations and the real: Vidas Secas, from the book to the movie Abstract: In 1963, director Nelson Pereira dos Santos adapted to film Graciliano Ramos’ novel Vidas Secas (Barren Lives). The novel, written in 1938, is part of the second phase of Brazilian modernism and is considered one of the author’s masterpieces. Graciliano Ramos was politically active as a journalist and writer; his involvement is portrayed in his works, both directly and indirectly. This text deals with the film by Nelson Pereira, its poetic and aesthetic choices, and especially with the way the film has managed to capture the essence of the literary work and to transform the written word into film without betraying the work from which it originated. KEYWORDS: CINEMA, NEO-REALISM, CINEMA NOVO

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m clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Esta é uma das razões que Ítalo Calvino invoca para lermos os clássicos. Isto funciona também em relação ao cinema. Um clássico, no cinema, é um filme que sempre tem algo a dizer-nos, mesmo que tenham passado décadas sobre ele. É o caso de Vidas Secas. Sexto filme do realizador Nelson Pereira dos Santos, baseado no romance homónimo de Graciliano Ramos, continua a ser um filme com muito a dizer passados já mais de 40 anos sobre ele.


Por isso o meu interesse em voltar a ver este que foi o único filme brasileiro escolhido pelo British Film Institute para integrar a lista dos filmes fundamentais numa cinemateca. Vidas Secas continua a ser visível e a suscitar leituras novas a cada re-visão. Ao contrário da literatura, que ganha respeito com a longevidade da obra, o cinema, pela sua ligação intrínseca com o aparato tecnológico, tende a envelhecer mais depressa. Não são muitos os filmes que resistem ao tempo e que superam algumas limitações que possam daí advir. O filme de Nelson Pereira dos Santos é realizado em 1963, em pleno período do Cinema Novo no Brasil, imbuído de uma estética que valorizava a capacidade dialógica do cinema com o seu povo e as suas raízes, fossem elas urbanas ou rurais. Movimento que surge no rasto do Neo-Realismo italiano, poética que veio recuperar o carácter mimético do cinema ao levar a câmara às ruas de uma Itália devassada pela II Grande Guerra. Movimento que se atreveu a mostrar os despojos de um país que lutou uma luta inglória e que foi sufocado pelo fascismo durante anos. Um cinema que recuperava aquele que foi o gesto inaugural da própria arte cinematográfica, o seu carácter documental. Além da referência e filiação explícitas ao legado de Rossellini, De Sica, Zavatini entre outros, o Cinema Novo vai ainda ser influenciado pelo espírito da Nouvelle Vague francesa. A nova vaga do cinema francês surgiu em torno da emblemática figura de André Bazin e ajudou a renovar o cinema mundial através, não apenas dos filmes que fez, mas da reflexão teórico-crítica sobre o cinema que foi produzindo ao longo dos anos. O conceito de autoria no cinema aparece como uma salvaguarda que justificava a assinatura do realizador em seu filme, como se, de facto, dentro de uma arte-indústria, produzida de maneira grupal, fosse possível, como nas outras artes, existir alguém que assinasse, sozinho, o produto final.

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A Nouvelle Vague aponta novos caminhos na criação fílmica, apostando num cinema quase artesanal, feito com poucos recursos e fora do circuito convencional de produção/ distribuição. A máxima de Glauber Rocha, um dos pais do Cinema Novo, era: um filme é uma ideia na cabeça e uma câmara na mão. Como os seus congêneres franceses, desmistificava a produção cinematográfica dispendiosa e inacessível, e incentivava o surgimento de uma nova geração de realizadores, desejosos de mostrar as suas ideias sem ter de entrar na lógica do circuito comercial, a falar, através do cinema, e a combater, com os filmes que realizavam, toda a mística que envolvia o cinema industrial norte-americano e o peso ideológico do mesmo. Uma das marcas registadas desta nova cinematografia, fruto da herança neo-realista e da nouvelle vague, era o seu carácter documental e político. Entendendo aqui o político como uma atitude perante o real e as suas representações, não apenas como uma tomada de posição diante do eterno maniqueísmo político partidário. A política, no caso desta cinematografia, revestia-se de uma atitude de inserção dentro do que havia de mais profundo na sociedade brasileira: seus medos e seus mitos. Seu povo, sua terra vasta e diversa, e a sua situação de país continente, rico e, paradoxalmente, miserável. O final dos anos 50 é marcado, no cinema, por uma série de pequenas revoluções poéticas e estéticas que renovaram a produção cinematográfica, deitando por terra o modelo do cinema clássico norte-americano, que começara a se tornar obsoleto, e de propor uma maneira diferente de se lidar com a representação do real. Esta atitude começa dentro do próprio cinema hollywoodiano e também aparece um pouco por todo o mundo: desde as Conversaciones de Salamanca, passando pelos já citados movimentos italiano e francês e atingindo outras cinematografias como a alemã e a inglesa. Apesar das diferenças que estes movimentos guardavam entre si, havia algo que os unia a todos: a consciência do papel do cinema na criação de mitos e de representações ideologizadas do real. De uma maneira ou de outra estes movimentos vão se voltar para aquilo que, como disse anteriormente, foi o gesto inaugural do cinema: a captação do real. A capacidade de captá-lo, documentá-lo, de guardá-lo como memória viva de uma história dinâmica e veloz. De ser, efectivamente, uma janela para o mundo que nos circundava a todos. O que implicava a coragem de meter o dedo nas várias feridas que sucederam as grandes e as pequenas guerras e de revelar a derrocada, uma vez mais, do ocidente e da ilusão de que este era o modelo perfeito do paraíso.

Vidas secas: do livro ao filme Enquanto o cinema reescrevia a sua história e inscrevia-se na realidade que o circundava de uma outra maneira, Nelson Pereira dos Santos já realizara 6 (seis) filmes, e trabalhara pelo interior do Nordeste brasileiro, acompanhando de perto o fenómeno da seca. Realiza, neste período, uma série de documentários sobre esse tema que o marca

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profundamente: a seca e tudo que com ela se relaciona, a fome, a miséria, o desespero, a morte. A morte de pessoas, gado, vegetação e o desejo de fuga daqueles que, a partida, não têm muito para onde ir. O realizador começa a escrever uma série de guiões para realizar um longa-metragem de ficção que retratasse a vida daqueles homens que, nas palavras de Euclides da Cunha eram, antes de tudo fortes: o sertanejo. Nenhum dos guiões que fez conseguia satisfazêlo porque acreditava que, as suas palavras, não traduziam àquilo que ele queria mostrar. Achava que todos eram vazios e foi o encontro com o livro de Graciliano Ramos que fez com que ele concluísse que não valia a pena perder mais tempo com a sua escrita e com a sua procura, o que ele queria estava já ali, pronto para ser usado: o romance Vidas Secas era já um guião completamente acabado.1 O realizador sabia de antemão que Graciliano não o deixaria alterar a obra, mas via também que ela não precisava ser alterada: a prosa seca e elegante do autor, a escrita quase jornalística de uma precisão cortante, era perfeita para o filme que ele queria fazer. Juntavam-se aqui, em obras de carácter semiótico tão díspar, literatura e cinema, uma forma única de abordar o mundo e de representá-lo. Tanto o realizador quanto o autor estavam imbuídos daquele espírito político, ao qual já fiz referência, tão comum aos intelectuais da época e, como tal, sabiam necessária a mudança na maneira de se apresentar o mundo e as questões que, mesmo seculares como a seca, continuavam a pairar sobre uma realidade que teimava em não vê-la ou em ocultá-la. A arte, nestes dois criadores, é um gesto de intervenção no real e de provocação. Sabiam ambos que os tempos mudam, mas que algumas histórias continuam a repetir-se vezes sem conta e que podem funcionar como uma metáfora da miséria humana e do seu isolamento. A obra de Graciliano, seu quarto livro, nasce em 1938, e inscreve-se na segunda fase do modernismo brasileiro e também naquilo que foi chamado pela crítica de romance regionalista. O estilo enxuto e a maneira de narrar a história, focalizando as atenções nas personagens, mais que na trama mesma, a ligação entre os capítulos que podem funcionar como partes isoladas, torna visível a dureza do espaço retratado. Não há aqui nostalgia nem vontade de ocultar o que já não se pode esconder, a condição humana, em meados do século XX, no interior do Brasil, era a mesma de há muitos anos atrás e as situações vividas pelos personagens, por mais que divergissem de realidades outras, falavam de um problema presente também nos centros urbanos, também em outros países – a incapacidade de comunicação, o estado agudo de alheamento e de distanciamento em que viviam todos.

1 Mesmo porque o realizador tivera uma experiência anterior com o escritor a respeito do livro São Bernardo e descobrira que, para Graciliano, não havia problema em adaptar a sua obra literária para o cinema desde que não se alterasse aquilo que ele tinha escrito. Na tentativa de fazer um guião para São Bernardo, Nelson Pereira dos Santos tentou convencer o autor de que uma pequena mudança no final que tornaria o filme mais interessante. Graciliano não se deixa convencer e afirma: se altera o destino da personagem, altera o destino da obra. E se este destino não se cumpre, a obra não teria sido escrita e nem ele, Nelson Pereira, teria agora material para fazer um guião para um filme.

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Drummond dizia, meio a título de boutade, deixei de ser moderno para ser eterno. A modernidade é a marca do tempo que corre e que tem plena consciência desta corrida. Tem ainda consciência de que nada é eterno e que vive ao sabor das modas que mudam conforme as estações e da necessidade de suprir o desejo do novo que se instala no mundo ocidental, definitivamente, a partir do século XIX. No caso do livro, Vidas Secas, temos uma obra que é paradoxalmente moderna e eterna: moderna porque utiliza a linguagem de acordo com as convenções da altura e porque as questões que discute pertencem às grandes questões da época, não só da literatura, mas da arte em geral. E é eterno porque a permanece legível e a sua temática continua actual e pode ser utilizada para além do próprio tema, que se torna emblemático e reflecte a preocupação também contemporânea dos limites da linguagem e da capacidade de as pessoas conseguirem, verdadeiramente, dizer algo e da dificuldade ainda maior de conseguirem que alguém os ouça. O filme de Nelson Pereira traduz de uma maneira bastante precisa esta eterna modernidade, fazendo da sua adaptação uma obra que resiste à comparação com o livro que a originou porque não concorre com ele e nem tenta superá-lo. As adaptações literárias são sempre algo temível, o medo de errar, de ser menos, de não alcançar o livro que a origina, tolhem bastante a criatividade de muitos realizadores. Jean Renoir dizia que só se deveria adaptar livros ruins, assim ninguém se atreveria a fazer comparações, quase sempre prejudiciais ao filme, mesmo porque muitos destes livros sequer eram conhecidos do grande público. Adaptar Vidas Secas, obra-prima da literatura, foi um risco que o realizador ousou correr e que, para o seu gáudio e o nosso prazer, fê-lo tão bem que a sua obra resiste às comparações e consegue sobreviver sozinha, independente da obra que a originou.

Mandacaru quando fulora na seca Com o guião pronto e a vontade enorme de realizar um filme, Nelson volta para o Nordeste, mais precisamente para uma cidade encravada no meio do sertão, Juazeiro da Bahia, disposto a filmar. Estávamos em 1959 e, a despeito das expectativas do realizador, este é uma ano de fortes chuvas naquela parte do sertão. E se o sertanejo, conforme Euclides da Cunha, era antes de tudo um forte, devia-se ao facto de que a terra que o vira nascer era também ela mesma, forte. Renascia, a cada chuva, das cinzas e cobria-se rapidamente de verde e do vermelho das flores do mandacaru. Não foi possível, portanto, realizar o filme naquele ano e, para não perder a viagem, Nelson Pereira filma Mandacaru Vermelho, um romance marcado pelo sertão renascido e pela beleza que dele emana quando “fulora” o mandacaru. O filme adiado é, finalmente, realizado em 1963 em Palmeira dos Índios, interior de Alagoas, cidade onde viveu muitos anos o autor do romance. Como disse, Nelson Pereira sabia que não podia alterar muito o romance original e fez apenas duas modificações que são bastantes pertinentes à diegese do filme. A primeira diz respeito a data. No livro, a história se desenrola no mesmo ano em que o livro é escrito, 1938. O realizador prefere saltar

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um bocado no tempo e localiza o seu filme entre os anos 41 e 42, período da II Grande Guerra. A intenção do realizador é clara, enquanto o mundo estava em convulsão, o sertão continuava indiferente ao que ocorria para além dele. Até porque, acredito, não tinha muita certeza se haveria um “para além” dele e da sua terra ressequida e dura. Além disso revela o ensimesmamento de uma região que se traduz no comportamento daqueles que ali habitam, um espécie de autismo ambiental que seca tudo a volta, inclusive as pessoas, tornando impossível qualquer tipo de comunicação. A outra modificação que o filme apresenta diz respeito a uma escolha formal do seu realizador. Fabiano, a personagem principal, em dada altura da sua vida cruza com um cangaceiro jovem e deste encontro surgem ideias que são expressas, no livro, como um pensamento. Nelson Pereira poderia ter utilizado, como é comum nestes casos, o recurso da voz off. Mas ele preferiu presentificar o pensamento e convertê-lo em algo visível e partilhável, por Fabiano e por nós. Através da imagem, elemento essencial da narrativa fílmica, apresenta-nos a maior encruzilhada da vida da personagem: escolher entre o cangaço, forma de libertação, ou voltar para a sua família, obrigação e lastro que o cingia àquela terra inóspita e desesperançada. De resto, o filme segue o livro. Mais que seguir, reinventa-o numa outra linguagem, que não trai o objecto original, mas enriquece e ilumina as palavras de Graciliano. O livro é colorido, o azul e o encarnado são cores evocadas como para ilustrar o calor e o céu sem nuvens que não agoura nada de bom. O filme é a preto e branco e a fórmula encontrada por Nelson Pereira para criar o mesmo clima, apesar da ausência de cores, é a maneira como a paisagem nos é mostrada, em planos abertos e gerais, a terra ressequida e alquebrada, as árvores mortas, os arbustos que se arrastam pelo chão, o céu límpido e sem uma nuvem e um horizonte sem fim.

Onde o pé se descaminha Durante muito tempo o cinema foi acusado de não conseguir produzir metáforas. Como poderia fazê-lo já que a metáfora é uma imagem que surge do encontro inusitado de palavras, se o material do cinema é já imagem ela mesma? Logo se percebeu que não era bem assim. Que também as imagens, quando se juntavam e se convertiam em signos no ecrã, poderiam gerar outras imagens e ultrapassar o regime da visibilidade imediata, da legibilidade rasa. O cinema não é, como muitos quiseram, uma janela para o mundo. É, como as artes o são, um sistema complexo de representações. E se as suas representações estão mais vincadas, aparentemente, no real, é porque ele conseguiu convencer-nos a todos da sua grande mentira de base: a imagem diz o mundo. A imagem é sempre uma criação e como tal, pode ser usada para mentir e para se desviar do seu sentido mais lato, partindo para a ambiguação, que é o que a torna ARTE. No caso do filme Vidas Secas a tarefa do realizador foi ainda maior, transformar imagens 120

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calcadas no real, utilizar a linguagem jornalística e documental da obra de base e realizar um filme que resultasse sobretudo metafórico, que saísse do espaço-tempo onde está imbricado e pudesse se torna universal, apesar de profundamente localizado no sertão nordestino. O filme, e o livro, falam sobretudo da linguagem. Fabiano quase não fala porque não domina a língua e por ser, estruturalmente, analfabeto. As palavras não fazem sentido na sua vida e na vida das pessoas à sua volta, a mulher, os filhos e todos aqueles que ele vai encontrando pelo caminho. Ele se sente diminuído, como que amputado, por esta sua incapacidade de domar a linguagem verbal, de utilizar as palavras de um modo correcto, como fazem os doutores, a polícia, o fazendeiro. Como fazem todos aqueles que têm o poder, os patrões, os que mandam num mundo para onde ele veio apenas para obedecer e resignar-se. O sertanejo, pelo menos Fabiano, não é um forte. É alguém enredado nas suas circunstâncias e que delas não consegue fugir. Sente-se ameaçado por aquilo que ele não domina, a linguagem e a chuva, que teima em não cair. O uso plástico das formas circulares, no filme, acentua este enredamento sem pontos de fuga de Fabiano e da sua família, do sertanejo, em geral. Ou do ser humano. A câmara descreve círculos e mais círculos, o caminho percorrido pela família deste vaqueiro não segue em linha recta, eles caminham e, aquilo que a câmara nos mostra, é a circularidade dos seus passos, mesmo que anseiem, não conseguem sair do lugar, que é bem maior que os seus passos.

Os círculos inscrevem ainda o filme no tempo mítico, eterno e imutável. No tempo que permanece fora do tempo, no tempo que não se consegue contar. A Guerra explode lá fora e o sertão continua ensimesmado, alimentando-se, sobretudo, do enorme vazio da sua paisagem que parece devorar tudo mais à sua volta. O silêncio é também símbolo de uma permanência, de um vazio profundo encimado por um céu que teima em não se cobrir de nuvens. As imagens são quase vazias, como o sertão na época da seca. Tanto espaço e nada me pertence, pensa Fabiano, que se sente como um hóspede indesejado numa terra

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que não é dele e que não faz nenhum esforço para acolhê-lo. Ele se reconhece como um viajante, em eterna errância, mas ao mesmo tempo sente-se plantado numa terra alheia e da qual não consegue sair. O silêncio, no filme, aparece como uma presença. É palpável. Não há banda sonora. Nelson Pereira queria evitar o folclore, a ligação à música da terra que podia desviar os sentidos em outra direcção. Não, Vidas Secas não é um filme convencional. A música é parte da matéria do filme e deve ser usada significativamente e não como pano de fundo ou ilustração. Posição também defendida pelo cineasta espanhol Luís Buñuel, que contrariava o lugar comum do cinema comercial que teme o vazio. Ouvimos apenas o som do carro de bois, das rodas que se movimentam lentamente e que rangem como um lamento ancestral. Ouvimos o som no começo e no fim do filme, acentuando ainda mais a circularidade da diegese, do fora de tempo e da própria História, linear e teleológica. Não há um fim a se alcançar, porque não há um começo, tudo faz parte do mesmo instante, eterno e indivisível, que está sempre a repetir-se, vezes sem conta, dia após dia, ano após ano. A imagem é metafórica, converte o sertão em algo diferente dele mesmo, algo que está para além dele, mas que só os espectadores, que estão fora, é que o conseguem divisar. Fabiano e a família estão dentro e não vêem nada para além daquilo que a vista alcança. O filho ouve uma benzedeira falar em inferno. Inferno, palavra estranha, não conhecida. Pergunta ao pai e a mãe: o que é inferno? Como poderiam eles responder se quando estamos dentro de alguma coisa não nos damos conta da sua existência? Lugar ruim, espeto quente… mais palavras. O menino sai e a câmara acompanha as suas palavras e o seu olhar, que abrange tudo a volta. A câmara, como o olhar do menino, vagueia e gira, mostrando uma terra seca e inóspita, árvores mortas, uma casa no meio do nada e o sol inclemente a queimar tudo que ali está. Inferno, inferno… O inferno é concretizado para nós, que estamos fora dele, mas continua, para o menino, uma interrogação. O regime do visual tem as suas limitações e regras que foram se consolidando ao longo de uma existência deveras curta. A grandeza deste filme é ultrapassar estas regras e convenções e fazer do seu discurso visual o próprio discurso narrativo, que é auto referente e especular. As personagens e o espaço que elas habitam e por onde circulam, é também a sua fala e a limitação da paisagem é também a sua limitação.

Assum preto veve sorto mas num pode avuá Fabiano é, ele mesmo, uma metáfora. Metáfora do homem que não consegue SE dizer. Ensimesmado, como o sertão, preso ao seu autismo ambiental, apesar da família, é um homem só. Um homem só, como Umberto D, de Zavatini, como Nelson Pereira, um realizador engajado. Zavatini, mais que realizador, foi um dos mais importantes guionistas do neo-realismo italiano. Homem de esquerda que fez da sua arte uma atitude política constante, questionando o poder estabelecido e a ordem, dada como natural, do mundo, 122

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que deixava marginalizado milhões de pessoas cuja existência invisível povoava as grandes cidades, mas não as densificava, porque eles não tinham direito à substância. Umberto D fala da solidão de um homem e da solidão de todos os homens, invisíveis, como ele. A sua história desenrola-se em 90 minutos de nada, de vazio, de pequenas grandes tragédias sobre as quais não vale a pena pensar. Sobre as quais não se escreve, porque a sua tragédia é o facto de serem tão insignificantes que só afectam quem delas participa, o resto do mundo continua, apesar delas, indefectivelmente, o seu caminho. Como a tragédia da seca, que não afecta o mundo fora dela. Como a tragédia de Umberto D que Zavatini nos mostra. Digo mostra porque não há, neste filme, algo que possamos chamar de relato. É a vida da personagem, apresentada no ecrã, que se narra a si mesma, e foge, dentro do possível, das amarras do relato. O neo-realismo, apesar de todos os pecados (e maus filmes) que foram cometidos em seu nome, teve a virtude de quebrar o paradigma do cinema que tenta ser especular. Do cinema mentira que nega a sua construção e situação de signo, de imagem significante e ideológica, que não se mostra apenas, mas diz. O neo-realismo mostra a vida que se arrasta em tempo próprio, que não tem quase nada a dizer, que é quotidiana e banal. A vida das pequenas-grandes tragédias que se desenrolam a nossa frente, mas que já não vemos. Ora porque estamos dentro dela, ora porque queremos tanto dela sair que preferimos não vê-la. Mas é preciso que ela seja apresentada porque só assim poderá surgir a necessidade real de transformá-la. Outro grande feito do neo-realismo foi a de mostrar, como mais tarde fará a nouvelle vague e o cinema novo, que o cinema não é uma arte cara. Que se pode fazer filme com poucos recursos, desde que se tenha algo a dizer. O que permitiu, apesar das limitações técnicas, muitas vezes, o surgimento de um cinema verdadeiramente autoral, porque a autoria, no cinema norte-americano, só foi real no desejo dos críticos franceses. Há realizadores, sem dúvida, que imprimiram a sua assinatura nos filmes que realizaram, que criaram uma escritura própria e reconhecível que o distinguia dos demais. Mas foram poucos os que conseguiram superar as limitações e imposições de um sistema que era maior que os desejos e escolhas pessoais. Como exemplo desta limitação do sistema, podemos examinar o filme de Nicholas Ray, Rebel without a cause, filme de 1955, é um marco na carreira deste realizador que participou activamente da renovação do cinema hollywoodiano. O filme deveria ser feito originalmente a preto e branco, escolha formal de Ray, mas a Warner, que o produzia, por razões de prestígio estabelecera que todos os filmes em Cinemascope deveriam ser feitos a cores. Além da obrigação de fazer o seu filme a cores e não a P&B, como o concebera originalmente, o realizador teve ainda de alterar o tom do geral do filme, que ele pretendia metonímico, ao reflectir a situação da juventude e da inadequação do papel da família na América do pós-guerra, mas foi obrigado a cingir esta reflexão apenas a situação do filme, não se podia falar de um sistema familiar que falira, mas de famílias específicas e personalizadas

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que não eram, de modo algum, um retrato do país de então. O filme de Nicholas Ray acaba por se transformar no oposto da metonímia, porque nele a parte já é, ela mesma, o todo.

Conclusão Um clássico, dizia Calvino, é um livro que vem antes de outros clássicos. Mas quem leu os outros antes e depois lê aquele, reconhece de imediato o seu lugar na genealogia. Vidas Secas, antecipa, em décadas, a actual corrente documental que veio renovar o cinema contemporaneamente. Em momentos de crise, onde o regime da imagem se torna a cada dia mais questionável, a volta ao real parece ser uma opção. Opção esta que aparece ciclicamente na história das artes e da literatura ocidental desde sempre. O filme, como a obra que o originou, aposta nesta volta ao real, mesmo compreendendo e demonstrando, que o real e a visão que temos dele, é sempre relativa. E que é preciso ter consciência desta relatividade e da incapacidade da arte de, efectivamente, devolver do real àquilo que nele foi buscar. Porque a arte, e o cinema, que como sabemos é a sétima, tem o papel de transformar o que vê através do que mostra. A seca ainda é real, como era real em 1938 ou em 1963, ano de realização do filme. A miséria dos homens e a sua incapacidade de interação com o outro, com os outros, continua actual. E o filme, como o livro, ainda não acabou de dizer tudo que tinha a dizer. Por isso é preciso voltar sempre a eles. Talvez como uma maneira, metafórica quiçá, de darmos alguns passos em direcção ao mundo que nos circunda e o qual, muitas vezes, não passa de representação.

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Mirian Tavares é docente da Universidade do Algarve e CIAC (Centro de Investigação em Artes e Comunicação).

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A insustentável leveza do ser em

Yi-Yi

ANA CATARINA PEREIRA*

Resumo: O que haverá de tão especial num filme acerca de uma família de Taiwan: uma avó, um pai, uma mãe, dois filhos, os seus amigos e vizinhos? Nada. E tudo. Em Yi-Yi, Edward Yang capta uma existência “a meio” e mostra-nos uma vida inteira. O que o torna tão real é precisamente o fato destes personagens, antes de o serem, já existirem. Num filme de quase três horas tudo acontece no ritmo certo, natural e improvisadamente, como numa melodia de jazz: “a one and a two”, “a one and a two”. Na sua visualização, quase nos esquecemos que outros realizadores gostam de contar histórias nervosamente. PALAVRAS-CHAVE: CONTINUIDADE, NARRATIVA ENTRECRUZADA, REALIDADE DUALISTA The Unbearable Lightness of Being in Yi-Yi Abstract: What could be so special in a film about a family in Taiwan? A grandmother, father, mother, two sons, their friends and neighbors? Nothing. And everything. In Yi-Yi, Edward Yang captures an existence “in the middle” and shows us a lifetime. In a film of almost three hours duration everything happens at the right, natural and improvised pace, like a jazz melody – “a one and a two”, “a one and a two”. In his representation, we almost forget that other filmmakers like to tell stories nervously. KEYWORDS: CONTINUITY, CRISS-CROSSING NARRATIVE, DUALISTIC REALITY

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simbiose entre filmes que procuram retratar a época em que são realizados e a influência que um dado momento evolutivo e cultural exerce sobre os próprios filmes é um fenómeno mundial, que acompanha toda a História do cinema. Exemplos clássicos dessa trajectória seriam o expressionismo alemão, o cinema noir americano e o neo-realismo italiano, mas também o cinema oriental das décadas de 30 a 50, praticamente desconhecido no Ocidente. Nesses anos, a milenar cultura chinesa viu-se mergulhada em crises profundas, com a invasão da Manchúria em 1931; a posterior ocupação de Xangai, Nankin e do sul da China, pelo Japão, entre 1937 e 1945; e a luta revolucionária que levou ao poder o Partido Comunista, liderado por Mao Tsé-Tung, em 1949.


Nesse mesmo ano, a formação da República da China marcaria uma viragem do cinema deste país para as grandes narrativas de “realismo social”. A partir de então, quase todos os filmes passaram a apresentar um fundo histórico que denotava, não apenas uma ideologia colectiva imposta, mas também uma emergência e assimilação do estilo realista e socialista russo. Aproveitando o sentimento generalizado de rebeldia, os cineastas centraram a sua atenção na exploração de classes, na decadência e corrupção da elite dominante e nos problemas sociais, apelando a uma maior consciência nacional e ao patriotismo. Numa fase que antecedeu a consolidação do neo-realismo, os chineses filmavam já no exterior, procurando reproduzir o quotidiano, aproximando-se das pessoas e das suas realidades. Três clássicos de 1949, que poderíamos inserir no género “melodrama de propaganda política” são exemplos deste espírito: Crowns and sparrows, de Zheng Junli; This life of mine, de Shi Hui; e An orphan on the streets, de Yan Gong Zhao Ming. Já em 1966, a viragem política à extrema-esquerda restringiria ainda mais os círculos criativos a uma ideologia rígida e inflexível, tendência que viria a ser contrariada nas duas últimas décadas do século XX. Destruído o mito da Revolução Cultural, surgiram cineastas como Chen Kaige e Zhang Yimou, determinados a não prosseguir o género dominante e a buscarem, eles próprios, uma essência do cinema. Apesar disso, filmes como Raise the

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red lantern/Esposas e concubinas (Zhang Yimou, 1991) e Farewell my concubine/Adeus minha concubina (Chen Kaige, 1993), então realizados, mantiveram a forma melodramática; outros, como The big parade (Chen Kaige, 1987) e Red sorghum (Zhang Yimou, 1987), não deixaram de transparecer a visão política e ideológica da época. É nesta “nova vaga” de cinema oriental que Edward Yang irá surgir, destacando-se como fervoroso opositor à censura política da década de 80 e a todo o tipo de uso propagandístico da sétima arte. Da filmografia de Yang (China, 1947 – 2007) fazem parte That Day, on the Beach (1983), uma narrativa modernista centrada em histórias de casais e famílias; Taipei Story (1985), um filme urbano, passado em Taiwan; The Terrorizer (1986), com múltiplas e complexas narrativas entrecruzadas; A Brighter Summer Day (1991), uma história de gangs de adolescentes, influenciados por uma cultura pop norte-americana; A Confucian Confusion (1994) e Mahjong (1996), dois filmes que reflectem o conflito entre valores tradicionais e modernistas e a relação entre economia e arte, no Oriente. Em 2000 estreia finalmente Yi-Yi, por muitos considerado o filme mais sereno e acessível da sua carreira. Aplaudido pela crítica europeia, o cineasta reverteria, com este filme, o quase desconhecimento a que tinha sido votado pelo velho continente, impondo-se como um dos mais interessantes representantes do cinema asiático, não apenas pela universalidade dos temas tratados, mas também, consideramos nós, pela sua fluidez formal. Nesse mesmo ano, quatro filmes orientais entrariam em competição no Festival de Cannes, realizando uma proeza sem precedentes: Crouching Tiger, Hidden Dragon de Ang Lee, Devils on the Doorsteep de Jiang Wen, In the Mood for Love de Wong Kar-Wai e Yi-Yi, que valeria a Edward Yang a Palma de Ouro para o melhor realizador. Para além do reconhecimento em Cannes, Yi-Yi foi ainda distinguido com o prémio de melhor filme estrangeiro, pelo New York Film Critics Circle, e o prémio de “Filme do Ano”, atribuído pela National Society of Film Critics dos Estados Unidos. Seria, no entanto, a derradeira obra do realizador.

Mosaico de histórias entrecruzadas Em Yi-Yi, Edward Yang capta uma existência “a meio” e mostra-nos uma vida inteira. Filmando o desencontro, o amor, a dúvida, a esperança, a saudade e a rotina, Yang justapõe uma série de histórias que, juntas, formam uma espécie de mosaico. Com a lucidez de um espelho, este filme reflecte uma estética introspectiva e uma filosofia dialéctica originais, transformando Yang em testemunha privilegiada da cultura metropolitana. Nada de novo, portanto, se tudo é filmado na sua essência, com a curiosidade de uma criança, a melancolia de um adulto e a episteme de um idoso - as fases representadas nos três grupos de personagens que povoam a narrativa. O primeiro, correspondente à mais jovem geração da família, é composto pelos irmãos Yang-Yang (uma espécie de mascote do filme) e Ting-Ting. Demonstrando a sensibilidade

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e inquietação da “criança-que-virá-a-ser-cineasta”, Yang-Yang constitui uma espécie de alter-ego do realizador, sublinhada pela coincidência dos próprios nomes. Ao elemento mais próximo da infância (e do início da vida) cabe justamente a tarefa mais cinematográfica e clarividente de todas, da qual o próprio filme poderia ser também embaixador: constatando que as pessoas nunca se vêem de costas, Yang-Yang fotografa-as dessa perspectiva, para lhes mostrar a sua outra metade. Com a profundidade existencialista de um pequeno génio, o menino de sete anos é o guardião naïf, terno e incorruptível, da pureza humana de Yi-Yi. Ting-Ting, a sua irmã, é uma adolescente que começa a dar-se conta da ordem do mundo, sendo, interiormente, a que mais sofre com o estado de saúde da avó. A sensibilidade de uma menina que prefere o sono e as comédias para não ter de encarar a realidade da vida é bem representada por uma actriz que então se estreava no mundo do cinema. Apesar da sua aparente ingenuidade, e da vivência desgostosa do primeiro amor, antevê-se nela uma personalidade forte e determinada. Como um reflexo da independência feminina que começa a marcar o Oriente, Ting-Ting não transforma o seu desgosto amoroso num acontecimento trágico para si, pressentindo-se que, a partir daquele momento, ela poderá evoluir como Sherry, a ex-namorada do seu pai, agora transformada numa bem-sucedida empresária dos Estados Unidos da América. No extremo oposto encontra-se precisamente a avó, símbolo da invisibilidade realista deste filme e personificação da morte que se instala no apartamento dos Jian. Como uma espécie de fantasma, ou holograma de outra vida, a sua presença torna-se perturbante para toda a família. No final do filme, como por magia, acorda do coma em que se encontra para tranquilizar a neta e lhe oferecer uma borboleta de papel, protagonizando assim uma das cenas mais fortes e intimistas do filme, qual metáfora simbólica do hiperreal e do simulacro preconizados por Baudrillard. Entre estes dois grupos de personagens encontra-se um casal cansado, que atravessa uma ultra-denominada “crise de meia-idade”. NJ é um homem de negócios, com cerca de 50 anos, que trabalha numa empresa de informática à beira da falência. O encontro casual com a sua primeira namorada irá fazê-lo repensar toda a existência, constituindo-se como centro melancólico do filme. Colocando em prática um processo de quase simbiose imagética, Yang apresenta pai e filho como a mesma personagem, em etapas distintas da vida: se, por um lado, o seu filho atravessa uma fase de questionamento pré-filosófico, NJ vive as situações de uma forma algo distante e irónica. O mesmo processo seria aplicado a Ting-Ting e a Sherry, completando, deste modo, uma circularidade irreversível e eminentemente fatalista que perpassa a totalidade da narrativa. Min-Min, por sua vez, é a típica mãe de família, que concilia o híper-profissionalismo dos orientais, o desempenho das tarefas domésticas e uma permanente atenção para com a mãe, o marido e os filhos. Espelho de uma acumulação de funções e expectativas colocadas perante o sexo feminino à escala planetária, Min-Min evidencia o triplo papel das mulheres na sociedade oriental. Simbolicamente, os adultos representam assim um ponto 128

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de encontro entre a visibilidade das crianças e a invisibilidade da avó. Procurando refúgio fora da vida quotidiana que se cansam de viver (na música ou em retiros espirituais), NJ e Min-Min constituem o arquétipo da insatisfação de outros casais ensombrados pela dúvida e pela incerteza do desejável. Paralelamente, em Yi-Yi, é também sublinhada a importância dos personagens secundários (a cunhada de Min-Min e os vizinhos do apartamento ao lado) na formação de uma arquitectura de sentido. É através do percurso de cada membro da família, dos amigos ou vizinhos – e do modo como cada história comunica e influencia a história dos outros – que se vai construindo um destino que transcende os trajectos individuais. Edward Yang reinventou assim o cinema como uma complexa teia de afectos, com uma simplicidade cinematográfica invulgar e profundamente identitária. A narrativa entrecruzada utilizada, ou a arte de filmar sem destacar qualquer elemento ou personagem, seria o recurso estilístico potenciador deste efeito, tão caro a Wong Kar-Wai, em Chungking Express (1994) e a cineastas ocidentais como Quentin Tarantino, em Pulp fiction (1994); Paul Thomas Anderson, em Magnólia (1999); e Alexander Iñarritu em Amores Perros (2000). No que diz respeito ao tratamento do tempo, consideramos importante sublinhar que as linhas narrativas de Yi-Yi partem de um acontecimento colectivo festivo (um casamento), evoluem com as relações entre o presente e o passado das diferentes personagens, passam por um nascimento e terminam com a morte. Esta evolução narrativa, semelhante à da própria existência humana, faz transparecer o modo como Edward Yang encara o tempo fílmico, não fornecendo apenas espaço para a contemplação, mas também para a reflexão. Os planos de Yi-Yi têm, de uma forma geral, o tempo necessário para que o espectador ou espectadora se dê conta, com inteira clareza, do estado de espírito de cada um dos personagens. Ao longo de todo o filme, é notória uma oscilação dos mesmos entre a rotina de um presente conveniente, mas inquietante, e o misticismo de um passado irresoluto, que insiste em tornar-se presente. Este aspecto é representado, sobretudo, pelas antigas namoradas de NJ e do seu cunhado, que irrompem inesperadamente nos momentos festivos, como o casamento e a festa em honra do recém-nascido, lançando a perturbação. Neste tipo de cenas, quando vários acontecimentos são simultâneos, constatamos uma opção de Yang por filmar à distância. A escolha possibilita ao espectador uma visualização total da linguagem corporal do actor e da forma como este interage com o espaço em que se encontra. Provando possuir um incrível sentido da mise en scéne, Edward Yang transforma ainda cada plano num quadro, chegando a filmar cenas de “quadro dentro do quadro”. Tal como na pintura de Bosch, Renoir ou Velázquez, Yi-Yi manifesta uma grande profundidade de campo. O espaço é mostrado de uma perspectiva geral e abrangente, havendo várias panorâmicas dos locais onde a ação vai decorrendo (casa dos Jian, escola de Yang-Yang, igreja onde se realiza a cerimónia fúnebre), ao contrário do que acontece em filmes como In the Mood for Love ou Chungking Express, nos quais Wong Kar-Wai detém o olhar claustrofóbico da câmara em objectos específicos, como um relógio de parede, uma jukebox ou uma janela. Para além disso, a capacidade de Yang multiplicar as

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situações no interior de cada enquadramento fornece ritmo às quase três horas de filme. Como pretendia Bazin,1 o cinema não se contenta em conservar o objecto no instante – essa é a função da fotografia. Com o cinema, pela primeira vez, a imagem das coisas é também a imagem da duração delas.

O conceito de “eterno retorno” em Yi-Yi O mote que daria origem a este filme, assumido por Edward Yang em diversas entrevistas, foi o acidente de viação de um amigo e o seu consequente estado de coma. Nesse momento, o realizador tinha experienciado algo semelhante ao que estes personagens vivem no filme, quando o médico pede aos familiares que tratem o doente como uma pessoa normal, pois essa seria uma possibilidade de despertar os seus sentidos. Com elementos assumidamente biográficos, também em Yi-Yi se retrata a problemática da “vida em suspenso”, uma vez que a avó não se encontra morta, mas a sua forma de vida é estranha para os familiares. As reacções destes perante o impasse são distintas, focando em profundidade o desenrolar de uma crise familiar, com que os espectadores facilmente se identificam. Neste caso, e pelo realismo recorrente, consideramos que a ficção pode também ser mais reveladora do que o documentário puro, concordando com as palavras de José Luis Guérin ao afirmar: “Creio que existem muitos cineastas que, trabalhando em ficção, conseguiram trazer muito mais luz à realidade do que muitos documentaristas.”2 Não se tratando de uma crítica social, de Yi-Yi pode, no entanto, extrair-se um certo tom de comentário sobre a vida pós-moderna, onde a fatalidade e o cansaço são inevitáveis. Talvez por essa razão, a alternância entre os momentos de introspecção de alguns personagens (com especial relevo para o caso de Min-Min, cuja depressão levará a um retiro espiritual num templo budista) e os episódios cómicos protagonizados por YangYang (ao fotografar mosquitos na parede com o objectivo de provar a existência destes à mãe, ou ao tentar permanecer sem respirar debaixo de água, no lavatório da casa de banho, para aprender a nadar) sejam uma constante. Tal como a vida, Yi-Yi é um filme simultaneamente contraditório e linear, sereno e agitado, repetitivo e surpreendente. Nele, as experiências actuais são sempre decalque ou réplica de uma experiência anterior - sensação transmitida através do espaço em que ocorrem e da própria montagem, como na cena em que o pai, num quarto de hotel, relembra o primeiro encontro amoroso com a ex-namorada. Ao mesmo tempo, a sua filha (re)vive o paralelismo da situação, com os 1 Bazin, A. (2003). “Ontologia da imagem fotográfica”. Em Xavier, I. (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, Embrafilme. 2 Fernández, C. et al (2006). Conversación com José Luis Guérin originalmente publicada em Cabeza Borradora, no 3, Madrid. Disponível em: http://tierradegenistas.blog.com.es/2006/08/19/conversaciasn_con_josac_luis_guerasn~1037627/. Versão original: “Yo creo que existen muchos cineastas que trabajando en la ficción han arrojado muchísima más luz sobre la realidad que muchos documentalistas”.

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mesmos desenvolvimentos (o namorado irá deixá-la sozinha noutro quarto de hotel, sem consumar o sentimento que os une, tal como NJ terá feito há 30 anos atrás). A repetição da cena, como já referimos anteriormente, antecipa uma evolução psicológica de Ting-Ting semelhante à de Sherry. A montagem paralela aqui utilizada permite uma antevisão do futuro e, em simultâneo, um regresso ao passado que confirma a noção nietzschiana de “eterno retorno”. De uma forma algo simplista, o conceito consubstancia a ideia de que pólos distintos (criação e destruição, alegria e tristeza, saúde e doença, belo e feio, entre outros) se alternam repetidamente na mesma existência, complementando-se entre si, numa circulação impreterível e infinitamente repetida por todas as coisas, retomada em Yi-Yi. Neste sentido, Nietzsche questiona: O maior peso. Como seria, se um dia ou uma noite um demónio imperceptivelmente se arrastasse até à tua mais isolada solidão e te dissesse: ‘Esta vida, tal como a vives agora e tens vivido, terás de vivê-la uma vez mais e mais vezes sem conto; e não haverá nela nada de novo, mas sim te hão-de voltar cada dor e cada prazer, e cada pensamento e suspiro, e tudo o que é indizivelmente pequeno e grande na tua vida, e tudo na mesma ordem e sequência, e de igual modo esta aranha e este luar entre as árvores, e também este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência está sempre de novo a ser virada, e tu com ela, ínfimo grão de pó da poeira!’.3

A ideia perpassa grandes clássicos da literatura, como Madame Bovary (Gustave Flaubert), Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez) e A insustentável leveza do ser (Milan Kundera). Sendo que a realidade, para Nietzsche, não tem uma finalidade ou objectivo a cumprir, são as alternâncias de prazer e desprazer que se repetem durante a vida que lhe atribuem significado. Tal não implica, porém, que o devir ocorra de modo exactamente igual, mas antes que se experienciem variações de sentidos já vivenciados, apresentando várias faces de uma mesma realidade. Esta não é uma perspectiva pessimista, uma vez que não se traduz numa negação da vida, mas antes na sua afirmação: o desenvolvimento e crescimento só são possíveis, tal como Yi-Yi revela, mediante a vivência do declínio e do seu contrário. A ação é assim, neste filme, uma análise simplista do comportamento humano, reduzido a acções e sentimentos fundamentais, que constantemente se repetem mediante um regresso do passado ao momento presente. Assumindo-se como figura embrionária deste vai-e-vem incessante, Yang-Yang, o “velho filósofo” de apenas sete anos de idade, fotografa as nucas das pessoas. A transparência do título, que em chinês significa “um a um”, “um depois do outro”, associada a uma repetição dos nomes da maioria dos personagens (Min-Min, Yang-Yang, Ting-Ting,…) reforça também esta ideia de uma realidade 3

Nietzsche, F. (1998). A gaia ciência. Lisboa: Relógio d’Água, p. 244 e 245.

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dualista. Imageticamente, o reflexo pode mesmo ser considerado o motivo estético por excelência de Yi-Yi, visível numa das cenas filmadas no Japão, quando Sherry chora no quarto de hotel: o plano é filmado a partir de fora e reflecte a cidade na janela, tornando-o, de certa forma, menos invasivo e mais pudico. Noutra cena passada em Taipé, no escritório de Min-Min, enquanto esta pensa na doença da mãe, o vidro reflecte uma luz vermelha, luminosa e intermitente, semelhante a um coração. Ao longo do filme, assistimos ainda a outras cenas, separados por um vidro, como a colisão de A-Di (irmão de Min-Min) com a ex-namorada, o encontro de Ting-Ting com o namorado ou o jantar de NJ e Sherry, num restaurante, em Tóquio. A transparência utilizada sublinha uma descrição intrínseca a Yang, possibilitando, não obstante, o voyeurismo do espectador/a, que pode então esquecer a câmara e encarar o “obstáculo” como o único que o/a impede de se imiscuir no dia-a-dia destes personagens – como se o próprio vidro os enquadrasse, reflectisse e diluísse.

Espaços abertos numa cidade sufocante Para além de se afirmar como um cineasta da melancolia pós-moderna, Edward Yang exibiu também, em Yi-Yi, o seu cepticismo perante as crenças orientais e a existência de segundas oportunidades como proporcionadoras de finais felizes. Se, por um lado, A-Di, quis casar naquele que, de acordo com o almanaque chinês, é o “dia mais feliz do ano”, por outro, a avó acaba por entrar em coma precisamente nesse dia. Exibindo um verdadeiro mecanismo de desconstrução de superstições, Yang filma ainda o fracasso do retiro espiritual de Min-Min (que não lhe devolve a desejada paz interior) e a rejeição de uma nova vivência da antiga história de amor (oportunamente oferecida pelo destino numa fase de incerteza de NJ). Contrariando a tendência do cinema clássico de Hollywood, em que a segunda oportunidade aparece geralmente no final do filme para proporcionar o happy ending, neste caso, ela não significa um epílogo próspero, nem sequer trágico: NJ opta pela estabilidade do momento presente (e do futuro), sem que isso seja necessariamente positivo ou negativo. A esta recusa do monumental associa-se, em Yi-Yi, uma procura da elegância e da simplicidade e um contornar de cenas de violência gratuita: em A Brighter Summer Day (1991), Yang tinha filmado um jovem a matar a sua namorada, numa cena demasiado explícita e sanguinária. Em Yi-Yi há também um assassinato, mas o seu desenrolar é imaginário e substituído pelo plano de um videojogo, o que o torna mais ficcional. Da mesma forma, nunca chegamos a ver o corpo da avó, depois de morta, uma vez que, em casa dos Jian, a câmara permanece fixa na sala, filmando apenas os personagens que passam à sua frente: NJ e Yang-Yang estão prostrados, diante do corpo, mas só os vemos de costas, à entrada do quarto, respeitando-se a solenidade e a privacidade do momento. A discrição

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de Yang transmite assim a sensação de que é o próprio espectador que, cerimoniosamente, entra na casa de uma família que só agora começa a conhecer. Não manifestando intenção de impor qualquer imagem ou ponto de vista ao espectador, o realizador opta essencialmente por planos gerais, em detrimento dos grandes planos. Em inúmeras cenas (como na conversa de NJ, Sherry e Ota na sala do hotel em Tóquio, ou no passeio de NJ e Sherry pelos jardins da capital nipónica), não vemos sequer directamente o rosto dos personagens. Um dos poucos travellings utilizados, à chegada de NJ a Tóquio, mostra uma cidade industrializada e triste. Nos restantes momentos, os planos mostram-nos, por diversas vezes, os personagens de costas, sendo que, da discussão de Lili com a mãe e o professor de inglês, só assistimos ao mesmo que Ting-Ting, que se encontra no corredor. Do mesmo modo, também as discussões e encontros de Lili com o namorado são sempre vistos de um ângulo contra-picado, de cima para baixo, num plano muito geral. Quando a cena se concentra num único personagem (Yang-Yang a discutir com o professor na aula, por exemplo), o realizador opta por utilizar um plano médio. Em Yi-Yi, onde tudo parece acontecer livremente em frente a uma câmara quase sempre fixa, predomina ainda a ausência de artificialismos técnicos. Nesse sentido, tomando como referência o movimento impressionista na sua génese, podemos dizer que a maioria das cenas se enquadra neste estilo, na medida em que a luz natural impregna tudo, cabendo à câmara a tarefa de captar a sua cor e essência. Não recorrendo a qualquer tipo de efeitos especiais, Yang utiliza instrumentos estritamente fílmicos e oferece tonalidades puras: o verde dos jardins, o cinzento dos muros e a luminosidade dos néons na escuridão da noite. A mesma escuridão que faz parte indelével de cada um dos personagens e que leva Yang (Yang) a concluir: Desculpe, Avó. Não é que eu não quisesse falar consigo. Mas tudo o que lhe podia dizer a Avó já sabia com certeza. Ou não estava sempre a dizer que “ouvisse”? Dizem que se foi embora. Mas não me dizem para onde. Talvez por acharem que eu devesse conhecer o lugar. Mas sei tão poucas coisas, Avó… Sabe o que quero fazer quando for grande? Quero dizer às pessoas coisas que elas ainda não saibam, mostrar-lhes coisas que nunca viram. Vai ser muito divertido e talvez um dia eu descubra para onde foi. Se descobrir posso dizer a todos e levá-los para a visitar? Avó, tenho saudades suas. Especialmente ao ver o meu primo recém-nascido que ainda nem nome tem. Ele lembra-me que dizia sempre que se sentia velha. Quero dizer-lhe que também eu me sinto velho.

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Bibliografia BAZIN, A. “Ontologia da imagem fotográfica”. Em Xavier, I. (org). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, Embrafilme, 2003. FERNÁNDEZ, C. et al. Conversación com José Luis Guérin Originalmente publicada em Cabeza Borradora, no 3, Madrid. Disponível em: http://tierradegenistas.blog.com.es/2006/08/19/conversaciasn_con_josac_luis_guerasn~1037627/, 2006. NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Lisboa: Relógio d’Água, 1998.

Filmografia de Edward Yang That Day, on the Beach (1983) Taipei Story (1985) The Terrorizer (1986) A Brighter Summer Day (1991) A Confucian Confusion (1994) Mahjong (1996) Yi-Yi (2000)

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Ana Catarina Pereira é jornalista, mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca. Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior, investigadora do Labcom e bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia.

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Edição fac-similar celebra os cinquenta anos do suplemento paranaense “letras e/& artes” Facsimile edition celebrates the fiftieth anniversary of the supplement Parana “letters and /& arts”

E

ntre 1959 e 1961, Curitiba viu nascer e florescer a polêmica página literária, “letras e/& artes” (assim mesmo, grafado em minúsculas), um marco no jornalismo cultural da capital e da vida literária paranaenses. Reunindo toda uma geração de jovens jornalistas, escritores, poetas, contistas, críticos de cinema e de teatro, ensaístas, filósofos, e artistas plásticos, o suplemento inovou no estilo de revelar os autores locais, e na forma gráfica de discutir e absorver a cultura brasileira na província. Publicada aos domingos pelo jornal “Diário do Paraná”, órgão pertencente aos Diários Associados, “letras e/& artes”, meio século depois, é agora resgatada através de uma inédita edição fac-similar (84 páginas, tamanho do jornal da época, 94x64cm; 04 cores), organizada pelo seu então editor, o cineasta, poeta e escritor, Sylvio Back Fora do comércio, a coleção de 500 exemplares, ora em lançamento, visa uma ampla distribuição nacional, para fruição em bibliotecas, universidades e academias literárias públicas e privadas, e junto à mídia especializada, a bibliófilos e colecionadores. O histórico feito vem a lume graças ao prestigioso patrocínio da Itaipu Binancional, com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, através do projeto gráfico e de editoração de Rita de Cássia Solieri Brandt e Adriana Salmazo Zavadniak, e da seção paranaense da Biblioteca Pública do Paraná, onde está arquivada a coleção original do jornal. A capa é de autoria do poeta e artista gráfico mineiro, Guilherme Mansur, sobre desenho de Manoel Furtado, e a reprodução das páginas são do fotógrafo, Cadu Busatto. Adiante, depoimento de Sylvio Back que, aos 22 anos, durante vinte meses, dirigiu o suplemento munido da mais ampla liberdade estética, de expressão e de opinião. Pelo seu torque independente e ousado, tanto em matéria de conteúdo, como na modernidade de sua fatura gráfico-visual, “letras e/& artes” é considerado um evento cultural jamais igualado na imprensa paranaense.


Amor e orgulho de uma geração SYLVIO BACK*

Love and pride of a generation

A

edição fac-similar da página literária “letras e/& artes” comemorativa dos seus cinquenta anos, à época inserida dominicalmente no jornal “Diário do Paraná”, tanto celebra a trajetória autoral de um punhado de idealistas, todos então bela e irremediavelmente jovens, como atualiza este momento único e irrepetível do jornalismo cultural de Curitiba e do Paraná. Eram textos, críticas, poemas, ensaios, gravuras e desenhos eivados de uma “loucura moral”, eu diria, até então inéditos, nunca vistos e lidos na cidade, que dirá no Estado todo. Havia uma “fúria do bem”, nada de acertar as contas com o passado ou com o pretérito de intelectuais, artistas, acadêmicos ou instituições culturais. A meta consistia em motivar, incendiar e fazer valer a produção e a criatividade do presente.

Inovação gráfica A publicação chamava a atenção porque tudo vinha acondicionado numa plataforma gráfico-visual que destoava de toda a imprensa paranaense e do próprio Diário do Paraná, inclusive, e frequentemente da própria orientação política do jornal. Um dado que ficou indelével tanto na minha lembrança, eu que dirigi “letras e/& artes” durante quase dois anos (entre agosto de 1959 e março de 1961), como na de todos os colaboradores, era o fato que tínhamos a mais ampla liberdade estética e de expressão e de opinião. Jamais a editoria foi admoestada ou censurada, nem constrangida a publicar texto não solicitado.


E, sem favor, esse reconhecimento póstumo é, nesta hora, um tributo à memória do Dr. Adherbal Stresser, “Doutor Adherbal” como era conhecido e assim o chamávamos, diretor do Diário do Paraná, que fazia questão, muitas vezes, de ler o suplemento saindo da boca das rotativas nas madrugadas de sábado para domingo.

Pauta aberta Não raras vezes as ousadas opiniões dos articulistas provocavam furibundas reações da micro-intelectualidade curitibana, quase toda com alma autofágica, incapaz de acreditar nos criadores à sua volta (muitas delas chegavam a pregar a extinção do suplemento). Para contrabalançar, eu tinha o retorno entusiástico dos leitores expresso em cartas, telefonemas e colaborações remetidas à redação. Confesso que a editoria não se guiava por nenhuma orientação literária, filosófica, poética, cinematográfica, teatral, nem por alguma escola de artes plásticas, e muito menos por algum viés político-ideológico, ainda que aquele final da década de ’50 e a cúspide dos sessenta já prenunciavam os perrengues a vir e “porvir”. Só pela qualidade das colaborações, que eram espontâneas tanto quanto eram intocáveis e pétreas as opiniões ali expressas. Pela intuição e consultando a quem eu creditava maior conhecimento no tema, a excelência artístico-cultural do texto era, também, inquestionável. Compulsando a edição dá para entender o rigor literário e moral que se flagra em cada texto.

Influências Difícil hoje, meio século depois de sua contundente presença editorial em Curitiba, avaliar a influência e as consequências que “letras e/& artes” teve na engessada e paroquial cultura paranaense daquela quadra. Muitos colaboradores embrenharam-se com sucesso no jornalismo, na política, na pintura, na poesia, na universidade, na literatura, no cinema (infelizmente, apenas eu!), etc., deixando seu testemunho, sim, onde, parece que a busca pelo intangível dava o sentido à própria vida. Quem sabe esta edição fac-similar de nosso estro da juventude simbolize que a pátina do tempo não passa de uma miragem que jamais se desvanecerá, simplesmente, porque já é imortal.

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Morte prematura A prematura “morte” do “letras e/& artes” se deveu a uma inesperada demissão do Diário do Paraná, precisamente por eu ser um dos líderes, junto com o já falecido escritor, Valêncio Xavier, de uma greve por melhoria salarial na então TV Paraná, do mesmo grupo empresarial, onde acabara de me iniciar como “diretor de TV”, meu batismo de fogo no audiovisual. Se o incidente deixou um vácuo de angústia e perplexidade entre todos que o fazíamos com tamanha paixão, maior impacto foi sentido por nossos leitores cativos, acostumados com a irreverência e a iconoclastia do suplemento que se destacava naquela Curitiba culturalmente modorrenta e afeita ao beletrismo e ao compadrio intelectual.

Resgate editorial Assim, desde a primeira hora em que pensei resgatar a coleção do “letras e/& artes”, constituída de 94 edições, isso já há mais de três anos, imaginei que ela seria lançada fora do comércio. Tanto para uma fruição ativa dos seus colaboradores primevos, como para uma distribuição gratuita, local e nacional, a bibliotecas, universidades e academias literárias públicas e privadas, e junto à mídia especializada, a bibliófilos e colecionadores. Aos colaboradores, uma “surpresa de geração” para a maioria que felizmente ainda está entre nós. Afinal eram eles que todas as semanas ficavam ouvindo minhas “cobranças” pelos seus ensaios, poemas, críticas de cinema, de teatro, crônicas, ilustrações, etc. E tudo sem remuneração alguma, pelo prazer de escrever, de criar, de pensar e de provocar polêmicas e o dissenso.

Posteridade Mas, imprescindível enfatizar que esta recuperação memorial do suplemento, que vem a lume graças ao inestimável patrocínio da Itaipu Binacional, é – antes de tudo – uma vitória sobre o esquecimento a que “letras e/& artes” ficou relegado e/ou esquecido durante cinco décadas pela Curitiba acadêmica, majoritariamente de corte “chapa branca”. Muitas vezes tive que engolir a omissão de sua existência agenciada por escribas da cultura e do jornalismo paranaenses que jamais o citaram, quanto mais dar crédito à sua histórica pertinência artística e cultural.

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Back

Agora, exatamente, meio século depois, para o gáudio de suas dezenas de colaboradores,1 “letras e/& artes”, ao tempo que cumprimenta e se faz presente às novas gerações, entra de cabeça erguida para a posteridade.

Jornalista-cineasta Já disse e escrevi algumas vezes que sou um jornalista que faz filmes. Sim, hoje, com quase quarenta filmes e 21 livros, pode soar como exagero (chega a ser, mesmo), ainda que sejam duas atividades aparentadas… No jornalismo fui um dos primeiros copy desk (redator que dá unidade estilística às matérias dos repórteres e das agências de notícias) do Paraná, coincidentemente por 1 Entre outros, compareciam com assiduidade assinando ensaios, críticas, poemas e ilustrações, Adherbal Fortes de Sá Jr., Alberto Massuda, Antenor Pupo, Assad Amadeu, Carlos Varassin, Cecy Cabral Gomes, Celina Silveira Luz, Edésio Passos, Ênnio Marques Ferreira, Ernani Reichmann, Erwin Hromada, Fernando Pessoa Ferreira, Francisco Bettega Netto, Gilberto Ricardo dos Santos, Glauco Flores de Sá Brito, Heitor Saldanha, Helena Wong, Hélio de Freitas Puglielli, Yvelise Araújo, Jairo Régis, Luiz Carlos de Andrade Lima, Luiz Geraldo Mazza, Manoel Furtado, Mario de Andrade, Mário Maranhão, Mauri Furtado, Nelson Padrella, Oscar Milton Volpini, Paul Garfunkel, Paulo Gnecco, Pedro Geraldo Escosteguy, Regina de Andrade, René Bittencourt, René Dotti, Roberto Muggiati, Sebastião França, Vicente Moliterno e Walmor Marcelino.

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trabalhar em fins da década de 1950 no então Diário do Paraná que introduziu esse “personagem” na redação, e era a menina dos olhos de Assis Chateaubriand, dono da cadeia de jornais, rádios e TV dos Diários Associados. Naquela redação, como uma antevisão mágica, aprendi a dar títulos às reportagens e ao noticiário nacional e internacional, muitas vezes cheguei a cravar a manchete do jornal. Décadas depois, ao escrever meus primeiros poemas, senti uma familiaridade com aquela síntese, o minimalismo e a contenção que os remetia aos cabeçalhos daqueles noticiosos. Além da editoria do “letras e/& artes”, que foi uma espécie de presente dos céus, eu que já era colaborador do suplemento, assinei durante anos coluna de crítica de filmes também nos jornais O Dia e em O Estado do Paraná. Por sinal, foi nesse matutino que, em meados de 1967, dei adeus, não sem um travo de tristeza, à minha curta e inesquecível vida de jornalista. E fui abraçar o meu sonho de juventude: ser cineasta. No ano seguinte fiz meu primeiro longa-metragem, o hoje, segundo a crítica, “cult” e clássico, Lance Maior.

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Sylvio Back é cineasta, poeta, roteirista e escritor. Autor de 37 filmes de curta, média e longa-metragem (11), publicou 21 livros (poesia, roteiros, contos e ensaios). Em lançamento nacional, o novo filme, O Contestado - Restos Mortais; em filmagem, o doc O Universo Graciliano; em preparo, a ficção, A Angústia, baseado no romance de Graciliano Ramos.

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A condição humana entre a liberdade e o pertencer ELIZÂNGELA INOCÊNCIO MATTOS* O que se ouve quando se cala?

Resumo: O livro do escritor israelense Amós Oz (1939 -), Uma Certa Paz, narra a história de um jovem que decide deixar o lugar onde mora e a vida que tem em uma comunidade agrícola coletiva existente em Israel, o kibutz, onde vive com a esposa, em busca de uma nova vida, distante de todos. The human condition between freedom and belonging Abstract: A Certain Peace by the Israeli writer Amos Oz (1939 -) tells the story of a young man who decides to leave the place where he lives – in a collective farming community or kibbutz in Israel, where he lives with his wife – for a new life away from everyone.

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ma Certa Paz, traduzido do original em hebraico Menuchá Nechoná, percorre a vida de um jovem, Ionatan Lifschitz, de vinte e seis anos, que vive em uma comunidade agrícola coletiva israelense, o kibutz Granot. Filho do líder da comunidade, casado com a jovem Rimona, a narrativa centra-se no desejo de Ionatan de sair do kibutz, em busca de uma nova vida, de uma certa paz, com a liberdade de ir e vir e sem as obrigações que tomam toda sua vida na comunidade. O conflito de Ionatan começa no inverno de 1965, quando decide sair em busca de uma vida nova, sedento de novos fatos, de um lugar onde não fosse re-conhecido, onde pudesse sair e passear, e mesmo não sair e nem andar, de modo que não fosse importunado por tal atitude. Sua relação com a família é conflituosa, assim como com sua esposa Rimona que, dedicada a ele e ao casamento tem, em contrapartida, a insatisfação e descontentamento dele, sempre a planejar sua partida, para um lugar que não se sabe qual seria, mas com a certeza de que ali no kibutz não poderia ficar. Nas noites frias, Rimona senta-se junto dele, e Ionatan não se importa com sua dedicação. Por vezes ficam quietos, sem nada dizer, fato este que vai se repetir mesmo com a chegada do estranho Azaria Guitlin. Assim, Ionatan e Rimona vivem um dia a dia de


poucas conversas e muitos espaços vazios e que remete à questão que aparece na narrativa e foi colocada como epígrafe neste texto. Assim, Agora os dois estão dentro do mesmo silêncio. Não estão vencendo nem perdendo nada. Nem mesmo xadrez. (p. 178)

A condição de Ionatan reflete a condição de um individuo que descontente com a vida que leva, pensa e decide largar tudo e mergulhar no desconhecido, no espaço anônimo no qual suas obrigações cotidianas estarão ausentes, sua necessidade diária de manter a rotina passe a dar lugar ao inesperado, aos dias nos quais a desobrigação o conduza, a cada momento, a situações casuais, porque fora de toda rotina. Ao planejar sua partida, o jovem passa a ter saudade do tempo que ali vivera, o cheiro da mata, por ex., que naquele momento não lhe interessava, mas do qual sabia que posteriormente iria sentir saudade. Assim, Tinha pena de se despedir dos aromas, dos sons e das cores que o tinham acompanhado desde pequeno. Amava o cheiro que baixava lentamente sobre os gramados aparados, nos últimos dias de verão: junto dos oleandros, três cães vira-latas lutam furiosamente pelos restos de um sapato despedaçado. (p. 11)

A narrativa apresenta, no dia a dia de planejamento da partida de Ionatan, um fato inesperado que movimenta a todos os moradores e, por conseguinte, o cotidiano de todo o kibutz. A chegada de um homem misterioso, Azaria Guitlin, que, diferentemente de Ionatan, quer se firmar em um grupo, anseia por pertencimento e deseja poder ficar naquele lugar. Interessante como Amóz conduz a narrativa de modo a contrapor os dois personagens em condições totalmente antagônicas e assim, de repente, os dois estão vivendo no mesmo espaço, na mesma comunidade e logo mais adiante, na mesma casa, sob o mesmo teto. Azaria e Ionatan compartilham de conflitos distintos: um quer partir e se tornar desconhecido, outro quer ficar e pertencer ao grupo, à comunidade. Azaria, diferentemente de Ionatan, é bem falante, com muitas histórias para contar. Sempre citando Espinosa em suas conversas, passa a ser um terceiro morador da casa de Ionatan, e mesmo, segundo sua vontade, aquele que ficaria com Rimona quando de sua partida. O planejamento de partir, por parte de Ionatan, acontece em meio às discussões entre ele e Azaria que, todas as noites ficava com ele a conversar, enquanto Rimona preparava para ambos uma bebida. O estranho, aquele que não se permitia pertencer, não era, de fato, Azaria, que chegara a pouco, conhecedor de máquinas e por isso já com uma ocupação arrumada no kibutz, mas Ionatan para quem Azaria poderia ficar em sua casa, cuidando de tudo, inclusive de sua esposa, com quem até poderia ter um filho, se assim o desejasse.

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A condição de Ionatan na comunidade é de um homem com um papel a desempenhar, como marido, filho e com sua atividade no trabalho. Diante de seus dias, pensa em um lugar onde pudesse trabalhar no que quisesse, onde não estivesse cansado e mesmo, cercado de pessoas. Preparada para sua partida, Rimona conduz de modo tranquilo a súbita ausência do companheiro, que pode, como sempre pensou, estar em um outro lugar, em uma nova vida, indo e vindo para onde quisesse, vendo o mundo como se passasse a ter novos olhos. O conflito dos personagens na comunidade retrata a condição do individuo em busca daquilo em que acredita, de um lugar onde consiga pertencer e ser em toda sua singularidade. Ionatan decide partir e assim o faz, deixando o kibutz em uma madrugada. E aquele que decide ficar, assim o faz por acreditar ser ali o seu lugar. Uma obra singular de Amóz Oz que, entre outras obras, escreveu Meu Michel (2002) e A Caixa Preta (1993).

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Elizângela Inocêncio Mattos é professora Assistente na UFT, doutoranda no PPG em Filosofia da UFSCAR. E-mail: elizangelamattos@uft.edu.br.

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O assassino de Linda Júlia ACANTIZA*

quando vir a placa o gato preto ou a ovelha roxa afaste-se lentamente sem mesmo ler “seja bem-vindo, você está em Linda Júlia” o pequeno pedaço do meio termo onde Garfield marca o tempo e o assassino escolheu pra morar uma vírgula divide o compasso entre dois termos minha querida prudência indo pro espaço - e como é o nome dela? - não sei. Só pinta. - e será que a dona pinta me deixa beijá-la? Linda Júlia lugar do cultivo de dúvidas inefáveis o chão é fértil e o tempo pára pra ouvir a conversa das donas de casa quando você for pro norte nada me traga de lá se ela ainda estiver sem casaco com a sutileza leve dos loucos cubra-a.


Durante toda aquela manhã de outono os termômetros, se os tivesse à vista, registrariam dezenove e meio graus. Nas sombras sobre as ruínas de velhos casebres revelaram-se desenhos de rara beleza. As sombras são as poesias do concreto regidas pelos raios do rei Sol. O investigador Ivan Matias ignorou a libidinosa luz se espalhando nos muros enquanto seguia concentrado por seu caminho. Disseram que a escrita advém desses momentos brancos e ocos. Surge sorrateira e vai aos poucos subindo passo a passo encaixando seus pesinhos nos tijolos lascados, percorrendo falhas e juncos, escapando iludida e guiada pelo seco caminho de ir e vir das frases, surgindo pelo labirinto da memória como Borges previra, a lembrar uma citação de Valéry de que a parte mais profunda do homem é sua pele. Deve ser isto. Um contraste de efeito numa curta sentença, quase tão complexo como o contraste que ele mesmo investiga. Que diabos há entre poesia e morte? Nesse caso, deve o lúdico trabalho do criar ir inspirando-o ao ser lapidado e sua pérfida perversidade atrelando em seu plano como o lagarto faz num muro cinza chapiscado com umas plantas de mamona ao fundo em dia de Sol forte, deve o esforço excitá-lo enquanto sobe pela parede cinzenta o molusco, cérebro de retardado indo parar no extremo cume do muro, e ele olhando lá de cima com seus olhinhos arregalados de curiosidade, um passo à frente a realidade, um atrás o sonho? O investigador Ivan da metrópole esboça um sorriso frio no balcão da padaria enquanto provavelmente pensa sobre isso aqui descrito. Ele espera seu pingado que será servido num copo americano já usado por um ignóbil ébrio que bebeu conhaque na noite anterior. Sabe que a bebida virá com aquela nata flutuando pela superfície (as nuvens sobre o céu do espesso líquido de café com leite), espera também seu pão com margarina chapeado e quente, um tanto queimado na borda e com casca facilmente esfarelando, de um filãozinho adormecido. Deve ter dormido mais que ele próprio dormiu no quarto embolorado da pensão. A brasa do cigarro na boca despenca e se espalha sobre as frases riscadas há pouco. Girl from the north country na voz híbrida de Dylan já parou de soar no falante do seu gravador portátil. Começa então a reestruturar os argumentos nas evidências do caso. Sinceramente, Linda Júlia não é mesmo o local para esse tipo de crime. A vila parece que foi preparada e exposta ali sobre a colina onde crescem somente árvores de folhas amarelas pardas pelas mãos de algum artesão a aguardar por um forasteiro que roubasse sua soturna ingenuidade e a levasse dentro de uma sacola de plástico com listas azuis e vermelhas. Situa-se bem no centro da bela cidadezinha, no cume da colina amarelo fosca, substituindo o local onde outrora houve, segundo os mais antigos dentre os moradores que guardam tais lembranças, para constrangimento e vergonha destes, o casarão do Senhor Nala Ope. Com o consenso e sob o jugo do inescrupuloso Nala foram elaboradas inúmeras reuniões para a discussão de assuntos assombrosos, e claro, todos os escritos feitos pelos estranhos e taciturnos adeptos da seita, que se diziam em exílio consentido do mundo, e foram queimados ou atirados no riacho do qual ainda irá falar-se. Diz-se até ter sido proposto por seu mentor o absurdo de levar a cabo construírem a primeira biblioteca pública

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de Linda Júlia, bom, para o bem da paz desse lugar ela não existe e como se vê nesse local fica agora uma singela e inofensiva capela com um anjo sem uma das asas no cume. As casas de Linda Júlia, se de cima pudessem ser vistas e tomada a devida distancia do apreço, são como um afresco mantendo similaridades em tons e geometria e descem circundando o anjo aleijado até a mata ciliar do riacho que tem um traçado estratégico emoldurando a obra. É realmente de intrigar. Há uma quebra aqui na trama de mortes do assassino conhecido como “versos de sangue”. Os fatos novos realmente afligem o jovem investigador Ivan Matias, ainda à espera de seu desjejum matinal. A resposta dele a si mesmo, de momento, é que o autor dos crimes, tendo adquirido fama com a recente publicação dos seus sonetos fúnebres, teve de escolher uma cidade menos visada para agir. A atitude desse inescrupuloso redator tira-o do sério. Um oportunista de péssimo caráter no seu parecer jurídico e literário que teve acesso aos poemas espalhados no quarto sobre o corpo ainda lânguido da última vítima. Matar sempre foi fácil. Até mesmo um idiota mata. Mas aqui não se trata de um banal matador. Ivan o concebe como um calculista romântico que vem se excedendo em sua idiota convicção do encontro da beleza e da poesia. O pão chega sobre a mesa e, por incrível que pareça, no leite não há nata alguma. Por quê? Pensa Dr. Ivan Matias, esses seus versos escritos agora não seduziriam uma ingênua qualquer? Falam de coisas sem muito sentido, ainda não lhe parecendo de todo ruins. Deixar-se-ia uma coitada ser seduzida até seu leito de morte e prazer? Acredita que na parte do Garfield não, mas quem sabe na do beijo na pinta? Toda belle femme tem sua pinta secreta. Mas as mulheres deste lugar não são assim tão belas. Eis aí outro fato peculiar. O matador não se restringe ao deleite da beleza formada pelo padrão geral. A beleza das passarelas e dos cosméticos. Deve o matador paulatinamente estruturar uma teia que faça sentido ao seu maluco paladar mental e libidinoso, reconstruindo um sentido sensual perante a presença frágil, entretanto percuciente, de suas vítimas. Estranho seria se questionássemos o livro antes da hora. Falou-se já do assassino poeta, traduziu-se um pouco de Linda Júlia em versos de poesia e também em descrições menos líricas, mostrou-se uma névoa da personalidade austera e um tanto arrogante de Ivan, falou-se do anjo sem uma das asas, mas isso nada valeria se não se despendesse agora um pouco de letras para mostrar onde estariam as asas do anjo da capela: caso representem mesmo a ingênua auréola da beleza, elas estariam sobre as costas de Talássia. Descabida e cheia de despretensão, a magia que guarda esse corpo não deve ser tocada nem por uma narrativa e somente será aqui tecida em letras a meiga aparência de certa criaturinha. E também, já ia me esquecendo, não são somente as falhas do crime que mantém nosso formado investigador atrelado nos arredores, escondido pelos becos vivos ao dia e lúgubres assim que anoitece em Linda Júlia. Até mesmo no inferno, e acredito que lá seja o lugar mais propício para morar a deliciosa beldade, pode-se se apaixonar. O anjo sem asas alguma de Linda Júlia, tão esquiva, menina e desleixada mostrou, sem intenção de ferir, seu sorriso e o escopo foi em cheio o coração seguro e estudado de Ivan.

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Como citar Talássia sem roubar doces palavras dos clássicos? Em primeiro, sem que ela perceba, ela é indolente. Foi criada pra sê-lo. Sem ser um mínimo irritante, quando não lhe invadem o mundo de sua cabecinha, dos descabidos pensamentos fantasiosos, seus traços idiossincráticos resplandecem e revelam seu espírito inocente. Meus caros, ela é de extrema gentileza e educação ao tratar. Ela não fala, ela canta. Parece trazer no sangue o antagonismo do clima local. De dia é duma jovialidade vivaz e vai se transformando com o cair da noite em um ser que pende à melancolia, dando vontade de colher nos braços ou guardar no bolso para protegê-la. Tem como virtude a beleza e o coração ignorante. Cobrindo-se em seu vestuário elegante, ditos incorretos em épocas arcaicas, é uma mescla de travessa e mulher. Quando a cabeça pende e balança seu pescoço macio e tentador, é possível notar algumas sardas por sobre os seios que são uns respingos impressionistas com toques ruivos refletindo no verão daquele corpo. Sua cintura é um oásis de preguiça desacelerando a descida dos olhares para as belas e libidinosas coxas que separam o púbis indolente e róseo, ainda suave pela inexperiência. Diga-me agora quem roubou tua asa anjo da capela? E eu digo que ela nunca lhe pertenceu. O arcabouço se forma na armadilha que é seu esplendor de sorriso escondido por uma boca grande e sã. Uma visão que não condiz com a pureza destruidora de Talássia. Não era a última visão que gostaria de deixar neste conto essa que há de advir desse parágrafo. O certo é que os fatos assim ocorreram e não me cabe alterá-los para poupar a ti a dor que agora sente o sábio investigador Ivan. Houve outra morte em Linda Júlia. Os versos eram de extrema mediocridade e novamente estavam espalhados por sobre a cena fúnebre. Ivan Matias soube da morte enquanto lia alguma notícia no caderno de economia do jornal da cidade grande. Não prestava muita atenção, pois pensava no lindo corpo e rosto de sua desejada Talássia. E foi ela que ele viu ao entrar na capela central. Talássia estava quase totalmente nua. Tinha apenas uma das meias e o elástico dessa ia morrer apertado no meio de sua coxa direita. No pulso, sobre o pálido mamilo de um de seus seios, carregava uma pulseira nas cores vivas que costumava usar. Pernas e o outro braço estendidos sobre o altar, e destes contemplava-se por um último momento seu corpo cor de mel ainda com o ar quente de sua graça. A alaranjada claridade que passava pelo vitral iluminava sua penugem loira e púbica. Era assim que ela estava estendida e morta por baixo da cruz e da imagem de Cristo naquele altar. Restou para Ivan, ao ler um dos sonetos tirado do colo de sua amada, a certeza que os versos do criminoso eram de fato horríveis e que ele havia realmente mudado seu meticuloso gosto e modo de agir. Restou-lhe também o desejo de nunca ter pisado os pés na traiçoeira Linda Júlia. Os termômetros agora mediam vinte e um graus e meio e a cidade perdia a essência primordial do aroma de seus ares. Três novas crianças nasciam no hospital local. Duas meninas e um menino de dois quilos e quarenta gramas. As meninas, por mais peso que tivessem, nunca seriam lindas como foi Talássia. Nos arredores da vila diz-se até que o riacho secou por um instante revelando alguns dos estudos proibidos de Nala Ope, os mesmos que foram nele atirados sem passar pelo fogo furioso dos fracos. Os pássaros

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cantaram menos e as árvores da colina foram pouco a pouco perdendo seu tom amarelado. E sem espanto algum dos justos foi que um vento forte arrancou a outra asa do anjo da capela indo cair e espalhar-se em quarenta e seis pedaços grandes e setenta e sete miúdos por sobre a escadaria da pequena igreja. Assim foi dito da magia mítica de Linda Júlia naquele triste dia.

O nascimento de Vênus – Sandro Botticelli

* Acantiza é poeta, contista e viajante. E-mail: acantiza@hotmail.com.

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OLHAR é uma publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tem por objetivo sistematizar, no formato revista, a difusão de conhecimentos, pesquisas, debates e idéias nas áreas das Ciências Humanas e das Artes, gerando assim um canal de intercâmbio acadêmico e cultural. O texto submetido à OLHAR deve ser inédito, sendo vedada sua apresentação simultânea em outra publicação. Após seu envio, o material será analisado por membros do Conselho Consultivo do periódico e sua aceitação dependerá do julgamento realizado pelos pareceristas. Podem ser enviados em fluxo contínuo artigos científicos, capítulos e resumos de dissertações e teses, entrevistas, resenhas literárias e cinematográficas, além de produções artísticas tais como fotos, ilustrações, charges, poemas, contos etc. CALL FOR PAPERS The Olhar magazine, a multidisciplinary publication in the fields of arts, literature and humanities at the Center for Education and Human Sciences UFSCar, SP, Brazil, is accepting articles, translations, interviews and reviews of movies and books for their next issues. The first deadline for submissions is January 10, 2012; the second March 20, 2012. Articles, interviews or unpublished translations may contain from 7 to 25 pages (exceptions are considered), reviews of books and films should contain about 5 pages. The originals – in Portuguese, Spanish, English or French – should be sent to the following address: jmonzani@ufscar.com. The texts need to be accompanied by an abstract containing 30 to 80 words, three keywords, abstract and key words, plus information about the authors’ professional work and other relevant biographical data (educational background, major works and publications, etc.). As the magazine is illustrated, iconographic material is welcome. The relevance to the publication will be evaluated by the Advisory Board of the journal, according to its editorial guidelines. Editors: Josette Monzani and Julio César De Rose. More information: revistaolharufscar.wordpress.com


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LIVROS E CAPÍTULOS DE LIVROS: MANTOVANI, B. et al. Cidade de Deus: o roteiro do filme. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. PASOLINI, P.P. Abjurei a trilogia da vida. In: Últimos escritos. Tradução de Manuel Braga da Cruz. Coimbra: Centelha, 1977, p. 24-29. PERIÓDICOS: AMELIO, G. Birth and death of a nation. Cineaste, New York, v. XXVIII, no 1, winter 2002, p. 19-20. MENA, F. Sob o sol do Recife. Folha de S.Paulo, São Paulo, 23 dez. 2009. Ilustrada, Caderno E, p. 1. SITES: VISCONTI, L. Rocco, un seguito di La terra trema. Disponível em: XXXXXXX. Acesso em: 8 dez. 2007. OBRAS AUDIOVISUAIS (POR ORDEM ALFABÉTICA) BAILE PERFUMADO. Lírio Ferreira; Paulo Caldas. Brasil, 1997, filme 35 mm. MANGUE NEGRO. Rodrigo Aragão. Brasil, 2008, video. NÃO SERÃO ANALISADOS TEXTOS FORA DO PADRÃO DA REVISTA. Envio de originais: jmonzani@ufscar.br Revista online: revistaolharufscar.wordpress.com RESPONSABILIDADE: Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos, bem como a exatidão das referências bibliográficas, são de responsabilidade do(s) autor(es).

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