Revista Olhar (Ano VIII, nº14-15 / 2006)

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ANO 8 - NÚMEROS 14/15 - JAN-JUL E AGO-DEZ/2006 CECH - CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte (CIP) Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Olhar/Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. - Ano 8, No 14-15 (Jan-Jul e AgoDez/2006)-.- São Carlos:UFSCar, 2006. Semestral ISSN 1517-0845 1. Humanidades - Periódicos. 2. Artes - Periódicos. I. Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas. CDU 168.522 (05)


Revista Olhar Ano VIII - Número 14/15 - jan-jul e ago-dez de 2006 Publicação do Centro de Educação e Ciências Humanas (CECH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Conselho Consultivo Administração Superior Prof. Dr. Oswaldo Baptista Duarte Filho Reitor Profa. Dra. Maria Stella de Alcântara Gil Vice-Reitora Prof. Dr. Valdemir Miotello Diretor do CECH Prof. Dr. Carlos Eduardo de Morais Dias Vice-Diretor do CECH Coordenação Editorial Editores Josette Monzani Bento Prado Jr. Editor-Assistente Profa. Dra. Marina Cardoso CONSELHO EDITORIAL: Conselho Executivo Antônio Zuim - DEd (UFSCar) Arthur Autran - DAC (UFSCar) Cibele Rizek - Escola de Engenharia de São Carlos (EESC/USP) Fernão Ramos - Multimeios (Unicamp) Gelson de Almeida Pinto - Escola de Engenharia de São Carlos (EESC/USP) João Roberto Martins Filho - DCSo (UFSCar) José Gatti Jr. – DAC (UFSCar) Júlio César Coelho De Rose - Departamento de Psicologia (UFSCar) Luiz R. Monzani - Filosoa (Unicamp) Manoel Dias Martins (UNESP/ Araraquara) Marco Antônio Vila - DCSo (UFSCar) Maria Cristina I. Hayashi - DCI (UFSCar) Maria Ribeiro do Valle (UNESP/ Araraquara) Nádea R. Gaspar - DCI (UFSCar) Petronilha Beatriz G. e Silva - DeME (UFSCar) Richard Simanke - DFMC (UFSCar) Sidney Barbosa (UNESP/Araraquara) Tânia Pellegrini - DL (UFSCar) Wolfgang Leo Maar - DFMC (UFSCar) Marcius Freire - Multimeios (Unicamp)

Adriano Soriano Barbuto (UFSCar) Alexandre Figuerôa (PUC/PE) Arley Moreno (Unicamp) Arlindo Machado (PUC e USP) Benedito Nunes (UFPa) Bóris Schnaiderman (USP) Bruno Pucci (UNIMEP) Carlos Alberto Ribeiro de Moura (USP) Cecília Almeida Salles (PUC) Celso Castro (CPDOC - FGV) Débora Pinto (UFSCar) Diléa Z. Mano (UNESP – Assis) Eliane Robert Moraes (PUC/SENAC) Fausto Castilho (Unicamp) Fernando da Rocha Peres (UFBa) Flávia Seligman (UNISINOS/RS) Flavio Loureiro Chaves (UFRS) Franklin Leopoldo e Silva (USP) Haroldo de Campos (in memoriam) Irene Machado (PUC) Isabel Limongi Batista (UFPR) Isabel Machado (jornalista) Ismail Xavier (USP/Cebrap) Jerusa Pires Ferreira (USP e PUC) João Carlos Kfouri Quartim de Moraes (Unicamp) João Carlos Salles (UFBa) João Teixeira (UFSCar) Jorge de Almeida (USP) José Euclimar X. de Menezes (Univ. Ruy Barbosa – SalvadorJosé Leon Crochik (USP) Lucíola Paixão Santos (UFMG) Luiz Cláudio da Costa (UFRJ) Luís Cláudio Figueiredo (PUC) Luís Roncari (USP) Manoel Carlos Mendonça Filho (UFSE) Marcos S. Nobre (Unicamp/Cebrap) Maria Aracy Lopes da Silva (in memoriam) Maria das Graças de Souza (USP) Maria de Lourdes Siqueira (UFBa) Maria Irma Adler (Unicamp) Maria Helena Pires Martins (USP) Maria Lúcia Cacciola (USP) Maria Sílvia Carvalho Franco (USP e Unicamp) Marilena S. Chauí (USP) Mauro Pommer (UFSC) Mercedes Cunha Mendonça (USP/Univ. Ruy Barbosa – Salvador) Nara Maria Guazelli Bernardes (PUC/RS) Newton Bignotto (UFMG) Newton Ramos de Oliveira (UNESP) Oswaldo Giacóia Jr. (Unicamp) Oswaldo Truzzi (UFSCar) Paulo Micelli (Unicamp)

Renato Mezan (PUC e Sedes) Renato Franco (UNESP – Franca) Roaleno Ribeiro Amâncio Costa (Fac. de Belas-Artes – Salvador) Roberto Romano (UNICAMP) Rodrigo Naves (Cebrap) Rubens Machado (USP) Urânia Tourinho Peres (SPsiBa) Zélia Amador de Deus (UFPa) Consultores Internacionais Sônia Stella Araújo Oliveira (Universidad Autônoma del Estado de Morelos – Cuernavaca - México) Saulo de Araújo Freitas (Convênio DAAD/ Alemanha) José Serralheiro (Página da Educação – Portugal) Vania Schittenhelm (pesquisadora – Londres) Jorge Mészáros (Sociologia – Inglaterra) Esther Jean Marteson (Londres) Catherine L. Benamou (University of Michigan - USA) Assessores Massao Hayashi Mark Julian Cass Ana Paula dos Santos Equipe Técnica Redator-Assistente: Fabrício Mazocco (MTb:29.602) Projeto Gráco: André Pereira; Luís Gustavo Sousa Sguissardi e Vítor M. G. Lopes Editoração e Arte Final: Álvaro Cunha Neto, Vitor Massola Gonzales Lopes Web Design: Vinícius Resende Paceka Consultoria Técnica: Massao Hayashi Fotolitos: Primeira Página (São Carlos/SP) Impressão: Depto. de Produção Gráca UFSCar Periodicidade: semestral

Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva do(s) autore(s). Permitida a reprodução parcial ou integral dos textos, desde que mencionada a fonte.

Permuta e solicitação de assinaturas: UFSCar - Universidade de São Carlos


EDITORIAL Nestes números da Olhar, artigos que remontam tematicamente ao passado e ao futuro fazem desenhar nubilosamente em nossa imaginação uma estrutura pêndulo-temporal; lugar nenhum, do movimento em estado de pureza, que nos coloca no modo do efetivo presente, dicilmente percebível em condições usuais. Através desta leitura transita-se entre o remoto ou o próximo passado, e o que virá, a cada vez expandindo a forma dessa totalidade. Viajar no tempo – numa espiral presa ao tempo – inserido numa caminhada em busca do innito, cujo primeiro passo pode estar ali: na virada da próxima página. O ‘eu ’ dos poemas e das entrevistas – belo e sedutor, aqui tão presente, deslizará conosco, mãos dadas em busca da aventura. Sem m.

Capa: fotografia de Carlos Zanim, São Carlos


[sumário] POEMAS ..............................................................................................10 Robert Desnos

OLYMPIAS ...........................................................................................13 Cecilia Cotrim

A CRÍTICA SEGUNDO MONIZ VIANNA .............................................19 Fernando Trevas Falcone

HEGEL E A HISTÓRIA DA ARTE ........................................................25 Ernst H. Gombrich

A ORGANIZAÇÃO ESPACIAL DA MESTIÇAGEM NAS MÍDIAS: JORNAIS, FOTOCOLAGENS E FOTOGRAFIAS PÓS-MODERNAS ...41 Kati Eliana Caetano

O MUNDO COMO REFERÊNCIA. SOBRE A MIMESIS DE PLATÃO..........................................................................................55 Luisa Severo Buarque de Holanda

FUTUROS HUMANOS E URBANOS NO CINEMA: A CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA DO HOMEM EM FILMES FUTURISTAS ......................65 Eduardo Duarte; Arthur Gomes

BREVE HISTÓRICO DO RENASCIMENTO DA TATUAGEM NO OCIDENTE: NOTAS SOBRE MARCOS E SUBGRUPOS ....................75 Andréa Osório

O PSICOPATA MORA AO LADO.........................................................91 Adalberto Tripicchio

POEMAS ........................................................................................... 109 Alessandro Sales

MARCAS DE AUSÊNCIAS: ARTICULACÕES ENTRE PROJETO POÉTICO E SUBJETIVIDADE ........................................................... 117 Sylvia Ribeiro Fernandes


AS FORMAS CLÁSSICAS, A GRANDE RECUSA, O ABSOLUTO E O AMOR ............................................................................................... 139 Imaculada Kangussu

A PRÓSITO DE LOUISE BROOKS... E LULU .................................. 147 Marco Aurélio Lucchetti

HEIDEGGER E A ESPERA DO INESPERADO ................................ 157 Nancy Mangabeira Unger

RELATO DE VIAGENS, INQUISIÇÃO E LITERATURA DE TESTEMUNHO .................................................................................. 165 Thais Buvalovas

A ÉTICA DE LA METTRIE: L´ART DE JOUIR E A ARTE DE IMAGINAR ........................................................................................ 181 Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino

ENTRE SILÊNCIOS E ESPERAS: APROXIMANDO-SE DO MUNDO FEMININO TUNISIANO ATRAVÉS DOS FILMES DE MOUFIDA TLATLI ............................................................................. 201 Soraya Fleischer

EISENSTEIN E O TEATRO................................................................ 221 Raquel de Almeida Prado

TRAGICIDADE OU O DIONÍSIACO E O APOLÍNEO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE ALBERT CAMUS ....................................................... 227 Rita Paiva

POEMAS ........................................................................................... 249 Tereza Cristina B. Calomeni

BERGSON ANTIPOSITIVISTA.......................................................... 257 Lia de Oliveira Guarino

O SER E O SOL REVISITANDO A POLÊMICA SARTRE VERSUS CAMUS ............................................................................................. 265 Valdir Baptista


O CANTO DA ESPERANÇA: O PAPEL DA MÚSICA NO ROMANCE DE MALRAUX SOBRE A GUERRA CIVIL ESPANHOLA ................ 273 Rafael Rosa Hagemeyer

FREUD ENTRE A MORAL VITORIANA E O AMOR LIVRE. VICISSITUDES DA IDÉIA DE LIBERAÇÃO SEXUAL ...................... 287 Carlota Ibertis

DIGITALIZAÇÃO E ESFERA PÚBLICA NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO ......................................................................... 297 Valério Cruz Brittos; César Ricardo Siqueira Bolaño

A POIESIS PICTÓRICA DE PAU-BRASIL: TRADIÇÃO, RUPTURA E IDENTIDADE EM OSWALD DE ANDRADE E TARSILA DO AMARAL ........................................................................................... 305 Juliana Santini

A SOCIABILIDADE HÍBRIDA DOS MIGRANTES TEMPORÁRIOS DE GUARIBA .....................................................................................317 Andréa Vettorassi

JESSÉ SOUZA E A INTERPRETAÇÃO DO “DILEMA BRASILEIRO ”................................................................... 329 Fabiana Luci Oliveira

POEMAS ........................................................................................... 345 Joaquim Antonio


COUPLETS DE LA RUE SAINT-MARTIN Je n’aime plus la rue Saint-Martin Depuis qu’André Platard l’a quittée. Je n’aime plus la rue Saint-Martin, Je n’aime rien, pas meme le vin. Je n’aime plus la rue Saint-Martin Depuis qu’André Platard l’a quittée. C’est mon ami, c’est mon copain. Nous partagion la chambre et le pain. Je n’aime plus la rue Saint-Martin. C’est mon ami, c’est mon copain. Il a disparu un matin, Ils l’ont emmené, on ne sait plus rien. On ne l’a plus revu dans la rue Saint-Martin. Pas la peine d’implorer les saints, Saints Merri, Jacques, Gervais et Martin, Pas même Valérien qui se cache sur la coline. Le temps passé, on ne sait rien. André Platard a quitté la rue Saint-Martin.

Robert Desnos (1900-1945) Traduzido por Guilherme Mansur e Luís Antônio Fortes

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REFRÃO DA RUA SÃO MARTINHO Não gosto mais da rua São Martinho Depois que André Platard foi embora. Não gosto mais da rua São Martinho, Não gosto de nada, nem do vinho. Não gosto mais da rua São Martinho Depois que André Platard foi embora. É meu amigo, meu irmão. A gente dividia o quarto e o pão. Não gosto mais da rua São Martinho. É meu amigo, meu irmão. Sumiu um dia, bem cedinho, Foi levado, ninguém sabe de nada, não. Nunca mais foi visto na rua São Martinho. Não adianta invocar nenhum santinho, São Mederico, Tiago, Gervásio e Martinho, Nem Valeriano, escondido acima da estrada. O tempo passa, ninquém sabe de nada. André Platard sumiu da rua São Martinho.

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CINEMA

OLYMPIAS Cecilia Cotrim*

Já ouvimos falar muito em arte ‘cool’ e arte ‘hot’, mas raramente em arte úmida ou seca. Seja artista ou crítico, o espectador está sujeito a uma climatologia da mente e do olhar. (Robert Smithson)

1 Jackson Pollock declara: “Minha pintura não vem do cavalete. Eu raramente estico a tela no chassi antes de pintar. Prefiro fixar a tela diretamente na parede ou no chão. Preciso da resistência de uma superfície dura. Com a tela no chão, sinto-me mais à vontade. Sinto-me mais próximo da pintura, tenho a impressão de fazer parte dela, pois posso movimentarme a sua volta, trabalhar nos quatro lados da tela, estar literalmente na pintura. É um método parecido com o dos pintores índios que trabalhavam sobre areia”. “My Painting”, Possibilities nº1, inverno 1947/48. 2 A principal discussão teria surgido entre as visões de Clement Greenberg, que considera Pollock (em sua “melhor fase”) como um dos participantes da chamada “abstração pictórica”, e Harold Rosenberg, para quem Pollock inauguraria a “action painting”, “em que a tela aparece como uma arena aberta para a ação, mais do que um espaço em que um objeto real ou imaginário é reproduzido, recriado, analisado ou ‘expresso’. O que passa para a tela não é uma imagem, mas um fato, uma ação.” Ver “The American Action Painters”, 1952. (trad. bras. em A tradição do novo, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1974.). Outro importante deflagrador desse debate seria, ainda, o conjunto das fotos de Hans Namuth de 1951, verdadeiro texto crítico, que exibe Pollock em ação no ateliê.

Resumo: O artigo trata dos limites do moderno nas artes plásticas. Aborda o debate crítico em torno da narrativa modernista (Clement Greenberg), buscando tensioná-la com obras e reflexões realizadas por artistas a partir do final dos anos 1950 e início dos 1960. PALAVRAS-CHAVE: ARTE MODERNA; CLEMENT GREENBERG Abstract: This article deals with the limits of Modernity in the Visual Arts. Its subject is the critical debate around the modernist narrative (Clement Greenberg). In order to bring tension to this narrative, the article includes the works and writings by artists of the late fifties and early sixties. KEYWORDS: MODERN ART; CLEMENT GREENBERG

Entrar na gruta branca, fechar a porta e ser totalmente envolvida por linhas pretas, em um emaranhado largo, que confunde olhar e corpo. E há essa luz fria, que vem da estranha matéria brilhante de que as paredes são feitas: matéria plástica? É uma superfície tosca, irregular, lisa ao toque e leve demais para ser pedra. Acima, à volta e sob os pés, aos poucos as linhas vão ganhando o ar. Cada passo deve ser cauteloso, pois tudo é incerto e oscila, sob o olhar. O espaço contrai-se e expande-se com o movimento das linhas. No silêncio dali, o “lá fora” quase perde sentido. No entanto, não se está fora do mundo, ao contrário: o brilho insistente do plexi-glass não deixa nada esquecido. O tempo do mundo pulsa na pele da resina. Nada ali lembra Lascaux, tampouco a Sainte Chapelle. E por isso mesmo é tão reconfortante a falsa gruta de pedra que Jean Dubuffet criou para nos acolher no Beaubourg. Pensamos em Pollock — estamos “na pintura”?1 O debate crítico moderno e contemporâneo nas artes tem alguns momentos cruciais, momentos auto-críticos, que se desdobram em uma crise de juízo. Uma dessas crises, no século XX, surge em torno da obra de Jackson Pollock, espécie de divisor de águas do debate da época2, momento crítico que foi respondido sobretudo pelos artistas, em termos de escritos e de sua própria produ-

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ção – que corresponderia ao “legado de Jackson Pollock” – título de um brilhante texto de Allan Kaprow, artista próximo de Jonh Cage, que escreve sobre Pollock dois anos após sua morte: Pollock, assim como o vejo, deixou-nos no momento em que devíamos começar a refletir sobre o espaço e os objetos de nossa vida cotidiana, e mesmo a espantarmo-nos com eles: desde nossos corpos, roupas, casas, até a extensão da Rua 42. Não contentes com a sugestão, pela pintura, de nossos outros sentidos, vamos usar as substâncias específicas da visão, som, movimentos, pessoas, odores, tato. Objetos de toda sorte são os meios da nova arte: tinta, cadeiras, comida, luz elétrica, néon, fumaça, água, meias velhas, um cachorro, filmes e mil outras coisas que a geração atual de artistas descobrirá. Esses criadores temerários vão não apenas mostrar – como se pela primeira vez – o mundo que nos envolve desde sempre mas que havíamos até agora ignorado, mas vão também revelar acontecimentos e eventos totalmente insólitos, encontrados nas latas de lixo, nos arquivos de polícia, nos halls de hotéis; vistos nas vitrines de loja e nas ruas; sentidos em sonhos e em acidentes atrozes. Um cheiro de morangos amassados, a carta de um amigo, ou um anúncio de Drano; três batidas na porta, um rabisco, um suspiro ou uma voz monótona, uma luz cegante em staccato, um chapéu-coco — tudo se tornará material para essa nova arte concreta.3

Manifestando uma sensibilidade quase premonitória, Kaprow teria percebido o modo como a action painting aproximaria arte e vida – assim como já acontecia nas experiências de John Cage e Merce Cunningham no Black Mountain College, apenas mais tarde identificadas como happenings, e cujo aspecto de indeterminação teria profunda relação com a poética de Pollock. Há de certo, além de Pollock, outros “indutores” de crise em nossa recente história da arte, sendo um dos principais Marcel Duchamp, com Fontaine, a Gioconda L.H.O.O.Q., a Étant donnée e muitos de seus jogos com o circuito de arte. Outro desses momentos estaria mais distante de nós, coincidindo com a exibição em Paris, em 1865, da Olympia de Manet. Seguiremos, aqui, uma série de Olympias, buscando refletir sobre alguns dos momentos-limite das artes que, ao invés de estabelecer cesuras entre os campos do moderno e do contemporâneo, parecem antes indicar que esses campos estão em conflito, mas um conflito que se mantém em plena reverberação. Desde que Duchamp inverteu a razão crítica moderna em um mito de humor cáustico, com suas máquinas reprodutoras de incertezas, a arte encontra-se em uma situação embaraçosa - embaraço que não envolve apenas o público, mas artistas, críticos e historiadores, refletindo a crise de juízo que nos restou como herança da mais destemida narrativa da arte moderna. A narrativa modernista insiste em algo já incerto; de todo modo, postula a auto-crítica como uma espécie de mola propulsora do desenvolvimento da arte moderna, em um fluxo que se desdobra linearmente de Manet a Pollock. Essa leitura do moderno não deixa de ter seus autores e suas nuances, embora tenha sido cristalizada a ponto de ganhar ares de dogma, ou transformar-se em mera vulgata. Mas alguém atrai todas as atenções, à mais discreta alusão a tal narrativa: Clement Greenberg, o importante crítico de arte norte-americano do pós-guerra. 14

3 Allan Kaprow, “O legado de Jackson Pollock”, Art News, outubro de 1958. (trad. bras. da autora, em O Percevejo. Ano 7. nº 7, Rio de Janeiro, UNIRIO, 1999, p.130-131.)

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4 Na conferência do Colóquio Greenberg no Beaubourg, Krauss exalta-se: “Clement Greenberg é o inventor e o defensor do Jackson Pollock óptico e sublimatório. Suas opiniões e julgamentos transformaram-se em lei no meio obediente e medíocre dos críticos de arte, historiadores, curadores e colecionadores. Mas não entre todos os artistas. Alguns deles realizaram uma leitura pessoal de Jackson Pollock, radicalmente diferente. Poderíamos entitulá-la: `Quem tem medo do Pollock de Greenberg?´” In ibid, p. 171. Os artistas a que Krauss se refere são Andy Warhol, com Tango (1961), Piss Painting (1961) e Oxidation painting (1978), Robert Morris e seus feltros de 1967/68, e Cy Twombly, com grafites sobre tela do início dos anos 1960. 5 G. E. Lessing, Laocoon, Paris, Hermann, 1990, p. 51. O projeto de Lessing, como indica o subtítulo de seu Laocoonte (1766), era o de traçar as “fronteiras entre a poesia e a pintura”, manifestando-se contra a doutrina do ut pictura poesis. Hubert Damisch escreve, no prefácio para a tradução francesa do Laocoonte: “(...) sob o título da pintura, Lessing visava as artes plásticas em geral, enquanto se propunha a tratar, sob a poesia, do conjunto das artes em que a imitação (...) procede na ordem temporal.” Ora, isso soaria ainda bastante “confuso” para um Greenberg, defensor da divisão das esferas nas artes plásticas: “Lessing, em seu Laokoon, identificou a presença de uma confusão das artes (...). Mas viu os seus efeitos prejudiciais exclusivamente em termos de literatura, e suas opiniões sobre artes plásticas apenas exemplificam os típicos equívocos de sua época. Ele criticou os poemas descritivos (...), vendo neles uma invasão do domínio da pintura de paisagem, mas, sobre a invasão da poesia pela pintura, tudo que conseguiu foi condenar pinturas alegóricas que requeriam uma explicação e quadros como O Filho Pródigo, de Ticiano, que incorporam `dois pontos necessariamente separados do tempo num único e mesmo quadro.´” Clement Greenberg, 1940, “Rumo a um mais novo Laocoonte”, in Cotrim/Ferreira (org.) Clement Greenberg e o debate crítico, 1997, Rio de Janeiro, Jorge Zahar/FUNARTE, p. 47. 6 Hubert Damisch, prefácio à trad. francesa do Laocoon, Paris, Hermann, 1990, p. 8. 7 “matériologique” e “matériologies” são termos que designam as experiências de Dubuffet das décadas de 1950 e 1960.

Descendente de Baudelaire e de sua escrita apaixonada, Greenberg foi capaz de perceber, em 1943, o talento de um pintor que mal ensaiava seu caminho — Jackson Pollock. A defesa de suas telas, e do que viria a ser o expressionismo abstrato, teria levado o crítico a um dilema: como contar a história da nova pintura americana? Que passado atribuir a essas telas? E, assim, a arte do jovem pintor seria retraçada ao mais elevado modernismo europeu, de Manet ao cubismo analítico. Mas a pintura de Pollock, que talvez tenha sido o móbil dessa mainstream, posa aí como uma espécie de ameaça, apontando para um limite: o “canto de cisne” da pintura de cavalete. Incluídas na série da pintura modernista, as telas de Pollock são interpretadas sob determinadas restrições, sob o primado da visibilidade pura, erguidas4 do solo à parede neutra da galeria. De outro modo, e sob outras leituras — manifestadas pelas Piss... e Oxidation Painting de Warhol, pelos feltros de Robert Morris ou mesmo a Asphalt Rundown de Smithson — haveria impureza e a conseqüente contaminação de toda a série.4 Voltando a Manet, sua Olympia marcaria o início da narrativa, ao expor a nudez da pintura como a de uma fina pele sensível, que seduz apenas o olhar: a pintura emudecida, que nada declara senão a própria superfície em que está pintada. Como pintar uma cortesã? Posta nos termos da arte modernista, a pergunta torna-se próxima daquela que Lessing dirige ao grupo escultórico do Laocoonte, em sua clássica defesa da delimitação das fronteiras entre as artes: “Não deveríamos reconhecer que, se o artista teve razão ao não fazer o Laocoonte gritar, o poeta também tinha seus motivos para representá-lo gritando?” E Lessing ameaça: “Imaginem o Laocoonte com a boca aberta e julguem. Façam-no gritar e verão.”5

Quando dirigida ao pintor moderno, a pergunta apontaria para a redução progressiva da arte pictórica ao que lhe é mais próprio — o que coincide, no caso da narrativa de Clement Greenberg, com o “rumo a um mais novo Laocoonte”. O programa de Greenberg, mais novo, mais audacioso, será, então, o de se instalar no domínio das artes plásticas e aí refazer o movimento de Lessing, buscando “a especificidade que caberia a cada uma das artes declinar por sua própria conta e em seu próprio domínio, até a identificação com sua pura essência”.6 Entretanto, outras Olympias — como sugerem Jean Dubuffet e Robert Morris — podem desvirtuar o elegante fluxo da narrativa modernista. A série aberta por Manet, com o desconcertante emudecimento da Vênus de Urbino, de Ticiano, indicaria a tendência auto-crítica da arte moderna — auto-definição with a vengeance. Recebida com risos de estranhamento, a Olympia de 1865 declararia a operação de redução da pintura ao estrito domínio do óptico: Manet, malgré lui, “o primeiro na decrepitude de sua arte”.7 No entanto, diante da Olympia de Dubuffet, a versão por demais radical do pintor moderno de Baudelaire, pareceria grande pintura. É difícil, hoje, compreender o choque causado pelo quadro exposto no Salão de 1865 e a decrepitude anunciada por Baudelaire. Da Venus de Urbino de Ticiano à Olympia de Manet percebe-se um radical emagrecimento do espaço ilusionista. No entanto, a tela de Manet mantém intocada a pele da pintura, sua sofisticada camada sensível. Se, de fato, algo como um inevitável e gradual processo acabou por desertar a pintura de toda a atração do escultórico, a Olympia guardaria a sedução de uma superfície suntuosamente trabalhada em óleo.

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Diante da tela de Manet, o olhar desliza, conduzido a um suave deslocamento lateral. A matéria translúcida e úmida da pintura seduz de modo particular esses nossos órgãos sensíveis, delicados, como se fosse o meio mais adequado para envolvê-los. Já o quadro de Dubuffet, de superfície opaca, áspera mesmo, atrai o olhar, sem, ao mesmo tempo, deixar de repeli-lo. A matéria, aqui, é próxima da terra. A pele da pintura, seca, manifesta uma intensa familiaridade com o baixo materialismo — tal Full Fathom Five, de Pollock, que guarda, em sua posição vertical, indícios de seu convívio com o solo do ateliê. E parecemos tão despreparados para lidar com essa contaminação quanto com o choque causado, no século passado, pela Olympia de Manet. Na última retrospectiva da obra de Pollock, podia-se observar os olhares atônitos diante do que anunciava a etiqueta ao lado de Full Fathom Five: “óleo + tachinhas + guimbas de cigarro + fósforos + pregos + moedas sobre tela”. O espectador hesitante não chega, de fato, a ver os resíduos do processo de pintura de Pollock, pois a história das telas modernas coincide, de modo geral, com o mito de uma pintura retirada do mundo das coisas, encerrada na esfera da visibilidade pura, a demandar um olhar desencarnado. A Olympia de Manet faz ressaltar a precipitação materiológica da tela de Dubuffet. Talvez se dê, aqui, a surpreendente reviravolta da pintura de cavalete — pressentida por Greenberg, em sua primeira crítica sobre Pollock: “The mud abounds in Pollock´s larger works.”8 Se da Olympia de Manet à de Dubuffet a operação de redução da pintura ao plano seguiria seu curso inexorável, o eixo de leitura das obras, como observa Leo Steinberg, parece deslocado da verticalidade à horizontalidade.9 Talvez o que perturbe a conhecida mainstream — além das materiologias de Dubuffet, da presença de indícios nas obras de Pollock, ou das fotos de Hans Namuth, mostrando o pintor em plena ação, a tela estendida no solo —, sejam trabalhos como o Jardin d’hiver, a Maison Falballa, a pintura que acaba por ganhar o espaço do mundo. Essas obras de Dubuffet mostram como a pintura pode envolver nosso corpo por inteiro e ser percebida no meio das coisas, retirada de vez do planeta da pura visibilidade. Mas o que restaria aí deste termo “pintura”? De que modo a contaminação com o mundo palpável poderia perturbar a leitura modernista da pintura, estabelecida a partir da obra de Manet? O que confunde a narrativa modernista parece ser essa reciprocidade com as coisas — a exteriorização da própria pintura, que avança rumo ao espaço e ao tempo “reais”. O que pede a Olympia de Dubuffet, e, mais ainda, seu Jardin d’hiver, é a redefinição, ou melhor, a ampliação do termo pintura. Essas obras exigem um olhar que acompanhe a ambigüidade de um corpo encarnado, envolvido promiscuamente com o mundo a sua volta. No percurso interno ao “domínio do pictórico” dá-se, pois, a reviravolta da narrativa modernista — da “auto-definição radical”, da presumida pureza da pintura, à sua fusão com outras esferas da arte e com a entropia do mundo; da Olympia de Manet aos Corps de dames de Dubuffet, “plenos de sua conivência com a terra”.10 E, ao surgir em carne e osso na cena de Site,11 a Olympia de Morris leva, uma vez mais, ao embaraço. Além de por em jogo o tempo e o espaço reais, o que essa obra demanda a seus espectadores é, sem dúvida, a paciência e a revisão da petição modernista de separação das esferas artísticas. O caminho entre as Olympias poderia, então, indicar que, nos limites do modernismo, surge a possibilidade de se experimentar algo como a raiz comum 16

8 Clement Greenberg, “Review of Exhibitions of Marc Chagall, Lyonel Feininger, and Jackson Pollock”,The Nation, 27/11/1943. Publicado em Clement Greenberg, The Collected Essays and Criticism, Vol. I, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1988, p. 164.

9 Leo Steinberg vê na “Olympia” de Dubuffet “o efeito de folha prensada, de grafites, de cascalho riscado ou de vestígio fóssil”, para tomá-la como um dos exemplos do plano pictórico flatbed : “Aconteceu algo na pintura por volta de 1950 — mais claramente (...) no trabalho de Robert Rauschenberg e de Jean Dubuffet. Ainda podemos pendurar seus quadros (...). No entanto, esses quadros não mais evocam campos verticais, mas opacos flatbeds horizontais.” Leo Steinberg, “Outros Critérios”, in Cotrim/Ferreira (org.) Clement Greenberg e o debate crítico, 1997, p. 200/201.

10 Max Loreau, Cat. des Travaux de Jean Dubuffet, Corps de dames, Fascic. VI, p. 8. 11 Site, coreografia de Robert Morris; realizada com Carole Schneeman, Surplus Dance Theater, Nova York, 1964.

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12 Ver Arthur C. Danto, After the end of art. Contemporary art and the pale of history. Princeton, New Jersey, Princeton University Press, 1997, Capítulo 1, p. 4.

das artes. Seria o fim de uma narrativa? Arthur Danto lembra dos contos de fadas, e do fim da story como o momento em que a vida começa, quando só restam os votos: “que vivam felizes para sempre”.12

*Cecilia Cotrim é doutora em História da Arte pela Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne. Leciona História da Arte Moderna e Contemporânea no Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, PUC-Rio, no Curso de Especializacão Arte e Filosofia, PUC-Rio, e no Curso de Especializacão Arte do Século XX, EMBAP, Curitiba.

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CINEMA

A CRÍTICA SEGUNDO MONIZ VIANNA Fernando Trevas Falcone*

O recente lançamento da antologia Um Filme por Dia – Crítica de Choque (19461973) trouxe de volta à cena um dos mais importantes críticos de cinema do Brasil. Ao assumir a coluna de cinema do jornal carioca Correio da Manhã em 1946, Antonio Moniz Vianna modernizou a crítica brasileira. Seus textos, sempre marcados por posições firmes, causaram polêmica e influenciaram críticos e cineastas. Indo além de seus textos, Moniz foi um agitador cultural à frente da Cinema do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, trazendo ao Brasil, entre 1958 e 1962, clássicos dos cinemas europeu e americano. Nos anos 60 Vianna presidiu o Instituto Nacional do Cinema (INC) e organizou no Rio duas edições do Festival Internacional do Filme, com a presença de astros e diretores consagrados. Em entrevista exclusiva realizada em Natal em outubro de 1988, quando foi presidente do júri do festival de cinema da cidade, Moniz Vianna fala de sua atuação como crítico. Sua atividade crítica está ligada ao Correio da Manhã, onde o senhor escreveu de 1946 a 1973. Como era a sua relação com o jornal? Era a melhor possível. O Correio da Manhã dava total liberdade a todos os seus críticos e cronistas. Liberdade de opinião e de espaço, tanto que a gente podia escrever uma crítica em duas laudas ou em seis. Podia-se comentar sobre um mesmo filme duas ou três vezes. Meus colegas de teatro e de música podiam fazer o mesmo. Agora era uma relação de muito respeito com o artigo assinado. Nunca um artigo meu foi mexido de nenhuma forma. Nenhuma palavra foi trocada, mesmo alguns artigos que causavam um certo escândalo às vezes. Esses escandâlos eram causados por questões ideológicas ou estéticas? Nunca em relação a questões estéticas. A influência que podia haver sobre isso, que seriam os exibidores ou alguns distribuidores reclamarem sobre uma crítica desfavorável, eu tenho a impressão que nunca houve, ou se houve eu nem soube, a direção do jornal não levou ao meu conhecimento. Agora quanto à questão ideológica, era, com freqüência, por ataques que eu fazia à censura quando ela proibia alguns filmes. Em virtude de artigos meus, campanhas que fiz, e outros críticos que se juntavam, a gente conseguia liberar os filmes. O ambiente de liberdade com o fim do Estado Novo favoreceu a crítica? No Estado Novo não havia nenhuma restrição à atividade de crítica de cinema. Restrição de que houvesse ou não crítica. O que não havia muito era o hábito da crítica de cinema, que era esporádica. Muitos jornais não tinham críticos. O Correio da Manhã não tinha antes de mim. Tinha uma seção de cinema, que era um noticiário, e eventualmente alguém comentava um filme que tivesse feito muito sucesso. E não havia seção de crítica em outoros jornais. Eu comecei minha atividade crítica em fevereiro de 1946 e nessa ocasião só havia crítica reREVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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gular em O Globo, no Diário da Noite e em O Jornal. Pedro Lima escrevia nesses dois últimos. Menos de dois meses depois que eu comecei no Correio da Manhã o seu rival Diário de Notícias lançou a seção de crítica de cinema, confiada a Hugo Barcellos. Seus textos são marcados por informações precisas sobre diretores, técnicos e roteiristas. Quais eram as suas fontes? Bem, isso é um pouco curioso. Quando eu comecei as fontes de informação eram praticamente inexistentes. Um dos primeiros livros que eu cheguei a ler foi um história do cinema de Brasillach (História do Cinema, de Maurice Bardèche e Robert Brasillach), um autor francês. Eu tirava as fichas técnicas vendo os filmes. Aliás eu já vinha fazendo isso antes de ser crítico, por gostar muito de cinema, desde 1940. Havia alguma revista européia ou americana que o senhor consultava, ou algum crítico em especial? Como crítico de cinema eu procurar ler outros críticos brasileiros. Não creio que eles me influenciassem muito não. A crítica estrangeira em jornais era muito diferente da crítica que eu gostava de fazer. Havia a revista Time, que tinha uma seção de crítica em que se comentava dois ou três filmes por número. Naquela época, 1946, acho que o crítico de Times era James Agee (roteirista de Uma Aventura na África, John Huston, 1951). Time era então uma fonte constante de leitura? A revista Time não dava muitos elementos sobre o filme. Era uma crítica ligeira, muitas vezes sacrificando o valor do filme por uma gag que eles faziam. Se o filme desse margem ao trocadilho, eles usavam. E quanto às revistas de cinema? A primeira que saiu foi a Revue du cinéma, que depois se transformou nos Cahiers du Cinéma (fundada em 1951). Eu lia os Cahiers, mas não creio que ela tenha me influenciado. Eu até discordava de muita coisa da revista. No segundo pós-guerra o cinema vive um momento rico. O neo-realismo alcança ampla repercussão e nos Estados Unidos uma geração de novos diretores deixa os estúdios e vai às ruas, talvez sob influência do movimento italiano. Como isso repercutia em sua crítica? Não estava havendo uma renovação de diretores no cinema americano. Essa renovação sempre existiu. O Jules Dassin já estava no cinema há alguns anos, em filmes B. Existiam montadores, roteiristas e fotógrafos que passavam à direção. Gente da Brodway que virava diretor. Isso era uma renovação normal no cinema americano. Posteriormente o advento da televisão levou muita gente de Hollywood. Geralmente os diretores de filmes B iam para a televisão, fazendo desaparecer esses filmes. Mas em compensação alguns diretores famosos da televisão foram para Hollywood. Havia dois estilos na época, o cinema industrial americano e o neo-realismo. Como foi essa confluência? Mas nem todo cinema italiano era neo-realista. Antes de Roma, Cidade Aberta (Roberto Rosselini, 1945) houve no próprio cinema italiano elementos neo-realistas, filmes que poderiam depois ser chamados de neo-realistas, como Obsessão (Luchino Visconti, 1942) e O Coração Manda (Alessandro Blasetti, 1942). Agora se o neo-realismo influenciou o cinema americano, você citou o caso de Cidade Nua (Jules Dassin, 1948), eu não sei, porque alguns diretores que filmaram em locação já estavam há muitos anos no cinema. Essas filmagens nas ruas, para dar maior autenticidade aos filmes, não tinham aspecto exatamente neo-realista. É difícil dizer se um filme, sobretudo italiano, é neo-realista ou não, 20

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porque como o movimento neo-realista ficou em evidência, todo mundo passou a rotular os filmes italianos de neo-realistas. Na década de 50 pode-se detectar uma polaridade na crítica brasileira. Havia uma postura “nacional-popular”, de esquerda, e um pensamento crítico baseado em um humanismo cristão. Qual a sua posição ante essa polaridade? Eu tenho a impressão que a primeira tendência que você menciona, uma crítica naciona-popular, ou outra denominação que seja, uma tendência de esquerda, havia numa minoria de críticos. A outra, baseada num humanismo cristão, eu não chego a pensar que existisse, pelo menos no Rio. Outra tendência seria talvez puramente cinematográfica, baseada em valores estéticos. Eu me situaria nessa tendência. A minha crítica não era de tendência nacional-popular. O que seria essa tendência? Seria uma oposição aos estrangeiros que atuavam na Vera Cruz. Combatiase as chanchadas, e nos congressos de cinema travava-se uma luta contra o sistema industrial americano, que dificultava o desenvolvimento de uma indústria de cinema no Brasil. Esse combate aos técnicos estrangeiros trazidos pela Vera Cruz me parece até emotivo, sem nenhuma razão de ser, porque esses técnicos fizeram escola no Brasil. Ensinaram muita coisa de fotografia e montagem aos brasileiros. A Vera Cruz teve um papel importante no desenvolvimento do cinema brasileiro. Embora ela fosse um pouco megalomaníaca. É claro que a Vera Cruz montou estúdios como os dos americanos e pouco depois o cinema sairia dos estúdios. Mas os filmes americanos contribuíram muito para que o público fosse ao cinema, para que as salas fossem feitas e continuassem abertas, porque a produção brasileira, se conseguisse expulsar a produção estrangeira, teria falido naquele instante. Quanto ao combate à chanchada, não tinha nenhum aspecto político ou ideológico. A chanchada era apenas um cinema de má qualidade, quando não era imitação ou cópia servil das comédias americanas, ou paródia de filmes americanos que não eram cômicos. Matar ou Correr (Carlos Manga, 1954) copia quase que cena por cena o clássico Matar ou Morrer (Fred Zinemann, 1952). Qual sua opinião sobre a atuação da Igreja Católica na crítica e no cineclubismo nos anos 50? No Rio era muito pequena. Havia um ou dois cineclubes, entre eles o Asa – Associação Arquidiocesana do Rio de Janeiro – que tinha uma influência muito pequena na crítica e no cinema em geral. Nessa pequena atuação havia as cotas morais que a Igreja publicava, classficando os filmes… No Rio, que eu me lembre, não havia isso. A influência era praticamente nula da Igreja em relação à crítica. Como era a sua relação com o público? O crítico não vê o espectador. O que ele escreve será lido por um público, mas ele não deve escrever pensando em agradar ou cortejar o público. Na Paraíba havia uma tendência de educar o público, que seria o responsável pela má qualidade da programação comercial. Uma orientação do público pode ser manifesta pelo uso de cotações, acho que isso de certa forma orientava o público. Botavam uns bonequinhos, cotação por estrelas. Eu nunca usei cotação. O leitor que quisesse saber o que eu pensava do filme tinha de ler, não tinha que olhar o bonequinho, pois isso o dispensava de ler. Quanto a educar o público, toda crítica, mesmo sem esse objetivo, pode vir, com o tempo, a educar o público, a formar, a despertar o interesse por esse ou aquele asREVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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pecto do cinema. Tenho a impressão que o crítico faz isso até inconscientemente. Há quem o considerasse muito rigoroso com o cinema brasileiro. Mas em artigo sobre O Cangaceiro (1953), o senhor vê um bom sinal para o nosso cinema Lima Barreto dirigir um filme, superando “os Celi e Barros da Vera Cruz”. Qual era o seu projeto para o cinema brasileiro naquele momento? Lima Barreto foi, em minha opinião, o maior cineasta brasileiro e seria um dos maiores do mundo se pudesse ter feito os filmes que escreveu. Era um homem de extrema sensibilidade cinematográfica, de uma inteligência fulgurante. Quatro anos antes de O Cangaceiro ser realizado eu publiquei em minha coluna excertos do roteiro do filme, exatamente para ver se algum produtor se interessava em produzi-lo. O Cangaceiro teve enorme êxito popular e crítico. Ganhou prêmio em Cannes e teve elogios da crítica em toda a parte do mundo e no Brasil. O Cangaceiro contribuiu muito para o nosso cinema, não só ele, como também a qualidade técnica que os profissionais da Vera Cruz introduziram no Brasil. Alguns continuaram aqui e outros voltaram para a Inglaterra, onde continuaram as suas carreiras. Agora, após a falência da Vera Cruz, o cinema brasileiro teve, evidentemente, uma queda muito grande. Só veio a começar a renascer na década de 60. Em sua crítica de Sindicato de Ladrões (Elia Kazan, 1954) há referências aos comunistas que não gostaram do filme por ele ser americano, por ser bom e tinha um final que não agradava aos neo-realistas. Essas suas farpas eram para os comunistas que atuavam na crítica? Havia uma presença de esquerda na crítica. Comunista é uma palavra que ninguém sabe o significado direito. Esquerda é também uma coisa vaga, mas que envolve muita coisa. E hoje também as situções mudam muito. Eu, por exemplo, posso ter sido considerado de direita, mas nunca fui. Muitas vezes eu escrevia contra a equerda, mas isso não me faz um homem de direita. Nessa mesma crítica de Sindicato de Ladrões é traçada uma relação entre o sindicalismo das docas e o resultado das eleições no Brasil. É uma referência ao peleguismo. Em relação à essa crítica de Sindicato de Ladrões, essa referência de passagem à esquerda… A esquerda, os comunistas em geral, essa coisa muito vaga. Essas definições ideológicas são muito mutáveis. Hoje… Hoje há uma nova esquerda, que já se repensou. Hoje quem era liberal é conservador. E quem não era de esquerda pode ser considerado de esquerda. Eu sempre tive posições de esquerda sem me considerar de esquerda. Mas Sindicato de Ladrões é uma coisa curiosa. Os comunistas tinham que detestar o filme por diversas razões. O filme foi feito por Elia Kazan, que no macarthismo foi acusado de delatar companheiros. E o filme seria uma espécie de mea-culpa. Se Kazan não estivesse ligado ao macarthismo o filme seria bem visto pela esquerda? O filme teve uma repercussão enorme, embora a esquerda tenha atacado. Também você vê o que é a esquerda. Matar ou Morrer foi considerado um filme reacionário. John Ford foi considerado reacionário. O fato de Ford ser ou não reacionário, isso não tem nada a ver com a obra dele. Mas a esquerda confundia muito essas coisas, os comunistas na época. E Matar ou Morrer foi atacado por alguns críticos de esquerda do Rio, que chegaram a botá-lo entre os dez piores do ano. Foi curioso uma época no Rio. Essa mania que os críticos têm de botar – eu também tinha – os dez melhores do ano, alguém resolveu fazer os dez piores. Eu nunca fiz a lista dos piores. Teve um ano que os meus dez melhores, que eram os mesmos de muitos outros críticos, sairam praticamente todos entre os dez piores 22

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dos críticos de esquerda. Quer dizer, não era uma posição estética, mas puramente ideológica e fanática. Matar ou Morrer era considerado um filme de direita, porque eles achavam que ele levantava a tese do individualismo. O indivíduo contra o mundo. O individualismo que existia também em outros filmes, como Vontade Indômita (King Vidor, 1949), outro filme atacado pela esquerda. O western é muito baseado no individualismo. É, mas em Matar ou Morrer era mais por que o povo todo se retraia com medo, deixava ele sozinho para enfrentar o bandido. Parece que o filme foi proibido na Rússia. Poucos filmes americano chegavam à Rússia. Eu acho que os equívocos da crítica de esquerda foram bem maiores do que os equívocos da crítica que não era de esquerda. A crítica que não era de esquerda era muito mais isenta, estava vendo os valores cinematográficos, humanísticos dos filmes. A crítica de esquerda não via isso se o diretor fosse considerado reacionário. Muitas vezes os temas não eram reacionários ou progressistas, eram temas neutros. Diante de um filme como Vidas Amargas (Elia Kazan, 1955), não há por que falar em reacionarismo ou progressismo. Mas a esquerda atacava o filme por que ele era do Kazan. Agora a direita não elogiava o filme por ser do Kazan. Elogiava o filme pelo filme. Não havia por parte da direita ataque a algum diretor por ele ser de esquerda? Podia haver, porque às vezes um diretor, por ser de esquerda, era superestimado pela crítica de esquerda, e a crítica que não era de esquerda não concordava com aquilo. Agora, diretores de esquerda como Luchino Visconti, que era um aristocrata e esteta, mas se dizia de esquerda, a crítica que nunca foi de esquerda diante de um Rocco e seus Irmãos (1960) fez os maiores elogios.De modo geral, a crítica que não era de esquerda ignorava a ideologia do diretor. Eisenstein foi elogiado por críticos de todas as tendências políticas. Por exemplo, eu não gostei de Luzes da Ribalta (1952), de Chaplin e fui acusado de não gostar do filme por que Chaplin estava brigado com os Estados Unidos. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Acho que Luzes da Ribalta é um filme abaixo do nível que eu esperava do Chaplin, embora muita gente goste do filme. Mas depois vem Um Rei em Nova York (1957), que era um filme de revide, não é bem revide, é perfeitamente justo, era o que ele tinha que fazer mesmo, mas que era muito fraco. Nem a esquerda pode defendê-lo. Agora, diante de clássicos como Luzes da Cidade (1931), Tempos Modernos (1936) não há direita, nem esquerda, nem centro, nem nada, nem posição conservadora. Há um filme, que é o mais importante. Didante de Cidadão Kane (Orson Welles, 1941) não há posição nenhuma, é admirado por críticos de todos os pensamentos. Agora a esquerda tendia a ser fanática e cometia mais injustiças do que a crítica que não era de esquerda. Qual a sua opinião do cinema dos anos 80? No Brasil a crise é muito séria, sobretudo econômica. Essa crise está levando o nosso cinema a um estado perigoso, quase de estagnação. No mundo, na década de 80, antes mesmo desse período, já há um declínio qualitativo do cinema. E há assim uma espécie de fuga dos diretores e produtores para filmes de grande público, cheios de efeitos especiais, filmes eletrônicos.

*Fernando Trevas Falcone realizou essa entrevista que foi publicada originalmente no jornal O Norte. João Pessoa, 06 de novembro de 1988.

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IDÉIAS

NOTA INTRODUTÓRIA Marco Aurélio Werle*

Na palestra, feita por ocasião do recebimento do Prêmio Hegel da cidade de Stuttgart, em 1977, Ernst Gombrich situa a relação de Hegel com a história da arte entendendo-a tanto pelo viés do discurso historiográfico sobre a arte quanto pelo da própria história da arte. Pelo viés historiográfico, a estética de Hegel é pensada diante de seu predecessor mais importante, Winckelmann, de quem Hegel teria haurido a concepção de que a arte é essencialmente uma manifestação divina, resulta de uma expressão de um povo e está submetida a um processo de desenvolvimento. Entretanto, Hegel vai além de Winckelmann ao acrescentar uma visão otimista e relativa da arte, sendo esses dois pontos alicerçados pela dialética, de modo que se torna possível, para Gombrich, afirmar que o verdadeiro pai da disciplina da história da arte é Hegel e não Winckelmann. E isso é atestado inclusive por sua importância junto aos historiadores posteriores, tais como Wölfflin, cuja abordagem da passagem do estilo plástico para o pictórico é tributária do capítulo sobre a pintura dos Cursos de estética de Hegel. Todos esses pressupostos da estética de Hegel, a despeito de sua influência são, todavia, problemáticos para Gombrich, principalmente devido ao caracter de sistema, por se moverem demasiadamente no plano das idéias e desconsiderarem a variedade dos fenômenos concretos da arte. Nessa crítica à dialética, pode-se notar um certo positivismo em Gombrich, o que se confirma quando ele cita Popper como uma referência mais “científica” de apreciação dos fenômenos humanos. O tom crítico torna-se mais ameno quando Gombrich examina a presença de Hegel no decurso da história da arte propriamente dita, pois é inegável que as idéias de Hegel foram incorporadas por amplos setores das vanguardas, e principalmente pela arquitetura, sendo aqui a Bauhaus o caso mais flagrante. Essas idéias resumem-se à concepção de ruptura da arte com o passado e com a tradição, bem como de integração num processo maior de desenvolvimento espiritual, do qual deriva a noção de utopia. Seja como for, o mérito desse texto de Gombrich, ele que se considera “um hegeliano desencaminhado”, talvez esteja no fato de que, por mais que se discorde de alguns dos fundamentos da estética de Hegel, os parâmetros introduzidos por sua forma de pensar deixaram sua marca na maneira como ainda hoje abordamos a arte.

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HEGEL E A HISTÓRIA DA ARTE1 Ernst H. Gombrich

Devo um agradecimento caloroso ao Prof. Dr. Henrich, sobretudo por sua avaliação e, se assim posso dizer, por sua superestimação de meu trabalho2 – mas também por ter-me facilitado esclarecer a vocês o motivo de esta elevada distinção me causar algum embaraço. Um pouco disso, aliás, se aplica a toda homenagem pública, uma vez que o homenageado geralmente sabe muito bem que não é de fato tão digno de honra e, particularmente, tenho consciência de não ser digno de um Prêmio-Hegel. Entretanto, a crítica da herança hegeliana não desempenha um papel menor em meus trabalhos. Heinrich Heine certa vez considerou-se um romântico desencaminhado. Talvez eu seja algo como um hegeliano desencaminhado. Estou convencido de que Hegel é o pai da história da arte, em todo o caso o pai da história da arte tal como eu a compreendi. Acostumamo-nos com a idéia de que os filhos se rebelam contra os pais, e se podemos acreditar nos psicólogos, os filhos o fazem justamente porque querem e também necessitam libertar-se da influência superior que a autoridade paterna ainda exerce em seu interior. Eu ainda continuo acreditando que a história da arte deve emancipar-se da autoridade de Hegel, mas também estou convencido de que isso apenas será possível quando ela aprender a compreender o efeito imponente de Hegel. Chamei Hegel de pai da história da arte, mas habitualmente atribui-se esse papel a Johann Joachim Winckelmann. Todavia parece-me que não deveria a História da Arte da Antigüidade de Winckelmann, do ano de 1764, valer como o documento de fundação da recente ciência da arte, e sim os Cursos de Estética de Hegel, dos anos de 1820 até 1829. Pois esses cursos contêm a primeira tentativa, que nunca tinha sido feita antes, de abranger toda a história mundial da arte, inclusive todas as artes particulares, e de colocá-las em um sistema. Hegel mesmo louvou Winckelmann como um homem que, como ele mesmo diz, “no campo da arte soube descobrir um novo órgão para o espírito e também modos de consideração totalmente novos” (Ä. I, p.92).3 Mas Winckelmann apreendeu o conceito da arte de modo diferente de Hegel. Para ele a essência da arte residia no ideal grego e, assim como o seu precursor Vasari4 descreveu a história do renascimento deste ideal artístico, da mesma maneira Winckelmann estava interessado no desenvolvimento da arte, tida como modelo, até a sua maestria absoluta. Ao mesmo tempo ele viu em sua obra um arcabouço doutrinário, que tinha a finalidade de demonstrar o que é a beleza através da arte grega. Hegel, se me permitem antecipar tão simplificadamente, acolheu este edifício doutrinário em seu sistema, mas limitou seu âmbito de abrangência. Aos gregos permaneceu o mérito incontestável de terem dado forma clássica à beleza, mas o clássico mesmo é apenas um modo de aparecimento passageiro da arte, pois a história da arte, assim como a própria história, pode tampouco ficar estagnada.

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1 “Hegel und die Kunstgeschichte” foi publicado na revista Neue Rundschau, Frankfurt am Main, Fischer, Caderno 2, 1977. Trata-se do discurso proferido em alemão por ocasião do recebimento do Prêmio-Hegel da Cidade de Stuttgart, em 28 de janeiro de 1977 [N. da T.].

2 O texto da alocução precedente do Prof. Dr. Dieter Henrich, presidente da Internationale Hegel-Vereinigung [Associação Hegel Internacional], foi publicado em forma ligeiramente reduzida na revista Neuen Zürcher Zeitung, de 05/06 de março de 1977.

3 Eu cito segundo a edição das Hegels Werken in zwanzig Bänden [Obras de Hegel em 20 volumes] publicadas pela Editora Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1970. A nomenclatura Ä. I. refere-se aos Cursos de Estética, vol. I, assim como Ä. II e Ä. III aos vol. II e vol. III. [N. da T.: na edição Suhrkamp, trata-se dos volumes 13, 14 e 15; na tradução brasileira, publicada pela Edusp (1999, 2000, 2002 e 2004), a paginação do original está assinalada no interior do texto entre barras verticais].

4 Alusão à obra de Giorgio Vasari (1511-1574), intitulada Vite de più eccellenti pittori scultori e architettori, de 1550, que trata de biografias de artistas italianos [N. da T.].

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5 Anton Raphael Meng (1728-1779), pintor histórico e de retratos, que escreveu a obra Gedanken über die Schönheit und über den Geschmack in der Malerei [Reflexões sobre a beleza e o gosto na pintura], de 1762, onde defende um classicismo eclético [N. da T.].

6 Em minhas preleções intituladas The Ideas of Progress and their Impact on Art, que foram publicadas pela Cooper Union, New York, 1971 (fora de catálogo), eu me detenho mais detalhadamente nas fontes de Winckelmann.

Pretendo tentar formular em alguns tópicos o que Hegel assumiu de Winckelmann e como ele ampliou o edifício doutrinário estático em uma história da arte universal, tal como a exercemos hoje. Ele encontrou três pensamentos fundamentais em Winckelmann, que incorporou ao seu arcabouço de idéias. O mais essencial dentre eles é a convicção da dignidade divina da arte. Assim como Winckelmann, em seu famoso hino à beleza do Apolo de Belvedere, festejou a visibilidade do divino na obra humana, também Hegel viu, em última instância, em toda arte uma revelação de valores transcendentes. Trata-se de uma postura que rejeita conscientemente Platão, mas que por meio do neoplatonismo novamente entrou na circulação sanguínea da vida espiritual européia, pois aqui é atribuída ao artista a capacidade de ver a idéia mesma e de torná-la visível para os outros. Eu talvez posso designar essa crença artística metafísica de transcendentalismo estético, mas devo certamente alertar para que não se confunda isso com a estética transcendental de Kant. É verdade que esse transcendentalismo estético de tintura neoplatônica aparece em Winckelmann mais amainado do que na filosofia de seu amigo e rival Anton Rafael Mengs,5 mas o culto à beleza de Winckelmann é todavia legitimado a partir disso. O segundo pensamento fundamental que Hegel acolhe pode ser designado como coletivismo histórico. Eu penso com isso no papel que é atribuído ao coletivo, ao povo. A arte grega não é para Winckelmann tanto a obra de mestres isolados do que a emanação ou o espelhamento do espírito grego, onde certamente o conceito de espírito ainda não possui inteiramente a ressonância metafísica que tem em Hegel, e sim ainda traz em si mesmo muito do Esprit des Nations de Montesquieu. Em terceiro lugar, também em Winckelmann esta expressão consumada é o resultado de um desenvolvimento, e na verdade de um desenvolvimento que é inteligível [verständigen] em sua necessidade interior. Os estágios da arte grega, a seqüência de estilos, podem ser fundamentados logicamente; o que Winckelmann chama de estilo belo teve de passar primeiramente pelo estilo rígido ou elevado e conduziu também de novo inevitavelmente para além das concessões ao aprazível até a decadência. Podemos falar aqui, em terceiro lugar, de um determinismo histórico, que esclarece como a arte grega, apesar de toda consumação, já tinha de trazer em si mesma o germe da decadência.6 Parece evidente que esse determinismo de algum modo estava em contradição com o que Winckelmann sentia como a sua missão, o apelo à imitação das obras gregas, ao retorno para a época dourada da arte. Os contemporâneos de Winckelmann naturalmente viram tão mais nitidamente esta cisão em seu edifício doutrinário que se empenharam para se tornarem conscientes da independência de sua arte. Devo sobretudo lembrar aqui de Herder, mas também de Schiller, cujo artigo “Sobre a poesia ingênua e sentimental” quer fazer justiça com a época dourada do grecicismo, sem absolutizá-la. Estes eram decerto os anos em que este sonho muito antigo da época dourada conquistou uma atualidade inesperada. Parecia que a razão humana apenas precisava assumir o controle para que ele se realizasse. Falo naturalmente da Revolução Francesa, que também Hegel via como um acontecimento realmente cósmico:

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Desde que o sol está no firmamento e os planetas giram em torno dele”, afirma ele na Filosofia da História “nunca se viu algo igual, que o homem se apoiásse sobre a cabeça, isto é, sobre o pensamento, a fim de constituir a realidade efetiva de acordo com ele ... todos os seres pensantes festejaram esta época ... um entusiasmo do espírito olhou através do mundo, como se tivesse finalmente chegado a hora da reconciliação do divino com o mundo (p. 529).7

Estou convencido de que a filosofia de Hegel, que eu gostaria de chamar de otimismo metafísico, é apenas inteiramente compreensível a partir desta vivência. Assim como muitos de seus contemporâneos, ele olhou desta elevada expectativa para o desenvolvimento que ia à frente do triunfo da razão, e viu ele mesmo na escala da natureza, desde a matéria morta, passando pelas plantas e pelo mundo animal, até o homem, uma confirmação para o fato de que o processo histórico inteiro, enquanto decorrência conclusiva, conduzia para a tomada de consciência do espírito. A convicção de que cabe à arte um papel importante neste processo cósmico Hegel certamente tomou, como muitas outras coisas, de seu amigo de juventude Schelling. As três seções sobre a religião da arte na difícil obra de juventude de Hegel, a Fenomenologia do Espírito de 1806, são mantidas no todo de modo tão abstrato que a autêntica história da arte não chega nelas à palavra, e todavia me parece que também aqui, como na Enciclopédia das Ciências Filosóficas de 1817, os três pensamentos fundamentais de Winckelmann se encontram envoltos em abstrações. Pois também aqui a arte é essencialmente teofania, uma descoberta do divino, e também aqui ela está comprometida com um coletivo histórico. Na linguagem de Hegel: “... a obra de arte é apenas então expressão de Deus quando ... o espírito que mora no interior do povo ... recebeu-se a si e renasceu sem nenhuma ... mistura” (Enciclopédia, § 462).8 E assim como aqui o transcendentalismo e coletivismo estético se tornam princípios impulsionadores a partir de uma construção auxiliar, assim naturalmente o que também em Winckelmann era a lógica do desenvolvimento torna-se pura e simplesmente determinismo lógico. Pois também a arte participa da autocriação do espírito, que se realiza com a necessidade de uma inferência. Também na história da arte trata-se do “desdobramento da verdade ... que se revela na história mundial” (Ä. III. p.573). Aquele otimismo metafísico, que igualmente se manifesta nestas palavras, deve implicar também de modo necessário um princípio mais amplo, que para a concepção hegeliana da história da arte não é menos necessário do que para a sua interpretação de todo acontecimento histórico restante – penso no princípio do relativismo que em Hegel decorre da dialética. No que concerne à história da arte, este relativismo dialético, que é ele mesmo novamente relativo, só chega plenamente à validade nos Cursos de estética. Estes cursos, que Hegel lecionou quatro vezes em Berlim, nos são conhecidos pela dedicada reconstituição de seu aluno Hotho, que utilizou tanto as anotações de Hegel quanto as transcrições de seus ouvintes. Por isso talvez não se deva tomar tudo ao pé da letra, mas no todo eles certamente trazem a marca da autenticidade indubitável. Assim como outras obras de Hegel, também eles não constituem uma leitura fácil. A sistematicidade abstrata, da qual não preciso dar nenhuma prova, muitas vezes se eleva ao abstruso, mas quando a paciência do leitor não suporta mais, muitas vezes ele é reconciliado com uma seção que parece ter sido escrita a partir de uma intuição viva. 28

7 Volume 12 da Edição Suhrkamp. Para uma versão em português um pouco diferente desta passagem, cf. a tradução brasileira de Maria Rodrigues e Hans Harden, Filosofia da História, Ed. UnB, 1995, p.366 [N. da T.].

8 A citação de Gombrich é incorreta e truncada. A passagem encontrase, na verdade, no § 560 da Enciclopédia da Ciências filosóficas (edição de 1830), onde se lê: “O sujeito é o elemento formal da atividade e a obra de arte é somente a expressão de Deus quando nenhum signo de particularização subjetiva nela se encontra, quando ela acolhe e faz renascer o Conteúdo [Gehalt] de Deus por ele habitado, sem mistura e não maculado pela contingência” (Edição Suhrkamp, vol. 10, p.369) [N. da T.].

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9 “Introdução” aos Cursos de estética I, São Paulo, Edusp, 1999, p.38. Na edição Suhrkamp, vol. 13, p.30 [N. da T.].

10 Aqui eu agradeço ao meu aluno, o senhor Alex Potts, pela referência à Plástica de Herder (1778).

11 Comparar com meu ensaio “Vom Wert der Kunstwissenschaft für die Symbolforschung” In: Wandlungen des Paradiesischen und Utopischen (Probleme der Kunstwissenschaft, II), Berlin, 1966.

Hegel possuía uma relação autêntica com a pintura e, de resto, também com a música, mas seus conhecimentos sobre a história da arte propriamente dita eram tão escassos que ele entrou no conto do vigário de que o túmulo do conde Engelbrecht II de Nassau em Breda é uma obra de Miguel Ângelo. Hegel tinha para tanto um claro conceito daquilo que ele denominava de exigências da erudição, “a exata familiaridade com o âmbito incomensurável das obras de arte individuais de épocas antigas ou recentes”.9 Igualmente a erudição em arte exige, segundo ele, uma ampla riqueza de conhecimentos históricos, que devem ser, além disso, muito especializados, tendo em vista que a própria natureza individual da obra de arte está referida ao singular e necessita do que é especializado para sua compreensão e esclarecimento” (Ä. I. p. 30). Ele fala com gratidão deste trabalho dos conhecedores, mas também lembra com razão que eles ocasionalmente “se prendem ao estudo dos aspectos meramente exteriores ... não percebem muita coisa ... da verdadeira natureza da obra de arte, inclusive julgam depreciativamente o valor de considerações profundas (Ä. I. p.56).

Hegel mesmo naturalmente se interessava por estas considerações mais profundas. Pois ele pretendia comprovar a crença, para ele inevitável, do domínio da razão mundial também por meio da história das artes, na medida em que mostrava que ela pode ser inserida na cadeia conceitual que constantemente avança, que para ele determinava todo acontecimento. Mesmo onde o desvio de tal empreendimento salta aos olhos, o leitor pode ficar fascinado pela conseqüência segundo a qual Hegel se empenha em também conquistar o conceito que cabe a cada espécie de arte, a cada época e a cada estilo. Justamente para esta conseqüência foi necessária a dialética – para auxiliar o ponto nuclear de sua doutrina a chegar à vitória – que ancora o otimismo metafísico ao relativismo. De modo mais fácil pode ser esclarecida esta conexão novamente no exemplo do classicismo antigo, que para Hegel culmina na plástica grega. Pois como forma artística, a plástica se encontra entre a arquitetura, que ainda se prende profundamente à matéria, e a pintura, que representa o processo mais amplo da espiritualização, uma vez que seu objeto propriamente dito é a luz – um pensamento que talvez venha de Herder.10 Naturalmente em Hegel também a pintura é novamente ela mesma apenas uma fase de passagem para a forma de arte quase integralmente desmaterializada da música, que por seu lado deve se afastar da poesia, na qual se trata do puro significado. E, porém, o valor de todas as artes é novamente relativo, pois “a arte está muito longe...de ser a suprema forma do espírito”, ela é dissolvida pela reflexão e substituída pelo puro pensar, portanto, por meio da filosofia, através da qual a arte pertence então propriamente ao passado (Ä. I. p.24-25). Assim, a arte antiga, tal como foi contemplada por Winckelmann, constitui para Hegel certamente a parte central da autêntica história da arte, mas a sua perfeição só foi possível em uma fase do espírito restrita temporalmente, na qual o divino ainda podia ser representado como visível. O que a precedeu é uma fase mais inconsciente, a arte do Oriente, que Hegel chama de pré-arte, e a qual, apoiandose no neoplatônico Creuzer, atribui uma forma determinada de simbolismo, que ainda é “inadequada”11 ao espírito. Hegel teve a sorte ou o azar de comentar a arte do antigo Egito justamente no último momento antes que a decifração dos hieróglifos transformasse desde a base a imagem desta cultura elevada. Para Hegel

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o Egito é a terra do símbolo que se coloca a tarefa espiritual do autodeciframento do espírito, sem no entanto chegar efetivamente ao deciframento. Os problemas permanecem não solucionados e a solução que nós podemos dar, consiste, por isso, também em apenas apreender os enigmas da arte egípcia e suas obras simbólicas enquanto um problema não decifrado pelos próprios egípcios” (Ä. I. p.456-57). “Podemos designar a esfinge como o símbolo para este autêntico significado do espírito egípcio. Ela é o símbolo, por assim dizer, do simbólico mesmo ... são corpos animais deitados nos quais se eleva a parte superior do corpo humano ... o espírito humano quer aflorar da indistinta força e vigor do animalesco, sem conseguir chegar à manifestação acabada de sua própria liberdade e de sua forma móvel (Ä. I. p.465).

Assim, um monumento artístico não interpretado do passado torna-se para Hegel uma metáfora que contém a essência de toda a época. E uma vez certo de sua visão, que na época o espírito assim como a esfinge permaneciam presos ao animalesco, ele também pode dizer que os egípcios ergueram instintivamente edificações religiosas tal como as abelhas construem os seus alvéolos ... a consciência de si ainda não amadureceu em fruto, ainda não está pronta para si mesma, mas está se impulsionando, procurando, pressentindo, produzindo cada vez mais, sem uma satisfação absoluta e, portanto, sem descanso (Ä. II. p.286).

Não é difícil observar quanto essa imagem dramática do espírito beligerante é tributária do princípio da dialética; ela tem de ser compreendida essencialmente como negação do ideal clássico, que Hegel justamente com Winckelmann viu efetivado na Antigüidade grega. Mas por mais que Hegel, nas respectivas seções, também se refira a Winckelmann, ele todavia viu com notável claridade que os 60 anos que o separavam de seu modelo tinham transformado desde a base a imagem da plástica grega. O conhecimento obtido sobre os Eginetes e sobretudo acerca das figuras do Partenon tiveram de deslocar o acento. De fato, Hegel é um dos primeiros que destrona o Apolo de Belvedere com uma palavra jocosa de um jornal inglês, que o caracteriza como “a theatrical coxcomb”12 (Ä. II., p.431), e também designa o Laocoonte como uma obra tardia, que já decaiu no maneirismo (Ä. II, p.435). Pode ser que Hegel não tinha muito interesse por tais obras. Ele nunca esteve na Itália e procurava as razões do “motivo pelo qual as obras de escultura dos antigos nos deixam em parte frios” (Ä. III., p.17). “Mais familiar” – assim lemos – “nos tornamos ... imediatamente na pintura ... vemos em suas configurações o que em nós mesmos faz efeito e atua”. Um ponto crucial da construção hegeliana era o fato de que a plástica pertencia à Antigüidade pagã, a pintura aos séculos cristãos, que Hegel denominava de romântica. Nisso naturalmente lhe ajudou o acaso de que as estátuas de mármore se conservam essencialmente melhor do que os quadros. Naturalmente Hegel também sabia que os antigos gregos consideravam seus pintores, tais como Zêuxis e Apeles, pelo menos do mesmo modo como seus escultores, e ele não se sentia inteiramente à vontade nesta interpretação da pintura como uma forma da arte romântica subjetiva. Mas, uma vez que, como ele mesmo diz, o autêntico núcleo da intuição grega “concordava” mais do que qualquer outra arte justamente com o princípio da escultura, então podemos, como ele se expressa com cautela, “presumir nos 30

12 Em inglês no texto original de Hegel: “Um janota teatral” [N. da T.].

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antigos o atraso da pintura diante da escultura” (A. III., p.20). Seja como for, o anseio de Hegel, de examinar cada forma de arte a partir de sua aptidão para a expressão de certos conteúdos espirituais, levou-o à descrição dos meios artísticos do pintor com uma tal penetração que na história da arte nem antes nem depois foi muitas vezes alcançada. O conceito do pictórico, nesse sentido, nós o associamos ao nome de Heinrich Wölfflin, que em sua obra Conceitos fundamentais da história da arte imitou, com uma grande arte de escrita, o desenvolvimento do estilo na passagem do plástico para o pictórico. Recordemo-nos que também em Hegel a forma de arte plástica precede de modo necessário o pictórico. E assim também Hegel discute o tipo escultórico-plástico como um elemento da pintura (Ä. III, p.68), e ele descreve os problemas da composição pictórica em um trecho que quase poderia ser atribuído a Wölfflin: O primeiro modo de ordenamento permanece ainda inteiramente arquitetônico, uma justaposição uniforme de figuras ou uma oposição regular e uma disposição simétrica tanto das formas mesmas como também de sua sustentação e movimentos. Neste caso, particularmente a forma piramidal do grupo é muito apreciada ... Mesmo na Madona Sistina esta espécie de agrupamento ainda foi mantida como predominante. Em geral ela é repousante para o olhar, porque a pirâmide reúne por meio de sua ponta o que de resto está dispersamente separado e dá ao grupo uma unidade exterior (Ä. III., p.98).

Mas o pintor que, como Hegel diz, aproveita inteiramente os meios que residem em sua arte (A. III., p.99), isto é, o pintor pictórico, ainda encontra outras possibilidades diferentes de desdobramento artístico quando, no decorrer do desenvolvimento que Hegel descreve detalhadamente, a pintura na arte holandesa do século XVII se torna quase uma finalidade por si mesma. Certamente valeria a pena fazer uma pequena antologia destes períodos em que Hegel, saturado de seu tom seco, cede à sua reação espontânea diante da pintura. O funcionamento de sua máquina conceitual silencia e dá lugar a um amor efetivo à obra de arte. Para tanto, basta que indiquemos um exemplo breve: Se a arte clássica, em seu ideal, apenas configura essencialmente o que é substancial, aqui, pelo contrário, a natureza mutável é aprisionada e levada à intuição em suas expressões fugidias: uma corrente de água, uma cascata, vagas marítimas espumantes, uma natureza morta com o cintilar casual dos copos, dos talheres etc., a forma externa da efetividade espiritual nas situações as mais particulares, uma mulher que, sob a luz, enfia um fio pela agulha, uma parada de ladrões em seu movimento casual, o dado momentâneo de um gesto, que rapidamente de novo se desfaz, e o riso e arreganhar de dentes de um camponês, nos quais Ostade, Teniers e Steen são mestres (Ä. II., p.227).

Mesmo que o ânimo e o pensamento também não sejam satisfeitos ele escreve

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a intuição próxima se reconcilia do mesmo modo com tais objetos. Pois é pela arte de pintar e do pintor que devemos ser alegrados e arrebatados. Com efeito, se quisermos saber o que é pintar, devemos observar estas pequenas imagens, para dizer deste ou daquele mestre: este sabe pintar (Ä. II., p.226).

Hegel esteve nos Países Baixos e lá se entusiasmou de modo manifesto pela pintura holandesa. Enquanto na apresentação da arte italiana ele segue amplamente a obra fundamental e recém publicada de von Rumohr,13 aqui ele escreve inteiramente a partir da intuição própria. Talvez nisso também ainda se manifestem elementos ideológicos. A catolização dos nazarenos14 fez com que muitos perdessem um pouco o gosto pelos italianos recém descobertos, denominados de “primitivos”, ao passo que Hegel também podia desfrutar o triunfo do protestantismo na Holanda e com a pintura. “Nenhum outro povo, sob outras relações, teria tido a idéia de transformar os objetos, que a pintura holandesa nos coloca diante do olhar, em conteúdo principal das obras de arte.” “A justificativa para a escolha de seus objetos artísticos” Hegel encontra justamente em seu “sentimento de uma liberdade conquistada por eles mesmos” através da qual eles “chegaram à prosperidade, comodidade, honestidade, ânimo, alegria e mesmo ao atrevimento da existência diária e feliz” (Ä. II., p.226). Se quisermos, podemos inclusive ver nesta glorificação do povo holandês ainda uma cópia do povo ideal dos gregos primitivos de Winckelmann. E assim como lá, também aqui decorre do sistema hegeliano que este florescimento de uma arte traz em si mesmo sua dissolução interna. A magia das cores da pintura impulsiona a transição para a música. Também na análise desta forma de arte Hegel nos surpreende por meio de seu entusiasmo vivo por Mozart e Rossini, entusiasmo que se encontra em uma estranha oposição com seus penosos esforços de uma sistemática puramente conceitual. Uma coisa, em todo o caso, está fora de dúvida. Para o próprio Hegel sua doutrina categorial estética era uma parte inseparável de todo o seu sistema filosófico. Pois, como se diz na Estética,

13 Trata-se da obra Investigações italianas [Italienische Forschungen], 3 vol., Berlim e Stettin (1826-31) de Karl Friedrich von Rumohr, utilizada por Hegel tanto em seu capítulo sobre a pintura como na discussão acerca do conceito de ideal na arte, na primeira parte dos Cursos de estética (Ä. I, p.225-26) [N. da T.]. 14 Nome pejorativamente atribuído a um grupo de pintores alemães do início do século XIX, em referência aos simulacros de trajes e penteados bíblicos adotados por seus membros. Eles acreditavam que a arte deveria servir a propósitos religiosos ou morais e que desde a metade do século XVI esse ideal vinha sendo sacrificado no altar da virtuosidade artística [N. da T.].

somente a filosofia em seu conjunto é o conhecimento do universo como uma totalidade orgânica em si mesma ... No coroamento desta necessidade científica cada parte singular é igualmente, por um lado, um círculo que retorna a si, ao mesmo tempo que, por outro lado, mantém imediatamente um vínculo necessário com outros âmbitos... Trata-se tanto de um retroceder, do qual cada parte singular se origina, como de um progredir, para onde ela própria se dirige e isso na medida em que de novo gera fecundamente outra coisa a partir de si e a faz surgir para o conhecimento científico (Ä. I., p.42-43).

É óbvio que há algo de incrivelmente sedutor em tal sistema, no qual cada fenômeno sequer imaginável da natureza, do espírito ou da história pode encontrar o seu lugar, e justamente porque Hegel foi o último e o mais conseqüente construtor de um tal sistema, sua filosofia também então não perdeu seu efeito quando sua metafísica perdeu em influência. Uma sucessão espiritual, porém, não se limitou apenas a pensadores que teriam subscrevido todas as definições de sua Enciclopédia. Aliás, é conhecido que, por exemplo, Marx opôs à tese de Hegel, do primado do espírito, a antítese do primado da matéria, para assim “superar” o sistema no conhecido duplo sentido da dialética, isto é, tanto dissolvê-lo quanto 32

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15 Em Search of Cultural History, Oxford, 1969.

16 K. R. Popper. Logik der Forschung [A lógica da investigação científica], Viena, 1935; Tübingen, 1966; Die offene Gesellschaft und ihre Feinde [A sociedade aberta e seus inimigos], Berna, 1957, 1958. Das Elend des Historizismus [A miséria do historicismo], Tübingen, 1965.

conservá-lo. Sua tentativa é a mais influente, mas de modo algum a única que por assim dizer secularizou a metafísica hegeliana sem com isso sacrificar a visão de conjunto, pelo menos de todos os eventos históricos. Em um escrito sobre a crise atual da história da cultura15 eu tentei mostrar o quanto os maiores representantes da ciência da cultura e da ciência da arte, do âmbito linguístico alemão, se encontram na trilha de Hegel. A aspiração de, por assim dizer, reconstruir na arte o efeito do espírito da época se estende desde Carl Schnaase, passando por Jacob Burckhardt, Heinrich Wölfflin, Karl Lamprecht, Alois Riegl, Max Dvorák até Erwin Panofsky. Se naquele escrito eu já tive de restringir bastante esta análise, assim também não posso e não quero aqui novamente retomá-la. Mas uma coisa é para mim muito importante. Eu não gostaria de dar a impressão que me falta respeito a estes mestres. Não se pode deixar de repetir que o melhor tributo que se pode prestar a um cientista consiste em levá-lo a sério e repensar com vigor seus argumentos. Certamente eu serei o último a exigir que a história da arte e da cultura deva abandonar a procura por conexões para se restringir simplesmente ao trabalho de catalogação. Se este fôsse o meu objetivo eu com certeza não teria também tentado fazer uma discussão com Hegel. O que meu deu a pensar não foi o conhecimento de que é difícil contruir conexões, mas paradoxalmente de que é muitas vezes muito fácil. A construção gigantesca da estética de Hegel pode ela mesma valer como prova desta tese. A despeito de sua virtuosidade, também vimos, porém, como ele na interpretação da arte egípcia tentou passar do metafórico ao factual, ou como ele impeliu uma figura como Apelles para a margem da história da arte grega, a fim de sustentar a sua construção da sucessão das espécies artísticas. Também o historiador especializado facilmente cai na tentação de corriger la fortune. Enfim, toda exposição histórica é seletiva e também deve sê-la. Assim é necessário que o historiador se restrinja ao que para ele parece ser mais designativo e despreze o que, segunda a sua visão, parece ser menos essencial. Meu amigo Sir Karl Popper, o grande teórico da ciência, abriu os meus ouvidos para este canto de sereia.16 O autêntico cientista não procura confirmações de suas hipóteses, ele sobretudo fica espreitando exemplos contrários. Uma teoria que não pode se opor a nada, também não tem nenhum teor científico. O perigo da herança hegeliana reside justamente em seu caráter sedutor de aplicação fácil. A dialética nos possibilita de modo muito fácil encontrar uma saída para toda contradição. Justamente porque na vida facilmente parece que tudo está relacionado com tudo, assim também cada método de interpretação possui uma tarefa fácil. Tudo gira em torno do ponto de partida evidente. “A arte se orienta pelo pão”, lemos em Lessing; e uma vez que o artista não pode efetivamente pintar sem comer, também pode ser construído sobre a questão do estômago um sistema plausível de história da arte. Em todas estas pretensões de esclarecimento eu tenho de pensar muitas vezes na antiga anedota do agricultor que vendeu um porco por 300 táleres. Ele está sentado numa taberna, tem um saco de dinheito diante de si, despeja o conteúdo sobre a mesa e começa a contar: “um, dois, três” ... ele chega até dez, até cinqüenta, até cem e começa a bocejar – 150, 180, 181 – de repente reúne o monte e o coloca de novo no saco. “Mas o que você está fazendo?” perguntam os companheiros. “Se até agora estava tudo certo, certamente estará até o fim”. Eu naturalmente não imagino que seja o primeiro ou na verdade o único historiador da arte que gosta de recontar. Ao contrário, muitas vezes me perguntei se hoje – quase cento e cinqüenta anos depois da morte de Hegel – minha

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polêmica com certas construções históricas não é uma luta contra moínhos de vento. E todavia percebi muitas vezes que não se trata apenas de moínhos de vento, mas de gigantes efetivos contra os quais cavalgamos. Eu já mencionei cinco destes gigantes em seus nomes aventureiros. Eles se chamam transcendentalismo estético, coletivismo histórico, determinismo histórico, otimismo e relativismo metafísicos. Eles são todos parentes do gigante Proteus, que em toda metamorfose sempre permanecem os mesmos. A apreensão da transcendência da arte tornou-se transparente na forma secularizada. A obra de arte é certamente a expressão não do espírito divino que se efetiva a si mesmo, mas sim do espírito da época [Zeitgeist], que por assim dizer transparece por sua superfície. A palavra “expressão” em sua polissemia cintilante facilita esta transição, que permite ao historiador deixar tornarem-se visíveis, por trás da obra de arte, a concepção de mundo [Weltanschauung] ou as relações de produção. O que é comum aos dois métodos é naturalmente a ligação com o coletivismo; pois o caminho conduz da obra de arte isolada para o estilo, que deve ser interpretável como indicação, como uma manifestação da classe ou da raça, da cultura ou da época. Neste procedimento cabe naturalmente uma posição chave ao determinismo de matérias asseguradas ou não. Justamente nisso reside, aliás, a herança hegeliana, quando se pretende mostrar que o estilo gótico decorre inevitavelmente do feudalismo ou da escolástica ou de que todos os três fenômenos são apenas formas de aparição distintas de um princípio. Certamente pode-se conceder de modo fácil que também é possível encontrar conexões diretas ou indiretas entre estes fenômenos disparatados; trata-se apenas de encontrar o ponto onde, para variar uma expressão preferida de Hegel, a trivialidade se transforma no absurdo. Sem dúvida surgiram tantos opositores ao determinismo histórico que se poderia dar como resolvido o problema, caso tivesse de ser resolvido algum problema. Não é, a saber, necessária nenhuma decisão sobre a questão da causalidade, da validade de leis naturais ou do livre arbítrio para refutar esta representação de um decurso necessário de acontecimentos históricos. Assim, há pouco tempo o Prêmio Nobel Manfred Eigen, nascido em Göttingen, enfatizou que a validade de uma conformidade a leis das ciências naturais pode ser apreendida como necessária, sem no entanto ser suficiente para deduzir disso o caráter indispensável de um decurso histórico determinado.17 Eu gosto muitas vezes de comparar as influências variadas, às quais está submetida a criação artística, com a influência do clima sobre a vegetação. Ninguém irá negar esta dependência e o fato de que a vegetação, por seu lado, novamente influencia o clima; gostaria também de recomendar a comparação aos defensores da dialética. Numa árvore antiga é inclusive possível verificar as oscilações do clima na espessura dos anéis, que correspondem a um ano. E todavia o cálculo apenas está correto até este ponto. Pois o efeito alternante não está apenas limitado a estes dois fatores; ainda entram em jogo muitos outros, que não podem ser calculados previamente ou serem reconstruídos. Vocês se lembram que a introdução casual de um casal de coelhos na Austrália quase levou ao fato de que todo o país fôsse completamente escalvado, ficando sem nehuma vegetação. Não se consegue escapar do acaso. Eu certamente sei que Hegel explicou a famosa expressão de sua filosofia do direito: “o que é racional é efetivo e o que é efetivo é racional”, na segunda edição da Enciclopédia, no sentido de que entende por efetividade [Wirklichkeit] “não o mero empírico, a existência mesclada ao acaso, ... e sim a existência idêntica com o conceito da razão”.18 Mas esta tentativa de salvação repousa por fim 34

17 Manfred Eigen/Ruthild Winkler, Das Spiel; Naturgesetze steuern den Zufall, München, 1975, p.197.

18 Eu cito segundo Karl Rosenkranz, Georg Friedrich Wilhelm Hegels Leben, Berlin, 1844, p.335.

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sobre um círculo vicioso, pois se o acaso não interessa em nada à filosofia, então a história igualmente também não interessa em nada. Pois a história revela sempre como verdadeiro o antigo provérbio: “pequenas causas, grandes efeitos” – uma verdadeira palavra mágica que abre infalivelmente caminho para o espectro do determinismo histórico. Na verdade, isso parece tão evidente que é preciso perguntar porquê os homens se opõem tantas vezes a este conhecimento. Pode ser que a potência do acaso fere nossa auto-estima. Falamos do acaso cego, sem sentido e estúpido, e achamos mesmo na vida e na história o infortúnio mais suportável quando podemos encará-lo como um destino do qual não se pode desviar. Mais fácil ainda se tornam as coisas quando se compartilha do otimismo metafísico de Hegel, que pretende nos convencer que em última instância tudo caminha para o bem. O desejo é o pai do pensamento, independentemente da versão segundo a qual também seja formulado o pensamento do happy end predeterminado do drama mundial. Certamente nem todos os deterministas são otimistas. Oswald Spengler, por exemplo, que tem muita coisa em comum com Hegel, professou a decadência inevitável do Ocidente. Em contraposição, o essencial no otimismo metafísico está no fato de que não pode e não deve haver nenhuma decadência, nenhuma queda, que não abra o caminho a uma forma de desenvolvimento mais elevada. Eu acredito não estar me enganando ao caracterizar este relativismo também como o dogma por assim dizer oficial da história da arte atual, até onde ela se prescreveu ao determinismo. O que é inevitável não se pode sentenciar, tampouco como um geólogo sentencia a idade do gêlo. Certamente levou algum tempo até que a história da arte chegásse a esta postura, que em sua tendência niveladora ainda vai muito além de Hegel. Em Hegel há naturalmente um declínio, mesmo que ele sirva ao progresso. Hoje tem-se por científico eliminar quando possível o conceito de declínio do vocabulário dos historiadores da arte, para garantir a toda época antes sentenciada o seu direito na cadeia de desenvolvimento. A salvação honrosa do gótico no século XVIII também foi aceita por Hegel. Mais tarde Wölfflin, seguindo as trilhas de Burckhardt, reabilitou a arte do barroco, Wickhoff tomou partido pela arte romana, Riegl pela Antigüidade tardia, Max Dvorák pela pintura de catacumbas e por Greco, até Walter Friedländer ter libertado a arte do maneirismo inteiramente do estigma do declínio e Millard Meiss também empreender a valoração positiva da pintura do trecento tardio. No momento vivenciamos inclusive a revaloração da pintura francesa de salons do século XIX, que há pouco ainda era tida como a quintessência do kitsch. Eu não quero de modo algum negar que cada um destes esforços nos trouxeram muitos ganhos, nos libertamos dos preconceitos e aprendemos a olhar com mais cuidado. Eu sou, a saber, um homem pacífico e estou de bom grado disposto a deixar a cada um dos cinco gigantes seu brinquedo de gigante, contanto que restrinjam de modo racional suas pretensões de domínio. Mesmo ao otimismo metafísico quero fazer a concessão de que há efetivamente um progresso que une o reino da natureza com o do espírito. Aliás, desde Darwin compreendemos que para isso não é necessário nenhuma teologia; basta o mecanismo cruel da eliminação dos que não se adaptam. Talvez também no reino da arte uma mutação casual conduza ocasionalmente a uma solução promissora, que por seu lado leve a seleções ulteriores. Baseada em tais séries de desenvolvimento, a história da arte foi apresentada primeiramente na Antigüidade, na Renascença e por Winckelmann, REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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e o que na época se via como declínio, pode-se também reconhecidamente interpretar no sentido do relativismo como um processo mais amplo de adaptação. Mas adaptação a que? Cada grupo humano, isto é, cada coletivo não coloca para as imagens exigências idênticas ou igualmente elevadas? Neste contexto meu estimado professor Julius von Schlosser insistia com razão no fato de que não se deve confundir a história da arte propriamente dita com a história da linguagem artística, isto é, o estilo,19 e com certeza a história do estilo se adapta antes à tentativa de uma reconstrução hipotética do que o fenômeno da maestria. Também a obra-prima não é independente do favor do momento, mas aqui eu gostaria de conceder de bom grado ao transcendentalismo estético que a mais elevada atividade artística penetra em uma esfera que também se subtrai em princípio à análise científica.20 Assim, a atualidade dos problemas que Hegel levantou está para mim fora de dúvida. Mas eles apenas se tornam uma questão urgente na conexão com a atividade artística atual. Eu devo aqui recordar o duplo sentido da palavra história, que também se introduziu no título de minha conferência: “Hegel e a história da arte” pode apontar para a relação de Hegel com a historiografia da arte, da qual eu aqui falei, mas também pode envolver a influência de Hegel sobre o acontecimento artístico mesmo, e essa questão tem com certeza muito mais peso do que todos os problemas especializados dos historiadores da arte. A historiografia pode ela mesma novamente impulsionar o decurso mais amplo do acontecimento histórico e neste feedback, nesta retroalimentação, que Hegel como dialético certamente teria designado de bom grado, reside a influência mais decisiva de sua filosofia da história. Recordemo-nos que nele a arte não é meramente um reflexo do divino, mas uma parte do processo duradouro da criação, que passa através dos artistas (A. I., p.50). O que a Antigüidade via sobretudo no poeta, vale aqui, por isso, para cada artista autêntico, ele é um visionário, um profeta, por meio do qual Deus não apenas fala, mas o artista ajuda Deus a se tornar consciente de si. Mais nitidamente ainda do que os Cursos de estética nos ensinam os Cursos sobre a filosofia da história como Hegel apreendia o papel histórico de um tal favor divino. Suas reflexões nesta obra sobre os “indivíduos históricos mundiais” referem-se certamente de início aos condutores políticos, quando Hegel sobretudo pensava em Napoleão, que ultrapassou a Revolução Francesa e a “superou”, e que em uma famosa carta, logo após a batalha de Jena, foi designado por Hegel como sendo “esta alma mundial”.21 Mas quando ele fala dos grandes homens, também podemos englobar nisso o artista, em todo o caso não há nada que impeça situá-los nesse patamar. Segundo Hegel, a tarefa “destes homens de negócio do espírito mundial (esta é a sua expressão)” ... “é saber o próximo estágio necessário de seu mundo, torná-lo sua finalidade, e colocar a sua energia no mesmo” ... “Eles representam por assim dizer o próximo gênero que estava presente na interioridade” (p.46). É claro que ao comum dos mortais não é dado reconhecer e compreender esta antecipação do futuro no presente. Apenas uma conclusão ele pode tirar da filosofia de Hegel: o que o espírito do mundo sempre aspira no presente deve ser algo novo. Assim, o antigo é desvalorizado por si mesmo, ao passo que o desconhecido até agora, não experimentado, pelo menos engloba em si mesmo a possibilidade de trazer consigo o germe do futuro. A recusa do presente torna-se inclusive a marca do gênio. Os grandes mestres estão justamente à frente de seu tempo, e se não estivessem também não seriam grandes mestres. 36

19 Julius von Schlosser, “Stilgeschichte” und “Sprachgeschichte” der bildenden Kunst, Sitzungsberichte der Bay. Akademie der Wissenschaften, Phil.-hist. Abt. 1935, I.

20 Comparar com a minha conferência Art History and Social Sciences, Oxford, 1975.

21 Karl Rosenkranz, op. cit., p.229. [N. da T.: na carta a Niethammer, escrita em Jena no dia 18 de outubro de 1806, Hegel diz: “o imperador – esta alma do mundo – eu vi passando pela cidade em reconhecimento; – trata-se sem dúvida de um sentimento fantástico ver esse indivíduo que aqui se concentra em um ponto, sentado sobre um cavalo, se impor no mundo e dominá-lo” In: Hegel, G. W. F. Weltgeist zwischen Jena und Berlin. Briefe herausgegeben und ausgewählt von Hartmut Zinser, Frankfurt am Main, Ulstein, 1982, p.58].

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22 Renato Poggioli, Teoria dell`Arte d`Avanguardia, Bologna, 1962, não se refere neste contexto a Hegel. Cf. também as preleções menciondas na nota 4.

Quem não vê na alternância dos estilos, das tendências e das modas uma revelação de uma finalidade mais elevada, deve perguntar-se a partir de onde é propriamente possível saber o que o futuro irá reconhecer; aliás, ele irá inclusive duvidar do motivo pelo qual se deve aceitar que a próxima geração terá necessariamente um gosto melhor do que o nosso. Mas para aquele que se dedicou ao otimismo metafísico, o processo da seleção é ele mesmo adiado do presente para o futuro. Apenas o sucesso no futuro deve valer, ele é o juízo de Deus propriamente dito. A crítica do contemporâneo é uma impossibilidade teórica, aliás, ela corre constante perigo de se revelar como blasfêmia. O que resta ao crítico, por fim, é apenas observar para onde vai a lebre. Como Popper mostra, submerge por trás do otimismo metafísico um gigante ainda mais perigoso – o oportunismo metafísico. Nem Popper nem eu queremos sustentar que esta filosofia do progresso na arte, a teoria da vanguarda,22 foi somente inspirada e nutrida pela filosofia de Hegel. Entretanto, acredito que se poderia mostrar como um de seus elementos essenciais reside na herança hegeliana. Em outro lugar eu já chamei a atenção para uma expressão de Heinrich Heine que formula inequivocamente esta conseqüência da filosofia de Hegel. Heine, que via em Hegel o maior filósofo alemão desde Leibniz e o colocava acima de Kant, a acolheu em um de seus “Salons parisienses” do ano de 1831, o ano da morte de Hegel, juntamente com os críticos que recriminaram um quadro como tendo sido falsificado por Descamps. Ele sustenta que cada artista original e na verdade cada gênio artístico novo deve ser julgado segundo sua estética própria que ele traz consigo ...cores e formas, ... são todavia apenas símbolos da idéia, símbolos que nascem no ânimo do artista, caso o sagrado espírito do mundo o mova.

Heine fala de uma “mística ausência de liberdade” do artista, e em ligação com esta não liberdade toda crítica se torna um academicismo desmesurado. Certamente neste âmbito da crítica de arte também levou ainda um bom tempo para que os julgadores da arte se dessem por vencidos e, para falar como Hegel, que se chegasse a uma autodissolução da crítica. Mas cada onda sucessiva de revolução artística no século XIX dava um novo impulso ao relativismo otimista. Assim como o mundo político também a vida artística foi polarisada por meio da crença no progresso – havia apenas mais progressistas e reacionários. Nesta constelação, aos críticos não convinha mais a crítica, e sim sua tarefa era a de fornecer subsídios ao movimento; ele se tornou o proclamador de uma nova época e também fazia o melhor para manter verdadeira esta profecia. Eu nem necessito recordá-los de como facilmente os manifestos artísticos do começo do século XX se excediam num pathos apocalíptico e anunciavam a irrupção, a transformação radical ou o despertar. Também aqui Hegel ainda exerceu diretamente a sua influência. Assim, por exemplo, escreveu Eckart von Sydow em um panfleto sobre “A cultura e a pintura expressionistas alemãs” de 1920: “Com uma certa restrição podemos dizer: o espírito alemão novamente encontrou uma conexão imediata com a alma mundial, tal como na época da Idade Média” (p.73). Também aqui eu não quero ser mal interpretado. A referência não fala contra o expressionismo, apenas contra sua fundamentação metafísica no transcendentalismo estético. Eu quero inclusive ir mais adiante e aceitar que uma crença REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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metafísica pode entusiasmar um artista ou uma corrente artística. Quase toda grande arte é religiosa, e também o elemento religioso na filosofia de Hegel fez efeito de modo inspirador. Acredito de fato que o historiador da arte de nosso século deve estudar Hegel de tal modo como o pesquisador da arte cristã da Idade Média deve estudar a Bíblia. Apenas então ele irá aprender a compreender o impulso da arquitetura moderna e sua crise atual. Com efeito, Walter Gropius escreveu em 1923, em seu artigo sobre a idéia e a estruturação da Bauhaus estatal: “O sentimento mundial de uma época se cristaliza nitidamente em suas obras de arquitetura, pois suas capacidades espirituais e materiais encontram nelas simultaneamente uma expressão visível”.23 Seu belo discurso por ocasião da primeira exposição de trabalhos de alunos da Bauhaus esclarece qual era a expressão com a qual ele sonhava: Nenhuma grande organização espiritual irá nascer, e sim pequenas associações secretas, em si mesmo acabadas, lojas, cabanas, conspirações, que abrigam um segredo, um núcleo de crença e querem configurá-lo artisticamente. Destes grupos isolados irá novamente se constituir uma idéia universal espiritual e religiosa, grandiosa, sustentadora, que deverá por fim encontrar sua expressão cristalizada em uma grandiosa obra de arte total. E esta grande obra de arte da coletividade, esta catedral do futuro, irá então brilhar com sua plenitude de luz até mesmo nas pequenas coisas da vida diária.24

Eu espero que vocês também sintam o inebriamento destas palavras de um grande arquiteto. Mas à embriaguez se segue facilmente também a desilusão; e de fato ela não se fez por esperar. Há alguns meses um dos mais significativos críticos de arquitetura e historiador da Inglaterra, Sir John Summerson, por ocasião do recebimento da medalha de ouro do Royal Institute of British Architects, falou sobre seus inícios como pioneiro entusiasta da moderna arquitetura na Inglaterra do começo dos anos 30, e observou que o otimismo ingenuamente infundado de seus artigos da época hoje lhe causa inclusive náuseas.25 Com a mesma abertura, um outro crítico de destaque da Inglaterra confessou no mesmo forum que, nos anos de luta pela nova arquitetura, ele também louvou trabalhos que nem achava tão bons, apenas pelo fato de que eram justamente modernos e não reacionários.26 Essas confissões são dignas da mais alta atenção, como em geral devem ser calorosamente saudados os debates que hoje por todos os lugares ocorrem onde se estuda arquitetura e se trabalha com ela. Pois finalmente se discute com argumentos e contra-argumentos, para aprender com as falhas dos últimos decênios. Na arte figurativa da pintura e da plástica um tal retorno para a discussão crítica não será tão fácil, pois aqui faltam os critérios práticos aos quais se deve ajustar uma obra. Aqui o crítico está inteiramente entregue a si mesmo. Naturalmente não se deve exigir que ele não tenha preconceitos e imagens de esperança para o futuro. Mas teoricamente ele nunca tem razão ao argumentar com os chavões da “nossa época” ou inclusive da “época vindoura”. Foi Immanuel Kant que sustentou a doutrina rigorosa e assustadora de que ninguém e nada pode tirar de nós o fardo da responsabilidade moral por nosso juízo: nem mesmo uma teofania, tal como Hegel a viu na história. “Pois” escreve ele “seja em que modo também se descreva um ser como Deus ... aliás ... se ele mesmo aparecesse” isso ainda não subtrai ninguém do dever “de ele mesmo julgar se está autorizado a tomá-lo por uma divindade e a venerá-lo”27. 38

23 Publicado em Manifeste, 1905– 1933, organizado por Diether Schmidt, Dresden, 1964, p.290.

24 Junho de 1919, idem, p.238.

25 Publicado em RIBA (Journal of the Royal Institute of British Architects), dezembro de 1976.

26 J. M. Richards, “The Hollow Victory: 1932 – 1972” no mesmo jornal, maio de 1972.

27 A religião no interior dos limites da mera razão, seção II, parte II, item 4, § 1 (Werke, Berlin, 1914, vol. VI, p.318).

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Pode até ser que a exigência pede algo de sobre-humano, mas já se teria feito muito se na vida artística também se pudesse divulgar o conhecimento de que Kant tinha razão.

*Marco Aurélio Werle é professor do Depto. de Filosofia da USP, tradutor dos Escritos sobre arte de Goethe (Humanitas, São Paulo, 2005) e, juntamente com Oliver Tolle, dos Cursos de estética de Hegel (Edusp, São Paulo, 1999-2004, 4 vol.); autor de A poesia na estética de Hegel (Humanitas, São Paulo, 2005) e de Poesia e pensamento em Hölderlin e Heidegger (Editora Unesp, São Paulo, 2005).

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COMUNICAÇÃO

A ORGANIZAÇÃO ESPACIAL DA MESTIÇAGEM NAS MÍDIAS: JORNAIS, FOTOCOLAGENS E FOTOGRAFIAS PÓS-MODERNAS Kati Eliana Caetano*

Resumo: A partir da distinção entre fotos vanguardistas e fotos pós-modernas de Dominique Baqué, fundada na caracterização da mestiçagem como marca das fotos contemporâneas, o presente ensaio retoma o conceito de mestiçagem semiótica de acordo com os postulados da semiótica tensiva, procurando verificar em que medida esse fenômeno se manifesta nos exemplos apontados na obra citada. Para tanto, recorre à discussão de mestiçagem desenvolvida por Claude Zilberberg, examinando-a não só em imagens fotográficas, como também em alguns casos da imprensa escrita, abordadas em suas especificidades. Os distintos graus de mestiçagem analisados configuram, do presente ponto de vista, estratégias enunciativas propícias à definição de estilos axiológicos, tributários do perfil assumido pelas diferentes mídias (jornal, revista, fotografia, fotocolagem) na constituição de um público-alvo. PALAVRAS-CHAVE: FOTOGRAFIA; CAPAS; SINCRETISMO; HIBRIDISMO DISCURSSIVO Abstract: Based on the definition of semiotic “métissage” by Claude Zilberberg, the focus of the present work is the discussion of magazines and newspapers’ covers as particular means of photomontage, defined through the articulation of different types of languages for the construction of a unity of sense. The idea is that the forms of combination of verbal and non-verbal texts, characteristic of the so-called “syncretic discourses”, result from the enunciative strategies destined to create several stylistic effects, responsable for a species of identity of the texts and for the enunciative relationship resulted. KEYWORDS: NEWSPAPERS’ COVERS; MAGAZINE’S COVERS; PHOTOMONTAGE; SYNCRETISME; DISCOURSIVE HYBRIDISM

Duas vertentes contemporâneas têm sido apontadas como tendências dominantes da chamada fotografia plástica, ou seja, da fotografia em suas manifestações artísticas. Exatamente na obra intitulada La fotografia plástica, de Dominique Baqué (2003: pp. 147-236), as duas ordens correspondem, a partir da segunda metade do século XX, à fotocolagem em primeiro lugar e à fotografia pós-modernista mais recentemente, desde os anos 80 e 90. Aparentemente, os parâmetros de distinção fundam-se no princípio de que a fotocolagem agrega novas linguagens à fotografia, como o texto verbal e o desenho, ou elementos matéricos singulares que lhe dão, assim como na arte, o efeito texturizado. Sua feição geral, no entanto, ainda é o da fotografia, com toda a carga documental que ela carrega, e que ganha REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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valores conotativos graças à nova combinação. Aliás, essa é a marca distintiva atribuída à fotocolagem por Baqué: o forte caráter ideológico condicionado à trama de unidades insólitas na superfície da imagem, que continua a ter como presença dominante o fotográfico. Em outros termos, a imagem fotográfica funcionaria como uma estrela em torno da qual girariam linguagens “planetárias”, dotando-a de luzes e nuanças diferentes. As fotos “de extrema contemporaneidade” (2003: pp. 234-235), por outro lado, compõem o que a autora designa de mestiçagem pós-moderna, definidas, a se deduzir dos exemplos apresentados, pela mistura de suportes, ou meios de expressão diversificados, tais como a conjugação da imagem da tv, do cine, da escultura, da arquitetura, e do vídeo com a foto, ou pelo menos de alguns dos traços característicos imputados a essas mídias e incorporados à fotografia. Algumas ilustrações extraídas de D. Baqué servirão para esclarecer: a obra de Susan Trangmar (Blue skies, p. 223), constituída de fotos projetadas em torno do espectador; o cubo arquitetônico de Alain Paiement (Chantier, pp. 218-219), em cujo interior estão dispostas fotos monumentais (muros em tamanho natural) de um prédio em construção; as imagens fotográficas de Katharina Sieverding (Kontinentalkem II, p. 220), reproduções, também monumentais, de imagens televisivas de impacto, no caso citado, a fotografia de um míssil; a fotografia de um canteiro de obras instalada no próprio espaço em que foi capturada, de Pierre Huyghe (Chantier Barbés-Rochechouart, p. 239) e, por último, a reprodução fotográfica de desgastes de películas fílmicas pela ação do tempo, originando figuras insólitas na superfície do fotograma que se associam em resultados lúdicos, de Éric Rondepierre (escena W1630, Série Précis de décomposition, p. 221). A idéia subjacente a tais experiências parece ser a de que cada mídia é dotada de marcas singulares, que lhe conferem uma certa identidade, passíveis de serem incorporadas aos outros meios de comunicação em processos diversos de mestiçagem e com efeitos de heteronomia visual. Afirma-se, assim, pela imagem estática, em especial a fotográfica que é considerada como parâmetro de construções figurativas tradicionais (MACHADO 1997 e COUCHOT 1993), um papel heurístico mais afeito à caracterização dos meios contemporâneos dada por Machado, enquanto certos produtos da computação gráfica aspiram ao (antigo) poder de convicção da fotografia fotoquímica, a fotografia se converte ela própria em vídeo (as próprias câmeras fotográficas já são agora eletrônicas), como que anunciando uma era de indiferenciação fenomenológica entre imagens técnicas e artesanais, objetivas e subjetivas, internas e externas (1997: p. 234). Em suma, evidencia-se nesse fazer artístico a competência das linguagens para assumir o caráter de sua própria diversidade virtual. O ponto de partida do presente trabalho consiste, porém, na argumentação de que ambos os exemplos, fotocolagens e fotos pós-modernas, são casos de manifestações sincréticas ou formas diversificadas de mestiçagem discursiva, para falar nos mesmos termos de Dominique Baqué, com efeitos surpreendentes de convivência e imbricamento de linguagens para a constituição de relações de sentido e de presença entre enunciadores e enunciatários. Duas perguntas norteiam então a reflexão: quais são as diferenças de mestiçagem implicadas nos dois casos e que diferenças comunicacionais proporcionam em suas formas distintas de organização? Para desenvolver a investigação que pode conduzir a uma possível resposta (entre outras possíveis) duas ordens de discussão deverão ser igualmente desencadeadas: 1) o que é e como se manifesta a mestiçagem; 2) qual a relação entre fotocolagem e foto pós-moderna no 42

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micro-universo de outras articulações do verbal e do não-verbal. Neste último caso, tomar-se-á comparativamente o exame das primeiras páginas de alguns jornais e revistas da contemporaneidade como exemplos significativos de mestiçagem, junto com as fotos. Claude Zilberberg, em seu artigo As condições semióticas da mestiçagem (CAÑIZAL & CAETANO 2003: pp. 69-101) desenvolve uma discussão do tema reportando-se tanto à mistura no plano conceitual quanto suas implicações no plano cultural, o que o torna operacionável para o estudo em questão. Encarada como uma variável combinatória da mistura, a mestiçagem pressupõe a coexistência de unidades numa mesma superfície que se apresentam sintagmaticamente em forma progressiva e em série. Assim, deixando-se de lado qualquer operação de separação ou triagem, essa coexistência passa a ser analisada em função de dominâncias de algumas unidades sobre outras, em relações de proximidade, ou como dispositivos de fusão que se fundam na base de graus variados de intimidade entre os elementos constitutivos de um discurso. Tomando-se como dois pólos a incoatividade da separação e a terminatividade da fusão entre dois termos, têm-se as fases intermediárias da contigüidade e da mescla. Para a análise, o autor toma como base a categoria dos casos da lingüística sustentada em duas dimensões: a direção, segundo a qual se opõem a aproximação e o afastamento de duas grandezas; a intimidade, que de acordo com Hjelmslev, confronta a aderência (o contato) à inerência. Transpondo essa descrição para dois corpos miscíveis, obteremos 4 estados aspectuais, caracterizados pelas tensões e ambivalências que os modos de existência peculiares à sintaxe discursiva determinam: separação; contigüidade, mescla, fusão (2003: p. 76, grifo nosso).

A contigüidade pressupõe um certo nível de aproximação de modo que as diferenças sejam ainda perceptíveis. Passa-se, portanto, da separação para uma primeira fase de conjunção. A articulação pode-se estabilizar dessa maneira, caracterizando certos tipos de discursos, ou avançar em aspectualidade progressiva no sentido de um maior imbricamento entre os termos gerando desde a mescla à fusão. Zilberberg constrói assim uma espécie de morfossintaxe da mestiçagem, caracterizada pela relação entre termos contrários e sob-contrários (e não sub-contrários, na sua acepção, pois suas relações erigem-se progressivamente). Nessa perspectiva, a mistura despreza a separação e institui uma relação processual composta de fases aspectuais consideradas canônicas: adjunção ou contigüidade (incoatividade), mescla (progressividade) e fusão (terminatividade). O desenho utilizado por Claude Zilberberg para mostrar visualmente essa série em sua progressividade é exemplar para o fim a que se propõe o presente estudo (2003: p. 76).

Figura 1 – Esquema da mestiçagem de Claude Zilberberg

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Como ressalta o autor, as grandezas devem ser abordadas em seu universo de relações sintagmáticas, pois “o que interessa não são os pares, as oposições, mas as combinações e dominâncias que essas oposições tornam possíveis” (2003: p. 81). De seu ponto de vista, a mestiçagem ocupa uma região particular do espaço tensivo, definida de uma lado pela fraqueza de sua valência intensiva e de outro pela elevação de sua valência extensiva (a extensividade pressupõe a diversidade, a multiplicidade). Pelo viés da tonalização, a mestiçagem define-se pela discriminação da junção nos termos do intervalo canônico tônico vs átono. Assim, de acordo com tal perspectiva, as possibilidades combinatórias da mistura têm sua dinâmica estabelecida entre as categorias da intensão vs extensão e tônico vs átono. A diversidade marca-se pela extensividade + atonicidade enquanto a triagem, no sentido da pureza, da exclusividade, opera sobre a relação intensivo + tônico (2003: pp. 75-78.). Interessam aqui os três últimos elementos do paradigma de mestiçagens estabelecido, pois a separação implica procedimentos de triagem e não de mistura. Antes de verificar suas ligações com o objeto de estudo deste trabalho – fotocolagens e fotografias pós-modernas – propõe-se uma aventura pelas primeiras páginas de alguns jornais e capas de revistas brasileiros, tendo como foco as relações entre texto verbal e fotografias, sem desconsiderar obviamente que outros componentes visuais são responsáveis pela produção dos sentidos jornalísticos. O universo das capas de jornais, encaradas como definidoras a priori de um estilo jornalístico de fazer saber, evidencia casos de misturas de contornos bem definidos, organizações espaciais simétricas, e conseqüente orientação de leitura marcadas por certa racionalidade, responsáveis em boa medida pela imagem de seriedade outorgada à mídia. Ao contrário, as capas caracterizadas por misturas de muita intimidade entre fotos e textos, assim como entre matérias de distintos teores, costumam ser consideradas “excessivas” em sua diagramação, pois, segundo o jargão especializado, apresentam uma poluição visual mais ao gosto popular e caracterizadora de um jornalismo “menos sério”. Em que pese o caráter taxativo da afirmação, os exemplos examinados parecem confirmar essa afirmação. A primeira página da Folha de São Paulo de 30 de julho de 2005 destaca, conforme o fazem todos os outros periódicos nacionais do período, a questão do pagamento do mensalão aos partidos aliados da base do governo como a sua matéria principal.

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Figura 2 – FSP, 30/07/2005

Na parte superior da página, ocupando toda a extensão central, está a fotografia da secretária de Marcos Valério, Karina Somaggio, em “top” de seda com padronagem que imita pêlo de onça, sorrindo para o fotógrafo (portanto para o leitor) em pose publicitária. A manchete posicionada acima “SMPB liga Valério a assessor de Dirceu” associa-se inevitavelmente à foto, que bem poderia estar em outro tipo de veículo de conteúdo mais mundano, como Caras, Contigo ou Playboy, e remete ao grave problema político que atinge o governo federal e os partidos aliados. Nas páginas internas, entre outras matérias de procedências diversas de ataque ao empresário Marcos Valério, um dos donos da agência de publicidade SMPB, expõe-se o lado humano do empresário, pela descrição de uma biografia que ocupa toda a superfície da página, e põe em destaque a origem simples, o sofrimento dos pais, a infância de uma criança inteligente, mas tímida e suscetível a zombarias, além da dura experiência da perda de um filho de 6 anos, vítima de um câncer. Depois de tudo, o relato da meteórica ascenção financeira que assusta até os familiares mais próximos. De um modo geral, a FSP alinha-se entre os maiores jornais nacionais, considerados imprensa “séria”, dotados daquele tipo de diagramação ordenada e asséptica citado acima: contornos rígidos entre as matérias, fotos bem posicionadas, algumas vezes em relações lúdicas ou irônicas com a manchete principal, sem, no entanto, ferir o bom gosto, e o bom senso, no que toca aos limites do aceitável para as misturas de linguagens, gêneros e discursos. Tomando partiREVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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cularmente as interfaces do verbal e da fotografia, pode-se ter a dominância do verbal ou do visual, dado pela diagramação, mas há a possibilidade também de uma acentuação que é dada pelo leitor: o que permite que alguns afirmem só ler os jornais, sem ver imagens, nem publicidade, e que outros só vejam os jornais em suas figuras, manchetes, títulos e subtítulos. Quando o verbal e as imagens se contaminam, criando sentidos conotativos, essa seleção ou não é possível ou torna-se prejudicial ao processo de interpretação. Por exemplo, a capa com Karina Somaggio e a reportagem interna com biografia de Marcos Valério, mostrando seu lado cidadão comum, passível de injustiças e sofrimentos, acabam estimulando uma ambivalência que altera a possibilidade de uma leitura única, do tipo é ou não é. Tudo fica ambíguo, confuso para o leitor, e o jornal conta de certo modo com esse efeito. A exposição de Karina na foto parece querer colocar em dúvida a credibilidade a ser dada aos seus depoimentos anteriores, sobretudo na esfera da cultura brasileira. A imagem em roupa de cima sumária, a pose insinuativa, os apelos implícitos no uso de tecidos com semelhança de pele de animais, a promessa de posar nua, a coloca no paradigma de outras imagens (espécie de entremeios da semiose de que fala Peñuela Cañizal) que, de certo modo, e para uma boa parte do público, relativiza suas verdades e desqualifica suas boas intenções, porque a visibilidade à qual ela se dá a ver é a da mundanidade: ficar nua na Playboy, aparecer de top na primeira página da FSP etc. No entanto, a separação entre o verbal e a imagem está claramente delineada. São os intervalos dos espaços em branco, iluminados pelo conhecimento do contexto sociocultural, que permitem o cruzamento de leituras a que os dois sistemas sígnicos induzem, criando valores conotativos para além do que está explicitamente colocado em discussão. A despeito da totalidade de sentidos que essa organização discursiva permite, lê-se o verbal como verbal e vê-se o visual como visual, buscando em cada um uma carga semântica respectivamente de informatividade ou de documentalidade. Para melhor compreender essa afirmação, é conveniente recorrer ao conceito de arché fotográfico discutido por J. M. Schaeffer, em Imagem Precária (1996: pp.38-42). Para Schaeffer, toda leitura de uma imagem fotográfica se fundamenta na idéia corrente de que ali está representado o real, o “isso” foi de Barthes, pelo fato de se tratar do registro de um traço fotoquímico. Em outros termos, o autor só admite a discussão da imagem fotográfica vinculada ao dispositivo tecnológico, pois desse estatuto material depende o estatuto semiótico do texto visual. Pelo conhecimento da gênese da fotografia, em seu processo sincrônico de captura e revelação, torna-se possível ler a imagem não como desenho ou pintura, mas como impressão fotoquímica do referente e a ela atribuir um valor de indexação dos traços do objeto real na configuração do objeto representado. Ora, a revelação do “arché”, que a distingue do universo de outras imagens, coloca-a paradoxalmente no mesmo rol das manifestações simbólicas criadas pelo homem, na medida em que reconhecer o “arché” da fotografia significa aprender também a decifrá-la como registro de uma realidade. Em síntese, trata-se de uma espécie de contrato entre o destinador e o destinatário que é tributária do valor documental da fotografia, graças, na acepção do autor, ao conhecimento de seu “arché”. Provas dessa condição estariam nos estudos etnográficos, realizados, por exemplo, com os aborígenes australianos (AUMONT 2001: pp. 163-164), que só passariam a encarar as fotos que lhes eram apresentadas, “como fotos”, depois de vê-las em sua produção ou na gênese da captura em máquinas Polaroide. 46

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A tese que se defende é a de que é possível igualmente falar de um “arché” do verbal (ou do pictórico, entre outros). Quer-se dizer com isso, que diante do texto verbal, o leitor contemporâneo, ocidental, coloca-se na posição de espera de informações supostamente veiculadas por esse tipo de discurso. Assim como para P. Charaudeau fica implícito um contrato de cumplicidade entre enunciador e enunciatários no discurso de ficção, pode-se afirmar que o leitor cria certas expectativas diante do texto verbal, principalmente o jornalístico, fundadas na crença de obtenção de informações. Combinando a discussão de Zilberberg sobre a mestiçagem com o postulado de Schaeffer, aqui estendido ao discurso verbal, depreende-se que a leitura do jornal se realiza mediante uma orientação dada não só pelos conteúdos (constituintes temáticos e icônicos, verbais e não-verbais) e topologia dos formantes plásticos, mas também pelos “archés” que guiam predisposições à maneira de ler ou ver um ou outro dos discursos envolvidos na mestiçagem. Embora sempre apreendidos numa primeira abordagem em conjunto, a leitura pode ser feita acentuando ou tonalizando um deles sobre o outro (tonalidade que pode ser dada pelo discurso ou pelo espectador num processo similar ao que Barthes designou studium e punctum ao se referir à apreensão da fotografia). Enquanto o “arché” fotográfico institui uma postura de expectativas no leitor, que é a de reconhecer seu caráter indicial, o “arché” do verbal teria o papel de inscrevê-lo enquanto lugar discursivo de circulação da informatividade mesmo se, tanto no que toca ao fotográfico quanto ao verbal, esses papéis nem sempre se cumpram, ou nunca se cumpram nesses termos. A seguinte afirmação de Zilberberg, a respeito da conclusão estabelecida por Greimas em seu estudo dos indefinidos é útil para entender essa questão da dominância de um discurso sobre o outro: O que observa Greimas é que os termos opostos são inicialmente dados juntos, que são passíveis de acentuação e que a acentuação de um dos termos tende a acarretar a desacentuação de seu companheiro – em nome de um impensável e impensado princípio de consância (2003, p. 81).

Enfim, apesar de serem lidos, vistos em seu todo de sentido, e apesar de conotações serem possibilitadas a partir dessa combinação de texto e imagem, de sua distribuição na página e de sua ênfase a partir de formantes cromáticos e eidéticos diversos, o jornal e a revista têm seus sentidos garantidos pela incidência de um ou outro sistema e dos valores axiológicos a eles agregados pela cultura. Nesse sentido, parece pertinente a teoria tensiva sobre a mestiçagem, que trabalha com as diferentes possibilidades de tonalização de um intervalo canônico, e a idéia de uma especificidade do discurso verbal e do visual que podem ser apresentadas em seu caráter de exclusividade (por exemplo, o valor de um documento escrito ou de uma fotografia); de acentuação de um dos discursos sobre o outro (o texto verbal ilustrado) ou as várias formas da “miscelânea” que vão desde o imbricamento das linguagens até tentativas de fusão plena dos elementos, quando as distinções são anuladas seja em favor da neutralidade das oposições (do tipo nem verbal, nem visual), seja em favor de uma categoria complexa (do tipo verbal e visual) que caracteriza vários discursos sincréticos. Em contraposição à simetria e ao efeito de racionalismo da escrita dados pela FSP (e similares), podem-se relacionar outros tipos de imprensa escrita em que a predominância do visual é evidente, sobretudo da fotografia, em várias REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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modalidades de uso e em mistura aparentemente caótica com o verbal. A esse respeito, deve-se ressaltar o recente artigo de Landowski (2004) sobre as fotos de personalidades políticas veiculadas na imprensa européia e passíveis de serem agrupadas em 4 tipos principais: antropométrica (de caráter mimético), a foto de flagrante delito (largamente explorada nas várias formas de ironia política, em que o modo de ser “político” torna-se foco de crítica), cosmética (similar ao arranjo da foto publicitária) e estética. O autor chama a atenção para o fato importante de que essas modalidades se mesclam com freqüência para a criação de ambivalências e ambigüidades. De acordo com tal perspectiva, as fotos são passíveis de serem analisadas em sua própria força interna, ainda que esta se assente nas vinculações com o verbal, com a diagramação e paginação, inseridas num universo comum de referência sócio-histórica. Sem se deter, no entanto, em um tipo específico de imagem fotográfica, alguns exemplos de imprensa de acentuação do visual fotográfico podem ser fornecidos. Em revistas como Caras, Contigo, e equivalentes, a imagem fotográfica se impõe ao texto verbal, compondo com parte dele, especificamente com os títulos, as legendas e chamadas, uma orientação de leitura fundada apenas na apresentação (Cf. SCHAEFFER 1996: pp. 131-132).

Figura 3 – Revista Contigo, 08/09/2005, nº 1564

Mesmo quando se trata de informações “importantes” para tal modalidade de periódicos (separação, morte, união), as imagens estão ali para deleite do leitor que assiste às diferentes performances do artista em sua vida cotidiana (obviamente não tão cotidiana e nem tão espontânea como se deseja aparentar). Olha-se primeiro as imagens para, em seguida, buscar no verbal as informações que justificam a sua presença na capa. Por isso, a maior parte dos leitores, alguns eventuais em ante-salas de consultórios ou salões de beleza, limitam-se a percorrer as páginas da revista detendo-se nas imagens e em uma ou outra informação sumária que lhes acompanha. 48

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O que oferece interesse maior para o presente estudo, no entanto, são alguns tipos de imprensa em que a síncope do verbal e do fotográfico se dilui em proveito da miscelânea dos dois, estampando na primeira página ou na capa a fase da progressividade de que fala Zilberberg da passagem da contigüidade para a mescla. Um dos jornais mais consagrados nesse sentido, já extinto, foi o paulista Notícias Populares, que expunha lado a lado matérias tão diversas quanto a canonização de um papa, uma descoberta científica e o nascimento de um bebê diabo, em quase sobreposições de textos e imagens. Sua última edição circulou em 1999, dando lugar atualmente ao São Paulo Agora, que mantém a mesma dispersão temática, de caráter popular e popularesco, mas adota uma diagramação mais comportada, com linhas demarcadoras de fronteiras semânticas.

Figura 4 - SP Agora, 07/08/2005, nº 2331. Figura 5 - Diário Popular, Curitiba, 12/08/2005, nº 12701. Figura 6 - Revista Chega Mais, 10/08/2005, nº 105

Outros periódicos similares povoam o imaginário de milhões de leitores em graus distintos de progressividade da mistura em direção a uma quase fusão. Claro que, nesses casos, o verbal deve ser trabalhado tipograficamente para se equiparar, enquanto visual, à força da fotografia, fazendo surgir às vezes um emaranhado de constituintes visuais, cujos contornos só podem ser apreendidos numa primeira mirada como parte irremovível e indecomponível de um todo de sentido. Os exemplos anteriores também participam de uma totalidade impossível de sofrer processos de triagem sob pena de perder sua identidade. A diferença reside no fato de que nos primeiros casos a diagramação topológica adquire uma feição de simetria ordenada, obtida graças a recursos gráficos eidéticos, como barras, linhas, serifas e faixas de separação coloridas ou espaços em branco, que parecem delimitar com clareza os territórios em que cada linguagem converge para a significação do todo. Nos segundos, ao contrário, o olhar se perde no emaranhado visual de letras, fotos, desenhos, gráficos, linhas, cores, manchas de fundo e tantos outros signos e linguagens que é difícil, num primeiro momento, atribuir-lhe qualquer coerência semântica, levando o leitor a exercer um ato consciente de busca de ordem para o fazer interpretativo. Onde estariam as diferenças nesse caso entre a fotocolagem e uma primeira página de jornal como Notícias Populares ou São Paulo Agora, por exemplo? Onde estariam igualmente, as diferenças entre a fotocolagem e a fotografia pós-moderna de que fala D. Baqué? Antes de continuar a discussão é conveniente que se faça uma observação sobre a abordagem feita até agora. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Múltiplos teóricos têm tratado das relações entre texto e imagem, de diversos pontos de vista. Cabe aqui talvez lembrar o clássico artigo de R. Barthes, A retórica da imagem (1990), publicado originalmente na revista Communications em 1964, em que tanto as instâncias de análise da imagem, quanto os elos entre o lingüístico e o icônico são discutidos. Na sua esteira vários estudos foram desenvolvidos, dentro e fora do campo da semiótica discursiva. As vantagens da proposta de estudo da mestiçagem do ponto de vista da semiótica tensiva consiste, porém, para os objetivos do presente ensaio, no fato de que ela é tratada como o percurso de um intervalo tímico, da tonia para a atonia, o que pressupõe a possibilidade, ou a necessidade, de abordá-la a partir de seu andamento. Para Zilberberg, toda aspectualização de um devir é condicionada pelo andamento (pelo “tempo” no sentido musical), e tanto a análise quanto a síntese são condicionadas pela lentidão. O processo da mistura pode ser mais lento ou acelerado: neste, a síncope da contigüidade e da mescla transformam o advir em sobrevir, já que o processo passa sem transição, e principalmente, sem retardamento para o observador, da separação à fusão (2003: p. 77). De acordo com essa acepção, a passagem que se faz entre o texto verbal e as imagens, no caso de um jornal impresso com espaços bem demarcados, é uma passagem lenta: a síncope se faz por etapas, prepara-se o espírito para sair de um universo e entrar no outro, fazendo as devidas ligações, ou melhor, acionam-se os conhecimentos dos devidos “archés” para a apreensão do sentido total. No tipo de jornal Notícias Populares ou São Paulo Agora, em menor grau, e na fotocolagem em maior, “a síncope da contigüidade e da mescla transformam o advir em sobrevir”. As obras de Raul Haussmann (ABCD retrato do artista, BAQUÉ 2003: p. 196) são exemplares a esse respeito.

Figura 7 – ABCD, retrato del artista, 1923 (BAQUÉ, 2003, p. 196)

A presença do verbal nas fotocolagens leva o leitor a procurar ali uma informação, nem sempre passível de decodificação ou de ligação semântica direta com a imagem. O desconforto gerado pelo caos aparente pode então levar à atitude pragmática de buscar em seu arranjo um sentido outro, conotativo, que não se resume a um mero reconhecimento de figuras vebais e não-verbais. Assim, se do lado da decifração, elas oferecem maiores graus de dificuldade, da parte de seus efeitos de sentido, propiciam maior adesão e presença do enunciatário para a depreensão de seus significados.

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Na qualidade de efeitos de sentido dados por procedimentos enunciativos, de exclusividade, de dominância ou de mistura difusa, as distintas modalidades da mestiçagem podem ser avaliadas como diferenças estilísticas, cabendo, para melhor sistematizá-las, seguir o raciocínio de Zilberberg: Quem ‘tira proveito’ da mistura de duas classes? A nosso ver, a resposta depende do tipo de valores dominantes no universo de discurso considerado. Já demonstramos em outros estudos que dois tipos de valores disputam a preferência dos homens: os valores de absoluto, voltados para a exclusividade e a unicidade, e os valores de universo, voltados para a difusão e a universalidade (2003: pp. 90-91).

Assim, os estilos axiológicos aparecem como decisões referentes à coexistência da homogeneidade e da heterogeneidade; em outras palavras, tais estilos definem a proporção que convém conceder a cada uma dessas dimensões semânticas (p. 90).

De maneira similar, os discursos voltados para certos tipos de exclusividade, como o verbal, no exemplo dos livros, ou do pictórico, no caso das artes visuais, marcam valores de absoluto, enquanto os mistos têm uma tendência a afirmar valores de universo, os quais podem criar identidades, respectivamente, de discursos mais selecionados, que exigem competências de iniciação (uma alfabetização para a escrita, uma alfabetização para a leitura do visual etc.) ou de discursos mais acessíveis, “populares”, não só porque permitem rápida decodificação, mas também porque se complementam na tarefa de fazer veicular os sentidos. É óbvio que as separações não são sempre tão determinadas, o que predomina, sobretudo na moderna sociedade das mídias, são as ambivalências, como diz Landowski a respeito das fotografias políticas na imprensa contemporânea. Entre os textos sincréticos atuais integrantes da mídias, porém, parece ser uma constante a tendência para o predomínio de imagens (em especial fotos) nos periódicos que se especializam a tratar da mundanidade (talvez porque não haja nada importante a falar e sim a olhar) e o predomínio do verbal, em interfaces de diferentes graus com as imagens, como se tem demonstrado, na chamada “imprensa séria”. Deixando de lado dois fatores igualmente importantes para a compreensão dos elos entre verbal e fotográfico, quais sejam a questão econômica para a impressão de imagens e os variados recursos estéticos que rompem com qualquer paradigma em relação a tais sistemas significantes, retoma-se enfim a relação entre os jornais e as fotos. Se, de um lado, estão claras as divergências entre a FSP e os outros exemplos, pergunta-se o que fundamentaria uma divisão entre a capa de um jornal como o São Paulo Agora (e similares em todo o país) e a fotocolagem de Haussmann. Ambos se utilizam de texto e imagem, em graus de coexistência de bastante intimidade, o que lhes confere a mesma feição confusa numa primeira abordagem. No plano da expressão, as fronteiras entre os dois sistemas – verbal e fotográfico – obedecem a uma dinâmica do tipo contínuo (fotocolagens) vs descontínuo (SP Agora), este último marcado pelos contornos definidos pelas linhas-fundos que circundam as colunas, sombreiam algumas palavras e as imagens com as legendas. Evidente que esse tipo de diagramação é responsável pela impressão de contigüidade ou junção dadas em cada um dos casos. Falando em termos de Hjelmslev, o casamento na fotocolagem entre o texto verbal e REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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o fotográfico é de perfeita inerência, enquanto no São Paulo Agora, os contatos ainda estão em relações de aderência. O problema aparece quando se encontram fotocolagens como as do brasileiro Gal Oppido, que recorre aos mesmos dispositivos de delimitação eidética de cada um dos discursos, como o demonstra a foto Maria Cristina Martins Barreto (FERNANDES Jr. 2003). A diferença então não se encontra numa disposição topológica exclusiva do jornalismo popular e da fotocolagem, mas nas opções feitas para atender a diversos propósitos, estéticos ou prosaicos, tanto na fotocolagem quanto no periodismo, tal como o evidenciavam alguns jornais anteriores às reformatações modernas de diagramação. Assim, é possível tratar a fotocolagem como uma manifestação discursiva em que o mosaico da mídia impressa contemporânea está explorado em suas potencialidades estéticas. Por outro lado, observam-se traços de diferenciação significativos quando se considera a questão do “arché” mencionada anteriormente. Assim como no jornal se procura a informatividade dada pelo verbal, o exercício de leitura da fotocolagem respalda-se num primeiro momento nessa mesma busca. Frustrada, porém, em múltiplas experiências, pois nem sempre as ligações entre o verbal e as imagens na fotocolagem se fazem por redundância de conteúdos, e nem sempre o verbal tem necessariamente algo a “dizer” nesse espaço, o enunciatário é levado a encará-lo como mais um recurso visual, nas mesmas condições em que se manifestam as outras imagens – fotos ou desenhos – ou seja como profusão de linhas e manchas coloridas que se mesclam tanto em figuras identificáveis quanto em contornos irreconhecíveis. Apenas a totalidade pode realmente ser apreendida em sua condição pregnante. As “fotos pós-modernas”, por sua vez, ou pelo menos os exemplos selecionados de Dominique Baqué, têm a qualidade de proceder a mecanismos de fusão, pelo fato de que a imagem não se reporta a um referente, mas à própria imagem, em processo de auto-referencialidade, conforme se tentou demonstrar em outro trabalho (CAETANO 2005). A imagem da televisão converte-se em foto; a imagem do prédio em construção torna-se a representação vivencial em cubo arquitetônico de estar-entre as obras de uma construção; a imagem do fotograma transforma-se na derrisória figura de si mesma modificada pela inflexão do tempo, e, resultado máximo da reificação da imagem, a foto de um canteiro de obras é instalada no próprio local de captura e convive com ela numa espécie de diluição da categoria espaço-temporal que define as instâncias da fotografia e da realidade: o aqui vs lá e o antes vs agora. Em suma, uma realização da enunciação enunciada enunciativa (FIORIN 2002: pp. 43-47). Pode-se, por conseguinte, concluir que os diferentes graus de mestiçagem correspondem a estratégias enunciativas operadas no nível da forma da expressão dos discursos sincréticos, tendo como fundamento a afirmação de que estes se definem por uma pluralidade de substâncias articuladas na combinação de uma única forma da expressão (GREIMAS & COURTÉS 1986: p. 217, verbete “syncrétique”). No presente caso, tenta-se sistematizar um dos modos de presença da categoria espacial em textos de mistura de vários tipos de linguagens. Assim como é possível então estudar tal categoria em discursos verbais, pode-se igualmente pensar na investigação de sua existência em discursos visuais. A título de ilustração, aventa-se a hipótese de que os discursos da FSP e equivalentes apresentam uma espacialização sistematizada, em que os textos verbais e as imagens se organizam segundo uma mostração da categoria enunciativa espacial este-esse e aquele perfeitamente adequada. Quando isso não acontece, porém, há indícios 52

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de uma clara tendência a criar sentidos conotativos, tais como a ironia, pelo uso das marcações de espaço subvertidas (Cf. FIORIN 2002: p. 285), obtendo-se por exemplo um este, sob a forma de manchete, passível de neutralizar sua oposição com o esse ou aquele de uma imagem a que não se associa na aparência, pelo fato de que tratam de matérias e chamadas distintas: é o que ocorreu na áurea época de fundação do Jornal da Tarde de SP, com a inserção das capas-cartazes, que juntavam ludicamente a manchete de um assunto a uma grande fotografia de outra. Um exemplo pode ser citado como a manchete Portugal: Chefe do Governo está cercado (a propósito da Revolução dos Cravos em 1975) com a fotografia em tamanho de meia página de uma luta de boxe ocorrida na véspera em que o pugilista brasileiro Miguel de Oliveira está acuado no “corner”. Fica aberta aqui a possibilidade de um trabalho mais detalhado nesse sentido a explorar as diversas estratégias de pessoa, tempo e espaço nas mestiçagens verbo-visuais da imprensa, passível de se beneficiar dos avanços já realizados nesse sentido nos textos verbais.

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*Kati Eliana Caetano é docente do Mestrado em Comunicação e Linguagens – UTP/Curitiba/PR.

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IDÉIAS

O MUNDO COMO REFERÊNCIA. SOBRE A MIMESIS DE PLATÃO

Luisa Severo Buarque de Holanda*

Resumo: O artigo procura formar uma concepção do termo ‘mímesis’ em Platão. As hipóteses sustentadas são: que a mímesis platônica supera os limites da estética para revelar uma problemática ontológica; que podemos distinguir dois tipos de mímesis na obra de Platão, chamados aqui de ‘imitação verdadeira’ e de ‘imitação falsa; que a metafísica platônica toma como base a possibilidade de uma imitaçã o verdadeira para estabelecer uma obra cuja forma e conteúdo nos reapresentam a estrutura poética da realidade. PALAVRAS-CHAVE: MÍMESIS, PARADIGMA, IMAGEM Abstract: This article tries to explain the concept of mimesis in Plato. The defended theories are: that platonic mimesis goes beyond the boundaries of aesthetics and reveals an ontological matter; that we can distinguish two tipes of mimesis in Plato’s work, here entitled ‘true imitation’ and ‘false imitation’; that platonic metaphysic considers the possibility of a true imitation to stablish a work whose form and content represent the poetic structure of reality. KEYWORDS: MIMESIS, PARADIGM , IMAGE

O exame do termo ‘mímesis’ na obra de Platão oferece de imediato uma enorme variedade de caminhos de investigação, pois este conceito aparece em muitos contextos e é utilizado para explicar fenômenos diversos. Na argumentação que pretendemos realizar aqui, as hipóteses sustentadas serão as seguintes: em primeiro lugar, que a ‘mímesis’, na obra platônica, não diz respeito unicamente a uma questão estética, mas supera os limites da imitação artística para revelar uma problemática ontológica. Em segundo lugar, que podemos observar dois tipos de ‘mímesis’ em Platão, chamados no presente contexto de ‘imitação verdadeira’ e de ‘imitação falsa’. E, em terceiro lugar, que o próprio pensamento platônico toma como base o conceito de ‘mímesis’ e a possibilidade de uma imitação verdadeira para estabelecer uma metafísica estética, em que sua própria obra, tanto em termos formais quanto em termos de conteúdo, nos apresenta uma visão artística do mundo e uma estrutura poética da realidade.

A Mímesis Tradicional e a Mímesis Platônica 1 Cf, Paidéia, pg 836, Paradigma e Mímesis.

Segundo Jaeger em seu comentário sobre a República,1 Platão herdou da Grécia primitiva dois conceitos, aceitando-os e ao mesmo tempo transformando-os: o conceito de paradigma e o de mímesis, ou ainda, de modelo e de imitação. A pai-

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déia grega mais antiga era inteiramente baseada na suposição de que a educação se realiza a partir da imitação de modelos. Os paradigmas míticos e históricos eram padrões de comportamento, e essa era a tarefa educadora da poesia. Platão não nega essa suposição. Com efeito, o aprendizado na República acontece também por meio da imitação, e é precisamente por isso que a poesia deve ser exaustivamente examinada e controlada. A questão poética, então, tal qual aparece na República, está longe de ser analisada a partir de uma perspectiva estética. A análise é puramente moral e ética, e nos ensina muito mais sobre a natureza humana do que sobre a natureza da poesia; e o que ela revela é precisamente a natureza imitadora da alma humana que, por não saber inicialmente seu ethos, seu lugar adequado e sua função conveniente, tem grandes possibilidades de enganar-se. Esse engano aparece como hybris, como ignorância, como injustiça e como falsidade. A imitação não é, inicialmente, algo condenável em si. É, pelo contrário, algo necessário, mas cuja necessidade pode ser fonte também de atitudes condenáveis. A imitação é, para o homem, imprescindível enquanto meio de aprendizado, de desenvolvimento, de formação, e deve ser bem direcionada e bem elaborada para que não cause maiores danos. Há uma passagem na República que trata da educação e que pode auxiliar enormemente na compreensão desse desdobramento do conceito de mímesis. No Livro II, encontra-se a descrição de um homem perfeitamente injusto que parece ser justo e que, “ao cometer as maiores injustiças, granjeia para si mesmo a mais excelsa fama de justo”. Esse homem é confrontado com o homem justo que “não quer parecer bom, mas sê-lo”, e que, apesar de justo, tem fama de injusto e não recebe honrarias.2 Na expressão parece ser podemos ler também o sentido de: um homem injusto que finge ser justo, ou seja, que imita exteriormente o homem justo. Essa passagem esclarece o motivo da condenação de Platão a um tipo de imitação, que é o parecer ser, sem ser realmente. Imitar, certas vezes, é parecer ser algo que não se é, assumir um disfarce ou sustentar um fingimento. É ter meramente a aparência de algo, mas não a sua realidade nem a sua essência. Esse sentido de imitação, então, está na base do estabelecimento da oposição entre ser e aparecer, entre a essência e a aparência, e é por isso um problema ontológico. Apelidemos de ‘imitação falsa’ esse sentido de mímesis. É também ele que justifica a condenação platônica à pintura e à escultura, por exemplo, já que elas produzem imagens que se parecem com as coisas, mas que não são, e que imitam apenas seus exteriores, deformando as reais medidas para que as imagens pareçam com nossas perspectivas e pontos de vista. É ainda esse tipo de imitação que permite a reprimenda platônica ao discurso falso tanto do sofista quanto do poeta, que modelam suas palavras às opiniões gerais, da multidão, deixando de modelá-las segundo a verdadeira essência dos entes. De fato, no diálogo Sofista, na ocasião das divisões dos gêneros para obter a definição do sofista, este último e os artistas (pintores, poetas etc) são descritos de modo muito semelhante, e a chamada ‘arte de exibição’ é comparada à sofística em vários sentidos. Por isso, ambas as técnicas – a sofística e a artística em geral – são conjuntamente incluídas em uma ‘arte que produz imagens, ou mimética’,3 cuja subespécie apelidada de ‘arte do simulacro’ se divide em simulacros ‘por meio de instrumentos’ e simulacros onde ‘a pessoa é um instrumento’. Esse último divide-se ainda em ‘imitações onde a pessoa conhece o objeto imitado, ou mimética sábia’, e ‘imitações onde não se conhece o objeto imitado, ou doxo-mimética’. Esta é dividida entre ‘imitação ingênua’ e ‘imitação irônica’, e aqui encontra-se finalmente o sofista. 56

2 República, 360 e – 361 e.

3 Cf. Sofista, 235 c.

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Contudo, a própria divisão operada no Sofista, junto com as afirmações acerca de um tipo de imitação chamado aqui de ‘imitação falsa’ clamam por um esclarecimento: qual seria, afinal, o outro tipo de imitação? Se o sofista é encontrado dentro da subdivisão apelidada de doxo-mimética, por oposição a uma mimética sábia, é necessário delinear de forma mais precisa que imitação é admitida por Platão, a ponto de ser chamada de sábia.

Mimética Sábia No Livro III da República encontra-se a seguinte afirmação com relação aos guardiões:

4 República, 395 c.

Se imitarem, que imitem o que lhes convém desde a infância – coragem, sensatez, pureza, liberdade, e todas as qualidades dessa espécie. Mas a baixeza, não devem praticá-la nem ser capazes de a imitar, nem nenhum dos outros vícios, a fim de que, partindo da imitação, passem ao gozo da realidade. Ou não te apercebeste de que as imitações, se se perseverar nelas desde a infância, se transformam em hábito e natureza para o corpo, a voz e a inteligência?4

Se aprendemos pela imitação é porque, de tanto imitarmos, acabamos por incorporar aquilo que imitamos, ou seja, a imitação influencia o caráter do imitador. O que se imita desde a infância se transforma em hábito e natureza; por conseguinte, devemos, e essa é uma recomendação explícita, imitar homens virtuosos em ações vituosas, para nos tornarmos iguais ou superiores a eles. Assim sendo, Platão deixa entrever, de modo paradoxal, que nesses casos pode não haver diferença entre imitar e ser. Entretanto, essa colocação, de certa forma, funde duas imitações diferentes: a imitação proposital e nada ingênua de quem quer fingir algo, - como a imitação do ator, por exemplo - , e a imitação do aprendizado que, como passo necessário dentro de um caminho, influencia e deve influenciar aquele que pratica a imitação. Logo, se tanto o que realmente almeja algo quanto o que finge almejá-lo precisam igualmente da imitação, será que é possível haver alguma distinção entre um homem honesto e um homem que imita a honestidade e os atos honestos? Talvez seja preciso pensar na diferença entre aquele que já avistou – para darmos seguimento à metáfora do olhar estabelecida na República - a essência da honestidade e aquele que ainda não o fez, e que pode estar, ou não, a caminho de fazê-lo. Mas o que é a essência da honestidade senão a idéia de honestidade? O homem honesto, que avistou a essência da honestidade, que foi capaz de compreendê-la, de enxergá-la tal como ela verdadeiramente é, é o homem que imita a idéia de honestidade. É esse o segundo sentido da mímesis em Platão que é preciso salientar. A diferença entre o que estou aqui chamando de ‘falsa imitação’ e o que chamo de ‘verdadeira imitação’, que também poderia chamar, respectivamente, de ‘má imitação’ e de ‘boa imitação’, já que de fato há um julgamento moral presente nessa descrição, é a diferença entre o ‘parecer ser, sem ser’ e o ‘parecer ser, sendo verdadeiramente’. Se precisamos imitar para aprender, é pela imitação da idéia que aprendemos de fato. Ou seja: conhecer a idéia, para o homem, pressupõe imitá-la, e nessa hipótese se baseia a afirmação de que existem dois tipos de imitação em Platão. Essa afirmação, aliás, é corroborada pela seguinte passagem: REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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“... olhando e contemplando objetos ordenados e que se mantêm sempre do mesmo modo, [...] é isso que imitamos e a isso nos assemelhamos o mais possível. Ou achas que há alguma maneira de não imitar aquele com quem convivemos, se o admirarmos?5

A própria novidade platônica que ressalta a ilusão e o erro das imitações, portanto, precisa de um canal aberto para a possibilidade do conhecimento, gerado igualmente pela mímesis, mas por uma mímesis verdadeira. A imitação verdadeira é a imitação da idéia, do paradigma, da referência, do mais perfeito modelo. É o imitar o que se deve imitar. Nesse dever entra a problemática da educação, e nela a da poesia na República. A existência de uma imitação verdadeira em Platão pode ser igualmente demonstrada pela oposição entre a produção artística e a confecção de artefatos e instrumentos. O abismo que separa esses dois tipos de produção e de construção - a do artista e a do artesão - é o fato de que o primeiro, segundo Platão, parte apenas do olhar mais imediato, do formato e das cores, por exemplo, para realizar sua obra, e o segundo parte de uma noção mais profunda daquilo que será confeccionado. No ato de produção de uma cama, por exemplo, é preciso ter em mente tanto sua utilidade e seus propósitos, quanto suas dimensões, seus possíveis materiais etc. É preciso saber, portanto, a que finalidade se destina aquele objeto, quem dele usufruirá, qual a melhor maneira de executá-lo etc. Sendo assim, este produtor precisará conhecer a definição do objeto que executará, isto é, seu conceito e sua idéia. Está claro que a idéia também inclui a forma, também é ‘eidos’, mas uma forma com conteúdo, com recheio, enquanto que a forma imitada pela aparência se restringe a uma imagem oca, vazia. No décimo livro da República, em que o autor explora de modo exaustivo a idéia da mímesis artística, contrapondo-a à produção do artesão, é possível encontrar uma excelente demonstração de que esta última também pode ser considerada mimética.6 Nesse contexto, Sócrates compara um hipotético artífice que fosse capaz de tudo criar quando andasse pelo mundo com um espelho na mão, a refletir todas as coisas que encontrasse, com um marceneiro, que não executa a própria idéia da cama que fabrica, mas algo de semelhante a ela. O primeiro, o que tudo reflete por meio de um espelho, e que representa o poeta, produz apenas objetos aparentes, desprovidos de existência real. Mas o segundo, igualmente, não pode fazer o que existe, a idéia, mas algo que, ao se assemelhar ao que existe, também não constitui uma realidade completa. Ambos, portanto, são apenas semelhantes a um outro objeto, que para eles constitui uma referência. O exemplo do marceneiro em contraposição ao artífice que tudo reflete é bem claro quanto a isso porque, ao afirmar que o marceneiro faz uma cama semelhante à cama que existe, liga diretamente este tipo de produção à imitação. Fazer algo semelhante é imitar, e porque imita a idéia torna-se imitação verdadeira. A diferença entre esta e a imitação falsa fica evidente a partir do exemplo platônico: uma procura se assemelhar à própria idéia, ao mais elevado, ao mais real, e a outra procura se assemelhar a algo que já é em si uma semelhança. Procura, portanto, imitar algo que já é uma imitação, tornando-se assim uma imitação duplamente afastada da realidade, ou ainda, tornando-se duas vezes mais mimética. Em suma, podemos dizer que a imitação verdadeira, correspondendo à essência e não apenas à aparência, simultaneamente difere e se assemelha à imitação falsa. Difere porque direciona seu olhar para a idéia, mas se assemelha porque o homem aprende e conhece imitando, assim como finge e desconhece imi58

5 República, 500 c.

6 República, 596 c.

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7 Crátilo, 408 c.

tando. Ao imitar, pode estar apenas parecendo ser algo que não é, ou pode estar, pelo contrário, compreendendo e se apropriando daquilo que imita. Um outro bom exemplo da dupla acepção da mímesis platônica é o Crátilo. Nesse diálogo, cujo tema é a justeza dos nomes, a linguagem é definida como algo que, utilizando-se dos sons, tanto é capaz de imitar as essências das coisas, assemelhando-se a algo divino, quanto é capaz de ‘permanecer embaixo com o comum dos homens’,7 produzindo fábulas e mentiras. Sendo produto e instrumento humano para o conhecimento do mundo, a linguagem participa também daquela natureza dupla e dúbia do homem, capaz do acerto e, justamente por isso, capaz do erro. É imitação das essências das coisas quando acerta e quando habita os cumes divinos. Quando erra e habita as profundezas, criando fábulas, ilusões, ficções e mentiras, imita igualmente, mas dessa vez imita as meras aparências e sombras de coisas. Estão aí, portanto, na duplicidade da linguagem e da natureza humana, precisamente os dois sentidos de mímesis delineados anteriormente: a linguagem, imitando a essência, é mais um exemplo de mímesis verdadeira. A própria linguagem, imitando a aparência, é mais um exemplo de mímesis falsa. O lógos, portanto, assim como a téchne, sempre imita, quer seja verdadeiro, quer seja falso. Essa conclusão só faz ratificar a hipótese de que é próprio do homem imitar, tanto quando aprende e conhece quanto quando desaprende e desconhece. A mímesis, sendo própria da natureza humana, deve ser, portanto, tão dupla quanto ela.

Conclusão - o conceito de mímesis em Platão: Uma observação geral sobre os deuses do mundo helênico nos faz notar que o divino grego não é o oposto do humano, mas é um exagero do humano: suas características não passam de características humanas superlativas. Em Platão, o divino não deixa de ser um exagero do humano, mas não de toda e qualquer característica humana; apenas das melhores dentre elas. São os deuses, por conseguinte, as eternas referências que possibilitam o aprimoramento do homem. Do mesmo modo, a idéia não é o contrário do fenômeno, mas é o fenômeno em todo seu esplendor e com toda nitidez. O ente temporal, por sua vez, como cópia ou imitação imperfeita da idéia, reproduziria seus traços essenciais, procurando corresponder ao máximo ao seu modelo, mas sendo incapaz de lhe corresponder totalmente. A relação entre imitação e modelo em Platão, portanto, deve ser entendida como um remetimento. O modelo é uma referência. Mais do que isso, ele é uma boa referência, ou a melhor referência possível. A imagem, por meio da imitação, refere-se a ele, e nessa referência precisa tomá-lo como base, como ponto de partida, como padrão de qualidade, por assim dizer. A imitação precisa estar à altura do modelo imitado, baseando-se nele, remetendo-se a ele e referindo-se a ele. A noção de referência é ao mesmo tempo, no tocante à natureza humana, a visão de que o homem, ao produzir, precisa de um ponto de partida. Imitar é partir de algo. Seu resultado pode ou não reproduzir um conteúdo, mas a ação sempre tem início tendo em vista algum modelo. É justamente nesse ponto que a presente hipótese se apoia para afirmar que a idéia da imitação de um paradigma se reflete na metafísica, ou ontologia, platônica de forma profundamente marcante. Em primeiro lugar, note-se como ocorre, no sistema platônico apresentado no Timeu, por exemplo, a própria geraREVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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ção natural, da physis. Assim como a idéia de cama é só uma e cada marceneiro executa uma cama individual baseando-se na idéia natural de cama, a idéia do universo é também única, e todo o cosmo surgiu por obra de um demiurgo, que o produziu tendo em vista um modelo imutável, sempre igual a si mesmo. Esse demiurgo nada mais é do que um artífice natural, que produz os entes físicos ao modo dos entes técnicos. Os conceitos de imitação e de modelo, portanto, foram evidentemente transportados para a própria estrutura da realidade, de modo que a visão platônica de mundo parece basear-se inteiramente neles. No Timeu há uma enorme variedade de exemplos que demonstram o quanto a idéia de mímesis é atuante na explicação da origem do universo e do mundo, recorrendo o autor inúmeras vezes à idéia de uma formação à imagem e semelhança de um modelo, e também o quanto a atividade artística é referência para a atividade de criação natural, isto é, do demiurgo.8 Nessa estrutura de mundo, em que as coisas nascem e surgem sempre como referências à idéia, os entes são imagens e reflexos de suas formas reais. O próprio mundo é imagem, sombra e reflexo de seu ser real, portanto imitação de um modelo posta em prática por alguém que soube direcionar o olhar de forma adequada. A partir do que foi afirmado acerca do aprendizado humano e da estrutura icônica do cosmo, nota-se que a metafísica platônica, mais do que duplicar o mundo, nos coloca sempre na posição de ter uma tarefa a realizar. O mundo como referência a algo outro não necessariamente retira a importância do nosso mundo, pois o fato a ser frisado não é o outro, mas a necessidade de que o nosso se assemelhe a algo que é mais perfeito. Essa tarefa, então, consiste em estar sempre mirando uma referência para que o processo não estanque. Não se pode esquecer, além disso, que na República o modelo não precisa ser atingido,9 pois o próprio conceito de paradigma implica na impossibilidade de sua plena realização, a não ser, quando muito, de forma aproximada; quanto menos dele nos distanciarmos, tanto melhor será para o nosso exercício de aprimoramente, mas ainda que, no fim das contas, o modelo se mostre inatingível, ele não deve ser jogado fora. Desprezar o modelo significa a falta de referências e de parâmetros, portanto a falta de um ponto de partida. A falta de pontos de partida, por sua vez, significa a carência de um princípio, isto é, de um fundamento. A ontologia platônica dá fundamento ao mundo, não a título de desvalorização, mas a título, talvez, de exortação. E é necessário ressaltar que ela não parte apenas de uma necessidade moral, mas parte especialmente de uma observação do modo de ser das coisas, que, com efeito, sempre surgem de algo, sempre têm começo e princípio, e sempre se transformam a partir de um ponto inicial. É por isso que o chamado “outro mundo”, ou a idéia, não é nem poderia ser o contrário do mundo dos fenômenos, mas apenas uma exacerbação de tudo que nele há de melhor, caso contrário não se tornaria modelo a ser realizado aproximadamente, mas negação de qualquer possibilidade mimética. Se for possível, portanto, descrever uma espécie de esquema platônico de mundo, comum aos tão variados diálogos, nota-se sobretudo um tipo de jogo no qual a realidade por vezes se esconde atrás de sombras e por vezes se apresenta como modelo a ser refletido pelos mais diversos espelhos: a natureza, a técnica, o conhecimento, a linguagem. O mundo, então, como imagem da realidade, é por sua vez retratado e representado pelas sombras ilusórias da arte, que por mais enganadora que possa parecer, e mesmo sendo imagem da imagem, serve ela mesma como modelo para esse próprio esquema de mundo. Esse jogo, portanto, 60

8 Timeu, 37 c: “Quando o pai percebeu vivo e em movimento o mundo que ele havia gerado à semelhança dos deuses eternos, regozijou-se, e na sua alegria determinou deixá-lo ainda mais parecido com seu modelo.” Timeu, 41 c: “... aplicai-vos, na medida de vossa capacidade, a formar tais seres, imitando nisso meu poder por ocasião de vosso nascimento”. Timeu, 50 b: “Suponhamos que um artista modelasse com ouro figuras das mais variadas formas, sem parar de passar de uma forma para a outra, e, ao mostrar a alguém uma dessas figuras, se essa pessoa lhe perguntasse o que era aquilo, a resposta mais próxima da realidade seria declarar que é ouro...” Timeu, 75 b: “Mas o certo é que os artistas de nossa formação ...” Timeu, 92 c: “Havendo recebido em grande cópia seres vivos, mortais e imortais, este mundo se tornou um animal visível que abrange todos os animais visíveis, um deus sensível feito à imagem do inteligível.”

9 República, 472c: “Lembremos que chegamos a este ponto para indagarmos a natureza da justiça e da injustiça. Se descobrirmos a primeira, entenderemos que o homem justo em nada difere dela, mas em tudo lhe é semelhante, ou estaremos satisfeitos se se aproximar bastante dela e dela participar mais do que os outros? O segundo caso. Logo, não queríamos demonstrar que esse homem perfeitamente justo existe, mas como seria se existisse, para assim se tornar um paradigma. Um pintor que pinta um modelo do que seria o mais belo dos homens não vale, por não poder demonstrar a sua possibilidade de existência? Nós também não falamos menos bem, estivemos a dar um padrão, modelo, paradigma. (...) Não precisa, portanto ser perfeitamente realizado na prática tudo quanto foi descrito, mas se encontrarmos algo aproximado já estaremos satisfeitos.” República, 592 b: “Referes-te à cidade que edificamos há pouco na nossa exposição, àquela que está fundada só em palavras, pois creio bem que não se encontra em parte alguma da terra. Mas talvez haja um modelo no céu, para quem quiser contemplá-la e, contemplando-a, fundar uma para si mesmo. De resto, nada importa que a cidade exista em qualquer lugar, ou venha a existir, porquanto é pelas suas normas, e pelas de mais nenhuma outra, que ele pautará o seu comportamento.”

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10 Político, 300 c: nessa passagem, Platão apresenta as constituições como “imitações da verdade traçadas o melhor possível por aqueles que sabem”. 11 Leis, VII, 817 b. “Ó melhores dentre os estrangeiros, lhes diremos, nós também, de acordo com nossa habilidades, somos poetas trágicos, e nossa tragédia é a melhor e mais nobre; pois todo o nosso estado é uma imitação da melhor e mais nobre vida.” 12 No Crátilo, 424 d – 425 b, Platão compara a semelhança pelo nome e o ato de nomear à semelhança pela pintura e o ato de pintar. A mistura, união e composição dos elementos da fala (letras e sílabas) é como a mistura, união e composição dos elementos da pintura (as cores). No Timeu, 28 b, o autor afirma: “Quando o artista trabalha em sua obra, a vista dirigida para o que sempre se conserva igual a si mesmo, e lhe transmite a forma e a virtude desse modelo, é natural que seja belo tudo o que ele realiza. Porém, se ele se fixa no que devém e toma como modelo algo sujeito ao nascimento, nada belo poderá criar. (...) Mas quanto ao autor e pai deste universo, (...) qual dos dois modelos tinha em vista o arquiteto quando o construiu: o imutável sempre igual a si mesmo ou o que está sujeito ao nascimento?”

13 Cf. Górgias, 448 c e 467 c: “Para usar o teu estilo ao falar contigo, meu caro amigo, não censures o que digo.” A paronomásia seria um dos meios de embelezamento do estilo recomendados pelo tratado de Pólo, que Platão parodia.

14 Exemplos: discursos de Trasímaco, na República, e discursos de Cálicles, no Górgias.

ao parecer localizar a arte por baixo de uma certa escala de realidade, coloca-a como referência para a própria estrutura da realidade, dando assim uma volta completa. Ou seja: a condenação de Platão à arte deve ser relativizada, não no sentido de minimizar o discurso explicitamente condenativo, mas na medida em que esta, por meio de uma inversão possibilitada precisamente pelo conceito de mímesis, torna-se parâmetro para todas as atividades, gerações e produções da natureza e da humanidade. O jogo não deixa de ser um círculo, em que a idéia serve de modelo para o mundo, que serve de modelo para a arte, que serve de modelo para a estrutura geral. E a mímesis é a atividade que articula toda essa relação entre modelo e produção. Como intermediadores de tal jogo de modelo, imitação e produção, encontram-se: o demiurgo – arquiteto do mundo, no Timeu, – o artesão – que confecciona artefatos, na República, – o filósofo – que produz conhecimento, também na República, – o legislador, ou plasmador de nomes, – que forja a linguagem, no Crátilo, – o artista – criador de poesia, música, pintura e escultura, na República, – o legislador – que traça as constituições escritas, no Político10 e nas Leis,11 – e até mesmo o sofista – produtor do discurso falso, no Sofista. Todos os diálogos citados mostram de alguma forma que a arte é modelo das atividades humanas e naturais em geral e que a grande originalidade de Platão, e talvez sua maior característica, consiste em forjar em sua literatura metafísica uma visão artística da realidade.12 Dentro desse jogo de espelhamento, modelagem, projeção e reflexo que constitui a realidade platônica, a sua obra deveria, igualmente, refletir tal estrutura de mundo. Isso equivale a dizer que a noção de mímesis precisa determinar o próprio estilo do filósofo. Em formato de diálogo, estilo direto em que o autor não se coloca como personagem, mas escolhe as personagens mais adequadas para cada discussão, Platão precisa imitar e parodiar, ou ironizar pela imitação, o estilo de fala e a estrutura de linguagem de cada uma. Em certos casos, o pastiche é explícito,13 o que faz com que muitas vezes seja necessário, na interpretação de Platão, verificar qual personagem, e com que propósito, está proferindo cada definição. Alguns diálogos são considerados como perfeitas obras dramáticas, trágicas ou cômicas, conduzidas de modo a envolver o leitor em sua trama, e divididas em atos, incluindo prólogos e interlúdios, que influem positivamente na persuasão do interlocutor e na compreensão da obra. Em tais diálogos, as personagens são particularmente bem construídas, o que fez com que Platão fosse considerado por muitos comentadores como estando, sob esse aspecto, no mesmo patamar dos grandes dramaturgos da história. Sua obra aparece, portanto, sob um formato literário-teórico, que espelha uma metafísica poética e apresenta um conteúdo ontológico em forma artística. Em outras palavras, pode-se afirmar que, imitando a própria estrutura reflexiva da realidade, a obra de Platão tem como conteúdo o espelhamento de tal estrutura e como forma um meta-discurso mimético. A República, nesse sentido, aparece como um jogo de espelhos em que um discurso direto utiliza discursos diretos e indiretos para falar dos próprios modos de discurso. Esse jogo espelha a própria relação entre idéias, essência e conceito, de um lado, e existência e aparência, de outro. Se a condenação ao discurso mimético de homens inferiores se aplica à obra do próprio autor em certas passagens,14 a própria condenação se relativiza e a obra como um todo se salva, por meio de uma estratégia de imitação e de reflexão.

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Com o auxílio da visão platônica de que a própria estrutura do mundo é mimética, fica também justificada a necessidade humana de arte, de técnica e, em suma, de imitação. Se tal necessidade foi o ponto de partida para o esquema platônico, ela mesma, inversamente, torna-se fundamentada a partir do esquema. O homem, enquanto ente privilegiado – por ser possuidor de uma porção divina na alma -, reflete em si mesmo esse jogo de reflexos que é a realidade e imagina o mundo como imagem de um modelo e como obra. Talvez, se entendermos a transcendência e a participação em Platão mais como espelhamento e como atividade artística de um possível mediador, possamos driblar os problemas inerentes à extrema valorização da realidade do inteligível e da desvalorização do sensível, do que se move e se transforma. Talvez o movimento não tenha menos realidade do que o repouso, mas seja um espelho que, não podendo refletir tudo ao mesmo tempo, se direciona, ora para um lado, ora para outro. Essa impossibilidade de reflexão simultânea justifica também que o tempo seja “a imagem móvel da eternidade”,15 espelhando uma coisa de cada vez, ou cada coisa a seu tempo. O mundo platônico, desta forma, se torna referência, o que possui um duplo significado. De um lado, o mundo como referência é o mundo que tem princípio e fundamento; é o mundo que parte de algo, portanto que tem projeto e se refere a uma outra realidade – o que constitui o significado metafísico. De outro lado, o mundo como referência é em si mesmo uma pauta e um projeto para a realidade produtora do homem que, com obras, produções, invenções, descobertas e ações, espelha as imagens fornecidas pela natureza.

15 Timeu, 37 d.

BIBLIOGRAFIA: PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. Sofista. In Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1983. Protagoras, Euthydème, Gorgias, Menexène, Ménon, Cratyle. Paris: GF-Flammarion, 1967. Timeu, Critias. Belém: Universidade Federal do Pará, 1986. O Banquete. Lisboa: Edições 70, 1900. Apologia de Sócrates. Lisboa: Guimarães Editores, 1988. Górgias. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989. Phaedrus and Letters VII and VIII. London: Penguin Books, 1986. Statesman, Laws. London, Encyclopaedia Britannica, INC., 1952. JAEGER, Werner. Paidéia, A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1995. NIETZSCHE, Friedrich. Introduction à la Lecture des Dialogues de Platon. Combas: Éditions de l’Éclat, 1991. RIBEIRO, Luís Felipe B. Fundamentação Crítica da Metafísica Platônica das Idéias. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997. LASSEGUE, M. L’imitation dans le Sophiste de Platon. Dans: Aubenque, P. (Dir.) Études sur le Sophiste de Platon. Napoli: Bibliopolis, 1991, p. 247 – 265. VILLELA-PETIT, M. La question de l’image artistique dans le Sophiste. Dans: Aubenque, P. (Dir.) Études sur le Sophiste de Platon. Napoli: Bibliopolis, 1991, p. 53 – 90.

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DICIONÁRIOS: DICTIONNAIRE GREC-FRANÇAIS. A. Bailly. Paris, Hachette, 1989. DICTIONNAIRE ÉTYMOLOGIQUE DE LA LANGUE GRECQUE. P. Chantraîne. Paris, Klincksieck, 1990.

*Luisa Severo Buarque de Holanda é doutoranda em Filosofia pela UFRJ, atual bolsista da Capes.

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CINEMA

FUTUROS HUMANOS E URBANOS NO CINEMA: A CONSTRUÇÃO IMAGINÁRIA DO HOMEM EM FILMES FUTURISTAS Eduardo Duarte* Arthur Gomes**

Resumo: Futuros Humanos e Urbanos no Cinema: A Construção Imaginária do Homem em Filmes Futuristas é resultado de uma pesquisa sobre as construções da imagem do homem do futuro inserido nos centros urbanos, a partir das obras de ficção cinematográficas. Esse trabalho toma o cinema como uma rica fonte do imaginário urbano tecnológico que projeta imagens dos homens, seus corpos e suas subjetividades nesses espaços; apresenta as expectativas contemporâneas da espécie humana quanto ao futuro de sua relação com as tecnologias que redesenham o próprio homem, sugeridas nos medos, esperanças, alegrias e perplexidades representados na ficção científica. PALAVRAS-CHAVE: IMAGINÁRIO; FICÇÃO CIENTÍFICA; FUTURO Abstract: Human and Urban futures in the Movies: The Men’s Imaginary Construction in Futuristic Movies is resulted from a research about the image of the man’s of the future inserted in the urban centers, starting from the cinematographic fiction works. This paper takes movies as a rich source of the imaginary technological urban that projects men’s images, their bodies and their subjectivities; this paper introduce the contemporary expectations of the mankind about the future; their relationship with the technologies that redraw the own man, that comes up on fears, hopes, happiness and perplexities in science fiction. KEYWORDS: IMAGINARY; SCIENCE FICTION; FUTURE

Na forja em que se molda o tempo moldam-se também as disposições físicas e emocionais que configuram sincronicamente o cenário cultural. Na forja em que se molda o tempo surgem aspirações, medos e angústias; surgem alegrias e entusiasmos; surgem perplexidade e dúvida. Em cada tempo uma infinidade de momentos se aglutina em tempos pessoais distintos, em construções pessoais conflitantes, em expressões coletivas que se auto organizam e são interpretadas pelas leituras intelectuais, também marcadas pelo tempo de cada pesquisador. Do ponto de onde se olha um momento eis o encontro de infinitos tempos, representados pelo instante da produção da obra e pelo instante de observação do pesquisador. Qualquer hermenêutica da cultura coloca-se nessa encruzilhada ontológica, ela emerge da legitimação do tempo de milhares de condições subjetivas. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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As condições subjetivas contemporâneas que nos interessam nessa pesquisa falam de um outro tempo; falam de futuros imaginados. Naturalmente, o que pensamos sobre o amanha tem fundamento direto com o que somos hoje. São futuros projetados pela ficção científica levando as últimas conseqüências possibilidades tecnológicas testadas hoje e que já provocam forte impacto no imaginário contemporâneo. Por informação ou desinformação o mito do futuro tecnológico se fortacele a cada dia, mas não com as mesmas promessas de um progresso feliz, feitas para os habitantes do mundo do início da era moderna. Há algo de profundamente sinistro nas impressões dos que assistem a esses filmes. O que nos faz intuir o cinema como uma ferramenta para perscrutar o que se pensa do futuro, pois os filmes não são eco do que pensam seus roteiristas dissociados do que pensam seus públicos. Tratam-se de pensamentos e informações agenciados em toda a esfera da comunicação Ocidental, pelo menos. É nesse sentido em que surge o cinema nessa pesquisa. É importante considerar também que o dispositivo cinematográfico possui um lugar clássico no Imaginário Moderno. A técnica e o sonho andam, de nascença, a par. Em nenhum momento de sua gênese e do seu desenvolvimento se pode confinar o cinematógrafo ao campo exclusivo do sonho ou da ciência.1

Sintetizar toda essa observação num artigo seria impossível, o que nos fez recortar a análise de mais de 80 filmes em 04 exemplares representativos dos campos cognitivos que operam no imaginário dos impasses que o Homo sapiens estaria construindo para sua espécie. O duelo final entre os homens e as máquinas é representado pelos animes O Primeiro e o Segundo Renascer, da série Animatrix (Andy e Larry Wachowski, 2003); a máquina que reconstrói a si mesma na direção de tornar-se um humano é apresentada no filme O Homem Bicentenário (Chris Colombus, 1999); o homem que biogeneticamente modifica suas gerações futuras em direção ao ideal de perfeição da espécie é visto no filme Gattaca (Andrew Nichol, 1997); a fusão completa que dissipa os contornos das condições de homem e de máquinas será apresentada no filme Blade Runner (Ridley Scott 1992). Esses quatro campos cognitivos emergiram na observação dos questionários dos alunos que assistiram aos filmes exibidos durante o período da pesquisa e sobre essa emergência nascem as considerações desse ensaio, no recorte ilustrativo apresentado acima. Nesse sentido, considerando que as criações ficcionais, como as cinematográficas que serão estudadas, são fontes inesgotáveis de registros, de medos, de ansiedades, de receios, expectativas, alegrias, expressões de um imaginário coletivo; posicionamos nosso problema: de que forma, através do cinema, se desenham as imagens do homem do futuro? Como esse imaginário poético das imagens revela as expectativas do imaginário coletivo sobre o futuro da humanidade? Quais as transformações éticas e orgânicas que são projetadas por esse imaginário para o homem? 66

1 MORIN, Edgar Morin. O Cinema ou o Homem Imaginário – ensaio de antropologia. Lisboa: Moraes editores. 1980. pg.21.

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Pressão Imaginária Gilbert Durand durante um ciclo de palestras realizado em Lisboa em 1981, destacou ser esse período histórico da civilização Ocidental um momento de forte pressão imaginária, resultado dos bloqueios à imaginação sofridos séculos atrás:

2 DURAND, Gilbert. Mito, Símbolo e Mitologia. Editora Presença, Porto, 1982. p.15.

3 MORIN, Edgar. O Paradigma Perdido – A Natureza Humana. Portugal, Publicações Europa-América, 1991. p.128.

Com efeito nós entramos desde há algum tempo - com nós quero referir-me a nossa civillização européia, para não dizer Ocidental - no que se pode chamar uma zona de alta pressão imaginária. Começou progressivamente com a eflorescência romântica no século XIX e, nos nossos dias, certamente, os meios audio-visuais, sobretudo o cinema, amplificaram este clima - trata-se de um clima, pois trata-se de alta pressão!-, este clima de alta pressão no qual se compromete toda a cultura se não toda a civilização Ocidental.2

Um dos índices dessa inflação do imaginário estaria no gigantesco desenvolvimento de tecnologias para a reprodução da imagem que se deu nos dois últimos séculos, da descoberta da fotografia às estações de multimídia. Durand continua argumentando que essa reviravolta dada pela imaginação é o que se pode chamar de uma ressurgência do mito no nosso século, sempre que o homem se vê tolhido ao exercício “orgânico” da imaginação ela descobre formas de ultrapassar a represa e se manifestar. O que demonstra a forte dependência dos universos do real e do imaginário, e da constante alimentação mútua. Edgar Morin comenta: O imaginário tem a sua realidade própria, e que aquilo a que chamamos realidade está sempre embebido de afetividade e de imaginário, que o sujeito tem sempre uma existência objetiva, mas que a objetividade só pode ser concebida por um sujeito. Isto para dizer que não existe, por um lado, o reino da objetividade e do real, que se poderia isolar totalmente da subjetividade e do imaginário, nem, por outro lado, as miragens do imaginário e da subjetividade. Existe oposição entre esses termos, mas eles são inevitavelmente abertos um para o outro de forma complexa, quer dizer, são simultaneamente complementares, concorrenciais e antagonistas.3

E dessa mistura constante de fluxos de vidas entre o imaginário-virtual e o atual constrói-se a impressão do mundo, reformula-se o espaço onde se vive e projetam-se homens e cidades futuras através de instrumentos como o cinema.

Além do Homem O contato com a técnica é condição de existência do homem. Mas a tecnofobia nos nossos dias tem alavancado discussões cada vez mais contundentes, todas implicando em futuros possíveis de nossa espécie. Em meio às muitas vozes que se levantam nesses exaustivos debates está o filósofo alemão Peter Sloterdijk. Polêmico, Sloterdijk causou enorme alvoroço na Europa com sua conferência, transformada em livro, As Regras Para o Parque Humano: Uma resposta à carta de Heidegger sobre o Humanismo. O texto, que coloca em xeque a tradição humanista na sociedade Ocidental, faz um chamado ao homem contemporâneo de ocupar papel ativo em uma nova conformação dos paradigmas definidores do REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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significado de humanidade para o futuro, cada vez mais presente. Boa parte da celeuma em torno da conferência se deu em favor de um trecho no qual o filósofo lança bases para uma discussão que, principalmente em seu país de origem gera desconforto: a manipulação genética. Se o desenvolvimento a longo prazo também conduzirá a uma reforma genética das características da espécie – se uma antropotecnologia futura avançará até um planejamento explícito de características, se o gênero humano poderá levar a cabo uma comutação do fatalismo do nascimento ao nascimento opcional e à seleção pré-natal – nestas perguntas, ainda que de maneira obscura e incerta, começa a abrir-se à nossa frente o horizonte evolutivo.4

Gattaca (Andrew Nichol, 1997) é um dos filmes que ilustra de forma exemplar essa situação. No filme, vive-se em um mundo completamente disciplinado pela genética. A sociedade é fortemente hierarquizada pelo condicionamento biológico que desde a concepção embrionária do indivíduo já determina quais serão suas possibilidades na vida social. Os seres humanos são criados geneticamente em laboratórios; as pessoas concebidas biologicamente são consideradas “inválidas”. Vincent Freeman (Ethan Hawke), um “inválido”, consegue um lugar de destaque na corporação estatal, escondendo sua verdadeira origem. Ele forja sua identidade com características (fio de cabelo, sangue urina) de um outro homem excepcionalmente perfeito, pelas definições geneticamente escolhidas, mas inválido por um acidente que o deixou paraplégico. Mesmo se por um lado podemos nos posicionar contrários ao uso de recursos tecnológicos para moldar nossas descendências, vemo-nos em xeque quando cogitamos que se assim não o fizermos nossos descendentes podem ser colocados à margem dos sofisticados processos de seleção social. Essa situação pode ser observada no filme Gattaca, com o personagem Vincent Freeman, que devido à uma decisão de seus pais, não nasce com a conformação genética mais adequada para aquela sociedade. O natural, 100% orgânico de hoje, torna-se marginal nessa sociedade futura. A idéia da utilização de meios artificiais para melhorar a raça humana é um tema polêmico nas discussões públicas. Paira no ar uma interdição moral de se discutir esse assunto de forma aberta pelo pesado passado eugenista do nazismo. A discussão aberta das possibilidades biogenéticas do humanismo tornaria legal a política de investimento em experiências no setor, sem que viéssemos a ser tomados de surpresa por noticiários sucessivos que já apresentam os resultados das novas criaturas de laboratório. Há um desconforto no poder de escolha, e em breve será uma opção pela inocência recusar-se explicitamente a exercer o poder de seleção que de fato se obteve (...) as pessoas farão má figura se – como na época anterior de incapacidade – quiserem deixar agir em seu lugar um poder mais elevado, seja ele Deus, o acaso, ou os outros. Já que as meras recusas ou abdicações costumam falhar devido a sua esterelidade, será provavelmente importante, no futuro, assumir de forma ativa o jogo e formular um código de antropotécnicas. Um tal código também alteraria retroativamente o significado do humanismo clássico – pois com ele ficaria explícito e assentado que a humanitas não inclui só a amizade do ser humano pelo ser humano – e de maneira crescente e explícita – que o homem representa o mais alto poder para o homem.5

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4 SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade. 2000. pg. 49.

5 Idem. pg. 50.

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Seria também próprio da condição humana a busca constante em aprimorar-se, e mesmo os entraves momentâneos que se coloquem a sua frente, não seriam resistentes por muito tempo para segurar a ânsia pela perfeição do homem. As plataformas éticas estariam a serviço desse desejo permanente em alcançar o dedo de Deus. Pretende-se ser cada vez mais belo, mais atlético e inteligente, superando limites. Outro afluente da discussão que envolve a relação entre homens e máquinas diz respeito ao possível confronto entre os dois, gerado pelo espaço cada vez maior ocupado pela tecnologia nas sociedades contemporâneas. As últimas novidades dos centros de excelência reportam à composição de máquinas cada vez mais eficientes na produção de resultados e independentes da ação humana para serem operadas. O perigo não mais está localizado no fato da máquina ser mais competente que o homem na execução de algumas tarefas, mas agora surge outro elemento para tornar esta conturbada relação ainda mais delicada. Aos poucos, a tecnologia cria aparatos cada vez mais auto-suficientes, que se autoregulam, com interferência cada vez menor do homem, executando tarefas que a um homem em muitos casos seria impossível de se executar, como por exemplo, a sincronização de vôos e decolagens nos grandes aeroportos do mundo. A máquina ganha uma independência não apenas funcional, mas também nos seus julgamentos. Transfere-se às máquinas a administração das vidas até nas mais importantes instâncias em nome de uma optimização da racionalidade social. O salto evolutivo da independência das máquinas nos faz apontar para um tema recorrente na ficção científica, a inteligência artificial. Animatrix – (1o. e 2o. renascer) (Andy e Larry Wachowski, 2003) nos mostra um futuro no qual as máquinas invertem a equação de servidão em relação aos homens. A estória narra uma época anterior a que se desenrola na trilogia Matrix, dos mesmos autores. Os dias finais das últimas cidades, a guerra contra as máquinas e a queda da espécie humana são narradas em forma de anime. De dominadas, as máquinas passam a dominar a sociedade e colocá-la na posição que anteriormente lhes era relegada. Máquinas nas quais foi desenvolvido um agenciamento de informações interno, semelhante aquilo que concebemos como a consciência humana. Consciência, que na filosofia se apresenta como um dos principais argumentos usados para distinguir o homem dos outros animais, e por conseqüência, também das máquinas. Consciência, que separa o homem do resto do mundo biológico.

6 VIEIRA, João Luiz. Anatomias do Visível: cinema, corpo e a máquina da ficção científica. In: NOVAES, Adauto (ORG.) O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras. 2003. pg.321.

O cinema mais contemporâneo tem desenvolvido uma obsessão com o reposicionamento e a redefinição do que é humano, da imagem problemática do que é ser humano.6

As paisagens dos filmes futuristas são habitadas por robôs, andróides, cyborgs, replicantes, seres híbridos. Homens-máquina, que sempre aparecem à margem em sociedades mais preocupadas em fazer uso deles a incorporá-los inteiramente a sua organização. O que seria impossível já que os robôs são criados para prestar serviços e não para ocupar um espaço nos ramos das espécies do gênero homo. O conflito é arrasador nesses animes. As máquinas chegam a ser exiladas para um lugar distante na Terra onde elas criam um país só gerenciado por seus sistemas. Elas se preparam para a batalha final. Um dia um robô vem a sede das Nações Unidas para pedir que aceite o país das máquinas como membro integrante da ONU. Essa atitude leva a ira dos homens que abrem guerra ao

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país-aberração e nesse conflito a raça humana saí perdendo e tem de ser refugiar como ratos, em buracos no interior da Terra. Numa cidadela chamada Zaion. A partir daí começa a trilogia Matrix. O problema chega a esse ponto em Animatrix exatamente por se tentar desenvolver a semelhança máxima possível entre as possibilidades físicas e cognitivas da máquina, assumindo o homem como sua referencia maior. Uma relação entre homens e máquinas na qual o conflito é ontológico e não bélico pode ser observada no filme O Homem Bicentenário (Chris Colombus, 1999). Nesse filme podemos ter uma mostra do desdobramento da relação entre os humanos e os seres híbridos a partir de máquinas. A estória, baseada em um livro do escritor de ficção científica Isaac Asimov, conta que no futuro, uma família americana compra um novo utensílio doméstico: um robô chamado Andrew (interpretado pelo ator Robin Williams), para realizar tarefas domésticas simples. Entretanto, aos poucos o robô vai apresentando traços emocionais característicos do ser humano, como curiosidade, inteligência e personalidade própria. A partir daí inicia-se sua saga em busca de ser legitimado como ser humano. O robô, aos poucos, substitui seus componentes físicos de máquina por próteses produzidas a partir de células-tronco em laboratório e prontas para transplante. Por exemplo, sua aparência externa metálica é trocada por uma camada de estrutura orgânica que imita a constituição da pele humana Repetidas vezes durante sua existência ele se dirige ao Parlamento de sua cidade com o objetivo de convencer a classe política de que ele deveria ser reconhecido como mais um membro daquela sociedade. Mesmo assim não é reconhecido como um humano. Para Andrew, não bastava sentir-se humano, ele precisava ser referendado coletivamente por outros homens em sua condição. O argumento maior para a não concessão da condição humana para Andrew era o fato que ele estava vivo há quase um século sem envelhecer uma ruga sequer, logo, sem a possibilidade de morrer. O filme então recoloca uma característica fundamental aos compostos orgânicos, a mortalidade. Só então Andrew faz seu último transplante que o permitirá envelhecer e degenerar seus componentes orgânicos como toda forma de vida e nos últimos segundos de sua existência o Parlamento reúne-se para outorgar-lhe a condição de ser humano. Conceber a existência de máquinas completamente dissociadas da mão humana ainda é uma idéia que encontra pouca ressonância fora dos ambientes da ficção científica. A guerra entre homens e máquinas serve mais como elemento metafórico de uma projeção da simbiose cada vez mais intensa da tecnologia no cotidiano. A tecnologia da melhoria poderá ser cerceada ou atrasada por regulamentações, mas não poderá ser suprimida de modo permanente.7

Mera especulação ou virtualidades que se anunciam cada vez mais atuais na errância da existência da espécie humana? Como se daria nossa relação com máquinas conscientes? Para o neurocientista Francisco Varela as ciências cognitivas aproximam-se a cada dia desse Ponto de Mutação do gênero humano. 70

7 DYSON, Freeman J. Mundos Imaginados: conferências Jerusalém-Harvard. São Paulo: Companhia das Letras. 1998. pg106.

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Essa idéia de mudança, diria que da visão pré-cartesiana para a pós-cartesiana do conhecimento é um passo radical para a tradição Ocidental. O momento em que muda sua perspectiva sobre, por exemplo, como sua percepção funciona, como seu cérebro funciona, tem efeitos bem tangíveis. E um dos efeitos tangíveis, por exemplo, se desejamos ser um cientista de verdade é saber: O que se pensa sobre a construção de criaturas? Nós a chamamos de robôs. Instrumentos artificiais e cognitivos que poderiam parecer ter um comportamento muito autômato. Isso tem um efeito radical sobre esse mundo!

Em outras palavras, sim, há certas coisas que se tornam possíveis. Poderíamos não desejá-las. Mas estou dizendo que estou profundamente convencido de que essa nova tendência pós-cartesiana nas ciências cognitivas, nas ciências cerebrais, finalmente irá possibilitar, muito rapidamente, creio, a fabricação de máquinas, como naquele maravilhoso filme Blade Runner, que vão parecer bastante autônomos. Seriam criaturas que cuidariam de si e teriam algum tipo de autonomia real. Não o tipo de máquinas tolas com que estamos acostumados.

8 Francisco Varela. In: DUARTE, Eduardo. A Fabula Restante dos Últimos Homens – um conto sobre a Bioengenharia Tecnológica do Homo sapiens sapiens. Recife: Editora Universitária. 2004. pg. 141-142.

Essa é uma confrontação ética enorme de enfrentar, tão forte quanto construir ou não construir uma bomba atômica. Sim, definitivamente essas coisas provocam um impacto. Elas se tornam concretas. Não é apenas uma epistemologia básica, mas também é uma transformação social bem tangível.8

Em Blade Runner (Ridley Scott 1992), no início do século XXI, uma grande corporação desenvolve um “produto do gênero Homo” misto de engenharia genética e robótica. Mais forte e ágil que o ser humano esse “produto” possui lembranças e se emociona com elas. São conhecidos como replicantes e utilizados como escravos na colonização e exploração de outros planetas. Mas, quando um grupo de replicantes mais evoluído provoca um motim, em uma colônia fora do sistema solar, passam a ser considerados ilegais na Terra, sob pena de morte. Os replicantes vêm clandestinamente à Terra a procura de uma solução para seu curto tempo de vida (7 anos) e se tornam alvos de uma caçada gigantesca com o objetivo de eliminá-los. O grupo procura o seu criador para que lhes conceda o up grade que lhes permita viver mais e nesse momento inaugura a condição ontológica do ser humano que questiona o seu ser e teme a morte. Depois de 100 mil anos de existência solitária, sem o convívio de outras espécies do gênero Homo, como se estabelecer uma relação de convivência pacífica sem disputa ecossistêmica com um espécime diferente? A proximidade em geral provoca uma identificação, mesmo que acompanhada de estranhamento. Há certamente um desconforto em se colocar em condições de igualdade com uma máquina. A questão agora é que os replicantes não são apenas máquinas. Eles possuem a qualidade que em geral se associa como própria para diferenciar o homem dos outros animais, a consciência. Em termos práticos, eles poderiam ser considerados humanos e por outro lado, essa semelhança na aparelhagem cognitiva nos leva a nos reconhecermos nos sistemas artificiais. Surge aqui uma nova questão: a aproximação dos sistemas cognitivos do homem e da máquina é objeto de observação em um sentido inverso, pois tanto a máquina se assemelha cada vez mais com as funções cognitivas humanas, como o homem, instrumentalizando seu pensamento, aproxima-se do processo automatizado de cognição das máquinas. Um extremo auto-disciplinamento que nos

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coloca em situação de questionar se de fato no momento atual, mais importante do que definir aquilo que é ou não é homem, não seria pensar aquilo que é ou não é máquina. O pólo de questionamento passa então à esfera não do homem contra um elemento externo (a máquina), mas sua luta contra um parceiro que pode ser seu inimigo e que o habita (seus componentes maquínicos mentais). Observar o futuro a partir das possibilidades dos filmes de ficção nos devolve um antigo grande problema ontológico. Estaríamos em vias de ir às ultimas profundezas para enxergar aquilo que é o Humano? Ou seria esse o germe da completa extinção da própria concepção do Humano, como pretendia Nietzsche?9 Ao se conjugar, técnica e imaginário cria-se uma variedade poderosa deste tecnoimaginário, porque alia a força das imagens à magia das máquinas complexas.10

Desde sua origem, o cinema flutua entre esses dois espaços. Para Morin, sonhadores e cientistas pertencem a mesma categoria de pensadores. Se o cientista é o sonhador que vê seu projeto realizado, o sonhador é o cientista em vias de viabilizar seu projeto. É na relação antropomórfica que o cinema constrói cenários irreais e conjuga total empatia com o espectador, mobilizando suas projeções a construírem novas identificações e referências emocionais sobre si mesmo e sobre seu espaço. No estudo sobre o cinema Morin ainda fala que a esses conceitos junta-se o da fotogênia, a princípio utilizado por ele apenas para fotografia, mas, como essa é a base do cinema ... A fotogênia é essa complexa e única qualidade da sombra, reflexo e duplo, que permite as potências afetivas próprias da imagem mental fixarem-se na imagem dada pela reprodução fotográfica.11

9 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000.

10 BALANDIER, Georges. O Dédalo – para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1999. pg. 154.

11 MORIN, Edgar. Op. Cit. 1980. p.38.

A fotogênia é um conjunto de elementos de identificação com o duplo, são os pontos em que o homem se reconhece no reflexo. E aí, já se observa o conceito de duplo que está no domínio da projeção, é o meu outro eu, como me vejo e me idealizo, é a minha projeção mental (desdobramento) fixada na imagem fotográfica ou na imagem cinematográfica. A objetividade da imagem cinematográfica fornece a parte de realidade que percebemos no cinema. Não há dúvida sobre aquilo que enxergamos. Mas ao mesmo tempo sabemos não ser real aquela imagem que temos diante dos olhos. A duplicidade ontológica permite a fusão entre realidade e ilusão, ciência e sonho. O homem no cinema se faz à sua imagem e semelhança e concebe o homem-imaginário, mas mesmo assim são distintos, tal como a tradição judaicocristã fala de Deus e dos homens. Matérias que não se distinguem na sua essência, mas na superfície. O homem-imaginário é e não é o homem ordinário. Projetado na tela do cinema, o homem ordinário se transforma no homem extra-ordinário. Guiado pelas imagens como se estivera num sonho, no qual seu olho é a câmera, o homem sonha, inventa, cria. E olha para o futuro. Imagina odisséias que narrem as estórias dos Ulisses do passado, mas também daqueles que estão por vir. Como Homeros da modernidade, eles vão escrever novas versões mitológicas ambientadas em futuros distantes em tempo e espaço, mergulhando em eras inimagináveis, afastando-se por incontáveis quadrantes da Via-Láctea, ou estando ao nosso lado disputando a vida no mesmo ecossistema. 72

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Delírio de um louco ou antecipação de um visionário? Os filmes futuristas nos fazem balançar sem posição fixa entre um e outro lado. Em que medida eles representam o imaginário coletivo sobre o futuro? Quando podemos estabelecer os pontos de intersecção entre a projeção das imagens do cinema e nossa identificação?

BIBLIOGRAFIA BALANDIER, Georges. O Dédalo – para finalizar o século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1999. DUARTE, Eduardo. A Fabula Restante dos Últimos Homens – um conto sobre a Bioengenharia Tecnológica do Homo sapiens sapiens. Recife: Editora Universitária. 2004. DURAND, Gilbert. Mito, Símbolo e Mitodologia. Porto: Editora Presença, 1982. DYSON, Freeman J. Mundos Imaginados: conferências Jerusalém-Harvard. São Paulo : Companhia das Letras. 1998. MORIN, Edgar Morin. O Cinema ou o Homem Imaginário – ensaio de antropologia. Lisboa: Moraes editores. 1980. __________________. O Paradigma Perdido – A Natureza Humana. Portugal, Publicações Europa-América, 1991. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. NOVAES, Adauto (ORG.). Anatomias do Visível: cinema, corpo e a máquina da ficção científica. O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras. 2003. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade. 2000.

*Eduardo Duarte é professor do Departamento de Comunicação Social –UFPE. **Arthur Gomes é jornalista.

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ANTROPOLOGIA

BREVE HISTÓRICO DO RENASCIMENTO DA TATUAGEM NO OCIDENTE: NOTAS SOBRE MARCOS E SUBGRUPOS Andréa Osório*

Resumo: O presente trabalho visa expor alguns dos marcos da popularização da tatuagem no Ocidente. Antes considerada marca de camadas populacionais exóticas e marginais, passa a integrar o escopo de adornos possíveis para elites européias e, mais tarde, ingressa no repertório corporal das camadas médias. A partir de um levantamento bibliográfico sobre o tema, o artigo visa informar sobre esta prática pouca estudada nos meios acadêmicos. PALAVRAS-CHAVE: HISTÓRIA DA TATUAGEM; CORPO Abstract:This paper presents some marks of the process of popularization of the tattoo in Western culture. Considered before as a body mark of exotic populations and criminal groups, the tattoo draw its way through the european elites and, later, becomes part of the body practices of the middle classes. KEYWORDS: HISTORY OF TATTOO; BODY

Introdução

1 Para maiores reflexões sobre a história do corpo, ver PORTER, Roy (1997) e REVEL E PETER (1972).

Uma história completa da tatuagem seria, por si só, um empreendimento louvável, uma vez que as poucas obras que tomaram a si esta missão ficaram longe de alcançá-la. Não é minha intenção, contudo, refazer o trabalho dos poucos que se aventuraram neste sentido. Não seria possível, tampouco, no presente trabalho, tratar exaustivamente da história da tatuagem no mundo. Ao invés disto, gostaria de apresentar alguns dados sobre a história da tatuagem no Ocidente, uma vez há pouquíssima literatura sobre o tema em português. Primeiro, apresentarei os marcos da tatuagem ocidental; em seguida, apresentarei os subgrupos relacionados à prática; por último, analisarei a relação entre estes grupos e o uso de tatuagens. O primeiro marco é o contato entre europeus e habitantes do Pacífico Sul. O segundo marco é a popularização da tatuagem a partir da contracultura, nas décadas de 1960 e 1970. Entre estes dois marcos, há caminhos diferentes para esta popularização em diferentes sociedades ocidentais. As fontes utilizadas para o presente artigo são todas bibliográficas. Poucos pesquisadores acadêmicos se dedicaram ao estudo da tatuagem. Este estudo integrou, sobretudo, etnografias. Os historiadores não se interessaram1 a não ser

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OGIA

recentemente pelo assunto (Caplan, 2000). Pareceme que este esquecimento do papel da tatuagem em certas esferas da vida social decorre da posição que o corpo ocupou na cultura ocidental, a partir da modernidade. A separação entre corpo e mente tornou os assuntos da mente muito mais interessantes aos olhos dos acadêmicos do que os assuntos do corpo. Para Porter (1997), as tradições interpretativas têm dado maior prioridade para questões relativas a significados mentais e ideais do que às questões relativas ao puramente material e ao corporal. Segundo Revel e Peter (1972), o corpo está ausente da história e da historiografia, aparecendo apenas sob o discurso médico – principalmente nos episódios de epidemias – e as estatísticas demográficas. E assim a tatuagem caiu em um esquecimento etnocêntrico, vista como uma decoração sem importância, reabilitada apenas recentemente na obra de Gell (1993). Antes dele, a tatuagem foi objeto de estudo da antropometria e gerou inúmeros estudos, inclusive no Brasil, a partir das visões de Lacassagne e Lombroso, cujas obras também são classificadas como antropologia criminal. Quando suas teorias caíram em desuso, os estudos sobre tatuagem escassearam. A decadência da tatuagem como tema de estudos acadêmicos foi tão forte – e, talvez, unido a este fato a decadência das teorias explicativas lombrosianas –, que muitos pesquisadores da tatuagem não são acadêmicos, mas diletantes apaixonados pelo tema. Seu discurso traz, por conta de sua posição, um teor altamente nativo, eivado de senso-comum. Assim, tanto o cronista João do Rio (1997), no começo do século XX, no Brasil, e Steve Gilbert (2000), tatuador nas horas vagas no Canadá, ao final do século XX, apresentam como motivação para a tatuagem o ócio e a vaidade. Não por acaso, Samuel Steward (1990), ex-professor universitário e tatuador, apresenta a tatuagem do meio do século XX nos Estados Unidos da mesma forma que Do Rio (1997), como um elemento da cultura marginal e de camadas baixas da sociedade. Ao fundo do pensamento destes três autores, percebe-se a influência das teorias antropométricas lombrosianas (Lombroso, 1991).

Primeiro marco: Pacífico Sul Antes de prosseguir, devo introduzir mais um problema metodológico da elaboração do presente artigo. Como toda “história da tatuagem” revisada até o momento está centrada nos usos ocidentais desta técnica, os fatos relatados sobre o Pacífico Sul (primeiro marco histórico do renascimento da tatuagem2) dizem respeito muito mais ao contato de seus habitantes com europeus do que ao significado mais profundo da tatuagem para os próprios nativos, a não ser pela obra de Gell (1993). Os tatuadores têm sido os principais historiadores da sua arte.3 Nesta posição, eles têm apresentado uma visão eurocêntrica, uma vez que o europeu é o centro de importância da tatuagem não-européia. É o contato, o conhecimento da técnica, seu uso e disseminação por europeus a chave central desta(s) história(s).

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2 Este é um conceito utilizado por Mifflin (1997). Como a técnica da tatuagem remonta a períodos préhistóricos, não há como determinar uma continuidade linear de seu uso. A sua popularização atual é fruto de um processo que se inicia no chamado primeiro marco, quando a técnica, aparentemente em desuso na Europa, é novamente adquirida por meio do contato com nativos do Pacífico Sul.

3 Não raro os tatuadores-historiadores apresentam a tatuagem sob a categoria de arte, sem indicar exatamente o que a faz uma arte. É, desta forma, uma categoria nativa.

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4 Profissional é uma categoria nativa dos tatuadores que se opõe a amador. A construção desta diferença envolve, contemporaneamente, a idéia de arte. O profissional é um artista (COSTA, 2004).

5 Para acompanhar de perto o debate, sugiro a leitura de CAPLAN (2000).

6 “Loucura pela tatuagem” ou “febre da tatuagem”, em tradução livre.

7 Para uma discussão maior sobre a ênfase no elemento exótico, a curiosidade e o papel do Outro da formação de uma identidade nacional européia, ver GUEST (2000).

Embora a tatuagem exista no mundo desde a pré-história (Gilbert, 2000), seu percurso no Ocidente apresenta alguns marcos. O primeiro deles é o contato entre habitantes do Pacífico Sul, que dominavam a técnica, e marinheiros europeus. Foi a partir das viagens do capitão Cook, no século XVIII, que a tatuagem ganhou tradução inglesa na palavra tattoo. Gilbert (2000) afirma que foi a tripulação de Cook quem adotou o costume nativo primeiro, tornando-o uma espécie de moda entre os marinheiros a partir de então. Foram tatuados por mãos nativas e aprenderam a técnica, que depois utilizavam a bordo. Muitos tatuadores ocidentais dos séculos XIX e XX eram ex-marinheiros. Segundo Gilbert (2000), já na metade do século XVIII os principais portos britânicos tinham pelo menos um tatuador profissional.4 Muitos marinheiros, ao se aposentarem, estabeleciamse nas cidades portuárias como tatuadores (Borel, 1992; Gilbert, 2000). E assim a tatuagem começou seu longo caminho de popularidade no Ocidente. Diz-se recorrentemente nos estudos sobre tatuagem que foi a partir deste contato que a prática ressurgiu na Europa, após um período de quase desaparecimento durante a Idade Média. Este desaparecimento tem sido contestado na medida em que fontes históricas indicam determinados usos populares da tatuagem européia, sobretudo religiosa e profissional, embora os historiadores ainda não tenham concluído qual a parcela de influência estrangeira em tais costumes.5 Que a tatuagem foi observada como um costume importado é fato. Mas antes do encontro entre europeus e nativos tatuados do Pacífico Sul, houve um encontro similar que não resultou na importação de tal técnica: o encontro entre europeus e nativos do continente americano. Torna-se necessário perguntar, então, porque um desses encontros resultou na chamada tattoo craze,6 e o anterior não. Notese que alguns arquipélagos colonizados a partir do século XVIII já haviam sido “descobertos” por espanhóis no século XVI, como é o caso das ilhas Marquesas, mas não colonizados (Gilbert, 2000). No encontro entre europeus e ameríndios é possível observar que não apenas a tatuagem não foi importada como técnica como tampouco o foram os nativos americanos tatuados. Quando os europeus desbravaram os mares do Pacífico e, sobretudo, os ingleses, vários foram os nativos que ao longo das décadas foram levados à Europa como souvenirs ou como espécimes de História Natural, por serem tatuados. A percepção científica que moveu alguns naturalistas no Pacífico não estava presente nas Grandes Navegações, e creio que esta mudança de mentalidade explica em parte a diferente posição frente aos nativos. Mas gostaria de sugerir que quando a tatuagem se tornou um elemento identificador do Outro e de seu exotismo,7 ela foi apagada da memória nacional do Eu, embora existisse e sua existência não fosse ignorada. Em outras palavras, um novo imaginário sobre a tatuagem associou-a ao exótico e ao selvagem, minimizando o uso europeu da técnica. Este novo imaginário foi construído em cima de uma determinada percepção britânica sobre os habitantes do Pacífico Sul, no século XVIII. É certo que

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nem a mudança de mentalidade nem a construção de um imaginário moderno sobre a tatuagem explicam porque no século XVI e depois ela não foi adotada no contato com os ameríndios, e a partir do século XVIII ela foi adotada no contato com nativos do Pacífico Sul. De qualquer forma, a percepção da tatuagem que se origina a partir do século XVIII é a raiz da atual visão ocidental da prática. É preciso dizer, ainda, que a tatuagem na Europa não estava desaparecida quando marinheiros trouxeram o costume do Pacífico. Havia, como indicam diversos autores (Borel, 1992; Caplan, 2000; Gilbert, 2000; Rosecrans, 2000), uma tradição religiosa da tatuagem européia, relacionada à peregrinação a locais sagrados, incluindo Loreto, na Itália, e a própria Jerusalém. O que os marinheiros parecem ter feito foi retirar o costume deste universo religioso cristão e torná-lo um costume profano popular, no sentido de camadas populares e no sentido de ter sido disseminado. O renascimento da tatuagem no Ocidente é um fenômeno que diz respeito a sua disseminação entre camadas sociais determinadas, a partir do contato entre marinheiros e nativos do Pacífico, fora de seu escopo anterior de prática religiosa cristã.

Conseqüências do primeiro marco: o circo O circo e a exibição do corpo tatuado como entretenimento foi uma das conseqüências do renascimento da tatuagem na Europa. O primeiro artista circense tatuado inglês foi John Rutherford, que começou carreira em 1828. O pioneirismo de Rutherford refere-se mais à história que contava sobre si do que à data de seu debut artístico, história que foi copiada e recontada por muitos artistas tatuados depois dele. Dizia ter sido capturado pelos maori8 e aprisionado por dez anos. Teria sido tatuado a força, logo após a captura. Foi promovido a chefe e os maori lhe ofereceram noivas. Dizia ter sido casado com duas filhas de um chefe local e participado das atividades nativas até ser resgatado em 1826 e levado em um navio americano até o Havaí, onde teria se casado com outra princesa nativa. Após um ano, retornou à Inglaterra, onde iniciou a carreira artística. Afirmava fazê-lo com desgosto, a fim de conseguir dinheiro suficiente para retornar a Otaheite. A partir de 1830 não foi mais visto (Gilbert, 2000). A descrição acima é de Gilbert (2000), que parece levar Rutherford a sério. Segundo Oettermann (2000), a história é falsa, mas lançou as bases de um imaginário sobre europeus tatuados por nativos que envolvia, acima de tudo, o elemento do ordálio. Em histórias verídicas sobre europeus vivendo tatuados entre nativos, a tatuagem não era uma tortura aplicada após a captura, mas um sinal de pertencimento.9 Em 1873, surgiu o Príncipe Constantino (Gilbert, 2000), o tatuado mais famoso do século XIX (Oettermann, 2000). Apresentava a si mesmo como ladrão e dizia ser admirado pelas mulheres. Este detalhe dá uma pista sobre a atração sexual do corpo tatuado. Exibido seminu, ele atraía o olhar e a imaginação, tornando-se um elemento fetichista. Na verdade, Constantino era grego e fora tatuado em Burma com a intenção de tornar-se artista. Fez muito sucesso, pois suas tatuagens eram bastante elaboradas, inclusive cobrindo grande parte de seu rosto (Gilbert, 2000). Segundo Oettermann (2000), ele dizia pertencer a uma raça selvagem dos Bálcãs ou apresentar-se como “o homem tatuado de Burma”. Também dizia ser contrabandista de armas e um caçador de tesouros capturado na terra dos Mougongs e tatuado à força. 78

8 População nativa da Nova Zelândia, no Pacífico Sul.

9 Quem dá origem a tais histórias fantasiosas é Olive Oatman, raptada por indígenas aos 13 nos Estados Unidos e tatuada segundo os costumes da tribo. Posteriormente resgatada, ela escreveu uma auto-biografia e fez uma turnê pelo país promovendo o livro.

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10 Tão lucrativo que famílias inteiras se apresentavam tatuadas, até mesmo alguns animais como cachorros e vacas.

11 Contracultura é o termo que Mifflin (1997) utiliza para demarcar o que classifica como um segundo renascimento da tatuagem.

La Belle Irene entrou para o circo em 1890, dizendo-se a primeira mulher completamente tatuada. Embora suas tatuagens tenham sido executadas por dois famosos tatuadores da época, seguia a tradição do circo dizendo ter sido tatuada no Texas, um lugar selvagem onde as marcas serviam para afastar os índios (Gilbert, 2000). O pai teria tido a idéia de tatuar as filhas para afastar o risco de rapto pelas tribos sioux. Não foi a primeira mulher tatuada no circo americano, mas a primeira na Europa (Oettermann, 2000). A partir de La Belle Irene, as mulheres entraram no negócio da tatuagem circense, um mercado que podia ser extremamente lucrativo10 (Oettermann, 2000). A maior parte das mulheres tatuadas, no entanto, mantinha ligação conjugal com os tatuadores ou outros artistas circenses. No caso das esposas de tatuadores, serviam de propaganda para o trabalho do marido. Desta forma, também puderam aprender o ofício. Em um universo masculino, a ligação conjugal facilitava a entrada na profissão. Apenas após os anos 1960 e o movimento da contracultura11 as mulheres ocidentais conseguiram abrir caminho como tatuadoras sem depender do apadrinhamento marital (Mifflin, 1997). A exposição do corpo feminino entre os séculos XIX e XX, por mais suave que fosse, deixando aparentes apenas pernas, colo e braços, e mantendo seios, barriga e nádegas cobertas, nem sempre era bem vista. Oettermann (2000) afirma que as tatuadas passaram sutilmente à prostituição quando a concorrência aumentou. A exposição dos corpos conteria, sugere o autor, um elemento erótico, na medida em que a tatuagem se tornara um fetiche. Até a década de 1960, enquanto o circo manteve artistas tatuados, a exposição corporal feminina se tornou cada vez maior, assemelhando-se ainda mais a um espetáculo erótico. Great Omi é o último exemplo que eu gostaria de citar. Quando decidiu tornar-se artista de circo, procurou um famoso tatuador da época e elaborou um padrão de listras negras que cobriam todo o seu corpo, de modo a tornar-se o “homem zebra”. Começou a carreira em 1927, com as tatuagens ainda incompletas (Gilbert, 2000; Oettermann, 2000). Este caso é interessante, pois marca o início de uma modificação corporal explicitamente animal. A mulher tatuada com manchas bovinas (Goldenberg e Ramos, 2002) e a mulher-tigre (Miffin, 1997) contemporâneas seguem o exemplo de Great Omi, embora a última apresente-se dentro da tradição circense, enquanto a primeira não.

Grupos do primeiro marco Além da entrada dos tatuados no universo do espetáculo por meio do circo, houve outras conseqüências do primeiro marco histórico do renascimento da tatuagem no Ocidente. Alguns grupos foram fortemente associados à tatuagem e esta associação prolongou-se até recentemente. O primeiro grupo é o dos marinheiros. Não apenas adotaram o adorno, como aprenderam a técnica, transformandoa em uma profissão. Em um primeiro momento, os tatuadores se encontravam fundamentalmente em dois locais: o porto e o circo. A tatuagem se tornou, entre eles, parte de sua cultura, fossem comandantes ou pesquisadores, mercenários ou membros da Marinha Real inglesa. Guest (2000) afirma que a tatuagem operava como sinal de masculinidade, em uma dinâmica intrincada entre as percepções européias sobre si e sobre os nativos do Pacífico Sul. Steward (1990), ex-tatuador que escreveu memórias sobre a profissão, exercida no período de 1950 a 1965 nos Estados Unidos, afirma que mesmo REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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na cidade não-litorânea de Chicago, onde viveu, os recrutas de uma base naval local tatuavam-se como em uma espécie de rito de passagem, geralmente seguido da iniciação sexual. Antes mesmo de ir ao mar, muitos já haviam se tatuado. Talvez tenha sido esta proximidade entre o universo naval e a prostituição que tenha disseminado a prática entre meretrizes. Esta conexão não está clara e mereceria um estudo histórico mais profundo. Não há dados sobre o início da prática entre prostitutas ocidentais, embora haja menção sobre o contexto japonês, no qual a tatuagem marcava os votos de amantes (Borel, 1992). Parece-me que, menos que os fatos, é um certo imaginário que as conecta. Mifflin (1997) indica que até a contracultura, qualquer mulher tatuada nos Estados Unidos era vista como prostituta. Quanto às mulheres tatuadas circenses, Oettermann (2000) afirma que a associação não era de todo fantasiosa. Steward (1990) descreve, em opinião própria, este imaginário: para ele, mulheres decentes não se tatuavam, apenas prostitutas e lésbicas. Mesmo as namoradas que seus clientes levavam para que ele fizesse tatuagens de amor eram vistas por ele com certa desconfiança, como o retrato do pensamento de uma época. Havia exceções. Para certos maridos, amantes ou namorados, como Mifflin (1997) indica, a tatuagem era um elemento erótico, não apenas na sua qualidade de jura de amor, mas como um fetiche. O grupo mais fortemente associado à tatuagem foi, contudo, o dos criminosos, graças a Lombroso (2001) e à escola de pensamento que ele criou. A partir de sua teoria, a tatuagem começou a ser identificada como sinal de criminalidade, embora estudos realizados tenham demonstrado, desde então, que a maior parte dos criminosos se tatua na prisão (Schrader, 2000). Este dado leva a uma reflexão sobre o papel do corpo na resistência a sistemas policiais e de exercício de autoridade. Steward (1990) notou a disseminação da tatuagem, neste primeiro momento, de forma mais acentuada em populações cuja característica é a predominância de um único sexo, como corporações militares, presidiários e gangues juvenis. Não creio que esta seja a questão, mas sim que a tatuagem atingiu grupos cujo isolamento relativo é maior. Grupos cujas redes de sociabilidade se formam dentro do próprio grupo e não em outras esferas da sociedade e, fundamentalmente, grupos sob estreita vigilância social, sob um controle rígido – exatamente o que une os exemplos que inspiraram o autor a tal afirmação. Nestes casos, a marcação voluntária do corpo é uma forma de expressar o que Benson (2000) chamou de posse de si. O corpo se torna a única propriedade do sujeito e seu bem mais precioso, estreitamente vinculado à própria noção de individualidade, ou à noção de Eu. A marca elaborada sobre ele é uma forma de assinalar a posse deste bem, o que significa assinalar a posse de si frente a uma instituição ou situação em que a individualidade é posta em xeque por mecanismos de controle e/ou isolamento. No caso de prisioneiros do sistema penitenciário, o isolamento forma redes internas de sociabilidade, e o afastamento do mundo exterior reforça estas redes. Ao mesmo tempo, o controle exercido pelo aparato policial sob estes sujeitos é um controle sobre seus corpos, como indica Foucault (1997). A expressão de uma resistência, questão que não é abordada pelo autor, se dá, de igual maneira, por meio do corpo. Gostaria de relacionar um caso específico, a título de exemplo. 80

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12 A tradição do nomadismo na Rússia, especialmente na Sibéria, cujo significado vai além da resistência ao controle estatal.

13 A prática da tatuagem entre criminosos despertou o interesse dos acadêmicos a partir dos estudos antropométricos de Lombroso. Embora sua teoria tenha caído em desuso, ela construiu um mito sobre a prática da tatuagem em instituições carcerárias que foi desconstruído muitas vezes, mas que ainda serve de referência.

Em qualquer caso de marcação punitiva, o que está em jogo é o poder de controle da autoridade sobre o indivíduo. A marcação é um meio de estigmatizar e identificar (Anderson, 2000). Se ela é permanente, significa que a identidade atribuída por meio da marca também é pensada como permanente por aquele que a produz. Gustafson (2000) afirma que a marca é envolta em um processo pedagógico que visa alterar a mentalidade, a noção de si e o poder pessoal. O autor segue uma abordagem foucaultiana que não dá ao sujeito espaço de resistência. Gostaria de introduzir o uso da marcação penal russa, pois este caso demonstra um determinado tipo de resistência. Durante o Império, o sistema penal russo utilizou largamente a marcação corporal. Segundo Schrader (2000), até o governo de Catarina, a Grande, punições corporais, que incluíam mutilações, eram utilizadas em todas as camadas sociais. Embora estas práticas tenham sido questionadas na virada do século XVIII para o XIX, a inscrição corporal era fundamental no sistema penal russo, pois atribuía os indivíduos a grupos de status, com a finalidade de um maior controle oficial. Impondo uma determinada identidade sobre os prisioneiros, a marca feita com ferro quente (branding) era utilizada por estes como fator de construção de sua subjetividade, segundo o autor. Estes grupos de status visavam não apenas ao controle penitenciário, mas ao controle social. Como forma de resistência, certos indivíduos optavam por uma vida nômade,12 escondendo suas identidades, trocando de nome e escondendo o pertencimento a determinado grupo de status. Os fugitivos deviam esconder também as marcas corporais que denunciavam sua condição. Para o autor, este tipo de estratégia desafiava o poder classificatório estatal. Uma das fontes da prática de marcação punitiva russa foi, segundo indica Schrader (2000), a marcação de objetos pelos camponeses para atestar sua propriedade. O autor sugere que a marca corporal era apenas mais uma forma de o Estado russo marcar sua propriedade, exercendo controle sobre ela e determinando seu status. Não apenas criminosos eram marcados, mas recrutas e desertores também. Desta forma, aqueles que resistiam ao poder controlador do Estado foram os que receberam as marcações. No caso dos condenados, as identidades eram utilizadas, ainda, para a formulação de uma hierarquia construída por eles, de modo que o sistema de classificação oficial era copiado, dando a certos criminosos maior status do que a outros e formando corporações. Assim, novas marcações eram efetuadas pelos próprios indivíduos, numa forma de resistência que, segundo o autor, “transformou uma prática que marcava sua alienação social em uma fonte de orgulho e pertencimento corporativo” (p. 185). A maior parte das tatuagens em criminosos13 era realizada na prisão, de forma voluntária e servia de rito de passagem. A partir desta constatação, Schrader (2000) demonstra como os condenados deram novo significado à lógica oficial de marcação e encarceramento, opondo marca punitiva a marca de bravura, tornando o exílio na Sibéria um sinal de honra criminosa, formando corporações próprias. Ao se apropriarem da lógica oficial de controle e transformá-la para uso próprio, os condenados resistiam a este controle, demonstrando que a criatividade social pode construir novos grupos e formas de pertencimento, mesmo em situações de forte controle. A própria automarcação do corpo, nestas circunstâncias, indica que o controle estatal não é total, e que o corpo é o derradeiro locus na luta entre controle externo e autocontrole. Marcando a si mesmos, estes sujeitos indicavam que seus corpos não eram uma propriedade alienável.

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Além de Schrader (2000), Benson (2000) indicou como o corpo, especialmente a pele, é o lugar da afirmação de uma posse de si mesmo.14 Embora esta autora se refira ao uso contemporâneo das tatuagens, o caso russo pode ser enquadrado em sua reflexão. Sobre a contemporaneidade, ela afirma que há uma ligação entre a “permanência e as idéias sobre o corpo como propriedade e posse (...) de fato, como a única posse do self em um mundo caracterizado pela acelerada mercantilização e imprevisibilidade (...)” (p. 251). Em grupos como o das prostitutas e marinheiros, creio que a questão da posse de si também está presente. A identidade da prostituta está estabelecida em função do uso que faz de seu corpo, uso este negativamente valorado e sujeito a uma série de sanções sociais que a transporta, como ao criminoso, para as margens da sociedade. Desta forma, creio que a idéia de tatuagem entre prostitutas se relaciona a uma afirmação da posse de seu próprio corpo quando, na prática, este corpo está à venda, não necessariamente de forma espontânea, mas quase sempre sob o olhar vigilante e as práticas controladoras de cafetões ou cafetinas.15 Da mesma forma, o corpo do marinheiro está sob um rígido controle. Foucault (1997) apresenta a mudança no controle dos corpos dentro da ordem militar européia. Estou tratando, nestes grupos específicos, da tatuagem como uma resposta pessoal, na forma de uma resistência, a situações de controle sobre o corpo e sobre a identidade, em grupos que ainda apresentam uma característica de relativo isolamento social e fracos laços de solidariedade extragrupo. Esta resistência é simbólica, como uma forma de assinalar à instância controladora que o corpo é propriedade do sujeito e, portanto, controlado por ele – muito embora as situações sociais exerçam todo tipo de controle e coerção cotidianamente na forma de regras pré-estabelecidas de convivência, por exemplo. A falta de uma rede de solidariedade social pode, conforme apontou Souza (1989), gerar uma situação de marginalização social. A tatuagem não seria conseqüência desta marginalização, mas da estrutura de funcionamento destes grupos, em termos de controle, corporalidade e identidade. A noção de preconceito contra os tatuados ou a tatuagem se insere, desta forma, como um discurso que encobre sua estrutura. Se Lombroso (2001) contribuiu para a associação entre tatuagem e marginalidade, esta associação não reside na natureza da tatuagem, em alguma essência desviante sua ou do tatuado. Esta associação encobre um elemento anterior, que é a resistência de certos sujeitos ao controle sobre seus corpos, segundo as características acima mencionadas. Este preconceito junta na mesma medida a idéia de tatuagem como elemento do exotismo selvagem e a idéia da tatuagem como elemento de marginalidade. A tatuagem parece ter sido a forma de marcação corporal utilizada como resistência por estes grupos. Outras marcas podem ter sido utilizadas por grupos específicos em épocas determinadas. Esta resistência obedece, a princípio, o seguinte esquema: o controle dos sujeitos significa um controle dos corpos, conforme indicou Foucault (1997); a resistência a este controle se dá, por sua vez, também por meio do corpo (observe-se que não se está tratando aqui de formas abertas de resistência, como rebeliões); o sujeito cujo corpo é controlado reivindica o controle de seu próprio corpo, como uma forma de reivindicar o controle sobre sua própria vida, vontade, identidade (as variáveis podem mudar de caso a caso); a marcação do corpo é uma forma de reivindicação do controle sobre o mesmo e sobre si; a tatuagem é a marca mais utilizada; esse controle do próprio corpo e de si pode ser traduzido no conceito de posse de si, que envolve a noção moderna de que o corpo pertence ao sujeito, é uma propriedade individual e não coletiva. 82

14 Benson (2000) afirma que “(...) inscribed on the skin will be the marks of self-possession, not defeat” (pp 249).

15 Em uma recente incursão de campo (abril/2003) em uma discoteca de Copacabana, Rio de Janeiro, conhecida pela freqüência de estrangeiros e prostitutas, era possível perceber a movimentação de cafetões e cafetinas ao longo da pista de dança, abordando os clientes já acompanhados das prostitutas e negociando o preço do programa, muitas vezes em gestos com as mãos. Embora as prostitutas estivessem vestidas de modo a marcar as formas do corpo, deixando sobretudo as costas à mostra, em apenas uma delas foi possível visualizar uma única tatuagem.

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Apesar de a bibliografia indicar diversos casos, que aqui serviram de exemplo, em que a tatuagem é uma marca de resistência ao controle corporal, nenhum indica por que a tatuagem. Outras marcas poderiam, a princípio, ser utilizadas, mas a tatuagem aparece na bibliografia como uma constante. A tatuagem opera, ao contrário de outras marcações corporais, segundo a díade dentro/fora ou externo/interno. Para grupos socialmente marginalizados ou isolados, de alguma forma excluídos da sociedade, talvez a tatuagem traduza simbolicamente, por esta dinâmica, a situação real experimentada por membros destes grupos. A tatuagem se apresentaria como um tipo de incorporação (Almeida, 1996), na medida em que se tornaria uma experiência corporal que, embora eu suponha estar traduzindo uma situação relativamente consciente, não é conscientemente traduzida a não ser pela própria experiência física. O isolamento de certos grupos tatuados traduz, ele também, uma determinada experiência física, além de mental. Haveria, então, dois planos em ação nestes grupos tatuados: o primeiro diz respeito a uma forma de resistência; o segundo, a um processo de incorporação, que não separa corpo e mente, no qual a experiência simbólica da tatuagem como elemento que está dentro e fora do corpo ao mesmo tempo traduz ou simboliza a experiência do tatuado, que está dentro e fora da sociedade ao mesmo tempo.

Nobreza européia Em 1862, o Príncipe de Gales foi a Jerusalém, retornando de sua peregrinação, conforme se fizera desde as Cruzadas, com a “cruz de Jerusalém” tatuada no braço. O príncipe se tornaria o rei Eduardo VII do Reino Unido, que obteve mais tatuagens ao longo da vida. Seus filhos, o duque de Clarence e o duque de York, que se tornaria o sucessor de seu pai como George V, visitaram o Japão em 1882, em meio a uma viagem ao redor do mundo, obtendo suas primeiras tatuagens lá. Gilbert (2000) afirma que o tutor dos rapazes fora instruído pelo rei a levá-los ao mestre tatuador Hori Chyo, que desenhou dragões em seus braços. Do Japão, foram a Jerusalém, onde foram tatuados novamente, pelo mesmo tatuador que o rei visitara em sua própria peregrinação. As tatuagens da família real britânica deram vazão a um processo de imitação prestigiosa (Mauss, 1994). No corpo da realeza, as tatuagens ganharam novos significados, se tornando elementos charmosos de culturas exóticas e lembranças de países orientais. Foram copiadas por parte da realeza européia. Segundo Borel (1992), eles foram os disseminadores de uma prática que tinha raízes nos viajantes, que a exemplo dos marinheiros, costumavam levar uma tatuagem nativa de recordação, como o conde Tolstoi, que se fez tatuar na Oceania. Na França, a moda se espalhou pelo universo da política. Em Berlim, no fim do século XIX, as mulheres elegantes passavam pelas mãos dos tatuadores birmaneses. O tatuador japonês da elite européia no Japão foi Hori Chyo. Muitos tatuadores se tornaram famosos entre os séculos XIX e XX, freqüentemente lembrados como artistas de renome. MacDonald, considerado em seu tempo o “Rafael da tatuagem”, serviu na Índia e encorajou os marajás a se tatuarem. Estes iam à Europa ou aos Estados Unidos para tal. As mulheres britânicas da alta sociedade na Índia cobriam seus braços com borboletas ou abelhas. MacDonald tatuava seus clientes com estampas japonesas ou pintura clássica inglesa. Frederico VII da Dinamarca, o Tsar Nicolas II, Alexandre da Iugoslávia, George II da Grécia e REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Henri da Suécia passaram por suas mãos. Políticos americanos também tinham tatuagens, como Theodore e Franklin Roosevelt, Truman e Kennedy. No Reino Unido, Churchill, o marechal. Montgomery e o duque de Edinburgo eram tatuados. Stalin e Tito representaram o costume no mundo soviético (Borel, 1992). Gilbert (2000) afirma que o exemplo da nobreza britânica influenciou os comandantes de sua Marinha Real, bem como a elite de um modo geral, todos ávidos por tatuagens japonesas. Observa-se que o papel da nobreza foi elaborar a tatuagem como um sinal de bom gosto, elegância e distinção. Uma idéia de gosto que fazia uso do elemento exótico em tatuagens elaboradas pelos tatuadores mais famosos da época. Mesmo assim, a tatuagem não ganhou a classe média ocidental até o final do século XX.

O segundo marco: a contracultura Embora haja um caminho de disseminação da tatuagem, entre os séculos XVIII e XX, que passa pela nobreza européia, os autores da área (Mifflin, 1997) têm tratado a contracultura como o marco de um segundo renascimento da tatuagem no Ocidente. Gostaria primeiro de apresentar os caminhos seguidos na Europa, Estados Unidos e Brasil entre o primeiro e o segundo marcos. Nos Estados Unidos, a tatuagem foi utilizada por marinheiros, criminosos, artistas de circo e por alguns membros da elite econômica local (Steward, 1990; Gilbert, 2000). Quando a nobreza européia adotou a tatuagem, em parte por suas relações com os corpos militares nacionais, alguns milionários americanos passaram a adotá-la também, aparentemente seguindo a moda londrina. Gilbert (2000) apresenta o caso de Hori Chyo, famoso tatuador japonês que, perseguido pelo governo de seu país, teria se auto-exilado em Nova York, sob a proteção de um milionário local, Max Bandel. Entre os criminosos, parece que a tatuagem fez sucesso entre os mais jovens, observados sob a égide da delinqüência juvenil. Steward (1990) relata, em suas memórias, o interesse e a procura destes rapazes por tatuagens. A sua loja ficava localizada, como a maior parte das lojas de tatuadores de Chicago na década de 1950, em uma região freqüentada por gangues, onde a polícia extorquia alguns bandos e procurava os tatuadores para saber o paradeiro de certos fugitivos. Muitos dos clientes do autor eram ex-presidiários, a ponto de Steward ficar conhecido na penitenciária local pelo volume de condenados que haviam se tatuado em sua loja. Na década seguinte, quando Steward (1990) se mudou para a Califórnia, seu publicou se tornou outro. Era muito procurado pelos motociclistas Hells Angels, cuja cultura envolvia a tatuagem como um elemento fortemente presente. Alguns dos desenhos que se tornaram famosos entre americanos têm sua origem neste grupo, como o número 13 indicando o uso de maconha, bem como o hábito das mulheres dos motociclistas serem tatuadas com “propriedade de...”,16 a lacuna sendo preenchida pelo nome do grupo ou, mais freqüentemente, do companheiro. Neste momento, a tatuagem americana parece estar no limite entre as gangues e a cultura jovem. Passaria a integrar, com os hippies, não apenas mais uma cultura jovem urbana como a contracultura. Mifflin (1997) indica que a contracultura americana e os hippies eram movimentos formados por pessoas de camadas baixas da população. Mantém-se, desta forma, a prática da tatuagem entre estas camadas. Foi apenas na década de 84

16 A expressão em inglês é “property of...”.

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17 Creio que esta informação necessita de averiguação. Por um lado, Lacassagne, na França, e Lombroso, na Itália, descreveram a tatuagem como elemento da criminalidade, no sentido de que demonstrava quem estava mais propenso a cometer um crime. Esta teoria obteve um impacto profundo na medicina legal da época, e pode ter sido responsável pelo afastamento das elites locais desta prática corporal. Por outro lado, obras sobre tatuagem nestes dois países, à época em que a teoria lombrosiana era dominante, podem ter apagado registros do uso de tatuagem em camadas superiores.

1980, segundo a autora, que a classe média americana com educação superior passou a fazer uso da tatuagem como adorno corporal. Interessante notar que esta é a década em que o culto ao corpo se dissemina no Ocidente. A tatuagem pode ter se tornado um elemento a mais no emergente culto ao corpo contemporâneo, surgido nas camadas médias-altas. Pereira (1992) apresenta um retrato distinto sobre a contracultura, relacionando-a com a juventude de camadas médias e altas, tanto norte-americanas quanto européias. Neste caso, o percurso apresentado no quadro abaixo não diferiria para Estados Unidos, Brasil e Europa, todos apresentando o movimento contracultural centrado na juventude universitária de camadas médias e altas. Embora Mifflin (1997) não defina o termo contracultura, utilizo a definição de Pereira (1992) como base de compreensão do período tratado pela autora. Para Pereira (1992), a contracultura engloba uma série de práticas distintas, tanto políticas quanto religiosas, unidas pela idéia de uma crítica às instituições ocidentais, sobretudo aquelas que são a base de reprodução do capitalismo e de seus valores dominantes. Disseminada entre a juventude de camadas médias na década de 1960, a contracultura teria alguns pontos de expressão nos festivais de música, como o de Woodstock, e nas rebeliões estudantis, como o Maio de 1968 francês. Da forma como é apresentada pelo autor, a contracultura constitui um movimento de crítica reflexiva sobre a modernidade. O percurso da tatuagem nos Estados Unidos é muito próximo ao percurso da tatuagem na Europa, após o seu renascimento. É importante lembrar que a tatuagem nunca chegou a desaparecer na Europa. Antes da adoção da prática por meio do encontro cultural com o Pacífico Sul, a tatuagem européia era religiosa, utilizada como marca de peregrinações a lugares santos, um uso que não foi perdido. Gilbert (2000) recolheu informações que indicam que pelo menos até a década de 1950, havia um tatuador que marcava os peregrinos de Jerusalém, embora não indique se os europeus eram a maioria, como após as Cruzadas. O hábito de tatuar a “cruz de Jerusalém” parece ter se desenvolvido na Europa a partir destas expedições à Terra Santa. Em lugares santos europeus, como Loreto, na Itália, a prática foi descrita no século XIX (Caplan, 2000). A partir das expedições do capitão Cook ao Pacífico, os marinheiros adotaram a prática, que se disseminou pelas camadas baixas da população. Segundo Gilbert (2000), a tatuagem na França e na Itália17 nunca foi popular entre a elite como na Inglaterra. Nestes países, os tatuados seriam marinheiros, presidiários e trabalhadores. Os presidiários, como visto, adotam tais técnicas muito mais fortemente dentro da prisão do que fora dela, onde se tatuam de forma artesanal. Faz parte da cultura penitenciária, não da cultura criminosa como um todo. Fora da penitenciária, podem buscar um tatuador profissional para refazer ou retocar o desenho artesanal. No século XIX, os médicos franceses parecem ter se preocupado com as possíveis complicações da operação da tatuagem. Sua influência fez com que a tatu-

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agem fosse proibida na Marinha francesa e, posteriormente, no Exército. Devido à proibição, o público para os tatuadores franceses foi formado pelos presidiários (Gilbert, 2000). Na França e nas colônias inglesas no subcontinente indiano, a tatuagem servia como marca identificadora do preso, constando das fichas de identificação destes (Anderson, 2000; Gilbert, 2000). Embora Gilbert (2000) não faça menção às tatuagens que representam profissões, ele reproduz desenhos de Lacassagne sobre o açougueiro, o alfaiate e o construtor de barris, indicando, de certa forma, algum uso da tatuagem entre classes populares. Dos pobres aos ricos e dos ricos aos jovens: no século XX, a tatuagem européia atingiu a cultura jovem, seguindo o percurso americano da contracultura e do movimento hippie. Só atingiu a classe média urbana e profissionais liberais algumas décadas depois. Este percurso demonstra que as camadas baixas possuem algum poder de influência sobre as práticas corporais das elites, embora estas sejam automaticamente re-significadas quando atingem outros estratos sócioculturais. Entre a elite, a tatuagem era sinal de uma excentricidade de bom gosto. Entre os jovens, ela flertava com o imaginário da marginalidade. Quadro 1 Mudança no perfil do tatuado, durante o século XX, no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa. BRASIL Marginalidade (camadas baixas) Contracultura (camadas médias urbanas) Demais camadas sociais

ESTADOS UNIDOS Marginalidade (camadas baixas) e circo Elite econômica Contracultura (hippies)

EUROPA Marinha e camadas baixas (Nobreza e elite) Contracultura (hippies)

Camadas médias universitárias urbanas

Camadas médias universitárias urbanas

Tatuagem no Brasil No Brasil, como pode ser observado no quadro acima, o percurso da tatuagem e sua disseminação entre diferentes camadas sociais é distinto. No início do século XX, João do Rio (1997), cronista que descrevia a vida urbana carioca, afirmava que havia basicamente três grupos de tatuados na cidade: os imigrantes portugueses, as prostitutas e os marginais, todos englobados num heterogêneo grupo social que ele chama de “classe baixa”. Nesta “classe baixa”, o ócio é apontado pelo autor como uma das principais motivações à opção pela tatuagem, que era efetuada com agulhas de costura e fuligem (ou ainda tinta, anil, graxa ou pólvora) para marcar os clientes, numa técnica que o autor relaciona aos negros africanos.18 O tempo livre, segundo ele, levaria estes sujeitos a tatuarem-se. Esta visão é a mesma de Lombroso (2001), que imaginava que o tempo livre serviria como incentivo aos marginais para que se tatuassem. Os imigrantes, movidos pela saudade da terra natal, costumavam desenhar na pele signos relacionados a Portugal, ou que Do Rio (1997) assim percebia, como brasões da Coroa portuguesa e imagens religiosas, especialmente a Virgem de Fátima. Seriam elos de ligação que conectavam o imigrante com a terra aban86

18 Marques (1997) indica que algumas etnias africanas tinham por hábito serem tatuadas.

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19 Esta visão da tatuagem como indício de marginalidade e criminalidade explica porque na biblioteca do Museu Nacional/UFRJ a maior parte das publicações relacionadas ao tema é oriunda dos cursos de Medicina Legal, do início do século XX até a década de 1950.

20 Música gravada em 1979 por Baby Consuelo e popularizada como música-tema da novela Água-Viva, da TV Globo (Marques, 1997)

21 Lucky é o mais famosos tatuador do Brasil. De origem dinamarquesa, o ex-marinheiro fez fama em Santos e ficou conhecido entre os tatuadores brasileiros como o primeiro profissional do país. É importante considerar que os tatuadores operam uma distinção entre profissionais e amadores dentro de seu ofício.

donada, como se formulassem um novo elo, quase mítico, com o que Portugal teria de mais sagrado: a Virgem e a Coroa. Os imigrantes turcos marcavam, com freqüência, símbolos muçulmanos – espécie de amuletos – ou desenhos árabes, como franjas nas costas das mãos. Também com esse sentido mágico-sagrado, os negros marcavam desenhos relacionados aos seus orixás, usualmente em conjunto com algum pó contra mau-olhado. A tatuagem servia como amuleto mágico, inscrito na própria pele. E não apenas para estes grupos: cinco pontos representando as cinco chagas de Cristo, quando tatuados na mão direita, dariam ao punho maior força contra a o inimigo; a cobra atraía o sexo oposto; a sereia era símbolo de boa lábia; o peixe trazia perícia na água. As prostitutas se inclinavam sobre tatuagens cujo uso era efetivamente oposto, num âmbito mais de profanação do que de sacralidade. Costumavam tatuar nos calcanhares os nomes de antigos amantes. Desta forma, mostravam simbolicamente que relegavam os nomes de tais homens à esfera mais baixa, sujando-os constantemente e pisando-os. Prefigurava espécie de vingança, ao mesmo tempo em que demonstrava publicamente o corte de laços. Os imigrantes, ao contrário, buscavam com seus desenhos a manutenção de certos laços, pois a tatuagem é um processo que marca o indivíduo e desta forma pode abrir passagem a um determinado grupo, tanto quanto fechá-la aos demais. Do Rio (1997) também descreve o caso de criminosos e vagabundos. Um deles era chefe de um grupo de tatuadores: meninos entre dez e doze anos de idade que perambulavam pelas ruas do cais oferecendo seus serviços e engrossando as fileiras do que o autor considerou uma indústria, tamanha a popularidade da técnica na época. Este indivíduo tinha várias passagens na polícia por baderna, mantinha amantes e considerava-se poeta. Entre os criminosos, as tatuagens eram escondidas, ao contrário dos imigrantes que não tinham esta preocupação. Numa época em que as passagens pela polícia ainda acabavam nos centros de antropometria,19 a sociedade não via a tatuagem com bons olhos, relacionandoa ao crime e ao desvio, visão que Do Rio (1997) tende a criticar quando aponta operários e trabalhadores da classe baixa como sujeitos igualmente tatuados. As fontes secundárias sobre a tatuagem no Brasil não mencionam o uso da tatuagem por colonizadores portugueses nem tampouco por qualquer elite nacional, urbana ou rural. Há menção, contudo, ao uso da tatuagem entre jovens de camadas médias urbanas. O centro disseminador da prática é o Rio de Janeiro e a figura mais importante é Petit, o Menino do Rio20 descrito por Caetano Veloso. Segundo Marques (1997), o surfista carioca foi a Santos, cidade portuária de São Paulo, se tatuar e voltou com seu dragão no braço. Chamava a atenção por toda a praia, embora não tenha sido o primeiro tatuado a circular pelas areias de Ipanema na década de 1970. Nascido José Artur Machado, Petit tinha dezesseis anos quando foi tatuado por Lucky,21 em Santos. Embora Marques (1997) não indique em que ano a tatuagem foi operada, este foi presumivelmente 1972. A tatuagem e a beleza abriram portas para Petit. O surfista se tornou modelo e celebridade. Freqüentou programas de televisão e foi manequim para butiques de moda jovem. A novidade trazida por Petit foi a junção entre surf e tatuagem, junção esta que construiu uma cultura jovem estruturada em função da praia – especialmente Ipanema, que na década de 1970 era o pólo da contracultura carioca – entre a juventude das camadas médias cariocas, e que se tornou de certa forma a própria imagem do carioca: bonito, jovem, bronzeado, tatuado. Nesta época e até hoje, segundo Marques (1997), nenhuma cultura do surf no mundo utilizava a tatuagem. O autor afirma

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que antes de Petit, os surfistas brasileiros não se tatuavam. Ele inaugurou, desta forma, várias associações da tatuagem ainda prevalecentes. Se hoje se percebe a tatuagem como parte da praia, do surf, da juventude e do Rio de Janeiro, este imaginário é devido a Petit, que transportou, em sua pele, a tatuagem dos marinheiros do porto para o corpo da juventude dourada que freqüentava a praia carioca, iniciando uma trajetória de vanguarda. No Rio de Janeiro, a contracultura foi um movimento de vanguarda, radicado especialmente na Zona Sul da cidade, a região litorânea de maior poder aquisitivo e nível sócio-cultural (Velho, 1989). A questão aqui é que a contracultura, como a noção de vanguarda, implica uma crítica reflexiva à cultura dominante. A tatuagem de Petit é apresentada por Marques (1997) como um elemento geracional de rebeldia. Ela pode ter ganho este significado de crítica à cultura das camadas médias daquele tempo, ou às suas práticas corporais, ao longo de um processo de re-significação da marca. A princípio, a tatuagem parece ter sido uma novidade, uma invenção sobre a possibilidade de usos do corpo. O dragão de Petit projetou-o como ícone da juventude e, portanto, ganhou um significado que talvez não tivesse quando foi realizada. Enquanto os surfistas se apropriavam da tatuagem como parte da cultura praiana, desenvolvendo um novo significado para a prática, ela permeava outros grupos sociais. Marinheiros brasileiros, como os colegas europeus e norte-americanos, portavam a marca, bem como alguns militares. Marques (1997) indica que o público carioca não era apenas oriundo das hostes de surfistas, mas também composto pelo “pessoal ‘cabeça’ e os bad boys da época” (p. 192), bem como de capoeiristas,22 enquanto “em Brasília, Inácio tatuava militares (...) e no ABC paulista [formava-se] uma clientela de punks e congêneres” (p. 192). Cada centro urbano, aparentemente, desenvolvia um perfil próprio de clientela, de acordo com os grupos locais predominantes. Embora a prática da tatuagem tenha se disseminado no país a partir da década de 1970, o ofício foi sendo lentamente desenvolvido por pioneiros-aprendizes, no que Costa (2004) chama de porões: atividade desempenhada, a princípio, de forma amadora, fora do estúdio, com materiais precários, que foi paulatinamente se profissionalizando, também em função da progressiva facilidade em se adquirir materiais importados para a prática e da formação de um mercado produtor e consumidor destes produtos no Brasil. Cada vez mais é possível perceber a multiplicação de estúdios nas grandes cidades e a inauguração destes em cidades de pequeno e médio porte, o que indica a formação de uma clientela estável para o serviço, em todas as camadas sociais.

22 Em conversa com um tatuado praticante de capoeira, obtive a informação de que a prática se mantém entre eles, onde o apelido ganho na luta é tatuado no corpo.

Considerações Finais A tatuagem ocidental, como a entendemos hoje, percorreu um longo caminho do Pacífico Sul até a Europa e de lá para o continente americano. Prática associada a populações exóticas, ela passou a integrar o repertório ocidental de técnicas corporais como uma forma de adorno que, além de seu sentido estético, contém 88

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uma série de significados sociais. Dos marinheiros para as prostitutas e criminosos, o caminho seguido não está totalmente claro, havendo espaço para pesquisas que desvendem quem eram, de fato, os grupos que dela faziam uso, para além do imaginário popular. Embora a prática não estivesse efetivamente desaparecida na Europa, a sua importação do Pacífico Sul pelos marinheiros transformou a relação que o Ocidente manteve com ela a partir de então. Novos grupos passaram a ser associados ao uso de tatuagens e um novo imaginário sobre os tatuados foi progressivamente sendo formado. Os últimos grupos a fazerem uso dos desenhos inscritos na pele foram os jovens. A partir da popularização das tatuagens entre eles, a prática parece ter sido bem disseminada pelas sociedades ocidentais, atingindo as mais diversas camadas sociais bem como faixas etárias distintas, tanto entre homens quanto entre mulheres. Não mais associada a grupos marginalizados ou populações exóticas, a tatuagem é hoje parte do repertório de embelezamento corporal disponível a qualquer camada social. Forma de modificação corporal escolhida pelo indivíduo, seus significados sociais podem ser diversos, hoje bastante distintos dos usos passados da marca. O presente trabalho, longe de tentar esgotar o tema, optou por oferecer um panorama do movimento histórico que permitiu a atual popularidade da tatuagem nas sociedades ocidentais, incluindo o Brasil.

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*Andréa Osório é doutoranda em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, IFCS/UFRJ. É autora dos verbetes “Feminismo”, “Esoterismo” e “New Age” da Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX, organizada por Francisco Carlos Teixeira da Silva, e publicada em 2004 pela editora Elsevier.

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PSIQUIATRIA FORENSE

O PSICOPATA MORA AO LADO Adalberto Tripicchio*

Resumo: Minha intenção ao escrever este artigo é a de alertar o leitor ainda desprevenido desta idiossincrasia humana: o psicopata. Ele é uma realidade tangível, mais próxima de nós do que parece. Ofereço a descrição de algumas de suas características, ao mesmo tempo, que confesso nosso despreparo, enquanto profissionais e cidadãos, em lidar com a atuação destruidora destes seres. Tento fugir da terminologia técnica para não congestionar o texto, que já por si só, reconheço, é bastante pesado. PALAVRAS-CHAVE: CRIMINOLOGIA; MEDICINA LEGAL; PSICOPATOLOGIA FORENSE; ÉTICA; PSIQUIATRIA SOCIAL Abstract: My intention in writing this article is to alert the still unwary reader of a human idiosyncrasy: the psychopath. He is a tangible reality, perhaps closer to us than we imagine. I offer a description of some of his characteristics, and at the same time confess our lack of preparedness, as professionals and citizens, to deal with his annihilating action. I try to avoid technical terminology, so as not to clutter the text, which, admittedly, is quite heavy going. KEYWORDS: CRIMINOLOGY; FORENSIC MEDICINE; FORENSIC PSYCHOPATHOLOGY; ETHICS; SOCIAL PSYCHIATRY

Este artigo nos atinge profundamente – não pela maneira como foi escrito, mas pelo tema que aborda. Todos nós temos um psicopata adormecido em nosso inconsciente dinâmico – não o reprimido do nosso dia-a-dia, mas o inconsciente herdado filogeneticamente, chamado de vital ou procedural, e que jamais é conscientizado. Isto faz com que nos identifiquemos, involuntariamente, com muitas das atrocidades aqui relatadas. Fato este que nos assusta sobremaneira. Mas, é melhor conhecê-lo do que ignorá-lo. Esta é a essência do que R.L. Stevenson tentou nos passar no seu livro Dr. Jekill (O médico) e Mr. Hyde (e o monstro). da Folha de S.Paulo 09/11/2002 - 17h43 Suzane pede para advogada avisar irmão que está triste A estudante Suzane Louise von Richthofen, 19, que confessou ontem ter participado da morte de seus pais, Manfred e Marísia von Richthofen, pediu hoje a uma advogada que a visitou na prisão que contasse a seu irmão, Andreas, 15, que ela está muito triste. O garoto está com um tio.

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da Folha de S.Paulo 09/11/2002 - 04h19 Crime da rua Cuba continua sem solução Conhecido como “o caso da rua Cuba”, o assassinato do casal Jorge Toufic Bouchabki e Maria Cecilia Delmanto Bouchabki, ocorrido na véspera do Natal de 1988, permanece insolúvel. Na ocasião, o filho mais velho do casal, Jorge Delmanto Bouchabki, o Jorginho, então com 18 anos, passou a ser um dos suspeitos. da Folha de S.Paulo 21 Maio 22h01min 2004 Gil Rugai nega assassinato do pai O estudante Gil Grego Rugai, de 21 anos, negou, hoje, à Justiça ter assassinado seu pai, o publicitário Luiz Carlos Rugai, de 41, e sua madrasta, Alessandra de Fátima Troitiño, de 33. Em seu interrogatório, na 5ª Vara do Júri, o réu afirmou ainda que não esteve na casa do pai no dia do crime. Laudo recente da perícia constatou que a pegada de Gil é compatível com uma marca encontrada em uma porta arrombada da casa do publicitário. da Folha de S.Paulo, no Rio 19/12/2003 - 21h40 Guilherme de Pádua terá de indenizar Glória Perez em R$ 4,6 mi A novelista Glória Perez conseguiu na Justiça o direito de receber uma indenização de pelo menos R$ 4,6 milhões de Guilherme de Pádua e da editora O Escriba, que publicou o livro “A História que o Brasil desconhece”. Nele, o ex-ator conta sua versão para a morte da atriz Daniella Perez, filha da novelista, ocorrida em 28 de dezembro de 1992. da Folha Online 14/10/2003 - 14h17 Justiça suspende benefícios de condenados pela morte de pataxó A Justiça suspendeu hoje o benefício de regime semi-aberto para três dos quatro rapazes condenados pelo assassinato do índio pataxó Galdino de Jesus. O índio, de 44 anos, teve o corpo queimado, em 1997, enquanto dormia em um ponto de ônibus de Brasília. Eron Chaves Oliveira, Max Rogério Alves e Antonio Novély Cardoso de Vilanova tinham autorização para sair do presídio da Papuda exclusivamente para trabalhar e estudar. da Folha Online 14/11/2003 - 11h39 Estudante foi violentada e torturada por acusados, diz polícia A estudante Liana Friedenbach, 16, morta com o namorado Felipe Silva Caffé, 19, em EmbuGuaçu, na Grande São Paulo, foi violentada e torturada pelos acusados de envolvimento na morte do casal, segundo afirmaram policiais que investigam o crime. O resultado do laudo pericial sobre o estupro, no entanto, ainda não foi concluído. O adolescente R.A.C, 16, o Champinha, apontado como o líder do grupo, “idealizou o abuso contra Liana, oferecendo-a aos outros comparsas”, disse o delegado Silvio Balangio Júnior, da Delegacia Seccional de Taboão da Serra.Felipe morreu com um tiro na nuca no último dia 2, e Liana, a facadas, na madrugada de quarta-feira, segundo a polícia. Ainda segundo a polícia, Champinha foi o responsável por matar Liana e ajudou Paulo César da Silva Marques, 32, o Pernambuco, a matar Felipe. da Folha de S.Paulo 27/06/2005 - 15h24 Serial killer admite ter matado 10 pessoas no Kansas WICHITA (Reuters) - Um serial killer descreveu calma e objetivamente, em um tribunal do Kansas (EUA) na segunda-feira, como matou 10 pessoas, chamando suas vítimas de “projetos” para realizar suas fantasias sexuais. Dennis Rader, que confessou a culpa em 10 homicídios, contou de maneira indiferente como deu um copo de água a uma mulher depois que ela vomitou, só para

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estrangulá-la com uma corda, enquanto seus filhos, trancados em um banheiro, gritavam pela mãe. Em outra ocasião, ele enforcou uma menina de 11 anos no porão da casa dela, e se masturbou ao lado do corpo, depois de ter assassinado seus pais e um irmão de 9 anos no andar de cima. Os detalhes de uma série de assassinatos cometidos durante 18 anos por Rader foram narrados perante um tribunal do Condado de Sedgwick. Descrito como um homem religioso, Rader, que hoje tem 60 anos, será sentenciado em 17 de agosto. da Folha de S.Paulo 04/07/2002 - 15h24 Serial killer Jeffrey Dahmer MILWAUKEE-WISCOSIN - Jeffrey Dahmer, conhecido como “o açougueiro de Milwaukee”, cometeu 17 assassinatos entre 1978 e 1991, e reconheceu que comeu a carne de três vítimas. Morreu na prisão, assassinado por outro presidiário, em 1994. Agência Estado Sexta feira, 08 de novenbro de 2002 - 21:52h Matam os pais, e a maioria não mostra remorso São Paulo - Eles matam os pais, mas a maioria não demonstra remorso pelo que fez. Alguns tentam negar ou justificar-se. Roberto Peukert Valente disse que atirou nos pais e em três irmãos como se disparasse em “sacos de batatas”. Ele tinha 18 anos. Gustavo Pissardo tinha 22 anos quando teve o acesso de fúria que custou a vida dos pais, avós e uma irmã. A estudante Andréia Gomes Pereira do Amaral e o comerciante Constantino Cheretis, ambos com 20 anos, mataram, segundo a Justiça, para ficar com a herança e para se livrar de um incômodo: os pais. Carlos Fabiano Faccion, de 25, fez isso porque se opunham ao seu casamento. As vítimas foram pegas de surpresa, e os motivos eram fúteis. Esse é um crime ao qual a sociedade dedica uma repulsa antiga. O historiador Tito Lívio conta que matar os pais era considerado pelos romanos o mais grave delito comum que alguém podia cometer. Os culpados eram atirados da Rocha Tarpéia, a mais escarpada face da Colina do Capitólio. Peukert levou uma bronca da mãe em 1985. A música que ele ouvia de madrugada estava alta. Esperou um pouco, apanhou uma arma e atirou na mãe, no pai e nos irmãos de 18, 17 e 8 anos. Como os pais ainda agonizavam, resolveu esfaqueá-los, pois “estava determinado a matar”. Pissardo cometeu seu crime em 1994 em São José dos Campos e Campinas. Confessou após o enterro dos parentes. Andréia matou em 1994 o pai, um comerciante, e a mãe no apartamento triplex onde moravam, em Santos. Para tanto, usou o namorado, o adolescente D., de 17 anos. Cheretis foi condenado por matar os pais, Emanuel e Letaxia, com 21 facadas em 1993, no Brás, centro de São Paulo. Carlos Fabiano matou neste ano os pais, Carlos Alberto, de 52 anos, e Maria Aparecida, de 46, e três parentes em Batatais, no interior paulista. No fim, todos acabaram presos.

Resta-nos criar um oportuno e impreterível distanciamento afetivo para suportar o transbordamento agressivo e destruidor destas manchetes. Assim, como um mecanismo natural de defesa de nossa psique, vamos, aos poucos, nos auto-anestesiando ante a brutalidade desta monstruosa e gratuita violência cometida entre humanos. Esta realidade horripilante desafia nossa melhor ficção literária a superá-la. Um exemplo interessante é a reação do público cinéfilo norte-americano desde a guerra do Vietnã. Para que ele seja emocionalmente atingido, nas suas confortáveis salas de projeção, é preciso que se mostre nos filmes de ação algo que somente os efeitos especiais de extermínio da vida conseguem atingir, para que possa ser ultrapassado o limiar de excitabilidade neuronal destes seres, tal o nível de desconexão sináptica atingido por eles no seu cotidiano da não-ficção. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Também os europeus do pós-guerra, claro. Nos dias de hoje há uma exposição de arte itinerante pelas suas grandes capitais. As longas filas são para apreciar esculturas feitas em cadáveres humanos por um anatomista de Heidelberg, o Prof.Dr. Gunther von Hagens, que consegue comprar de famílias pobres chinesas os corpos de seus familiares presidiários, tudo dentro da lei. Quem já entrou em contato com este trabalho (não pretendemos discutir seu valor estético, e, até elogiamos sua técnica original de plastinação da matéria-prima), e quiser vê-lo mais de perto, assista ao filme alemão, “Anatomia” (Anatomie), de 2000, dirigido por Ruzowitzky, com a bela Franka Potente, no proscênio. Parece que conseguimos, por alguma via, exportar o nosso gigante adormecido aos quatro cantos do mundo.

Em geral, as perplexas testemunhas das tragédias jornalísticas dizem: “... era um rapaz um tanto tímido, mas simpático”, ou “... essa garota era uma graça, amável com todos nós”, ainda “... encontramo-nos no elevador do prédio inúmeras vezes, e este moço sempre nos cumprimentava, nunca tivemos uma queixa dele”. A desvalorização da vida do Outro, e sem causa aparente, ficou marcada na história da literatura universal do crime pelo livro Laranja mecânica (A clockwork orange), de Anthony Burgess, que virou filme de Kubrick. A única ficção que ali existe é a tentativa de recuperação do protagonista, o adolescente Alex, por meio de técnicas de condicionamento psicológico;1 no mais, tudo é absolutamente verossímil. Insisto que minha intenção não é a de chocar o leitor, mas a de alertá-lo e preveni-lo contra esta espécie mutante, o Homo desolator (devastador; que espalha a desolação – foi o melhor que consegui em latim). Basta o estudo da morfologia de um delito para identificar-se se foi cometido por um psicopata, ou não. E, entre nós, eles aparentam a mais absoluta normalidade psíquica e social. Mesmo os policiais confessam, muitas vezes, ficarem chocados com tais acontecimentos, apesar dos anos de experiência com o crime. Claro que nem todo homicida é psicopata. Para se chegar a um diagnóstico, se houver esta suspeita, a justiça nomeia um ou mais psiquiatras-peritos para consultarem o criminoso. Ao exame, o que mais chama a atenção nos psicopatas é a sua frieza e total descompromisso com o que narram, em detalhes milimétricos, de como mataram suas vítimas. No caso de Suzane (sendo caso público e notório não tenho a proibição do sigilo médico), p.ex., contou-me quem a acompanhou no dia da reconstituição do assassinato de seus pais, que ela estava absolutamente calma e segura, e, notem, era a primeira vez que voltava à sua casa depois da tragédia. Dissimulada ao extremo, quando percebia que ia ser fotografada ou filmada, levava um lencinho às vistas, para simular um choro.

Psicopata, para a escola francesa de psiquiatria, é um termo genérico, como o seria para qualquer outra especialidade médica, por exemplo, pneumopata, nefropata, cardiopata etc. Para a escola hispano-germânica,2 psicopata define uma ca94

1 O que significa que não bastam os cachorros de Pavlov salivarem ao ouvir uma campainha para que nossa complexa personalidade siga os mesmos princípios.

2 A tradição da Escola Alemã de Psiquiatria foi seguida, revista e ampliada pelos psiquiatras espanhóis; foi nesta Escola que fizemos nossa formação.

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3 Os demais nove tipos de Personalidades Psicopáticas são: hipertímicos, depressivos, inseguros de si mesmo, fanáticos, ostentativos, lábeis de humor, explosivos, abúlicos e astênicos (segundo o Prof. Kurt Schneider).

4 De fácil identificação, estou me referindo ao Dr. Bacamarte, protagonista do lúcido conto do mestre da Literatura Universal, Machado de Assis, “O Alienista” (São Paulo: Editora Saraiva, 1957).

tegoria específica de anomalia psíquica. Não é uma síndrome, menos ainda uma doença. É uma personalidade anormal, no sentido de ter todas as qualidades da normal, tais como, raciocínio temático, boas atenção e memória, inteligência às vezes elevada, afetividade, poder decisório e apto para a ação, porém, cada qual, em quantidades proporcionalmente diferentes (distúrbio quantitativo) da média estatística. Alguma dessas qualidades pode até faltar por completo, como no tipo que estamos expondo: a emoção. Representa um risco para a comunidade. Seu conceito, portanto, é mais social do que psiquiátrico: é uma sociopatia. O inglês a chama moral insanity. Identificar um indivíduo como personalidade psicopática, hoje chamada eufemisticamente de “transtorno de personalidade”, não é fácil, pelo simples fato de ser ele o espécime da Zoologia que mais se assemelha ao Homo sapiens sapiens comum (o “normótico” = fusão de normal com neurótico, condição esta da qual ninguém de nós escapa; este nome não é técnico, mas é de bom humor). O psiquiatra alemão Kurt Schneider, que foi Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Heidelberg, e Reitor da mesma, dedicou grande parte de sua vida acadêmica e profissional ao estudo deste tipo de personalidade. Aliás, o professor Schneider chegou a uma lista com dez tipos diferentes delas. Em psiquiatria clínica e forense, interessa-nos mais de perto uma destas dez, a personalidade chamada “sem sentimento”, sendo que as outras nove3 não trazem maior risco à sociedade, podendo até ser usadas como um padrão classificatório para a tipologia psíquica humana normal. Portanto, quando aqui uso o termo psicopata, entenda-se que é o tipo “sem sentimento”. Schneider (1974) tentou uma conceituação geral para esses dez tipos de existência: “A personalidade psicopática é aquela que sofre ou faz sofrer à sociedade”. Ainda que não seja uma definição médica ou psicológica, mas social, ela é muito imprecisa e discutível, da qual nenhum ser humano escaparia – quem discordar que atire a primeira pedra. Estaríamos, assim, arrogante e machadianamente,4 psiquiatrizando a Humanidade inteira. Mas, a verdade é que o fenômeno existe por si só, chamando como se quiser, ou dando qualquer outro tipo de definição. Convivemos vários anos com psicopatas que cometeram delitos e foram internos do Manicômio Judiciário do Complexo Hospitalar de Juqueri, em Franco da Rocha-SP. Sinceramente, nunca surpreendemos qualquer destes psicopatas expressando algum tipo de sofrimento, fato que, para nós, contradiz a definição tentada por Schneider. Para entendermos o funcionamento psíquico desse Ser, e, da maneira a mais simples possível, começo dizendo que nossa personalidade é composta de Razão, Emoção e Vontade. Isto é, de um conjunto de funções intelectuais (razão), de funções afetivas (emoção), e de funções volitivas, sendo que estas últimas nos levam, após uma escolha e decisão, à ação, completando a esfera volitivo-ativa. Estas três áreas da personalidade funcionam em perfeita integração, formando uma individualidade indissolúvel. Na formação da personalidade do psicopata sem sentimento, encontramos um grande vácuo no setor das emoções. A sinonímia deixa isto claro: frio de ânimo, desalmado, inafetivo, atímico. Aos antigos psiquiatras mais radicais da escola genético-organicista (que tratavam um paciente sem alma) não ficavam dúvidas dos determinantes hereditários desta anormalidade. Machado de Assis diz que a ocasião faz o furto, pois o ladrão já nasce feito. Esta expressão do “bruxo do Cosme Velho” entendemos seja fruto de suas leituras dos clássicos da Psiquia-

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tria fisicalista francesa da época - lidos no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Na atualidade preferimos seguir o moderado caminho do meio, sem cair no pólo oposto dos psicodinamicistas (que tratam um paciente sem cérebro), mas dando a devida importância aos estímulos da Cultura na qual se desenvolveu o examinando. No máximo, posso concordar que o temperamento (a maneira de sentir) seja predominantemente genético, e que o caráter (a maneira de agir e reagir) seja predominantemente memético5 (cultural). Aliás, a dicotomia genético/memético, ou inato/adquirido,6 nas origens da conduta humana se mostra refratária a uma qualificação neste sentido, na medida em que ela é um produto complexo destas duas fontes de determinação apontando, sempre, para uma integração destes fatores. O professor Freud costumava dizer: “O adquirido hoje, será o herdado amanhã”. Personalidade, então, é o conjunto formado pelo temperamento, pelo caráter e pela inteligência em conseqüência da unidade inato/adquirido na qual se desenvolve. Ainda, corroborando com esta concepção, do ponto de vista biológico-evolutivo, nosso cérebro cresceu em tamanho muito mais pela demanda Social na relação inter-hominídeos do que pelos recursos armazenados e herdados para enfrentar os desafios da Natureza.7 Não se pode garantir que a todo sociopata faltem 100% dos seus sentimentos. Acredito que haja um continuum que vai de 0 a 100 unidades de sentimentos, se assim podemos chamar. Digamos que o nível 100 seja a faixa da normalidade, abaixo dele teremos expressões de conduta que irão denunciando o grau de embotamento afetivo do psicopata. Claro que quanto mais próximo do nível 0, maior periculosidade representará para a sociedade.

Em Filosofia dos Valores aprendemos com vários autores que só se pode construir uma Escala de Valores pessoal se tivermos vida afetiva. Costuma-se agrupar os valores em quatro categorias: v. éticos, v. estéticos, v. lógicos, e v. religiosos. Ora se faltar sentimento faltarão também os valores todos. Chamar um psicopata de amoral,8 como tantas vezes ouvimos, não esgota a somatória de anormalidades deste indivíduo, pois assim, como lhe falta a ética, para desenvolver uma regra moral, distinguindo a vivência9 plena do significado de bem e de mal, faltam-lhe, também as demais três categorias. Imaginemos um psicopata que entre no Museu do Louvre, em Paris, e com uma faca destrua as pinturas que lá se encontram. Ficaríamos todos chocados. Ao transgressor isto será o mesmo que tomar um copo de água. Para ele não existe o valor estético. Ainda, imaginando que um físico genial dos nossos dias descubra a formulação da Teoria Geral do Campo Unificado, e que movido por grande emoção sofra um infarto do miocárdio fulminante. Se um psicopata tiver nas mãos os originais destas equações, ele poderá destruí-las, não por gosto, porque psicopata não tem gosto, mas para zombar da humanidade e mostrar seu poder, sem nenhum remorso. Claro, ele não tem amor pelos valores lógicos (ou, epistemológicos se quiserem). Da mesma forma, poderá profanar templos de quaisquer religiões, pois isto nada lhe diz. Ele não tem medo de um castigo. Medo é uma emoção, e as emoções lhe faltam. 96

5 Segundo Richard Dawkins, meme é o equivalente de gene. Este está para a Hereditariedade, assim como aquele está para a Cultura. Recomendamos a indispensável leitura de seu livro O gene egoísta. São Paulo: EDUSP, 1979.

6 Em língua inglesa tornou-se conhecida a expressão nature/nurture (inato/adquirido), cunhada por Francis Galton no século XIX, parafraseando Shakespeare em sua obra The tempest, referindo-se, nela, aos elementos que compõem a personalidade. 7 Há um capítulo intitulado “Biologicamente cultural” de Bussab & Ribeiro, que desenvolve este pensamento com muita propriedade, em Psicologia: Reflexões impertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, pp. 175-193.

8 O psicopata é um amoral. O transgressor comum, que distingue a vivência do bem e do mal, é um imoral. 9 Vivência é um neologismo castelhano, há muito proposto pelo filósofo Don José Ortega y Gasset, que foi adotado em nossa língua, e significa experiência vivida subjetivamente. Vivência corresponde ao Erlebnis, do alemão, sem correspondência neolatina.

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Assim, este tipo de psicopata não tem sentimento de culpa. Em termos psicanalíticos, nele não se forma um Super-Ego. Bem diferente do assassino Raskolnikof de Crime e Castigo, de Dostoiévski, publicado no século XIX. A tradução do título seria mais precisa como “Culpa e Expiação”. Nesta obra, o criminoso insuspeito corrói-se tanto de remorso pelo seu ato, e por dois longos anos, que resolve entregar-se às autoridades policiais confessando seu delito.

Do mesmo modo que o psicopata não tem sentimentos em relação ao Outro, também não os têm em relação a si mesmo. Lembramo-nos, neste sentido, de um matador em série, jovem que fazia ponto no Jardim do Trianon, na cidade de São Paulo, ‘ponto’ tradicional de garotos de programa, onde esperam seus clientes homossexuais. Este matador havia assassinado a facadas mais de uma dezena de clientes. Certa vez o vimos, no Manicômio Judiciário, com um alicate nas mãos ensangüentadas arrancando seus próprios dentes. Quando lhe perguntamos por que fazia aquilo ele respondeu que era só para ver até onde ele agüentava. Assim, do ponto de vista emocional, ao psicopata tanto faz ir ao homicídio quanto ao suicídio. Entretanto, mortos eles não poderiam exercer sua vontade de poder; por isso é raro neles o suicídio. LICHTENSTEIN e SMALL (1945) publicaram em seu Tratado de Psiquiatria um exemplo admirável de psicopatia, que se tornou clássico e que aqui transcrevemos: Artur Warrer Waite era um cirurgião-dentista, que, em virtude de ter assassinado o sogro e a sogra, foi eletrocutado. Em declaração a um de nós, enquanto estava encarcerado, aguardando julgamento, Waite explicou que, durante o curso de bacharelado e, mais tarde, já exercendo a profissão de dentista, arrombara fechaduras, roubara modelos de dentaduras feitos por outros estudantes e havia mentido repetidamente. Logo que terminasse o curso, pretendia conseguir um lugar de dentista numa empresa na África do Sul. (...) Enquanto estava exercendo a sua profissão na África do Sul, roubava todo ouro, prata e platina que encontrava ao seu alcance e levou a sua promiscuidade sexual aos maiores extremos. Quando sua existência se tornara precária por causa da iminência da descoberta dos seus delitos, resolveu praticar os assassinatos, os quais mais tarde foram realizados. Ainda não mantinha relações com suas vítimas, mas conhecia sua reputação. Tratavam-se de pessoas que viviam em casa própria na mesma cidade onde ele nascera, e tinham fama de ricos. Concluído o plano, renunciou o posto na África do Sul e partiu para Nova York onde se matriculou numa Faculdade para fazer cursos de bacteriologia e toxicologia, pois isso fazia parte da preparação de seus crimes. (...)

Pouco antes de concluir os cursos, publicou nos jornais de Michigan a notícia de que estava prestes a regressar à sua cidade natal, onde pretendia abrir consultório. Chegou à cidade precedido do maior prestígio. O cenário estava preparado. Desde logo começou a receber convites de famílias distintas para comparecer a acontecimentos sociais, e apesar de que muitos convites provinham de famílias que tinham filhas em idade de casar-se, e eram pessoas de alto nível REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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social, declinou invariavelmente a todas essas distinções. Esperava que chegasse a escolhida dos seus planos, e, na hora certa, esta não foi recusada. Pouco tempo depois estava casado com a filha daquela família que havia incluído em seu projeto assassino. Não perdeu tempo e, imediatamente, começou a por em prática as suas maquinações diabólicas. Vejamos como ele as descreve: A velha (a sogra) se comportou muito bem, porém o velho me deu um trabalho horrível. Administrei um pouco de arsênico à velha e ela morreu tranquilamente. Era um dia frio e úmido, convidei o velho para dar um passeio. Eu me agasalhei bem e disse ao velho que não havia necessidade de abrigar-se, pois não fazia frio. Molhei seus sapatos e umedeci o assento do automóvel. Deixei os vidros do carro abertos. Na mesma noite começou a queixar-se de irritação da garganta e eu o mediquei, fazendo-lhe uma embrocação com germes de difteria, porém os malditos não se desenvolveram. Poucos dias depois retirei a lâmpada de sua mesinha de cabeceira e coloquei uma caixa na entrada do seu dormitório para que ele tropeçasse e caísse. Efetivamente, levou uma queda e ficou com um ferimento na tíbia da perna direita; apressei-me em fazer um curativo, tendo aplicado bacilos de tétano sobre a ferida e feito compressão com algodão e esparadrapo. Mas, infelizmente não aconteceu nada! Nos dias seguintes, administrei ao velho grandes quantidades dos bacilos que tinha à mão: bacilos de tifo, pneumococos e outros que não me lembro no momento. Não adoecia! O velho era imune a todas as enfermidades infecciosas.Tive que me decidir a aplicar-lhe arsênico. E isto deu resultado. Ao anoitecer chamou à porta do meu quarto: ‘Vem depressa, por favor. Estou me sentindo mal’. Mandei que ele se deitasse no sofá e fui ao meu quarto apanhar um frasco de clorofórmio. Molhei bem a almofada com clorofórmio e apertei-a sobre o seu rosto até o momento em que ele morreu. O senhor não imagina o trabalho que me deu aquele maldito velho.

Lichtenstein e Small fazem alguns comentários sobre esta observação e dizem que Waite, durante o tempo em que fazia as declarações, comia tranqüilamente a sua refeição. Esclareceu ainda que era “amante” da música e, como sua esposa tocava piano de maneira admirável, não tinha sido possível matá-la.

Podemos lhes garantir que estes jovens, moças e rapazes que abalam a opinião pública com seus crimes bárbaros são todos psicopatas (usuários ou não de drogas). O verdadeiro psicótico (a loucura popular), raramente chega a este nível. A psicopatia não faz discriminação de idade, orientação sexual, raça, status sócio-econômico, grau de escolaridade, credo religioso etc. Entre nós, os normais/neuróticos, e os francamente psicóticos, se situam os psicopatas. Eles não são doentes mentais. O seu transtorno é quantitativo. Falta-lhes um chip na formação de sua personalidade. Eles não apresentam um sintoma sequer. Claro, pois não tendo emoções, eles não sabem o que é sofrer uma ansiedade, uma crise de angústia, insônia, inapetência, depressão etc. Enfim, jamais procuram um psiquiatra ou um psicólogo. 98

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A sua recuperação é um constante desafio para os clínicos, pois o psicopata não responde aos psicofármacos, e, se já entrou na adolescência, nem às psicoterapias. Podemos dizer, sem medo de errar muito, que o psicopata já adquiriu sua total anormalidade até, no máximo, os cinco primeiros anos de vida, e a leva para o túmulo. A incidência de psicopatia em famílias com psicopatas entre seus pares é maior do que na população em geral. Mesmo assim, não abrimos mão da unidade nature/nurture na gênese da formação de sua personalidade. Há uns trinta anos, quando observávamos crianças pequenas matando o passarinho da casa, afogando o gato na piscina, trancando o cachorro no forno aceso do fogão etc., víamos sinais promissores de uma psicopatia em formação e se expressando. Hoje, com o nível de violência em que vivemos no cotidiano, já estamos todos familiarizados a sinais como estes. E, se tais exemplos ocorrem, são por pura imitação. O que interessa identificar são os pioneiros, os pontas-de-lança, formadores de opinião, que impõem um novo modelo de conduta anormal.

Se a psicopatia vem aumentando? É claro que sim. Nossa atual Cultura Ocidental, como também a Oriental, é fábrica ISO 9000 de psicopatas. A deterioração dos costumes é fruto da perda dos Valores. Não só do indivíduo, mas muito mais dos grupos que, de grupo em grupo, vão formando uma nova e mais desumana Cultura (compreendendo-a como o conjunto dos usos e costumes de uma população numa dada região e numa dada época). Se um pai de família há muito desempregado comete um assalto (roubo à mão armada) para levar comida a seus filhos menores, teremos que ter muito cuidado em identificar sua personalidade. Este indivíduo será necessariamente um sociopata? Claro que não. Sua atitude pode ser a expressão do desespero dos desassistidos por este mundo afora. Certo é que nem todos os desempregados chegam a esse desfecho. Mas, aí entram os traços de personalidade de cada um, e que não precisam ser exatamente psicopáticos. Lembram-se do filme Um dia de fúria (Falling Down), dirigido por Joel Schumacher, cujo personagem, num momento de grande sofrimento doméstico, ao longo de um único dia, após uma série de contingências adversas, é por elas transformado num serial killer. É um bom exemplo acadêmico das chamadas crises psicopáticas cometidas por alguém que, não sendo um verdadeiro psicopata, é um possível normótico “reagindo”, num evento episódico e isolado, como tal. Goethe dizia que nunca vira crime algum que ele mesmo não pudesse cometê-lo. Entretanto, ao que se saiba, não há notícia de que tenha cometido algum. O transtorno da psicopatia é considerado uma anormalidade, portanto, um fenômeno estatístico, vale dizer, o menos freqüente em relação à média de uma população geral. Porém, em meios específicos, como os do crime organizado, esta relação se inverte, e o padrão da Curva de Gauss mostrará que a conduta psicopática se torna a norma deste ambiente. Nestes casos, não é necessário que uma pessoa tenha passado por um início de vida psicopatizante. Estes seriam os “psicopatas primários”. Existem aqueles que são psicopatizados secundariamente, quando, ao longo da vida, e na microcultura em que se desenvolvem, imperam os fatores deformantes, em relação à macrocultura, do caráter de qualquer ser humano. É quando a chamada “crise psicopática”, há pouco assinalada, passa a fazer parte do cotidiano destes indivíduos. Este modus vivendi permanentemente REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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crítico é incorporado como um padrão de conduta e traço de caráter definitivo na personalidade do delinqüente/vítima. Embora em tom de sátira e de exagero, o livro de Bret Easton Ellis, American Psycho, publicado em 1991, mostra a vida antropofágica, de tão competitiva, dos yuppies de Wall Street, que trabalham no ramo do mercado financeiro. Esta história virou filme, Psicopata Americano, lançado em 2000 que, diga-se de passagem, foi roteirizado com grande suavidade, pois no original as cenas de sangue e tortura gastam de duas a três páginas. Cito-o apenas porque mostra como uma Cultura específica se torna importante no desenvolvimento da psicopatia. Naquele terreno sem valores e só de frivolidades, basta uma pequena semente para serem moldadas demiurgicamente aquelas monstruosidades. Coloco no plural, pois não é somente o protagonista, Patrick Bateman (o sósia de Fernando Collor) quem dá nome à obra. Todos os seus colegas de trabalho foram contaminados pela deformação de caráter. Uns mais, outros menos, dependendo do limiar das tendências psicopáticas inatas de cada um. Nunca será demais lembrar daquelas crianças heroínas que, por serem pequenas, conseguiam ultrapassar facilmente as estreitas aberturas dos porões onde se escondiam os partisans da Resistência Francesa à Ocupação Nazista de Paris. Elas, às escondidas, iam aos mercados públicos das ruas, e, num gesto de bravura, conseguiam recolher alimentos sem que ninguém as visse, especialmente os soldados alemães, para levar àqueles que tentavam proteger sua Pátria morando em fétidos subsolos. Uma vez acabada a Guerra, de imediato, estas crianças foram condecoradas como Heróis de Guerra, por Charles de Gaulle. Ora, como elas só aprenderam a fazer esse tipo de atividade na vida, continuaram catando alimentos nos mercados. Mas agora, em tempos de Paz, aquilo havia se tornado roubo. Acabaram todas presas como marginais delinqüentes (sociopatas).

Infelizmente, somente compreendemos razoavelmente bem como se desenvolve, primária e secundariamente, a psicopatia. O caminho inverso, teoricamente, pareceria simples, bastando inverter o sinal daquela via. Este seria o princípio diretor da Psiquiatria, do Sistema Penitenciário e da Febem em nosso país: a despsicopatização do indivíduo. Na prática, este procedimento tem se mostrado inviável. Muitos pontos poderiam ser aqui levantados quanto ao resultado desta triste realidade, mas não cabem neste pequeno artigo. E não é só em terra tupiniquim que isto acontece; outro bom exemplo pode ser encontrado nas máfias internacionais, sobretudo as italianas,10 que Hollywood tanto divulga. O diagnóstico diferencial da psicopatia com outros transtornos mentais tem de ser muito criterioso, pois facilmente podemos ser ludibriados pelos psicopatas. Não por eles serem superdotados, como diz a lenda. O que se passa com a inteligência destes indivíduos é o fato dela ser sempre usada com 100% de rendimento. Eles não se afligem por nada, não existe neles o fenômeno da catatimia, que é a interferência da emoção sobre a razão. Quando, p.ex., nos submetemos a um exame de seleção, é comum ficarmos a tal ponto ansiosos que temos um “branco total”, e mal assinamos nosso próprio nome, isto é catatimia. O psicopata não conhece este tipo de reação, sua inteligência pode não estar acima da faixa da normalidade, mas ele sempre a usa in totum, parecendo uma pessoa brilhante. Muitos de nossos políticos, que mentem e driblam seus 100

10 A Adranghetá é a poderosa máfia da Calábria que, segundo a Polícia italiana, superou em força, e dimensões, a Cosa Nostra da Sicília. A Adranghetá, recentemente, comprou “um bairro inteiro” em Bruxelas, capital da Bélgica, com dinheiro reciclado proveniente do narcotráfico. A Camorra de Nápoles também tem grande poder em sua região.

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arguidores da maneira a mais cínica possível, sempre mantendo um sorriso nos lábios, e sem perder o fio da meada, são outro bom exemplo do que estamos falando. Enquanto que outros, não-psicopatas, tropeçam na língua, ficam tão irritados ou angustiados que acabam se incriminando, mesmo na inocência. Quanto ao uso, ou não, de drogas, inclusive o álcool, é claro, temos que pesquisar em criminalística, e saber se a intenção de cometer o delito já existia antes do uso da droga. Se a intenção é anterior, a droga seria apenas um fator facilitador do procedimento da ação criminosa. Neste caso, a lei desconsidera alguma alteração de consciência pela química usada, pois o dolo já se caracterizava antecipadamente. Isto vale para psicopatas e não-psicopatas. No caso do psicopata, embora ele conheça as diferenças entre o bem e o mal, saiba o que é certo e o que é errado, pois tem inteligência para isso, este fator intelectual não o proíbe de cometer um crime, pois para ele nada significa afetivamente, seria o mesmo que distinguir sensorialmente o preto do branco. À psiquiatria forense cabe dizer que ele é semi-consciente pelo delito; à lei, que é semi-imputável; e do ponto de vista jurídico, que é semi-responsável pelo delito cometido, recebendo metade da pena e indo para um Hospital Psiquiátrico, onde será reavaliado de 6 em 6 meses, para contemplar a possibilidade de ser, ou não, readmitido na sociedade.

Aqui entramos numa aporia, ou seja, num beco sem saída. Uma vez formada a personalidade do psicopata, primária ou secundariamente, ela se cristaliza, mostrando-se absolutamente refratária a qualquer tipo de intervenção terapêutica ou re-educacional de que dispomos no momento. Aqueles que acreditam na recuperação de um psicopata, mesmo diante destes fatos, se parecem mais a românticos sonhadores, que nunca se lambuzaram no convívio com esta anomalia. Com todo o respeito aos psicanalistas competentes e sérios, mas chamar a psicopatia de neurose de caráter, não a torna uma categoria psicanalizável. Ora, como tratar uma neurose sem sintomas? Como tratar alguém que não tem angústia? Como se estabelecer a transferência para o tratamento analítico, já que ela é uma onda emocional que o analisando investe em seu analista, se ele não tem emoções? Eles não apresentam delírios, nem alucinações ou agitação psicomotora, portanto, os fármacos antipsicóticos de nada adiantam. Não conhecemos um psicopata sequer, egresso da medida de segurança, que não tenha reincidido no crime. Ainda, só pode ser incluído na categoria de psicopata o indivíduo que tiver inteligência nos limites da normalidade; que não tenha tido qualquer tipo de lesão, ou antecedentes de doenças infecciosas que tenham atingido o encéfalo (cérebro e demais órgãos nervosos no interior do crânio). Enfim, o diagnóstico é feito por exclusão. Quando nada orgânico for encontrado, e a conduta do indivíduo mostrar-se anormal por insuficiência de afeto, aí sim, pode-se incluí-lo nesta lista. Talvez, em um futuro próximo, este conceito ganhe novas luzes.

Uma pergunta que costumava fazer aos psicopatas internos sob minha responsabilidade era: “Quando o senhor sair daqui irá matar novamente alguém?” A REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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resposta: “Não seu doutor, de jeito nenhum”. Ao que eu retrucava: “E por que não?” Resposta: “Porque eu não quero voltar prá cá, não”. Fica claro que o assassinato de alguém não lhe faz a menor diferença, o que ele não quer é perder a sua liberdade. E, liberdade para exercer a sua vontade de poder, pois ele só não tem sentimentos; ‘bobo’ ele não é. Este poder fica claro nos matadores em série, o serialkilismo. Somente matar não preenche o vazio existencial de um psicopata, que acaba caindo no tédio.11 Para fugir a este tédio, sua vontade de poder se volta ao desafio, em geral, à tentativa de humilhar a polícia que o persegue. Os serial killer sempre deixam pistas para acirrar os ânimos dos que o investigam. Um bom filme que mostra esta situação é Seven – Os sete crimes capitais, dirigido por David Fincher - com a interpretação irrepreensível de Kevin Spacey como o psicopata John Doe. Por fim, o psicopata facilita de alguma maneira para ser descoberto e preso. E, numa epifania do macabro poder, conta suas proezas homicidas, num ato de vitória, subjugando as autoridades à imensa angústia da impotência derradeira. Entretanto, o tédio do psicopata será sempre o grande vencedor final.

11 O tédio é uma figura trazida pelos autores da Filosofia Existencial. Ele não é um sintoma afetivo, mas uma condição humana ante o absurdo da vida na qual somos todos lançados. Portanto, a PP sem sentimento não é imune a ele. Contra o tédio nenhum psicofármaco traz resultado. Tampouco as psicoterapias que, no enfrentamento do tédio, acabam resvalando em algum tipo de religiosidade, numa atitude final de desespero do terapeuta. Recomendamos a leitura atenta do livro de Martin Heidegger, Seminários de Zollikon, editado pelo psiquiatra e analista existencial suíço Medard Boss (Petrópolis-RJ: Vozes, 2001).

Como saber se o seu vizinho, ou o síndico do prédio, ou a namorada de seu filho são, ou não, psicopatas? Com absoluta certeza não saberemos antes que um crime o denuncie. Em todo caso, ele poderá, às vezes, ser o popular “esquisito” ou “desequilibrado”; alguém cuja simples presença nos dá um mal-estar indefinido; alguém que pode falar da sua vida íntima, privativa do seio familiar, abertamente a qualquer um que encontre por aí; aquele que entrega a mãe, o pai, os avós, irmãos, amigos, para se safar de alguma banal penalidade, mas, acima de tudo, aquele que demonstra uma gélida falta de compaixão em relação ao próximo. Na dúvida, não queira identificar se a cobra é venenosa. Saia de mansinho, e não cruze seu caminho, pois, caso contrário, estará comprando um inimigo eterno que um dia o apunhalará pelas costas. Nesse sentido, uma analisanda certa vez chegou ao nosso consultório transtornada, branca como cera, dizendo que só por um milagre seu filho não caíra no poço do elevador, de um andar alto que era o seu. Depois, mais calma, contou que um jovem de seu prédio novamente havia feito uma “brincadeira” de destravar as portas do elevador, mesmo ele não estando no andar. Seu filho, naquele dia, automaticamente abriu a porta e deu um passo no vazio. Por sorte, ainda estava com a mão no puxador da porta e, com o auxílio da mãe que o acompanhava, conseguiu segurar-se, dar um impulso com uma das pernas, e voltar a apoiar-se na soleira da porta. Ela disse-me que o síndico do prédio já havia repreendido este jovem condômino, que morava só com a mãe separada. Seu pai já havia ido ao prédio, com uma arma à mostra na cintura e, aos berros na frente do condomínio, queria saber quem estava querendo briga com seu filho. Vemos aí o forte componente familiar nas psicopatias. A orientação que demos foi a de não entrar em choque com esta família. Um mês depois minha cliente mudou-se.

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12 Escreveu ele, também, Blade Runner.

13 Para tanto recomendamos a leitura do livro O erro de Descartes, de 1996, do português radicado nos USA, Antonio Damásio. 14 Neste ponto sugerimos a leitura instigante do livro de M. Ridley, Origens da Virtude: Um estudo biológico da solidariedade. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2000. Ainda no mesmo tema, recomendamos a leitura das profundas reflexões feitas por Robert Wright no seu livro O Animal Moral, de 1996 (Rio de Janeiro: Campus), em especial o cap. 16 – “A Ética Evolucionista”.

O que fazer, então, com um psicopata que cometeu um crime? Manter o que está estabelecido? Isto é, depois de recluso, se for aprovado no exame rotineiro de periculosidade, voltar à liberdade? Não, pois fatalmente ele reincidirá. Além do que não temos como negar sua periculosidade, a não ser se tivéssemos uma pré-monição. Via de regra, o psicopata chega ao grave delito, e somente a partir daí temos uma grande probabilidade de inferir sua identificação. Infelizmente, esta seqüência temporal impede-nos de confirmar a suspeita de psicopatia preventivamente. E, ainda que o fizéssemos, não teríamos nenhum instrumento legal para coibir o crime que se avizinha. A ficção científica do excelente autor Philip K. Dick, Minority Report - A nova lei,12 que Spielberg tornou filme, baseia-se nesta possibilidade: prender o futuro criminoso antes que ele cometa o crime, por meio de um sofisticado ‘Programa Governamental Pré-Crime’, que envolve a fantástica viagem no tempo. Mas, voltando à realidade, mesmo utilizando entrevistas clínicas rigorosas, os mais fidedignos testes projetivos psicológicos, eletroencefalogramas digitais, neuroimagens funcionais, exames bioquímicos e algo mais, nada irá nos assegurar da recuperação de um psicopata. Examinemos outras opções. Mantê-lo excluído da sociedade, por medida de segurança, para sempre? Seria inútil esta lei, ou, melhor dizendo, inviável. Eles são suficientemente espertos para fugir, principalmente através do suborno dos funcionários mais simples, ou matança dos mesmos. Isolar a todos numa ilha distante? Aconteceria o mesmo que na hipótese anterior. Além do que, em bando, eles comporiam uma força-tarefa invencível. Executá-los? Para o bem da sociedade, sim. No entanto, sempre haveria o risco de um erro judicial. E, dez culpados não valeriam a vida de um único inocente executado. Assim como não sabemos, de início, exatamente o que leva alguém a tornar-se um psicopata desde seu nascedouro, também não sabemos o que propor para o seu fim.

Talvez, a ‘Seleção Natural da Evolução Biológica’ seja a grande esperança de poder exterminá-los. Pode parecer curioso este pensamento, pois, à primeira vista, o psicopata teria a chance de sempre se sair melhor na competição com aqueles que têm sentimento, devido à catatimia. Entretanto, no acompanhamento de indivíduos com baixa inteligência emocional, apesar de um intelecto intacto, constata-se que acabam por tomar as piores decisões em suas vidas. Falta-lhes o feeling necessário para as prospecções de maior êxito, levando-os ao seu extermínio.13 Ainda mais, continuemos tomando como ponto de referência a ‘Evolução Biológica’ para visualizarmos a relação entre a conduta do indivíduo e seu reflexo na espécie e no meio ambiente. Uma espécie como a nossa, que está no pico da evolução zoológica, só poderá sobreviver à ação da Seleção Natural se houver colaboração (trabalho em conjunto) entre seus indivíduos.14 O psicopata sem sentimento só desagrega, só destrói, impossibilitando o bom êxito colaborativo de sua espécie. Como já dissemos, ele será eliminado pela

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Seleção Natural, levando muitos consigo. Sua conduta será sempre o resultado final de sua contingência bio-psico-social.15 Assim, somos levados a pensar que, num grau mais elevado de Evolução, os psicopatas estarão em extinção, e esperar que o ser humano, bom por natureza e pelo ambiente que cria, esteja em franca proliferação. Efetivamente, estamos muito longe de atingir este nível evolutivo. Portanto, ser psicopata vai contra o ‘Projeto Humanidade’.

15 A Organização Mundial de Saúde define-a como sendo “o bem-estar pleno biopsicossocial vivido pelo indivíduo”, ratificando a unidade nature/nurture.

Todo indivíduo cruel é necessariamente portador de alguma anomalia de personalidade ou transtorno mental? Não. Partimos do pressuposto que o Mal tem substância própria, tem identidade definida, e não seja apenas a ausência do Bem. Na bipolaridade Mal-Bem, admitimos um continuum, como uma linha reta, que passando pelo ponto mediano, o 0 da escala, marcaria um tipo humano indiferente ou apático, nem bom nem mau. Existem indivíduos apenas “normóticos”, como todos nós, sem nenhum diagnóstico psiquiátrico, que têm sentimentos, e, portanto, escala de Valores distinguem o Bem e o Mal, e que, mesmo assim, são molestos à sociedade. O injustiçado pensador Erich Fromm (1973) escreve: Todavia, mesmo que uma compreensão melhor dos vários exemplos do comportamento (humano) destrutivo e cruel reduzisse a incidência da destrutividade e da crueldade como motivações psíquicas (de várias ordens de fanatismo), permanece o fato de que um número bastante alto de exemplos ainda fica para sugerir que o homem, em virtual contraste com todos os mamíferos, é o único primata que pode sentir intenso prazer no ato de torturar e matar (p. 248).

Matricídio, parricídio, filicídio, fratricídio, uxoricídio são palavras que aparecem com extraordinária freqüência nos autos dos processos criminais dos psicopatas de qualquer lugar. A História Universal e as Escrituras do Monoteísmo são pródigas nestes exemplos. William Shakespeare foi absolutamente genial. Em uma de suas tragédias, diz em determinado trecho: “Eles eram mais do que inimigos, eles eram irmãos”. Esta questão levanta uma misteriosa complexidade: O ser humano é bom por natureza? Ou, é mau por natureza? Em se falando de Natureza, podemos aplicar o método explicativo científico-natural. Se o homem dependesse somente de sua biologia, como os animais não-humanos que estão geneticamente programados a obedecer os algoritmos de seus instintos, não caberia fazer um juízo de Valor quanto ao seu comportamento. Não dizemos que a Natureza é boa ou má, porque produz tornados e terremotos, ou chuva e sol para as plantações. Um Homo sapiens sapiens, que atingiu o grau máximo de sua humanidade (nem todos o conseguem) possui autoconsciência e consciência crítico-reflexiva interagindo com sua afetividade. Sua razão permite-lhe escapar dos comandos instintivos, mantendo-os sob controle. Seu cérebro cognitivo coexiste em harmonia com seu cérebro emocional (sistema límbico).16 Assim, nossa conduta ganha em liberdade, e por ela teremos de responder eticamente. 104

16 Para tanto recomendamos a leitura do revolucionário livro de David Servan-Schreiber, Curar (Guérir). São Paulo: Sá Editora, 2004.

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O desafiante filósofo australiano Peter SINGER (1998), cita o eticista Joseph Fletcher, que propõe um curioso sistema de “indicadores de humanidade”, dentre os quais escolhemos: 1. consciência de si mesmo; 2. autocontrole; 3. senso histórico, de passado e futuro; 4. capacidade de relacionar-se com os outros; 5. cuidado com os outros; 6. capacidade de comunicação através da linguagem; 7. curiosidade espontânea (p. 96). Singer apresentou esta lista de Fletcher numa tentativa de distinguir o animal humano do não-humano. Na Grécia Antiga, bastava dar a definição aristotélica: “O Homem é um animal racional”! Com Kant a frase teve uma mudança: “O Homem é um animal que nasce com a possibilidade de ser, um dia, racional”! Do ponto de vista psicossocial encontra-se sobejamente a maldade radical nos seres humanos, mesmo não sendo portadores de nenhum transtorno psicofísico. A lei reconhece este fato e, diante de um criminoso consciente e responsável, irá imputar-lhe uma pena integral, que o manterá preso em Penitenciária comum. A psicanálise costuma identificar estes seres como sádicos. Vemo-nos obrigados a terceirizar o desfecho que procurávamos para essas idéias. Valhemo-nos do filósofo Denis ROSENFIELD (1988) que, com brilhantismo, assevera: “O homem é um esboço inacabado, talvez para sempre incompleto” (p. 150).

Apêndice O alerta ao nosso perseverante leitor não estaria completo se focalizássemos somente as PPs sem sentimento. Podemos, devemos e queremos chamar a atenção para mais um tipo de Personalidade Psicopática. Dentre os dez tipos fenomenologicamente descritos pelo mestre da Universidade de Heidelberg, o Professor Kurt Schneider, existe aquele que carrega consigo uma bomba megatônica junto ao seu corpo sagrado. São os fanáticos. Cuidado, amigo, com seu vizinho, que acabou de converter-se a uma dessas seitas neopentecostais, recém-inaugurada numa garagem vazia da vizinhança que, apesar de todas as suas insuficiências, conseguem fazer uma lavagem cerebral em “fiéis” mais insuficientes ainda. Se um destes tiver algum desafeto por você, dirá a todos que o Demônio o possuiu. Cuidado! O objeto do fanatismo poderá ser algo inofensivo como o vegetarianismo, a liga protetora dos animais (não-humanos), mas, se a ideologia contiver elementos étnicos, religiosos, sócio-políticos, sócio-econômicos ou, até mesmo, se for de torcidas organizadas de futebol (pelo menos em terra tupiniquim ou bretã), a cena final poderá ser sangrenta. Os fatos mostram isto com fartura. Curioso é que o fanático tem sentimentos, sua dinâmica psíquica, antes de abraçar a “causa”, é igual à dos normóticos. Sem dúvida, aos pré-dispostos, não podemos subestimar a ação do brain-wash executada pelos psicopatas primários, que são os pontas-de-lança nestes movimentos todos. São notórios em nossa terra os líderes de seitas religiosas que enriquecem às custas da miséria do Outro. Talvez o fanático não nos mate pessoalmente, mas converterá um pelotão de fiéis homens-bomba para fazê-lo. A esse propósito, recomendamos o correto filme, onde a ficção, para nosso entretenimento, reproduz a realidade com fina precisão. Trata-se de O suspeito da Rua Arlington (Arlington Road), lançado em 1999, sob a direção também correta de Mark Pellington, no qual Tim Robbins encarna um terrorista/PP fanático, que preenche todos os requisitos de Schneider. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Penso que uma PP fanática esteja muito mais próxima da psicose - do delírio - do que uma sem sentimento. Um lembrete: a PP sem sentimento não precisa de ideologias para agir.

1ª. Observação: Talvez seja uma preocupação tola de nossa parte, mas presumo que muitos de nossos leitores tenham visto, nas livrarias, ao menos, o impactante título “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão” (tradução fiel do título original francês) e, por falta de estômago, temos que reconhecer, não o tenham lido. Assim sendo, queremos registrar dois itens: 1º. O grande valor deste caso criminal, ocorrido em 1835, é o de ser histórico na Medicina Legal. Ele praticamente inaugura a contribuição oficial da Psiquiatria Clínica para com a Justiça. Este crime foi cuidadosamente revisto por uma equipe do Collège de France, coordenada pelo filósofo Michel Foucault (1977); 2º. Aqui está o nosso zelo: com o pré-julgamento. Apesar da morfologia violenta do delito, Pierre Rivière não era um psicopata, mas, sim, um gravíssimo psicótico. Relendo as observações clínicas de Pierre, realizadas por um dos pioneiros da Psiquiatria Francesa, Esquirol, chegamos à conclusão de ter-se tratado de um encefalopata lato senso (seguramente nossas neuroimagens atuais mostrariam lesões anatômicas naquele encéfalo). Nestes casos, é freqüente confundi-los com psicopatas, e, por isso mesmo, chegam a ser chamados de Pseudo-Personalidades Psicopáticas (PPP). 2ª. Observação: As afirmações que fazemos nesse texto correm, evidentemente, sob nossa inteira responsabilidade.

BIBLIOGRAFIA 1. ALONSO FERNANDEZ, F. Psiquiatria Sociologica. Madri: Editorial Paz Montalvo, 1974. 2. BARUK, HENRI. La Psiquiatria Social. Barcelona: Vergara Editorial, 1956. 3. CAMPS, VICTORIA (ed.). Historia de la Ética. Barcelona: Grijalbo, 1987. 4. CANTO-SPERBER, MONIQUE. Dicionário de Ética e Filosofia Moral. 2vols. São LeopoldoRS: Editora Unisinos, 2003. 5. DARMON, PIERRE. Médicos e assassinos na Belle Époque. A medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 6. FELDMAN, M.P. Comportamento criminoso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. 7. FOUCAULT, MICHEL (coord.). Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro: Edições do Graal, 2ªed., 1977. 8. ____. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 9. FROMM, ERICH. Anatomia da destrutividade humana. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2ªed., 1973. 10. GOMES, HÉLIO. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003. 11. HESSEN, JOHANNES. Filosofia dos Valores. Coimbra: Armênio Amado Editor, 5ªed., 1980. 12. KANT, IMMANUEL. “Fundamentação da metafísica dos costumes” In Kant. São Paulo: Abril, 1974. 13. LICHTENSTEIN, P.M. & SMALL, S.M. Los fundamentos de la Psiquiatría. Buenos Aires: Editorial Americale, 1945.

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*Adalberto Tripicchio é neuropsiquiatra clínico e forense na cidade de São Paulo. Mestre e Doutor em Filosofia pela UFSCar-SP. Pós-Doutor em Psiquiatria e Neurologia pela Université Paris IV – Sorbonne. <tripicch@uol.com.br>.

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Desenho do autor, Adalberto Tripicchio, feito por Henfil em outubro de 1975, num restaurante do Final do Leblon-RJ, onde, de 5a a domingo, nos reuníamos à mesa de jantar com Chico Buarque, Luiz Cláudio Ramos, Tarso de Castro, Vinícius de Morais e o italianíssimo Sergio Bardotti. Henfil usou uma BIC azul, riscando-a no verso de uma folha de receituário médico.


POEMAS

afecção tento suturar os lábios surdos de minha dor. de tão pungido o véu, coágulos recidivos jorram, excessivos, sua ira nebulosa. a densa linha deriva, inconsistente: nada dissipa as feridas, as feridas dissipam o nada. infeccionado, desesperado, espremo o pus das horas.

por Alessandro Sales*

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barro a hora me fratura: as cinzas ou o cinzel? todo ser proscrito emprenhará o próprio minério dor seminal prazer ventre de vidro, cesárea tradução pariu

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acontecer pouco a pouco fuso a fuso tecer o tersido verso do vazio vaso do obtuso

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rodriguiana a nudez, para sempre castigada: toda claridade será diversa, toda castidade será devassa.

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dicionário 1.o cujo, sabe-se, é relativo: o menino cujo lápis era azul fez belos desenhos. 2.de quem não se quer dizer, diz-se cujo: discuti e quase briguei com o cujo! 3.mas se o cujo é para não dizer, ele também é dito: o dito-cujo foi o vencedor da contenda. 4.mais, diz-se cujo para não se dizer do demo: fazia escuro e morria de medo do cujo aparecer... falar sem dizer é a sina do cujo. o cujo é mesmo o diabo.

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regra (excessão) um signo excessivo virá fender-te os abscessos e seccionar-te os possíveis: não há exceção 114

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inundação o arrabalde de silêncios, vale desmedido, intemporal, desafia os geômetras e funda a plasticidade. o sol se punha, convocando o horizonte: os olhos, a pele, o incêndio. todas as linhas em labaredas e o coalho de luzes a estender seus ruídos. me procuro, mas não tenho espessura. breve, a vertigem prateada da lua e sua virtude além-mar reconfiguram o zênite. as ondas contaminam a noite e tudo o que há são fluidos. me procuro, mas sou pura amnésia. em espirais cintilantes, as intensidades fabricam os esmos e bebem seus riscos. na superfície, filamentos, emanações, e pensamentos me obsedam e promovem, incisivos, a vida.

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lacrimar a vaga espraia, implacável, sua ausência cristalina. pelos litorais do rosto, vai vertendo múltiplos caminhos de água e sal. os rasos recifes foram submersos, arremetidos: calaram-se os corais. mas a dor profunda, em refluxos infinitos, celebra, com a voz espumante: uma vez mais o mar uma vez mais amar...

*Alessandro Sales é doutorando emFilosofia pela UFSCar e bolsista Fapesp. É autor do livro de poemas Risco dos Instantes.


CRÍTICA GENÉTICA

MARCAS DE AUSÊNCIAS: ARTICULACÕES ENTRE PROJETO POÉTICO E SUBJETIVIDADE Sylvia Ribeiro Fernandes*

Resumo: O estudo busca demonstrar como que no projeto poético de três artistas brasileiros contemporâneos estão ancoradas questões da ordem da subjetividade. Utilizando-se de uma abordagem psicanalítica, analisa depoimentos em diários, livros e dissertações escritos pelos autores, que permitem apontar as implicações do sujeito em seus processos de criação. Articula que a obra destes artistas toca em questões paradigmáticas não só da arte, mas da existência – questões relativas ao objeto da perda. PALAVRAS-CHAVE: PROJETO POÉTICO; PROCESSO CRIATIVO; SUBJETIVIDADE Abstract: This study intends to demonstrate as in the poetical project of three contemporaries Brazilian artists are anchored questions of the order of the subjectivity. A psychoanalytical approach is used. Notations on diaries, books and dissertations written by the authors are analyzed, who allow to point the implications of the subject in its processes of creation. It is conclude that the workmanship of these artists not only touches in paradigmatic questions of the art, but of the existence – questions related to the object of the loss. KEYWORDS: POETICAL PROJECT; CREATIVE PROCESS; SUBJECTIVITY

1 São documentos de processo manuscritos literários, rascunhos, roteiros, croquis, plantas, esboços, roteiros, maquetes, copiões, contatos e story-boards (Salles, 1998, p. 18).

Esse trabalho busca estabelecer algumas articulações entre o conceito de projeto poético e a subjetividade, a partir de uma abordagem psicanalítica. A concepção de projeto poético insere-se em uma teoria da criação que vem sendo desenvolvida por Salles. A criação artística é analisada sob o enfoque do processo de construção da obra. A partir das marcas do processo, ou seja, dos vestígios deixados pelo artista em documentos1 que acompanham a construção da obra, essa teoria mostra o trabalho artístico em movimento constante. Noções como obra final e término de processo ficam em suspenso, dando lugar a con-

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cepções de construção permanente e inacabamento, próprias de uma perspectiva processual. O projeto poético, segundo essa perspectiva, são princípios direcionadores, singulares àquele artista, sob os quais a obra é realizada. Segundo Sallles (2002, p.192), “são princípios éticos e estéticos, de caráter geral, que direcionam o fazer do artista: norteiam o momento singular que cada obra representa”. Uma obra pode ter um sentido específico, mas insere-se em um projeto mais geral, estando em relação com as outras obras do artista. Esse sentido mais amplo, o projeto poético geral, perpassa toda a obra do autor, refletindo sua marca singular. Em determinados artistas nota-se uma constante reflexão sobre o próprio projeto poético. São momentos onde se perguntam sobre o que querem como artista, o que move suas buscas, o efeito que desejam produzir no outro e como se situam frente a outros artistas e frente aos paradigmas da arte e cultura ao longo do tempo. No fazer de cada obra podem se questionar sobre o que querem com determinada criação, os desafios que precisam vencer, a satisfação ou insatisfação com os resultados. O projeto poético pode ser percebido, de forma exemplar, quando analisam suas obras no tempo e que nomeiam momentos, fases, rumos, rupturas com o que vem sendo trilhado, enfim, constroem sentidos que norteiam sua arte e sua vida como artista. Pode-se inferir sobre aspectos do projeto de determinado artista a partir das análises de suas obras, porém é a partir dos documentos de processo, diários, correspondências, livros, ensaios ou entrevistas onde relatam sobre seu próprio processo, que o projeto poético se manifesta mais claramente. Em dois ensaios sobre o processo de criação do artista plástico Daniel Se2 nise, Salles se utiliza dos cadernos, ou livros como aquele prefere chamar, para analisar seu processo criativo. Esses livros3 são compostos por diversas reflexões sobre a pintura e a arte, lembranças, registros de sonhos, discussões sobre o ato criativo, questionamentos sobre projetos e obras já expostas, além de experimentações de imagem. A partir destas anotações feitas pelo artista, o projeto poético pôde ser delineado. Segundo a autora, os livros mostram a construção e sistematização do projeto poético, que direciona todas as suas criações, definindo-se, portanto, não a priori, mas no processo. Vamos acompanhar o pensamento da autora na busca dos princípios direcionadores do trabalho de Senise, para posteriormente levantarmos algumas questões subjetivas que parecem sustentar seu projeto poético. A questão recorrente que aparece nas reflexões de Senise aponta para um princípio direcionador de seu trabalho, trata-se “de sua crença na força da imagem”.4 Considera o que chama de elementos essenciais em seu trabalho, “o mistério da imagem”. Vejamos alguns de seus relatos:

2 Daniel Senise, Rio de Janeiro (1955). Os dois ensaios intitulam-se: Cadernos de Daniel Senise: Sótão de objetos pessoais e Fato sem Testemunha, sendo os dois inéditos. 3 Os livros são produzidos no período entre 1988 a 1999.

4 Todas as citações de Senise foram retiradas do ensaio Fato sem testemunha, anteriormente citado.

Eu acredito na pintura, melhor, na imagem, com toda convicção. Para mim o problema não é se há mentira ou não. Para mim a imagem é verdade indiscutível. Solar. Sempre tem uma imagem (de um momento) predominante que 1) preenche a memória 2) e desativa o desejo de procurar outras imagens do mesmo título.

Durante algum tempo Senise elege o binômio sudário-memória como fio condutor de seu trabalho. Eis algumas reflexões sobre o tema:

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Estabelecer o princípio sudário-memória como objeto de especulação do meu trabalho poderá me facilitar as coisas no sentido de que quando estiver projetando/processando um novo trabalho e estiver meio atolado poderei em vez de buscar as características formais do(s) últimos trabalho(s), especular sobre as relações que este novo trabalho tem com o princípio sudário-memória. Isto poderá resultar em trabalhos formalmente mais diversificados a partir do momento que o novo trabalho se encaixe convincentemente no princípio s-m. A chave para que isto aconteça é eu acreditar plenamente que o princípio s-m está em todos os trabalhos que fiz até hoje e se continuar trabalhando do jeito que tenho trabalhado todos estes anos continuaria chegando a resultados equivalentes, i.é relacionados ao sudário-memória. Uma atitude para solidificar esta “crença”(de que este tema é meu objeto queira ou não queira) é individualizar, personalizar esta preocupação.

Assim, parece que a nomeação do princípio sudário-memória adquire o sentido de uma bússola, um rumo que organiza o que se quer produzir, dentro do projeto maior, a busca da imagem. Posteriormente, abandona o princípio, que cumpriu, e depois perdeu sua função. Vejamos seus relatos: Há um certo tempo, porém, tentei definir o que fazia através de um conceito “sudário-memória” que não soube nem formalizar muito bem. Depois esqueci o binômio... Ficou como um dispositivo exaustivamente projetado para uma determinada função e que depois[...] foi abandonado sem nenhum sofrimento. Depois pensei também que um grande tema do meu trabalho é o duplo/ou o gêmeo/ou o refletido/ou o simétrico. E por isso é uma tolice achar que todo o meu problema pode ser localizado no “binômio” “sudário – memória”.

Parece, portanto, que o tema do binômio passa a ser substituído pelo do “duplo” ou similares. Porém, não seriam estes temas o avesso e o direito da mesma moeda? Que questões estariam em jogo na escolha destes temas? Note-se que a construção dos conceitos, ou dos princípios direcionadores, se dá inicialmente com definições de imagens – conceitos aparentemente isolados e que vão se agrupando, adquirindo movimento e relação uns com os outros. Vejamos esta anotação: Estabelecer que meu princípio de trabalho é a memória e o registro (plástico) da memória por uma razão natural e que isto vale como fundamento para uma obra. Aqui a memória parece ser o direcionador. Em outra passagem é o sudário o que direciona: Uma questão que vou desenvolver no meu trabalho é a do sudário. Posteriormente a memória é acoplada ao sudário, formando o binômio: Sudário e memória não são dois temas mas dois pólos que estabelecem uma relação da pintura (plástica portanto física) com uma questão humana (memória). Assim, o projeto vai adquirindo maior complexidade, agregando outras imagens em constante relação umas com as outras, formando outros temas que vão abarcando os anteriores. Parece, portanto, que os temas não são propriamente abandonados, como ele refere, mas se transformando, tornando-se mais complexos.

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É sob esta perspectiva que o tema do duplo, gêmeo, refletido, simétrico pode ser considerado correlato ao binômio sudáriomemória. Vejamos este relato: “O sudário é o registro de um evento. A pintura como sudário é ao mesmo tempo a representação e o objeto.” O sudário faz-nos pensar na imagem de algo que não está mais. Um objeto que representa outro objeto, supostamente ausente (que, na verdade, é e não é o mesmo objeto). Não poderia ser isso o duplo, o simétrico, o refletido? Dois objetos que podem também ser um? A imagem que está em questão em seu projeto poético parece ser esta relação imagem – objeto. Seria o estatuto de imagem e objeto, presença e ausência do objeto. A imagem recorrente é a do movimento que faz presente e ausente. A marca deixada por esse movimento parece ser “o registro de um evento”. Note-se, alguns exemplos como: o título de uma série de pinturas: Ela que não está; a recorrente presença da ferrugem deixada pelos pregos em suas obras, (que nos faz pensar na função de prender do prego ou da marca de algo que esteve preso, presente, e se foi, se põe ausente); o tema do sudário e memória, registro do que já não está; o tema bumerangue em sonhos e obras, objeto que vai e volta, deixando a marca de seu movimento. Vejamos essa escrita em seu livro: elo perdido pregos tempo alguém que fica e não volta alguém que nunca vai – que vai e volta como o símbolo do infinito como o ciclo da água como os carros no trânsito como as viagens internacionais...

Assim, as questões que parecem estar em jogo em sua arte estão ligadas a este trânsito, a estes objetos que ora estão, ora não estão, ora foram, ora voltam. Desta forma, não estariam estas questões ancoradas nas inquietações próprias da condição humana? Esta confluência de questões artísticas e subjetivas seria uma característica do processo criativo de determinados artistas? Ou seja, poderíamos pensar que ancorado no projeto poético haveria a construção de algo como um projeto subjetivo? Antes de abordarmos essas questões faremos o exercício de pensar o projeto poético de mais dois outros artistas, as particularidades e semelhanças entre os três, e assim refletirmos sobre as implicações subjetivas inerentes a eles.

As imagens suspensas O material que será analisado a seguir trata-se de uma dissertação de mestrado de Claudia Leão,5 que trabalha com fotografia. É um trabalho em que a autora se coloca de forma bastante pessoal, e que as questões, que sustentam seu processo criativo e sua relação com a fotografia, podem ser delineadas. Considera que essa 120

5 Claudia Leão, Belém, PA (1967). A dissertação intitula-se: “Imagens Suspensas: a (re)constituição comunicacional da solidão e das lembranças de mulheres idosas esquecidas nos asilos”, defendida em 2003 no programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

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pesquisa faz parte de seu trabalho autoral, “...faz parte das minhas fotografias”. Assim, o material é meio híbrido, de alguma forma é obra, mas também é processo, pois refere-se ao seu fazer como artista. No início da dissertação, escrevendo sobre seu trabalho com a fotografia, mostra algo de seu projeto poético: “Sempre utilizei alguns suportes como papel fotográfico, espelhos e vidros que trouxessem a marca de um tempo que havia ficado para trás, para então dotar a imagem de uma nova história”. Ao trazer a dimensão do tempo na fotografia, insere uma continuidade, uma história, em um recurso que tradicionalmente capta e registra o instantâneo. Assim, traz a marca da ausência, do que foi perdido no tempo, mas fazendo-o novamente presente, com uma nova história. Faz algo possível do impossível tempo. A imagem descola de sua origem, de sua história passada, e passa a fazer parte de outra história, passa a criar história. Refere a seguir: “Com isso, para os meus personagens, arrumei desencontros, supus amores, desgarrei olhares e perdi fotografia, sem esquecê-la jamais”. As imagens são personagens de suas narrativas. O que parece motivar a realização da dissertação é a necessidade de conhecer e se aprofundar em um tipo de fotografia onde a imagem está marcada pelo tempo. Vejamos o que relata: ...passei a acreditar mais ainda que existe uma outra maneira de pensar a fotografia e que, para conhecê-la, deveria me aprofundar, penetrar em uma imagem que está além das límpidas correções de luzes, além das provas de filmes de alta qualidade, dos registros de poderosas lentes ou de cópias perfeitas e totalmente assépticas.

Busca essa imagem nas fotografias íntimas, de um circuito fechado, “sem rebuscamento técnico, sem valor material, simplesmente fotografias. Dessas que todos nós fazemos e possuímos com a intenção de deixar guardadas para, em algum momento qualquer da vida, voltar e (re)ver para lembrar.” Considera o objeto de seu projeto a fotografia conjugada à saudade. Portanto, procura articular a perda ou a ausência, assim como a dor e a saudade decorrente delas, com a condição da imagem fotográfica poder, de alguma forma, reparar esta falta. Vejamos isso em suas palavras: Verificar os níveis de perda que a saudade poderia provocar e que somente uma fotografia poderia trazer e acalentar a dor da ausência, pois a fotografia é uma tentativa, por meio da imagem de trazer de volta o que ficou perdido.

Assim, as fotografias escolhidas para análise são as fotos que se referem ao passado, ao perdido. Elege, portanto, as fotos consideradas “de família” que costumam ser guardadas e que, ao serem revistas, suscitam lembranças, atualizando o que ficou perdido. Escolhe buscar essas fotos em um asilo de mulheres. Note-se que nesse projeto estão implicados fundamentalmente os mesmos elementos que marcam suas fotografias: um tempo perdido e a possibilidade da imagem fazê-lo, de alguma forma, presente. Porém, em sua busca depara com algo inusitado, fora de sua expectativa, a ausência da fotografia. Todas as mulheres que encontra não têm fotografia alguma consigo. Elas foram perdidas, rasgadas, esquecidas em algum lugar... A ausência da fotografia passa a ser uma questão que insiste e muda o rumo de seu trabalho. Em diversas vezes repete a pergunta: “Mas, onde estão as fotografias?”. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Note-se que em suas fotografias procura “dotar a imagem de uma nova história”, como foi citado acima. A imagem não só evoca o perdido, mas faz outra coisa dele. Lembremos que ela constrói narrativas onde insere seus personagens, suas fotografias. Assim, a imagem tem um sentido vinculador, insere o sujeito em uma história perdida, e assim faz com que, em função do ato de lembrar, crie uma nova história. Mas, o que fazer se não há fotografias? Vejamos suas palavras: Se a minha primeira hipótese era que as fotografias que pertencem a um núcleo familiar têm um sentido vinculador, é porque ali estava inscrita a história de quem fez parte daquela família. Que sentido tem fotografias, quando elas perdem o caráter vinculador ou quando a pessoa mais velha dessa família rasga ou se desfaz de todas as imagens?

A partir dessa questão, da ausência do seu objeto privilegiado, seu trabalho poderia ter tomado várias direções. Poderia, por exemplo, desistir do objeto “fotografias guardadas por mulheres idosas que moram em asilos” e buscar fotografias guardadas por mulheres idosas não institucionalizadas. Sustentaria os elementos aparentemente fundamentais de sua hipótese: o tempo perdido e a função de evocar e vincular da imagem fotográfica. Porém, do que ela desiste é, justamente das fotografias. Vejamos sua escolha: Desse modo, passei a conduzir este trabalho por meio das imagens das lembranças, sedimentadas sobre a memória longa, feita de tudo o que ainda permanece latente e, assim, poder penetrar nas imagens ausentes. A essa categoria de imagens, chamei de imagens suspensas. Será por meio delas que iremos entrar no campo das imagens, impregnadas sobre o nosso primeiro e mais potente meio de comunicação: o corpo.

A falta das fotografias, rasgadas ou esquecidas em algum lugar, faz com que ela se depare com a questão da perda, do não guardar, o que não era previsto em seu projeto inicial, ou seja, a imagem que faz lembrar e insere o sujeito em uma história. Como foi dito anteriormente, o sentido não é só inserir numa história perdida, mas a partir do que foi vivido, construir novas histórias. Vejamos o que refere: As fotografias de família vão desencadeando um certo fascínio por quem as revê. Revemos para voltar ao que fomos. Prestar atenção. Guardar com os olhos para pertencer, porque geramos imagens para fazermos parte delas, precisamos nos ver às vezes pelos olhos do outro, encontrar resquícios das feições de nossos antepassados, para saber quem somos. Não é somente a nostalgia que nos faz retornar, mais que isso, imagens passam a ter alma, significam, contam histórias, guardam os afetos, porque imprimimos nelas essa condição. Voltamos para ver nossos pares e também nossas diferenças: saber de histórias anteriores para constituir as histórias posteriores, porque nossas histórias devem ser guardadas.

Assim, o efeito sobre o sujeito seria o de sentir-se pertencente a uma história. Fazer do passado um presente. As imagens de um tempo perdido passam a ser protagonistas de novas histórias. A desvinculação aparente, reação brutal ao perdido por parte dessas mulheres asiladas, torna-se a questão central do projeto. 122

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Como retomar a vinculação e daí o sentimento de pertença? Se as fotos poderiam ter esse sentido, essa função (de criar no sujeito o sentimento de pertencer a uma história), na falta delas tenta deparar-se sobre as lembranças, para marcar então noutro suporte, no corpo, as reminiscências. Assim, desiste da fotografia, mas não da imagem com esse estatuto. Passa a buscar as imagens que situam-se no corpo, nas reminiscências. Não estão no papel, são imagens suspensas. Assim, faz com que essas mulheres falem de suas vidas e registra, em seu trabalho, cada história que escutou. Claudia Leão faz, assim, suas fotografias por meio da escrita. Uma escrita que registra a imagem perdida, ausente. Note-se que o que está um pauta, o tempo todo é a questão da presença e ausência do objeto. Guardar para manter presente. Presentificar para pertencer. Diante do encontro com a falta das fotografias depara-se com a mesma questão da ausência do objeto, só que esta se mostra aqui em seu pólo oposto, não se trata de guardar, mas de perder. É, também, a artista que é posta a perda. Vejamos como ela se situa diante da questão: Minha principal hipótese, quando iniciei esta pesquisa, era uma certeza de que as fotografias da família sobreviviam com as mudanças. As fotografias, ao serem transportadas, no momento do deslocamento para o asilo, iam junto com quem as guardava, e ali poderiam estar acompanhadas para permanecer e perecer. No entanto, o que eu supunha caiu por terra, porque as fotografias ficaram, foram perdidas ou não existem mais. E se existem onde estão? Como estão? Com quem estão? Qual o percurso que fizeram, até deixarem de existir? As fotografias possuem uma corporeidade, ocupam um espaço, têm uma existência [...] Mas onde estão essas fotografias? Com quem elas foram deixadas? Essas eram as minhas primeiras perguntas quando iniciei esta pesquisa, e logo as respostas começaram a surgir, mas as fotografias não. ... não existem fotografias para serem lembradas. Existem memórias para serem escavadas, rastreadas e é por essa que irei entrar para saber um pouco onde estão os elos que prendiam suas vidas.

A fotografia aparece aqui com a função de suportar a dor de um exílio, de possibilitar a sobrevivência no asilo, nesse lugar que não guarda as marcas da vida de quem para lá vai. Nesse lugar de ausências, as fotografias guardam a presença da vida. Assim, perder a hipótese inicial da pesquisa significa perder a certeza de que as fotografias sobrevivem a tudo. Note-se que no processo da perda da certeza (que “cai por terra”), ainda surge a tentativa de encontrar o que se mostrou ausente. São várias perguntas sobre o que terá acontecido com as fotografias, como se ainda pudesse recuperar sua existência, sua história. Por fim surge a constatação de que elas não existem, estão perdidas. É sobre a memória que passa a buscar a imagem ausente. O que se mostra mais presente em sua busca é essa dinâmica constante entre a ausência e a presença do objeto. A fotografia se mostra como uma presença possível sobre a ausência do que se perdeu. Quando ela se faz ausência, o corpo se mostra como possibilidade, como presença. Da mesma forma, o processo de busca se dá num movimento constante entre o possível e o impossível. O impossível encontro com a imagem que sempre escapa suscita a criação de imagens REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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possíveis. Note-se que diante da falta das fotografias, muda seu objeto de pesquisa, cria um novo objeto. Faz um objeto possível. Em seu projeto poético artístico, as fotografias remetem ao perdido e possibilitam a criação de outra história, é a “presentificação da ausência”, porém elas continuam a guardar a marca do tempo, a marca da ausência. Da mesma forma, em sua pesquisa, constrói uma história de imagens suspensas, mas o que se mostra mais presente é a fotografia, o que não foi possível encontrar. Assim, a questão que sustenta seu projeto poético parece ser a da imagem ausente, que foi perdida no tempo. A imagem para além da fotografia, para além da memória, para além dos corpos... São as imagens suspensas.

Fragmentos de um dia extenso O material que será analisado agora trata-se de uma publicação de Sergio Fingermann,6 artista plástico que trabalha com pintura e gravura em metal. É uma publicação composta por dois livros. Um deles chama-se Cronologia: Fragmentos de uma obra. Tem 81 páginas e é formado por uma breve apresentação histórica sobre o artista (feita por ele mesmo) e por reproduções fotográficas de 99 obras realizadas no período entre 1976 e 2001. O outro livro, Fragmentos de um dia extenso, não é paginado, porém deve ter mais do dobro do número de páginas do outro. Ele é composto por imagens e palavras. Os textos são reflexões sobre o sentido da pintura e de seu processo artístico. Começaremos a análise pela apresentação feita pelo artista no livro complementar da publicação, Cronologia: fragmentos de uma obra, pois é onde mais aparece as características plásticas formais de sua arte. Posteriormente, será o livro Fragmentos de um dia extenso o objeto de análise, especialmente os textos deste livro. É um material que demanda uma análise minuciosa e delicada, como o próprio texto. Porém, vamos priorizar os aspectos que apontem as questões de seu projeto poético. Note-se que, assim como o material de Claudia Leão, essa publicação é uma mistura de obra e processo. Sergio Fingermann se apresenta7 como artista plástico que a partir de 1975 desenvolve seus trabalhos com “acentuadas características intimistas”. Nesta época, seus trabalhos apresentam uma tendência construtiva, com “justaposição de representações diferentes, na associação de signos gráficos, [...] são construções de cenas, quase pequenos cenários, para produzirem um sonhar”. A razão que fundamenta esses trabalhos é “uma aposta na singularidade como valor artístico. Seu desejo é “construir uma poética e deixar a marca da subjetividade impressa nesses trabalhos”. Obras com características mais abstratas substituem essa figuração narrativa dos primeiros tempos, “o plano pictórico recebe tratamento que procura evidenciar sua própria construção”. Nessas obras

6 Sergio Fingermann, São Paulo (1953). A publicação intitula-se Fragmentos de um dia extenso, São Paulo: Bei Comunicação, 2001.

7 A apresentação do artista em Fragmentos de uma obra é feita por ele próprio.

os elementos simbólicos do trabalho se fundem na superfície das pinturas, o gesto torna-se mais dramático e o espaço, que antes era tratado como o lugar da representação, como se fosse um palco, concretiza-se como o próprio assunto da pintura.

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Nas pinturas mais recentes ressurgem representações como pequenos desenhos e anotações gráficas, mas essas presenças adjetivam o espaço que o pintor produz. Se há representação, ela não é o único assunto da pintura, nem do desenho, nem da gravura. A representação é a possibilidade, é a estratégia, é o artifício que o pintor tem para transformar o pintar em experiência.

Note-se que uma das questões plásticas que sustenta sua obra parece ser a dinâmica representação e espaço. Há um movimento de passagem da representação figurativa em direção a características mais abstratas, da construção simbólica no espaço ao próprio espaço como busca. O que aparece como projeto, como seu desejo, é a construção de uma obra que evidencie o processo, marcada por questões da subjetividade e da arte enquanto experiência e linguagem. Mas, que questões subjetivas são essas? Como a dinâmica da representação e do espaço se situam nessas questões subjetivas? Em função da característica de sua obra ser muito marcada pela singularidade e subjetividade, o seu projeto poético, mais do que ancorado nas questões subjetivas como os dos dois artistas antes analisados, é em si uma confluência de questões artísticas e subjetivas. Assim, mostra-se pertinente a análise de suas reflexões escritas no livro de imagens e palavras. É lá onde buscaremos entender o seu projeto poético. Antes da abordagem propriamente do texto, veremos como o livro é construído. As páginas com textos escritos por ele se alternam com páginas de imagens. As imagens são diversas. O que mais se encontra são reproduções de obras, mas há também muitas fotografias dele em seu ateliê, ou mesmo de partes do ateliê. Essas fotografias são bastante interessantes, pois mostram o artista em movimento. Movimento de pegar uma tela no chão, movimento de andar e olhar para as telas, movimento das mãos trabalhando em alguma obra sobre uma mesa, ou de um braço erguido ao pintar uma tela. Essas imagens parecem representar o ato do fazer, a experiência da criação. Outra característica observada na maioria das imagens fotográficas é o enquadramento de partes do corpo do artista. São imagens como: sua mão aberta sobre um objeto, parte de um braço no ato de pintar, suas duas mãos abertas sobre uma tela, parte do lado esquerdo de seu corpo em pé junto a algumas telas, seu olhar sobre o que está fazendo em uma tela. O corpo do artista parece ser mostrado em fragmentos. O material escrito está distribuído em quarenta e duas páginas. São reflexões sobre o sentido da pintura, da arte e de seu projeto artístico. Na primeira página há um poema de Borges que parece anunciar o sentido desta obra: O que os meus olhos viram foi simultâneo; O que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.8

8 Borges, J. L. “O Aleph”.

Seu projeto, com essa publicação, parece ser registrar o que viu, o que é possível registrar. Porém, a marca de sua escrita parece ser a dúvida permanente, a suspensão de sentido. São inúmeras interrogações sobre o que é possível e o que se mostra impossível na arte. Porém há momentos de afirmações, que se alternam o tempo todo com as questões. Segundo ele: “Às vezes, a dúvida é necessária; outras vezes a afirmação é mais importante”. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Todo o material é extremamente denso, repleto de questões que apontam para a posição do sujeito perante a existência. Assim, há muito pouco sobre as características plásticas de seu trabalho, mas sim suas inquietações enquanto artista e sujeito. Na verdade, como já foi apontado, isso se deve a importância que as questões subjetivas têm em seu projeto poético. Nada sabemos da origem destes textos. São feitos especialmente para o livro? São recolhidos de anotações feitas ao longo de sua obra? De qualquer forma, parece ser uma construção do sentido de sua obra, o seu olhar sobre ela. Essas reflexões são dispostas ao longo das páginas sem a menor linearidade. Temas aparecem, insistem, reiteram em outras páginas, fundem-se a outros, dando ao leitor a sensação de que as questões vão e voltam. São abordadas, trazendo novos elementos, mas recusam-se a ser respondidas. Ao longo do texto pode-se entender melhor o desenrolar das questões, porém quando retorna-se à primeira página percebe-se que tudo já estava lá, desde o começo. Tudo gira em torno de “o que pintar quer dizer?”. O que é a pintura, o que é o ato de pintar e que efeitos a arte produz são as suas inquietações. Tomemos as quatro primeiras páginas com textos dele como matrizes para a análise.9 Na verdade, poderíamos eleger quaisquer outras, todas levam a todas. Continuamente tenho me indagado sobre o pintar. O que pintar quer dizer? Em que sentido a pintura é uma experiência? Em que sentido a experiência de olhar, a elaboração dessa percepção, nos aproxima da essência do homem? [página 2]

9 A primeira página escrita é a citação de Borges acima transcrita. Vamos considerar a primeira página escrita por ele como a segunda página do livro. Como o livro não é paginado, quando precisamos referir a localização da página, colocamos o número referente à ordem das páginas escritas, desconsiderando as páginas com imagens.

Será que há uma forma de falar que revelaria nossa humanidade essencial? É preciso encontrar alguma coisa. É preciso. Uma pista, talvez até exista... Lá... É isso... Talvez pudesse encontrar alguma coisa nos livros que estou lendo, nas anotações feitas à margem, nas citações de autores, nos catálogos, em textos grifados, em testemunhos de outras pessoas. Pensamentos que tratem da experiência, da essência da pintura, da criação. Gostaria que, ao abrir inesperadamente uma destas páginas, o encontro com uma daquelas idéias anotadas, e lá esquecidas, ajudassem a trazer ordem às minhas inquietações. [página 3] Estou me lembrando agora. Faz muito tempo... Era um fim de tarde, de um dia de inverno... Nada de extraordinário se passou naquele dia. A vida cotidiana, simplesmente. Encontrei numa pequena caixa, guardada há muito

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tempo numa gaveta, uma borboleta. Aquela descoberta funcionou para mim como uma revelação. Resolvi fazer desse acaso uma espécie de investigação. As lembranças, associações de idéias, descobertas, invenções, fantasias que a revelação me provocou, registrei em cadernos de desenho, fiz gravuras e pinturas, comecei assim uma série de trabalhos que chamei de fragmentos de um dia extenso. [página 4] Como tornar o vazio uma possibilidade? Como suportar o vazio? O que fazer nas bordas, na orla desse vazio? O que é ser tocado por uma imagem? [página 5]

Inicialmente vamos usar o artifício de tomar essas páginas como um todo e depois desenvolver a temática das questões. Na primeira parte surgem as questões que o inquietam. Aparecem ligadas ao sentido do pintar e da pintura. Essas indagações disparam um movimento de busca. Procura pistas, caminhos para o encontro com algo que possa trazer ordem às suas inquietações. As interrogações do início cedem lugar às reticências, indiciando uma continuidade, um movimento, uma possibilidade. A aposta em que deve haver uma pista, talvez até exista..., abre o caminho para o fazer, para o ato de criação. O encontro com a borboleta dispara o processo. Faz uma série de trabalhos que chama de “fragmentos de um dia extenso”. Na última parte, surge o vazio enquanto questão. Note-se que após falar da construção da imagem, aparece a falta da imagem, o vazio. Surge algo como uma impossibilidade, pois refere a questão de como tornar o vazio uma possibilidade, como suportá-lo. E de novo surge o fazer, o possível nas bordas do impossível. Essa dinâmica da impossibilidade e do que se faz possível aparece em todo o livro. O possível e o impossível se alternam continuamente. Às vezes, uma página inteira mostra o possível, o fazer imagem, o dizer, o movimento de busca, o tentar, o insistir. Em outras é o movimento oposto que domina, a impossibilidade, a inutilidade, como se o processo “desse em nada”. Ou seja, o que importa é onde se chega. Em muitas vezes, é na mesma página que há essa alternância. Vejamos esses exemplos: É preciso tentar. É um esforço enorme para dizer... Um esforço inútil, porém inevitável. Só me resta tentar. [página 15] É preciso tentar, mesmo sabendo de toda impossibilidade. É preciso insistir, mesmo sabendo de toda inutilidade. [página 8] Observo-me a escrever na tentativa inútil de dizer. Faço imagens.

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Faço, às vezes, algumas palavras. Insisto. Arrisco-me a dizer: tudo isso são como pontes, passagens para um lugar. Mas que lugar? [página 30]

São páginas de momentos diferentes do livro. Note-se que são reiterações, quase iguais. Na página 30, aparece claramente a alternância entre o processo e o fim, ou seja, pontes e passagens para algum lugar, e onde se quer chegar – o lugar. Pontes e passagens remetem-nos à busca, ao processo. Ao especificar “um lugar”, denota a possibilidade do fim do processo. Porém, logo tudo é posto novamente em questão,10 pois como ele diz em outro lugar, “A dúvida é nossa matéria prima”. Vamos, agora, desenvolver um pouco algumas questões que ele toca nessas primeiras páginas e que, ao longo do livro, aparecem novamente possibilitando delinear melhor seu sentido. São a partir delas que o projeto poético poderá ser delineado, pois conforme são abordadas, uma após outra, possibilitam a difícil configuração do sentido de sua pintura. A questão que foi abordada, da alternância entre o possível e o impossível, que aparece sob a questão do objeto da busca e da busca como sentido, perpassa todos os elementos que serão analisados. São palavras ou conceitos que se mostram pilares de seu projeto, e portanto, de nossa construção sobre ele. Como aparecem naquelas primeiras páginas, teremos que transcrevê-las novamente nos momentos em que formos recorrendo a elas, no sentido de evitar que o leitor tenha que a todo o momento retornar em nosso texto. Estas palavras aparecem depois em outros lugares do texto, o que permite derivar para outros significados, ou afirmar a primeira interpretação do sentido. São elas: a experiência, o olhar, a linguagem, a verdade e o vazio.

10 “Mas que lugar?”

A experiência e o olhar A experiência surge ligada ao olhar. Aparece no questionamento do que é a pintura. Seria a pintura uma experiência?11 E seria o olhar uma experiência? A articulação que parece ser feita é de que o ato de pintar e o olhar são experiências, são da ordem da simultaneidade. É o que Borges diz, citado na primeira página: “O que meus olhos viram foi simultâneo...”. O olhar parece ser um elemento importante em seu projeto. Ele aparece como ato da busca e como objeto dela. No momento em que coloca o olhar como experiência, ele aparece como objeto da busca. Mas, também há o olhar enquanto movimento, enquanto procura. São com estes dois olhares que ele trabalha:

11 “O que pintar quer dizer? Em que sentido a pintura é uma experiência? Em que sentido a experiência de olhar, a elaboração dessa percepção, nos aproxima da essência do homem?”

Trabalho com o olhar. Trabalho com o que produz o olhar. Trabalho com o olhar que produz. Para o pintor, o desejo de ver é menor, menos importante, do que o de apreciar a noção do visível.

Note-se que se há o desejo de ver, o desejo da simultaneidade, há também o de ver o que pode, ou não, ser visto, a noção do visível. E aqui o olhar em questão é o olhar possível, ou seja, como linguagem e não só experiência. Vejamos outros momentos em que surge o olhar: 128

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O pintor se afasta da tela para poder enxergar, poder ver. O ver, o olhar impõe a distância. [página 18] A experiência de olhar uma pintura faz, cria um território. [página 19] A pintura trabalha o olhar possível. [página 24] Olhar uma pintura é um acontecimento. Esse acontecimento nos coloca como testemunhas da coisa que ela não é [página 26]

O olhar aparece, portanto, como o simultâneo, mas também como o que pede a distância, cria um território possível de abordagem. Assim, é também linguagem.

A linguagem Voltemos às primeiras páginas: O que os meus olhos viram foi simultâneo; O que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei. [Borges, O Aleph] O que pintar quer dizer? Em que sentido a pintura é uma experiência? Em que sentido a experiência de olhar, a elaboração dessa percepção, nos aproxima da essência do homem? [página 2] Será que há uma forma de falar que revelaria nossa humanidade essencial? [página 3]

A linguagem surge para registrar o se que viu, é sucessiva. Registra algo, não toda a experiência. Assim como o olhar, a linguagem aparece como a busca e também o objeto dela. A idéia de um suposto objeto, ou de uma experiência sensível, ou mesmo de um encontro (como o da borboleta) suscita uma busca, uma linguagem que possa representá-lo. Mas a busca implica na procura por uma linguagem que possa revelar, sendo assim a linguagem, a forma de falar, passa a ser também o objeto. É a criação que surge como linguagem, é sua forma de falar. Para elaborar a experiência, cria uma linguagem, a pintura, e assim novas experiências (lembremos que a pintura pode ser uma experiência). A busca cria o objeto que procura e este, por sua vez, incita a buscar. E assim, sucessivamente. A procura pela linguagem que possa mostrar a experiência aparece na concepção de que a pintura, a imagem, mostra o que a palavra não consegue dizer, “é a presença do que a palavra não descreve”. A palavra parece estar mais ligada à “elaboração da percepção”, mas para dizer. Vejamos o que escreve: REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Não esquecer que as palavras enganam. Muitas vezes elas não passam de armadilhas. [...] Para dizer aquilo que me escapa. Para dizer aquilo que não me diz. Para dizer das idéias que nos lançam em divagações. Para dizer do estranho. Para dizer da vaga sensação. Para dizer do que não sei o nome. Para dizer do que falta. Para estar mais próximo do mistério, do que é essencial.

Assim, a palavra, para ele, tem o estatuto de dizer da sensação, da experiência. É um testemunho, como se vê nessa construção: Nesse momento, com a escrita, estou na posição de um narrador. Somos todos narradores. Ainda que não sejamos escritores, ainda que a escrita seja um simples testemunho, registro da experiência do pintar [...]

Assim, a palavra parece ser eminentemente linguagem, mas a pintura, para ele, é experiência e linguagem ao mesmo tempo.

A verdade e o vazio O sentido da arte, mais especificamente da pintura, enquanto experiência e linguagem, parece estar ligado a um encontro e uma revelação, que possam dar alguma ordem às suas inquietações. Vejamos, novamente, as primeiras páginas. Há um imperativo de encontrar algo: É preciso encontrar alguma coisa. É preciso. Uma pista, talvez até exista... Lá... É isso... Talvez pudesse encontrar alguma coisa nos livros que estou lendo, nas anotações feitas à margem, nas citações de autores, nos catálogos, em textos grifados, em testemunhos de outras pessoas. Pensamentos que tratem da experiência, da essência da pintura, da criação. Gostaria que, ao abrir inesperadamente uma destas páginas, o encontro com uma daquelas idéias anotadas, e lá esquecidas, ajudassem a trazer ordem às minhas inquietações. [página 3]

O encontro tem o sentido de descoberta, de revelação.

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Encontrei numa pequena caixa, guardada há muito tempo numa gaveta, uma borboleta. Aquela descoberta funcionou para mim como uma revelação.

Essa descoberta se revela não como o objeto final da procura, mas dispara o processo de criação. Resolvi fazer desse acaso uma espécie de investigação. As lembranças, associações de idéias, descobertas, invenções, fantasias que a revelação me provocou, registrei em cadernos de desenho, fiz gravuras e pinturas, comecei assim uma série de trabalhos que chamei de fragmentos de um dia extenso. [página 4]

Mas, se a palavra revelação aparece ligada ao processo, surge também no sentido de mostrar, ou se aproximar de algo, de uma humanidade essencial. Vejamos como aparece: Será que há uma forma de falar que revelaria nossa humanidade essencial? [página 3] O que pintar quer dizer? Em que sentido a pintura é uma experiência? Em que sentido a experiência de olhar, a elaboração dessa percepção, nos aproxima da essência do homem? [página 2]

O que seria essa humanidade essencial ou essência do homem? Da forma com que é apresentada parece ser algo em que se chega. Mas, em outra página, fala da palavra para “estar mais próximo do mistério, do que é essencial”. Se a essência é o mistério, ela se apresenta como falta enquanto condição e não como o objeto da falta. Não é a resposta ao mistério e sim o próprio mistério. Enfim, o que parece estar em jogo aqui, assim como no que foi discutido anteriormente, ou seja, em relação à experiência, ao olhar e à linguagem, é a ambigüidade, o paradoxo. O que se busca? O que faz buscar? Onde se chega? O que é possível e o que se torna impossível? O que existe? O tema da verdade é exemplar disso. Vejamos a forma com que ele aparece: A verdade essencial de uma experiência não é transmissível. [página 25] Verdades. Verdade que não está na obra, nem em lugar nenhum. Verdade que é o combate que se trava na pintura, para se fazer sensação. [página 34]

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O que será uma espécie de sentimento de verdade que nasce da pintura? A verdade não existe. Mas de alguma forma podemos dizer que a pintura contém um momento da verdade. [página 21]

Quando se diz da essência da verdade parece que há a verdade, mas quando se diz que ela não está em lugar nenhum, e sim no combate, a verdade não é algo substancial, e sim o próprio processo de busca. Da mesma forma, se a pintura faz nascer um sentimento de verdade, ou um momento dela, ela existe, apesar da afirmação, “a verdade não existe”. Note-se que a construção não diz uma verdade, e sim a verdade. O encontro com este sentimento de verdade é referido, em alguns momentos, como um encantamento, uma doçura, em outros estranhamento e tensão. Vejamos alguns deles: No museu de Arte de São Paulo há uma pintura de Chardin que sempre me encantou: um jovem sentado a uma escrivaninha, com a gaveta semi-aberta e objetos tais como caneta, compasso etc. O que produz essa doçura? O que produz esse encantamento? [página 27] (Sobre uma pintura de Vittore Carpaccio) A tela representa duas cortesãs, que olham na mesma direção, porém fora do espaço que a pintura cria. [...] Essa pintura tem na cor um elemento de importância, além de sua composição clássica, descentralizada, com elementos simbólicos cortados na tela. A obra me provoca tensão e estranhamento. Que incidente ou acidente na pintura nos cativa? [página 33]

A primeira pintura citada, da forma como é referida, parece provocar um sentimento de verdade, de presença. É um encantamento, uma doçura, algo que captura o sujeito. Ou seja, é o deleite, o pleno, a presença pura, absoluta. Na segunda pintura, ao contrário, o que se impõe é o corte, a ausência. Provoca tensão e estranhamento. Note-se que mais abaixo ele refere: “o que ela tem, ou melhor, o que está ausente nela, que nos perturba? [...] A pintura fala de um espaço secreto, de um espaço subtraído, de um espaço roubado. Esse espaço subtraído, roubado, parece apontar para um vazio, para uma ausência. As duas cortesãs olham para fora do espaço da pintura. O que elas olham? O que perturba? Não será a condição de ausência, de vazio, da falta que remete o olhar sempre para outro lugar? 132

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A pintura para ele tem essa condição, de magia que encanta e perturba, que preenche o espaço com a presença, mas que também “pode mostrar o ausente”, o vazio. Mas como o ausente se mostra? A pintura pode mostrar um momento da verdade, os fragmentos de um dia, são “marcas de ausências” e não a ausência. O ausente se mostra no que não está presente. É o que falta que aponta para a ausência, para o vazio, para o que sempre escapa. O que falta da verdade essencial, do tempo e espaço ilimitado (que não se mostra em fragmentos), da experiência e do olhar inteiro. É o que falta da linguagem. Mas, não será esse o grande paradoxo da existência? Não será essa a grande ambigüidade da arte? A presença de uma “linguagem que fala das ausências”? Parecem-nos que as questões de seu projeto se sustentam em um grande paradigma, o paradoxo da presença e ausência ao mesmo tempo. Vamos retomar a abordagem dos elementos que julgamos os pilares de seu projeto e confrontá-los com o que parece ser o paradigma de sua pintura. A primeira questão abordada foi a da dinâmica da impossibilidade e do que se faz possível. Ela se faz presente, como vimos, ao longo de todo o livro e mesmo ao longo da mesma página. O possível, o fazer imagem, o dizer, o movimento de busca, o tentar e o insistir se alternam com a impossibilidade e a inutilidade. Mas, essa alternância de sentido, um movimento que parece ir em direção contrária ao outro, não seria a marca de todas as outras questões, todos os elementos analisados? Retomemos os elementos implicados no sentido de sua pintura: a experiência, o olhar, a linguagem, a verdade e o vazio. Seria a experiência passível de ser mostrada? Ora a pintura pode mostrar, ora a experiência sempre escapa. Seria o olhar uma experiência? Ora aparece como simultâneo, a própria experiência, ora como linguagem, criando um território possível de abordagem. Seria o olhar o que se busca? Ora sim, mas ora não. Às vezes é o objeto da procura, mas em outras se mostra como o próprio movimento da busca, como processo. Seria a pintura uma linguagem? Ora a pintura aparece como linguagem, ora como experiência. Seria a linguagem um movimento de busca? Ora sim, mas ora ela se mostra como o que se busca, a forma de falar que revela. Teria a pintura o sentido de descoberta, encontro e revelação? À vezes sim, mas em outras é investigação. Existe uma “verdade essencial de uma experiência”? Ora sim, ora “a verdade não existe”. Pode a pintura “mostrar o ausente”? À vezes sim. Em outras ela é “essa linguagem que fala das ausências”, são “marcas de ausências”. Iniciamos a análise com as primeiras páginas de seu texto. Agora, transcreveremos a última delas: O que vejo na pintura é a possibilidade de um encontro com uma sensação de eternidade. O que a pintura possibilita ver é o que já existia antes do começo. É como se aquilo que estamos vendo como imagem já existisse anteriormente e fosse de novo revelado por meio da pintura. Provavelmente aí é que surge a sensação de reencontro

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com o que de certa forma já existia, e sempre habitou aquele espaço. Mistério: buscamos o lugar onde ele não se encontra, mas que aparece como possibilidade. Por isso insistimos. Por isso continuamos. Às vezes guardamos fragmentos desse dia extenso.

A pergunta que mais aparece ao longo do livro é “O que pintar quer dizer” (surge idêntica em seis momentos diferentes). Parece que, para ele, não há resposta que possa dar conta dela. Pois, a pintura é esse paradoxo de eternidade e vazio, de reencontro e não encontro, de absoluto e possibilidade, da totalidade de um dia e dos fragmentos desse dia extenso.

Projeto Poético e Subjetividade A questão subjetiva do projeto artístico de Sergio Fingermann parece ser, portanto, o paradoxo da presença e ausência ao mesmo tempo. Está ligada ao que preenche o espaço, a presença, e ao espaço como vazio, a ausência. Se a presença de algo é sempre parcial, em fragmentos, sempre se mostra que falta, mostra-se a ausência como condição.12 Assim, a presença traz em si mesma a ausência. Da mesma forma, a pintura só pode mostrar a ausência, o vazio, por meio de suas marcas, do que foi deixado de presença na ausência. Quando se mostra o vazio, ele deixa de ser vazio, passa a ser a representação de vazio.13 Mas, o que estas questões tem a ver com a poética de Sergio Fingermann? Se retomarmos a apresentação sobre a obra do artista, veremos que nas suas questões plásticas formais, a dinâmica da representação e do espaço, estão implicadas este paradoxo da presença e da ausência, do possível e do impossível. Em um primeiro momento sua pintura é caracterizada pela presença no espaço de representações justapostas, associadas a signos gráficos. São obras marcadas pela figuração narrativa. No segundo momento estes elementos simbólicos do trabalho se fundem na superfície da pintura tornando-a mais abstrata. Aqui, o espaço é o próprio assunto da pintura. A ausência de representações aponta o vazio. O espaço como vazio de representação. Por fim, ressurgem representações como pequenos desenhos e anotações gráficas, mas “ela não é o único assunto da pintura”. São presenças que adjetivam o espaço, faz dele possibilidade, estratégia e artifício. A representação não é o único assunto. Ele é a representação e o espaço. Em uma passagem do livro, o artista diz guardar algumas lembranças muito fortes da infância, dos primeiros contatos com a arte. São reproduções dos afrescos de Giotto da Capela de Scrovegni de Pádua, Itália, que viu numa enciclopédia. Folheava sempre as suas páginas, “meu interesse estava tanto na representação como na superfície pintada”. Lembremos, também, da atração pela pintura de Carpaccio, “a tela representa duas cortesãs, que olham na mesma direção, porém fora do espaço que a pintura cria”. As duas cortesãs, representação portanto, trazem a ausência em seu olhar, um espaço fora. Note-se que são as mesmas questões. A presença na representação e a ausência ou vazio, na falta de representação. A ausência na presença possível, a presença que aponta a ausência. O que Sergio Fingermann parece buscar, enquanto projeto, é mostrar a pintura enquanto paradoxo da presença e ausência. 134

12 Note-se que a reprodução de uma obra, no livro de textos e imagens, exclui uma parte do quadro, mostrando apenas um fragmento (imagem 1). A reprodução do quadro inteiro aparece na cronologia (imagem 2).

13 Nas imagens 1 e 3 aparece a mesma figura, uma elipse que parece circunscrever um campo. Seria a possibilidade no vazio? (“Como tornar o vazio uma possibilidade”). Seria “a borda [...]ou seja, a orla desse vazio”? Talvez, em documentos de processo pudéssemos encontrar algum índice disso.

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14 O outro aqui se refere também ao sujeito artista. Essa questão decorre na hipótese de que o artista se constitui subjetivamente em sua obra. Constitui-se como sujeito em falta, em fragmentos. Note-se que quase todas as fotografias do artista, no livro, mostram fragmentos de seu corpo (ver imagem 4).

As questões de seu projeto guardam semelhanças com as do projeto de Daniel Senise e de Claudia Leão, como vimos anteriormente. O projeto de Senise parece ser a relação imagem – objeto. A pintura como o sudário, que é ao mesmo tempo a representação e o objeto. A imagem que pode representar e ser o objeto. Seria o estatuto de imagem e objeto, presença e ausência como marcas de movimento. Já o projeto de Claudia Leão está ligado à imagem fotográfica poder trazer a marca da ausência, do que foi perdido no tempo, mas fazendo-o novamente presente, com uma nova história. É a “presentificação da ausência”, como diz. A imagem se mostra como a presença possível sobre a ausência do que se perdeu. Note-se que nos três artistas a imagem tem este estatuto, de presença e ausência e essa questão é a temática de seus projetos poéticos. O próprio fato de eles escreverem suas reflexões em cadernos, livros ou dissertação, indica essa busca por captar a imagem. E não só pela linguagem plástica, ou fotográfica, mas também pela palavra. Mas, a abordagem da questão difere em cada um deles. Em Sergio Fingermann é o paradoxo da presença e ausência da imagem que parece estar em pauta. E a imagem ausente, para ele, é da ordem do vazio, de uma falta como condição humana. Já em Claudia Leão, a ausência parece estar mais ligada ao que se perdeu, ao que se perdeu no tempo. Algo que também falta, mas que um dia pôde estar presente. São fotografias de pessoas que já não se encontram presentes, por diversas razões. Naturalmente essa perda está ancorada em uma falta como paradigma do humano. A falta se refere a uma ausência de objeto desde sempre e não ao estado de ausência de algo que existiu. Mas, o limite entre estes dois estatutos do objeto é muito tênue. Note-se que o objeto da saudade, que um dia existiu, pode tomar a dimensão de algo que, de certa forma, parecia suprir a falta. Trata-se aqui do objeto da saudade, ou seja, que não está presente, pois no presente a falta não pode ser preenchida. A saudade não pode ser desvinculada de uma nostalgia de que houve um tempo de presença. De qualquer forma as questões que sustentam os três projetos estão ancoradas em temáticas semelhantes, a ausência do objeto. São, mais do que estéticas, questões subjetivas. Ou melhor, são de uma estética da subjetividade. O efeito da arte sobre o outro é parte integrante no projeto de Claudia Leão e no de Sergio Fingermann. Esse efeito é sobre a subjetividade. A marca da subjetividade na obra é também a marca da batalha subjetiva do artista, que é a sua busca pela imagem.14 Claudia Leão, ao buscar as imagens ausentes e com elas criar novas histórias, busca, em última instância, suscitar no outro o sentimento de pertença. E assim, tirar o sujeito de um exílio de sua história, de um exílio de si. Uma das últimas frases de sua dissertação é “o que vale realmente é lembrar, lembrar. Esquecer é como a morte...”. Sergio Fingermann diz claramente que seu desejo é deixar a marca da subjetividade em seus trabalhos, e “oferecer ao homem um meio de reencontra-se, de reconhecer-se”.

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A obra destes artistas toca em questões paradigmáticas não só da arte, mas da existência. São questões sobre a ausência, o vazio, a falta, a saudade, a dor da perda, o reencontro, a eternidade, a busca, a linguagem, o possível e o impossível. São questões relativas ao objeto da perda. Este objeto é chamado, em psicanálise, de objeto perdido, mas, como diz Lacan, “esse objeto, em suma, nunca foi perdido, apesar de tratar-se essencialmente de reencontrá-lo” (1991, p.76). Ele nunca foi perdido por nunca ter existido enquanto tal. Ele foi fundado na saudade de um tempo harmonioso. O objeto perdido é, portanto, uma construção, nunca existiu de fato como absoluto, nunca houve um tempo harmonioso. Ele é criado em função de uma perda de algo que já não se tinha. Mas o que, de fato, se tinha? Sobre o que se apóia essa memória? O que estava aí não é propriamente o objeto, mas “suas coordenadas de prazer” (Lacan, 1991, p.69). Na verdade, é na ruptura inevitável de uma experiência de prazer que esse objeto é criado enquanto suposição. É como se a ausência de prazer remetesse à possibilidade de um estado absoluto de satisfação. Assim, a vivência de prazer traz consigo a marca de uma falta. É só porque a satisfação é momentânea que ela se faz falta. Assim, o objeto perdido não é nada, “literalmente não é” (Lacan, 1991, p. 82), mas pode ser representado pelo furo, pelo vazio, por uma ausência desde sempre. É em torno desse objeto, desse nada, que o sujeito situará seu desejo, essa tendência a reencontrar. O desejo é causado, portanto, não pelo objeto, mas pela falta do objeto. Não há o que reencontrar, mas na busca, o sujeito encontra uma série de satisfações vinculadas à relação com o objeto. É o que de possível se encontra diante do impossível reencontro. É com esse paradoxo que o sujeito deve-se haver. O objeto perdido nunca foi perdido, mas a busca do sujeito é orientada pelo reencontro com ele. E ele não é nada. A falta do objeto e o desejo enquanto tendência a encontrá-lo são as questões em torno das quais o sujeito se constitui. Não são essas as questões envolvidas nos projetos destes artistas? Não seria este paradoxo o que eles buscam mostrar em suas obras? A obra de arte é uma tentativa de reencontrar o objeto, mas na irremediável impossibilidade disto, faz bordas, contorna sua ausência. Ao contornar o faz presente de alguma forma, como vazio. Torna o vazio uma possibilidade, uma imagem. Mas a imagem é uma presença que sempre apontará para a ausência. A arte cria o que supostamente se perdeu e dá a sensação de reencontro, de que o que se construiu já estava lá. É a sensação de eternidade, de encantamento, como diz Sergio Fingermann. O objeto de arte não só representa, mas existe como tal. Existe como realidade e ficção. Situa-se num espaço de ilusão, onde a representação é quase objeto. Para Claudia Leão, a fotografia “pode ser a presença de quem está ali”. Para Senise, “a pintura como sudário é ao mesmo tempo a representação e o objeto”. E para Sergio Fingermann, citando Maurice Blanchot, “o que surge na luz é a mesma coisa que dormia na noite”. Neste espaço de ilusão, paradigma da arte, a obra re(a)presenta o paradoxo da vida.

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BIBLIOGRAFIA FINGERMANN, S. Cronologia; Fragmentos de um dia extenso. São Paulo: Bei Comunicação. LACAN, J. 1995. O Seminário, livro 7: A Ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. LEÃO, A. C. A. 2003. Imagens Suspensas: a (re)constituição comunicacional da solidão e das lembranças de mulheres idosas esquecidas nos asilos. Dissertação de mestrado, PUC/SP. MESQUITA,I. 1998. Daniel Senise: Ela que não está. São Paulo: Cosac & Naify Edições. SALLES, C. A. Crítica genética e Semiótica: uma interface possível. Em Zular, R., Criação em processo: ensaios de crítica genética. 2002. São Paulo: Iluminuras. ___________. Gesto Inacabado: processo de criação artística. 1998. São Paulo: Annablume. ___________. Fato sem testemunha. Texto inédito, s/d. ___________. Cadernos de Daniel Senise: Sótão de objetos pessoais. Texto inédito, s/d.

*Sylvia Ribeiro Fernandes é Doutora pelo Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP. e-mail: <sylviafernandes@uol.com.br>.

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IDÉIAS

AS FORMAS CLÁSSICAS, A GRANDE RECUSA, O ABSOLUTO E O AMOR Imaculada Kangussu*

A razão humana, num determinado domínio de seus conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada por questões que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua natureza, mas às quais também não pode dar resposta por ultrapassarem completamente as suas possibilidades. (Kant)

Resumo: O presente texto reafirma as considerações de Herbert Marcuse ao romance Aurélien, de Louis Aragon, que salientam as posições do escritor francês relativas ao amor – percebido como antagônico e transcendente ao prosaísmo cotidiano e, por isso mesmo, portador de forte potência política. Distancia-se, entretanto, do ponto de vista de Marcuse ao perceber no romance uma crítica radical à idéia do Absoluto. PALAVRAS-CHAVES: HERBERT MARCUSE; LOUIS ARAGON; ESTÉTICA; TRANSCENDÊNCIA Abstract: The present text reasserts Herbert Marcuse’s considerations about Louis Aragon´s novel Aurélien which point out the latter´s views on love. Nevertheless, our analysis differs from Marcuse in considering the novel a radical critique of the Absolute. KEYWORDS: HERBERT MARCUSE; LOUIS ARAGON; AESTHETICS; TRANSCENDENCE

1 MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, em Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: UNESP, 1999; p.267. 2 Ou, para ser mais precisa, quase todo ele. Uma vez que a primeira, das quatro seções que o compõe, foi datilografada em máquina diferente, e Douglas Kellner, atual editor da obra de Marcuse, considera que ela, a seção I, possa ter sido escrita em data posterior. Cf. MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, op.cit., p.268. As reflexões que aqui apresento têm como objeto as seções II e III.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a literatura produzida pelas vanguardas francesas, que se uniram à Resistência contra a ocupação nazista, foi foco de reflexão de Herbert Marcuse, em ensaio denominado “Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária”. Abaixo do título, na página de rosto do texto datilografado pelo filósofo alemão, está a data “September 1945”,1 o que significa que o texto é contemporâneo da literatura sobre a qual discorre, isto é, foi escrito no “calor da hora”.2 Ao escrever as “Considerações sobre Aragon”, Marcuse apresenta a arte como expressão de Grande Recusa ao totalitarismo vitorioso no mundo em que ela aparece. Essa oposição é atribuída à alteridade própria da arte, capaz de criar mundos outros, assombrar as fantasias e provocar a alienação da alienação. Antagônica, enigmática, estranha e, ao mesmo tempo, trincheira que acolhe faculdades não atualizadas, desejos reprimidos, sonhos irrealizáveis, ela parece mais real, porque é mais verdadeira, no que diz respeito às intensidades vitais, que a própria realidade. A idéia de uma Grande Recusa, cuja existência a arte testemunha, Marcuse toma emprestada de Whitehead, de Science and Modern World.

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A verdadeira relevância das proposições não-verdadeiras para cada ocasião real é revelada pela arte, pelo romance e pela crítica em referência aos ideais. A verdade que alguma proposição a respeito de uma ocasião real seja não-verdadeira pode expressar a verdade vital relativa à sua realização. Expressa a “grande recusa” que é sua primeira característica.3

Como os mitos, a arte é verdadeira, sendo uma mentira que se apresenta como tal. Na recusa em aceitar como definitivas as limitações impostas às reais possibilidades, ao esquecimento do que pode ser, reside sua função crítica. Durante a ocupação fascista da França, a Grande Recusa, protesto contra o estado de coisas dado, só poderia ser expressa livremente na arte. As criações artísticas preservaram a negação determinada da realidade estabelecida, o que vem a ser, em outras palavras, a mais pura forma de liberdade. Marcuse considera que o teor de verdade das obras está ligado à alteridade da arte; sua autonomia encontra-se entrelaçada à potência de transcender e, com isso, relativizar o mundo dado. E ambas, autonomia e transcendência, são realizadas através da Forma. As formas estéticas aparecem no mundo e o transcendem: realizam o trânsito entre particular e universal, o transe do princípio de individuação com o pertencimento ao gênero; fazem parte do que existe e recusam o existente, preservam o horror e reconciliam-no na forma estética – que sempre provoca prazer.4 A forma estética provoca estranhamento e força o alongamento do tempo de sua percepção através das misteriosas apresentações do indizível, labirintos onde a razão se confunde e, com isso, conduz à emergência de uma nova consciência por meio de novas formas de percepções - defende Marcuse, tendo em vista a dimensão política da Forma. A pergunta que atravessa os textos do filósofo sobre estética busca saber como a arte pode manter sua força transcendente e continuar a expressar a Grande Recusa se os mecanismos da indústria cultural parecem tudo assimilar. Se a pergunta nunca foi respondida de uma vez por todas, aparecem respostas distintas, em textos diversos, que acompanham o devir das relações entre arte e sociedade. As vanguardas européias, a partir dos anos 20 do século XX, transformaram forma em conteúdo que, com isso, não escapou de compartilhar o destino de todo produto: foi transformada em mercadoria e absorvida pelos mecanismos do mercado. O problema permaneceu sem solução. Marcuse observa que o trabalho dos escritores ligados à Resistência representou um novo passo neste caminho. Os intelectuais envolvidos foram aqueles que se uniram aos comunistas, dividiram-se na época stalinista e lutaram contra a ocupação da França pelos nazistas. A raison d’être de sua arte era o político. Entretanto, tomar o político como conteúdo e formatá-lo em obra seria entregá-lo ao sistema fascista. A obra de arte precisava “expor a absoluta nudez da existência do homem, despida de toda a parafernália da cultura de massas monopolista, completa e absolutamente só, num abismo de destruição, desespero e liberdade”.5 Marcuse revela o temor 140

3 WHITEHEAD. Science and the modern world, p.228. Citado por Marcuse, em Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária (1945), p.270. Parece ser esta a primeira vez que aparece o conceito de “Grande Recusa”, utilizado por Marcuse para configurar uma atitude radical diante da tibieza da razão no mundo dado. Parte do texto citado reaparece em Eros and Civilization (1955), p.149; na tradução brasileira, p.139. E sua seqüência é apresentada em One-Dimensional Man (1964), p.149; na tradução brasileira, Ideologia da Sociedade Industrial, p.201. José Guilherme Merquior ressaltou, equivocadamente, que “Marcuse tirou a idéia melodramática de uma recusa absoluta de Maurice Blanchot” (grifo meu). MERQUIOR. O Marxismo Ocidental, p.224. Lembro ainda que o motto da “Grande Recusa” tornou-se slogan nos protestos estudantis dos anos 60 do século XX. Cf. KELLNER. Critical Theory, Marxism and Modernity, p.210ss. 4 Conforme registrou Aristóteles, “nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres”. ARISTÓTELES. Poética, IV, 14.

5 MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, p.271.

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6 MARCUSE. Counterrevolution and Revolt, p.103; na tradução brasileira, p.103.

7 MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, p.273. A vocação da poesia é apresentada com palavras de Baudelaire: C’est une grande destinée que celle de la poésie! Joyeuse ou lamentable, elle porte toujours en soi le divin caractère utopique. Elle contradict sans cesse le fait, à peine de ne plus être (É grande o destino da poesia! Feliz ou lamentável, ela traz sempre consigo o divino caráter utópico. Sem cessar contradiz o fato, sob pena de deixar de existir)”. Ibidem.

8 MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, p.275. 9 MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, p.274. 10 “Sim, falem de amor ainda e que amor rime/ Com dia com alma ou com absolutamente nada falem/ Falem de amor pois tudo o mais é crime”. Cf. MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, p.285.

de que, nos sistemáticos esforços para reduzir ou mesmo fechar a fenda entre arte e realidade, possa desaparecer a segunda alienação. A pretensão ao real leva à perda da transcendência da arte e a reduz à repetição do dado. “A arte só pode expressar seu potencial radical como arte, em sua própria linguagem e imagem, que invalida a linguagem ordinária, a prose du monde”.6 Em “Algumas considerações sobre Aragon”, a principal idéia apresentada pelo referido filósofo é a de que os escritores que compunham a chamada vanguarda francesa e que saudavam o escândalo (“le scandale pour le scandale”) e reverenciavam Sade e Lautréamont nos anos 20 e 30, durante a ocupação alemã, adotaram um estilo clássico, austero e enalteceram o amor e a pátria. Marcuse refere-se nominalmente às obras de André Breton, Position politique du surréalisme, de Paul Eluard, Les sept poèmes d’amour em guerre, e de Louis Aragon, Aurélien. O mundo dos escritores franceses durante a Resistência era constituído pela realidade do fascismo totalitário e a linguagem de suas obras reviveu o vocabulário tradicional e clássico do amor, linguagem aparentemente distante da oposição e da resistência. Os textos exprimem uma sensualidade que não permite sublimação. “A sensualidade é o kat’exochen apolítico”, observa Marcuse, “mas em seu caráter apolítico preserva a meta da ação política: a libertação”.7 A atualidade desse texto sobre a literatura francesa na época da Resistência decorre do fato de que a linguagem amorosa e as rimas clássicas continuam constituindo uma espécie de trincheira em territórios dominados pelo pensamento monolítico. A potência do amor, como a da arte, depende de sua força alienadora, de seu poder de permanecer outro, estranho, antagônico, transcendente ao cotidiano. Portador de mistérios que permanecem opacos à luz dos conceitos, o amor parece carregar em si uma espécie de alogia constitutiva. E como alienação da alienação, como uma segunda alienação, em virtude da qual o sujeito dissocia-se da sociedade alienada, o amor, como forma artística, torna-se político a priori. “Amor e liberdade são uma e mesma coisa”,8 julga Marcuse. Durante a Resistência francesa, o amor será o portador da promesse de bonheur, “o amor se torna o a priori político da oposição artística”.9 Louis Aragon incita: Mais si parlez d’amour encore et qu’amour rime Avec jour avec ame ou rien du tout parlez Parlez d’amour car tout le reste est crime.10

Seja ligado à alma ou ao cotidiano, o amor deve ser o assunto, dizem os versos, “pois todo o resto é crime”. A volta dos artistas de vanguarda às regras da métrica clássica é talvez o aspecto mais surpreendente da poesia da Resistência. Aragon explica essa volta pela necessidade de salvar a língua da derrisão total, tornando-a instrumento para fazer as coisas cantarem. É necessário fazer as coisas cantarem, pois já não se pode mais fazê-las falar sem que falem a linguagem do inimigo. Também em Aurélien (1945), terceiro romance de uma série que Aragon denomina Le Monde Réel, há uma volta à forma clássica, às regras tradicionais, características do romance no século XIX. Aurélien segue os padrões do romance social moderno: apresenta uma época retratando os estratos representativos da sociedade e refletindo o movimento histórico do período no destino pessoal do herói, Aureliano, e da heroína, Berenice. A trama parece conter um padrão aplicado: jovem esposa pequeno-burguesa deixa a província e seu marido, que é farmacêutico como o de Emma Bovary, para visitar o primo em Paris, onde se apaixona por um amigo deste, o boêmio convicto, Aureliano.

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Segundo Gérard Lebrun, Aurélien rivaliza com a Educação Sentimental, de Flaubert, e nele a prosa francesa adquire novas vibrações da extinta chama surrealista. Ainda é a língua de Stendhal, mas cavada por dobras imprevistas, atravessada por relâmpagos e súbitas tempestades. Falar em estilo, aqui, seria fraco. Há um estilo de Sartre, de Mauriac, de Malraux – mas há um efeito Aragon. Uma voz ou, antes, mil vozes que se cruzam, que invadirão vocês, os arrastarão e não os largarão mais.11

No início do livro Aurélien, ao conhecê-la, o protagonista considera Berenice feia, mal-vestida, provinciana, e fica intrigado com os comentários – originados por seu amigo Edmund – de que ele estaria interessado nela. Aureliano não entende o que provocara esses juízos. De fato, ele se sentira atraído pelo nome Berenice, que lhe evocava terras e tempos distantes, e só pelo nome.12 Os afetos de Aureliano vão se transformando, movidos pelo que pode ser considerado como a “intensidade” de Berenice. E é quase de repente que ele percebe estar apaixonado, ou melhor, decide que está apaixonado. O bon vivant resolve: Estou apaixonado. Dito isto, ficou a ouvir a pedra a cair no poço [...] Só ouvia, e em si mesmo, aquela palavra pronunciada, aquela palavra imensa e inesperada... Acabava de escolher de repente o seu caminho. Sem apelo. Decidira-se. O amor. Seria, portanto, o amor. Era o amor. Uma alteração total, uma agitação interior. O amor.13

11 LEBRUN. Aragon: uma vida perdida? em Passeios ao léu, p.164-165. O autor salienta que “Aragon merece ocupar o mesmo destaque, na literatura francesa do século XX, que Marcel Proust e Céline. Ainda mais por sua obra romanesca do que pela poética”. Ibidem, p.164.

12 Berenice era o nome da filha de Herodes, famigerado rei da Judéia. “O nome evoca em Aurélien a estranha memória do Oriente Romano, da grandiosidade e do luxo imperiais decadentes.” MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, p.281.

13 ARAGON. Aureliano, p.158.

A esta passagem seguem-se páginas de tirar o fôlego, em que é narrado o arrebatamento amoroso dos amantes, que absorve suas vidas, e cujo ápice é a descoberta, por Aureliano, de que “Berenice avait le goût de l’absolu”, de que ela tinha o gosto do absoluto. E esse gosto, Aragon faz ver, apesar da grandiosidade que o substantivo evoca, é o que pode haver de mais trágico, é a própria tragédia, a condenação: aspirar ao infinito em uma existência finita. A ânsia pelo absoluto será o elemento catalisador do amor de Berenice por Aureliano, e será também o que impedirá sua realização. Aragon adverte: Há uma paixão tão devoradora que não se pode descrever. Consome quem a contempla. Todos os que se lhe entregaram ficaram seus escravos. Não se pode experimentá-la e recuar. Estremece-se só de nomeá-la: é a paixão do absoluto. Dir-se-á que é uma paixão rara, e até os frenéticos amadores da grandeza humana acrescentarão: infelizmente. Que se desenganem. Encontra-se mais difundida do que a gripe, e se é melhor reconhecida quando atinge os nobres corações, possui formas sórdidas, que acarretam devastações às pessoas vulgares, aos espíritos secos, aos temperamentos pouco dotados [...] se quiserem, felicitem-se pelo que ela pode conseguir dos homens, pelo que esta forma de ansiedade faz gerar de sublime. Mas isso é só ver a exceção, a flor monstruosa [...] Contudo, por mais diversos que sejam os disfarces do mal, pode-se descobrir a pista por um sintoma comum a todas as formas. Este sintoma é uma incapacidade total para ser feliz. Aquele que tem a paixão do absoluto pode sabê-lo ou ignorá-lo, ser levado por ela a governar os povos, a dirigir exércitos, ou a sen-

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14 ARAGON. Aureliano, p.256-258.

tir-se paralisado na vida vulgar, e reduzido a um negativismo de bairro; aquele que tem a paixão do absoluto pode ser um inocente, um louco, um ambicioso, ou um pedante, mas não consegue ser feliz. Ultrapassa sempre em exigência aquilo que faria a sua felicidade.14

Quem tem a paixão do absoluto renuncia a toda felicidade, pois nenhuma felicidade resistiria a essa vertigem sempre renovada, ao pathos capaz de deixar a dona de casa obcecada pelo chão da cozinha, que nunca julga polido o suficiente. Dependendo de onde se coloca o absoluto, a vertigem que ele provoca no amor, no vestir ou no poder leva-nos ao encontro de D. Juans, Byrons, Napoleões... E Berenice precisava encontrar o absoluto em um ser de carne. Nesse sentido, Aureliano aparece como um abismo hiante sobre o qual ela se inclina destemida. O amor de Aureliano reveste, para ela os sombrios e maravilhosos caracteres do absoluto. Parece que tudo vai chegar a bom termo: que Aureliano realizará o desejo de Berenice com seu amor absoluto e correspondido. Entretanto, depois de poucos e breves encontros dedicados aos jogos amorosos, e antes que os amantes cheguem à cópula, o marido de Berenice deixa a província e vai à capital francesa participar das comemorações de fim de ano ao lado da esposa. Aragon nada diz sobre Berenice, mas Aureliano considera-se violentado: torna-se solitário e inimigo de qualquer companhia, amargurado, melancólico, aflito, enciumado. E assim passa o natal. Certo de ser correspondido, não consegue suportar a idéia de atravessar a virada do ano sem a companhia da amada. O desejo e a certeza de encontrá-la levam-no, depois de se preocupar em se fazer belo, ao Lulli. O Lulli pertencia a um casal de italianos que tinha esse sobrenome e era o lugar em Paris onde se encontravam, em busca de diversão, o grand monde e o bas-fond. Aragon coloca como freqüentadores do lugar personagens reais: Picasso, Renoir, Cocteau circulam no local entre outros artistas da época e os personagens fictícios do romance. Quando, na noite do reveillon, Aureliano chega, nem Berenice nem ninguém do seu grupo de amigos estava lá. Sustentado por esperanças e espicaçado pelo desespero, Aureliano espera. É tão forte o desejo que sustenta a certeza de que é lá que Berenice festejará que, ao ouvir a contagem regressiva dos últimos segundos do ano velho, quando as luzes se apagam, Aureliano fecha os olhos, ao soarem as doze badaladas, certo de que, ao abri-los, verá Berenice. Ainda de olhos fechados, sente um abraço e entrega-se feliz. É infinita sua decepção ao perceber que está abraçado a Simone, prostituta freqüentadora do Lulli e que, já havia algum tempo, demonstrava forte interesse por ele. A partir daí, Aureliano bebe tudo o que Simone lhe oferece e, no fim da noite, embriagado, dorme na casa da referida prostituta. Acorda no dia seguinte, dolorido, com lembranças obscuras, e volta arrasado para casa. É grande sua surpresa e maior seu prazer ao encontrar lá Berenice insone. E ela, exausta, explica: não suportando a idéia de ficar longe dele, abandonara o marido, os filhos, a família, os amigos, na véspera do ano novo e fora ao seu encontro. A porta estava fechada e ela passara a noite sozinha na escada, sentada nos degraus. De manhã, a moça que trabalhava para Aureliano a fizera entrar. É marcante, então, o contraste entre a felicidade de Aureliano ao ouvir o relato e a desilusão e o desgosto de Berenice ao encontrá-lo evidentemente recém-saído dos braços de outra mulher e, simultaneamente, exultando com a presença dela, Berenice. Ele não percebia que aquele fora o fim. Porque Aureliano, padecendo de saudades, cedeu aos apelos e a consolação de uma prostituta amiga, Berenice o recusa para sempre, como a um cristal quebrado, conforme suas palavras. Na seqüência, ela desaparece para ele, para REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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os amigos, para o marido que abandona, e refugia-se nos braços de um poeta, a quem não ama, condenando a si e a Aureliano a viverem sem amor, porque não pode aceitar um amor que não seja absoluto. O contato físico mais intenso que ocorre entre os dois será também o último e acontece durante um breve encontro, após dezoito anos de separação, durante os quais Berenice cultivou o amor não consumado de Aureliano como uma relíquia, que a manteve quase totalmente afastada da vida dita real. Aureliano, mais sóbrio, abandonou a vida boêmia, constituiu família e, por algum tempo, esqueceu Berenice. Ele reencontra-a quando passeia no jardim da casa de campo de Claude Monet, por acaso próxima ao esconderijo de Berenice. A França estava, então, sob ocupação nazista, e Berenice tornara-se militante de esquerda. Após uma noite de bebedeiras, voltando para casa, espremidos em um automóvel lotado, Berenice é atingida pelas balas inimigas e é nos braços de Aureliano que seu corpo encontra a morte, esta sim, senhora absoluta. No romance, Marcuse destaca o impacto causado pela decisão de Berenice de abandonar o amor e destruir sua vida, porque o amado dormiu com uma prostituta, fato que, conforme assinala, até a moral burguesa consideraria perfeitamente normal. O filósofo percebe aí um artifício capaz de revelar o que a moral esconde: “a promessa revolucionária do amor”.15 Considerada como atestado da impossibilidade física de substituir uma pessoa por outra, a fidelidade personificaria a transcendência, em uma estrutura baseada na fungibilidade universal. O ato de substituir é necessário à sociedade fundada nas relações de troca universais. E a cisão entre amor e sensualidade, “o direito de gozar esta sensualidade sem prejudicar o amor, pertence às liberdades sagradas do indivíduo burguês” que, ao tomar esta liberdade, ressalta Marcuse, “afirma a sociedade a que pertence”.16 A atitude de Berenice, em seu caráter desmedido e em sua recusa a ajustar-se à sensatez é, portanto, vista justamente como marca da transcendência do amor sobre a ordem da vida estabelecida. A identidade entre amor e política aparece na morte da heroína, julga o filósofo, em comentário muito mais rico que o aqui apresentado. A partir deste ponto, distanciamo-nos do pensamento de Marcuse – sem recusá-lo – e navegamos sob bandeira própria, na interpretação da obra. Seguindo o fio tecido pelo filósofo e que consiste em considerar o amor como responsável pelo duplo nó entre estética e política no romance, parece-nos que, diversamente da leitura de Marcuse, o alvo de Aragon é uma crítica ao absoluto, ou melhor, à idéia do absoluto. Passamos agora a justificar esse ponto de vista, qual seja, o de que, em Aurélien, Aragon realiza uma crítica determinada e, a nosso ver, fatal à idéia do “absoluto”. Conforme já assinalamos, o epílogo ocorre – e o romance foi escrito – durante o movimento francês de Resistência ao nacional-socialismo, em 1945. Como se sabe, o nacional-socialismo sempre perseguiu certa “beleza”, entendida como expressão de uma suposta superioridade racial, como evidência de uma raça forte, saudável e absolutamente pura. O culto ao absoluto era inseparável da política nazista. Hitler deu vazão a suas pretensões artísticas através da propaganda nacional-socialista, criando os uniformes, as bandeiras e os estandartes de seu partido. Os comícios tinham proporções astronômicas – Hitler era cenógrafo, diretor e protagonista – e representavam o ideal nazista: o mito do “corpo” do povo alemão, que deveria ser um corpo absolutamente “puro”. “Le goût de l’absolu” pode se transformar em mercadoria sinistra e mortal, capaz de promover a servidão voluntária, e mesmo devota, para governantes iníquos. Pode ser 144

15 MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária, p.282.

16 MARCUSE, “Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária”, p.283.

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o estratagema por meio do qual se realiza a enorme empreitada de mistificação, buscada por tiranos dominadores. Em seu romance, Aragon radicaliza, escolhe o pormenor e deixa claro que a idéia de absoluto é nefasta até mesmo no amor, esse sentimento responsável por boa parte das fantasias que nos mantêm vivos – e mais ou menos enlaçados uns aos outros. Encontramos a capacidade destruidora da vertigem do absoluto sobre o amor muito bem apresentada em um texto epistolar, cuja autoria deixamos em suspenso. Trata-se de correspondência recente entre dois professores de filosofia a quem deixamos a liberdade de se identificarem - ou não – e que diz: Certamente o amor é a coisa mais difícil que existe – sobretudo porque hoje ele é ainda a única coisa que resguarda traços do absoluto. Portanto, se tem a tendência de carregar a pessoa amada com todas as expectativas e exigências (e a si mesmo como amante também), que não ousamos mais formular nem com relação a Deus, nem ao político, nem à filosofia. Aí o peso fica insuportável e as bobagens da vida levam a uma vitória injusta.

17 Sobre a vida de Aragon, cf. LEBRUN. “Aragon: uma vida perdida?” e DAIX. Aragon, une vie à changer.

18 “Eu perdôo tudo no amor. Ele é o único critério que a meu ver escapa aos perigos da política. O perdão vem das últimas fronteiras do amor.” TRIOLET, Elsa. Luna Park. Paris: Gallimard, 1959; p.54.

Em Aurélien, a derrota do amor não pode ser atribuída “às bobagens da vida”, e, mesmo assim, parece injusta. Vale lembrar que, feliz e distintamente, na vida de seu autor, vitorioso foi o amor. Elsa Triolet tornou-se o centro de sua existência desde que se conheceram, em 1929, dois meses depois de o poeta tentar suicidar-se. “Elsa, sem a qual eu teria me calado”, escreve na dedicatória da coletânea de poemas denominada Roman Inachevé (1956).17 Aragon era filho natural de um político da III República e foi criado pela mãe, que se fazia passar por irmã mais velha, dissimulando seu “erro”. Sua infância parece romance de folhetim – “ridículo e atroz”, sublinha Lebrun. À mãe julgava irmã, à avó chamava de mãe e ao pai de tutor. Aragon se salva, tornando-se o trovador de sua dama, a romancista de origem russa, irmã de Lilia Brik, também musa, merecedora de belos versos de Wladimir Maiakovski. E, ao contrário da personagem Berenice, Elsa Triolet escreveu: “J’excuse tout en amour. C’est le seul critérium qui à mon sens échappe aux dangers de la politique. Le pardon vient de dernières frontières de l’amour.”18 Considerando a dificuldade de abrir mão do amor absoluto, cabe perguntar se, comparados com essa idéia à qual nos apegamos com tanta teimosia e desejo, talvez não haja mais teor de verdade nos versos, da poeta e cancionista inglesa P.J. Harvey, que proclamam, Oh my lover, oh my honey pie, You can love her, You can love me at the same time, And it’s all right, oh yes, it’s all right.

Encerramos essas reflexões indagando-nos se, diante da impossibilidade de incorporação material do absoluto, não seria necessário também abandonar o propósito de produzir um discurso sobre o conhecimento absolutamente claro e distinto. Absoluta é a busca inquieta pelo que não se deixa capturar. E talvez mesmo, em nome da potência dos abismos entrevistos nessa busca, poder-se-ia pensar se não há mais traços do absoluto nos trânsitos de um pensamento que não pretende sedimentar-se como verdade fechada, total e definitiva e que, distintamente, se transforme em formas, filosóficas ou fictícias, epifanias da verdade, capazes de provocar um novo saber, ad libidinem. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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BIBLIOGRAFIA ARAGON. Aureliano. Lisboa: Edições Arcádia, sem data. ARISTÓTELES. “Poética” em Aristóteles, coleção “Os Pensadores”. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. DAIX, Pierre. Aragon, une vie à changer. Paris: Seuil, 1982. KELLNER, Douglas. Critical Theory, Marxism and Modernity. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1989. LEBRUN. Aragon: uma vida perdida? em Passeios ao léu. São Paulo: Brasiliense, 1983. MARCUSE, Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária em Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: UNESP, 1999. _______ Counterrevolution and Revolt. Boston: Beacon Press, 1972. Tradução brasileira: Contrarevolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. _______ Eros and Civilization: a Philosophical Inquiry into Freud. Boston: Beacon Press, 1955. Tradução brasileira: Eros e Civilização. Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. _______ One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society. Boston: Beacon Press, 1964. Tradução brasileira: A Ideologia da Sociedade Industrial. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. MERQUIOR, José Guilherme. Marxismo Ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. TRIOLET, Elsa. Luna Park. Paris: Gallimard, 1959. WHITEHEAD, Alfred North. Science and the Modern World. Cambridge: University Press, 1926.

*Imaculada Kangussu é professora-adjunta no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto. O presente texto é parte da pesquisa sobre “Discursos eróticos em perspectiva filosófica”.

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A PRÓSITO DE LOUISE BROOKS... E LULU* Marco Aurélio Lucchetti**

Resumo: Esse artigo busca historicizar a vida de Louise Brooks, relacionando-a com a fantástica personagem Lulu, de A caixa de Pandora (de Pabst), e sua transformação de atriz em ‘mito’ cinematográfico. PALAVRAS-CHAVE: LOUISE BROOKS; LULU; A CAIXA DE PANDORA Abstract: This article seeks to tell the story of the life of Louise Brooks – especially her transformation into a movie star: a myth -, and relates it to that fantastic character from Pabst´s Pandora´s Box – Lulu. KEYWORDS: LOUISE BROOKS; LULU; PABST´S PANDORA´S BOX

Louise Brooks,1 a segunda de quatro irmãos,2 nasceu em 14 de novembro de 1906, em Cherryvale, uma pequena cidade do estado norteamericano do Kansas. Seu pai, Leonard Porter Brooks (1868 – 1960), tinha apenas dois amores na vida: Myra3 Rude Brooks (1884-1944), com quem se casou em 1904, e a profissão de advogado. Quanto à sua mãe, pouca atenção dispensava aos filhos, uma vez que dedicava quase todo o tempo ao cultivo de diversos interesses artísticos.4 Foi com cinco de idade, quando já exibia o corte de cabelo à la garçonne,5 que Louise viu despertar em si a paixão pelas palavras: aprendeu a ler olhando por cima dos ombros de sua mãe que lia para os filhos, em voz alta, os livros A Child´s Garden of Verses (1885), de Robert Louise Stevenson, e Alice in Wonderland (Alice no País das Maravilhas, no Brasil, 1865), de Lewis Carroll. A partir de então, passou a sentir uma verdadeira adoração pela biblioteca familiar que, além dos livros de Direito de Leonard, possuía obras de Thomas Carlyle, John Stuart Mill, Alfred Tennyson, Charles Darwin, Willian Makepeace Thackeray e, entre outros autores ingleses do período vitoriano, Charles Dickens; de escritores norte-americanos como Ralph Waldo Emerson, Nathaniel Hawthorne e Mark Twain; e de Goethe.6 “Eu devorava tudo com êxtase”, escreveu ela em suas memórias, “aborrecendo-me muito por nem sempre entender”7 aquilo que estava lendo. Desde cedo, Louise sentiu uma forte atração pela dança. Aos dez anos de idade, mais ou menos na mesma época em que estava tendo lições de dança com REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Mãe Argue Buckpitt,8 já dançava profissionalmente, apresentando-se em clubes e em festas públicas realizadas no sudeste do Kansas. Durante as apresentações, tinha o hábito de sofrer, segundo suas próprias palavras “crises de raiva em razão de um traje amarrotado ou um tempo de dança inadequado”.9 A mãe, que era, a um só tempo, sua camareira e sua acompanhante ao piano,10 suportava essas crises com uma calma inalterável. Em 1919, Louise e sua família mudaram-se: primeiro para Independence, uma das maiores cidades de Kansas. Então, Louise entrou no Wichita College of Music, a fim de prosseguir seus estudos de dança, onde não aprendeu nada de novo, porque nas aulas eram ensinadas às alunas tão-somente as cinco posições da dança clássica – posições essas que já havia aprendido com Mãe Argue Buckpitt. Por outro lado, ela e a principal professora do estabelecimento, Alice Campbell Wriggly, não conseguiram se entender e, em pouco tempo, considerada por Alice como uma “menina cheia de vontade, intratável e agressiva”,11 acabou sendo expulsa do curso.

DE DANÇARINA A ATRIZ Acompanhada pela mãe, Louise assistiu, em 17 de novembro de 1921, no Crawford Theatre, em Wichita, à apresentação de uma das mais inovadoras companhias norte-americanas de Dança, a Denishawn Dancers, dirigida pelo casal Ruth St.Denis12 e Edwin Myers (Ted) Shawn. Com a apresentação de vinte e três danças, cujo ápice consistia no número final, intitulado Xochitl,13 o espetáculo encantou Myra e Louise. Mãe e filha ficaram fascinadas principalmente com a espantosa diversidade das coreografias, executadas sobre uma gama de obras musicais de compositores que iam de Scarlatti e Chopin a John Philip Sousa e Erik Satie. Após a função, as duas dirigiram-se aos bastidores do teatro e Louise foi apresentada a Ted Shawn. Atraído, de imediato, pelo ar maroto e sedutor da jovem, o dançarino convidou-a para, no verão seguinte, ir a Nova York e ser uma de suas alunas na Denishawn School of Dancing.14 Louise aceitou o convite e, em julho de 1922, embarcou num trem rumo a Nova York. Durante as aulas da Denishawn School of Dancing, Louise revelou todo o seu talento na arte de dançar, o que lhe possibilitou, apesar de sua rebeldia em não seguir todas as regras da escola,15 ingressar na Denishawn Dancers. Como integrante da companhia, apresentou-se em diversas cidades16 dos Estados Unidos e do Canadá. No entanto, ali não permaneceu muito tempo, já que, no final da primavera de 1924, talvez devido a seu caráter rebelde, foi demitida por Ruth St. Denis. Após seu desligamento da Denishawn Dancers, Louise trabalhou como dançarina nos espetáculos musicais George White´s Scandals e Ziegfeld Follies,17 produzidos respectivamente por George White18 e Florens Ziefeld. Em 1925, quando participava do show de Ziegfeld, Louise recebeu um convite para interpretar um pequeno papel no filme The Street of Forgotten Men (A Rua dos Esquecidos, no Brasil, 1925), produzido pela Famous Players-Lasky e dirigido por Herbert Brenon. Ela aceitou a proposta e deu inicio à sua carreira de atriz cinematográfica. Entre 1926 e meados de 1928, Louise apareceu em doze fitas,19 nas quais foi dirigida por James Cruze, Frank Tuttle, Richard Rosson, Alfred Santell, Howard Hawks, William Wllman, Edward Sutherland,20 Malcolm St. Clair, Frank 148

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Strayer e Luther Reed. Além disso, contracenou com alguns dos mais populares e/ou relevantes atores da época, dentre os quais destacam-se: W. C. Fields (pseudônimo de William Claude Dukenfield), Wallace Beery, Victor Mclaglen, Chester Conklin e Adlphe Menjou. Em seguida, sob a direção de Malcolm St. Clair, participou, junto com William Powell e Jean Arthur, do filme The Canary Murder Case (O Drama de uma Noite, no Brasil, 1929), uma adaptação do livro homônimo de S. S. Van Dine,21 no qual representou uma dançarina assassinada.22 Em 6 de outubro de 1928, Louise viajou para Berlim, a fim de ser a intérprete principal de Die Buchse der Pandora (A caixa de Pandora, no Brasil), cuja história é baseada nas peças teatrais Erdgeist (numa tradução literal, Espírito da Terra, 1895) e Die Buchse der Pandora (1904), escritas por Benjamin Franklin (Frank) Wedekind .

WEDEKIND, PANDORA & LULU Nenhum dos dramas de Wedeking tem sido mais influente que suas denominadas peças de Lulu, que em sua incomum mistura de elementos satíricos, grotescos e trágicos combinam alguns dos mais notáveis aspectos do teatro naturalista e simbolista e também antecipam o expressionismo.23

Frank Wedeking, filho de um médico fanático pelos ideais republicanos e de uma ex-cantora, nasceu em 24 de julho de 1864, em Hannover, na Alemanha. Caso seguisse o desejo do pai, teria se tornado um advogado. Ao invés disso, preferiu, aos dezenove anos, arrumar um emprego no departamento de publicidade da fábrica de alimentos em conserva Maggi, em Zurique, na Suíça. Por volta de 1887, tornou-se secretário do Circo Herzog, com o qual visitou Berlim, Leipzig, Paris e, entre outras cidades européias, Londres. Em 1891, quando já havia escrito as peças teatrais Der Shnellmaler (1888), Die Junge Welt (1889) e Fruhlings Erwachen (1891), Wedking foi para Paris. Ali conviveu com boxeadores, cantores, palhaços e refugiados políticos; teve inúmeros casos de amor com artistas circenses e de cabarés e secretariou o escritor, trapaceiro e falsificador de quadros Willy Crétor. Ainda em Paris, Wedeking viu, no Nouveau Cirque, a pantomima Lulu, Une Clownesse Danseuse,24 de seu contemporâneo francês Félicien Champsaur. Na capital francesa conheceu o dramaturgo e romancista sueco August Strindberg e sua segunda esposa, a culta e emancipada Frida Uhl;25 encontrou Lou AndréasSalomé,26 que acabara de publicar em Viena o livro Friedrich Nietzsche in seinen Werken (Nietzsche em suas Obras, no Brasil) no qual apresentou uma abordagem psicológica dos textos do filosófo Friedrich Nietzsche, e escreveu Erdgeist. Foi em 1901, na mesma época em que foi lançado o livro Lulu, Roma Clownesque Illustré,27 de Champsar, que Wedeking, residindo na Alemanha, terminou de redigir Die Buchse der Pandora. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Para escrever Erdgeist e Die Buchse der Pandora, Wedeking inspirou-se na pantomia de Champsaur, nos assassinados cometidos por Jack, o Estripador,28 e na história de Pandora que, segundo a mitologia grega, foi a primeira mulher.

O MITO DE PANDORA Notando que, entre todas as criaturas vivas, não havia uma só capaz de descobrir, estudar ou utilizar adequadamente as forças da natureza, comandar os demais seres, estabelecer a ordem e a harmonia, comunicar-se pelo pensamento com deuses e entender a essência e o princípio das coisas, o semideus Prometeu criou o homem. Admirada com a beleza da obra de Prometeu, Minerva, a deusa da sabedoria, ofereceu-lhe ajuda para aperfeiçoá-la. Ele aceitou agradecido a oferta e disse que, para escolher o que mais convinha à sua criação, precisaria ver as regiões celestiais. Minerva, então, levou-o ao céu. Dali Prometeu não desceu enquanto não roubou dos deuses o fogo, um dos elementos mais importantes para o desenvolvimento da civilização humana. Irritado com semelhante atentado, Júpiter, o pai e o senhor dos deuses, ordenou a Vulcano, o deus do fogo e do trabalho com metais, que forjasse a mulher, um ser dotado de todas as perfeições, e a apresentasse à assembléia dos deuses. Uma vez criada a mulher, Minerva vestiu-a com um traje de brancura deslumbrante e cobriu-lhe a cabeça com um véu e uma grinalda de flores, sobre as quais colocou uma coroa de ouro; em seguida, Vulcano conduziu-a à assembléia dos deuses. Todos eles admiraram a nova criatura e cada um deu-lhe um presente: Minerva ensinou-lhe as artes próprias de seu sexo; Vênus, a deusa da beleza e do amor, ofereceu-lhe o encanto; e as demais divindades dotaram-na de audácia, força e persuasão. Entretanto, Mercúrio, o deus do comércio, dos ladrões e dos viajantes, deu-lhe a palavra, colocando-lhe no coração a falsidade. Quando todos os deuses já lhe haviam oferecido suas dádivas, ela recebeu o nome de Pandora.29 Depois, Júpiter entregou-lhe uma caixa, ordenando-lhe que a levasse a Prometeu. Desconfiado de que Júpiter poderia tentar alguma artimanha contra ele, Prometeu recomendou a seu irmão, Epimeteu, que não recebesse coisa alguma enviada pelo pai dos deuses, mas este caracterizava-se pela irreflexão e insensatez. Assim, ao avistar Pandora, esqueceu-se de todas as recomendações de Prometeu e, após desposá-la, abriu a caixa que ela carregava. Imediatamente, todos os males espalharam-se sobre a humanidade. Assustado, Epimeteu fechou a caixa, mas já era tarde demais: em seu interior só restou a esperança, que também estava prestes a fugir. Apesar de se completarem em si mesmas, Erdgeist e Die Bucse der Pandora são partes de uma única história: a da bela Lulu. A primeira peça narra a ascensão dessa mulher, que passa de ladra a herdeira de uma imensa fortuna; a segunda mostra sua decadência, desde o momento em que passa a ser fugitiva da justiça até se transformar quando já era meretriz em Londres, em uma das vítimas de Jack, o Estripador.

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Apresentada no prólogo de Erdgeist como a que “foi gerada para toda depravação, para atrair e para envenenar e corromper, para matar sem deixar qualquer vestígio”;30 definida num artigo escrito em 1907 como aquela que “chega ao orgasmo só de apertar uma xícara contra os lábios”;31 e, segundo alguns autores,32 criada tendo como modelo Lou Andréas-Salomé, Lulu é “a personificação da sexualidade primitiva que provoca o mal sem ter consciência”,33 “um exemplo supremo do sexo perigoso”,34 “a mulher síntese do eterno feminino”,35 “a última encarnação da femme fatale do romantismo”36 e, “excluída a Gretchen37 de Goethe, o personagem feminino mais importante da literatura alemã”.38 Quando o cineasta Georg Wilhelm Pabst decidiu realizar uma fita baseada em Erdgeist e Die Buhse der Pandora, Lulu já havia sido interpretada nos palcos teatrais e nas telas cinematográficas por Gertrud Eysoldt, Tilly Newes, Gerda Muller, Erna Morena, Claire Lotto e, entre outras atrizes, pela dinamarquesa Asta Nielsen. Contudo, não foi nada fácil para Pabst encontrar a Lulu de seu filme: teve de realizar uma longa busca39 para, enfim, achar a intérprete ideal do papel. E encontrou-a ao assistir A Girl in Every Port (Uma Noiva em cada Porto) e ao ver que uma das atrizes da fita, Louise Brooks, possuía os atributos plásticos de Lulu que estava imaginando.

DE ATRIZ A MITO DO CINEMA Em 30 de janeiro de 1929, nos cinemas de Berlin, ocorreu a estréia mundial de A caixa de Pandora. Poucos meses depois, Louise Brooks estrelou outro filme de Pabst, Das Tagebuch einer Verlorenen40 (1929) e, em seguida, trabalhou, sob a direção de Augusto Genina, na fita Prix de Beauté (Miss Europa, no Brasil, 1930), rodada em Paris. De volta aos Estados Unidos, participou de películas pouco expressivas – It Pays to Advertise (1931), Windy Riley Goes to Hollywood (1931), Empty Sddles (O rancho das Feitiçarias, no Brasil, 1937) – e encerrou sua carreira de atriz com uma pequena participação no western moderno Overland Stage Raiders (Bandidos Encobertos, no Brasil, 1938), estrelado por John Wayne. Nos anos cinqüenta, quando já estava esquecida, Louise, graças sobretudo aos dois filmes em que trabalhou sob as ordens de Pabst, foi descoberta e aclamada por Ado Kyrou, Henri Langlois, James Card e, entre outros importantes críticos, historiadores e pesquisadores cinematográficos, Lotte H. Eisner. A partir de então, começou a escrever artigos41 nos quais relembrava sua carreira artística ou enfocava algum ator ou atriz. Ao falecer, em 8 de agosto de 1985, vítima de um ataque do coração, já havia se tornado um mito do cinema.

*** NOTAS 1 O nome completo de Louise Brooks é Mary Louise Brooks. 2 Os irmãos de Louise, Martin, Theodore e June nasceram em 1905, 1912 e 1914, respectivamente. 3 Myra é um anagrama de Mary, o prenome da avó materna de Louise.

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4 Conhecida por ser uma das mulheres mais cultas de Cherryvale, Myra Rude Brooks passava a maior parte do tempo lendo ou tocando piano – era uma pianista autodidata de talento, que tocava principalmente peças de Schubert, Bach, Debussy e Ravel. Compunha versos para casamentos e festas de Natal e, às quintas-feiras, fazia conferências para o clube da biblioteca das mulheres de Cherryvale (clube esse que ajudara a fundar) e escrevia críticas de livros. A respeito dessas críticas, Louise certa vez afirmou: “Para suas críticas de livros, ela escolhia obras como Nijinsky, um livro escrito pela mulher do bailarino, Romola. Seus subentendidos sexuais singulares faziam ranger de satisfação os assentos das matronas respeitáveis” (citado em Louise Brooks, Paris, PUF, 1993, p.15). No Brasil, essa biografia do bailarino russo Vaslav Nijinsky foi publicada pela livraria José Olympio, Editora do Rio de Janeiro, nos anos quarenta, na coleção “O Romance da Vida ”. 5 Em razão de ostentar por muitos anos esse tipo de corte de cabelo, Louise ficou conhecida como “a garota do capacete negro”. Por outro lado, por volta de 1910, o corte de cabelo à la garçonete era conhecido em Cherryvale, assim como em outras cidades dos Estados Unidos, com o nome de Buster Brown, por ser o corte de cabelo de Buster Brown (Chiquinho, no Brasil), um dos mais famosos personagens dos quadrinhos norte-americanos do começo do século. Criado em 1902 por Richard Felton Outcault, Buster Brown é um dos muitos garotos traquinas que apareceram nos quadrinhos estadunidenses. 6 Goethe era o único autor de língua não inglesa a figurar na biblioteca dos Brooks. 7 Brooks, Louise. Louise Brooks, Paris, Pygmalion/ Gérard Watelet, 1987, p.21. 8 Nas notas autobiográficas enviadas a James Card, Louise lembrou-se de Mãe Argue Buckpitt, que dava aulas de dança em várias cidades do Kansas, como “uma senhora abandonada pelo marido que me ensinou as cinco posições e algumas danças pouco importantes” (Citado em Barry. Paris). 9 Citado em Barry. Paris. 10 Essas foram as únicas apresentações públicas de Myra Rude Brooks ao piano. 11 Brooks, L. Louise Brooks, p. 18. 12 Contemporânea da igualmente inovadora Isadora Duncan (1878- 1927), Ruth St. Denis, que estreou como dançarina aos dezesseis anos de idade, apresentou-se durante muitos anos em espetáculos de variedades. Por volta de 1905, começou a estudar a cultura, as religiões e as danças do Artigo Egito e da Índia e, a partir desses estudos, criou algumas coreografias com temáticas orientais. Em 1914, casou-se com Ted Shawn, com quem fundou, no ano seguinte, em Los Angeles, a Denishwn Dancers e a primeira escola dedicada realmente à dança moderna, a Denishawn School of Dancing. Entre 1915 e o começo dos anos trinta, enquanto a Denishawn Dancers apresentava-se nos Estados Unidos, Canadá e em alguns países da Europa e do Oriente, Ted concebeu diversos balés baseados no folclore, nas danças dos índios, do povo pré-colombiano da América do Norte, e Ruth desenvolveu sua idéia de “ visualização musical”, que consistia em criar danças sinfônicas para os trabalhos de grandes compositores, o que fez, por intermédio de Trágica (1925), uma experiência de dança sem música. Depois da separação de Ruth e Ted – que, apesar de separados, nunca se divorciaram -, em 1930, a Denishawn Dancers e a Denishawn School of Dancing desapareceram. Mas Ruth St. Denis e Ted Shawn já haviam influenciado de maneira marcante a dança norte-americana. Uma prova disso é que, no início da década de cinqüenta, existiam nos Estados Unidos mais de vinte escolas de dança que se inspiravam no trabalho do casal ou no de seus alunos mais célebres, Doris Hunphrey, Martha Graham e Charles Weidman. 13 Com coreografia de Ted Shawn e cenários e figurinos do artista Francisco Cornajo, Xochitl (1919) foi o primeiro balé norte-americano inspirado em temas asteca-toltecas. 14 Em 1921, foi fundada a filial nova-iorquina da Denishawn School of Dancing. 15 Uma das razões do sucesso da Denishawn School of Dacing era sua reputação de rígida

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moralidade. Seus alunos deviam, de acordo com o regulamento estabelecido por Ruth St. Denis, “levar uma vida calma, bons livros, ouvir a boa música e buscar uma atmosfera de cultura” (Barry. Paris, op. cit., p.42). Louise seguia os três últimos preceitos de bom grado, mas se irritava com o primeiro, pois via-se bruscamente diante de um código moral que jamais, nem mesmo na infância, havia conhecido. Um código que significava: nada de amigos, nada de álcool e, entre outras coisas, nada de relações sexuais. 16 Como membro de Denishawn Dancers, Louise chegou inclusive a apresentar-se em Wichita. Em 13 de fevereiro de 1924, no Crowford Theatre, mostrou a velhos amigos e inimigos seu talento como dançarina. 17 Encenadas de 1907 a 1931, as Ziegfeld Follies, muito mais que uma revista anual, foram uma instituição norte-americana. Durante um quarto de século, apresentaram um desfile ininterrupto de artistas talentosos – Egbert Austin (Bert) Williams, W. C. Fields, Will Rogers, Nora Bayes, Ed Wynn, Mãe Murray, Fanny Brice, Eddie Cantor, Marion Davies, Anna Held e, entre muitos outros, Marlyn Miller – e exibiram cerca de três mil das mais belas jovens já mostradas num palco de teatro, cujo principal objetivo, a exemplo das ilustrações feitas, entre 1890 e 1914, por Charles Dana Gibson para magazines como Life (1883 –1936) e Collier’s, era a globalização da american girl. 18 As Ziegfeld Follies tiveram, sobretudo nos anos vinte, várias imitações – entre essas merecem destaque as Broadway Brevities, as Earl Carroll´s Vanities, as Garrick Gaieties, as Greenwich Village Follies e as Music Revues. No entanto, George White foi o único produtor da Broadway que conseguiu produzir um espetáculo comparável ao de Ziegfeld. Na verdade, seus George White’s Scandals tinham a reputação de serem mais ricos, mais modernos e mais licenciosos que as Ziegfeld Follies. 19 Esses filmes, em sua maioria comédias despretensiosas, são: The American Venus (Vênus Americana, no Brasil, 1926), A Social Celebrity (1926), It’s the old Army Game (Risos e Tristezas, no Brasil, 1926), Just Another Blond (1926), Love ‘em and Leave ‘em (1926), Evening Clothes (1927), Rolled Stockings (Meias Indiscretas, no Brasil, 1927), Now We´re in the air (Dois, no Brasil, 1927), Uma Noiva em cada Porto e Beggars of Life (Mendigos da Vida, no Brasil, 1928). 20 Edward Sutherland foi marido de Louise Brooks. Os dois estiveram casados de julho de 1926 a maio de 1928. 21 S. S. van Dine é um pseudônimo de Willard Huntington Wright (1888-1939). Crítico de Arte e de Literatura, editor, jornalista e autor de aproximadamente uma dezena de obras sobre Arte, Filologia, Filosofia e Música, Wright sofreu, por volta de 1925, uma depressão nervosa. Então, durante a convalescença, para passar o tempo, começou a escrever romances de Detetive & Mistério. Seu primeiro livro no gênero, The Benson Murder Case (O Caso Benson, no Brasil), no qual criou o rico e refinado detetive amador Philo Vance, foi publicado em 1926. A seguir, veio The Canary Muder Case (O Crime da Canária, no Brasil; A Morte da Canária, em Portugal, 1927), inspirado no assassinato jamais esclarecido de Dot King – em 1923; Dot, uma dançarina das Ziegfeld Follies, foi assassinada no apartamento que dividia com Hilda Ferguson, outra integrante do show de Ziegfeld. Além de O Caso Benson e O Crime da Canária, Wright escreveu mais dez romances de Detetive & Mistério, protagonizados por Philo Vance e editados com o pseudônimo de S. S. Van Dine. Indagado, certa vez, a respeito de não haver assinado esses livros com seu nome verdadeiro, Wright respondeu: “Evitei subscrever essas obras com meu nome verdadeiro, porque tendo subscrito com este vários obras sobre ética aplicada, filologia, arte, filosofia e música, tive medo que o aparecimento do mesmo nome como autor de romances dariam a pensar que estes trabalhos de ficção haviam de ser áridos e sexos como aqueles!... Assim, lancei-os com um nome inteiramente novo” (citado em Anônimo, “O Drama de uma Noite”, in Mensageiro Paramount, v. 9, n. 5, New York, Departamento Estrangeiro da Paramount, maio 1929, pp. 12-13).

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22 No livro de S. S. Van Dine, essa personagem, que se chama Margaret Odell, é descrita da seguinte maneira “(...) não se podia negar que a jovem fosse de uma sedutora beleza que fascinava até entontecer”. Lembro-me de a ter visto dançar uma noite no Antlers Club (...). Impressionou-me, então, pela sua grande beleza e pelo natural encanto, se bem que nas suas feições se pudessem ver traços característicos de um temperamento friamente calculista. Margaret Odell era de maneira mediana, delgada e elegante, de uma graciosidade de felino e de maneiras cautelosas e arrogantes (...). Tinha os lábios que caracterizam a cortesã, carnudos e avermelhados, e uns grandes olhos que lembravam os da ‘Madona Ferida’ de Rossetti. Havia em sua face um estranho conjunto de sensual promessa e de espiritual renúncia, à semelhança do que os pintores de todas as épocas têm atribuído à ‘Madalena Arrependida’. No rosto de Odell transparecia aquele misto de voluptuosidade e de mistério que fascina os homens e os conduz à prática de tudo quanto tente a sua total perdição” (A Morte da Canária, Lisboa, Livros do Brasil, s. d., pp. 6-7). Uma descrição que parece estar numerando também os encantos físicos da Louise Brooks dos anos vinte e os da Lulu de Wedekind. 23 Gil Finney, Women in Modern Drama, 2. ed., Ithaca, Cornell University Press, 1991, pp. 79-80. 24 Essa pantomima estreou no Nouveau Cirque em dezembro de 1888, e seu enredo pode ser assim resumido: Arthur Schopenhauer, um sábio burlesco, encontra o coração empedernido da palhaça dançarina Lulu e pretende abri-lo para saber de que é feito o amor da mulher. Mas ele não alcança seu objetivo; e, usando diversos artifícios, inclusive a dança, Lulu consegue recuperar o coração perdido. Então surge um Arlequim apaixonado, que também procura o coração de Lulu. E é nas mãos amorosas do Arlequim que a pedra se faz carne, perante a perplexidade do sábio. 25 Esse personagem faz referência direta ao filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860), que não tinha opiniões muito favoráveis sobre as mulheres. 26 Após separar-se de August Strindberg, em 1896, Frida Uhl viveu, por quase dois aos, em companhia de Wedkind, em Berlim, e dessa união nasceu um menino. 27 Apesar de ter sido ensaísta, filósofa, poeta e romancista, Lou Andréas-Salomé é mais lembrada por causa dos relacionamentos que manteve com Nietzsche, o estudante de Direito e filósofo Paul Rée, o poeta Rainer Maria Rilke e, entre outros homens proeminentes, o psicanalista Sigmund Freud. 28 Editado pela Charpentier et Fasquelle, de Paris, e possuindo desenhos de Jules Chéret, Théophile – Alexandre Steinlen, Leonetto Cappiello, Adolphe Willette, Félicien Rops, Gerbaut e mais vinte e seis ilustradores, esse livro apresenta como personagem principal a palhaça dançarina Lulu. 29 Entre agosto e novembro de 1888, em Whitechapel, um dos distritos mais miseráveis do East End Londrino, Jack, o Estripador, cuja identidade permanece desconhecida até hoje, assassinou de forma brutal cerca de seis prostitutas. 30 Esse nome é formado pela união das palavras gregas pan (todos) e dóron (dons). 31 Frank Wedekind, Five Tragedies of Sex, London, Vision Press, 1952, p.103. 32 Fritz Wittelis. Citado em Mireille Dottin-Orsini, A Mulher que Eles Chamavam Fatal, Rio de Janeiro, Rocco, 1996, p. 164. 33 Ver Patrick Lacoste, Psicanálise na Tela, Rio de Janeiro, J. Zahar, 1992, p. 81. 34 Frank Wedekind. Citado em Barry Paris, op. cit., p. 312. 35 H. R. Hays, O Sexo Perigoso, Rio de Janeiro, Biblioteca Universal Popular, 1968, p. 372. 36 João Marschner, “Wedekind: 100 anos”, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 set. 1964, Suplemento Literário, p. 2. 37 Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, v. 8, 2 ed, Rio de Janeiro, Alhambra, 1984, p. 1994.

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38 Gretchen (Margarida, no Brasil), a amada do Dr. Fausto, é a principal personagem feminina do poema dramático Faust (Fausto, no Brasil). 39 Essa busca, que é semelhante à realizada pelo produtor norte-americano David Oliver (David O.) Selzick para encontrar a intérprete da Scarlett O’Hara de Gone with the Wind ( ...E o Vento Levou, no Brasil, 1929), foi assim relatada em 1955 por Paul Falkenberg, um dos assistentes de direção de Pabst em A Caixa de Pandora: “ Nenhuma das atrizes disponíveis agradava a Pabst; e, durante vários meses, todas as pessoas que tinham uma ligação com a produção se puseram a procurar uma Lulu. Eu abordava diversas moças na rua, no metrô, nas estações de trem, dizendo a elas: ‘Aceita comparecer ao nosso escritório? Eu gostaria de apresentá-la ao Sr. Pabst.’ Ele examinavaas cuidadosamente da cabeça aos pés e rejeitava-as” (citado em Barry Paris, op. cit, p. 303). 40 No Brasil, esse filme foi exibido com os seguintes títulos: Diário de uma Pecadora e Diário de uma Perdida. 41 Publicados em diversas revistas especializadas, dentre as quais se destacam a canadense Objectif, a francesa Positif, a inglesa Sight and Sound e a norte-americana Film Cuture, muitos desses artigos foram reunidos no livro Lulu in Hollywood (Louise Brooks, na França), editado pela Alfred A. Knopf, de Nova York, em 1982.

*Devido ao grande número de citações extensas, as mesmas foram alocadas no final do artigo, excepcionalmente. **Marco Aurélio Lucchetti é Doutor em Ciência da Comunicação pela ECA/USP e autor do livro A Ficção Científica nos Quadrinhos (Edições GRD, 1991).

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IDÉIAS

HEIDEGGER E A ESPERA DO INESPERADO Nancy Mangabeira Unger*

Resumo: Os escritos de Heidegger não compõem um corpo de textos para uma exegese erudita, mas uma voz que nos interpela no sentido de por em movimento nossa própria reflexão. Põe-nos diante do desafio de repensar a identidade do homem e o sentido do ser; interpela-nos a aprender um pensar que se põe à escuta do sentido de nosso tempo. PALAVRAS-CHAVE: HEIDEGGER; FILOSOFIA MODERNA; IDENTIDADE DO HOMEM Abstract: The writings of Heidegger do not lend themselves to a scholarly exegesis, but challenge us to set in motion our own reflection, to rethink the identity of man and the meaning of being, and to learn a way of thinking receptive to the sense of our times. KEYWORDS: HEIDEGGER; MODERN PHILOSOPHY; MAN IDENTITY

Os escritos de Heidegger não compõem um corpo de textos para uma exegese erudita, mas uma voz que nos interpela no sentido de por em movimento nossa própria reflexão. A entrada na dimensão de pensamento sinalizada por sua obra exige paciência e coragem. Exige a disponibilidade em abrir mão de hábitos cristalizados, de respostas familiares, enfim, de toda pretensão de segurança e controle. Nos põe diante do desafio de repensar a identidade do homem e o sentido do ser; nos interpela a aprender um pensar que se põe à escuta do sentido de nosso tempo. Vivemos uma época de penúria que desconhece sua própria indigência. No esforço por compreender nosso tempo, não é suficiente uma avaliação de fenômenos, nem uma tomada de posição a favor ou contra as estruturas vigentes. A própria radicalidade da crise que atravessamos nos coage a buscar suas raízes, o que nela há de essencial. Em diferentes obras, Heidegger trata desta questão de essência como o perigo: que a vontade de vontade elimine do pensamento do homem toda experiência menos a do cálculo.

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O perigo é o esquecimento do esquecimento: que o retraimento do ser se torne insensível enquanto retraimento. Tal é o perigo sempre presente na errância, mas a técnica o realiza, na medida em que bloqueia o acesso questionador a seu próprio sentido essencial. O sofrimento e a alegria, o ser afetado, tomado por uma força, são relações com o ser. Mas no mundo do voluntarismo absoluto em que a técnica o mergulha, o homem não sente mais a dor, ou a sente de modo somente passivo, e, portanto, ressentido e reativo. É principalmente em sua indiferença frente às conseqüências destrutivas da técnica, que o “funcionário da técnica” mostra sua insensibilidade e seu extremo fechamento, pois nele, o mais angustiante é sua incapacidade de se angustiar. A compulsão da total segurança e controle, o empenho em colocar o real numa prisão de segurança máxima, leva ao bloqueio de toda transformação de sua verdade. Tudo aquilo que não pode ser captado pelos sensores da planificação e do cálculo, tudo aquilo que não pode ser mensurado e que não é objetivável, simplesmente não é mais experienciado. No dizer de Heidegger, “Quase se tem a impressão de que, sob a dominação da vontade, tanto a essência da dor como a essência da alegria fechou-se para o homem”. 1 Por isso, precisamos aprender o caminho para o pensamento que pode mostrar a indigência como tal.

Para Heidegger, a ação humana não pode mudar a compreensão do ser que é vigente hoje, nem acelerar o advento de uma nova compreensão. Mas a preparação para este advento diz respeito a uma espera ativa. Nesta espera, a forma mais alta de ação é a de um pensar que se põe à escuta do sentido de nosso tempo. O entendimento ainda não é a escuta. A escuta é um entendimento que exige o esforço, a devoção, o recolhimento do pensamento. Como escutar novamente, se a escuta é “remissão obediente ao que nos vem ao encontro?2 Numa época marcada pelo cálculo e utilitarismo, pela voracidade de poder e pela pressa, pela planificação e controle de todas as coisas, a espera poderia ser tomada como mais uma atitude reativa diante dos acontecimentos, se a espera fosse confundida com conformismo ou inércia. No entanto, se a palavra conformismo expressa uma acomodação, a conformação é um modo de ser que está conforme a, que se põe em consonância, em sintonia, isto é, que acolhe o que a vida apresenta porque lhe apreende a dinâmica. Vemos no pensamento de Heidegger a copertença entre aprender a esperar e aprender a pensar. Se aprender a esperar é uma ascese, uma disciplina, o dom da espera favorece uma possibilidade de experienciarmos a essência do homem enquanto abertura e correspondência com o ser. Aquele que espera, espera o que não tem. Se o tivesse, não precisaria esperar, mas pode esperar porque de alguma maneira pertence àquilo que espera. Aprender a esperar é uma das modalidades de aprender a pensar. Ao refletir sobre o fragmento 50 de Heráclito, Heidegger mostra que o fragmento começa com uma negação: não se trata de ouvir simplesmente o homem Heráclito e o “seu” discurso, mas de auscultar, no sentido da obediência, o Logos. Se o escutar, enquanto um perceber alguma coisa pelos ouvidos, depende do aparelho auditivo, a ausculta já sobre-escutou, porque ela se dá “onde nenhuma percepção nos toca, onde nada soa”.3 Essa ausculta atenta que nada escuta, esta 158

1 Heidegger, Ensaios e conferências, p. 86; Petrópolis: Vozes, 2002.

2 Heidegger. Heráclito; p 257; Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998

3 idem, Heráclito, p.257

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4 Platão. A República; Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

5 Heidegger. Questions III, Paris: Gallimard,1966.

audiência, só é possível por já estarmos obedecendo àquilo que nos vem ao encontro, encontro que por sua vez só se dá porque, esse algo que vem ou que pode vir ao nosso encontro já nos possui, por já lhe pertencermos. A nossa palavra obediência provém do latim, ob-audire; de onde vem audiência, audição. Ob é um prefixo verbal indicando uma inclinação para; ob-audire, estar voltado para. Estamos muitas vezes habituados a entender a obediência no sentido da servidão, da subserviência. Mas a obediência pode também ser experienciada, (e efetivamente já o foi) como consonância e ausculta. Toda a dinâmica da modernidade, movida como é pelo impulso de dominação da natureza, pela compulsão de destruir o mistério, de desfazer todas as zonas de paradoxo, se propõe como um ato de liberdade. A humanidade do homem é pensada na razão direta de sua capacidade de afirmar seu poderio sobre tudo que existe. A autonomia é entendida como exclusão da heteronomia, como recusa de qualquer nível de dependência da terra. Assim, a tiranização do real se apresenta como a realização da liberdade do ser humano. Mas como já nos mostrara Platão no livro IX da República,4 não há homem mais escravizado do que o tirano, por ser escravo de sua paixão insaciável pelo poder. É este desejo desenfreado de poder e controle que constitui a própria dinâmica de nosso tempo. Pouco importa que morramos pelo tirano; as conseqüências destrutivas de um projeto de tiranização são secundárias, contanto que esta dinâmica nos propicie a ilusão de podermos controlar a indeterminação do futuro contanto que nos salve da estranheza do presente e do susto diante de nossa finitude. À voz oracular do deus que não diz nem dissimula, mas assinala o retraimento, se opõe o barulho ensurdecedor da Verdade, da programação, da definição definitiva, a voz da instituição que tudo fala e tudo esconde; que não emite sinais e sim ordens, que não indica mas codifica. Porém mesmo esta incapacidade de escutar o essencial só acontece porque o homem é o ser da escuta. Enquanto aquele que é abertura, o homem pode também se fechar para o Aberto e transformar em objeto de cálculo e programação aquilo que lhe vem ao encontro. O homem não escuta porque tem ouvidos; mas tem ouvidos porque ele é um ser cujo modo de realização se dá na escuta. Neste sentido, talvez possamos dizer que a escuta, como remissão obediente ao que nos vem ao encontro, e a espera do inesperado, são dimensões de um pensamento que se coloca à disposição da força. O que é pôr-se à escuta do sentido das coisas? O homem, nos ensina Heidegger, é um ser meditativo. Mas para isso, não é preciso o abandono do terrestre. O que é preciso é meditar sobre o que nos é mais próximo : o mundo em que estamos, a época na qual vivemos. Aqui “mundo” diz a matriz de sentido no interior da qual um ser humano vive sua vida. É no mundo que o homem experiencia sua mortalidade, sua desmesura, seus poderes, seus fracassos, sua sede.

A conferência “Hebel, o amigo da Casa”5 medita sobre a essência poética do morar humano. Nesta conferência, Heidegger nos fala do poeta suiço-alemão Johann Hebel e do almanaque do qual era editor, e que chamou “O Amigo da Casa”. Casa, aqui, diz: mundo, este ‘intervalo múltiplo’ no qual os mortais habitam. As casas, as cidades, são apenas as construções que reúnem em torno dela

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este intervalo múltiplo que é o mundo. A essência poética do morar humano procura a amizade com o amigo que, enquanto poeta, é o amigo da casa do mundo. Se chegarmos a pensar o verbo ‘morar’ com suficiente amplidão e sentido, este nomeia o modo em que os homens realizam, sobre a terra e sob a abóbada do céu, sua migração do nascimento para a morte. Esta migração é multiforme e rica em metamorfoses. Entretanto, em todo lugar, tal migração permanece fundamental para aquele cujo habitar se desenvolve entre céu e terra, nascimento e morte, alegria e dor, obra e palavra.6

É da casa do mundo que o amigo da casa é amigo, assim como deste traço da vida humana que a palavra morar nomeia. Tal como aparece no almanaque de Hebel, o primeiro amigo da casa é o luar ou a luz da lua; e o poeta (é o que nos mostra Heidegger) nos convida a prestar atenção às características do modo de ser da lua e do luar. Nesta maneira de ser, reside o indício para se buscar pensar em sua essência o amigo da morada do mundo. O luar ilumina nossas noites com sua doce luz, que a lua recebe do sol. O primeiro amigo da casa, a luz da lua, vela o sono dos habitantes da casa do mundo e, sem pesar sobre as coisas, envolve todas as coisas num suave clarão “que não é somente terrestre ou celeste, mas ambos em unidade originária”.7 O reflexo da luz do sol que o resplendor da lua reenvia à terra “é, em seu próprio modo de brilhar, a imagem poética desta palavra revelada ao Amigo, a fim de que, assim iluminado, ele restitua o que lhe foi revelado aos que com ele habitam a terra.”8 O Almanaque, nos mostra Heidegger, descobre uma correspondência entre o modo de ser da lua e a palavra do poeta. A lua recebe a luz do sol e transmite esta luz, já suavizada, para a terra e seus habitantes: o luar é uma gradação da luz do sol. Em seu modo próprio de ser, a lua nos dá indícios para pensarmos a palavra poética. Sua força própria está em refletir e irradiar, em traduzir e transmitir a luz do sol, em velar o repouso dos habitantes da terra e iluminar seu agir com sua doce luz. Assim, é a palavra do poeta que presenteia aos mortais o que lhe foi revelado, indicando a presença do extraordinário no ordinário, favorecendo o aparecimento das coisas no brilho que lhes é próprio, mostrando o jogo de eclosão e retraimento de todo ser, ligando o enraizamento no sensível à altitude do espírito, fazendo o extraordinário do mundo aparecer na linguagem para que nele o homem possa habitar.9 “Amigo da casa – é este o nome ao mesmo tempo clarividente e enigmático que designa em todo seu ser o que, de outro modo, chamamos um poeta”.10 A palavra poética concentra o mundo num dizer que mostra, anuncia e, ao mesmo tempo se retrai, porque acolhe o mistério. A essência poética do morar humano salvaguarda o essencial ao qual os homens são confiados, e que tão freqüentemente deixam escapar. Que modo de ser e de habitar, que modo de ser homem é este que ausculta, medita e espera, e cuja palavra é o reflexo do que lhe foi revelado, a fim de que restitua aos habitantes da terra a luz doce e fina, quase imperceptível, que tudo banha num olhar de primeira vez?

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6 Heidegger. Questions III, p. 51.

7 Heidegger. Questions III, p. 54.

8 Heidegger. Questions III, p. 53-54.

9 Nós nos remetemos ao fragmento 119 de Heráclito: “A morada do homem é o extraordinário” (Heráclito. Fragmentos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, p. 133).

10 Heidegger. Questions III, p. 56.

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11 Nietzche. Ditirambos de Dionísio. Lisboa: Guimarães editores, 1993.

12 Heidegger. Questions IV; p. 264, Paris: Gallimard, 1976. 13 id., p. 454. 14 Em outro registro e num contexto de pensamento bem diferente, Simone Weil: afirma que quando a contradiçaõ que nos atravessa é levada ao máximo, precisamos usar a contradiçao como pinças para agarrar Deus. Weil. A Gravidade e a Graça; p. 111; São Paulo: Martins Fontes, 1993.

Hebel escreveu seu almanaque no final do século XVIII . Cem anos depois, reverbera a exclamação de Nietzsche: “o deserto cresce; ai de quem guarda desertos dentro de si”.11 Hoje, mais de cem anos após sua morte, o crescimento do deserto não tem nem mais para onde crescer: o deserto é o mundo, e o funcionário da Técnica é, em diversos sentidos da palavra, o sem-terra. Entretanto, também a técnica é um modo de revelação do Ser, modo em que Ser se revela como ausência, como esquecimento, como máximo retraimento, como opacidade do ente. Este retrair-se não é uma nulidade; uma força de atração. Na tração deste retraimento o homem é atraído, é forçado a desinstalarse de hábitos cristalizados e automatismos de pensamento, a repensar sua identidade enquanto humano. Uma iniciativa meramente humana não pode produzir uma reviravolta tão prodigiosa quanto a superação da técnica. Ao mesmo tempo, Heidegger indica que este ‘revirar-se’do ser, esta mudança de época precisa do homem: de sua espera, de seu questionar. O mundo de hoje – nosso mundo – é uma cabeça de Janus,12 diz Heidegger sobre a época da técnica. A dualidade aparece no seu extremo. Terra devastada pela exploração tecnológica e terra se preservando, abrigando a simplicidade da coisa. A Gestell é o negativo fotográfico de Ereignis.13 É no deserto da técnica que se dá ao homem a possibilidade de acolher a extrema penúria como o dom de uma outra possibilidade de ser.14 O que nos cabe, em tempos de penúria e de deserto? O que é ser o Amigo da casa do mundo quando o mundo é o deserto? O único que cabe ao pensamento é preparar as condições para a entrada numa outra dimensão de experiência do que a da determinação do homem como sujeito. O pensamento prepara o homem a estar receptivo e atento, e por isso poder ser tocado por uma força que ele não pode produzir ou determinar, e nem mesmo saber se virá. Se o mundo é a matriz de sentido no interior do qual o homem vive sua vida, o que é ser amigo da casa do mundo em tempos de penúria e de deserto? É afirmar nossa amizade com o próprio deserto, descolando-se da atitude farmacológica em relação à dor, que hoje vigora. É aprender o caminho de um dizer que possa acolher a indigência como tal. Acolher não é aderir. Mas também não é abandonar. A etimologia da palavra deserto traz em uma de suas acepções a experiência de um lugar abandonado, negligenciado. Este é o deserto mais radical; a pretensão de poder abandonar o deserto, ou então de remanejá-lo, de alguma forma, disfarçá-lo, enfim recusar-se a pensar seu sentido essencial, negar-se a corresponder ao apelo que nele se vela. Pois este é o maior perigo que nossa época encerra: o perigo de que o homem se feche a tal ponto que não possa ser tocado por uma força de transformação. Se o homem é um ser meditativo, para tal não é preciso abandonar o deserto e sim abandonar-se ao deserto, aprofundando-se em seu sentido, na ausculta, no meditar, e na espera. É aceitar o desafio de pensar a essência poética do morar humano num mundo que já de há muito não experiência a poesia como expressão essencial da verdade. É encontrar esta essência poética na experiência da falta, da aridez e da dor. É se colocar no lugar de poder ser tocado por uma

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força de transformação sobre a qual não sabemos se e quando virá. O momento do deserto é o momento de suportar, de agüentar, nos diz Nietzsche. Deste perseverar, que é também um saber esperar, dá-nos testemunho o salmo 123, conhecido como o “De Profundis”: Espero pelo senhor,espero com toda a minha alma E aguardo sua palavra Minha alma espera pelo Senhor Mais que as sentinelas esperam pela aurora.15

15 “Salmos”. A Bíblia, 1993, p. 745.

Nestas palavras, o salmista fala da experiência da alma que, do mais fundo da noite escura, espera Deus como a sentinela espera a aurora. Mas quem é a sentinela? Aquela pessoa que está acordada durante a noite, em estado de vigília quando outros estão dormindo. Por estar desperto e atento, a sentinela vê a noite enquanto noite. A vigília da sentinela que espera pela aurora e da alma que espera pelo senhor se nutrem da atenção para o momento. Porque o salmista pode esperar a aurora? O pode por um pertencimento a aurora, por um vigor matinal que reside no homem, e que é uma de suas potencialidades, mesmo em meio a noite mais escura. É este vigor matinal da espera, que caminha na “alegria errante”, sem as algemas do cálculo e do controle, que se relaciona com todas as manifestações da vida porque nelas vê o que nelas não se exaure, que pode favorecer o dom de um outro nível de experiência do que aquela que a palavra deserto indica. Na obra de Mestre Eckhart, é pela via desta alegria errante que o homem pode chegar ao sinal, vestígio, ao selo do deserto. Num poema de beleza singular deste grande místico medieval, junto a quem, diz Heidegger, “aprendemos a pensar e a viver”, o Deserto é a palavra que nomeia a plenitude da deidade que está para além de Deus, a plenitude do princípio. Como presente ao leitor, e a guisa de conclusão, lhe transcrevemos algumas linhas. O caminho te leva ao maravilhoso deserto, ao largo, ao longe, sem limite, ele se estende. O deserto não tem lugar nem tempo ele tem seu modo próprio de ser. Este deserto é o Bem por nenhum pé pisado o sentido criado jamais esteve lá : Aquilo é; mas ninguém sabe o quê. Está aqui e está lá, é longe e perto, É profundo e é alto, É assim, portanto, nem isto nem aquilo. (...) Torna-te como uma criança, Torna-te surdo e cego ! Todo teu ser deve transformar-se em nada, além de todo ser e todo nada! Deixe o lugar, deixe o lugar, deixe o tempo, e também as imagens! Se seguires por via nenhuma sobre a senda estreita, alcançarás o rasto do deserto.16

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16 Jarczyk e Labarrière. Maitre Eckhart ou l’empreinte du désert, Paris: Alnin Michel, 1995, p.12.

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O deserto como a plenitude da Deidade que está para além de Deus, a plenitude do Nada. Somente aquele que se subtrai a todo itinerário previamente demarcado pode vislumbrar o rasto, o selo, o sinal da Deidade no deserto. Para onde aponta o vazio de sentido de nossa época? Será que aponta para a possibilidade de vislumbrar, no fulgor de um instante de absoluta depuração, um sinal do Nada?

*Nancy Mangabeira Unger é professora do Mestrado em Filosofia da UFBa.

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HISTÓRIA

RELATO DE VIAGENS, INQUISIÇÃO E LITERATURA DE TESTEMUNHO UMA APROXIMAÇÃO POR MEIO DA NARRAÇÃO DA INQUISIÇÃO DE GOA, DO MÉDICO FRANCÊS CHARLES DELLON Thais Buvalovas*

1 A passagem foi extraída de Água Viva, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 8ª edição, 1980, p. 30.

2 A edição utilizada neste texto foi traduzida em Portugal. Trata-se de Narração da Inquisição de Goa – vertida para o português por Vicente Miguel de Abreu e pelo mesmo acrescentada com várias notas & algumas correcções. Actualização e reorganização do texto de Júlio Henriques. 3 Este ponto será melhor explicitado posteriormente. Mas dada a importância do tema, cabe esclarecer desde já a ênfase que a crítica de extração norte-americana confere ao caráter anti ou extraliterário do testemunho nos países da América espanhola. John Beverley afirma que “a resposta que o testemunho solicita está fora do ‘campo’ literário na sua presente forma” (BEVERLEY, 1996: 279). Javier Sanjinés C. salienta que “um importante aspecto do testemunho é sua relação intrínseca com uma ação comunicativa libertadora, que é conceitualizada e organizada em torno do sistema de linguagem” (SANJINÉS, C. 1996: 255). Em outras palavras, o testemunho não apenas conclama, mas contempla em si mesmo formas não verbais de ativismo político.

Resumo: Destinado à denúncia das práticas da Inquisição portuguesa, especialmente as que envolviam a perseguição aos cristãos-novos, Narração da Inquisição de Goa, publicada em 1687 por Charles Dellon, foi uma das principais matrizes literárias da campanha contra o Santo Ofício que se desenvolveu na Europa ao longo do século XVIII. Este trabalho busca compreender as representações que o relato constrói sobre os domínios portugueses na Índia a partir de analogias e pontos de contato entre as memórias de ex-prisioneiros da Inquisição moderna e a chamada literatura de testemunho, configurada como um novo campo de estudos literários nas últimas décadas do século XX. PALAVRAS-CHAVE: CHARLES DELLON; SÉCULO XVIII; INQUISIÇÃO Abstract: Denouncing the practices of portuguese Inquisition, especially implicated in the new-christians persecution, Narração da Inquisição de Goa, published by Charles Dellon in 1687, has turned out the most important narrative that led the campaign against the Holy Office in Europe along of the seventeen century. This text intend to understand the representations of portuguese India built by Charles Dellon through analogies and points of contact between the prisoners’ memories of modern Inquisition and the so called testimony literature, a new field of literature studies that figured in the last decades of twenty century. KEYWORDS: CHARLES DELLON; XVIIITH CENTURY; THE HOLY OFFICE

O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa (...) Capta essa outra coisa de que na verdade falo, porque eu mesma não posso. (Clarice Lispector)1

Este trabalho busca apontar indícios que possibilitem situar Narração da Inquisição de Goa,2 publicada em 1687 pelo médico francês Charles Dellon, como uma escritura de fronteira entre gêneros literários distintos e comentar sua representação dos domínios portugueses na Índia a partir de analogias e pontos de contato com os relatos inscritos na moldura histórica da chamada literatura de testemunho, configurada como um novo campo de estudos literários (ou extra, anti, semi ou mesmo pós-literários)3 no século XX. O que denomino aqui escritura de fronteira significa de fato um limiar: no caso de Narração da Inquisição de Goa, trata-se de uma posição limítrofe entre os relatos de viagens, já muito populares na Europa dos séculos XVI e XVII, e

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um novo gênero literário que a narrativa de Charles Dellon iria consagrar:4 as memórias de ex-prisioneiros da Inquisição moderna. Circunscrito por convenções literárias cujas origens remontam às narrativas do maravilhoso medieval e rastreando, simultaneamente, um novo formato, direcionado à denúncia da perseguição religiosa em Portugal e Espanha, o relato de Dellon também sinaliza transformações históricas importantes, estendendose sobre um amplo leque de representações: de um lado, os usos e costumes de civilizações ou povos desconhecidos do público europeu e os interesses mercantis despertados pela conquista do Oriente e do Novo Mundo; de outro, a polêmica protestante5 dos seiscentos e setecentos e o “ativismo” político e intelectual que posteriormente iria caracterizar o século das Luzes. Não sem rupturas evidentes no texto,6 Narração da Inquisição de Goa se move em meio a múltiplos e diferentes apelos: relato de viagens, literatura de sobrevivência, autobiografia, peça de persuasão destinada à campanha antiinquisitorial, o livro acaba praticamente por constituir um exemplar de testemunho avant la lettre, trazendo em seu bojo as complexas relações que, nas últimas décadas, caracterizaram essa modalidade narrativa. Consciente dos riscos de anacronismo e da tarefa razoavelmente ambiciosa à qual se propõe, este estudo é um esboço de idéias que mereceriam uma pesquisa mais detalhada. Contudo, as proximidades entre a narrativa de Dellon e os relatos testemunhais do século XX são nítidas o suficiente para que se possa estender este arco conceitual e traçar paralelos e associações entre os dois campos. Para construir retrospectivamente uma ponte que articule quase três séculos de história literária é necessário, em primeiro lugar, conceituar a literatura de testemunho e sua emergência como um novo espaço de enunciação nas últimas décadas do século XX. É trabalho em boa medida complexo, e nem todas as implicações nem a grande diversidade de abordagens e representações suscitadas pelo testemunho caberiam nos limites desta proposta. Buscando na realidade uma síntese dos principais conceitos que configuram esse novo espaço de enunciação, deve-se ter em mente, logo de início, que o testemunho constitui hoje dois grandes campos de estudos sobre a produção literária, com objetos diversos e pressupostos igualmente diferenciados: a crítica que se tornou hegemônica no âmbito do chamado testimonio hispano-americano e as reflexões sobre as narrativas de sobreviventes do Holocausto. De acordo com Valeria de Marco, estes dois campos pouco dialogaram entre si até o momento (MARCO, 2004: 45), embora não seja desprezível a proximidade entre os projetos literários que os conformam.

O testemunho da Shoah Apresentando pesquisas recentes sobre a temática testemunho na literatura, especialmente ensaios versando sobre a Shoah, Márcio Seligmann-Silva relaciona os elementos centrais que, em sua opinião, conceituam esta modalidade narrativa.

4 Narração da Inquisição de Goa obteve notável repercussão em vários países da Europa, com sucessivas edições na França, Alemanha, Inglaterra e na própria Holanda, onde foi publicada pela primeira vez (Leiden). Francisco Bethencourt contabiliza 28 edições até meados do século XIX, a maior parte delas lançada entre fins do século XVII e início do século XVIII (BETHENCOURT, 2000: 349, 350). Também de acordo com Raul Rêgo, o relato de Dellon teria sido o principal combustível da campanha contra o Santo Ofício durante todo o século XVIII (RÊGO, 1983: 16).

5 O relato de Dellon não foi evidentemente uma iniciativa pioneira: já no século XVI, nos países protestantes, começam a surgir textos de autoria de ex-prisioneiros da Inquisição, como a relação atribuída a Reginaldus Gonsalvius Montanus. A identidade verdadeira do autor (ou autores) ainda é polêmica (MAX, 1992: 51), mas sua Sanctae Inquisitionis Hispanicae Artes..., publicada originalmente em latim, em Heidelberg, no ano de 1567, teve grande êxito, sendo, em apenas dois anos, traduzida para vários idiomas (GRIGULEVICH, 1980: 36). Curiosamente, nota Bethencourt, essas e outras obras de polêmica protestante contra a Inquisição, praticamente desaparecem após 1610: há um hiato de cerca de 70 anos até que novos textos sejam publicados, destacando-se entre eles a relação de James Salgado (que se apresenta como um ex-padre espanhol convertido à Igreja anglicana), lançada em 1683, com o título The slaughter house, or a brief description of the Spanish Inquisition (BETHENCOURT, 2000: 348, 349). 6 O texto reúne impressões a respeito dos lugares aonde esteve Dellon em sua viagem à Índia, memórias de seu próprio processo, incluindo a passagem pelo Brasil rumo a Lisboa, como prisioneiro do Santo Ofício, e comentários incisivos sobre o acontecido a outros processados, em sua maioria cristãos-novos.

O testemunho deve ser compreendido tanto no seu sentido jurídico e de testemunho histórico – ao qual o testimonio tradicionalmente se remete nos estudos literários – como também no sentido de ‘sobreviver’, de ter-se passado por um evento-limite, radical, passagem essa que foi também um ‘atravessar’ a ‘morte’, que problematiza a relação entre a linguagem e o ‘real’ (SELIGMANN-SILVA, 2003:8).

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7 “O conceito de testemunho desloca o ‘real’ para uma área de sombra: testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige um relato” (SELIGMANN-SILVA, 2003: 47). O autor está se referindo ao conceito de Real lacaniano, sobre o qual irá discorrer em seguida, e que justamente implica um evento que resiste à simbolização da narrativa.

Ele nota que os dois significados estão presentes nas palavras que, em latim, denominam testemunho: testis e superstes. A “primeira indica o depoimento de um terceiro em um processo”. Já a segunda refere-se à “pessoa que atravessou uma provação, o sobrevivente”. Também “o conceito de mártir está próximo a essa acepção do sobrevivente. Martyros em grego significa justamente testemunha” (SELIGMANN-SILVA, 2003: 377, 378 - grifo do autor). Mas se em latim há dois vocábulos para designar o duplo sentido de testemunho aqui apontado, em grego os dois significados se conjugam na mesma palavra. Diz Hugo Achugar que a palavra grega supõe alguém que tenha “vivido ou presenciado um determinado fato”, mas não só: “Entre os gregos, de fato, o uso de mártir conota sofrimento ou sacrifício”, atendendo, ao mesmo tempo, “ao fato de ser fonte de primeira mão” (ACHUGAR, 1992, apud PENNA, 2003: 323). Não apenas uma nova área de estudo, mas uma “nova abordagem da produção literária e artística” (SELIGMANN-SILVA, 2003: 7 - grifo do autor), o campo do testemunho penetra “uma área de sombra”7 cujos contornos só podem ser discernidos “na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação” (SELIGMANN-SILVA, 2003: 377 - grifo do autor). É por esse motivo que a literatura de testemunho configura-se a partir de uma dupla determinação: necessidade e impossibilidade. De um lado, a necessidade premente de narrar a experiência vivida; do outro, a percepção tanto da insuficiência da linguagem diante dos fatos (inenarráveis) como também – e com um sentido muito mais trágico – a percepção do caráter inimaginável dos mesmos e da sua conseqüente inverosimilhança (SELIGMANN-SILVA, 2003: 46).

A intraduzibilidade da experiência vivenciada pelo sobrevivente consiste no fato de que ele testemunhou “um excesso de realidade” (o suplementar no sentido empregado por Derrida), ao passo que o “próprio testemunho enquanto narração testemunha uma falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o ‘real’) com o verbal” (SELIGMANN-SILVA, 2003: 46 - grifo do autor.) Esta concepção da literatura de testemunho aponta para a compreensão do Holocausto não como um “acidente”, mas sim enquanto “uma possibilidade que a modernidade contém” e o século XX, “como um processo histórico e social de sistemática exclusão” (MARCO, 2004: 56). Daí, o escritor interrogar-se sobre “o poder de expressão da palavra e os impasses de traduzir o vivido, de dizer o indizível”, de representar “os subterrâneos do horror.” Entende-se que escrever significa conviver com a mudez, o domínio da língua e seus limites; aponta-se a necessidade de criar um alinhamento entre a testemunha e o ouvinte, entre escritor e leitor para que o discurso seja forma de resistência ao recolhimento, ao silêncio e à morte (MARCO, 2004: 57).

O testimonio hispano-americano A trajetória peculiar percorrida pelo testemunho na América Latina reside, ao contrário, em uma abordagem ou percepção de novas possibilidades de inclusão. Sua vocação essencial é a de “constituir subjetividades subalternas”, nas palavras de João Camillo Penna. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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... ele (o interesse pelo testimonio) consiste na entrada no cenário transnacional de um modelo latino-americano de “política identitária”, que propõe uma forma de expressão intimamente ligada aos movimentos sociais, e marca a irrupção (midiática, comercial, política, acadêmica) de sujeitos de enunciação tradicionalmente silenciados e subjugados, diretamente ligados aos grupos que representam, falando e escrevendo por si próprios (PENNA, 2003: 302, 303, grifo do autor).

Logo à primeira vista, portanto, percebe-se uma distinção significativa entre as duas concepções de relato testemunhal e talvez seja este também um dos motivos que levaram a crítica a consagrar a palavra em espanhol testimonio8 para denominar (e diferenciar) as narrativas da América Latina que se enquadram neste formato. De modo geral, os sujeitos de enunciação hispano-americanos que passam a “falar por si próprios” representam grupos subalternos, “com uma inserção precária no universo escrito e uma existência quase que exclusivamente oral” (PENNA, 2003: 307). Seu depoimento é intermediado por um gestor – editor/organizador do texto – que reproduz, ou ao menos pretende reproduzir, fielmente a narrativa do sujeito testemunhal.9 Há outra diferenciação importante em relação às narrativas de sobreviventes da Shoah: no testimonio, o sujeito não é individual, mas coletivo, e sua fala, eminentemente política. Doris Sommer explicita esta construção identitária ao comentar o depoimento de Rigoberta Menchú.10 O singular representa o plural, não porque ele substitui ou compreende o grupo, mas porque a falante é uma parte indistinguível do todo (...) a sua singularidade consuma a sua identidade como extensão da coletividade (SOMMER, 1996, apud PENNA, 2003: 319).

O contexto histórico de Meu Nome é Rigoberta Menchú é a violenta guerra civil ocorrida na Guatemala, na virada dos anos 1980, quando, no contra-ataque à guerrilha iniciada em 1978, o governo adota uma clara política de extermínio das populações indígenas, cujo saldo foi a extinção de centenas de aldeias e milhares de mortos. Além do testemunho de Rigoberta, há vários escritos paradigmáticos no período, como, entre outros, Si me Permiten Hablar... Testimonio de Domitila, una Mujer de las Minas de Bolívia (1977), recolhido por Moema Viezzer; La Montaña Es Algo Más que una Inmensa Estepa Verde (1982), de Omar Cabezas, transcrição direta de um depoimento sobre a guerrilha da Nicarágua; e No me Agarran Viva. La Mujer Salvadoreña en Lucha (1987), de Claribel Alegría e D. J. Flakoll, uma reunião de histórias de vida de mulheres que morreram na guerra civil em El Salvador. Ao examinar a construção da crítica sobre o testimonio, Camillo Penna salienta que na própria análise textual está inserido o “caráter extraliterário” dos relatos testemunhais: para os críticos, trata-se de “uma história que ao mesmo tempo que precisa ser contada, requer do leitor que passe à prática, exatamente a práxis solidária” (PENNA, 2003: 306). O “sujeito plural” e “uma nova forma de política centrada na coalização de identidades diferentes (...) relacionais ” constituem temas básicos desenvolvidos pela crítica: neles reside a oposição radical entre a autobiografia e o testemunho.

8 Em 1970, foi instituída uma categoria especial para o testimonio no Prêmio Casa das Américas, em Cuba. A criação desta nova modalidade do Prêmio é considerada central para a institucionalização do gênero na América Latina espanhola. Porém, o corpo de jurados que, em 1969, propôs a criação da categoria testimonio não restringiu o seu formato. Eram claros os vínculos entre relato testemunhal e compromisso com as lutas sociais e também necessária a abordagem não ficcional dos fatos narrados, mas não há menção à origem de classe, condição social ou pertencimento do narrador a comunidades ou grupos excluídos dos espaços tradicionais de construção do conhecimento (MARCO, 2004: 50, 51).

9 Nos projetos literários do Brasil pós-Golpe de 64, não é discernível a emergência de grupos subalternos constituindo um modelo semelhante de “política identitária”. O único exemplar significativo de um sujeito de enunciação subalterno realizando um depoimento nos moldes do testimonio é Quarto de Despejo, de Carolina de Jesus, publicado em 1960, com a intermediação do jornalista Audálio Dantas. Já na época editor da revista O Cruzeiro, Audálio trabalhou efetivamente como “gestor”, dedicando um ano à edição dos registros feitos por Carolina em seu diário (MEIHY e LEVINE, 1994: 25). No caso brasileiro, prevaleceu de fato o formato do chamado romance-reportagem e do romance-denúncia, além de relatos autobiográficos de ex-militantes revolucionários na linha do cineasta Renato Tapajós e do jornalista Fernando Gabeira (FRANCO, 2003: 355-374). Recentemente, foram publicados títulos cujo foco é a denúncia das condições do sistema penitenciário, entre eles o romance autobiográfico Memórias de um Sobrevivente, escrito pelo presidiário paulista Luiz Alberto Mendes, e Estação Carandiru, do médico Drauzio Varella. Assim, o Brasil parece inserir-se em um patamar intermediário entre a proposta do Prêmio Casa das Américas e as principais abordagens da literatura de testemunho da Shoah, condição que constitui uma tendência da produção literária na América Latina, mas que ultrapassa os limites do continente e vai ao encontro de uma “geografia mundial da barbárie” (MARCO, 2004: 51).

A diferença entre as narrativas em primeira pessoa que postulam uma experiência individual e particular, que correspon-

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10 O depoimento de Rigoberta Menchú, líder indígena e ativista do Comitê de Unidade Camponesa (CUC), organização católica ligada a comunidades de base na Guatemala, foi gravado por Elizabeth Burgos-Debray em Paris, em 1982. Burgos informa que editou as fitas gravadas, “vinte e cinco horas ao todo”, buscando escutar e deixar que Rigoberta falasse “e, depois, convertendo-me numa espécie de seu duplo, no instrumento que executaria a passagem do oral para o escrito” (BURGOS, 1993: 15-31). Em 1992, não sem razão coincidindo com a comemoração dos 500 anos do “descobrimento” da América, a ativista política de etnia quiché recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

dem às formas literárias hegemônicas da autobiografia e do Bildungsroman, e a formação de uma subjetividade coletiva do testemunho (PENNA, 2003: 318).

Seguramente com base nesta diferenciação, Javier Sanjinés C afirma que a narrativa oral de Domitila Barrios de Chungara inaugura uma comunicação verdadeiramente popular, livre de distorções ideológicas. O testemunho de Domitila busca participar da construção de uma ‘esfera proletária’ – uma transgressão das esferas pública e privada da cultura burguesa – assim como propiciar um entendimento mais profundo para a aliança em uma frente popular unificada (SANJINÉS C, 1996: 255, 256).

Escrevendo sobre Rigoberta Menchú, John Beverley busca demonstrar que seu testemunho constitui mais do que uma ferramenta na luta pelos direitos humanos e no trabalho de conquistar a solidariedade internacional para a causa dos indígenas da Guatemala. Ele chama a atenção para o fato de que o subalterno, enquanto sujeito de enunciação, é também “agente de um projeto de transformação que aspira a se tornar hegemônico em seus próprios termos” (BEVERLEY, 1996: 278, 279).

Testemunho e testimonio: uma abordagem complementar Em que pesem as distinções que de fato existem entre os relatos testemunhais da Shoah e o testimonio hispano-americano, passadas mais de duas décadas desde a eclosão deste último no cenário político e acadêmico internacional, percebe-se que a distinção entre as duas modalidades narrativas pode, ao menos em parte, ser atribuída a um “desejo” da crítica. (Indo além, não é irrelevante observar que não apenas o crítico e o pesquisador, mas igualmente o leitor tem seu grau de interferência na construção de um espaço enunciativo.) Após uma trajetória de mais de dez anos de envolvimento com os movimentos sociais na América Latina, John Beverley reconhece, como Sanjinés C, que “testemunhos como Let Me Speak! (...) tornaram-se nostalgia”, pois novas formas de organização política são hoje necessárias. Sobre a intenção de Rigoberta de escrever poemas convencionais em espanhol, assume que “não são apenas os nossos objetivos que contam em relação ao testemunho”, e, por fim, pergunta: “O que restou hoje do desejo chamado testemunho?” (BEVERLEY, 1996: 282). Provavelmente (e a própria questão formulada por Beverley já indica), pouco restou da radicalidade democrática que se pretendia projetar sobre ele. Hoje, pode-se divisar com maior nitidez que, embora a moldura histórica seja diversa, entre os dois quadros mais sobressaem as semelhanças do que as diferenças. Como aponta o próprio Beverley: “Algo da experiência do corpo que sofre com a dor, a fome ou enfrenta o perigo é REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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intrínseco ao testemunho” (BEVERLEY, 1996: 274). A frase converge para pressupostos do espaço de reflexão da Shoah, aos quais o crítico se refere em The Real Thing. Trata-se não apenas do conceito de Real lacaniano, que Beverley utiliza no início de seu ensaio de 1996, mas de um outro aspecto central ao testemunho: o signo da inverossimilhança.

Enfeitiçado pela dúvida A questão específica discutida aqui diz respeito à autenticidade do relato sobre a tortura e o assassinato do irmão de Rigoberta Menchú pelas forças militares da Guatemala, que ela narra de modo comovente em seu testemunho. A veracidade desta passagem, bem como de outras informações contidas no depoimento de Rigoberta, foi questionada em livro publicado pelo antropólogo David Stoll,11 com grande repercussão na mídia norte-americana e internacional em fins dos anos 1990. Desde o início da década, porém, Stoll vinha participando de congressos nos Estados Unidos em que questionava a legitimidade do texto. Utilizando entrevistas com a população do local onde vivia Rigoberta e sua família, o livro de Stoll busca desmontar seu testemunho, questionando ponto por ponto a veracidade das informações nele contidas, mas apresenta inconsistências inadmissíveis com o rigor acadêmico, além da ausência de identificação dos depoimentos recolhidos, entre outros elementos que impõem reservas severas quanto à sua confiabilidade (PRATT, 1999: 24-39). Entretanto, e este é o ponto, também os críticos parecem assumir que, de fato, Rigoberta não teria sido testemunha ocular da morte do irmão, cuja tortura e assassinato pelo exército guatemalteco teria ocorrido em outro lugar e de outro modo. Esta “falsidade” localizada em seu depoimento acabou fornecendo farta munição para uma grande campanha de desqualificação de Rigoberta Menchú também enquanto testemunha confiável do genocídio indígena levado a cabo pelo governo da Guatemala. Orquestrada pela mídia, ideólogos do Partido Republicano e estratos acadêmicos conservadores, tal campanha na realidade vinha ganhando espaço desde o início dos anos 1990, quando já era veementemente condenada a inserção de seu livro e de outros registros literários semelhantes em currículos de universidades norte-americanas. Beverley responde às dúvidas quanto à representatividade do testemunho de Rigoberta em duas frentes distintas, embora complementares. Uma delas envolve as complexas relações que giram em torno do estatuto coletivo do sujeito testemunhal hispano-americano e seu “poder para criar a sua própria autoridade narrativa, negociando suas condições de verdade e representatividade” (BEVERLEY, 1996: 276). Em outras palavras, trata-se de “um sujeito em controle de seu próprio discurso”, e não de uma vítima passiva, como define Camillo Penna. Assim, é possível rastrear as marcas de suas decisões, das manipulações que realiza ao transmitir a informação, “a forma como a sua voz transparece por detrás dos interstícios da construção necessariamente deformante do testemunho...” (PENNA, 2003: 311), à medida que convivem no livro dois discursos, o da testemunha e o do editor/gestor, sendo a tensão entre ambos inerente à produção testemunhal. A seguinte proposição de Beverley resume esta linha de interpretação: “Mesmo a memória é conjuntural, relativa, perecível, dependente da prática. Testimonio é, ao mesmo tempo, arte e estratégia da memória” (BEVERLEY, 1996: 277) de um sujeito coletivo: sua vivência é a da comunidade que representa. Des170

11 O livro de David Stoll foi publicado em 1999 com o título Rigoberta Menchú and the Story of All Poor Guatemalans, Westview Press, Boulder, Colorado. Trata-se de uma ironia referente à primeira fala de Rigoberta em seu depoimento: “... é a vida de todos, a vida de todos os guatemaltecos pobres e procurarei oferecer um pouco minha história. Minha situação pessoal engloba toda a realidade de um povo” (BURGOS, 1993: 32).

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te modo, o que aconteceu a outros membros da comunidade pode ser expresso enquanto vivência da testemunha, sem que isto viole o “contrato testemunhal” (PRATT, 1999: 24-39). A própria Rigoberta deixa isto explícito na introdução de seu depoimento já transcrita acima (“é a vida de todos”). Aproximando-se, ao mesmo tempo, de uma outra linhagem de investigação, em The Real Thing, Beverley transcreve trechos extraídos de Testimony: crises of witnessing in literature, psychoanalysis, and history, livro publicado por Shoshana Felman e Dori Laub (1992), em que os autores focalizam representações testemunhais da Shoah. As passagens deste livro comentadas por Beverley relacionam-se à discussão sobre o depoimento de uma sobrevivente de Auschwitz, gravado no Arquivo de Vídeos de Testemunhos do Holocausto de Yale. Segundo ela, uma insurreição dos judeus aprisionados no campo teria provocado subitamente a explosão de quatro chaminés, com grande alvoroço das pessoas que estavam no local. Historiadores da Shoah, entretanto, possuíam informações seguras de que apenas uma chaminé foi destruída. O foco do debate era a invalidação ou não de seu depoimento, já que a testemunha equivocou-se em um detalhe de extrema importância. Alguns alegaram que era melhor invalidar o testemunho como um todo a correr o risco de conferir credibilidade aos revisionistas, que utilizam inconsistências deste tipo para contestar a confiabilidade de registros da memória individual, e negar assim a própria existência do Holocausto enquanto fato histórico (BEVERLEY, 1996: 275). Merecem ser reproduzidas, ao menos em parte, as palavras dos autores nesta discussão. A mulher estava testemunhando (...) não sobre o número de chaminés que explodiram, mas sobre uma outra coisa mais radical, mais crucial: a realidade de uma ocorrência inimaginável. Uma chaminé explodindo em Auschwitz era tão inacreditável como quatro. O número importa menos do que o fato da ocorrência ... A mulher testemunhou um evento que rompia todo o imperioso quadro de Auschwitz, onde revoltas armadas de judeus simplesmente não aconteceram, e não teriam lugar. Ela testemunhou a quebra de um paradigma. Aquela era a verdade histórica (FELMAN e LAUB, 1992, apud BEVERLEY, 1996: 275, 276).

Assim, não é preciso ir muito longe para estabelecer identidades e convergências entre testemunho e testimonio: um dos principais nomes da crítica norte-americana já o fez. De todo modo (e este é um fator essencial na estruturação do relato testemunhal), é importante perceber que esta modalidade narrativa implicará sempre interrogações a respeito de sua autenticidade, veracidade, fidelidade, literalidade. Se o testis latino remete ao significado de testemunho como o depoimento de um terceiro em um processo, o que está implícito nesta concepção é justamente o “tema da verificação da ‘verdade’, ou seja, (...) o fato de que o testemunho por definição só existe na área enfeitiçada pela dúvida e pela possibilidade da mentira...” (SELIGMANN-SILVA, 2003: 378). O testemunho tem sempre parte com a possibilidade ao menos da ficção, do perjúrio e da mentira. Eliminada essa possibilidade, nenhum testemunho será possível e, de todo modo, não terá mais o sentido do testemunho (DERRIDA, 1998, apud SELIGMANN-SILVA, 2003: 378).

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O testemunho de Charles Dellon Evidenciar as aproximações existentes entre testemunho e testimonio é também alcançar um patamar comum que possibilita divisar o teor testemunhal de outros gêneros ou modalidades da produção literária. Não se trata aqui, obviamente, do teor testemunhal de toda e qualquer literatura enquanto expressão – testemunho – de sua época. Seligmann-Silva sugere a primeira possibilidade. De modo mais sutil – e talvez difícil de compreender – falamos também de um teor testemunhal (...) que se torna mais explícito nas obras nascidas de ou que tem por tema eventoslimite. Nesse sentido, a literatura do século XX – Era das catástrofes e genocídios – ilumina retrospectivamente a história da literatura, destacando esse elemento testemunhal das obras (SELIGMANN-SILVA, 2003: 8).

Embora ele mesmo alerte para o fato de que “os estudos comparativos entre o teor testemunhal de diferentes literaturas ainda estão por ser estabelecidos...” (SELIGMANN-SILVA, 2003: 9), não é impróprio ler retrospectivamente as memórias de ex-prisioneiros da Inquisição neste enfoque. Como lembra Valeria de Marco, a expressão literatura de testemunho “remete sempre a uma relação entre literatura e violência” (MARCO, 2004: 45), conotação que certamente se articula em torno do significado de martírio, ao qual alude Hugo Achugar. Autor de Biografia de un Cimarrón (1966), considerado o primeiro testemunho hispano-americano, e também um dos teóricos que instituíram as bases do modelo literário do testimonio, o cubano Miguel Barnet define o gestor dos registros orais como simples instrumento despersonalizado, que deve consumar uma “supressão do eu” em favor do sujeito testemunhal. Despojar-se de sua individualidade, sim, mas para assumir a do seu informante, a de sua coletividade, que este representa. Flaubert dizia: ‘Madame Bovary, c’est moi’. O autor no romance-testemunho deve dizer junto com seu protagonista: ‘Eu sou a época’ (BARNET, 1983, apud PENNA, 2003: 309).

A expressão romance-testemunho e sua concessão ao universo ficcional logo irá desaparecer dos horizontes teóricos do testimonio, e mesmo as relações entre editor/gestor e seu informante serão compreendidas bem mais enquanto negociação entre identidades distintas, igualmente presentes (e em tensão), mas não é isto o que realmente interessa nesta transcrição. A formulação essencial reside na última frase: “Eu sou a época”. Aliando a concepção de martírio à idéia de que o autor encarna o seu tempo, chega-se à construção de que o narrador (e/ou seu “protagonista”) viveu uma experiência de sofrimento e sacrifício que é comum a muitos. Mais do que isso, esta experiência violenta é uma tradução da sua época, figura uma condição essencial de seu tempo, e sua revelação ou denúncia é impositiva a ele, autor. Desdobra-se ainda o fato de que a experiência de violência sofrida não constitui necessariamente uma vivência própria ao sujeito: ela pode ser vivenciada vicariamente pelo autor, sendo ele editor/gestor ou protagonista/testemunha representativo de uma comunidade mais ampla. Assim, é possível afirmar que Charles Dellon é a sua época, no sentido estrito de que fala Barnet. Sua Narração da Inquisição de Goa tem lugar no contexto 172

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12 Antoine Fabre, francês que era na época o primeiro médico da rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia (Marie Françoise Isabelle de Savoie), intercedeu por Charles Dellon, conseguindo obter a revisão de seu processo e sua conseqüente libertação. Frédéric Max diz ter sido a princesa de Savoie “agente dedicada de Luís XIV junto à Corte de Lisboa”, até sua morte em 1683 (MAX, 1991: 134).

da violenta perseguição aos cristãos-novos levada a cabo na Península Ibérica, em particular em Portugal dos séculos XVII e XVIII. O mais curioso, porém, é a condição extremamente singular de seu relato. Dellon é um “sobrevivente“ por ter sido processado pelo Santo Ofício, com praticamente (ele não menciona o tormento) todos os “sofrimentos” e “sacrifícios” que isto implicava. É ainda o “terceiro” que apresenta a sua versão de testemunha ocular dos fatos, pois, sendo francês e católico, não tinha pertencimento algum aos grupos perseguidos em Goa (cristãos-novos e indianos recém-convertidos ao cristianismo). Mas não apenas isso. Dellon é também transcritor/gestor de sujeitos testemunhais que representam uma coletividade de “silenciados e subjugados” – as comunidades de conversos (incluindo os indianos), acossados pela Inquisição no Reino e Ultramar. Nas Galés de forçados em Lisboa, para onde foi levado ao deixar Goa, condenado a cinco anos de trabalho compulsório, Charles Dellon conheceu dois cristãos-novos também sentenciados a trabalhos forçados, cujas histórias relata nos dois últimos capítulos de seu livro por considerá-las típicas do “espírito que predomina no Santo Ofício” (DELLON, 1996: 180-186). Muito provavelmente Dellon inseriu tais capítulos no final do livro para marcar a autonomia destas histórias em relação à sua “própria” história, que ele termina antes, com sua saída de Lisboa. O formato que separa do corpo do texto as informações sobre o processo destes cristãos-novos contribui para afirmar o papel do narrador enquanto porta-voz de um outro, cuja condição “exige um relato.” Além dos contatos na prisão de forçados, enquanto, já liberto,12 esperava um navio para voltar à França, Dellon teria aproveitado sua permanência em Lisboa para obter mais informações sobre o funcionamento da Inquisição portuguesa, reunindo elementos para denunciar “as injustiças em relação aos acusados de judaísmo” (DELLON, 1996: 89) em várias passagens de sua narrativa. Sobrevivente, terceiro que testemunha “algo de excepcional”, transcritor/ gestor de narrativas que, de fato, podem ser consideradas registros de um sujeito coletivo de enunciação, Charles Dellon parece reunir os principais elementos que conferem ao seu relato o estatuto de testemunho de seu tempo; um testemunho avant la lettre, como já apontado. Isto explica as sucessivas edições e a rápida circulação de sua obra em vários idiomas: tratava-se de algo novo e de caráter espetacular.

O ineditismo de Narração da Inquisição de Goa Se não abriu caminhos totalmente inexplorados, a ressonância alcançada pela obra de Dellon foi de fato extraordinária. Sua trajetória é considerada ainda mais significativa por tratar-se da primeira publicação com “uma visão crítica sobre a Inquisição dos dois lados da fronteira religiosa, desencadeando o debate público sobre o tribunal no interior dos países católicos” (BETHENCOURT, 2000: 350). Na esteira de Narrativa da Inquisição de Goa, vários livros (autobiográficos ou não) sobre o universo inquisitorial português seriam publicados ao longo do século XVIII e ainda no início do século XIX, caso da célebre Narrativa da Perseguição, lançada na Inglaterra, em 1811, por Hipólito da Costa, fundador REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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do Correio Braziliense e considerado o primeiro jornalista brasileiro. Frédéric Max comenta a influência exercida pela obra de Dellon e sua importância na campanha antiinquisitorial, que ganha fôlego na virada do século XVIII. Até essa ocasião, na Europa, ao norte dos Pirineus e dos Alpes sabia-se pouca coisa sobre o caráter singular do Santo Ofício. Tudo muda a partir de 1687 com as edições sucessivas do livro de Charles Dellon sobre as Inquisições de Goa e de Portugal ... Esse texto, com suas adições e ilustrações, constitui um documento irrefutável e de primeira mão; ele vai servir de base à ofensiva que se abre contra o Santo Ofício, e que prosseguirá durante todo o século XVIII (MAX, 1991: 57).

Ecoando rapidamente a primeira impressão holandesa, a segunda edição de Narração da Inquisição de Goa (Paris,1688) traz uma série de gravuras inéditas de Pierre-Paul Sevin, que, por sua relevância, serão reproduzidas ou publicadas com adaptações em várias obras sobre a Inquisição desde aquela época até os dias de hoje (BETHENCOURT, 2000: 372, 373). De acordo com Max, elas mostram pela primeira vez uma representação dos autos-de-fé, reproduzindo “exatamente os sambenitos e outras roupas com que a Inquisição ridicularizava os condenados”(MAX, 1991: 57). Entre estas ilustrações, Maria Luiza Tucci Carneiro chama a atenção para uma imagem que “recupera, em pleno século XVII, o clima de ameaça e chantagem cênica de um interrogatório”, em que “ao fundo e bem ao alto, a figura de um enorme Cristo crucificado domina” o ambiente. Este Cristo acompanhava com a cabeça, através de movimentos simulados por um servidor da Inquisição, as respostas apresentadas pelo réu reafirmando sua condição de ’pecador’ (CARNEIRO, 1992: 460).

Dogmatista ou visitante de uma senhora muito amada O processo de Charles Dellon pode ser considerado atípico, não apenas por suas motivações em boa parte prosaicas, mas também por inscrever-se na esfera do Tribunal de Goa, que, já a partir de fins do século XVI, inverteria os sinais da atuação inquisitorial no Oriente: o foco da perseguição, inicialmente direcionado aos cristãos-novos (à semelhança dos Tribunais de Lisboa, Évora e Coimbra),13 voltaria-se para indianos recém-convertidos ao cristianismo – parte do esforço de ocidentalização14 das possessões da Coroa na Índia. Todavia, a condição de francês e católico, segundo ele “constante na fé” de seus pais (DELLON, 1966: 34), não tornaria mais suave sua estadia nos cárceres nem mais clemente a sua pena. Aprisionado em 1673, aos 24 anos, na possessão portuguesa de Damão, Dellon permaneceu por dois anos e meio em celas da Inquisição, antes de ser condenado a cinco anos de trabalhos forçados, com confisco de bens. Seus crimes, segundo o Tribunal de Goa: “1º, o ter sustentado a invalidade do baptismo flaminis;15 2º, o haver dito que se não deviam adorar as imagens e ter blasfemado contra a dum crucifixo, dizendo ser um pedaço de marfim; e 3º, o ter falado com desprezo da Inquisição e de seus ministros” (DELLON, 1996: 136). 174

13 Anita Novinsky sustenta que, em contraste com a Inquisição medieval, o Tribunal do Santo Ofício foi estabelecido em Portugal essencialmente para “excluir do poder uma parte competitiva da população portuguesa, isto é, o setor da burguesia composto majoritariamente por cristãosnovos” (NOVINSKY, 1999: 101). 14 Esse redirecionamento transparece no livro de Dellon: no auto-de-fé em que “saiu” o médico francês havia “quase uns duzentos” e “só uns doze eram brancos”. Foram queimados dois indianos cristãos acusados de magia, e as ossadas de quatro homens, dois “convictos de magia” e dois cristãos-novos (DELLON, 1996: 121, 138 - grifo do autor). 15 De flamen, “sopro”. Modalidade de batismo reconhecida pelo Concílio de Trento, chamada supletivo ou de desejo (MAX, 1991: 126). Afirma Dellon que, ao conversar com um religioso dominicano, quis negar, por simples “passatempo”, o efeito do batismo flaminis, que considera como batizados também os falecidos com o desejo de se batizarem e com arrependimento das suas culpas (DELLON, 1996: 35, 113).

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A história de Dellon começa quando, com apenas 19 anos e já formado em medicina, foi contratado na qualidade de cirurgião pela Companhia Real (francesa) das Índias, embarcando em março de 1668 em direção ao Oriente. Viajante e aventureiro, perambulou durante três anos entre Madagascar e costas do Malabar, chegando mesmo ao Golfo Pérsico. Durante suas viagens nos navios da Companhia, foi recolhendo impressões sobre as populações, costumes e produtos locais, registros que mais tarde incluiria em seu livro. Ao visitar a possessão portuguesa de Damão, em março de 1673, logo é contratado pelo governador Manuel Furtado de Mendonça, pois não havia médico na região. Acabou conquistando clientela e usufruindo da amizade de vários membros da aristocracia crioula, incluindo o próprio governador e vários eclesiásticos. Os motivos de sua prisão como herege poucos meses depois (em agosto) não são claros. Relatando “as causas verdadeiras” de sua “ruína”, Dellon se diz vítima do “ciúme mal cabido” do governador Furtado de Mendonça, “injustamente” motivado “pelas amiudadas mas inocentes visitas que eu fazia a uma senhora, que ele amava”. O médico francês acreditava contar ainda com outro desafeto, que teria feito “causa comum” com o governador. Um eclesiástico nativo, secretário do Santo Ofício, que morava fronteiro à casa daquela senhora, tinha também por ela uma paixão tão forte como a do governador, solicitando-a infamemente até no tribunal da penitência, como por ela me foi revelado (DELLON, 1996: 62, 63).

O fato é que, para além de sua conduta galante para com as portuguesas da Índia – “Não há limites para as coisas que elas inventam para satisfazer sua paixão e para burlar a vigilância de seus maridos” (DELLON, 1709, apud MAX, 1991: 106) –, ele demonstra ter causado desconfiança pela atitude displicente em relação aos objetos do culto católico e aos costumes religiosos locais. Diz ele ter se recusado “muitas vezes tomar e beijar” caixas de esmolas nas quais vinha estampada a imagem “da Santa Virgem ou de algum santo”, coisa que, admite, os portugueses não podiam “dispensar-se sem escândalo dos assistentes (DELLON, 1996: 36). Mais imprudente ainda teria sido a conversa que teve com um de seus vizinhos portugueses. O vizinho lhe disse para lembrar-se de cobrir a imagem de um crucifixo que tinha sobre a cabeceira de sua cama, pois “não seja caso que receba alguma mulher em casa e tê-la aí”. Dellon afirma ter respondido que “um bocado de pano” não poderia “esconder os nossos pecados aos olhos de Deus”, que claramente vê “os mais recônditos esconderijos dos nossos corações. E demais o que importa este crucifixo mais que um pedaço de marfim? (DELLON, 1996: 37). Também algumas críticas que fizera ao Santo Ofício e o se reputar “venturoso por não estar sujeito à sua jurisdição”, além da “pertinácia, que eu mostrara, em não querer trazer rosários ao pescoço, não contribuíram menos para me suporem herege” (DELLON, 1996: 38). Porém, de acordo com o médico francês, “não iriam, todavia, as coisas tão longe, nem tão depressa”, se o governador “se não ralasse de ciúme”, que “dissimulara com tanta finura que parecia ser um dos meus melhores amigos;” enquanto “instava vivamente com o comissário do Santo Ofício para escrever a Goa, com o fim de informar aos inquisidores dos discursos que eu proferira...” (DELLON, 1996: 62).

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O tema do estrangeiro Perceber que o tema do estrangeiro estará sempre em primeiro plano na perspectiva de Dellon é importante: a condição de estrangeiro seguramente está na origem do seu drama pessoal, mas, indo além, torna-se ainda o meio de aproximação, por excelência, com a sua memória dos domínios portugueses na Índia. Dellon apresenta-se como o forasteiro punido por ser jovem e ingênuo. Eu contava então apenas os meus 24 anos de idade com pouca diferença, e não tinha a prudência precisa a uma pessoa que vive entre estrangeiros, a cujos usos convém conformar-se... (DELLON, 1996: 36).

Punido também por não ter sido alertado, em ocasiões oportunas, por aqueles que se diziam seus amigos: “Como eu não tinha senão inimigos disfarçados, facilmente se confundiram estes com os meus melhores amigos” (DELLON, 1996: 65). Punido, enfim, pelo simples fato de ser estrangeiro e, portanto, diferente e em si mesmo desconfiável. Ao comentar a obra de escritores israelenses como Natan Alterman, Seligmann-Silva observa que o trabalho da memória e também o do luto melancólico pode “passar pela chave da paródia, da ironia e da alegoria para portar, reportar e transformar o fardo do passado” (SELIGMANN-SILVA, 2003: 24). A afirmação oferece uma chave (há outras) para a leitura de Narração da Inquisição de Goa: o Santo Ofício é um “excesso de realidade” que ele só consegue assimilar por meio da ironia – recurso que lhe é até mesmo natural, pois o olhar do estrangeiro não apenas é largo e amplo, mas em tudo o que vê pode encontrar motivos de escárnio, troça ou desdém. Na via do deboche e insolência em que move seus ataques contra a Inquisição, já nas primeiras páginas de sua narrativa, Dellon dá mostras do apreço intelectual que, em sua opinião, devem merecer os portugueses. Cumpre aqui notar que embora fossem fraquíssimos os pretextos de que se serviram os meus inimigos (...) todavia foram eles mais do que suficientes para homens como os portugueses (...); de sorte que por este lado eu mesmo os achei tão plausíveis que só pude descobrir a verdadeira causa da minha prisão no decurso do meu processo (DELLON, 1996: 34).

Na sua quarta audiência, já passados um ano e meio de reclusão, Dellon teve a oportunidade de se defender. Citou uma passagem do Evangelho de João e uma decisão do Concílio de Trento, a seu favor. Como, segundo ele, o inquisidor deu mostras cabais de desconhecer ambas, assombrou-se: “Na verdade custa a compreender este grau de ignorância em pessoas que se metem a julgar os outros em matéria de fé...” (DELLON, 1996: 114). As inúmeras denúncias ou acusações de tom severo em que predominam a indignação e a revolta muitas vezes carregam inflexões sarcásticas, cuja intenção é justamente ridicularizar o Tribunal do Santo Ofício, e os portugueses que sustentam a sua ação. As referências são muitas, dispostas praticamente ao longo de todo o texto, mas há trechos exemplares, que transcrevo a seguir. Em um dos capítulos em que relata o que aconteceu em seu auto-de-fé, Dellon revela que, além da execução de dois indianos cristãos acusados de magia, foram queimadas quatro estátuas, duas de cristãos-novos. 176

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16 Vários autores que escreveram sobre a Inquisição ao longo dos séculos XVII e XVIII aludem à corrupção do sistema inquisitorial e mencionam o confisco de bens como um dos principais motivos da ruína de Portugal, entre eles o Pe Vieira e D. Luís da Cunha, um dos principais homens de Estado portugueses do século XVIII.

... um dos quais falecera nos cárceres do Santo Ofício e outro em sua casa, enterrado de muito na sua paróquia, mas sendo depois de morto acusado de judaísmo, como deixara bens consideráveis16 cuidou-se de dar busca à sua sepultura e recolher seus ossos para serem queimados no auto-de-fé (DELLON, 1996: 138).

Em outra passagem, pretende explicar por que os retratos com os rostos dos vitimados, com seus nomes pintados sobre tições acesos, eram colocados na nave da igreja no dia seguinte ao da execução. Estas horríveis pinturas são depositadas na nave, por cima da porta principal da igreja, como outros tantos troféus brilhantes consagrados à glória do Santo Ofício, e quando esta face da igreja assim fica ornada, se põem também nos lados, perto da porta (DELLON, 1996: 141 – grifo nosso).

Outro trecho explicita ainda o que são os familiares do Santo Ofício e o que fazem, embora não dê propriamente conta do significado dessa função entre os portugueses (e talvez nem seja essa a sua intenção). Pessoas de todas as condições se gloriam de ter admissão a este nobre cargo, e até os duques e príncipes o procuram. O seu serviço é irem prender os acusados (...) vale para eles de suficiente recompensa a honra que prezam ter de ocupar um emprego deste tão santo tribunal (DELLON, 1996: 82).

Mas se a ironia é também um modo de amenizar o legado de uma carga excessiva, que só pode ser partilhada e assim diminuída através do discurso, é igualmente possível especular em outras direções. Não é improvável que ao registrar informações sobre os lugares aonde esteve rumo a seu destino na Índia, Dellon pretendesse simplesmente escrever um relato de viagens em moldes que pudessem atender às expectativas do público europeu, já habituado a narrativas do gênero. A Inquisição iria mudar o curso de seu enfoque e ampliar o alcance de suas representações.

Relato de viagens e literatura de sobrevivência Na literatura de viagens dos séculos XVI e XVII, são freqüentes as descrições da flora e fauna das novas regiões conhecidas pelo viajante e também bastante comuns as informações a respeito dos usos e costumes de seus habitantes. Nas representações seiscentistas sobre a América, Guilhermo Giucci reconhece a “informação” como um dos modelos de “apropriação” do viajante europeu. Aí a narração de costumes tanto pode integrar “um projeto imperial de signo violento” como insinuar uma relativa “autonomia da curiosidade”, o que indicaria “o reconhecimento, mesmo que parcial, do valor da diversidade cultural”. Forma, temperatura e consistência da terra, variedades de árvores e animais, condição dos pastos para o gado, distâncias entre os povoados, tipos de alimentos, nada passará despercebido ao escrutínio do expedicionário (GIUCCI, 1992: 160, 161).

Narração da Inquisição de Goa tem conformidade com esse modelo. Charles Dellon relata aspectos físicos que diferenciam as populações que conheceu na REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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África e na Ásia; relaciona os produtos que consumiam e comercializavam (ou até o que poderiam mas não sabiam cultivar); faz considerações a respeito de usos e costumes estranhos ao universo da sociabilidade européia. Mas, como bem observa Mary Louise Pratt, “ dois grandes temas da literatura de sobrevivência são os sofrimentos e perigos, de um lado, e as maravilhas exóticas e as curiosidades, de outro” (PRATT, 1999: 48). Os cárceres do Santo Ofício cancelam o registro da curiosidade: o indivíduo que narra assume o primeiro plano do relato; penetra-se o território sombrio da necessidade, do desespero, da catástrofe. Neste quadro, as convenções da literatura de sobrevivência permanecem, portanto: aqui Dellon faria as vezes do cativo, um dos “personagens de fronteira” (PRATT, 1999: 59 - grifo meu) tradicionais neste tipo de relato. Embora não tenha sido aprisionado por aborígines, seria do mesmo modo vítima de um povo bárbaro, cujas superstições e rituais de magia simpática eram alheios à sua condição de homem branco, europeu, civilizado. Já foi evidenciada em uma das transcrições do texto de Dellon a oposição médico francês/esclarecido versus inquisidor português/ignorante. Mas ao passo que nesta passagem, e ao longo de todo o texto, figura a si mesmo em contraste, na descrição do auto-de-fé do qual participou em Goa, Dellon estabelece correspondência entre inquisidores e indianos, posicionando ambos no mesmo plano de representação. Nesta passagem, ele especifica quem eram os vitimados pelo Santo Ofício. Eram um homem e uma mulher, indianos cristãos acusados de magia, e condenados como relapsos, mas na verdade tão feiticeiros como aqueles que os tinham condenado (DELLON, 1996: 138 - grifo do autor).

O destaque do autor na palavra feiticeiros torna a frase ambígua: Os inquisidores eram na verdade tão feiticeiros quanto os indianos que acusavam de magia? Ou os indianos acusados de magia eram na verdade tão inocentes desta acusação quanto os inquisidores? De todo modo, pertenciam todos a um mundo do qual o autor não fazia parte.

Conclusão É inegável que as experiências de Charles Dellon no Oriente, Brasil e Portugal poderiam ser chamadas de “aventuras”. Mas embora evidencie as constrições formais de gêneros literários em voga na época, a narrativa de suas peripécias avança em outra direção. Nota-se que é um texto, propositalmente ou não, destinado à denúncia das práticas inquisitoriais, especialmente as que envolvem a perseguição aos cristãos-novos, e que utiliza informações “recolhidas” entre eles. Provavelmente Dellon levanta estas informações também na Bahia, onde esteve preso por volta de quatro meses, antes de seguir para a Lisboa: “Morei na cadeia, e pelo empenho de alguns amigos que ganhei em terra se me concedeu licença para sair dela durante o dia e recolher-me à noite”17 (DELLON, 1996: 155). Portanto, o relato manifesta articulações complexas entre memória individual e coletiva, nas quais o registro autobiográfico é filtrado pelo nexo causal de uma coletividade na qual está inserido ou com a qual estabelece relações de proximidade ou identificação. É esse lugar “relacional” que confere ao texto sua legitimidade e representatividade. 178

17 Talvez a estes amigos Dellon deva as informações que possui sobre a inexistência de um tribunal da Inquisição na colônia: “Há em São Salvador muitos abastados mercadores de todas as nações; e o que até ao dia de hoje ali conservou o comércio em seu lustro, assim como no sobrante território, foi a recusa que os habitantes fizeram de acolherem a Inquisição, que ainda não pôde ser ali admitida, apesar das muitas diligências que os senhores oficiais do Santo Ofício com tal fito têm feito” (DELLON, 1996: 159).

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Muitos véus simultaneamente cobrem e desvelam o testemunho. Se não está circunscrito às normas do testemunho legal, do mesmo modo, ainda que guarde parentesco com relatos autobiográficos, o testemunho tampouco é autobiografia. Ao narrar sua própria experiência, o sujeito testemunhal se define como membro de um grupo que está vivenciando uma crise ou transição histórica importante (PRATT, 1999: 24-39) e sua narração persegue variados e diferentes objetivos. Pode-se dizer que a lógica do testemunho é a fidelidade histórica. Resumindo, trata-se de um encontro “com algo que resiste à simbolização da narrativa, e que apesar de tudo, apesar dela própria, a narrativa revela” (PENNA, 2003: 348). É o que cabe ao historiador investigar e interpretar em chave correta.

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SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.) História, Memória, Literatura – O Testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. TAVARES, Célia Cristina da Silva. Jesuítas e Inquisição em Goa: A cristandade insular, 1540-1682. Lisboa: Roma Editora, 2004.

*Thais Buvalovas é mestranda em História na FFLCH/USP.

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IDÉIAS

A ÉTICA DE LA METTRIE1: L´ART DE JOUIR2 E A ARTE DE IMAGINAR3 Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino*

1 Este texto foi escrito a partir da Tese de Doutoramento em Filosofia da profa. Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino, apresentada em julho de 2005 ao IFCH, UNICAMP, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Roberto Monzani, tendo como títuo “A Ética de La Mettrie”.

[...] l´amour est cause de tout l´ordre, et de tout le désordre qui regne dans l´univers. [...] (La Mettrie)4

2 L´Art de Jouir é o título de uma obra de La Mettrie. L´Art de Jouir In LA METTRIE, J. O. Oeuvres Philosophiques. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1987. pp. 297-334.

Resumo: Este artigo trata do papel da faculdade da imaginação na transformação do homme-machine, de máquina determinada por sua organização a ter prazer (bonheur organique) a indivíduo capaz de sentir volupté, amar, construir linguagem e conhecimento, e buscar bonheur na sociedade. PALAVRAS-CHAVE: LA METTRIE; HOMEM-MÁQUINA; PRAZER

3 Vamos usar como referência principal dos escritos de La Mettrie a obra LA METTRIE, J. O. Oeuvres Philosophiques. Paris: Librairie Arthème Fayard, 1987. vols. I (390 páginas) e II (356 páginas), com revisão e introdução de Francine Markovits.

4 La Volupté, In LA METTRIE, Oeuvres Philosophiques, vol. II, pp. 85-137 op. cit., p. 130; e THOMSON, A., L´École de la Volupté In De La Volupté. Paris: Desjonquères, 1996. pp.113-153. A citação aqui é da p. 147. Vamos usar as siglas LV e EV, respectivamente, para nos referirmos a essas obras.

Abstract: This article deals with the role of the imagination in the transformation of the homme-machine: form the machine which is determined by its workings to have pleasure (bonheur organique) to the individual capable of feeling volupté, love, constructing a language and knowledge, and of seeking bonheur in society. KEYWORDS: LA METTRIE; HOMME-MACHINE; PLEASURE

1. Introdução 5 Usaremos os termos bonheur (felicidade), volupté (volúpia), homme-machine (homem-máquina), em francês.

A ética de La Mettrie, voltada para o indivíduo, com uma concepção múltipla de felicidade, é calcada em um sentimento físico de bem-estar. A felicidade orgânica, a bonheur organique,5 é o protótipo para todas as outras formas de bonheur, e está ao alcance de todos. A volupté é uma forma refinada de prazer, reservada ao ser humano. É a faculdade da imaginação que possibilita ao ser humano, quando inserido na vida social, desenvolver volupté, ser educado e buscar a bonheur, e as formas de bonheur advindas das relações sociais podem ser experimentadas, desde que o indivíduo possa ser educado para as virtudes sociais. Essas são artificiais, mas necessárias para o homem viver em sociedade e podem ser assimiladas, por meio da educação, pelo indivíduo que tenha boa organização física. A felicidade causada por fatores externos ao corpo do indivíduo – conhecimento,

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volupté, riqueza, honra - mobiliza a fonte interna de felicidade, o sentimento de bem-estar, tanto quanto aquela que tem causa na organização corporal. A questão que se coloca é como, segundo La Mettrie, essa felicidade orgânica, primordialmente natural, fisiológica, ligada concretamente à organização corporal, o prazer físico, enfim, serve de matriz, de paradigma, para as novas formas de bonheur e para a sociedade, organizada politicamente, elaborar e fazer cumprir suas leis? Ou, colocado de outra forma: o que, no nível biológico da máquina e no nível político da sociedade, possibilita ou determina a passagem do homme-machine, movido a prazer físico, imediato, automático, ao homem-ainda-machine movido a prazer, mas capaz de adiar o prazer, de voltar seu interesse para seus semelhantes – ao cidadão e ser humano? Na ética de La Mettrie, a volupté e a conquista da bonheur social é possível graças à educação, possibilitada pela imaginação, e têm como protótipo a bonheur organique, possibilitada, por sua vez, pela organização corporal. O que buscamos aqui é compreender como a imaginação atua no sentido de fazer esta articulação entre a forma natural, orgânica, de ser feliz, e a forma social. Considerando que a imaginação tem um papel central nesse processo, vamos nos aprofundar nesse ponto. O que é a felicidade? Resgatemos a definição de bonheur apresentada por La Mettrie em L´Anti-Sénèque ou Discours sur le Bonheur:6 Nos organes sont susceptibles d´un sentiment, une modification qui nous plait et nous fait aimer la vie. Si l´impression de ce sentiment est courte, c´est le plaisir; plus longue, c´est la volupté; permanente, on a le bonheur; c´est toujours la même sensation qui ne difère que par sa durée et sa vivacité... Plus ce sentiment est durable, délicieux, flatteur, et nullement interrompu ou troublé, plus on est heureux (A-S:238-239).

6 Anti-Sénèque, ou Discours sur le Bonheur, In LA METTRIE, J. O. Oeuvres Philosophiques. Vol. II, pp. 235-295.

A felicidade é um sentimento que nos dá prazer e nos faz amar a vida. Já aí coloca a possibilidade de três formas de felicidade, dependendo da duração e da vivacidade do sentimento: o prazer, físico, de duração curta, ou bonheur organique, a volupté, sentimento que tem maior duração, e a bonheur propriamente dita, permanente. Aí mesmo traduz numa palavra o prazer por excelência, presente nas outras formas de bonheur, ‘o grande prazer do amor’, ... parce qu´il n´y a point de souverain bien si exquis, que le grand plaisir de l´amour (A-S :239). A fonte, a raiz, de todas as formas de bonheur é a mesma – orgânica - um sentimento que é, em última instância, biológico: Le même concours fortuit, la même circulation, le même jeu des solides et des fluides, qui fait l´heureux génie et l´esprit borné, fait aussi le sentiment qui nous rend heureux ou malheureux. Le bonheur n´a point d´autre source, comme nous l´enseign l´uniformité de la nature (A-S:242).

A partir da matriz do prazer físico, são experienciadas as outras formas de bonheur – a volupté e a bonheur social. Como se dá o processo de passagem da forma básica, natural, de felicidade, para as outras? Pela modificação da imaginação. La nécessité des liaisons de la vie, a donc été celle de l´établissement des vertus et des vices, dont l´origine est par conséquent d´institution politique; car sens eux, sans ce fondement solide,

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quoi qu´imaginé, l´édifice ne pouvoir se sustenir et tomboit en ruine ... Enfin on a remué l´imagination des hommes, et par-là on a tiré parti de leur sentiment, et ce qui en soi n´est que chimère, devient par relation un bien réel, à moin qu´on n´excepte l´amour propre attaché aux belles actions même secretes ; plus flatté, lorqu´elles sont publiques; car c´est en cela que consistent l´honneur, la gloire, la réputation, l´estime, la considération et autres termes qui n´expriment que les jugements d´autrui qui nous sont favorables et nous font plaisir. Au reste la convention, un prix arbitraire fait tout le mérite et le démérite de ce qu´on apelle vice et vertu (A-S: 252).

A vida em sociedade, necessária, é garantida pela instituição política, que institui os vícios e as virtudes, que, por sua vez, sustentam, alicerçam a sociedade e mantêm os laços entre as pessoas. Os vícios e as virtudes não fazem parte da natureza do homem e são inventados pela política. O ensino das virtudes se dá pela educação, por meio da modificação da imaginação dos indivívuos e a organização política tira partido de seus sentimentos. Na vida pública, as virtudes são a glória, a honra, a estima ou a reputação, que geram prazer a quem goza delas. A recodificação da imaginação dos indivíduos faz com que eles se sintam recompensados por boas ações e culpados pelas más. Aí se origina o remorso, que La Mettrie quer eliminar, para libertar o homem de todos os preconceitos morais e religiosos, sugerindo que a educação não se calque no controle dos indivíduos pelo sentimento de culpa, mas pelas promessas sociais de bonheur. A bonheur organique, automática ou natural, pode se originar nas sensações ou na ‘imaginação’ e ‘ilusão’. “Vous voyez que l´ilusion même, soit qu´ellle soit produite par des médicaments ou par des rêves, est la cause réelle de notre bonheur ou malheur machinal” (A-S:244-245). O sentimento que nos afeta agradável ou desagradavelmente não precisa da ação dos sensos externos e internos e, para a máquina, é indiferente qual seja a fonte de prazer para que ela o goze. A imaginação, assim, ganha um lugar privilegiado, tanto na dinâmica básica do funcionamento do cérebro, quanto nos mecanismos ligados a estados diversos como o sonho, o efeito de medicamentos, de bebidas, de drogas, ou a loucura. Tentar entender, como propusemos na abertura do artigo, como se dá a passagem da forma básica de bonheur às formas sociais, inclui a compreensão dos processos mentais – especialmente a imaginação – envolvidos na relação do indivíduo com o mundo e com seus semelhantes, não só do ponto de vista ético, como estético e epistemológico.

2. A Imaginação 7 FALVEY, J. The Aesthetics of La Mettrie, 1972, In Studies on Voltaire, LXXXVII, 1972. pp. 397-479. A presente citação está nas páginas 420-421. 8 Falvey inclui em sua análise considerações sobre a obra de LA METTRIE, Essai sur les esprits et les beaux esprits (ESEBE) Amsterdam: 1740 ou 1742. Aqui, não vamos considerar ESEBE em nossa análise, já que não pudemos ter acesso direto a ela.

A se julgar unicamente pelo grande número de ocorrências da palavra ‘imagination’ nos textos de La Mettrie, pode-se deduzir a importância desse conceito em sua filosofia. Entretanto, tem-se que observar o significado que ele atribui a esse termo ao longo de sua produção filosófica. Para isso, além de rastrear o aparecimento do termo nas obras de La Mettrie, pode-se emprestar grande parte da análise que John Falvey, 19727 faz do pensamento de La Mettrie em seu artigo The Aesthetics of La Mettrie, em que o autor aponta os momentos marcantes de mudança na concepção de imaginação, nos vários trabalhos do filósofo.8 Nossa investigação do conceito de imaginação na filosofia de La Mettrie vai abranger os campos da epistemologia, da ética e da estética, já que quere-

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mos ressaltar o lugar central desse conceito no pensamento de nosso filósofo. A ‘imaginação’ é uma concepção que ganha diferentes tonalidades no pensamento de La Mettrie, mantendo-se, entretanto, sempre num lugar importante em sua teorização filosófica. Em Traité de l´âme,9 originalmente Histoire Naturel de l´âme, de 1745, La Mettrie define imagination, no Capítulo X, Des facultés du corps qui se rapportent à l´âme sensitive. No parágrafo xi, De l´Imagination, tem-se sobre a imaginação: ...

9 LA METTRIE, J. O. Traité de L´Âme, In Oeuvres Philosophiques, pp. 121-243. Aqui, usaremos a sigla TA para nos referirmos a esta obra.

nous la définirons une perception d´une idée produite par des causes internes, et semblable à quelqu´une des idées que les causes externes avoient coutume de faire naitre. Ainsi, lorsque des causes matérielles cachées dans quelque partie du corps que ce soit, affectent les nerfs, les esprits, le cerveau, de la même manière que les causes corporelles externes, et en conséquence excitent les mêmes idées, on a ce qu´on appelle de imagination. En effet lorsqu´il nait dans le cerveau une disposition physique, parfaitement semblable à celle que produit quelque cause externe, il doit se former la même idée, quoiqu´il n´y ait aucune cause présente au dehors : cést pourquoi les objets de l´imagination sont appellés phantômes, ou spectres, ....(TA :175)

Neste contexto, La Mettrie afirma que os sentidos internos, responsáveis pela imaginação, tanto quanto os externos, ocasionam mudanças no pensamento e no sensorium, e só se distinguem desses pela ausência de objetos externos, tanto nas imaginações vivas, como nos sonhos ou nos delírios. Aí concebe a imaginação como verdadeira ou falsa, dependendo de representar objetos em seu estado natural ou vistos de forma diferente do que são; também como fraca, se for menos afetada pelos sensos internos do que pelos externos e forte, se for vivamente afetada pelos sentidos externos. Relaciona a imaginação com a arte e com a loucura, tomando-a como uma faculdade do corpo que tem a ver com a alma sensitiva, como diz o título do parágrafo. Em Traité de L´Âme, a imaginação ganha um caráter relativista, pois La Mettrie associa ‘le génie’ com ‘l´âme sensitive’, e não com o ‘esprit’ ou l´âme raisonnable´. A idéia de ‘génie’ é dissociada da idéia de descoberta da verdade racional objetiva e é ligada às verdades e sentimentos pessoais, verdades de um tipo irracional, intuitivo e espontâneo, ou verdades baseadas nos raciocínios pessoais do autor, que, embora possivelmente sustentáveis e aceitáveis, não são consideradas como tendo validade universal. ... Mas ele não pode descartar imediatamente sua teorização da idéia de alguma verdade objetiva factual, que ele achava que poderia ser alcançada pelo cientista, senão pelo artista. ... Isso causa um conflito entre o extremo relativismo de ‘le gôut’ e o caráter absoluto do ‘génie’, assim como uma incerteza sobre o status do gênio artístico em relação ao gênio científico.10

10 FALVEY, J., 1972. op. cit., p. 476.

Em Anti-Sénèque, La Mettrie mostra o papel essencial da imaginação na transformação do homme-machine e do tipo de felicidade que ele pode gozar. De machine-à-jouir que goza o prazer orgânico, ele passa, graças ao desenvolvimento da faculdade da imaginação, a ser machine-à-imaginer, que goza volupté e bonheur, socializa-se, aprende as virtudes e cria cultura. 184

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La Volupté, de 1746, é a obra em que La Mettrie nos apresenta o papel da imaginação na fruição da experiência estética e ética do amor pelo homme-machine, como vamos analisar na próxima seção. Em L´Homme-machine, de 1747, La Mettrie, no contexto do esboço de sua concepção de conhecimento, pela machine humana, expõe o sentido que a imaginação ganha em seu pensamento.

3. A imaginação, o conhecimento e a arte Nous n´avons pas originairement été faits pour être Savans ; c´est peut être par une espèce d´abus de nos facultés organiques, que nous le sommes devenus. ... La Nature nous a tous créé uniquement pour être heureux... (HM :92).

11 LEDUC-FAYETTE, D., La Mettrie et le labyrinthe de l´homme In Revue Philosophique, no. 3, 1980. pp. 343-364. p. 353.

12 Sobre o sentido do termo ‘esprit’ ou ‘raison’, pensamos que eles corresponderiam à inteligência, ao pensamento, às capacidades mentais, localizadas no cérebro, e possibilitadas, em útima instância, pela faculdade da sensibilidade das fibras, ‘ce merveileux instinct’, que La Mettrie considera condição prévia da inteligência na máquina.

O conhecimento não é um atributo natural da máquina. O homme-machine, assim como todos os outros animais, “... oui tous, depuis le ver qui rampe, jusqu´`a l`Aigle qui se perd dans la Nuë” (HM:92), nasceram para ser felizes. Ser feliz, ter bonheur, é, em última instância, uma questão de sobrevivência, já que o prazer, a bonheur organique, é o o combustível da máquina humana. Como o homem historicamente passou a viver em sociedade regida por leis e valores, as formas de conseguir bonheur tiveram que se adaptar à organização social e à moral da virtude que sustenta as relações. Assim, a volupté do amor, e a bonheur advinda dos valores sociais, como o reconhecimento pelos outros, a glória, a honra, a riqueza, dentre outros, passaram a ser buscadas. E o conhecimento passou a ser uma das fontes poderosas de bonheur. Essa passagem do homem natural, do homem nascido para ser feliz, para o homem que pode ser feliz e ter conhecimento, é, segundo La Mettrie, possibilitada pela faculdade da imaginação, que transforma seu instinto em espírito, pela educação. O homme-machine de La Mettrie é uma máquina, um organismo vivo, semelhante aos animais, ambas fazendo parte da Natureza material, que os criou com “... une seule et même pâte...” (HM:90). Seu funcionamento é determinado, em última instância, por sua organização material, fisiológica. No homem, a Natureza “... a seulement varié les levains” (HM:90). Esse elemento de diferenciação que o filósofo introduz na máquina humana em relação às animais, esse fator de distinção, que vai além das diferenças e semelhanças anatômicas em relação aos animais, expressa-se numa plasticidade e abertura da machine humana, que, na verdade, a partir daí, humaniza-se. A machine humana concebida por La Mettrie, é constituída de matéria dotada de movimento, como sustenta Leduc-Fayette, 1980,11 “é condicionada por todas as influências externas, é uma estrutura funcional ... num meio que a marca tanto quanto ela o modifica. La Mettrie analisa tudo o que Cabanis chamará de ‘regime exterior’: o ‘império do clima’, o poder da alimentação, das drogas, etc..” O mecanismo da educação neutraliza alguns condicionamentos, relacionando-os uns com os outros, gerando o ambiente e o comportamento do indivíduo. O espírito,12 ou razão, do homem, é criado pela educação, a partir de um instinto de que a máquina é dotada. As máquinas humanas “... ont toutes ce merveilleux Instinct, dont l’Edu-

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cation fait de l’Esprit, et qui a toujours son siège dans le Cerveau ...” (HM :111). A machine humana em La Mettrie funciona a partir de mecanismos ligados ao cérebro, que se relacionam com todo o corpo, havendo uma estreita correlação entre a ‘alma’ e o corpo: “... toutes les facultés de l´Âme dépend tellement de la propre Organisation du Cerveau et de tout le Corps ...” (HM:98). A organização da máquina humana, ou qualquer mudança nela, compreendendo corpo e alma materiais, é determinante da unidade do indivíduo e de suas características físicas e mentais, estreitamente relacionadas, segundo La Mettrie. Nous pensons, et même nous ne sommes honnêtes Gens, que comme gais, ou braves ; tout dépend de la manière dont notre Machine est montée (HM:70-71). L´organisation est le premier mérite de l´Homme (HM : 82). Si l´organization est un mérite, et le premier mérite, et la source de tous les autres, l´instruction est le second (HM :83).

A instrução, a educação do indivíduo, é possível graças à linguagem, que essa máquina biológica, o homme-machine, tem como marca distintiva principal, desenvolvida por meio da faculdade da imaginação. Sua organização, sua estrutura fisiológica, “capacita-o para a linguagem, aquisição que conta totalmente para a diferença entre ele, homem, com seu pensamento abstrato, civilização e cultura, e os animais superiores (por exemplo, o orangotango) que tem apenas instinto.”13 Essa capacidade de adquirir linguagem, reconhecida como o diferencial entre o homem e os animais, apareceu, como elemento de aperfeiçoamento dos autômatos da época. Como dissemos acima, a criação de autômatos, cada vez mais aperfeiçoados era uma tônica da época e, no meio médico, Vaucanson propôs, ainda em 1741, conforme se constata nos arquivos da Academia de Lion, uma “figura autômata que imitará nos movimentos as operações animais... e poderá servir para se fazer demonstrações num curso de anatomia”. Em 1744, momento em que La Mettrie iria iniciar sua obra filosófica, o cirurgião Le Cat descreveu à Academia de Rouen, como se encontra nos arquivos desta, “um homem artificial ou autômato em que ele esperava fazer ver todas as operações do homem vivo.” O esquema de Harvey se materializou artificialmente com a construção de um autômato para a circulação do sangue. Mas o ápice desses esforços foi o de Vaucanson, que tentou realizar seu maior sonho, a construção de um autômato falador, le parleur.14 A criação desses autômatos ressaltava o aspecto mecânico da linguagem e seu caráter não inato. Para La Mettrie, é a linguagem, não inata, que marca a diferença entre o homem e os animais, sendo que ambos são feitos da mesma matéria de que toda a natureza se constitui, sem haver, entretanto, uma ruptura violenta entre os dois tipos de seres. Assim como os animais aprendem ações relativamente complexas, não instintivas, o homem aprende a falar e desenvolve pensamento simbólico e linguagem. “Des Animaux à l´Homme, la transition n´est pas violente...” (HM:78). ‘Como era o homem antes da linguagem?’ – esta a pergunta que orientou a reflexão de La Mettrie e que, aqui, nos fornece sua compreensão do lugar que a imaginação ocupou na invenção e desenvolvimento da linguagem.

13 FALVEY, J.,1972. op. cit., pp. 421422.

14 ASSOUN, P. L., L´Homme-Machine, L´Anti-Robot, Paris: Editions Denoël/Gonthier, 1981.

Qu´étoit l´Homme, avant l´invention des Mots et la connoissance des Langues? Un Animal de son espèce, qui avec beaucoup moins d´instinct naturel que les autres, dont alors il ne croioit

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pas Roi, n´étoit distingué du Singe et d´autres Animaux que comme le Singe l´est lui même; je veux dire par une phisionomie qui annonçoit plus de discernement. Réduit à la seule connaissance intuitive des Leibnitiens, il ne voioit que des Figures et des Couleurs, sans pouvoir rien distinguer entr´elles; vieux, comme jeune, Enfant à tout âge, il bégaioit ses sensations et ses besoins, comme un chien afammé, ou ennuié du repos, demande à manger, ou à se promener. (HM:78)

Teria havido uma época, a infância da alma, em que o Universo era quase mudo e, embora recebesse impressões dos sentidos, o homem não era capaz de relacioná-las, computá-las ou distinguí-las. Inventaram-se os números, as palavras e outros pequenos signos, e foi possível ao cérebro registrá-los, comparálos e os reter, relacionando sensações, vindas dos órgãos dos sentidos, a signos e palavras. Desenvolveram-se os conhecimentos que não passam de palavras e figuras que enchem nosso cérebro. Apesar de palavras e figuras estarem estreitamente ligados em nossa imaginação, os signos são arbitrários e têm que ser aprendidos Ces Mots et ces Figures ... sont tellement liées ensemble dans le cerveau, qu´il est assez rare qu´on imagine une chose, sans le nom, ou le Signe qui lui est attaché (HM:81).

Nosso filósofo sustenta que o homem é um animal dotado de menos instinto ao nascer, comparativamente aos outros animais, e que não sobrevive sozinho, e que, graças a isso, precisa ser educado, aprendendo o que lhe é necessário na infância e adolescência.

15 LEDUC-FAYETTE, D., 1980. op. cit, pp.357-8.

Descreve as etapas de aquisição do saber, a partir de uma situação original, necessariamente fictícia, um tipo de “grau zero do conhecimento, tomando a expressão de G. Gusdorf, que vê nessa maneira de proceder, cara aos philosophes, a prefiguração da epistemologia genética, para a qual a análise do espaço mental integra a dimensão temporal.15

Segundo La Mettrie, o homem primitivo era um animal com menos instinto que os outros, que, sendo velho, adulto ou criança, balbuciava para comunicar seus sentimentos e necessidades e que, com a introdução dos signos, aprendeu a falar, escrever, fazer cálculos, da mesma forma que as outras espécies aprenderam e compreenderam o que lhes foi possível.

16 LEDUC-FAYETTE, D. 1980. op. cit. p. 361, sugere que La Mettrie esteja, com Philosophes d´Allemagne, se referindo a Leibniz, Wolf e Baumgarten.

Les Mots, les Langues, les Loix, les Sciences et les Beaux Arts sont vénus; et par eux enfin le Diamant brut de notre esprit a été poli. On a dressé un Homme comme un Animal ... Un Geomètre a appris à faire les Démonstrations et les Calculs les plus dificiles, comme un Singe a ôter ou mettre son petit chapeau et a monter sur son chien docile. Tout s´est fait par des Signes ; chaque espèce a compris ce qu´elle a pu comprendre; et c´est de cette manière que les Hommes ont acquis la connoissance symbolique, ainsi 16 nomée encore par nos Philosophes d´Allemagne (HM :78).

O médico-filósofo considera que esse processo de aquisição da linguagem e de construção da cultura tem uma ‘mecânica simples’:

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Tout se réduit à des sons, ou a des mots, qui de la bouche de l´un, passent par l´oreille de l´autre, dans le cerveau, qui reçoit en mème tems par les yeux la figure des corps, dont ces mots sont les Signes arbitraires (HM :78-9).

As questões que ele se coloca a seguir – Quem falou primeiro? Quem foi o primeiro preceptor do gênero humano? Quem inventou os meios de tirar proveito da docilidade, da educabilidade, de nossa organização? – e às quais ele admite não poder responder com precisão, “Je n´en sai rien; le nom de ces heureux et premiers Génies a été perdu dans la nuit des temps”. (HM:79), conduzem-no à hipótese de que foram os homens mais bem organizados, ou bem dotados pela natureza, que interpretaram os primeiros barulhos (como os surdos que começam a ouvir) as primeiras sensações, que foram tocados pela beleza do espetáculo da natureza. Esses teriam expressado seus novos sentimentos pela primeira vez, como o fazem os mudos, por movimentos, dependendo da economia de sua imaginação e dos sons espontâneos próprios a cada animal, que expressam suas alegrias e suas necessidades. Esses primeiros homens, não podendo ter a assistência de nenhuma tradição linguística, devem ter sido privilegiados em suas constituições naturais, para poderem desenvolver a arte da linguagem, o que levou muito tempo: “L´art est le fils de la Nature; elle a dû longtemps le préceder” (HM:79). Assim La Mettrie acredita que os homens evoluíram: “Voilà comme je conçoit que les Hommes ont emploié leur sentiment, ou leur instinct, pour avoir de l´esprit et enfin leur esprit pour avoir connaissances” (HM:79). “Originalmente, para La Mettrie, o espírito é vazio. Mas a organização cerebral é tal que ela o torna apto a se enriquecer por ocasião da experiência. ... Não é um fiel discípulo de Locke... e é atento às considerações fisiológicas, que foram deixadas entre parênteses pelo autor de Essai sur l´entendement humain. La Mettrie queria escrutar a estrutura do cérebro. Compara-a à dos animais: ele tem “... la protubérance annulaire fort grosse” (HM:73)..., é particularmente “tortueux” (HM:75). A imagem da matriz testemunha a atividade do processo...: Il est aussi impossible de donner une seule idée à un homme privé de tous les sens que de faire un enfant a une femme à laquele la nature aurait poussé la distraction jusqu´à oublier de faire une vulve (HM :83)”.17

17 LEDUC-FAYETTE, D., 1980, op. cit., p. 357.

O homme-machine ganha em La Mettrie um caráter evolutivo, exibindo uma diferença não só quantitativa em relação às plantas e aos animais, mas uma diferença qualitativa - a linguagem. Com menos instinto que os animais, ele se limitava a satisfazer suas necessidades básicas e se relacionava com o mundo e o conhecia intuitivamente. Desenvolvendo a capacidade da fala e da linguagem, essa máquina, esse organismo, modificou seu relacionamento com o mundo, com seus semelhantes e com os animais, organizou-se em sociedade e criou cultura. A linguagem, possibilitada pela imaginação - faculdade que permite a ele fazer relações entre as sensações, externas e internas, reais ou imaginárias - tornou-se sua nova forma de representar o mundo com imagens e ligá-las a signos, e de se expressar e se comunicar com os outros, aprendendo palavras socialmente criadas, relacionadas a objetos percebidos e rememorados. 188

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18 LEDUC-FAYETTE, D., 1980, op. cit., p. 353, já citado neste texto.

19 No texto original, La Mettrie coloca a palavra imaginer em itálico, assim como toille médullaire.

O segundo ‘mérito’ do homem, a educação, portanto, torna-se possível, e necessária, com a entrada do homem na vida social, em que o instinto começa a se transformar em espírito, tornando o homme-machine capaz de desenvolver a linguagem, ser sociável, educável para as práticas sociais que vão sendo criadas e para as virtudes que são instituídas. Neste momento, dá-se a ‘transfiguração da máquina’,18 em que o pensamento começa a se tornar simbólico, e o homem, capaz de desenvolver o conhecimento simbólico e a arte, graças à faculdade da imaginação. Je me sers toujours du mot imaginer,19 parce que je crois que tout s´imagine, et que toutes les parties de l´âme peuvent être justement réduites à la seule imagination, qui les forme toutes, et qu´ainsi, le jugement, le raisonnnement, la memoire, ne sont que des parties de l´âme nullement absolues, mais de véritables modifications de cette espèce de toille médulaire, sur laquelle les objets peints dans l´oeil, sont renvoiés, comme d´une Lanterne magique (HM:81).

A imaginação é a faculdade principal do mecanismo do homme-machine, a partir da qual todas as outras se constituem. A matéria prima são as sensações, mas a essência do mecanismo é a imaginação, como faculdade que articula as sensações e faz com que todas as outras funções mentais se processem criativamente, possibilitando que o homem desenvolva a linguagem, recurso principal em sua nova configuração, para a construção do conhecimento e desenvolvimento da cultura.

20 VARTANIAN, A, La Mettrie et la science, In Corpus, revue de philosophie, nos. 5/6, dedicada a La Mettrie. Paris : Corpus des Oeuvres de Philosophie en Langue Française, 1987. pp. 53-62. A citação refere-se à página 59 deste texto.

L’imagination, ou cette partie fantastique du cerveau, dont la nature nous est aussi inconnue, que sa manière d’agir, est-elle naturellement petite, ou foible ? Elle aura à peine la force de comparer l’Analogie, ou la ressemblance de ses idées ; elle ne pourra voir que ce qui sera vis-à-vis d’elle, ou ce qui l’affectera le plus vivement ; et encore de quelle manière ! Mais toujours est-il vrai que l’imagination seule aperçoit ; que c’est elle qui se représente tous les objets, avec les mots et les figures qui les caractérisent ; et qu’ainsi c’est elle encore une fois qui est l’Ame, puisqu’elle en fait tous les Rôles (HM :82).

Como sustenta Aram Vartanian:20 Na epistemologia lamettrieana, os elementos de base de que provém todo conhecimento são as imagens impressas na substância mole do cérebro, e que se tornam ‘idéias’, graças aos signos que lhe são vinculados. O ato de pensar consiste em manejar essas ‘idéias-imagens’, por meio de seu repertório verbal, ou seja, a linguagem, a fim de as comparar. As combinações que nascem a partir das diferenças ou semelhanças que surgem dessa comparação, são representadas por um arranjo de palavras que constitui o saber, seja nas ciências, ou nas artes. A faculdade-mestre do espírito, em La Mettrie, assim, é a imaginação.

A imaginação tem papel central na construção da ciência e das artes, pinta a natureza, calcula, julga. Forma os sábios e os poetas. Está presente, enfim, em toda atividade do espírito. Graças a ela, o homme-machine cria uma realidade distinta da natural, ele faz arte; ele representa, pensa simbolicamente, usa a linREVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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guagem, calcula e julga. Além disso, ela tem a função de possibilitar que o indivíduo experimente a volupté. Par elle, par son pinceau flateur, le froid squelette de la Raison prend des chairs vives et vermeilles ; par elle les Sciences fleurissent, les Arts s’embellissent, les Bois parlent, les Echos soupirent, les Rochers pleurent, le Marbre respire, tout prend vie parmi les corps inanimés. C’est elle encore qui ajoute a la tendresse d’un cœur amoureux, le piquant attrait de la volupté. Elle la fait germer dans le Cabinet du Philosophe, et du Pédant poudreux ; elle forme enfin les Savans, comme les Orateurs et les Poêtes. Sotement décriée par les uns, vainement distinguée par les autres, qui tous l’ont mal connue, elle ne marche pas seulement à la suite des Grâces et des beaux Arts, elle ne peint pas seulement la Nature, elle peut aussi la mesurer. Elle raisonne, Juge, pénètre, compare, approfondit. Pourroit-elle si bien sentir les beautés des tableaux qui lui sont tracés, sans en découvrir les rapports? Non; comme elle ne peut se replier sur les plaisirs des sens, sans en goûter toute la perfection, ou la volupté, elle ne peut réfléchir sur ce qu’elle a mécaniquement conçu, sans être alors le jugement même (HM:82).

A imaginação é aqui a faculdade essencial, é, com efeito, graças a ela que o homem pode chegar a uma representação da natureza que não é a reprodução passiva e insignificante, mas a reconstrução simbólica, e que permite, portanto, que ele se destaque, a ponto de, às vezes, mover-se apenas no universo dos signos, inclusive os matemáticos. A imaginação é, portanto, a liberdade do espírito(...). A imaginação, no fundo, é a alma! Não faz ela todos os papéis? As outras funções psíquicas, dissemos, são relativas a ela: “le jugement, le raisonnement, la memoire, ne sont que des parties de l´âme nullement absolues, mais de véritables modifications de cette toile médullaire sur laquelle les objets peints de l´oeil sont renvoiés comme d´une lanterne magique” (HM:81). A tela medular imaginativa não é outra coisa que toda a substância cerebral. Mesmo admitindo as localizações cerebrais relativas aos diferentes órgãos sensoriais, ...La Mettrie se recusa a fragmentar a vida do espírito: “...une seule (âme) suffit sans doute avec l´entendue de ce siège médullaire que nous avons été forcés par l´expérience de lui accorder; elle suffit, dis-je, pour agir, sentir et penser, autant qu´il lui est permis par les organes” (TA:170).21 Pensamos, portanto, que, para o médico-filósofo, a imaginação é a faculdade que, efetivamente, possibilita que o homme-machine se humanize,22 já que, embora haja uma grande distância entre “as expressões afetivas primitivas e a linguagem conceitual, La Mettrie vê aí sua fonte e é, segundo ele, a imaginação que permite a passagem ao que ele chama de ‘conhecimento simbólico’”.23 A partir de modificações da faculdade da imaginação é que se constituem a memória, o julgamento, o raciocínio, enfim, todas as suas funções mentais, que ocorrem no cérebro. Um cérebro bem constituído, ou uma boa organização, sem instrução, é um desperdício, assim como a instrução não tem frutos num cérebro mal organizado.

21 LEDUC-FAYETTE, D. 1980, op. cit., pp. 361-2. 22 O sentido que queremos dar a essa possibilidade de humanização corresponde à distinção entre homem e animais em La Mettrie, pelo desenvolvimento das funções mentais e da linguagem, o que, no entanto, não significa que o homem deixe de ser machine, animal, mas que, a partir dessa raiz animal, maquinal, ele pode se socializar e fazer cultura. 23 LEDUC-FAYETTE, D., op. cit., p. 359.

Mais, si le cerveau est à la fois bien organisé et bien instruit, c´est une terre féconde parfaitement ensemencée, qui produit le centuple de ce qu´elle a reçu ... (HM:84).

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24 THOMSON, A., (ed.) La Mettrie: Machine Man and Other Writings. NY: Cambridge University Press, 1996. p. XVIII.

25 Fernando Guerreiro é autor da Introdução e das Notas à edição portuguesa de O Homem-Máquina, de La Mettrie (Ed.Lisboa, Editorial Estampa, 1982). Não se trata aqui, de uma reprodução de seu texto, mas de uma construção nossa, a partir de suas considerações sobre a noção de imaginação em La Mettrie (pp. 157/158).

26 Em HM, p. 85.

27 La Mettrie fala, aqui (HM:85) da imaginação como órgão material, fisiológico, que tem músculos. As cordas do cérebro se referem à metáfora usada nas páginas 79-80, de HM: Comme une corde de Violon, ou une touche de Clavecin, frémit et rend un son, les cordes du cerveau frapées par des raions sonores...

A produção, ou a criação possível ao cérebro humano, torna o homem um ser distinto de todos os outros, na medida em que se processam informações advindas dos sentidos externos, mediadas ou não pela educação, e não recebidas passivamente, mas trabalhadas no nível da imaginação, que as articula entre si, resgata sensações passadas registradas na memória e projeta futuras. Graças à imaginação, “o cérebro, em L´Homme-machine, não é simplesmente um órgão passivo, como parecia em Traité de L´Âme, mas é também criativo; suas capacidades dependem da sua organização e da educação que recebe.”24 Com efeito, a educação promove o aprimoramento da imaginação. Plus on exerce l’imagination, ou le plus maigre Génie, plus il prend, pour ainsi dire, d’embonpoint ; plus il s’agrandit, devient nerveux, robuste, vaste et capable de penser. La meilleure Organisation a besoin de cet exercice (HM:82).

Guerreiro, 1982,25 ressalta que, diferentemente da concepção cartesiana de imaginação, como uma maneira de pensar própria das coisas materiais – distinta da alma e do pensamento, em La Mettrie, como em Condillac, a imaginação, faculdade que sela a sensação e o intelecto, tende a assumir o caráter totalizador que a ‘alma’ tem para os espiritualistas. Acrescenta que La Mettrie a caracteriza tanto como tela, pano de fundo – ‘tela medular’ – como princípio indissociável, uno. E que a expressão lanterna mágica’ (como era conhecido o cinema, que consistia em projeção, já feita por uma câmara, à época, de imagens em uma tela) é usada pelo filósofo como uma metáfora, ao mesmo tempo teórica e descritiva, sobre o funcionamento da imaginação no nosso espírito. Em L´Homme-machine, portanto, La Mettrie apresenta o mecanismo mental que possibilita a construção do conhecimento científico, ressaltando o papel da imaginação: “La plus belle, la plus grande et la plus forte imagination, est donc la plus propre aux Sciences, comme aux Arts” (HM:85). Diferentemente de sua postura em Traité de L´Âme, La Mettrie considera a força e a qualidade da imaginação como igualmente importantes para se fazer ciência e arte, que são, ambas, o resultado da “... seule imagination diversement appliquée...” (HM:85). O artista é visto como usando menos a faculdade de julgamento do que a imaginação abandonada a si mesma, que se espelha nas sensações, sem examiná-las com atenção, penetrando mais profundamente em seus traços e imagens, do que na sua verdade ou similitude. Se à vivacidade da imaginação não se acrescenta a atenção, “l´attention, cette clé ou mère des Sciences” (HM:85), os objetos são só percebidos e tocados superficialmente. La Mettrie26 explica que nossas idéias se sucedem num caos, rapida e continuamente, como uma sucessão de ondas que empurram umas às outras, (“Tel est le chaos et la succession continuelle et rapide de nos idées; elles se chassent, comme un flot pousse l´autre”) que, se a imaginação não utilizar “une partie de ses muscles, pour être en équilibre sur les cordes du cerveau”,27 para se deter por algum tempo sobre um objeto que lhe vai escapar, ou evitar de tender para outro que ainda não é hora de contemplar, isto é, se ela não for capaz de interromper esse processo caótico, não será digna de ser chamada de julgamento. Assim, exprimindo prontamente o que sente, ela formaria os oradores, os músicos, os pintores, os poetas, mas jamais um único philosophe. Nosso filósofo propõe que a educação da criança já deveria se ocupar do treinamento da imaginação, do uso da atenção, que interrompe o caos imaginativo, e concentra essa faculdade nas idéias, permitindo que se vejam todas as

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faces de um objeto, para possibilitar a emissão de juízos e raciocínios sobre ele. A reflexão filosófica e a lógica, para La Mettrie, surgem a partir da contenção da impetuosidade da imaginação, típica das crianças, da focalização da atenção, da consulta a todos os sentidos, o que permite o juízo e o raciocínio e, em conseqüência, as ciências e a filosofia. A imaginação é importante como uma ‘penetrante clarividência’, sem a qual pouco progresso haveria nas ciências, mas ela tem que ser exercitada e trabalhada. O homem precisa ser educado, em primeiro lugar, para poder sobreviver, segundo La Mettrie, porque ele é um animal desprotegido, dotado de menos instinto que os outros animais. A educação é considerada como o segundo mérito do homem, pois o eleva acima dos animais. La Nature nous avoit donc faits pour être au dessous des Animaux, ou du moins pour faire par là même mieux éclater les prodiges de l´Education, qui seule nous tire du niveaux et nous élève enfin au-dessus d´eux (HM:87).

O que caracteriza o homme-machine é, portanto, para La Mettrie, em primeiro lugar, uma organização específica da máquina, que possibilita que ela se relacione com o mundo externo, e com seu próprio interior, captando sensações e idéias, e as relacionando, e, em segundo lugar, a educabilidade do indivíduo.28 Essas duas características têm sua originalidade calcada na faculdade da imaginação, que, com relação à organização, ou em termos da anatomia e da fisiologia do organismo humano, diferentemente da organização dos animais, possibilita a fala, a linguagem e o pensamento simbólico, além da criatividade; e, em termos da educabilidade do homem, é a faculdade que permite que, por meio da linguagem, o indivíduo aprenda as formas socialmente construídas e aceitas de conhecer e lidar com o mundo dos objetos e dos outros indivíduos. A imaginação torna a máquina humana aberta para o mundo externo e para as relações sociais, ao mesmo tempo em que a entrada do homme-machine na vida em sociedade cria para ele a necessidade de se relacionar, de se comunicar, desenvolver a fala, a linguagem e o pensamento simbólico: parece ser um processo de mão dupla, em que a faculdade da imaginação, já existente na organização do homme-machine, ganha, ou passa a desenvolver, novas funções, a partir da entrada do homem na vida social. O que caracteriza o indivíduo, a partir daí, é o fato de ser uma máquina que imagina.

28 LEDUC-FAYETTE, D., 1980, op. cit., p. 353, considera que o homem, como os animais, sont des machines ouvertes.

4. Imaginação, volupté e bonheur Nesse ponto, julgamos importante fazermos uma reflexão sobre a capacidade que o homem desenvolveu de aprender e aperfeiçoar a linguagem, aspecto ligado à epistemologia, e a relação da possibilidade dessa capacidade com o gozo do prazer. Como animal, máquina movida pela jouissance da bonheur organique, o gozo do prazer físico, o homem, por questão de sobrevivência, encontrou-se em situação que tornou necessária sua relação com outras pessoas, a comunicação de seus sentimentos mais primitivos, como o medo, a agressividade, a fome, a sede, a alegria, ligados a sensações corporais e ações de fuga, aproximação, apelo. O desenvolvimento da linguagem permitiu que os homens se organizassem em sociedade, criando formas de regular suas relações.

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La necessité de liaisons de la vie, a donc été celle de l´établissement des vertus et des vices, dont l´origine est par conséquent d´institution politique... (A-S:252).

Em Anti-Sénèque, La Mettrie sustenta que a inserção social gradual do homem, nos primórdios de sua história, promove sua mudança, de machine originariamente regida pela satisfação imediata de suas necessidades, e gozo do prazer físico, ou bonheur organique, a machine que, por se relacionar com outros indivíduos-machine, desenvolve a capacidade de adiar a satisfação de suas necessidades e o gozo do prazer. Isso é possível graças a sua organização física, e, especialmente, a um uso diferenciado da imaginação, que lhe possibilita sentir a volupté, ou forma refinada de prazer, que envolve não só o prazer físico propriamente dito, mas a representação deste prazer, memorizado a partir do registro de momentos de jouissance vividos no passado, ou de situações de prazer projetadas no futuro, incluindo outros indivíduos. Em uma palavra, a machine experimenta o sentimento do amor: c´est toujours la même sensation, qui ne difère que par sa durée et sa vivacité; j´ajoute ce mot, parce que il n´y a point de souverain bien si exquis, que le grand plaisir de l´amour (A-S:239).

29 Em Discours Préliminaire, de 1751 (In LA METTRIE, J.O., Oeuvres Philosophiques, op. cit., pp. 7-49), opõe a ética da felicidade individual, natural, estudada pela sua filosofia materialista, à Moral, qui tire son origine de la Politique, comme les Loix et les Bourreaux ... (DP:11). Em A-S, entretanto, mostra que alguns indivíduos (nem todos) têm outras formas, que não a orgânica, a natural, de ter bonheur e que podem ser felizes e virtuosos, ou seguirem as tendências naturais e os preceitos sociais. Promove, assim, uma articulação entre a ética individual e a moral social.

A partir daí, a bonheur ganha um sentido não só físico, mas afetivo e social, e é buscada pelo indivíduo não só em seu próprio corpo, mas no corpo social, pelas ligações que desenvolve, pelo respeito mútuo, pela honra, pelo sucesso no trabalho, nos estudos, pela riqueza conseguida, e o reconhecimento social. Apesar de ser buscada por meios socialmente disponíveis, que o indivíduo pode aprender a usar, em La Mettrie, esse tipo de bonheur, em última instância, tem relação com a bonheur original, o prazer físico. Nesse sentido, bonheur e virtude podem coincidir. A ética do indivíduo-machine, da busca da bonheur que alimenta sua máquina, pode ter afinidade com a moral social da virtude,29 possibilitando que o indivíduo seja feliz e virtuoso, sem, entretanto, submeter, pelo remorso, a felicidade à virtude, como faziam os estóicos e os cristãos, mas, pelo contrário, considerando a possibilidade da virtude enquanto atrelada à bonheur social, enraizada na bonheur organique, seu próprio prazer. La Mettrie acredita que as opiniões dos outros, e, especialmente os valores morais, são ensinados ao indivíduo, de modo que ele aprende o que é virtude e vício e se comporta de acordo com isso, na medida em que sua organização lhe permite, buscando ter bonheur em sociedade. Il ne suffisoit pas que la vertu fût la beauté de l´âme ; il faloit, pour nous exciter à faire usage de cette beauté, que l´âme fût flatée d´être belle, et sutout d´être trouvée telle, et qu´elle y trouvât du plaisir... (A-S:253).

Para que ele tenha prazer agindo virtuosamente, sua imaginação é alterada, pela educação :

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on a rémué l´imagination des hommes, et par-là on a tiré parti de leur sentiment, et ce qui en soi n´est qu´un quimère, devient par rélation un bien réel (A-S:252).

A honra, a glória, a reputação, a estima, a consideração, são, para La Mettrie, palavras que exprimem julgamentos dos outros que nos são favoráveis e nos dão prazer. Esse processo de mudança do homme-machine, é o mesmo em que ele desenvolve a linguagem, que, inclusive, efetiva suas relações com outros indivíduos e lhe permite buscar outras formas de bonheur: o indivíduo deixa de ser uma máquina natural simplesmente, para ser uma máquina natural socializada, uma máquina regida por uma ética individual ainda, mas eventualmente educável para a vida moral social. De unicamente natural, o indivíduo passa a se desenvolver como ser afetivo e social. O processo de educação para a vida social, do ponto de vista de adequar a ética individual, maquinal, à ética do outro, e de ambos se submeterem ou não aos preceitos morais da sociedade, é possibilitado pela linguagem, que, por sua vez, desenvolve-se nesse processo de socialização da machine. Uma das formas consagradas de o indivíduo se socializar e buscar bonheur na vida social, consiste na aquisição de conhecimento, sustentada pela volupté do estudo, ou o prazer de conhecer, segundo La Mettrie. E, nesse processo, também, a imaginação tem um papel central. Na mudança de homme-machine a homme-machine civilizado, promovida pela socialização, possibilitada pela imaginação, e calcada na organização básica, a volupté é o sentimento paradigmático das novas possibilidades do homem, de sua inserção em uma outra dimensão que não a física, mas simbólica e histórica.30 A volupté, a um tempo, exalta o prazer e promove a dimensão racional, espiritual, do homme-machine. É por isso que o tema da volupté, além de tão caro e prazeroso para nosso autor, tem lugar central em seu pensamento: a volupté é a primeira versão do prazer investida da ação da imaginação, demarcando o ‘ponto zero’ da transmutação da machine. O homme-machine capaz de sentir volupté é o homem capaz de desenvolver a linguagem, o conhecimento, a cultura, e de ter bonheur.31 La Volupté,32 escrita por La Mettrie, é uma ode ao prazer tal como pode ser sentido pelo ser humano - o prazer amoroso, voluptuoso. Aí, “ele enaltece os prazeres refinados onde a imaginação desempenha um papel grande, sem se proibir, contudo, de fazer descrições lascivas”.33 A volupté é este prazer refinado, a bonheur causada pela imaginação... Só o homem é capaz de imaginar a ponto de simbolizar, trocar o que é, ou parece ser, pelo que pode ser, deve ser, ou ele deseja que seja. Isso permite que ele experimente o sentimento de volupté, de amor e bonheur, vivendo em sociedade. Entretanto, La Mettrie considera cette jouissance, este gozo refinado, (a volupté34), que mistura a imaginação aos prazeres dos sentidos, reservado a alguns indivíduos superiores, à compleição feliz possuída por seus corpos, a prazeres menos devassos.35 “O prazer é próprio a todos os animais (inclusive o homem36), a volúpia é o prazer mais refinado, próprio do homem”.37 ... le gout du plaisir a eté donné a tous les animaux comme an attribut principal; ils aiment le plaisir pour lui-même, sans porter plus loin leurs idées. L´homme seul, être raisonnable, peut s´élever jusqu´à la volupté: car quel plus bel apanage de la raison? Il est distinguer dans l´univers par son esprit; un choix délicat, un gout épuré, en raffinant ses sensations en les redoublant en quelque sorte par la réflexion, en a fait le plus parfait, c´està-dire, le plus heureux, des êtres (LV:119; EV 139-140).

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30 La Mettrie fala do indivíduo, homme-machine, mas sua análise é sustentada não só por reflexões sobre educação e socialização do indivíduo, pois inclui elementos de evolução e de desenvolvimento histórico do ser humano, embora desenvolva pouco ambos os aspectos. 31 Além de ser uma concepção importante para a compreensão do pensamento de La Mettrie, a volupté teve um papel essencial na própria elaboração de suas idéias. Tanto que foi tema de estudo de nosso filósofo, antes de L´Homme-machine e do Discours sur le Bonheur, ou L´Anti-Sénèque, em La Volupté, de 1746, retomado em 1747, em L´École de la Volupté, e em L´Art de Jouir, de 1750. 32 La Volupté, In LA METTRIE, J.O., Oeuvres Philosophiques, op. cit., pp. 85-137. 33 THOMSON, A., 1996, op. cit., p. 198. 34 Acréscimo nosso.

35 THOMSON, A. De La Volupté. Paris: Les Éditions Desjonquères, 1996, p. 12. 36 Acréscimo nosso. 37 ROUANET, S.P., O Homem-Máquina hoje In Novaes, Adauto, O Homem-Máquina: A ciência manipula o corpo. pp. 37-64. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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O homem é o mais feliz dos seres. Ele pode ter consciência de seu prazer e acrescentar a ele sentimentos doces ou negativos, pode envenená-lo ou aumentálo pela reflexão. A volupté aprimora o prazer, pelo resgate de lembranças prazerosas ou a perspectiva de novas experiências de gozo. Telle est la vraie volupté, l´esprit et non l´instinct du plaisir, l´art d´en user sagement, de le ménager par raison, et de le goûter par sentiment (LV:124; EV:142).

38 Aqui vamos usar o texto da obra École de la volupté (EV) de La Mettrie, conforme transcrito em THOMSON, A., 1996, op. cit., pp. 113-191, e o texto La Volupté (LV), das Oeuvres Philosophiques de La Mettrie, editadas por Francine Markovits, Fayard, 1987,op. cit., pp. 87-137. A edição de 1747 de La Volupté aparecem acréscimos em relação à EV, conforme podemos observar nas Oeuvres Philosophiques editadas por F. Markovits.

39 La Mettrie usa o termo volupté para designar o prazer refinado, do espírito, proporcionado pela imaginação, atrelado ao prazer físico, real ou imaginário, ou aos estudos, por exemplo; também o usa como o estado que sucede o prazer, conforme se nota nesta citação, la vrai volupté.

Plaisir, maître souverain des hommes et des dieux, devant qui tout disparaît, jusqu´à la raison même, tu sais combien mon coeur t´adore, et tous les sacrifices qu´il t´a faits ! Je ne sais si je mériterai d´avoir part aux éloges que je donne ; Je me croiais indigne de toi si je n´étais attentif à m´assurer de ta présence, et à me rendre compte à moi-même de tous tes bienfaits (LV:123; EV:141-2).38

Este conceito, volupté, volúpia, l´esprit du plaisir, no pensamento de La Mettrie, é a maior expressão do papel da imaginação em sua ética. A imaginação é a chave que possibilita a educação e a recodificação das recompensas a comportamentos ligados à virtude, relacionando-os, simbolicamente, ao prazer, à bonheur organique, de modo a que o conhecimento, a honra, a glória, o reconhecimento, o respeito, os valores sociais, enfim, conduzam à felicidade, à bonheur social. É a volupté que consiste no sentimento de felicidade que traça um limite entre a dimensão biológica, a bonheur organique, e o que hoje chamamos de “psicológico”. Ela se cria e se expressa no nível da imaginação, produzindo sensações e ações prazerosas, distintamente da bonheur organique, que é provocada por causas orgânicas. A bonheur organique, o prazer físico, está na raiz da volupté, e, além da organização física, nossa felicidade é comandada pela faculdade da imaginação, que coloca a experiência do prazer na dimensão do tempo e do espaço, descolando-a da sensação imediata do aqui-e-agora e remetendo-a ao passado e ao futuro, permitindo, assim, que o homme-machine se habilite a adiar a jouissance do prazer. Assim La Mettrie descreve este momento divino de prazer em que l´âme semble nous quitter pour passer dans l´objet adoré, où les deux amants ne forment plus qu´un même coeur, qu´un même esprit animé par l´amour, à force de sentir on ne sent rien, du moin on ne distingue aucune sensation , on est ravi, transporté... e distingue prazer de volupté. Mais quelque vifs que soient ces plaisirs, qui remplissent parfaitement notre âme, ce ne sont jamais que des plaisirs; l´état seul qui les succede est la vraie volupté (LV:109: EV:132-3).39

Depois do gozo do amor, a alma, menos embriagada pelo prazer, pode contemplar a si mesma e desfrutar de sua situação e saboreia seu prêmio nesse momento delicioso, em que não deseja nada, a não ser prolongar esse sentimento – a volupté. O prazer é físico, e experimentado pelos sentidos. Já a volupté, não depende só dos sentidos: s´ils lui sont nécessaires, ils ne lui suffisent pas; il faut que l´imagination supplée à ce qui leur manque. C´est elle qui met

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le prix à tou; elle échauffe le coeur, elle aide à former des désirs, elle lui inspire le moyen de les satisfaire. En examinant le plaisir, qu´elle passe, pour ainsi dire, en revue, le microscope dont elle semble se servir, le grossit et l´exagere... (LV:112; EV:136).

Além dos sentidos, a volupté precisa da imaginação, que transforma a necessidade em desejo, e aumenta o prazer. Neste sentido, a própria volupté, esta arte de gozar, não passa da arte de se iludir, de se enganar. “Ah! Si je me trompe, en augmentant le plaisir des mes sensations et mon bonheur, puissé-je me tromper toujours ainsi!” (LV:112; EV:136). Este tipo de ilusão é bem-vinda, já que propicia bonheur ao indivíduo. A volupté é l´art de jouir.40 Uma estética do gozo é o que nos sugere esse pensamento de La Mettrie: a volupté é a arte de gozar, ‘l´art de jouir’, é a capacidade que o indivíduo tem de fazer do prazer natural um prazer representado, simbólico, de sentir algo natural, de outra maneira, em outro lugar, em relação a outra pessoa, em outro tempo. Aqui, tanto quanto no nível do desenvolvimento do pensamento simbólico, o indivíduo se descola das amarras do presente e da concretude das relações. E cada indivíduo tem sua capacidade imaginativa específica, ditada pela organização e o uso da imaginação: uns são melhores ‘pintores’ do que outros. Como Vartanian41 salienta em relação à epistemologia lamettrieana, sustentamos que também a ética de La Mettrie tem como faculdade mestra a imaginação. As imagens são os elementos de constituição e compreensão dos sentimentos de volupté e bonheur. A volupté e todos os sentimentos de ternura que o amor inspira residem menos nos poderes do corpo do que nos do coração, e por mais insensível que seja um homem, se ele tiver imaginação, ele continua podendo ter prazer, pois o que imagina provoca nele sensações voluptuosas. Mesmo sem gozar o prazer físico, o homem de espírito, que tem o cérebro bem organizado, pode ter volupté. A volupté depende da imaginação, de modo que

40 Tanto que praticamente reescreveu La Volupté, como L´Art de jouir.

41 VARTANIAN, A, La Mettrie et la science, In Corpus, revue de philosophie, nos. 5/6, dedicada a La Mettrie. Paris : Corpus des Oeuvres de Philosophie en Langue Française, 1987. pp. 53-62.

si tous les hommes avoient précisément la même imagination, ils seroit tous également voluptueux (LV:113; EV:137). Si la volupté est à l´âme, ce que le plaisir est au corps, le défaut de votre imagination ne vous permettra tout au plus d´être que débauché : or qu´est-ce que la débauche? L´excess du plaisir, sans le gôuter (LV:113 ; EV:137).

O prazer não saboreado, porque excessivo, é a perversão, libertinagem, débauche. Aí não há arte no gozo, não há volupté. É o império do corpo, que pode dar à alma, sem sua participação, eventualmente, um prazer violento, de que ela gosta, mas que se arrepende42 de ter gostado, no seio da fúria e do desespero. Sem fineza ou delicadeza na forma de sentir, não se sente a volupté. A volupté é temperada por um jogo encantador, que o desejo sustenta. Os amantes voluptuosos sentem tendresses infiniment pures, ... ces exquises sensations d´amour, ... ces goûts si vifs et si intimes, que la volupté même semble dis-

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42 Aqui, ainda, La Mettrie considera o papel do remorso na economia psíquica. Em A-S, propõe que a bonheur organique, o prazer físico, é uma forma de bonheur, às vezes a única, possível. Elimina a necessidade do remorso e libera o sentimento de prazer conseguido pela débauche e por meio do crime. Em A-S, a perversão não é moralmente condenável, mas apenas juridicamente.

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43 Esta citação não aparece em EV, pois neste ponto do discurso (LV:14; EV:138) La Mettrie inclui em LV três páginas que não constam de EV.

tiller ... au fond de nos âmes. Alors en effet, elles sont réellement enivrés, et comme remplies de la perfection de leur état, qu´elles se suffisent à elles-mêmes, et ne desirent rien (LV:114).43

O desejo, o jogo do amor, a arte de gozar, a sensação de satisfação e de não desejar nada: este o caminho da volupté. O voluptuoso, em seu discurso, em seus caminhos, em seus prazeres, distingue a volupté do prazer, comme l´odeur de la fleur qui l´exhale, ou le son de l´instrument qui le produit.(LV:117; EV:138). ... C´est ainsi que l´art ajoute à la nature, et sait la varier à l´infini ; le voluptueux ... ne fait pas un pas, pas un geste, qui ne tende vers elle (la volupté). S´il jouit des bienfaits de l´amour, mille jouissances préliminaires précédent la derniére jouissance (LV:117-8; EV:138-9).

44 Parece que aqui La Mettrie tem uma primeira intuição sobre essa distinção. Em A-S, sua proposta definitiva de ética, La Mettrie vai desenvolver este ponto, tratando da questão da virtude como não natural e social. Em DP, reforça essa idéia de que em suas obras prega a busca da volupté e da bonheur e não a prática do crime. Os indivíduos que, pela sua organização, não conseguem ter prazer voluptuoso e virtude social, podem, para La Mettire, gozar de seu prazer, a bonheur organique, mesmo correndo o risco de serem punidos, presos, exilados ou mortos, por serem uma ameaça para a sociedade. 45 Aqui critica os filósofos que vêm a morte como um bem. Em A-S, refere-se diretamente aos estóicos a este propósito. 46 Este trecho não consta de EV. 47 Que desenvolve em A-S.

Para La Mettrie, a volupté é tão diferente da libertinagem quanto a virtude o é do crime. Os corações corruptos não podem ser virtuosos, e estes não podem ser libertinos, ou criminosos. Le plaisir est l´essence de l´homme et de l´ordre de l´univers. La débauche seule, et tout ce qui nuit à l´intérêt de la societé est crime, ou désordre; je n´en connois poins d´autre, ni de vertu, que celle qui est utile à l´état (LV:119;EV:139).44

Todos os animais foram dotados da possibilidade do gozo do prazer, como atributo principal. Somente o homem, racional, pode se elevar até a volupté. Ele “... est le plus parfait, c´est-a-dire le plus heureux des êtres. S´il est malheureux, il faut croire que c´est par sa faute, ou par l´abus qu´il fait des dons de la nature” (LV:119 ; EV:139-40). O homem pode ter apenas prazer, que é o que o liga aos animais, à vida. Mas o homem voluptuoso vai além do prazer: ele ama a vida,45 porque tem o corpo são e o espirito livre. Ele conhece melhor do que os outros as belezas da vida e é amante da natureza. Em pleno inverno rigoroso, ele sente o calor de seu coração voluptuoso. Vê os pássaros se acasalarem, como as flores, mais “si l´instict jouit plutôt que l´esprit, l´esprit goûte mieux que l´instinct” (LV:12046). La Mettrie expõe aqui sua visão hedonista da felicidade.47 A possibilidade de ser feliz está inscrita no corpo do indivíduo e nos seus desejos, ou caprichos de sua imaginação. Chaque homme porte donc en soi le germe de son propre bonheur, avec celui de la volupté. La mauvaise disposition, ou le dérangement des organes nous empêche d´en profiter; cependant je pense que pour être aussi heureux qu´il est possible de le devenir, il n´y a qu´à s´appliquer à connoître son tempérament, ses goûts, ses passions et savoir en faire un bon usage ; agir toujours en conséquence de ce qu´on aime, satisfaire tous ces désirs, est-a-dire tous les caprices de l´imagination ; si ce n´est pas là le bonheur, qu´on me dise donc où il est (LV:122;EV:140).

Em A-S, o pensamento de La Mettrie é diferente do de LV, ele abandona a pretensão de desenvolver uma teoria moral, terefa que reconhece, em Discours Préliminaire, de 1751, ser da competência da Política, e não da Filosofia: “Telle est la Morale; fruit arbitraire de la Politique ...” (DP:11), ou “Puisque la Morale tire son Origine de la Politique ... il s´ensuite qu´elle n´est point l´ouvrage de la Nature, ni par conséquent de la Philosophie...” (DP :11-12). Sua perspectiva, nessas obras, REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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é a elaboração de um pensamento ético, e não de uma moral. O que permanece e se afirma, no entanto, é a idéia de que a imaginação é a faculdade que possibilita ao indivíduo a experiência, além do prazer físico, da volupté, e, (em A-S) das várias formas de bonheur.

5. Conclusão Retomando o questionamento que nos colocamos no início do artigo, sustentamos aqui que na história do homme-machine há uma guinada, um turning point, em que aquela máquina natural, aquele animal frágil, pouco dotado de instintos naturais, que só se comunica por gritos e grunhidos e conhece o mundo intuitivamente, é levado, pelas necessidades concretas de sobrevivência, a se transformar, por alterações em sua imaginação, no homem que pode se socializar, criar e aprender palavras e números e se comunicar pela linguagem, movendo-se no universo representacional, passando a desenvolver conhecimento simbólico e criativo sobre o mundo - torna-se, enfim, um ser social, um cidadão. E, o mais importante, é que este novo homem pensante, socializado, mantém-se, em última instância, enraizado em sua origem maquinal, animal, determinado, em última instância, apesar de toda a sua sofisticação intelectual, pela sua organização física natural e sua necessidade básica de ter prazer. Reconhecemos que esse mesmo turning point corresponde à guinada ética do indivíduo lamettrieano, de homme-machine movido a prazer físico imediato, automático, ao cidadão e ser humano, homem-ainda-machine, capaz, entretanto, de, pelo uso da imaginação, adiar o prazer, experienciar a volupté do amor, ser educado para a virtude, conseguir ter bonheur social, conhecimento, honra, reconhecimento, riqueza, e de voltar seu interesse para seus semelhantes. Entretanto, esse homem insere-se no mundo da cultura tendo como matriz primeira sua condição maquinal que, em última instância, continua a determinar o comportamento, os pensamentos, sentimentos e ações desse homem - ainda - machine civilizado. Em suma, para La Mettrie, por meio da ação da imaginação, o homme-machine se liberta de sua condição de só-máquina, para ser um homem que pode conhecer e ser feliz socialmente, à sua maneira. Isso nos ajuda a entender o que La Mettrie quer dizer quando diz que “a bonheur a sa source dans la liberté de l´esprit” (LV:136). E queremos ampliar isso, sustentando que além da busca da bonheur, também a do conhecimento tem sua fonte na liberdade de espírito. La Mettrie demarca o ‘lugar’ e o ‘momento’ (o que aqui chamamos de turning point) do surgimento do homme-machine socializado e diferenciado dos animais. Este é o ponto em que a ação da imaginação permite que se desenvolva a capacidade de representação mental, da criação de signos e da linguagem, da capacidade de ter volupté e bonheur, da educabilidade e sociabilidade do homme-machine. Portanto, o homme-machine, a partir daí, muda qualitativamente, no que se refere à construção do conhecimento, em sua experiência estética, e ética, e se introduz na dimensão da vida pública, da Política.48 Entretanto, apesar de o homem ser, para La Mettrie, criativo, construtor de conhecimento e de cultura, e de usufruir de volupté e bonheur social, ele continua machine, em alguma medida. A organização, matriz primeira, premier mérite (HM:82) e a imaginação, que possibilitam a educação, second (mérite) (HM:83), e esta, condição socialmente desenvolvida, são os elementos que se articulam e 198

48 Em seu Discours Préliminaire, La Mettrie trata de questões políticas relacionadas à sua ética.

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49 Essas são as razões porque continuamos a chamar o homem lamettrieano de homme-machine, sendo que, agora, o consideramos, além de machine-à-jouir, uma machine-àimaginer.

50 EV é uma obra que ensina sobre as possibilidades de exploração das formas de ter prazer na vida amorosa, mas não propõe uma educação moral dos prazeres, como outras que existiam na época, e, sim, uma educação para aprimorar o gozo refinado do prazer.

interferem na constituição e na vida do indivíduo lamettrieano.49 O jogo, nem sempre pacífico, e muitas vezes conflitivo, entre organização e educação, é vivido por cada indivíduo de maneira específica e original, e a faculdade da imaginação tem papel essencial nesse processo. Com efeito, é a imaginação que articula essas duas condições do homme-machine, a orgânica e a cultural. O pensamento de La Mettrie se mostra otimista em relação ao ser humano, com seu homme-machine que se emancipa, cria cultura e se socializa e civiliza, mas, ao mesmo tempo, mantém a postura em relação à determinação maquinal da vida do indivíduo, tensão que aparece em todos os aspectos de sua filosofia. A educação, para ele, não é suficiente para transformar radicalmente o homem e a sociedade, embora seja muito importante na mudança de alguns indivíduos, pouco na de outros, e ineficaz em indivíduos mal organizados, pois é a organização física que permite ou não que o indivíduo possa ser educado socialmente. De qualquer modo, La Mettrie mostra a importância de se desenvolver a volupté, que, embora exista como potencial, no homme-machine, graças ao sentimento de bem-estar de que são suscetíveis nossos órgãos, e às possibilidades de uso da faculdade da imaginação, precisa ser valorizada e aprimorada, pela educação. A educação de que fala La Mettrie não é calcada no remorso, e sim no desenvolvimento da volupté, ou prazer refinado, no amor, que deve estar presente na construção do conhecimento, na criação artística e nas relações sociais e afetivas, na busca da bonheur, enfim. A educação voluptuosa deve fazer parte da experiência do indivíduo. L´école50 de la volupté, em La Mettrie, é a escola que educa a máquina, que promove o início de sua emancipação da condição natural, animal, física, à condição social e cultural. E o sentimento que impera no nível da volupté é o amor, que inclui o gozo do prazer sexual, não só no nível físico, mas no simbólico. O pensamento de La Mettrie, que compreende que o indivíduo socializado se transforma, de apenas máquina que goza o prazer, no indivíduo socializável, que pode amar, ter volupté, conhecer e ter bonheur em sociedade, nos mostra que a vida do indivíduo socializado não se resume à necessidade de ter prazer para sobreviver, mas, graças ao desenvolvimento da faculdade da imaginação, inclui a arte de ter prazer (l´art de jouir) e a arte de viver.

BIBLIOGRAFIA Obras de La Mettrie LA METTRIE, J. O. Oeuvres Philosophiques Paris: Librairie Arthème Fayard, 1987. vols. I. LA METTRIE, J. O. Discours sur le Bonheur. Paris: L´Arche Éditeur, 2000. 112 páginas. Edições críticas de obras de La Mettrie ASSOUN, P. L. (Ed.) LA METTRIE L´Homme-Machine, L´Anti-Robot. Paris: Editions Denoël Gonthier, 1981. GUERREIRO F (Introdução e notas) LA METTRIE, J.O. O Homem-Máquina. Tradução Antônio Carvalho. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. THOMSON, A. (Ed.). LA METTRIE: De La Volupté, Anti-Sénèque ou Le Souverais Bien, L´École de la Volupté, Système D`Épicure. Paris :Les Éditions Desjonquères, 1996. THOMSON, A. (Ed.) LA METTRIE: Machine Man and Other Writings. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1996.

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Obras sobre La Mettrie FALVEY, J. The aesthetics of La Mettrie, In: Studies on Voltaire, v. 87 , 1972. LEDUC-FAYETTE, D. La Mettrie et le labyrinthe de l´homme. In Revue Philosophique, n. 3, p. 343-364, 1980. ROUANET, S. P. O homem-máquina hoje. In: NOVAES, A. (Org.). O Homem-Máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 37-64. VARTANIAN, A. La Mettrie et la science. Corpus, Revue de Philosophie – La Mettrie, n. 5/6, 1987, pp. 53-62.

*Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino é professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília - UnB.

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CINEMA

ENTRE SILÊNCIOS E ESPERAS: APROXIMANDO-SE DO MUNDO FEMININO TUNISIANO ATRAVÉS DOS FILMES DE MOUFIDA TLATLI1 Soraya Fleischer*

Resumo: Há alguns temas e situações, ligadas ao universo feminino tunisiano, que aparecem recorrentemente em dois filmes da aclamada diretora tunisiana Moufida Tlatli, Os silêncios do palácio e Tempo de espera. Neste artigo, proponho apresentar estas similaridades, à luz de um recortado arsenal conceitual da Antropologia do Corpo e de uma abordagem metodológica que elabora três simbologias do corpo: o corpo individual, o corpo social e o corpo político. Deixar enunciados do senso comum sobre as mulheres árabes e pautar-se por uma maior diversidade de concepções, por exemplo, de corpo, pessoa e saúde, são duas medidas para distanciar-se de análises reducionistas sobre países do Maghreb. PALAVRAS-CHAVE: ANTROPOLOGIA DO CORPO; TUNÍSIA; MOUFIDA TLATLI 1 Agradeço às sugestões da professora Ceres G. Victora e de minha estimada amiga Virginia Leal, que me brindou com a linda citação de Stella Florence.

Abstract: There are some themes and situations, related to the Tunisian female universe, that appear recurrently in two films of the acclaimed Tunisian director Moufida Tlatli, The silences of the palace and The season of men. In this article, I propose to present these similarities in the light of a selected conceptual arsenal of the Anthropology of the Body and within a methodological approach that elaborates three simbologies for the body: the individual body, the social body and the political body. To leave behind common sensical ennunciations about arab women and to follow a greater diversity of conceptions (for example, of body, personhood and health) are two initiatives in order to distance oneself of reducionist analysis about the Maghrebian countries. KEYWORDS: ANTHROPOLOGY OF THE BODY; TUNISIA; MOUFIDA TLATLI

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Cante para mim Cante e lhe darei meus olhos Os homens a explicarão aos djins2 Os que partem contarão aos que chegam A canção é a vida da alma Ao escutarem-na, os doentes se curam A música emenda os corações rompidos Que os médicos não conseguem curar A escuridão da noite ilumina-se aos olhos dos amantes A Tunísia parece ofuscada Sua tristeza se desfaz em raios que abalam o céu e apagam as estrelas. (Música cantada por Alia na festa de noivado de Sarra, Os silêncios do palácio)

2 Criaturas mitológicas, estranhas e maravilhosas das lendas árabes. “espíritos invisíveis que vivem na Terra e, acredita-se, que podem entrar ou tomar como possessão o corpo de uma pessoa” (Messina, 1988: 41). Os dois filmes são em árabe e as legendas, em português.

Eles foram para o mar Faz três dias que os espero Foram para o mar pescar Mas em vez de fisgarem peixes voltaram com três sereias. (Música cantada pelas mulheres enquanto enxaguam a henna dos cabelos no Mar Mediterrâneo, Tempo de espera)

Há alguns temas e situações, ligadas ao universo feminino tunisiano, que aparecem recorrentemente em dois filmes da aclamada diretora Moufida Tlatli, Os silêncios do palácio (Tlatli, 1994) e Tempo de espera (Tlatli, 2000). Neste artigo, pretendo apresentar estas similaridades, à luz de um recortado arsenal conceitual da Antropologia do Corpo e da Saúde, com um duplo intuito. Primeiro, tomar uma obra de arte como uma possível base empírica sobre a sociedade que se pretende conhecer e, segundo, testar a aplicabilidade deste arsenal conceitual para um outro contexto sociocultural. Há, no Brasil, uma escassez generalizada de bibliografia na área das Ciências Humanas sobre o Oriente Médio, o que repercute no pequeno número de pesquisadores, linhas de pesquisa e centros de estudos sobre o tema. Uma aproximação via o cinema é uma opção para driblar esta lacuna e fornecer uma fonte alternativa de informação e inspiração. Um filme, assim como um romance, poesia ou música, pode apresentar uma realidade, assim como uma ante-sala se presta a uma visita. Um primeiro contato com uma cultura, por meio de biografias, ficcionais ou não, permite conhecê-la pelo viés do depoimento, do sentimento, da experiência. Um filme, por exemplo, permite que o observador acione sua própria sensibilidade a fim de conhecer o outro. Este primeiro encontro com a alteridade acontece de forma mais espontânea, semelhante, mesmo que modestamente, ao que acontece no cotidiano. Assim, num primeiro encontro, ao invés de ler sobre uma pessoa, convive-se com ela num bar, parque ou fila de banco. É isso também o que permite um filme: aproximar-se de uma cultura via as emoções e percepções do visitante. Com as imagens dos filmes, deixo a Tunísia entrar pelos sentidos, antes que adentre por construções mentais como conceitos e categorias. 202

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Contudo, mais do que um vestíbulo, um filme permite, pela natureza plástica e concreta das imagens, a observação de outros dados, a rigor transmitidos de forma limitada pelo veículo da palavra. A aproximação acontece por outras linguagens que não a escrita, tão comum no meio acadêmico. Assim, vemos os contornos dos corpos, as fisionomias, as formas de adorno, os movimentos de músculos, olhares e tecidos, a decoração das casas e cômodos, as cores das peles, das comidas, das flores. A imagem oferece muitas outras informações. Por fim, apesar de ficcionais, acredito que os dos dois filmes analisados aqui sirvam à uma aproximação da cultura tunisiana. Há práticas bastante repetidas que indicam tanto a opção narrativa da diretora quanto a proximidade com a realidade social do país retratado. Sigo estas pistas. Primeiro, apresento rapidamente a trajetória profissional da diretora e uma sinopse da história de cada película. Depois, discuto três blocos de idéias a respeito das personagens femininas e seus corpos. Por fim, amalgamo estes ingredientes com o intuito de orientar minha observação dos mundos femininos tunisianos.

1. A diretora e seus filmes Moufida Tlatli nasceu na Tunísia, mais precisamente na cidade de Sidi Bou Said, hoje proeminente referência turística. O jornalista Peter Lennon descreve a época na qual ela cresceu, a partir da perspectiva feminina:

3 As citações em inglês e francês foram traduzidas livremente pela autora.

Filha da geração Bourguiba, cresceu sob a influência do presidente tunisiano que ganhou a independêcia da França em 1957 e introduziu um regime secular com uma série de leis que, em teoria, catapultaram as mulheres tunisianas do século XIV ao século XX. Neste regime, a poligamia foi ilegalizada; mulheres poderiam processar seus maridos adúlteros; o véu passou a ser opcional; as mulheres poderiam trabalhar com médicas, advogadas e até motoristas de carros – um grande tema nos países árabes. O processo foi levado adiante por seu sucessor, o presidente Ben Ali (Lennon, 2001).3

Depois, ela se casou com um conterrâneo e teve duas filhas. Deixou-as com a mãe enquanto foi estudar em Paris e, em 1968, formou-se no conceituado Institut des Hautes Etudes Cinématographiques (IDHEC). Ela foi responsável pela montagem dos mais recentes e renomados filmes árabes. Apesar da falta de apoio público tunisiano ao cinema, “uma nova geração de produtores especialistas poderosos emergiu nos anos 1980 e 1990” (Armes, 2000, p. 203). E Tlatli compõe esta geração: Os cineastas tunisianos se mostraram sensíveis a seus públicos. Na última década, eles trataram de temas geralmente tidos como tabu no cinema árabe, como sexualidade, divórcio e até abuso sexual infantil, e eles têm sido encorajados pelo continuado interesse demonstrado pelos públicos locais (Armes, 2000, p. 204).

Em 1993, lança Os silêncios do palácio, seu filme de estréia como diretora, que é “um dos seis importantes filmes realizados por diretoras na Tunísia” (Armes, 2000, p. 204). O filme foi aclamado e premiado pela Câmera D’Or e pelos Festivais de Cinema de Cannes, Istambul e Toronto. Em 2000, chega ao público REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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seu segundo filme, Tempo de espera que recebeu vários prêmios no Festival de Cinema de Língua Francesa de Namur, na Bélgica. Antes de passar à análise dos filmes, cabe apresentar ligeiramente uma descrição dos filmes. Em Os silêncios do palácio,4 em meio aos inflamados conflitos em prol da independência da Tunísia, que finalmente culminou em 1957, no interior de um palácio aristocrático na capital, adolesce, com todas as inquietações que são próprias da idade, uma garota chamada Alia. Filha de Khedija, uma das criadas do palácio, a protagonista se esforça para compreender as complexidades que se escondem por trás de pesadas cortinas de hierarquia, ostentação e decoro que caracterizam os andares mais altos do palácio. Nas dependências do suntuoso palácio, além de sua mãe, há outras criadas: Hadda, a criada mais antiga e mãe de Houssine, Habiba com seu filho ainda guri, Fella, jovem e sensual habituée dos quartos dos beis,5 Mroubia, que espera ansiosa por um pretendente, Apple, uma criada anã, e Chemchouma, a empregada mais ácida e crítica do grupo. No “andar de cima”, há duas famílias centradas nas figuras de dois proeminentes príncipes: Sid Ali e Si Bechir. Sid Ali é casado com Jneina, que se esforça, em vão, por lhe dar como filho, de preferência, um menino. Bechir e Memia são os pais de Selim e Sarra (que nasceu no mesmo dia em que Alia e torna-se sua melhor amiga). Jneina e Memia, assim como toda a corte, reconhecem e desaprovam silenciosamente os encontros de seus maridos com as criadas. Há uma suspeita velada de que Sid Ali seja o pai de Alia. As mulheres, criadas e aristocratas, vivem reclusas dentro do palácio. As criadas não vêem ou conhecem homens que poderiam tornar-se seus esposos e pais legítimos de seus filhos. Um homem, porém, entra no palácio e ganha o coração de Alia. Em meio ao turbilhão político que assola a Tunísia nos fins da década de 50, Houssine hospeda Lofti no andar da criadagem, a fim de escondê-lo das perseguições políticas. Além de liderança nacionalista, Lofti era o professor de Sarra e Selim. O tutor seduz Alia, quando esta era ainda adolescente, e leva-lhe embora do palácio logo depois que sua mãe sucumbe a um mal fadado aborto e que a revolução pela independência logra êxito. Depois de 10 anos, Sid Ali, um dos mais queridos beis do palácio, morre e Alia retorna para o seu velório. Nesta ocasião, ela está noiva e grávida de Lofti. Ao reencontrar Sarra, Jneina e Hadda e transitar pelos espaços que testemunharam os primeiros 15 anos de sua vida, Alia rememora momentos marcantes vividos com sua mãe, as outras serviçais e a nobreza. Depois, em 2000, Tlatli lança seu segundo filme, Tempo de espera (La saison des hommes, o título da versão em francês). No início deste século, temos Aïcha, em seus cinqüenta e tantos anos. Ela foi casada com Saïd e têm três filhos, Meriem, Emna e Aziz. As moças já são adultas, a primeira é casada com um médico, chamado Sami, e a segunda é violinista. Aziz é ainda criança e sofre de autismo. Vivem confortavelmente em Tunis, a capital deste pequeno país com, atualmente, quase 9 milhões de habitantes. Mas, crescentes, as crises do filho caçula fazem com que Aïcha decida retornar à Djerba, ilha na costa leste da Tunísia, de onde é originalmente. Ela acredita que lá o filho encontrará paz para contornar suas crises. Zeineb, irmã de Said, torna-se amiga e confidente de Aïcha desde que esta entrou para a família. Mora com Aïcha em Tunis e também decide acompanhá-la à Djerba. Meriem e Emna se juntam ao grupo, cada uma por motivos particulares, por uma temporada. Meriem deixa o marido na capital, com quem é incapaz de consumar o casamento. Emna, amante do maestro da orquestra, acredita que a distância temporária ajudará a convencê-lo em deixar a esposa e os filhos para ficar com ela. Said desaprova esta mudança da ex-mulher, 204

4 Daqui em diante, por motivos de praticidade, usarei as siglas OSDP e TDE para os filmes Os silêncios do palácio e Tempo de espera, respectivamente.

5 Os beis foram os príncipes que governaram o país até sua independência em 1957, quando assume Habib Bourguiba , que fica no poder até 1987. Neste ano, por meio de eleições (teoricamente) diretas, assume Zine al’Abidine Ben ‘Ali, presidente no poder até os dias atuais.

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acreditando que o tratamento médico na capital é o melhor para o filho doente. O grande drama desta ilha é que lá quase inexistem homens. Todos eles partem para trabalhar nos mercados da capital e deixam suas esposas esperando pela visita anual, que acontece a cada ciclo de 11 meses. É exatamente assim que começa a vida conjugal de Aïcha. Ao casar-se, Said vai trabalhar em Tunis e deixa a jovem esposa sob os cuidados dos sogros. Até o nascimento de Aziz, Aïcha foi zelada por Ommi e Ali, pais de Said. Ommi, além de sogra, era irmã da mãe de Aïcha – revelando a prática comum de casamento entre primos. Mas, durante esta época, Aïcha não foi a única nora nesta grande casa: lá moravam também, junto com seus filhos pequenos, Zohra, casada com Silmane, irmão de Said, Fatma casada com o segundo irmão de Said, e Zeineb, irmã de Said. O filme revela o presente e o passado de Aïcha, quando morava com a sogra e quando já está divorciada. Assim, as lembranças de Aïcha em TDE e de Alia em OSDP, narradas nos dois filmes, provocam uma inevitável revisão de suas trajetórias.

2. Os três corpos Os temas que aparecem nos dois filmes serão agrupados em esferas de relações que têm, como referência central, as mulheres protagonistas, e que seguem, como abordagem metodológica, três simbologias do corpo. Estas simbologias se assemelham à proposta de Nancy Scheper-Hughes e Margaret Lock: No primeiro e, talvez, mais auto-evidente nível, está o corpo individual, compreendido no senso fenomenológico da experiência vivida do body-self. Nós podemos razoavelmente assumir que todas as pessoas compartilham ao menos algum senso intuitivo do self encorporado como existindo separadamente de outros corpos individuais (Mauss, 1985 [1938]). (...) No segundo nível de análise, está o corpo social, que se refere aos usos representacionais do corpo como um símbolo natural com o qual pensar natureza, sociedade e cultura, como Mary Douglas (1970) sugeriu. (...) No terceiro nível de análise, está o corpo político, que se refere à regulação, à inspeção e ao controle dos corpos (individuais e coletivos) na reprodução e sexualidade, no trabalho e no lazer, na doença e em outras formas de desvio e diferença humana. Há muitos tipos de polity, desde a anarquia acéfala de sociedades “simples” e coletoras, (...) até chefaturas, monarquias, oligarquias, democracias e os modernos estados totalitários. Em todas estas polities, a estabilidade do corpo político repousa na sua habilidade em regular as populações (o corpo social) e em disciplinar os corpos individuais (1987, p. 7-8).

Para meu propósito aqui, o que ambas autoras consideram, em primeiro lugar, como “corpo individual” será desenvolvido com base na relação das protagonistas com seus próprios corpos. Em segundo lugar, o “corpo social” será discutido a partir das relações amistosas e conflituosas entre estas mulheres, pois isto servirá para uma aproximação de valores estruturais da cultura em questão. E,em terceiro lugar, a partir de um paralelo entre estas mulheres e seus variados parceiros (maridos, amantes, namorados, noivos) com a situação nacional da Tunísia, é possível vislumbrar um “corpo político”. Apesar de haver muitos REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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elementos para análise, opto por priorizar aqueles que se referem às construções destes três corpos. Um estado específico do corpo passa a ser um eficiente atalho para chegar à lógica explicativa do mundo porque fala de elementos estruturais e anteriores que fundam a visão de mundo de um grupo como um todo. Os usos do corpo e suas respectivas enfermidades podem ser tidos como um sistema cultural (Kleinman, 1980) tão útil quanto a religião, o parentesco ou a política para subsidiar o empreendimento antropológico.

3. Corpo individual: a biologia como limite ou superação Ambos os filmes, apresentam eventos bastante ligados à sua natureza biológica. Contudo, dirigindo um olhar mais detido, é possível notar que estes eventos não se restringem ao seu substrato biológico porque têm seus significados também tecidos cuidadosamente na esfera dos valores do grupo. A diretora opta por priorizar estes eventos como as experiências que constroem as histórias de vida destas mulheres. Três eventos marcantes nos dois filmes serão comentados nesta seção: perda da virgindade, procriação e aborto. Em uma das primeiras cenas de OSDP, Alia está ajudando as outras mulheres a tingir algodão quando pára repentinamente e sai correndo em disparada. No quarto, Alia pega um pequeno pano branco e deixa a cena novamente aos solavancos. Ela se retira para um “quarto de bagunça” – onde sempre se exilará quando o mundo se tornar perplexo demais. Causa do desatino de Alia: sua primeira menstruação. A câmera se fecha sobre sua mão que segura uma calcinha manchada de vermelho. Alia mudara de estado ou, ao menos, entrava em um estado ambíguo (perfil que lhe fica marcado por todo o filme). Quando a mãe lhe reencontra, explica: “Acontece com todas as moças, assim como o Ramadã. A partir de agora, não deixe ninguém se aproximar de você, se não, estará perdida”. Claro que “ninguém” significa todo e qualquer homem.6 Aqui, Khedija deixa clara, de uma só vez, a natureza biológica e simbólica do fenômeno. Fenômeno universal que indica a maturidade reprodutiva de todas as mulheres e que, naquele contexto, torna Alia altamente vulnerável. Isto é, perder a virgindade antes do casamento é correr o risco de ser mãe solteira, condição moralmente condenável. Este cenário seria agravado se o pai fosse um dos homens do palácio que jamais assumiria a paternidade (como acontecera com Khedija e tantas outras criadas). Em TDE, as irmãs Emna e Meriem têm, respectivamente, cerca de 10 e 12 anos. No caminho de volta da escola, passam pela ruína de um palácio e resolvem apostar uma corrida até sua saída. Se perdem uma da outra e, sozinha, Meriem é atacada por um jovem rapaz que tenta estuprá-la. Outro jovem, passando pelo lugar, vê a cena e salva Meriem. Em casa, na ausência da mãe, a avó paterna, Ommi, as recebe. A avó estranha o avental rasgado de Meriem. Imediatamente, com a ajuda da criada Mahbouba, Ommi imobiliza a menina sobre a cama e se certifica de sua virgindade. Mesmo não tendo sido violada, a idéia é que Meriem foi maculada simbolicamente e isso lhe proíbe de transitar livremente pelo espaço social. A partir daí, a primeira restrição, segundo a avó, é freqüentar a escola. A atenção sobre a virgindade de Alia (OSDP) e Meriem (TDE) indica como este é o principal valor imputado à uma moça solteira. E, assim, durante esta fase da vida, é sobre seu hímen que recai toda a vigília da família, já que a integridade 206

6 “A vagina [é] socialmente construída em objeto sagrado e, portanto, submetida, como demonstra a análise durkheimiana, a regras estritas de esquivança ou de acesso, que determinam muito rigorosamente as condições do contato consagrado, isto é, os agentes, momentos e atos legítimos ou, pelo contrário, profanadores” (Bourdieu, 1999: 25).

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desta membrana equivale à integridade da honra da família: “As mulheres (...) são portadoras da honra familiar, (...), assim, elas devem aparecer, diante dos olhos da sociedade, no mais lindo e perfeito estado” (Toubia, 1988, p. 98). Aqui, cumprir as prescrições é dever de todos os membros do grupo a fim de sustentar e reproduzir-se. Moufida Tlatli, auto-definida como uma cineasta-feminista, explica o valor da virgindade no país: Desde a adolescência, eu fui arremetida pelo silêncio das mulheres árabes. Um silêncio doloroso que eu não compreendia. Quando chega à idade da puberdade, a moça árabe se vê observada pela preocupação de sua família e seu meio. Ela se torna um objeto a ser casado o mais rápido possível. Se ela perdia sua virgindade antes do casamento, ela se desonraria. E ela desonraria os seus. O mais atroz é que todas estas ameaças permanecem dentro do não-dito. E a moça vive sua puberdade de forma dramática (Tlatli apud Genin, 2000).

O foco da sexualidade é diferente conforme a fase da vida: solteira, a moça deve ser virgem e, ao casar, deve gerar filhos, principalmente meninos. A maternidade é presença central nos filmes sem, contudo, ser valorada uniformemente: os filhos, que parecem inevitáveis, são dádivas dentro do casamento e fardos fora ou distante dele. Assim, o modelo a ser seguido é aquele ilustrado por Memia, esposa de Bechir, um dos beis proeminentes do palácio em OSDP. Primeiro, Memia é casada oficialmente e, segundo, ela tem um filho primogênito e uma filha caçula – a ordem ideal para uma prole. Os problemas surgem, prioritariamente, de três estados “anômalos” que contradizem estas regras – mãe solteira, esposa infértil ou mãe apenas de meninas. Vejamos alguns exemplos. Khedija, e as outras criadas do palácio (OSDP), sofrem por conceber e criar crianças de forma solitária. O estigma não se acentua apenas pelo fato destas mulheres não terem um marido, pai de seu filho e provedor do lar. Mas também pelo fato de ser impossível reconhecer uma paternidade que foi consumada em circunstâncias ilegítimas como o adultério e/ou o estupro e porque “o abismo social é amplo demais” (Armes, 2000, p. 208). Ainda em OSDP, Jneina, esposa do príncipe Sid Ali, tem sua infertilidade conhecida publicamente e, por isso, sua posição hierárquica desafiada. Alguns personagens insinuam que Sid Ali procuraria as criadas (principalmente Khedija) justamente pelo fato de Jneina ser incapaz de lhe dar filhos. Em TDE, Aïcha não queria mais do que suas duas filhas, que nasceram de partos muito complicados. Mas ela é constrangida pelo marido, pela sogra e pela própria mãe a gerar um filho. O trabalho de Víctora mostra como a gravidez é tratada publicamente, como acontece nos filmes: Assim como muitos outros aspectos da vida compartilhada dos moradores das vilas, a gravidez é também um estado “público”, no sentido de que muitas pessoas – parentes, vizinhos – se envolvem, opinam, aconselham e fazem previsões sobre o futuro do parto e sobre o bebê que vai nascer (1999, p. 17).

A maternidade é solitária nos dois filmes. Em OSDP, os filhos das criadas têm a paternidade oficial ignorada. Não há pais, apenas suposições veladas que de nada servem para legar sobrenome, história e afeto aos filhos. Já em TDE, também há o abandono paterno mas, ironicamente, agravado pela sua condição legítima. Os homens da ilha de Djerba migram para trabalhar na capital e REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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na Europa. Alguns voltam de férias anuais, outros nunca mais aparecem. Os laços entre pais e filhos tornam-se crescentemente frágeis com a distância e o tempo. Apesar dos exemplos desastrosos, há ainda a permanência do ideal de paternidade. Quando Alia vai até o palácio na ocasião do enterro de Sid Ali, ouve de Hadda, a criada-mór que ainda trabalhava para os príncipes, o que se espera de um pai. “Um pai é suor, dor e alegria. Uma vida inteira. Cuidado diário”. É só com base neste ideal é possível que as criadas do palácio e as mulheres da ilha digam, ao reconfortar as filhas, “Eu sou seu pai e sua mãe”. Esta maternidade sem a presença paterna, ao contrário de significar autosuficiência, é um peso físico e moral para estas mulheres. Controlar a reprodução torna-se uma necessidade real e assim as personagens, acionando práticas anti-conceptivas e abortivas, desnaturalizam a maternidade. Criadas estupradas em OSDP e jovens independentes em TDE definem seu futuro reprodutivo. As primeiras, por falta de escolha, lançam mão de abortos, e as segundas, por opção, adotam métodos anticoncepcionais. E assim, teoricamente, a gravidez é uma opção, viável somente quando há condições para sua realização. Na impossibilidade de assumir uma gestação, o aborto é uma opção acionada. Em ambos os filmes, o aborto é prática recorrente, explicitada ou não, tida como uma “estratégia contraceptiva” (Leal e Lewgoy, 1995b). Khedija, para realizar um aborto, primeiro desfere pancadas em seu ventre. Em seguida, toma um líquido quente, escuro, de gosto desagradável, produzido por uma profusão de ervas e preparado por Cherifa (espécie de curandeira especialmente convocada para resolver o problema).7 Depois, no momento crítico, as suas companheiras de cozinha se avizinham da cama e limpam-lhe o suor da fronte, aquecem-lhe os pés, cantam baixinho para acalmar-lhe. Em vão, Khedija agoniza com as contrações forçadas e uma intensa hemorragia lhe tira a vida. Alia é um contraponto mais atual da realidade vivida pela sua mãe. Ela nunca se casou oficialmente com Lofti apesar de coabitar com ele. Ao engravidar, ele insiste no aborto já que, pelas circunstâncias informais da união, não poderá assumir propriamente a criança. Alia é sancionada socialmente assim como sua mãe, como confidencia a Lofti, “Tenho medo dos vizinhos que olham o tempo todo”. Alia lança mão de pílulas abortivas. Estes dois exemplos de OSDP mostram que, com o tempo, as técnicas abortivas se modernizam e a prática tende a ser mais solitária do que coletiva. Mas a fundamental mudança, em relação ao tempo da mãe, é Alia questionar a prática e ter a abertura para comentar sua angústia com o parceiro e negociar uma solução: “Um aborto é doloroso. É parte de mim que me abandona. Quero ficar com ele”. A própria diretora explica esta inflexão de destinos: A evolução das mentalidades é muito lenta. Este é o tema do meu filme. Eu mostro quatro gerações: as velhas serviçais, Khedija, Alia e o bebê que ela carrega. Ao final do filme, Alia se encontra na mesma situação que sua mãe. Mas ela faz um movimento de revolta: ela se recusa a abortar. Ela será uma mãe solteira, o que é extremamente corajoso em 1956! (Tlatli apud Génin, 2000).

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7 Curiosamente, práticas muito semelhantes, as “chapoeiradas”, são usadas por mulheres de grupos populares em Porto Alegre, como Leal descreve: “As chapoeiradas (...) se baseiam nos princípios simpáticos de magia, onde o semelhante age sobre o semelhante, reafirmando o sentido de “tirar”. (...) As chapoeiradas, que são uma combinação de diversas ervas, erva-de-passarinho, canela, folha de bergamoteira ou fervura de vinho, caldo de feijão e cachaça – as receitas e os procedimentos variam em diferentes regiões – têm em comum o fato de que são ministradas quentes (fervendo), associadas a alimentos fortes e medicamentos também classificados como fortes, comprados em farmácia. (...) Fundamentalmente, o líquido ingerido [deve ser] capaz de desfazer o nódulo da procriação deve ser forte e quente. (...) Há, em aguns casos, a orientação específica de que a chapoeirada deva ser repugnante, isto é, deixar primeiro que a mistura entre em estado de decomposição, sinalizando, pode-se dizer, uma variação do forte, no sentido de ter o poder de causar náuseas, fazer vomitar, jogar pra fora, expelir. (...) As chapoeiradas devem ser ingeridas pela manhã, quando a paciente está em jejum e esta deverá permanecer em jejum, em resguardo, coberta e extremamente aquecida (com um tijolo quente ou bolsa de água quente nos pés) até que a “menstruação desça”. Associado à elaboração e à ingestão da chapoeirada, há sempre algum tipo de procedimento mágico: a reza de uma benzedeira, palavras que devem ser pronunciadas em uma seqüência exata, algum elemento único e de difícil acesso, como a unha de um determinado animal, a própria minúcia da receita que é sempre considerada “especial” e de domínio restrito” (1995a: 24-25). E também Farmer encontrou ingredientes e práticas parecidas no Haiti (1988: 72).

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Já em TDE, não há cenas de aborto mas a prática fica subentendida. Por um lado, creio que a gravidez pode ter sido interrompida como estratégia para contornar adultérios esporádicos, com os homens que restavam em Djerba. Por outro lado, a técnica talvez tenha sido acionada para remediar uma gravidez não planejada, seja pela mulher que já tem filhos suficientes ou em razão de relações sexuais não necessariamente desejadas com o marido em sua visita anual. O aborto como “estratégia contraceptiva” permite que, de algum modo, a mulher exerça controle sobre o próprio corpo. Se, por um lado, é possível exercer esta autonomia, as personagens nem sempre apaziguam a relação com o próprio corpo como demonstra Khedija, em meio a toda a crise que a segunda gravidez indesejada lhe provoca, “Eu me odeio. Tudo me enoja. Detesto meu corpo!”. O corpo pode levar à submissão ou à superação desse sujeito.

4. Corpo social: cooperação mais do que competição entre mulheres Os filmes analisados mostram como uma das estratégias para atenuar, e até enfrentar, um sistema patriarcal rígido é uma prática cooperativa cotidiana entre as mulheres. As protagonistas não se resignam com as famílias fragmentadas que as embalam. De forma ativa, elas criam suas próprias famílias centradas em outras mulheres (filhas, cunhadas, colegas). Entre estas mulheres tunisianas, a solidariedade será ilustrada com dois tipos de eventos recorrentes: o cuidado coletivo dos corpos e o trato de doenças e perturbações. Contudo, há também conflitos que pretendo mostrar, em OSDP, entre as mulheres de classes distintas e, em TDE, entre as mulheres de gerações diferentes.

4.1. O cuidado dos corpos

8 O banho toma uma dimensão especial nas culturas magrebinas. Em sua pesquisa no Marrocos, Buitelaar mostra que os hammâns, onde os banhos públicos acontecem, ganham importância destacada porque as mulheres têm a chance de “1) [criar e manter] redes sociais; 2) [participar] na comunidade de muçulmanos ao aderir às noções islâmicas de pureza e purificação; e 3) [marcar] transições que as mulheres vivem de uma fase de vida a outra, através de rituais específicos de banho” (1998: 119).

No OSDP e TDE, vemos as mulheres realizando diversas atividades coordenada e coletivamente: na cozinha (preparando as refeições enquanto cantarolam em uníssono), nas salas de jantar e de visitas (servindo as refeições dos nobres ou animando suas freqüentes festas), nos pátios (varrendo extensões de chão de pedra, lavando trouxas enormes de roupa), nos quartos (se embelezando, aplacando doenças, realizando partos, provocando abortos). E há parcos momentos de relaxamento em que se reúnem para massagear os couros cabeludos, aplicar hena nas longas mechas escuras, espalhar cremes para suavizar a pele, pinçar as sobrancelhas, maquiar olhos, pálpebras e maçãs do rosto, depilar pêlos inconvenientes com mel, dar e receber banhos.8 Em todos estes momentos, além de valorizarem seus corpos para os encontros sociais e amorosos, estas mulheres estão conversando sobre seus relacionamentos, suas concepções de estética, a situação do país. A convivência socializa, afina discursos, consolida os laços de irmandade. Além disso, seus corpos se avizinham livre e intimamente: toques, cafunés e carinhos acontecem sem cerimônia. Cuidar do corpo da outra é cuidar do grupo como um todo. A intenção é mantê-lo íntegro, disciplinado e apresentável. Gallagher (1983) mostra que a Tunísia, como os países mediterrânicos em geral, foi muito influenciada pela biomedicina européia, sobretudo por interesses políticos e econômicos. No entanto, os filmes mostram que os problemas de saú-

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de destas mulheres são resolvidos em casa ou com a ajuda de terapeutas tradicionais. Isto se deve a alguns fatores. Primeiro, apesar do patrulhamento legal deste fenômeno de ocidentalização, “médicos muçulmanos nativos perderam seu status legal mas não sua clientela” (Gallagher, 1983, p. 101). Segundo, em pesquisa realizada na península de Cape Bom, na Tunísia, Tomiche observou que “muitas pessoas ainda são céticas em relação à medicina moderna” e que “as pessoas com doenças crônicas ou enfermidades ginecológicas raramente usam os serviços [de saúde]” (1971, p. 21). E, terceiro, Haddad arremata: Em quase todos estes países [Sudão, Tunísia, Egito, Jordânia e Líbano], a política de saúde ainda toma partido em favor dos modelos médicos ocidentais, custosos, curativos e hightech, que não podem ser sustentados. Orçamentos limitados são gastos em hospitais modernos (“torres de marfim”) nas áreas urbanas, que (quando funcionam) servem apenas a uma pequena porcentagem da população (Haddad, 1989, p. 29).

Quer dizer, apesar da forte tendência à medicalização ocidental, os médicos e médicas tradicionais continuam a existir e atuar. E, apesar desta incisiva entrada ocidental se dar, principalmente, nos centros urbanos, refletindo o percurso dos recursos destinados à saúde, hospitais ainda provocam suspeita quanto à sua eficácia. Os filmes mostram que, nas castas inferiores e nas áreas rurais, os partos eram realizados em casa. Não aparecem partos hospitalares, que devem ser mais comuns hoje em dia, principalmente, como apontado acima por Haddad, nos centros urbanos. Há participação ativa de um coletivo de mulheres. Colegas de trabalho (como no palácio), filhas, cunhadas, concunhadas, sogras e parteiras ajudavam a parturiente limpando-lhe o suor do rosto, sussurando-lhe palavras de incentivo ao ouvido, fazendo massagens abdominais, limpando os líquidos que encharcavam a cama, cantando ladainhas e preces. Assim, nos dois filmes, as mulheres do andar de baixo do palácio e as mulheres da ilha de Djerba, em momentos críticos, demandam a presença de uma uma mulher negra, na casa dos 40 anos, vestida de tecidos coloridos e estampados e com mãos e pensamentos ágeis. É possível que sejam mulheres de países vizinhos (como Mali, Mauritânia ou Sudão). Em TDE, ela era uma criada que já acompanhava a família há anos. Em OSDP, ela não é vista diariamente entre as outras criadas e talvez pertença ao mundo externo do palácio e seja convocada esporadicamente para resolver questões críticas. Assim, Cherifa (OSDP) e Mahbouba (TDE) são as maestrinas dos partos, abortos e adoecimentos graves. Preparam e administram chás, xaropes, pomadas, compressas, massagens. Entoam cantigas e preces. Acompanham, da cabeceira da cama, a mulher sofredora. O interessante é que essas curandeiras não apenas atentam para o corpo físico de suas pacientes. Além das substâncias que são aplicadas, elas envolvem as outras personagens que constituem a cena da aflição (mães, irmãs, filhas, avós, cunhadas, amigas). Lhes dirigem tarefas no processo de cura, lhes conferem responsabilidades para a convalescença que seguirá ao tratamento, lhes ouvem os relatos que contextualizam o problema. De resto, estas mulheres zelam cotidianamente pela saúde uma da outra. Uma frase, repetida em diferentes momentos de TDE por Fatma, Meriem e Zeineb, ilustra uma perturbação comum e muito eloquente. As três mulheres passam mal e anunciam resumidamente seus sintomas com a frase “Dói o corpo inteiro”. 210

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9 É possível, neste momento, arriscar uma comparação. Assim como os exemplos encontrados entre as mulheres tunisianas, uma escritora brasileira também comunica a complexidade semântica da “dor”: “Deitada na maca, o médico perguntou forçando os dedos contra meu peito: ‘Onde dói?’. Franzi a testa, arreganhei os dentes e desci. Desci vertiginosamente. Onde dói? Dói meu peito que permanece curvado em pranto. Doem meus ombros que não suportam o peso da saudade. Doem meus ouvidos secos de palavras carinhosas. Doem meus pés que não têm para quem caminhar. Dói meu sexo que não se abriu para o filho. Doem meus olhos que não encontram senão a casa vazia. Dói meu couro cabeludo que não recebe os ungüentos do cafuné. Dói tudo, doutor. Dói simplesmente tudo porque meu corpo não é só essa carne óbvia em cuja massa dedos afundam procurando um nódulo, uma urticária, uma veia estourada. Dói tudo porque em tudo a alma se coloca e alma, doutor, a alma sente sem analgésicos. É claro que eu sei que vai passar, não sou nenhuma ignorante dos mecanismos da vida para, mesmo sob essa dor doída de alma doente, me jogar do décimo segundo andar de um prédio. Sei que vai passar. Minha razão sabe que vai passar. Sei também que o único tratamento recomendado ao meu caso é o tempo. Sei de tudo isso, tudo isso me é claro, mas, por enquanto, por favor, faça essa caridade: não me pergunte onde dói” (Florence, 2000: 19).

Ao ouvir o sintoma, abre-se também uma escuta sensível para os problemas que afligem o grupo como um todo. O sintoma, mesmo que sentido individualmente, é expressão de desordem maior. O corpo de Fatma “dói” porque seu marido adiou a chegada e é difícil manter um casamento por tanto tempo sem sua presença. O corpo de Meriem “dói” porque a virgindade torna-se fardo pesado demais se uma responsabilidade unilateralmente feminina. E, o corpo de Zeineb “dói” porque as tensões entre parentes consangüíneos e afins, arranjo necessário em razão da ausência dos maridos, atingiu uma dimensão insustentável.9 Assim, as mulheres dos filmes deixam claro como o corpo individual tem estreita relação com o corpo social. Uma perturbação serve como metáfora de problemas coletivos. Grosso versus ralo ou aquoso, branco opaco versus claro [ou transparente], forte versus fraco, saudável versus enfermo. As oposições se tornaram um leitmotiv que permeou muitas das entrevistas; como fica claro pelas explanações do curador. Elas se extendem analogicamente do corpo físico ao corpo social (Farmer, 1988, p. 70).

E, assim, também é possível seguir uma analogia aqui. “Doer o corpo inteiro” pode significar que todo o grupo dói, que o sistema inteiro sofre com suas contradições. É uma perturbação que serve, como sugere Farmer, como um “barômetro moral” e, como sugerem Scheper-Hugues e Lock, uma “forma de comunicação” das crises sociais: A doença não é só um evento isolado, nem um encontro desafortunado com a natureza. É uma forma de comunicação – a linguagem dos órgãos – pela qual a natureza, a sociedade e a cultura falam simultaneamente. O corpo individual deve ser visto como o terreno mais imediato e mais próximo de onde as verdades sociais e as contradições sociais são encenadas, assim como um lócus de resistência, criatividade e luta pessoal e social (1987, p. 31, grifo nosso).

E, assim, junto com Duarte (1994 e 1996), fica a proposta de tratar perturbações como índices mais amplos do que apenas significantes biológicos, psicológicos ou somáticos. Podem ser, sem dúvida, físicos, mas, são, sobretudo, morais. Sua etnografia dos nervos ilumina o contexto conceitual em que devemos entender o “doer o corpo inteiro”: Uma implicação muito importante dessa qualidade eminentemente relacional dos nervos é a de compor uma teoria nãopsicologizada do humano. Os nervos são pensados como um meio físico de experiências tanto físicas quanto morais – em perfeita oposição à idéia do psiquismo, concebido para se substituir ao antigo nível moral e estabelecer sobre o físico uma nova hegemonia. Os nervos são uma típica representação relacional da pessoa, enquanto o psiquismo é uma representação individualizada, associável às marcas ideológicas mais amplas da modernidade ocidental (Duarte, 1994, p. 85, grifo nosso).

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Assim como os nervos, “doer o corpo inteiro” implica em complexificar, ampliar e contextualizar a ocorrência de uma perturbação. E Tlatli caminha na mesma direção: As questões que concernem as mulheres são uma luta que levará mais tempo porque você liberta suas mentes, você as envia para a escola, você as educa, elas se tornam médicas, pilotos ou o que você quiser, e seus corpos continuam a sofrer. Talvez não seja sempre o caso: eu não generalizo, eu só falo sobre o que eu conheço. Eu gostaria de ter escolhido [para o filme] o título “Meu corpo dói”, teria sido mais apropriado (Tlatli apud Barlet, 2000).

As mulheres de Djerba mostram que as perturbações nem sempre são curáveis pelo exame e diagnóstico alopata porque implicam esferas além do aparato biológico e exigem outros modelos explanatórios coexistentes. Teitelbaum também lembra que “o tratamento por um médico é uma forma de obter um alívio dos sintomas da doença assim como uma forma de demonstrar aos outroas a gravidade da aflição” (1976, p. 30). O exemplo de Fatma, Meriem e Zeineb ao mesmo tempo que circunscreve a eficácia curativa da medicina, amplia a idéia geral de eficácia curativa: a ação de uma curandeira ou de uma amiga confidente pode passar pela identificação e resolução de conflitos, organização do grupo, reestabelecimento da paz. Nos filmes, a estratégia feminina para lidar com as doenças contrasta com aquela adotada pelos homens. Sobretudo em TDE, situada na década atual, os homens sempre apelam à biomedicina e tendem a associar as causas das perturbações à esfera individual e psíquica do/a paciente. Dois exemplos ilustram estas tendências masculinas. Said sugere que o autismo de Aziz precisa necessariamente de acompanhamento médico e que foi provocado pelo fato de Aïcha ter rejeitado esta gravidez. Um diálogo entre Sami e sua esposa Meriem, que até então não haviam tido uma relação sexual, segue o mesmo padrão. Sami requisita a intervenção médica e atribui uma culpa psicológica ao problema: Sami: Escute, Meriem, sou médico. Precisa consultar um especialista. Meriem: Já consultei um. Foi uma tortura. Mal consegui falar com ele. Fiquei muito envergonhada. Sami: O que ele disse? Meriem: Que precisamos de mais tempo. Sami: Você explicou tudo a ele? Meriem: Eu disse que o problema era comigo, não com você. Por favor, vamos mudar de assunto. Sami: O problema está na sua cabeça.

Os homens de ambos os filmes representam o lado público do casal e da família. São eles que freqüentam e trabalham na rua, no comércio, na política. Por isso, a tendência é que, nesta esfera pública, estejam mais expostos aos valores ocidentais, inclusive com referência ao cuidado da saúde.

4.2. As relações entre as mulheres Já que, para uma compreensão menos reducionista das aflições, é preciso considerar elementos contextuais, em se tratando de culturas relacionais, vale uma 212

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10 Aqui, um comentário se faz necessário. O problema não é a circulação dos beis pelas alcovas de suas criadas, mas sim o desenvolvimento de laços afetivos entre eles. A procura pelas criadas poderia distribuir o assédio masculino e tornar as esposas oficiais menos sobrecarregadas em seu papel sexual. Assim, o adultério serviria como um “anti-concepcional” indireto para as mulheres do primeiro andar.

11 Bazares, mercados, feiras.

nota sobre os conflitos entre as mulheres dos filmes, uma vez que estas desavenças influenciam rotinas e relacionamentos. Em OSDP, forte animosidade é alimentada entre as mulheres do andar de baixo e as do andar de cima. Em TDE, as tensões surgem entre mulheres de gerações diferentes. Ao transgredir os limites das escadas do palácio, mantendo relacionamentos e tendo filhos com os nobres (mesmo que não consentidamente), as criadas insinuam a possibilidade de mobilidade social e ameaçam o lugar das esposas oficiais. Em contrapartida, as senhoras do palácio tentam demarcar as fronteiras entre os andares. Jneina se irrita com o fato do marido conversar com Alia, sempre que se esbarram pelos jardins ou corredores do palácio. Ela dispara a Sid Ali: “Você se afeiçoou demais por elas. Você se rebaixou”. Sugiro que estas fricções são o veículo que o filme toma para evidenciar uma estrutura social acentuadamente hierárquica na Tunísia.10 TDE se passa, em sua maior parte, no passado, dentro da casa chefiada por Ommi, sogra de Aïcha, Zhora e Fatma. É costume o casamento entre primos e a residência uxorilocal. Durante todo o ano, Ommi substitui e zela pela autoridade dos seus filhos, que trabalham nos mercados de Túnis. Apesar de ser uma sociedade dominada por homens, a família é organizada de forma que é responsabilidade da mulher colocar uma menina no caminho familiar aceitável. Mulheres mais velhas, em particular, são delegadas para serem as guardas do portão e as seguranças internas da seção das mulheres. E os homens só precisam manter uma supervisão distante da situação, confiantes de que seus desejos e instruções estão sendo observados (Toubia, 1988, p. 107, grifo nosso).

Ela patrulha as noras para que sejam mulheres ideais: esposa fiel, mãe dedicada e nora prendada. Ommi, sogra e também tia materna de Aïcha, não é autoritária por antipatia; ela é responsável por manter os valores que cimentam a família. O pavor destas mulheres é tornarem-se “empregadas da sogra”, como repetiam sempre durante o filme. Aïcha produz lindos tapetes para abastecer a banca do marido nos souqs11 em Tunis. Na opinião da sogra, além deste não ser um artesanato típico da ilha de Djerba, dispersa Aïcha de suas tarefas dentro da casa. Na opinião de Aïcha, a tapeçaria é um privilegiado espaço de sociabilidade, distração e poesia que ela foi capaz de construir para si mesma. Said fica entre mãe e esposa: Said: Mãe, Aïcha está um pouco cansada. Libere-a das tarefas da casa. Ommi: E a sua cunhada? Isso seria favorecimento. Said: Você saberá convencê-la. Ommi: Tecer tapetes não está previsto. Said: Graças aos tapetes, abrirei um negócio. Ommi: Isso não faz parte das nossas tradições. Aïcha é teimosa, me desobedece. Said: Ela é sua sobrinha. Você a escolheu para mim. Ommi: Mas agora é sua mulher. Explique para ela que, enquanto eu viver, sou eu que dou as ordens.

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Como fica evidente no filme, a situação é ainda mais complexa porque os tapetes que Aïcha produz são o que viabilizam a banca de Said e, conseqüentemente, a casa de Ommi. Assim, os tapetes, tidos como negativos por Ommi, pelo fato de desafiar sua autoridade, são o que mantém toda a estrutura que ela encabeça. E, por um lado, se esta atividade cria um espaço e um tempo de emancipação para a personagem, por outro lado, Aïcha é enredada pelas armadilhas da economia de mercado, pois Said lhe demanda mais e mais peças. Em uma de suas visitas, ele lhe recrimina pois encomendou quatro tapetes e ela só teceu dois. Ela retruca, irônica, “eu só tenho duas mãos”. Extenuada, Aïcha percebe que nem sempre estes novos valores são a saída para sua independência – podem, inclusive, lhe criar novos constrangimentos. *** Antropologia do corpo e da saúde deve ter como premissa a superação de concepções advindas do senso comum e, principalmente de concepções enunciadas pela Biomedicina (dois exemplos centrais desta lógica são o indivíduo como protagonismo principal no teatro humano e o legado cartesiano). Daí, decorrem a hierarquia entre mente e corpo, a psicologização das desordens humanas, a supremacia explicativa do racional e do científico. A Antropologia preza que uma maior diversidade de concepções possam coexistir. Em primeiro lugar, a valorização do indivíduo é apenas uma das formas de se conceber e representar a pessoa. A família e o grupo social também orientam a construção conceitual dos indivíduos. Nos filmes, vemos como um “familismo” tende a pautar as ações dos indivíduos. Daí, toma-se que as desordens sofridas por uma pessoa não são creditadas apenas às disfunções de suas faculdades mentais. Assim, ao invés de uma doença ser explicada somente pelo comportamento e experiência do sofredor, o contexto social em que o evento ocorre – como a autoridade moral da sogra, por exemplo – deve ser considerado também. Essa segunda idéia demanda uma terceira – os estados do corpo (uma dor por todo o corpo, um parto, um ritual de embelzamento), mesmo que sua manifestação seja individual, têm sua origem e significado construídos e interpretados no nível social. Assim, conhecer os valores e as relações entre estas mulheres, tanto no palácio quanto na ilha, tanto as práticas cooperativas quanto as competitivas, é necessário para compreender o contexto onde se desenvolvem as práticas de higiene, embelezamento e saúde que apresentei acima. E, assim, Scheper-Hughes e Lock explicam porque é possível e necessário realizar esta associação entre corpo social e individual: O corpo, como Mary Douglas observou, é um símbolo natural que fornece algumas de nossas mais ricas fontes de metáfora (1970, p. 65). As construções culturais do e sobre o corpo são úteis para sustentar visões particulares da sociedade e das relações sociais. (...) [Nos sistemas etnomédicos não-ocidentais], em resumo, o corpo é visto como um aspecto unitário e integrado do self e das relações sociais. Ele é dependente do e vulnerável aos sentimentos, desejos e ações dos outros, incluindo espíritos e ancestrais mortos. O corpo não é entendido como uma máquina vasta e complexa, mas como um microcosmo do universo (1987, pp. 19 e 21, grifo nosso).

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5. Mulheres e seus parceiros: um atalho para pensar a Tunísia

12 É bom lembrar que Khedija lega à filha este serviço historicamente desvalorizado na sociedade tunisiana. A mãe dançava para a nobreza e a filha cantava. E, “apesar do status de cantora ser tido, ao que parece, tradicionalmente mais alto do que o da dançarina” (Armes, 2000: 209), “as atitudes tradicionais não creditavam as mulheres com a capacidade para sucessos artísticos sérios” (Jones, 1987: 75) e dançarinas (como Khedija), cantoras (como Alia) e instrumentistas (como Emna) estiveram, pelo fato de exporem o corpo e a biografia, associadas a valores contrários ao da família e da discrição, colocando em questão sua reputação moral. 13 O trânsito entre os andares, metáfora para as classes sociais, é ilustrado por uma profusão de portas, janelas, corredores, grades, portões, escadas, fechaduras, cortinas. Estes são artifícios usados pela diretora para ilustrar uma hierarquia que é permeada por possibilidades de transgressão. Os umbrais simbólicos que, apesar de sólidos, permanecem como passagens.

14 Esta canção foi transcrita como epígrafe do presente texto. A mudança de “tom” fica clara nas últimas duas estrofes da canção.

Scheper-Hugues e Lock explicam que “o relacionamento entre os corpos individuais e sociais envolvem mais, no entanto, do que metáforas e representações coletivas do natural e do cultural. Os relacionamentos são também sobre poder e controle” (1987, p. 23). Os dramas vividos pelas mulheres dos filmes, em especial Alia e Emna, servem para se pensar a relação da população com seu país, em duas épocas distintas. Elas ilustram os dilemas que a Tunísia estava enfrentando e como os mesmos repercutiam nos indivíduos. Nos filmes, esboça-se um padrão, “o corpo político se assemelha ao corpo humano, onde o que está ‘dentro’ é bom e tudo que está ‘fora’ é mau” (Scheper-Hugues e Lock, 1987, p. 24). A seguir, mostro que o perigo que vem de fora, no primeiro filme, é a França e, no segundo, a idéia de “modernidade”. As trajetórias de Alia e Emna serão tomadas para ilustrar um paralelismo possível com o país em questão. No caso do OSDP, as mulheres, de ambos os andares, têm relações silenciosas com os homens, acantando suas vontades e decisões sem contestação. A criada Hadda, anos depois, explica para Alia que “a norma dentro do palácio era o silêncio”. Sexo, consentido ou não, filhos, desejados ou não – neste cenário, as mulheres, e sobretudo, as criadas, não podiam emitir suas opiniões e desejos. O filme permite que se emparelhe o valor patriarcal, que emudece as mulheres, com a França, que, de 1882 a 1957, controlou a Tunísia. As notícias do mundo exterior vinham do rádio e, num episódio, enquanto preparam em conjunto o chá abortivo para Khedija, as mulheres ouvem que a situação política é tão tensa que foi imposto um toque de recolher em Tunis e Habiba emenda, “Nossas vidas são toques de recolher”. A câmera passa lentamente a Chemchouma, que dispara, alheia às ervas, condimentos e receitas sobre a mesa: “Não temos nada a temer. Não pertenço a mim mesma. Quero sair para a rua nua, descalça e correr sem ser detida. Gritar bem alto. Só as balas podem me calar ao me atravessarem, como se eu fosse um crivo”. A cena se congela, os olhares tornam-se cúmplices: mulheres sedentas pela liberdade do corpo, da biografia e do país. Alia, em sua inquietude típica da adolescência, procura brechas para participar do cotidiano e das festas do primeiro andar.12 Este trânsito é observado e reprimido tanto por sua mãe quanto pelas nobiliárias.13 Mesmo assim, Alia desalinha, entre avanços e recuos, esta costura apertada. Lofti, na época em que se esforçava por conquistá-la, lhe define: “Você é como o país: indecisa. Uma palavra a assusta. As coisas vão mudar. Uma nova era nos aguarda”. Na década de 1950, a Tunísia também estava ambígua – dependente economicamente da França mas desejosa pela própria autonomia política. Alia, assim como os rebeldes nacionalistas, apesar da coragem para desafiar a ordem vigente, vacilava incerta sobre o que propor em substituição: “Alia, sob pedido de Sarra, canta em honra ao noivado de sua amiga. Bruscamente, ela entoa uma canção patriótica proibida. Escandalizados, todos os convidados, delegação francesa e beis no poder, deixam o salão” (Génin, 2000).14 No caso do TDE, as mulheres esperam pela continuidade de seus casamentos. Por mais que implorem aos maridos, estes se recusam a levá-las para viver em Túnis. Eles justificam que a rotina de comércio é extenuante e inadequada para uma mulher. O sofrimento feminino é visível: saudade, responsabilidade total pelos filhos, medo de traição e abandono, autoridade sufocante da sogra.

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Num banho coletivo e lúdico no mar Mediterrâneo, Zohra, em um momento reflexivo, dimensiona o quadro: Ficam em Túnis tanto tempo. Onze meses. Como podemos agüentar isso? Nós murchamos. Casaram-se com a venda. Sinto falta dos gritos dele e do seu cheiro forte também. O ronco dele me faz falta. Se viessem no inverno, pelo menos nos esquentariam. Semeiam tudo em um mês e torcem por uma boa colheita.

Se, em OSDP, Alia desafia os silêncios circulando e cantando nas festas do andar de cima, em TDE, Emna desafia as esperas tomando iniciativas independentes dos julgamentos de seu amante e de sua família. Emna prioriza sua profissão como violinista, mantém uma relação clandestina com um homem casado, circula autonomamente de carro no meio da noite, dança em uma boate de turistas. Rejeita dois pilares morais importantes, a virgindade e o matrimônio, ao disparar pro amante: “Detesto o casamento. Me dá nojo. Recuso homem que me quer selada”. A trajetória de Emna dá continuidade histórica à de Alia. Emna recusa os valores centrados na família, na honra, na maternidade. Mas não consegue administrar tal discurso em seus relacionamentos. Novamente, paralelos podem ser traçados entre as experiências vividas por estas mulheres e a Tunísia. Depois da turbulência da independência, o país procura agora um ponto de equilíbrio entre a tradição e a modernidade. Como tantos outros terceiromundistas, o país se esforça por acomodar os desafios globais – desemprego, emigração laboral, turismo de massa – dentre suas especificidades culturais. Em termos de direitos, a Tunísia vem assinando todos os protocolos da ONU em favor das mulheres. Porém, o que os analistas externos e internos observam é que tais direitos não saem do papel. Muito antes que outros países, a partir do Code du Statut Personnel de la Femme, de 1965, a Tunísia instituiu o direito da mulher escolher seu marido, optar pelo aborto e recusar a poligamia. Contudo, no dia-a-dia, mulheres estão apanhando e sendo presas por se organizarem em associações; com base em interpretações radicais do Alcorão, estão sendo destinadas ao trabalho doméstico; estão sendo violentamente reprimidas com tortura, cárcere e morte ao emitir críticas ao regime (ao ponto da ONG Repórteres sem Fronteiras comparar a Tunísia à China e ao Iraque em matéria de liberdade de expressão, Khayyâm, 2003). De um lado, este quadro pode ser entendido pela distância que existe entre as regras e as práticas. “O problema é que muitas das mulheres têm, por muito tempo, ignorado as vantagens das leis. Dentro da família tunisiana, a tradição é mais importante do que a lei. Em teoria, a mulher está liberada. Em sua mente, ela não está” (Tlatli apud Génin, 2000). Por outro lado, esta distância se sustenta por forças políticas vigentes atualmente no país. “A técnica de Ben Ali consiste em estabelecer direitos para serem violados e em proclamar a democracia para mascarar seu regime totalitário. O país é esquizofrênico” (Cherif apud Khayyâm, 2003, grifos meus) relata a ativista feminista Khadija Cherif, 52 anos, porta-voz da ONG Association Tunisienne des Femmes Démocrates (ATFD). 216

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6. Comentários finais Aparentemente, OSDP termina de forma mais pessimista do que TDE. Alia sozinha, com um filho sem pai, reproduzindo o caminho de sua mãe. Mas seu último pensamento dirigido à mãe indica como, retornando ao passado e identificando suas raízes, seu lugar no mundo finalmente fica claro: Achei que Lofti podia me salvar. Não fui salva. Como você, eu sofri, eu suei. Como você, eu vivi em pecado. Minha vida foi uma série de abortos. Nunca consegui me expressar. Minhas canções eram natimortas. E até mesmo a criança em mim Lofti quer que eu aborte. Esta criança sinto que se enraizou em mim. Ela me traz de volta à vida, de volta à você. Espero que seja uma menina. Seu nome será Khedija (grifo nosso).

O drama de Alia era compreender sua origem. Quando ela se liberta do modelo patriarcal, percebe que sua mãe e suas companheiras do andar de baixo lhe garantiram uma família, mesmo que não ortodoxa. Quando ela passa de um indivíduo solitário e angustiado para uma pessoa amparada e contextualizada, sua ambigüidade se atenua. No caso de Emna, o dilema entre suas demandas e as de sua família não se resolve. E por isso TDE indica, pelo menos por enquanto, um futuro menos promissor à Tunísia: ainda patina entre estes dois quadros referenciais, sem, contudo, conseguir ultrapassar este desafio, como mostra a própria diretora do filme: O tempo resolverá as coisas porque não é sobre leis, é sobre a mudança de mentalidades. As coisas não mudarão nas mentes dos homens e das mulheres com o movimento de uma varinha de condão e de leis. Eu mostro o combate de dentro. Eu sei que as mulheres são emancipadas. Elas estão começando a se fazer perguntas, mas não é assim para todas. A divisão entre os educados e os não educados, a cidade e o interior, a elite e a gente mais modesta... Há uma outra batalha que precisa ser lutada: a opinião dos outros que julgam cada gesto. Tudo isso é parte da Tunísia atual, é complexo. Não é uma linha reta. Eu trabalho entre as linhas (Tlatli apud Barlet, 2000).

E o desafio se estende para os pesquisadores. É preciso despirmo-nos de nossa perspectiva ocidental para compreender, por exemplo, que o fato destas mulheres silenciarem, na presença, e esperarem, na ausência dos homens, não é, necessariamente, uma expressão de subalternidade; que os antagonismos travados entre as mulheres não consistem de competição e ciúmes mas, antes, expressão de estruturas que as suplantam; que acatar as exigências de uma sogra não inviabiliza a existência de espaços de expressão, relaxamento e humor. Ao longo dos filmes, tanto Khedija quanto Aïcha reagem às filhas com o seguinte desabafo: “Ela me atormenta com suas perguntas!”. Alia e Emna servem de espelhos para suas mães. As perguntas forçam-nas a rememorar a própria vida, a refletir sobre as perplexidades que vivenciam, a cogitar a possibilidade de futuros diferentes. São oportunidades de estranhamento. Acredito que a diretora também teve a pretensão de levantar espelhos para suas diferentes platéias. Deixar os enunciados do senso comum sobre as mulheres árabes e procurar pautarse por uma maior diversidade de concepções, por exemplo, de corpo, pessoa e saúde, são medidas para distanciar-se de análises chapadas entre dicotomias, reREVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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ducionismos e essencialismos. A realidade social é mais complexa e interessante do que as ideologias querem nos fazer acreditar. O mundo árabe, um país como a Tunísia, é mais do que simplesmente “machista”, “fundamentalista”, “atrasado”. Os conflitos e as soluções que o país enfrenta hoje podem ser altamente inspiradores para gerar modelos de compreensão mais tolerantes. Por isso que se torna importante partir dos valores e aspirações da própria cultura em questão ao invés de importar modelos salvacionistas. Lila Abu-Lughod é uma antropóloga que trabalha há anos com mulheres no Oriente Médio. Recentemente, ela publicou um artigo em que registra sua irritação pelo fato da “guerra ao terrorismo” ser justificada, entre outras coisas, pela necessidade de salvar e/ou libertar as mulheres afegãs (no contexto analisado no artigo) ou qualquer outro grupo de mulheres árabes. Ela acredita que esta é uma estratégia usada para evitar as causas estruturais, de natureza histórico-política, dos conflitos e opressões sociais. Ao invés de explanações políticas e históricas, os experts estavam sendo demandados a dar explanações religio-culturais. Ao invés de questões que talvez levassem à exploração das interconexões globais, nos foram oferecidas aquelas que funcionavam para artificialmente dividir o mundo em esferas separadas – recriando uma geografia imaginativa do Ocidente versus o Oriente, nós versus os muçulmanos. (...) Os projetos de salvar outras mulheres dependem e reforçam um senso de superioridade dos ocidentais, uma forma de arrogância que precisa ser desafiada (2002, pp. 784 e 789).

Adotar uma postura salvacionista é pressupor que o outro está em desvantagem e que precisa da ajuda. Abu-Lughod nos convoca a deixar este olhar que, ao desejar proteger, subestima, e a encontrar os significados intrínsecos que podem nos aproximar, de fato, de uma cultura. Ao invés de concluir precipitadamente que as mulheres de Djerba e do palácio têm suas vidas tolhidas de forma irreversível por um modelo patriarcal e misógino, é interessante olhar com mais atenção, como fez a jornalista Ilona Halberstadt: “Dentro de uma casa tradicional em um mundo contemporâneo em transformação, as opções são vislumbradas; (…) Tlatli nos mostra os espaços que as mulheres criam para si mesmas” (2001, grifo nosso). Uma proposta neste sentido foi, portanto, delineada no presente artigo. Parti justamente das experiências vividas por essas mulheres – ao nível do corpo individual, do corpo social e do corpo político – para compreender algumas das metáforas fílmicas que nos transladam aos mundos femininos tunisianos. Fluidos, membranas, patologias passam de simples dados fisiológicos a ricos cenários que aglutinam e comunicam significados culturais. Há um íntimo paralelo entre estes “corpos”: “Esta experiência física do corpo, sempre modificada pelas categorias sociais pelas quais ela é conhecida, sustenta uma visão particular da sociedade” (Douglas, 1970, p. 93). E, ao remeter a temas clássicos da Antropologia, como a relação entre o indivíduo e a sociedade e entre a natureza e a cultura, este estudo de caso ganha relevância e fôlego e cumpre sua tarefa momentânea, isto é, gerar curiosidade por conhecer mais do mundo feminino tunisiano.

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*Soraya Fleischer é Doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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CINEMA

EISENSTEIN E O TEATRO Raquel de Almeida Prado*

Resumo: Nesse texto procuramos destacar a experiência teatral na formação artística de Eisenstein. De fato, embora freqüentemente desdenhada pelos estudiosos do cinema, é nessa fase pré-cinematográfica que Eisenstein descobre, além da revolução política, a revolução nas artes. Os movimentos de vanguarda detonam os limites do drama burguês e conduzem a dramaturgia moderna na direção do teatro épico. É nesse ambiente de intensa fermentação artística que o homem de teatro, Serguei Eisenstein, dá o salto definitivo que o leva dos palcos do agit-prop à criação de uma nova linguagem cinematográfica. PALAVRAS-CHAVE: EISENSTEIN; AVANT-GARDE; TEATRO ÉPICO; LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA Abstract: In this text, we highlight Eisenstein’s theatrical experience in his artistic development. To be sure, it is in this pre-revolutionarily period (which is often ignored by students of the cinema) that he discovered not only revolution in politics, but also in the arts. The avant-garde movements break the limits of bourgeois drama and lead modern dramaturgy towards the epic theatre. It is in this setting of intense artistic fermentation that the man of the theatre, Serguei Eisenstein, finds his way from the stages of agit-prop to the creation of a new cinematographic language. KEYWORDS: EISENSTEIN; AVANT-GARDE; EPICAL THEATRE; CINEMATOGRAPHIC LANGUAGE

Muitos se esquecem que, embora tendo passado à história como um dos primeiros e maiores cineastas e teóricos do cinema, a primeira paixão de Eisenstein, a que o levou a largar a carreira de engenheiro, foi o teatro. Paixão pelo teatro, mas, antes de tudo, paixão revolucionária, que o faz alistar-se no Exército Vermelho e colocar sua criatividade a serviço do teatro de propaganda do exército – como desenhista e decorador dos trens que percorrem o interior russo (1919-1920), divulgando a causa revolucionária. Sua atuação no teatro se prolonga no seu envolvimento com o Proletkult (a partir de 1920), orgão cultural comprometido com a revolução bolchevique, embora independente do partido, com o qual mantém relações freqüentemente tensas - nem Lênin nem Trotski viam com muitos bons olhos aquela experimentação cultural que queria romper radicalmente com a tradição cultural burguesa. Começam cedo, portanto, suas desavenças com a linha oficial do partido e, assim como Maiakovski, Meyerhold, e tantos outros, sofrerá as conseqüências de sua independência, quando, como se sabe, alguns anos REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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mais tarde, esses mesmos artistas revolucionários serão perseguidos, fuzilados, ou entrarão no ostracismo com o endurecimento stalinista e o expurgo de toda arte desviante do modelo realista-socialista. Mas, enquanto isso não acontece, eles fazem de Moscou e de Petrogrado centros particularmente fecundos da arte de vanguarda.1 A grande virada de 1917 foi, portanto, definitiva para a formação de Eisenstein, que descobre, não só a revolução política mas também a revolução das artes, no caso do teatro, ao assistir uma montagem de Meyerhold da Mascarada de Lermontóv. Meyerhold tinha-se desvinculado da escola de Stanislavski desde 1902, e, a essa altura, já amadurecera seu próprio método de interpretação, fundado nos principios da biomecânica das ações corporais, em oposição direta aos princípios naturalistas e ao realismo psicológico do Teatro de Arte de Moscou. É interessante ver que já em textos de 1914, ao refletir sobre a técnica dos movimentos cênicos, Meyerhold cita, como exemplo, “a gesticulação e os jogos fisionômicos do cinema e da pantomina”.2 Da pantomina e do cinema mudo, bem entendido. Mas toda sua geração estava descobrindo, nesse começo do século, não só o cinema, como o music-hall, o circo, o jazz, as lutas de boxe. Na Alemanha, Piscator e, depois, Brecht; na Rússia, Meyerhold no teatro, Eisenstein no cinema, todos seguem o mesmo fluxo de renovação das artes, em que os elementos díspares das manifestações mais populares da arte e do entretenimento se misturam com um certo ideal oriental, abrindo diversas frentes de combate ao teatro burguês. A influência dos manifestos futuristas, com o seu gosto pelo movimento, pela velocidade, pela agressividade, vai florescer entre os artistas russos através do construtivismo, movimento que rompe com Marinetti e suas tendências fascistas, sem perder a vitalidade que o futurismo trouxera à vanguarda. O cinema, arte mecânica, industrial, tem tudo para seduzir os jovens artistas revolucionários, e, de fato, é colocado a serviço da renovação teatral de inúmeras formas. As projeções de curtas seqüências inseridas nos espetáculos de Piscator servem como recurso “épico”, que Brecht virá a arrolar entre tantos outros efeitos de “distanciamento”. Meyerhold chega a realizar dois filmes (O retrato de Dorian Gray, 1915, e O homem forte, 1916, ambos perdidos). Maiakovski manifesta-se sucessivamente com desprezo e com exaltação a respeito do cinema, mas nenhum deles, em momento algum, chega a considerá-lo como possível forma de arte autônoma. Assim como a imagem cinematográfica é desprezada pela sua subordinação servil à aparência do mundo real, ela também é valorizada justamente por libertar o teatro de todo o naturalismo, ao cumprir perfeitamente esta função figurativa. Os homens de teatro da época servem-se do cinema, embora não compreendam todo o seu potencial. Em todo caso, é num ambiente de fermentação artística, em que as diversas artes se renovam no contato umas com as outras, que Eisenstein vive sua experiência teatral que o leva do palco à fábrica e da fábrica ao cinema. Desde 1917 Eisenstein dedica-se às atividades teatrais. Começa esboçando cenários, figurinos e maquiagem para comédias italianas de máscaras. Em 1918, alista-se como voluntário no Exército Vermelho e torna-se técnico no Segundo Corpo de Engenheiros do Exército, onde passa a acumular uma intensa atividade teatral com suas atribuições principais. Ao longo das sucessivas transferências de um front para outro, além de esboçar a cenografia do Mistério Bufo de Maiakóvski (1918), passa a tomar parte ativa nas encenações do Clube comunista de Vojega como diretor, cenógrafo e ator (1919). Exercita-se desenhando cenários e figurinos para autos medievais e peças de Shakespeare, sem parar de ler literatura 222

1 Cf. EISENSTEIN, S. Memórias imorais, uma autobiografia, Companhia das Letras, São Paulo, 1987.

2 CONRADO, A. (traduçao, apresentação e organização) O teatro de Meyerhold, p. 107, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1969.

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3 Cf. ALBÉRA, F. Eisenstein e o construtivismo russo, Cosac & Naify, São Paulo, 2002.

4 Idem, ibidem.

teatral. Transferido para Velikie Luki participa do clube cultural-educativo local onde fica conhecendo K.S. Elisiev, pintor e homem de teatro. Em Velikie Luki encena várias peças e nunca deixa de esboçar cenários e figurinos para os mais variados textos. Em novembro de 1920 é nomeado diretor da Seção de Arte do Proletkult, Primeiro Teatro Operário; ocupa-se com a seção de cenografia, dá aulas e exerce até funções como administrador. Em 1921, estréia espetáculo para o mundo artístico de Moscou numa direção conjunta com V. Smichlaiev, no Proletkult, dá aulas de teatro para os soldados do Exército Vermelho e registra-se, em setembro, como aluno das Oficinas Superiores de Direção de V. E. Meyerhold. Quatro anos depois da descoberta do teatro, através da Mascarada do grande diretor, eis que Eisenstein finalmente chega a trabalhar com aquele que ele virá a considerar, até o fim da vida, como seu grande mestre e mentor. Mas a convivência com o grande homem não é das mais fáceis e, embora chegue a ser seu assistente de direção de A Morte de Tarelkin em 1922, acaba se afastando, assumindo a direção da equipe ambulante do Proletkult de Moscou, junto com Tretiakov. Chegamos finalmente ao ano de 1923, em que Eisenstein dirige um fragmento filmado (março), O diário de Glumov, exibido como atração especial da peça de Ostrovski, Suficiente simplicidade em todo homem sério (mais tarde incluído no documentário de Dziga Vertov, Cinema verdade da primavera). Em 2 de maio, apresenta trecho da peça em noite de gala no Teatro Bolshoi, em comemoração do vigésimo quinto ano das atividades teatrais de Meyerhold. Mas Eisenstein já está se tornando, ele mesmo, uma celebridade em Moscou. Nesse mesmo mês, publica o artigo Montagem de Atrações, na LEF, em novembro estréia a peça de Tretiakov, Está ouvindo, Moscou?, e começa a trabalhar em Máscaras de Gás, do mesmo autor. Em sua parceria, Trétiakov e Eisenstein mantêm um certo vínculo com a estética da Fábrica do Ator Excêntrico (FEKS), de Petrogrado, cujo lema é : “o teatro de hoje, e a própria vida devem tomar o exemplo de três coisas : a América, o Bulevar e a Máquina”. Tretiakov, contudo, não deixa de destacar a importância do teatro como “instrumento de ação de classe”, sem a qual o “‘construtivismo’ e o ‘excentrismo’ tornam-se procedimentos que acrescentam algo ‘picante’ a qualquer espetáculo de direita”.3 Na fábrica, portanto, não é só o conceito futurista do FEKS, a materialidade construtivista dos dispositivos cênicos de Meyerhold, mas a matéria crua e bruta da luta de classes que Eisenstein e Trétiakov vão trabalhar com Máscaras de Gás. Partindo de um fait divers da época (vazamento em uma usina e operários sem proteção por descuido da direção da usina), rompem com o enquadramento palco-platéia e encenam seu espetáculo na Fábrica de Gás de Moscou. “Assim, o lugar de representação confundia-se com o lugar figurado ; a materialidade, a importância do material atingia assim o seu ápice”. E o seu limite. Diz Eisenstein : em Máscaras de Gás, a turbina e o plano de fundo da fábrica apagavam os últimos restos de maquiagem e figurino do teatro (...) No meio das máquinas reais, os acessórios tornaram-se ridículos. A encenação era incompatível com o odor acre do gás. Nossa miserável plataforma desaparecia o tempo todo entre as ‘plataformas reais’ do trabalho dos operários. (...) Tendo chegado a esse ponto crítico, nosso teatro terminou e tornou-se cinema.4

Aqui talvez valha a pena deixar um pouco de lado a biografia artística de Eisenstein e, a partir dessa sua ruptura histórica com o espaço teatral, pensarmos REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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o movimento que o leva, em suas aulas de direção no Instituto de Cinematografia (Gik – por volta de 1928), a conduzir seus alunos, de uma montagem imaginária num espaço hipotético e indefinido para a ruptura com as quatro paredes no salto altamente simbólico do personagem Dessalines, para fora de cena. Falo aqui das aulas estenografadas pelo assistente de Eisenstein, Valdimir B. Nizni.5 Num estilo que lembra muito os clássicos de Stanislavski (Criação de um Papel, Construção do Personagem etc...), Vladimir Nizna relata as aulas com as intervenções e contribuições dos alunos, o diálogo com o mestre, numa verdadeira representação do processo criativo de um diretor. Partindo, não de um texto dramático, mas de um mero argumento (um episódio da história de Dessalines, líder haitiano que se revolta contra o ocupante francês: o herói é convidado para um jantar que se revela uma armadilha traiçoeira montada pelos oficiais franceses), Eisenstein vai construindo o roteiro baseado nas exigências espaciais que poderiam ser as de um palco italiano, modificando a cenografia em função das exigências da ação, distribuindo os grupos de personagens e o personagem principal numa composição que reflita a correlação de forças, até o momento de clímax, em que Dessalines, acuado pelos franceses, salta sobre a longa mesa posta, mostra alguma resistência, e é obrigado a fugir pela janela, saltando da mesa para fora de cena. Mas como mostrar esse salto da maneira mais eficaz e com toda a carga dramática que se pode esperar? A saída do herói, deixando os franceses como donos do palco aparece mais como anti-clímax, uma fuga sem glória. A solução é simples : basta mostrar o salto de Dessalines do lado de fora, em primeiro plano, deixando os franceses ao fundo. Ou seja, basta romper com a composição cênica teatral e fazer uma tomada externa, recuperada pela montagem numa direção cinematográfica. A mise-en-cadre sucede e enriquece a mera mise-en-place, completando a passagem da mise-en-scène teatral para a mise-enscène do cineasta. Passei por cima, aqui, de toda a sutileza da composição cênica de Eisenstein, a divisão da ação em unidades de enquadramentos e em nós de montagem. Tudo aquilo, enfim, que é propriamente cinematográfico e que se acrescenta a uma concepção que poderia, até certo ponto, ser realizada num palco italiano, justamente para mostrar que a técnica da montagem se acrescenta nas aulas do professor de cinema a uma base teatral. Enfim, fica claro que Eisenstein não renega sua formação teatral, mas a completa e a ultrapassa, na criação de uma nova linguagem. Há quem valorize, talvez em demasia, a influência de D.W. Griffith sobre o cinema de Eisenstein. Herbert Marshall, por exemplo, diz ter chegado a projetar filmes dos dois cineastas simultâneamente e conferido indubitavelmente tal influência (sem deixar de notar, en passant, o quanto “a apresentação da luta de classes por um sulista arquiconservador e aristocrático, como Griffith, era muito mais verdadeira que aquela delineada por Eisenstein, dialético e revolucionário marxista”).6 Não sabemos exatamente quais foram as cenas e quais filmes projetados, em paralelo, que revelaram esse débito do russo para com o americano, mas é fato que Eisenstein se refere com freqüência e com todo o respeito ao diretor de Intolerância. Mas é também interessante lembrar que, ao atribuir a Griffith o papel de grande pioneiro da técnica da montagem, Eisenstein destaca o papel da ação paralela como princípio fundador da montagem em Griffith. E de onde Griffith teria tirado essa noção? De Dickens. O próprio Griffith, diz Eisenstein, se refere a Dickens. Mas tem mais : não foi só a ação paralela que Griffith tirou de Dickens, mas também caracteres, ambientes, temática... E qual foi, pergunta 224

5 EISENSTEIN,S., El montaje escenico., trad. Margherita Pavia, Grupo Editorial Gaceta, Mexico, 1994.

6 No prefácio de Memórias imorais, p.11.

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7 EISENSTEIN, S., Cinematismo, trad. Luis Sepulveda, Editorial Quetzal, Buenos Aires, 1982, pp. 31-47.

8 EISENSTEIN, S. Memórias imorais, pp. 226-227.

Eisenstein, o significado dos romances de Dickens para o seu tempo? Para seus leitores ? “A resposta é uma só : o mesmo que, atualmente, para as mesmas camadas sociais significa... o cinema”.7 Esse achado brilhante de Eisenstein, da continuidade não apenas formal mas também sócio-cultural entre o romance realista do século dezenove e o cinema em formação é amplamente explorado por ele em vários escritos teóricos em toda a sua conceitualização da narrativa cinematográfica. Ele mesmo parece estar aprendendo a fazer cinema numa escola literária. Grande leitor, conhece os realistas franceses, ingleses, os contemporâbneos russos... e acompanha a evolução da narrativa romanesca até a descoberta do fluxo da consciência de James Joyce. Esse parentesco próximo do romance com o cinema costuma ser aceito com tranqüilidade por cineastas e estudiosos do cinema que se arrepiam diante de qualquer insinuação de que este tenha qualquer coisa a ver com o teatro. E, de fato, o drama mais propriamente dramático parece muito distante das experiências mais ousadas da arte da montagem cinematográfica, embora algumas obras mais ousadas do cinema não estejam muito distantes desse teatro entre quatro paredes. Mas é importante lembrar que, para Eisenstein, seu grande mentor não foi, absolutamente, Griffith, nem nenhum outro cineasta, mas Meyerhold, a quem declara uma verdadeira veneração. Declarações que poderiam, inclusive, parecer exageradas se o próprio Eisenstein não se desse o trabalho de um breve exercício psicanalítico, quando, numa passagem de suas memórias em que fala do seu encontro com Stefan Zweig, se detém em comentar a relação tensa e, por que não dizer, edípica, de Freud com seus discípulos. Assim também, entre Stanislavski e Meyerhold estabelece-se um vínculo que se reproduz entre ele mesmo, Eisenstein, e Meyerhold.8 De sua última peça, Máscaras de Gás, para seu primeiro filme de fato, A Greve, o passo é curto (março: estréia da peça, novembro: montagem do filme) e, por assim dizer, emblemático. De fato, é numa fábrica que um ciclo se fecha, e é numa fábrica que outro se abre. Uma fábrica em greve, no caso, afinal a revolução está em marcha. Mas, sobretudo, é a indústria, o mundo moderno que se atravessa, como pedra no caminho de um artista cênico. Esse é um episódio da história do teatro que ganha um particular relevo se analisado do ponto de vista da Teoria do Drama Moderno de Peter Szondi. Um exemplo da dramaturgia moderna, ancorada num momento histórico revolucionário, assumidamente épica, encontra na Companhia de Gás de Moscou um ponto de não-retorno. É uma característica bem coerente com o projeto da vanguarda não só a recusa do palco italiano, mas também do espaço propriamente teatral. O teatro deve ir para as ruas, para as praças, para a fábrica, esse é o mote. Quando o mundo, ou seja, a realidade social e política contemporânea não irrompem no teatro em projeções de cinema, ou, metaforicamente, como um ringue de boxe instalado no meio da platéia, é o teatro que vai atrás da realidade, do espaço mítico da fábrica, onde os heróis, o operário, ou mais precisamente, a massa dos trabalhadores trava sua luta cotidiana. O resultado dessa incursão é a constatação de um fiasco construtivista. Há uma incompatibilidade de proporção entre o teatro operário e o cenário real da fábrica. Os pequenos atores se perdem no meio das

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máquinas monumentais. Fiasco teatral e, talvez, mais do que isso, prefiguração de um fiasco histórico, mas, com certeza, esse é o momento em que Eisenstein se dá conta de que um ciclo se fecha e de que seu futuro enquanto artista só pode estar no cinema.

*Raquel de Almeida Prado realiza atualmente pós-doutorado na USP, pesquisando a formação da linguagem cinematográfica, e é bolsista Fapesp.

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IDÉIAS

TRAGICIDADE OU O DIONÍSIACO E O APOLÍNEO NOS PRIMEIROS ENSAIOS DE ALBERT CAMUS1 Rita Paiva*

1 Este artigo faz parte de uma pesquisa de pós-doutoramento, desenvolvida no Depto. de Filosofia da Universidade de São Paulo, sob o título Absurdo e expressão literária em Camus e Cioran.

Resumo: Neste artigo, a reflexão nietzschiana acerca dos instintos artísticos que prevaleceram na Grécia Antiga vem fundamentar a concepção trágica da vida que permeia O avesso e o direito e Núpcias, que constituem os primeiros ensaios de Albert Camus. Pretende-se, assim, problematizar o modo pelo qual o autor articula o apolíneo e o dionisíaco nesses textos, particularmente, quando tematiza a cesura insuperável entre a consciência e o mundo, ou seja, o absurdo de existir. PALAVRAS-CHAVES: TRÁGICO; APOLÍNEO; DIONISÍACO Abstract: In this article, a Nietzschean reflection about the artistic instincts that prevailed in ancient Greece serves as a basis for the tragic conception of life permeating Betwixt and Between and Nuptials, Albert Camus’ first two essays. Thus, the author intends to explore the problem of the manner in which Camus articulates Apollonian and Dionysian impulses in those texts, particularly when he discusses the issue of the insurmountable break between consciousness and the world, i.e. the absurdity of existence. KEYWORDS: TRAGICALNESS; APOLLONIAN; DIONYSIAN IMPULSES

1. A condição humana como veio temático As interrogações imperiosas acerca da conduta necessária para uma vida que se desenrola num panorama brutal e irracional, no qual o homem surge como sujeito absoluto de seus atos, sem que possa eximir-se de sua liberdade, marcarão os ensaios filosóficos de Camus. Sob a perspectiva do autor, a precariedade – ou nossa condição absurda – constitui atributo inalienável do humano e atesta uma discordância insuperável entre a nossa subjetividade e aquilo que comumente entendemos por realidade. Ela decorre fundamentalmente do fato de que os desejos, as construções e as decisões humanas não possuem lastro na natureza do ser. A consciência quer unidade, explicações racionais, solidez da qual emane a felicidade e os significados definitivos, mas o mundo responde com o silêncio e com suas irracionalidades; ele não pode saciar nossa nostalgia do absoluto ou ajustar-se às expectativas de nossas representações. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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A obsessão por coerência e conformidade entre o pensamento e o mundo, que se instaura no âmago do coração humano – ou da psique –, encontra seu primeiro obstáculo na natureza mesma da realidade mundana em que a vida dos homens se inscreve. Mais especificamente: a aventura humana em sua concretude não prima jamais pela univocidade, inversamente, para Camus, a compreensão da vida solicita a assunção das facetas múltiplas e contraditórias que a permeiam. Defini-la em termos unilaterais, elegendo como verdadeiros um ou outro de seus aspectos, sacrificando aqueles que se antagonizam, redunda na impossibilidade de apreender lucidamente as forças antitéticas que coexistem e instauram o cenário de criação e destruição, no qual a vida se traduz. Daí deriva que a postura adotada pelo autor em seus ensaios filosóficos, bem como em sua obra dramática e literária, não seja a de julgar a vida, mas a de assenti-la e amá-la em sua ferocidade, em sua oscilação permanente entre as possibilidades de criação e de ruína. Explicita-se, assim, o viés trágico que nada nega e nada subtrai, com o qual, afinal, Camus lê a condição em que emergem os seres pensantes, esses condenados à morte, lançados ao mundo sem direito a redenções quaisquer, os quais constituem o objeto precípuo de sua obra. Acompanhando a leitura de O avesso e o direito e Núpcias, textos juvenis do autor, veremos que a perspectiva trágica neles inscrita já exprime – ainda que de modo prematuro – uma recusa elementar de toda e qualquer proposta de superação da impotência imanente à condição humana ante a desmesura do mundo. Por outro lado, o lirismo e a poesia peculiares a esses ensaios insinuam que ao homem, em sua precariedade insuperável, resta a possibilidade de transmudar em criação estética as antinomias da realidade que o circunda. Como sustenta Camus em A inteligência e o cadafalso, a expressão artística, mais particularmente a literária, propicia que a arte, num esforço apolíneo, inscreva-se na vida “(...) conferindo ao homem em luta contra seu destino as forças da linguagem” (CAMUS, 2002, p. 22). Nessa senda, se ao homem não cabe a negação das forças vorazes que o ultrapassam e chancelam sua existência, destituindo-a de inteligibilidade, isto não significa que seus horizontes se circunscrevam ao desespero imobilizador; há ainda os recursos da forma e da criação, há ainda a possibilidade da expressão, na qual os abismos desvelam sua virtude dolorosa. Tece-se assim o véu apolíneo que viabilizará a interpretação, a ficcionalização do sentido, o amor à vida. Essa propensão a aceitar e a compreender a simultaneidade da criação e do necessário aniquilamento em todas as manifestações da vida, bem como a insistente asserção de que a sua beleza não pode ser vislumbrada senão a partir da contraposição de forças antitéticas e viscerais, estabelece íntima correlação entre a obra de Camus e o pensamento de F. Nietzsche. Antes de nos debruçarmos mais especificamente sobre os primeiros ensaios do escritor franco-argelino, tentemos situar a idéia de tragicidade no pensamento do filósofo alemão.

2. A sensibilidade trágica sob olhar nietzschiano Refutando visceralmente os registros que acenam com a possibilidade de uma resolução definitiva para as questões da existência, do universo ou da vida humana, Nietzsche assevera que nem a religião, nem a moral, nem a razão científica e iluminista lograriam tal feito. Entre os equívocos modernos, encontra-se o de crer que o progresso tecno-científico, ou seja, a obra da razão, poderia livrar o 228

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homem de seus dilemas viscerais, emancipando-o do sofrimento. Ao alimentar essa expectativa de supressão radical das desditas humanas, em sua variabilidade de formas, os europeus entregavam-se a um niilismo passivo que denega a dimensão trágica da existência e desnudavam, segundo a ótica nietzschiana, sua aversão à vida. De modo geral, a persecução de tais ideais engendra uma apreensão que exacerba alguns dos aspectos da vida em detrimento de outros, obnubilando-os e produzindo uma duplicação do mundo, a qual figura como alternativa imprescindível para que a existência seja suportada. Na contramão de tais estratégias, Nietzsche recusa toda e qualquer representação que, ao interpretar os movimentos vitais, finde por negá-los, suprimindo a virulência das forças que o homem não pode subjugar. Postula, inversamente, que ao homem cumpre assentir o seu trágico destino, qual seja, viver privado do aceno de um absoluto – transcendente ou laico – que o contemple com um horizonte de felicidade sem máculas. Com enorme distanciamento em relação aos valores perseguidos por seus contemporâneos, o filósofo debruça-se, em sua primeira obra, sobre o espírito da Grécia Antiga e suas manifestações culturais, particularmente aquelas que precederam à eclosão do pensamento filosófico; evento que, argumenta ele, instaura a hegemonia da racionalidade lógica sobre todas as outras formas de conhecer, relegando a arte e a ficção à condição de uma interpretação secundária, quando não, pejorativa. Contraditando esse registro, ao mirar a cultura grega, é a estética que adquire relevância em sua análise. Não que a arte passe a ser vislumbrada, sob a sua perspectiva, como um bálsamo que nos brinde com a atribuição de algum tipo de consistência ao nada inelutável sobre o qual existimos, ou que possa solucionar os enigmas inescrutáveis que nos envolvem. Inversamente, vislumbrar uma alternativa possível na estética implica, antes, admitir que somente o ato criador, à medida que forja significados fictícios, mascarando o caos e o sem sentido da existência com o véu da ilusão, ainda que sem denegá-los, pode tornar suportável ou justificar o drama humano. A estética configura, pois, o caminho para a afirmação da vida. Ora, aceitar a existência em sua plenitude, argumenta o filósofo, por um lado exige que admitamos o indeterminado, a voracidade de forças indômitas que incessantemente ameaçam o mundo humano; por outro, impõe o reconhecimento da ausência de respostas para as questões que mortificam a alma, entre elas, o inquirir inútil acerca da razão de ser e existir. Numa palavra, a assunção da vida requer a clarividência quanto à impossibilidade de superar a cesura inelutável entre as aspirações da consciência e a realidade mundana, com sua conjunção de forças antitéticas. Detenhamo-nos com mais acuidade sob a argumentação nietzschiana, de modo que possamos, ulteriormente, compreender a inscrição de seu pensamento nos ensaios de Camus. Em O Nascimento da Tragédia, o filósofo considera que os gregos, privilegiados com uma rara lucidez, foram capazes de olhar o mundo sem recorrer a subterfúgios, recusando-se a solapar a natureza da vida. O cultivo da forma e da medida que singularizou esta cultura, repousava primordialmente sobre uma experiência visceral que pulsava sob a beleza de suas obras. Malgrado a sensibilidade desmesurada para compreender a natureza e para sucumbir ante os seus horrores, ou seja, apesar de uma fecunda capacidade para conhecer a associação entre existência e dor, sobre a qual se ancora a condição humana, os gregos não se deixaram dominar por um pessimismo imobilizador; tampouco perseguiram uma idealização que anulasse a tragicidade de nossa condição. Recusando ambas REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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as versões do niilismo – a ativa e a positiva – foram antes partidários de uma concepção afirmativa da vida, com a radical assunção de suas antinomias. Nesse sentido, essa cultura compreendeu que nenhum dos aspectos da existência deve ser dispensado ou desconsiderado; eles lograram, assevera Nietzsche em Ecce Homo “(...) um dizer Sim sem reservas, ao sofrimento mesmo, à culpa mesma, a tudo o que é estranho e questionável na existência mesmo...” (1986, p. 94). Ao vislumbrar que o acesso à verdade paralisa o agir, os gregos compreenderam que para viver é necessário tecer o véu infindável da ilusão. Destarte, o perigo representado por uma profunda sabedoria acerca das verdades intoleráveis inerentes à existência, ou seja, o espectro do niilismo que conduz à hostilização do viver, foi contornado pela maestria em mascarar o real, em instaurar ficções, enfim, por uma arrebatadora capacidade de criar. Conseqüentemente, a essa cultura não será estranha a antinomia entre os impulsos constitutivos da natureza e da arte, os quais traduzem a simultaneidade da criação e da destruição, quais sejam, o apolíneo e o dionisíaco, respectivamente. O impulso dionisíaco, associa-se à hybris, à ausência de medida, à destruição das formas racionalmente organizadas; professa, pois, a perda da consciência na embriaguez. Este impulso largamente vivenciado nas festividades pertinentes ao mundo antigo, fora das fronteiras gregas, impunha a entrega ao domínio dos instintos mais terríveis e mais cruéis, conduzindo a um estado de selvageria, burlando todos os limites que a lei e a norma representavam. Seguramente, essa experiência do êxtase tinha como correlato necessário a transgressão da cultura e a reincorporação do homem à natureza indiferenciada, propiciando uma espécie de retorno a uma unidade primordial. Este mergulho na ordem natural, viabilizado por uma entrega aos ditames do irracional, revelava a fragilidade e a artificialidade do princípio de individuação pelo qual o homem adentra a cultura e se desnaturaliza. Assinala Deleuze: Dionísio (...) regressa à unidade primitiva, abole o indivíduo, insere-o no grande naufrágio e absorve-o no ser original: assim reproduz a contradição, como a dor da individuação, mas resolve-as num prazer superior, ao fazer-nos participar da superabundância do ser único ou do querer universal (s/d, p. 20).

Destarte, o dionisíaco trazia à tona o prazer insano sugerido pela perda na desmesura, na qual o homem esquece de si, anula sua condição de ser pensante e entrega-se a um gozo alucinado: “Sob a magia do dionisíaco torna a selar-se não apenas o laço de pessoa a pessoa, mas também a natureza alheada, inamistosa ou subjugada volta a celebrar a festa de reconciliação com seu filho perdido” (NIETZSCHE, 2005, p. 31). Não obstante, nessa promessa de felicidade desatinada, com o mergulho em paixões descomunais, em que as interdições ao prazer sexual e à violência, as quais viabilizam a cultura, pulverizam-se, equalizando os homens com os outros seres, deslinda-se também o horror da existência na qual nada persevera, porquanto tudo o que começa a existir começa também a morrer: “Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce precisa estar pronto para um doloroso ocaso (...)” (NIETZSCHE, 2005, p. 102). A rigor, o êxtase dionisíaco implica a supressão momentânea da consciência; o seu retorno, no entanto, advém com uma lucidez aterradora: o absurdo, a inutilidade, a ilusão de todo esforço humano, o extremo pesar em viver, o eclipse do sentido, a ausência de justificativas para perseverar na existência.

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2 Gille Deleuze: “A tragédia é esta reconciliação, esta aliança admirável e precária dominada por Dionísio. Porque na tragédia Dionísio é o fundo do trágico. A única personagem trágica é Dionísio: ‘deus sofredor e glorificado’; o único tema trágico, são os sofrimentos de Dionísio, sofrimentos de individuação, mas reabsorvidos no prazer do ser original; (...) Mas por outro lado, o contributo apolíneo consiste no seguinte: na tragédia, é Apolo que desenvolve o trágico em drama, que exprime o trágico num drama, ‘(...) o drama é portanto, a representação de noções e de acções dionisíacas’ sob uma forma e num mundo apolíneo” (s/d, p. 21, grifo do autor).

Seguindo a trilha do filósofo em O nascimento da tragédia, essas experiências viscerais não foram inicialmente incorporadas à cultura grega, que se protegeu com sua “vontade helênica”. Mais claramente, a figura dominante de Apolo, que se encarna nos princípios éticos e estéticos, ergueu rígidas barreiras que interditaram, durante certo tempo, a generalização das experiências dionisíacas na Grécia Antiga. Apolo, o deus da luz, representa o equilíbrio, a justa medida; encarna-se na beleza e na nobreza dos traços e das formas, no princípio de individuação e, portanto, na preservação da consciência ante o caos. Deleuze novamente: “Apolo diviniza o princípio de individuação, constrói a aparência da aparência, a bela aparência, o sonho ou a imagem plástica, e liberta-se assim do sofrimento (...)” (s/d, p. 20). A ênfase apolínea na mesura e na forma destaca os indivíduos no âmbito de uma indiferenciação universal, incutindo-lhes o desejo de uma existência singularizada e o amor pela vida, às expensas do clamor mundano pelo aniquilamento. Ao estimular a criação de universos poéticos e o exercício do onirismo, o instinto apolíneo faculta o engendrar de interpretações e sentidos múltiplos que se interpõem entre eles e a dor. Impedem, por conseguinte, a queda no vazio imensurável, para o qual converge o pessimismo. Instando os homens à serenidade, à crença em suas próprias ficções, Apolo representa, pois, a imperiosidade dos limites e das normas; conseqüentemente, afasta o risco de os homens se entregarem ao delírio, sucumbindo ao fascínio de paixões desmedidas. Com a garantia da forma e da medida, viabilizando a individualização ante a perda no indeterminado, a “bela aparência” configura-se como limite ético e estético que não deve ser transgredido. Não obstante, é preciso insistir: a ilusão que se plasmava no deleite com as imagens e com as representações oníricas, bem como no culto à beleza formal, resultante da atuação do instinto apolíneo, logravam transmudar o mundo, mas não privavam os gregos de sua aguda lucidez acerca da verdade terrível que nos espreita; ou seja, não minimizava a compreensão de que o alicerce sobre o qual se erige a existência consiste numa profusão de forças cruéis e arredias ao controle humano que sela o destino mortal de tudo o que vive. Não obstante, quando os apelos dionisíacos passaram a emanar das entranhas da própria cultura, já não foi possível impedir que sua presença se consumasse entre os gregos. Sua manifestação, no entanto, foi contrabalançada pelo princípio apolíneo da forma e da proporção, o que propiciou um débil, mas persistente, equilíbrio que encontrou sua mais contundente expressão na tragédia ática. Este será, pois, o gênero artístico que expressará com virtuosidade a antinomia das forças que mobilizam a existência, ao mesmo tempo em que logrará a expressão de uma possível coexistência entre os impulsos fundamentais. Ao conciliar, num enlace enigmático, as forças antitéticas da natureza, a tragédia, sustenta Nietzsche, logra a metamorfose de um profundo pessimismo – ou seja, da vertigem ante o vazio da existência – bem como da lucidez ante o entrelaçamento da criação e da destruição, numa expressão dramática. Nesse jogo cênico, o embate se traduzirá na oposição visceral entre o destino, que a tudo destrói e elide com sua força impetuosa, e a resistência humana, que almeja a imposição da forma e do sentido. Assim, no teatro trágico, o desenrolar dos eventos é secundado pelos princípios de moderação e de limite; os quais, no entanto, manifestam-se em concomitância com o pulsar irracional de forças cuja voracidade suplanta todo desejo de ordem e de compreensão, chancelando inelutavelmente o destino humano. A tragédia evidencia que, por entre a fina teia apolínea das imagens e dos belos traços, o dionisíaco repercute vigorosamente.2 A represen-

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tação estética, a produção de imagens e ilusões, dá-se em simultaneidade com o absurdo do existir. Sob essa perspectiva, essa arte tipicamente grega encena os dramas humanos apontando para a verdade reveladora da vida: a desmesura, segundo a qual a dor e o sofrimento só podem efetivamente ser ultrapassados com a volta à natureza, com o fim do homem, tal como revelado pelos rituais míticos. Entretanto, o horror revelado pelos mitos, do qual o homem não pode se esquivar, termina por se plasmar, por meio da ação do poeta, em bela aparência; a representação estética torna possível a formalização desta tensão insuperável, viabilizando a tolerância e a convivência com os vatícinios inexoráveis que ultrapassam os desígnios humanos. Observa Gilles Deleuze: “Dionísio é como o fundo sobre o qual Apolo borda a bela aparência; mas sob Apolo é Dionísio que brame. A própria antítese tem, portanto, necessidade de ser resolvida, transformada em unidade” (DELEUZE, s/d, p. 21). A tragédia, ao mesmo tempo em que enuncia um sim incondicional à existência, é emblemática da proteção com que a imagem apolínea envolve o homem, cujo destino é cantado pelos mitos, o qual, em sua fragilidade, ousa mirar o âmago do abismo que o alicerça. O texto nietzschiano é esclarecedor: (...) o mito parece querer sussurrar-nos que a sabedoria, e precisamente a sabedoria dionisíaca, é uma atrocidade contra a natureza, que quem com seu saber precipita a natureza no abismo da aniquilação, esse tem que experimentar também, em si mesmo, a dissolução da natureza (...): tais são as horríveis sentenças que o mito nos grita: o poeta helênico, porém, toca qual um raio de sol a sublime e temível coluna mnemônica do mito, de modo que este de súbito começa a soar – com melodias sofocleanas! (NIETZSCHE, 2005, p.65).

Na sabedoria trágica, a assunção do embate sem termo entre a geração e o aniquilamento configura-se como a premissa necessária para a criação. Ao incorporar o dionisíaco, ela impõe os limites e as formas dentro dos quais seus ímpetos desmesurados de destruição poderiam se manifestar. A análise desenvolvida por Nietzsche, em seu primeiro livro, acena, pois, com a idéia de que a estética trágica, ao aceitar a vida em sua natureza paradoxal, transforma a concomitância entre o bem e o mal, a vida e a morte, a criação e a ruína ou a aterradora ausência de sentidos em formas múltiplas de expressão artísticas. Insinua, assim, que apenas o jogo estético, com as máscaras por ele erigidas, pode compensar o árduo fardo de estar vivo: “(...) pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente (...)” (NIETZSCHE, 2005, p. 47, grifos do autor). Assim, ao tecer o “enlace matrimonial”, em que a aparência apolínea – potência criadora – e a essência dionisíaca – forças naturais submersas e indômitas – se entrelaçam, a tragédia postula que tudo é simultaneamente justo e injusto, que a vida é, ao mesmo tempo, aterradora e prazerosa, o que, enfim, justifica a condição humana sem a pretensão de fundamentá-la com um lastro objetivo no real: “Arte é o ato demiúrgico que imediatamente já sempre abriu o caminho do ente e interditou o do nada. Para tanto, o ato mesmo não se funda em algum ente, mas em nada” (RIBEIRO, 2001, p. 13).3

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3 Com O Nascimento da tragédia enuncia-se já a crítica visceral que Nietzsche tecerá à civilização ocidental. Com a ascensão da filosofia socrática, uma visão moral da existência que sobrepõe a razão a todas as outras manifestações da vida, julgando-as e inferiorizando-as, vai se opor à visão trágica. Inicia-se aí um processo de decadência que tem seu contraponto na força e na vitalidade alcançada pelos gregos da era trágica. A passagem de uma concepção trágica para uma concepção teórica, que julga possível organizar o mundo a partir de um princípio superior, estabelecendo enfim a familiaridade entre o pensamento e o ser, incrementa uma visão unilateral do mundo, em detrimento da multiplicidade que caracteriza o olhar trágico. De acordo com o autor, tal perspectiva fundamenta-se a partir de um instinto degenerado que vocifera contra a vida, com uma subterrânea sede de vingança.

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3. O trágico em O avesso e o direito 4 A concepção de tragédia na qual Camus se apóia remete ao embate de forças antitéticas e igualmente poderosas, o que a diferencia do drama. A tragédia contrapõe o homem ao seu desejo de sentido e de determinação que pretende ultrapassar os limites que circunscrevem sua ação por um lado, e, por outro, uma ordem – divina, natural ou social – que a ele se contrapõe. Considera M. Alves: “Em uma conferência pronunciada em Atenas, Camus deixou indicada a sua concepção de tragédia. Para ele, diferentemente do drama ou do melodrama, onde as forças que atuam são claramente definidas como boas ou más, as forças que se enfrentam na tragédia são igualmente munidas de razão, ou seja, ‘cada força é ao mesmo tempo boa é má’” (ALVES, 2001, p. 60). Ou nas palavras de Camus: “Portanto, o tema constante da tragédia antiga é o limite que não se pode ultrapassar. De um lado e de outro deste limite, encontram-se forças igualmente legítimas em enfrentamento vibrante e ininterrupto. Enganar-se quanto a este limite, querer romper este equilíbrio, é arruinar-se” (CAMUS apud ALVES, 2001, p. 60).

5 “Mas, sobre a vida em si, nada mais sei além do que foi dito, desajeitadamente, em O avesso e o Direito” (CAMUS, 1995, p. 29).

Esta conceituação do trágico, tal como fundamentada pelo Nietzsche de O nascimento da tragédia, subsidia o início de nossa reflexão acerca dos primeiros textos de Camus.4 Notadamente, as preocupações marcadamente nietzschianas que perpassam as diferentes modalidades da obra de Camus, como a tensão entre aspectos inconciliáveis da vida e a recusa a toda interpretação unívoca do real, já se deslindam nos primeiros ensaios. Elas veiculam uma perspectiva que se inscreverá por toda a obra do autor, e que talvez tenha sido engendrada com as experiências primordiais da infância, consumadas sob o império da natureza argelina. Essas vivências, em última instância, alicerçam a celebração da condição humana em seu horror e em sua beleza, de modo que as promessas de felicidade não se dissociem nunca do fantasma da provisoriedade e da morte. Aproximemo-nos, então, destes textos juvenis, aqueles que iniciaram Camus na “grande aventura do espírito”. Nós o faremos detendo-nos nas passagens mais significativas para o problema que aqui nos mobiliza, qual seja, o encontro entre a tragicidade da vida e o esforço em figurá-la numa representação apolínea. Ao concordar com uma nova edição para O avesso e o direito, vinte anos após a sua primeira publicação, Camus não se furta de lançar sobre este texto o olhar de um artista maduro. Não obstante, o autor admitirá que suas obras posteriores, seja no campo do teatro, na literatura ou em seus ensaios filosóficos, configuram um desdobramento dessa sua fonte primeira, na qual está registrado o seu aprendizado definitivo sobre a vida.5 Nela, a concomitância entre a experiência da pobreza e a natureza exuberante atua como antídoto para o martírio do ressentimento e para o cinismo da consciência satisfeita consigo mesma. Daí decorre que o “apetite desordenado de viver”, que ecoa das páginas deste primeiro ensaio, insinue precocemente uma característica que norteará fortemente a produção do autor, qual seja, o reconhecimento da simultaneidade entre a paixão “fecunda e destrutiva” pela vida e a contundente aceitação – que nada tem a ver com resignação – de suas adversidades. Logo, as diferentes circunstâncias apresentadas no decorrer destes ensaios narrativos que compõem O avesso e o direito desenrolam-se invariavelmente sobre o mesmo pano de fundo: a experiência do absurdo e a sedução irresistível de um mundo que não demanda razões para existir. Lembremos Deleuze: o dionisíaco brame sob o apolíneo; retomemos os dizeres de Nietzsche: o poeta toca melodiosamente as temíveis sentenças do destino. Essas idéias inscrevem-se profundamente nos primeiros ensaios de Camus. Para ele, a sedução exercida pelas forças pulsantes e indômitas da vida, as quais habitam inclusive o interior do próprio homem, constituem a substância mesma da arte, mas só podem dar margem à criação se lapidadas pelo esforço e pelo rigor estético, por intermédio dos quais a obscuridade dessas forças se transmudam em beleza formal. São esclarecedoras as palavras do autor: Conheço minha desordem, a violência de certos instintos, o abandono sem indulgência a que posso me atirar. Para ser edificada, a obra de arte deve servir-se, em primeiro lugar, dessas forças obscuras da alma. Mas não sem canalizá-las, sem cercá-las de diques, para que sua maré suba da mesma forma (CAMUS, 1995, p. 32).

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No amálgama entre ficção e não ficção, que peculiariza as páginas desse livro primacial, as paixões obscuras que vicejam na alma e que movem a vida encontrarão os “diques” que as trazem a lume, logrando a sua expressão. Ao iniciar a leitura de O avesso e o direito somos conduzidos de imediato à dimensão mais brutal da vida, a qual pode ser traduzida por uma variabilidade imensa de formas. Aqui, a forma tematizada é a velhice. Na primeira narrativa, “A ironia”, o autor nos desvela o perfil das personagens que encontraremos por entre essas páginas, as quais já não encontrando respaldo nos vínculos afetivos, vêem sua importância minimizada na sua relação com o outro; o esquecimento se lhes afigura como destino inelutável. A essa primeira narrativa, subjaz, pois, a idéia de que, ao envelhecermos, o mundo se nos revela com muito mais nitidez e nos oferece, de modo muito mais íngreme, uma realidade destituída de justificativas, na qual os nossos investimentos e representações simbólicas não encontram repercussão. A despeito da indiferença e da árida receptividade que o mundo lhes devota, persiste nestas personagens o desejo de superar o isolamento e tecer um elo que testemunhe ainda a ressonância de sua presença subjetiva no mundo. Destarte, é emblemática a passagem em que, nesse primeiro momento do ensaio, um velho caminha por entre as ruas, nutrindo-se da presença aleatória de anônimos, do movimento perene e cambiante da cidade, os quais acenam, por vezes, com um outro possível, um outro amanhã. Expectativa de felicidade que não pereniza, já que a lucidez o assedia sem trégua: “Seu passo miúdo se apressa: amanhã, tudo vai mudar, amanhã. De repente, ele descobre que amanhã será igual, e depois de amanhã, e todos os outros dias. E essa irremediável descoberta o esmaga” (CAMUS, 1995, p. 49). Posteriormente, a figura enérgica de uma avó que assume a condução de sua família, num bairro pobre de Argel, entra em cena. Camus nos descreve, então, a conduta rígida e intransigente que nesta personagem coexiste com uma saúde que declina irreversivelmente. Esse esforço em ostentar uma atitude que desafia toda fragilidade, toda suscetibilidade, esvaziase de toda significação ante o espectro da morte. Em suma, o que a experiência desses indivíduos denuncia é a esterilidade das expectativas que em geral perseguimos, a ilusão de que seja possível alicerçá-las na concretude do real e dotar de consistência inequívoca o lugar que ocupamos no mundo. Sob essa perspectiva, a solidão e a recusa alheia a qualquer receptividade – vivenciadas pelas personagens – desnudam mais cruelmente a precariedade que nos constitui, porquanto decretam a absoluta falta de equivalência entre nossas representações e a veracidade que o real confere a elas. Certamente, a realidade se constitui efetivamente para o sujeito quando ele adentra o universo simbólico socialmente constituído. Os propósitos subjetivamente perseguidos, as representações que estruturam a realidade de um indivíduo parecem dotados de consistência justamente por serem reconhecidos e comungados por seus pares. A despeito da inexistência de uma equivalência concreta entre nossas representações e o mundo, a introjeção das representações sociais, as quais se traduzem, em instituições imaginárias – a expressão é de C. Castoriadis6 – coletivamente engendradas, conforta-nos com uma ilusão, com o aceno do respaldo objetivo, ainda que a ordem por ele representada não deixe de ser atravessada pelo espectro do caos.7 Ao nos reconhecermos como parte de uma cultura, as referências simbólicas socialmente compartilhadas parecem abolir o nada, o vazio comumente velado, mas que, por vezes, insiste em aflorar, desnudando abruptamente a falta estigmatizada na condição humana. 234

6 Com efeito, para sobreviver, para obnubilar o caos originário que perpassa a vida social, os homens agem criativamente erigindo as significações. Destarte, a sociedade se sustenta investindo e dando credibilidade aos valores que ela mesma cria. Assinala C. Castoriadis: “A auto-instituição da sociedade é a criação de um mundo humano: de coisas, de realidade, de linguagem, de normas, valores, modos de viver e morrer, objetivos pelos quais vivemos e pelos quais morremos” (1987, p. 271). Criação que se concretiza enquanto resultante do imaginário social, que, por sua vez, consiste na “(...) criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/ formas/imagens, a partir das quais é possível falar-se de alguma coisa. (...) quer se trate de uma invenção absoluta ou de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações (...)” (1987, p. 276). Conquanto as instituições distinguam-se das significações em si mesmas, elas só fazem sentido se sancionadas dentro de um contexto de representações simbólicas. Sob esse prisma, a dimensão concreta e real dos atos humanos, como a guerra, o trabalho, as relações afetivas, não se circunscrevem unicamente dentro de figurações simbólicas; todavia só adquirem inteligibilidade quando inseridas numa rede imaginária. 7 Contrapondo-se enfaticamente à noção do social ou do real como sistema ou como uma sucessão de encadeamentos fixos e articulados, Castoriadis, vai sustentar que a sociedade erige-se sobre si mesma. Mas a sua gênese emerge do “caos, do abismo, do sem fundo”. Esta dimensão caótica representa a concreção mesma da desmesura, onde inexiste qualquer organização regulada do vivente: “(...) o Ser é Caos. O caos apresenta-se (...) como a ausência de ordem para o homem, a falta de correspondência positiva entre as intenções e as ações humanas, por um lado, e seus resultados e conseqüências, por outro” (CASTORIADIS, 1987, p. 377).

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Se a presença do outro é condição sine qua non para que estas ficções adquiram a tônica da realidade, na velhice essa demanda é urgente e desesperada: só a cumplicidade alheia logra caucionar o sentimento de pertinência e conferir algum sentido ao existir. A narrativa assinala, pois, que no crepúsculo da vida a correspondência inequivocamente fictícia entre as representações simbólicas e o real, que cauciona e substancializa nossa existência, intensifica sua vergonhosa vulnerabilidade e naufraga muito mais facilmente. Não que a experiência do esfacelamento da crença neste amparo objetivo seja exclusividade daqueles que vivenciam o crepúsculo da existência; ela pode, como argumenta Camus em outro lugar, eclodir em qualquer época – ainda que com menos probabilidade na juventude do que na maturidade - , mas a fragilidade e a solidão intrínsecas à velhice propiciam uma lucidez mais arguta acerca da clivagem entre a vivência subjetiva e o mundo: Os homens constroem sob a velhice vindoura. A essa velhice acometida de irremediáveis querem dar o ócio que os deixa indefesos. Querem ser contramestres para se refugiarem numa pequena casa no campo. Mas, uma vez enterrados na idade, bem sabem que é falso (CAMUS, 1995, p. 50).

Indubitavelmente, é a proximidade da morte que torna evidente o caráter vão das tentativas humanas que teimam em tornar prevalecentes os seus intuitos e os seus projetos, como se eles pudessem domar os obscuros desígnios do mundo. Assim, a abertura do ensaio, com a narração desta experiência limite, vivenciada por essas personagens confrontadas com a inelutável evidência da morte, já problematiza o absurdo das ilusões que nos movem, a ausência de salvação, a impossibilidade de que possamos nos evadir do nada que nos assedia. O contraponto desta verdade dolorosa, que, em última instância, resultaria na aversão ou na recusa da vida, é nos sugerido pelo autor nas últimas linhas do texto. Em concomitância com os rituais fúnebres de uma das personagens, os quais ratificam ainda uma vez a inutilidade de todo esforço humano diante de forças que estratégia alguma pode domar, Camus descreve: Era um lindo dia de inverno, atravessado de raios de sol no azul do céu, adivinhava-se o frio todo reluzente de amarelo. O cemitério ficava no alto da cidade, e, de lá, podia-se ver o belo sol transparente pondo-se sobre a baía trêmula, como um lábio úmido (CAMUS, 1995. p. 54).

Ao nos conduzir por um panorama das vivências cotidianas e da desventura humana, o texto nos desvela simultaneamente “toda a luz do mundo”, o esplendor pulsante e irresistível da natureza, que solicita nossa adesão e ante os quais a indiferença é impossível. Eis o primeiro indício de algo que se desdobrará por todas as narrativas que compõem o livro, ou seja, a antítese entre o esplendor mundano e os impasses da condição humana, para a qual não há alento. Essa correlação, em que tudo “tem seu avesso e seu direito” (GONZALES, 2002, p. 26), já insinua a coexistência entre o sim e o não que, sob o olhar de Camus, impregna o real com uma tensão insuperável. Abre-se, dessa maneira, a vertente trágica de seu pensamento. O trágico, nós o sabemos, repousa na coexistência de oposições inconciliáveis, nas tensões entre os carecimentos, a dor e as experiências de felicidade que a vida suscita. Assim, ao exaltar poeticamente a beleza que nos interpela e que parece ofuscar todo sofrimento, o autor alude à impossibilidade de amar REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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a vida negligenciando o horror que igualmente a constitui; sua escrita logra, pois, a expressão da tragicidade que rege a condição humana: “Sem a beleza, o amor ou o perigo, seria quase fácil viver” (CAMUS, 2002, p. 135). Nesse viés, há pertinência em pensarmos esse texto sob a égide dos dizeres nietzschianos acerca da tragédia: “(...) toda a concepção do poeta nada mais é senão aquela imagem luminosa que a natureza saneadora nos antepõe, após um olhar nosso ao abismo” (NIETZSCHE, 2005, p. 64). Na narrativa intitulada Entre o sim e o não, Camus nos descortina figuras que, em meio ao infortúnio, revelam a sua beleza e não recusam o convite à vida. Esse segundo momento do texto abre-se com a tematização de um sentimento de perda e com a nostalgia de uma experiência de plenitude: “Se é verdade que os únicos paraísos são os que se perderam, sei como devo chamar essa coisa terna e desumana que existe hoje em mim” (CAMUS, 1995, p. 57). A rememoração de um passado que emerge do oceano do esquecimento permite reviver uma emoção originária, ou no dizer do autor, “uma emoção pura intacta, um instante suspenso na eternidade” (1995, p.58). Um certo êxtase propiciado pelas lembranças contrasta-se com um céu sem luz, com a tristeza do presente e com a perspectiva da morte. A inserção insólita no mundo, crivada pelo sentimento da falta e pelo desejo aguçado de unidade, que torna improvável qualquer sentimento de pertinência ou de empatia com o real circundante, é cotejada com a vigorosa mobilidade mundana que, em sua indiferença, repercute como um canto secreto. Interroga o narrador: “Será o ruído do mar ao longe? O mundo suspira para mim, como um ritmo longo, e me traz a indiferença e a tranqüilidade daquilo que não morre” (CAMUS, 1995, p. 59). São esses os afetos vivenciados numa cidade árabe, no interior de um café mouro, por aquele que os narra em primeira pessoa. Num momento em que se impõe a assunção de um cotidiano vazio, destituído de horizontes, a vitalidade que emana de um outrora longínquo insufla uma espécie de autocomiseração em que essas imagens pretéritas revelam, no dizer do autor, a felicidade como uma compaixão da própria infelicidade. Paulatinamente, o passado vai se desvelando. Essas imagens-lembranças parecem remeter a um tempo mais vigoroso, ainda que não incólume à dor: elas enfatizam a concomitância entre os dissabores, a experiência da penúria e um cenário natural em que tudo é transbordamento e opulência. Daí a associação entre a miséria e uma forma singular de felicidade que permeia toda a obra de Camus. Para essas personagens, desnuda-se uma verdade existencial dolorosa ao mesmo tempo em que a natureza se impõe e se configura como uma benção, um efetivo presente dos deuses. A fruição dessa prerrogativa não pode, pois, ser negligenciada. Além do menino que foi, o narrador rememora a mãe silenciosa, condenada à clausura de sua surdez, e que não ousa transpor a distância que a separa do filho; uma indiferença que tem seu correlato na imensa solidão do mundo. Vivem assim o seu amor mudo, em meio ao silêncio e à dor: Ela não pensa em nada. Lá fora, a luz, os ruídos; aqui, o silêncio na noite. O menino vai crescer, vai aprender. Educam-no e lhe pedirão reconhecimento, como se lhe evitassem a dor. A mãe terá sempre esses silêncios. Ele crescerá na dor. Ser homem é o que conta. A avó vai morrer, depois a mãe, ele (CAMUS, 1995, p. 63).

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Entrementes, sob a perspectiva do presente, os sonhos do passado ganham um suplemento de lucidez: investido, desde a tenra infância, o projeto de homem, uma vez alcançado, nada revela, seu significado cruamente desnudado limita-se a anunciar a velhice que o sucederá. Discernimento que já se insinuava nos vãos de outrora: “Naquela velha casa, tudo parecia, então, oco. Os bondes da meianoite, ao se afastarem, drenavam toda a esperança que vem dos homens, todas as certezas que o ruído das cidades no dá. Sua passagem ressoava, ainda, pela casa, e, aos poucos, tudo se extinguia” (CAMUS, 1995, p. 65). Nesta noite, em que, num bar mouro, o protagonista é simultaneamente invadido por lembranças de um cotidiano remoto e pela amargura do existir, algo se explicita: quando a vida ostenta sua verdade mais profunda, a ausência de razões para perseverar eclode. Ascende assim o desejo da morte. Entre o sim e o não nos coloca, pois, diante de uma lucidez que conduziria ao niilismo, à negação indigente do mundo, não fosse um persistente estímulo de vida que ressoa seja nas imagens que afloram da memória da personagem, seja na tessitura mesma do texto. Mais claramente, a solidão dessas personagens dilaceradas pelo sofrimento, assediadas pelo espectro da finitude, é nos apresentada numa poética da qual emana uma simplicidade desconcertante. Nela irrompem o fascínio do mundo e da natureza e o silêncio, os quais não demandam explicações e aos quais não é possível resistir: O triângulo de céu que vejo do meu lugar está despojado das nuvens do dia. Abarrotado de estrelas, ele estremece sob um sopro puro, e as asas felpudas da noite bem lentamente a meu redor. Até onde irá esta noite, na qual já não sou mais senhor de mim (CAMUS, 1995, p. 67)?

Por outro lado, este homem, que não é confortado por uma verdade absoluta, adivinha a insuficiência de sua existência e é tocado por um discernimento. Em certo momento, ele entrevê que a vida deve ser transfigurada, investida sem que se minimize a dor definitiva que dela emana. No jorro de imagens-lembrança, que inundam sua alma e parecem condensar toda a força vital, a infância retorna com sua dor e sua pobreza, mas também, no dizer do autor, com uma experiência de amor. Essas imagens eivadas de antagonismos convidam, pois, a um assentimento da vida em sua simplicidade, sem sonhos ou desespero; basta reconhecê-la em sua dor e beleza: “Já que essa hora é como um intervalo entre o sim e o não, deixo para outras horas a esperança e o desgosto de viver. Sim, recolher apenas a transparência e a simplicidade dos paraísos perdidos em uma imagem” (CAMUS, 1995, p. 69). Destarte, Camus pontua o percurso em que a consciência, dilacerada pela dor de sua absurdidade e pelo vazio da existência, persuade-se de que todo niilismo, positivo ou negativo, deve ser refutado. Logo, uma “indiferença serena e primitiva advém”: a lucidez com a qual ousamos olhar “o destino nos olhos”, assumindo nossa tragicidade. Esquivando-nos do pessimismo niilista que diz não ao mundo, é a um pessimismo trágico e a declaração de amor à vida que a narrativa nos conduz: Trata-se, nesse caso, de um amor ao mundo como aquele que está contido no “tudo está bem” edipiano: um amor que afirma tudo, tanto a transgressão (a busca humana de justiça e felicidade frente à sua condição limitada), quanto os males que a ordem impõe aos homens, sobretudo àqueles que a desafiam por orgulho ou ignorância (ALVES, 2001, p. 124).

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Deslocando-nos das imagens vigorosas da infância que irrigam o vazio existencial do presente para uma espécie de diário de viagem, é em meio à beleza e ao burburinho tipicamente urbano de Praga que nos encontramos. As preocupações de ordem funcional, como a subsistência numa cidade agitada, a necessária apreciação dos lugares, a organização dos dias, são experienciadas em concomitância com um sentimento de estranheza, com a suspensão de toda simpatia à realidade circundante e com o tédio inelutável. A busca compulsiva de lugares densamente povoados, como o interior de um obscuro restaurante, visa atenuar a angústia da solidão: “Eu estava com medo de ficar doente, ali, no meio dessas pessoas, prontas para o riso. E, mais ainda, com medo de ficar só no quarto de hotel, sem dinheiro e sem desejo, reduzido a mim mesmo e a meus miseráveis pensamentos” (CAMUS, 1995, p. 77). Cumpre notar: essa busca desesperada por ocupação e entretenimento não é gratuita. O que há de terrível na solidão? Certamente, a presença do outro confere densidade às nossas crenças, aos nossos investimentos; mas, além disso, ocorre que sozinho um homem não logra, como enunciado subliminarmente pela personagem, esquivar-se de si mesmo; sem o mundo e sua estridência não há como postergar o advento de certos pensamentos nefastos e dolorosos, os quais podem, entretanto, permanecer latentes durante toda uma vida. O entretenimento atua, pois, como um escudo para o tédio. Mais explicitamente: a compulsão à ação, a necessidade de preencher o tempo com frivolidades, vedando as frestas pelas quais certo tipo de reflexão advém, constituem estratégias capazes de procrastinar o encontro do homem consigo mesmo. Confronto do qual decorre uma aflição: o desnudamento do nada que nos constitui, da desrazão do existir, enfim, da absurdidade. Lembremos Pascal: a atividade do pensar define o homem, na medida em que constitui simultaneamente seu mérito sua dignidade; no pensar há uma ordem imperativa, qual seja, a de iniciar refletindo sobre si mesmo. Ora, o cumprimento deste princípio – que, sob a perspectiva pascaliana, nos define – é doloroso e dele se desvia toda a gente. Ao mirar a verdade íntima da condição humana, o que se nos desvela é a miserabilidade de uma existência efêmera, o tormento de paixões irrealizáveis, os desejos inúteis. Destarte, um vazio irremediável irrompe, desvelando a obscena fragilidade que nos é intrínseca. Nessa imagem de si, pulveriza-se a energia necessária para a persecução do anseio maior de toda alma, qual seja, o alcance da felicidade, a ilusória e ardentemente desejada consonância entre eu e o mundo. Por outro lado, uma existência em que o homem não encontra respaldo significativo para suas ações desvela um horizonte de puro tédio.8 A narrativa de Camus enreda-nos nas tentativas desesperadas de adiamento empreendidas pela personagem: é o encontro com a própria insignificância que se trata de postergar, nesse mundo que denega identidade, harmonia ou familiaridade. Nessa senda, ao dar continuidade à leitura somos conduzidos pela descrição dos dias que se sucedem, nos quais a personagem procura fazer valer a sua condição de viajante, cumprindo as exigências necessárias para ordenar o seu tempo. Não obstante, tal atitude não impede que o narrador, em sua perambulação por um universo eivado de estranheza, seja permanentemente assediado pela intuição de que tudo é inútil e de que nada vale a pena. Se a vida impregna tudo ao seu redor, manifestando-se na beleza de Praga, no cotidiano e no movimento da cidade, parece-lhe impossível alijar a consciência da sensação de finitude, da fugacidade de todas as coisas. Diante disso, as expectativas todas que movem as ações da personagem tornam-se inócuas. A narrativa revela, enfim, que ao sentirmos a sombra da morte habitando a alma, ao mirarmos a verdade terrível 238

8 É memorável o texto de Pascal: “Nada é mais insuportável para o homem do que ficar em pleno repouso, sem paixões, sem ocupações, sem divertimento, sem fazer esforços. Ele sente, então, seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Imediatamente saíra do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a tristeza, a aflição, o despeito, o desespero” (PASCAL, 1973, p. 74).

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que emana do âmago mesmo da vida, como diria Nietzsche, nada mais justifica o engajamento numa obra, a persecução de sonhos, quaisquer que sejam eles. As imagens sugestionadas pelo texto nos remetem, enfim, a essa cesura radical que divorcia o indivíduo e o mundo que o circunda. Nesse caso, com a singularidade da circunstância narrada – a condição de estrangeiro/viajante numa cidade desconhecida –, Camus alude à ruptura da relação habitual que estabelecemos com a realidade quando engolfados nas urgências insossas dos dias que se sucedem homogeneamente. A viagem, ao contrário nos lança no inesperado e no insólito; o seu valor vem, pois, do medo que daí decorre, porquanto a condição de viajante nos põe a nu ante o nada que nos substancializa. Os afetos tematizados pelo autor enfatizam este aspecto exasperante da condição humana, qual seja, a de estar inserto num mundo em que os acontecimentos são regidos por leis e forças que nos ultrapassam e selam nosso caminho à revelia de todo querer. Esse discernimento não aquieta a consciência; o anseio por uma realidade que a complete e a livre do vazio, e a fantasia de reencontro com uma unidade primordial em que a cesura entre a consciência e o real não tenha se configurado perseveram. Entrementes, com a dor, a solidão e o desamparo do narrador, aflora uma indignação que deriva não de uma lamentação de sua condição, mas do desejo de vida, do anseio de sentir-se partícipe das belezas mundanas. O sentimentos da incompletude e da vacuidade coexistem, pois, com um imensurável desejo de vida. A inserção da subjetividade numa atmosfera da mais contundente estranheza e a impotência para fixar uma identidade com a realidade que gravita ao redor da personagem tornam árdua a consciência de existir e constituem um verdadeiro desafio à felicidade. Como ser feliz se a clivagem entre o eu e seu cenário parecem intransponíveis? Como sonhar a felicidade se uma falta insuperável vem habitar e dilacerar a alma? É a um paradoxo que o texto nos conduz: Deste quarto, até onde chegam os ruídos de uma cidade estrangeira, bem sei que nada pode me tirar para levar-me em direção à luz mais delicada de um lar, ou de um lugar amado. (...) São rostos estrangeiros que surgirão. Igrejas, ouro e incenso, tudo torna a lançar-me numa vida cotidiana na qual minha angústia dá a cada coisa o seu devido valor (CAMUS, 1995, p. 79).

Não obstante, no âmbito desta narrativa, justamente intitulada “Com a morte na alma”, apenas quando o protagonista assume como definitiva e insuperável a fratura que o põe em desajuste com a realidade, apenas quando seu olhar mira o mundo sob a égide da provisoriedade e do absurdo, visualizando a ilusão de suas expectativas de coerência e lógica, é que a singularidade de tudo o que existe pode mobilizar nele emoções intensas. O autor advoga, assim, que este olhar para o desarazoado que rege a vida, ao mesmo tempo em que fragiliza e desespera por desnudar o vácuo sobre o qual se erigem os sonhos e as expectativas de felicidade, por destacar o caráter ininteligível da realidade em que nos insertamos, exacerba a sensibilidade para a vitalidade irresistível do mundo: “Nesse coração menos sólido, a música do mundo entra mais facilmente” (CAMUS, 1995, p. 81). Subjaz a essa assertiva a idéia de que uma apreensão profunda da natureza da vida só se verifica com a renúncia à expectativa mais visceral que pauta a infindável busca humana de encontrar um absoluto que venha suprir a nossa precariedade, que instaure enfim a coincidência entre o sonho humano e REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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a vida, suprindo a fome insaciável da consciência: a fantasia de completude que elimina todo o vazio. Destarte, tal com ocorre mais sutilmente nas narrativas anteriores, a certa altura, ao ressaltar que este descompasso terrível entre o eu e seu contexto afasta toda a chance de ser feliz, o narrador compreende que aquilo que parece encarnar a condição da infelicidade transmuda-se na própria razão de ser da felicidade: “E, no entanto, é por aí que a viagem o ilumina. Faz-se uma grande desarmonia entre ele e as coisas” (CAMUS, 1995, p. 80). Ser feliz, nesse caso, requer apenas uma consciência atenciosa e cordial que se recusa a julgar a vida a partir dos carecimentos humanos. Eis o pressuposto necessário para que possamos nos inebriar com os eventos fascinantes do mundo. Nesse ensaio, ao lado das forças concretas e mundanas que esmagam as personagens, exalta-se a vida; Camus não abdica, pois, de sua composição trágica do mundo: Deixei Praga pouco depois. E, certamente, interessei-me pelo que vi em seguida. Poderia registrar determinada hora no pequeno cemitério gótico de Bautzen, o vermelho brilhante de seus gerânios e a manhã azul. Poderia falar das extensas planícies da Silésia, impiedosas e ingratas. Atravessei-as ao amanhecer. Alguns pássaros voavam pesadamente por cima das terras pegajosas, na manhã cheia de gordura e brumas. Eu gostava, também, da Morávia terna e grave, suas grandes distâncias puras, seus caminhos guarnecidos de ameixeiras de frutos ácidos. Mas guardava, lá no fundo de mim, o atordoamento daqueles que olharam demais para uma rachadura sem fundo. No entanto, (...) nascia uma luz. Sei disso agora: eu estava pronto para a felicidade (CAMUS, 1995, p. 85).

Não seria excessivo assinalar que esta narrativa aponta incessantemente para a preponderância de uma sensibilidade apolínea, à medida que suas imagens, enquanto expressão estética, simultaneamente apresentam o absurdo da existência e põem em suspenso o desejo de morte. O texto de Camus contemporiza com o horrível da vida, para usar uma expressão cara a Nietzsche, ao mesmo tempo em que, com uma escrita fundamentalmente poética, dota de forma a desmesura e o sem sentido do existir, encenando belamente sua exuberância: “Não há amor de viver sem desespero de viver” (CAMUS, 1995, p. 100). Parafraseando o filósofo alemão, quando alude à tragédia grega, poderíamos sustentar que a narrativa camusiana finda por divinizar tudo o que existe, seja a dor, seja a beleza, justificando a existência e tornando-a digna de ser desejada. Esse aliás, consiste num dos aspectos que singulariza fortemente os primeiros ensaios do autor O último texto, que dá nome ao livro, encerra-se com um verdadeiro elogio da vida. É neste momento que a concepção trágica do autor se explicita com mais contundência. A angústia e o desespero parecem aqui minimizados ante uma sensibilidade que exacerba sua capacidade de fazer fruir a vida. Não obstante, dessas páginas não se ausenta a consciência que mirou horizontes tenebrosos e conheceu o acerbo sofrer por existir. Não se trata de optar entre a angústia proveniente do absurdo e uma experiência de plenitude absoluta que nos esquive do vazio e da falta: “A grande coragem é, ainda, a de manter os olhos abertos, tanto sobre a luz quando sobre a morte” (CAMUS, 1995, p.108). Da alegria inscrita nas últimas páginas de O avesso e o direito exala não o gozo de uma revelação que 240

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conforta o espírito e o harmoniza com o mundo, sugerindo a emancipação da precariedade que nos é imanente, mas uma felicidade trágica. Por esse prisma, o autor ratifica, uma vez mais, a tese intrínseca a esses ensaios narrativos, a qual, afinal, ele compartilha com os gregos: é possível que da admissão efetiva da fragilidade e do absurdo derive o mais genuíno desejo de vida. Nesses primeiros ensaios já se configura, pois, o veio que permeará toda a obra de Camus, ou seja, uma oscilação tensa e definitiva entre a busca do gozo proporcionado pela beleza irresistível da natureza e o discernimento acerca do caráter irremediável da condição transitória e efêmera que nos singulariza. Com uma construção substancialmente poética, o autor sugere subliminarmente que a verdade cujo conhecimento do teor corrói a vida seja transmudada em obra artística; processo em que a luz meridiana da lucidez, que tem como provável correlato o pessimismo e a recusa de agir ante o absurdo da existência, já não nos cega. Por esse prisma, é lícito configurar que o lirismo do autor é perpassado pelo o olhar nietzschiano, segundo o qual a arte, que cerca as paixões da alma com diques que viabilizam sua expressão, constitui uma alegria que desafia o infortúnio, o desencanto com a existência e suscita um desejo de vida, um querer viver mais. Destarte, ainda sob a égide dos dizeres de Nietzsche, poderíamos considerar que, para Camus, a arte “diviniza a existência”, ou seja, torna-a bela e prefigura “uma luminosa imagem de nuvem e de céu que se espelha sobre um lago negro de tristeza” (NIETZSCHE, 2005, p. 67). Essa tese não é claramente formulada pelo autor, mas, inequivocamente, pulsa nas entrelinhas de seu texto. Conseqüentemente, é a adesão visceral à vida que a construção apolínea desses textos professa: “A eternidade está ali, e eu espero por ela. Agora, não desejo mais ser feliz, e sim estar apenas consciente” (CAMUS, 1995, p.108). Inebriado pela análise nietzschiana acerca da tragédia grega, Camus está a nos dizer que apenas quando recusamos a felicidade que se opõe à vida, ou seja, aquela em que perseguimos a conformidade com o mundo e que se ancora na promessa de superação do vazio e da dor de existir, é que uma felicidade efetiva e visceral, dionisíaca talvez, pode ser conhecida. Esta convicção que já desponta em O avesso e o direito eclode e será dominante em Núpcias.

4. O dionisíaco e o apolíneo em Núpcias Um estilo que nos envolve com imagens de pura sinestesia atinge o paroxismo em Núpcias. O vislumbre de uma natureza pródiga, exaltando o sol mediterrâneo e o mar, nos comunica uma experiência de arrebatamento e de fusão com a vida. Assim, é na expressão e no gozo das belezas naturais, a partir do qual o homem experiencia o esplendor e a miséria, que Camus instaura suas “núpcias com o mundo”. Entretanto, ao lado do comentário extremamente poético da natureza, Camus tece também uma descrição pormenorizada acerca da cultura e da aparência física de homens e mulheres argelinos; somos assim confrontados simultaneamente com a descrição de uma experiência de urbanidade, de uma civilização e da natureza que a alicerça. A despeito disso, os textos que compõem esse livro anunciam um mundo de homens que parece recusar a inexorável desnaturalização. Com uma urbanidade que não se emancipa dos fenômenos naturais, as personagens encarnam uma vida ainda bruta, destituída das lapidações e dos artificialismos sociais que produzem o esquecimento e turvam a verdade sob a qual discorre a existência. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Conseqüentemente, é no interregno entre a fruição prazerosa dos dias e a lucidez da morte que essas personagens transitam. Como nota o comentador: [Camus] dará preferência – tanto em seus romances e contos, quanto em seus ensaios – a lugares e personagens que encarnem a duplicidade, na qual as formas de organização simbólica exalam a matéria informe, o imobilismo mudo e vazio do qual nascem como um protesto do homem contra o silêncio do mundo (PINTO, 1998, p. 118).

Não obstante, diversamente do que vislumbramos em O avesso e o direito, onde as narrativas enfatizam a angústia decorrente da cesura, da ausência de identidade com o mundo, e aludem de modo mais secundário à experiência de felicidade, neste livro, prepondera a tematização da alegria de viver sem que a perspectiva trágica seja abandonada. Ante o espetáculo da beleza, a narrativa nos contagia com uma experiência de êxtase. Proclama, assim, uma entrega do eu ao pulsar do mundo, sugerindo que à comunhão com as forças que regem o movimento da vida é intrínseco o desprendimento de si. Mais claramente, a felicidade sugerida pelo autor nega a individualização, anuncia seu aniquilamento: “Há lugares onde o espírito morre a fim de que nasça uma verdade que é a sua própria negação” (CAMUS, 1979, p. 17). Como ignorar aqui a alusão à volta ao uno primário, cultuada pelas práticas dionisíacas? Nossa incursão pelo texto de Nietzsche evidenciou que o instinto dionisíaco conduz o homem às paixões desmedidas, à perda diante da diversidade e do caos, onde imperam forças indeterminadas que tudo conduzem ao ocaso. Sabemos que este mergulho na universalidade e na indiferenciação revela-se deveras sedutor; além da desindividualização, é a pulverização do senso de medida que ele opera; também a noção de forma se esvai. Convida, pois, à comunhão com as forças vigorosas e destruidoras da vida, que compõem uma unidade original. Ora, é exatamente este mergulho que o texto de Camus insinua: (...) compreendo o que se denomina glória: o direito de amar sem medida (...) Daqui a pouco, quando me atirar no meio dos absintos, a fim de que seu perfume penetre no meu corpo, terei consciência contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade que é a do sol e que será também a de minha morte (1979, p. 13).

A inserção orgiástica nos meandros da natureza, tal como sugerida em diversas passagens de Núpcias, pressupõe a ruptura dos laços com a cultura, porquanto o êxtase daí oriundo remete à fantasia arcaica de um estado que precede a configuração da consciência, à libertação de nossa própria humanidade com a superação de uma subjetividade fragmentada, destinada à falta e à incompletude. Nessa perspectiva, é lícito considerar que a escrita de Camus, ao mesmo tempo em que refuta qualquer esforço de teorização dessa experiência,9 exprime propriamente a imemorial fantasia de amálgama com o todo, de fusão dionisíaca, que promove o esquecimento de si, a perda do eu na unidade primeira. Parafraseando Deleuze, podemos afirmar que Dionísio brame nas entrelinhas do texto de Camus: (...) tão longamente roçado pelo vento, sacudido durante mais de uma hora e aturdido de tanto resistir, acabei por perder a consciência do contorno de meu próprio corpo. Tal um seixo

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9 Como assinala M. Alves, conquanto a presença do dionisíaco seja flagrante nesse texto, há uma recusa do autor em explicar esta experiência. Camus não alude aos mitos, não denomina dionisíaca esta perda na natureza. O intuito do autor reside em descrever a plena vivência dessa experiência e não em pensá-la a partir de categorias abstratas. Denominá-la dionisíaca já implicaria romper, pela via conceitual e interpretativa, o elo imediato pelo qual o narrador sorve sua experiência, separando o sujeito de sua vivência : “(...) Camus se recusa a aplicar a essas ‘núpcias’ entre homem e natureza qualquer definição ou mito que a expliquem para que tal experiência, sempre única, não dê lugar a um modelo na forma de sentir e de se relacionar com o mundo” (Alves, 2001, p.40).

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polido pelas marés, assim estava eu, polido pelo vento, desgastado até a alma. Sentia-me parcela daquela força que me fazia oscilar; cada vez uma parte maior dela; até que finalmente eu era essa própria força, confundindo as pulsações de meu sangue com as grandes batidas sonoras do coração onipresente da natureza. O vento moldava meu corpo à imagem da ardente nudez que me circundava e seu fugaz abraço me concedia pedra em meio a pedras, a solidão de uma coluna ou de uma oliveira no céu de verão (CAMUS, 1979, p. 20).

Perante a promessa de felicidade que se consuma com o fruir pleno das forças que mobilizam a vida, os projetos humanos, as incertezas e a angústia provenientes da impotência e da fragilidade do querer ante a realidade desmedida se esvaem por completo. A apaixonada doação de si ao mundo torna irrelevante as expectativas, os sonhos de futuro, os horizontes a serem perseguidos. Nessa senda, a comunhão com a ordem mundana e natural acena com o cessar de todo o tormento, de toda a cesura que funda a precariedade e o sentimento de falta imanente à alma humana. Entrementes, sabemos que o reverso do fascínio exercido pelo êxtase dionisíaco consiste no desvendamento da verdade dolorosa que habita o cerne da existência e que pode tornar insuportável a consciência de existir. Ao olhar que mira a verdade procedente do cerne da vida segue-se um pessimismo paralisador que intercepta toda vontade de agir e de viver. Não obstante, no ensaio de Camus, tal como apontado por Nietzsche na tragédia grega, o flerte com o dionisíaco não resulta em negação; tem antes a ressonância de um sim, visto que corresponde a um canto de amor sem esperança: “Se é certo que toda verdade traz consigo seu travo de amargura, também é certo que toda negação contém a florescência de um sim” (CAMUS, 1979, p. 54). A abertura para a vitalidade mundana conduz, pois, ao ápice do prazer, e, nesse registro, a felicidade torna-se não apenas inequívoca, mas imperativa. Ser feliz, em Núpcias, equivale a testemunhar a vida, a usufrui-la afetiva e efetivamente com um orgulho de viver que a apreciação de Tipasa desperta e para a qual conspira, no dizer do autor. Essa felicidade é fecunda: culmina com a liberdade de criar. A celebração dos mistérios dionisíacos que converge para o esquecimento de si com a proposta de uma volta ao uno primordial é nos apresentada através de uma cortina de beleza estética, a qual toma forma na escrita poética do autor. As seduções dionisíacas são, pois, expressas apolineamente, de modo que, ao enveredar pela leitura de Núpcias, embarcamos no convite à perda e à morte do eu; o fazemos, entretanto, no interior de uma criação ou construção formal que por si mesma já constitui o interdito a essa desintegração, afastando o dilaceramento operado pela entrega à desmesura das paixões. Numa palavra, em certas passagens deste ensaio as imagens poéticas nos contagiam com o fascínio do caos e da indiferenciação. Ora, não é outro o sentido apolíneo da criação artística, particularmente como configurado na tragédia ática. Nesse caso, seria lícito considerar que os limites formais inscritos no tom literário da escrita de Núpcias resguardam a individualização, a fronteira entre o eu e o mundo, de sorte que a consciência persevere ante o irresistível fascínio de fusão com a totalidade. Daí decorre que, ao texto de Camus, subjaz a contraposição entre os apelos veementes do mundo em sua força e beleza e a consciência que não cede à integração total, à sedução da perda. Compreendemos então a alusão do o autor à necessidade de reencontrar a verdade que emana do olhar dos “homens da antigüidade perante o seu destino” REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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(CAMUS, 1979, p. 23). Eis um dos momentos em que a leitura de Nietzsche aflora mais explicitamente na argumentação camusiana. Ao aludirmos ao Nascimento da Tragédia, vimos que o filósofo ressalta o discernimento que singularizou a cultura grega. Uma sensibilidade maximizada para o sofrimento e a clareza concernente à ausência de justificativas para o existir amalgamavam-se ao que o filósofo denominou a “vontade helênica”, ou seja, a capacidade de mascarar a realidade, de figurá-la em imagens estéticas que propiciavam múltiplos significados à existência. O olhar dos antigos, para falar como Camus, que mira fixamente, com seu pendor para o descomunal, a imagem conjunta do mundo, numa tônica nietzschiana, logra transmudar o fardo e o peso de existir em beleza estética. Decorre daí uma lucidez exemplar, que nada oculta, que incorpora a beleza, a miserabilidade e a atrocidade das forças que regem a vida, reelaborando-as numa atividade criadora, na instauração de jogos estéticos. Com essa filiação claramente sugerida, ratifica-se a prevalência de uma sensibilidade trágica nos textos de Camus, a qual conjuga a fruição de uma felicidade transbordante, o vislumbre da desmesura e a sabedoria acerca de uma aterradora verdade imanente à vida, com os limites e as medidas da forma estética. Assim, as formulações presentes nesse ensaio camusiano vêm ao encontro da asserção de Nietzsche, segundo a qual a conciliação entre as duas divindades não se circunscreve à tragédia, mas concerne à arte em sua dimensão mais universal: “Dioniso fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim fala a linguagem de Dioniso: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte em geral” (NIETZSCHE, 2005, p. 130, grifo nosso). Nesse viés, é interessante notar que, ao descrever, com uma sensibilidade apurada, as manifestações da natureza em Tipasa, Camus assinala que o contato com esse universo incrementa sua humanidade. A condição de homem é, pois, experienciada mais intensamente nos momentos em que se deixa invadir pelos movimentos minuciosos da natureza que a narrativa registra. Eis o ponto para o qual Camus, tal como Nietzsche, nos alerta: a consciência da finitude pode obliterar nossa sensibilidade para a ofuscante beleza mundana e para a fruição da felicidade a que a vida nos convida, submergindo-nos num pessimismo atroz. Não obstante, a comoção com a beleza, apolineamente experienciada, enseja o orgulho de estar no mundo, de apreendê-lo humanamente, sugerindo que o desempenho da condição humana é pleno quando alcançamos a consonância com o movimento das forças vitais: “Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade; dá-me orgulho de minha condição de homem” (1979, p. 13). Não é, pois, a negação da finitude ou a esperança de superar o nada que nos habita que conduz à felicidade; novamente, é a radical assunção da morte que torna irrecusável o gozo e a plena fruição da vida; não da vida sonhada; não de um outro mundo, como diria Nietzsche, moldado na fôrma das aspirações humanas que abolem a clivagem entre a consciência e o real que a circunda. Tratase aqui de acolher a vida com a intensidade que lhe é específica, o que redunda em consumar mais plenamente o pertencimento à humanidade, com tudo o que nela desespera e mortifica. Por conseguinte, tal como ocorre com os antigos, é em prol da adesão ao mundo, da tragicidade que o singulariza que Camus toma partido: “O que é a felicidade senão a simples harmonia entre um ser e sua própria existência? E que harmonia mais legítima pode unir o homem à vida do que a dupla consciência de seu desejo de duração e de seu destino de morte” (1979, p. 51)? Vislumbramos, assim, que a felicidade professada nas páginas de Núpcias, quando Camus se refere a Tipasa ou a Djemila, postula a morte e a insuperabili244

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dade do absurdo como intrínsecas à vida, sem a exclusão de toda a dor que esta inteligibilidade suscita. No entanto, esse gozo que não amortece a consciência revela-se indissociável da noção de medida. É o princípio apolíneo, subjacente ao texto, que consuma a renúncia tanto ao pessimismo imobilizador como à persecução de uma felicidade de outro mundo, numa idealização funesta e equívoca do real que se traduz num desejo de evasão da existência. O enlace entre o pensamento camusiano e a filosofia nietzschiana aponta para a recusa de um mundo extra-humano, e se traduz na crítica vigorosa à crença num mundo ideal seja de caráter laico ou transcendente. Na persecução de uma utopia além do humano, sonha-se a possibilidade de um mundo outro que ofereça alicerces inequívocos para a subjetividade humana. Erradica-se, assim, a cesura entre pensamento e mundo, interditando-se a tragicidade que rege a vida. A consideração trágica do mundo, perfilhada por Camus nesses ensaios, implica uma consciência da mortalidade cujo correlato consiste na abertura para a felicidade, para a busca de seu paroxismo, e não na esperança de superar a “ferida eterna da existência”, alcançando uma vida além dela. Em vez de recusar o combate a que a vida nos convoca, desprezando-a com a ilusão de uma outra vida, o olhar pessimista – mas não niilista – e trágico, que se inscreve nas linhas de Núpcias, aceita a condição de partícipe desta luta, sem que se delineie perspectivas quaisquer de vitória. Não há aqui resignação, mas amor visceral pela vida em seu horror e em sua beleza: “Uma inteligência sem deus que a aperfeiçoe, busca um deus naquilo que a nega” (CAMUS, 1979, p. 51). Nessa senda, é pertinente ratificar: ecoa por essa narrativas a convicção de que dizer sim à vida, numa tônica nietzschiana, equivale a abdicar de toda expectativa, renunciando à miragem de um outro mundo, esteja ele fixado numa lembrança imemorial ou emoldurado numa esperança que há ainda de se realizar. Pouca gente compreende que existe uma recusa que nada tema ver com a renúncia. Que significam aqui as palavras que falam de futuro, de maior bem-estar, de situação? Que significa o progresso do coração? Se rejeito obstinadamente todos os “mais tardes” do mundo, é porque se trata da mesma forma de não renuncia à minha riqueza presente (CAMUS, 1979, p. 21).

Sob essa perspectiva, não é gratuita a indignação de Camus ao aludir ao exercício de uma certa religiosidade em Argel. A vocação para o tédio que ressoa dessas práticas decorre quase que necessariamente de uma intensa repulsa em relação à nossa insuperável condição de efêmeros: “Os domingos de Argel são dos mais sinistros que existem. Como pôde, entretanto, esta gente sem senso de humor adornar com mitos o horror profundo de suas vidas? Aqui, tudo o que diz respeito à morte é considerado ridículo ou odioso” (CAMUS, 1979, p. 35). Eis a aliança entre o pavor à finitude e a prática ritualística, o patético culto aos mortos. O sentimento religioso investe com desvario na idéia de continuidade da alma, de eternidade; crença que pretende sanar todo e qualquer desespero humano. Nesse sentido, a recusa da morte tem como correlato a crença numa eternidade a posteriori, e, em nome dela, prevalece o ódio à vida, o tédio, a melancolia: “(...) se deveras existe um pecado contra a vida, talvez não seja tanto o de se desesperar com ela, mas o de esperar por outra vida, furtando-se assim à implacável grandeza desta” (CAMUS, 1979, p. 39). O pessimismo imobilizador tem seu correlato na procura de um ideal que elimine as antíteses do existir. Enquanto habitado pelo medo e pela recusa de sua condição, o homem REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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se apavora com a idéia da finitude, mas este pavor equivale a um “ciúme da vida”: E à medida que me separo do mundo que tenho medo da morte – à medida que me apego ao destino dos homens que vivem em vez de contemplar o céu que perdura. Criar mortos consciente é diminuir a distância que nos separa do mundo e entrar, sem alegria, na perfeição final, consciente das imagens de exaltação de um mundo perdido para sempre. E o canto triste das colinas de Djemila crava-me na alma ainda mais a amargura deste ensinamento (CAMUS, 1979, p. 24, grifos do autor).

Decorre daí que viver plenamente envolve a assunção das contradições que perfazem a tessitura da existência, não com uma postura resignada, mas com uma postura ativa, típica de quem aceita estar no mundo, ainda que para ser ultrapassado por ele, ainda que para enfrentar o necessário ocaso. Paradoxalmente, enfim, a afirmação da vida só se verifica quando a consciência incorpora sua tragicidade, ou, no dizer do autor, quando vivemos como mortos conscientes desesperançados de qualquer alternativa redentora. Eis o pessimismo trágico de Camus, no qual coexiste a clarividência de nossa condição de efêmeros e o amor contundente à vida. Aludindo ainda a Argel, o texto prossegue: “Tudo respira o horror de morrer, numa terra que convida à vida” (CAMUS, 1979, p. 36). Malgrado a denegação do mundo que se traduz em comportamentos místicos, Argel exala vitalidade por todos os lados, na beleza natural, na virulência e no descomprometimento de sua juventude. A poesia carnal desta terra revela, insiste Camus, um povo que justamente por não primar pelos requintes da civilização é criador. Há na displicência, na irresponsabilidade em relação ao futuro, na beleza física e no anti-intelectualismo dos argelinos uma proposta vigorosa de vida que prescinde de horizontes e de temporalidades que não o agora: (...) é possível encontrar, a um só tempo, no rosto violento e obstinado deste povo, uma medida e um desbordamento, tal como neste céu de verão, vazio de ternura, perante o qual todas as verdades podem ser ditas e onde nenhuma divindade enganadora jamais traçou os sinais da esperança ou da redenção (CAMUS, 1979, p. 37).

Destarte, é um convite à felicidade que exala desta natureza e deste povo cheio de entusiasmo de viver, cônscio de que não há “felicidade sobre-humana ou eternidade para além da curva dos dias” (1979, p. 38). Nestas linhas em que a cidade natal de Camus é o objeto da narrativa, torna-se ainda mais explícita a recusa do autor em aceitar uma felicidade cristalizada em ideais ou representações transcendentes: “O mundo é belo e fora dele não há bem-aventurança eterna” (1979, p.54). Logo, um apelo ressoa pelas páginas de Núpcias e, também, de O avesso e o direito: é a vida mesma que cumpre abraçarmos, recuperando os laços que vinculam o homem ao mundo. É preciso ponderar, entretanto, que o assentimento à tragicidade de nossa condição implica o divórcio com o tão sonhado lastro objetivo à subjetividade, a renúncia ao desejo de conformidade entre o pensamento e o ser, pertinente aos homens de todos os tempos. Por entre as linhas desses ensaios, reverbera, enfim, a sabedoria dos gregos, segundo a qual a experiência do frenesi da vida revela com muito mais veemência a sua absurdidade: “Imersa em beleza, a inteligência se entrega ao festim do nada” (CAMUS, 1979, p. 51). 246

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*Rita Paiva é professora da Universidade Federal de Guarulhos.

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POEMAS

1. DEFESA O querer não o quero. Defesa inócua, substitui-se em mim pela serenidade do nada o objeto. Sequer suspiro balança a alma. Ardo, no entanto, tola que sou, indefensável. (1997)

por Tereza Cristina B. Calomeni*

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2. PREGUIÇA à incisão da lâmina, a dor salta veloz corrompe o corpo a compaixão de si esmorece, exausto, o sofredor impuro (1997)

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3. DOR (I) Imprevista dor e inativa Estéril dor inusitada Tome tino, fiel a ti e a ti próxima Sê tal que não pergunta Vive vaga e escorregadia Qual enguia Em minhas mãos (1997)

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4. DESTINO Derrame-se luz no nevoeiro e em mim também se é provável. Cumpra-se, pois, o destino no presente -- o futuro já não posso: queima a alma e a ânsia dói, implume e ciente de si. (1997)

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5. BORBOLETAS Borboletas têm cor e movimento. De meu pensamento escorre a confusão. Meu pálido olhar segue vôo inalcançável. A mão é impotente e estéril o meu penar.

(1998)

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6. ABANDONO inversão do verbo reversão da hora: nada tenho ao toque da mão o poema regressa excitado: escuto emancipado retorna o poema à palma da mão: escrevo nada posso mas ronda tonta a pergunta no ar: abandono

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(1998)

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7. INTIMIDADE Não mais me perturba minha agonia extrema e só. Dela me cerco não mais hoje com pudor ou pena. Pareço estranha a que outrora fui, que chorava. Ora se esvai meu coração gentil com agonia dura: dilui-se, resignado, o abrigo do pranto. (1998)

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8. FADO escrava evidente e obstinada da ausência do verbo cedo à vaga sensação de querer dizer o que não posso meu fado -silêncio, desvão ilógica palavra -é quem me arrasta e orienta (2004)

*Teresa Cristina B. Calomesi é Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

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IDÉIAS

BERGSON ANTIPOSITIVISTA Lia de Oliveira Guarino*

Resumo: O artigo mostra a pertinência da filosofia de Bergson ainda hoje, pois é um pensamento que concilia o espírito inventivo com a objetividade científica sem cair na armadilha do positivismo. Bergson se mostrou um crítico feroz da psicofísica de seu tempo que pretendia reduzir o campo do pensamento ao localizacionismo cerebral. Hoje, com as pesquisas das neurociências, uma nova onda positivista ressurge com a mesma intenção de redução do pensamento inventivo ao plano espacial do cérebro. Nesse contexto, achamos pertinente um retorno ao bergsonismo que visa conciliar o conhecimento científico, objetivo, com a singularidade do pensamento inventivo, espiritual, ao mesmo tempo que critica um redução deste àquele. Uma tal conciliação (da matéria com o espírito, nos termos de Bergson) se faz com base num monismo da mudança em si, que se define ao mesmo tempo como um ato de diferenciação e repetição. PALVRAS-CHAVE: FILOSOFIA; CIÊNCIA; POSITIVISMO Abstract: This article argues for the importance of Bergson’s philosophy today, because it reconciles the creative spirit with objective science without being caught up in the snare of positivism. Bergson was an unwavering critic of the psychophysics of his time and its project of reducing the sphere of thought to brain locations. Today, the positivist hope of reducing creative thought to the spatial plane of the brain has resurged, based on research of the neurosciences. In this context, we believe that a return to Bergson is pertinent: he seeks to reconcile scientific knowledge with the singularity of creative thought. Such a reconciliation (of matter and spirit, to use Bergson’s terms) has as its basis a monism of change per se, which may be defined as an act of differentiation and repetition. KEYWORDS: PHILOSOPHY; SCIENCE; POSITIVISM

Todo sistema filosófico parece gratuito se não soubermos ao certo a que tipo de problema visa responder. É claro que podemos reproduzir academicamente as idéias de um pensador, articulando seus conceitos de maneira correta e concisa, porém tudo isso se revela insuficiente na ausência do problema. Muito embora implícito, não sendo dito com todas as letras, ele constitui o princípio de inteligibilidade da doutrina, cabendo ao intérprete sua devida explicitação, sem a qual as palavras do filósofo permaneceriam demasiadamente vaga. Em se tratando da filosofia de Henri Bergson esta exigência se faz ainda mais premente. Pois não foi este autor quem pretendeu lançar sobre os problemas que atravessam a história da filosofia a prova do verdadeiro REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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e do falso? Não foi Bergson quem nos sugeriu averiguar em primeiro lugar a natureza do problema (se bem ou mal colocado) antes de atestar a “veracidade” de sua resposta? Sendo assim, e aplicando Bergson a Bergson, nada seria menos satisfatório do que nos limitar a repetir automaticamente enunciados tais como “o todo não está dado”, “o universo dura”, ou “a vida é um esforço contínuo de criação de imprevisível forma”. Pois ainda que essas afirmações estejam de fato contidas no corpus doutrinal bergsoniano, é preciso buscar primeiramente compreender a que tipo de problema elas se vinculam, e até que ponto este pode ser considerado um bom problema. Bergson é um filósofo do fim do século XIX, época em que a ciência alcança rigor e maturidade próprios, e que a filosofia se encontra profundamente questionada no que diz respeito a sua tarefa e estatuto essenciais. Sabe-se que, desde Kant, as pretensões da metafísica dogmática foram sistematicamente abaladas, a tentativa de conhecimento das coisas em si não tinha a mesma certeza, ou eficácia, da abordagem mais modesta de uma realidade fenomênica, própria das ciências empíricas. O jogo indecidível de teses e antíteses, paralogismos e anfibologias, relatados na Dialética Trancendental da Crítica da Razão Pura parecia revelar, em última instância, o caráter não controlável das proposições metafísicas. Por não se aplicarem a uma realidade submetida à forma espaço-temporal, os juízos acerca de objetos supra-sensíveis tais como Deus, a alma, e o mundo redundavam em proposições falaciosas, ou em argumentos opostos e igualmente demonstráveis sem ferir o princípio de não contradição (o mundo tem um começo no tempo/ o mundo é infinito no tempo...etc.). Enfim, ultrapassando os limites da experiência possível, a metafísica, que arrogava para si o conhecimento da realidade suprema, surgia aos olhos de Kant, como um saber fadado a engendrar antinomias, lançando a razão num perpétuo conflito consigo mesma. Nada de tal se atestava nos juízos de experiência próprios à física, por exemplo, que por sintetizarem intuições sensíveis, satisfaziam o critério de sentido cognitivo proposto pela Lógica Transcendental. Na perspectiva inaugurada pela Crítica, estabelecer os critérios de validade do conhecimento, analisando em que condições este último é possível a priori passa a ser desde então a tarefa designada à filosofia. Mas se Kant ainda reservava um papel para a filosofia no contexto da Crítica da Razão Pura (conhecer as formas de conhecer), o positivismo do século XIX pretendeu destituir essa disciplina de toda e qualquer função cognitiva. Para o cientificismo então reinante, só às proposições submetidas ao controle experimental era creditada legitimidade discursiva, a filosofia não passando de um saber alheio à positividade dos fatos e que, embora um passo adiante da magia ou da religião – por seu apelo à racionalidade – permanecia, no entanto, aquém das exigências protocolares da metodologia científica. Porém, o que o positivismo não viu com nitidez é que essa pretendida “eliminação” da filosofia como modalidade discursiva constituía ela própria uma filosofia, não sendo sem conseqüências no que diz respeito às demais esferas da cultura. Levada ao extremo, a posição positivista implicava a admissão mais ou menos tácita de que tanto os fatos naturais cabiam ser conhecidos pela física, química e biologia, quanto aqueles pertinentes ao campo ético e político poderiam (e deveriam) ser avaliados pelo padrão da psicologia e da sociologia empíricas.1 Bergson, por seu turno, pretende abordar os problemas relativos à liberdade no nível ontológico. Seguindo a intuição como método e sem apelar para simbolismos intelectuais inerentes à ciência, seja ela natural ou humana; e preservando a distinção estabelecida pela filosofia transcendental entre o plano da 258

1 O mesmo espírito positivista da época de Bergson ressurge hoje, no início do século XXI, através das neuro ciências que pretendem reduzir o campo do pensamento (paixões, inteligência, humores, temperamento, comportamento) a pesquisas neuronais no qual o cérebro seria determinante. A pertinência de Bergson em nossos dias se faz devido ao instrumental conceitual que o filósofo francês nos fornece contra a onda positivista ressucitada na atualidadade onde o investimento em pesquisas relacionando cérebro e pensamento é crescente, assim como o consumo de remédios psiquiátricos se faz cada dia mais comum.

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2 Sem dúvida, isso não implica dizer que sua moral equivalha àquela estabelecida na Crítica da Razão Prática, uma vez que sua concepção do ato livre não se assemelha em nada à obediência a um imperativo universal, ditado pela razão. A liberdade, no bergsonismo, é intuída como a realização de um ato criador, singular e imprevisível. Mas não é abusivo considerar que ao menos no que diz respeito à manutenção da distinção preliminar entre as séries determinismo/liberdade, Bergson mantemse fiel, em certa medida, às premissas kantianas.

3 E.C. p. 344.

liberdade e o dos fatos determináveis empiricamente, Bergson buscou mostrar desde o Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência – quando de sua censura à psicofísica – que, entre o mecanismo pensado intelectualmente e a experiência singular da criação, há uma diferença de natureza a ser considerada.2 Esta diferença supõe a vigência de duas atitudes distintas de pensamento, cada qual incidindo sobre seu domínio respectivo: a inteligência das regularidades da matéria, e a intuição que experimenta o real em sua simplicidade imediata, que vive a coisa “de dentro”, sem subordiná-la a nenhuma relação causal. Pois se o conhecimento científico, na interpretação bergsoniana, pensa uma realidade já dada, sem novidade, é na medida em que o mesmo efeito preexiste real ou idealmente na causa, ou é pré-formado ao modo da possibilidade num projeto. Aqui, tudo se passa como se os fenômenos se desdobrassem numa espécie de instantaneidade pura, onde o futuro já estivesse prefigurado no presente, onde a realidade do tempo estivesse enfim anulada. Nada mais distante desta forma de tempo “espacializado” do que a duração bergsoniana, constituída por uma multiplicidade de “instantes” interpenetrados em processo de diferenciação continuada, e que apreendemos intuitivamente, por exemplo, no fluxo da consciência ou mesmo na evolução das espécies vivas. Paralelamente à inteligência, modo de pensamento que supõe a forma da experiência possível, o bergsonismo põe em relevo a intuição como modo imediato de apreensão de um absoluto. Como se entrevê, essa distinção de natureza entre duas maneiras de pensar – inteligência e intuição – recobre aquela, até certo ponto já clássica, entre filosofia e ciência. “Ciência e metafísica seriam duas maneiras opostas, embora complementares de conhecer, retendo a primeira apenas instantes, isto é, aquilo que não dura, incidindo a segunda sobre a duração propriamente dita”.3 Não respeitar a diferença de natureza entre esses dois atos de pensamento, alargando a objetividade que a inteligência produz para o todo da experiência, significa assumir a posição positivista, que tende a reduzir toda realidade às diferenças de grau, isto é, à objetividade calculável. Em última instância, esta posição vem a conceber o universo como uma grande “máquina” regida por leis controladas por uma hipotética inteligência superior que, de direito, conheceria todas as vaiáveis desse magnífico engenho. O positivismo implica assim uma visão determinista do todo – uma “filosofia” portanto – e não apenas, limitadamente, dos fenômenos empíricos abordáveis pela ciência. Para Begson esta visão traz a idéia de que a ação de todos os seres se reduz ao mero efeito de um jogo mecânico de forças materiais. Dessa maneira, o ato livre, criador, vem a ser tomado como uma imagem ilusória da consciência, uma ficção despropositada. Nesse contexto, a problemática bergsoniana adquire sentido, e pode ser enunciada da seguinte forma: como salvaguardar a independência do ato livre, o poder de invenção próprio à consciência e mesmo, como será dito em A Evolução Criadora, à vida na esfera da natureza, sem deixar de se considerar a eficácia do conhecimento científico no domínio que lhe é reservado, limitando o anseio positivista, mais ou menos explícito, de alargar a causalidade para o todo do universo?

Contra esse anseio duas objeções podem, de saída, ser esboçadas: ou bem a proposição de que “tudo pode ser submetido à leis causais” é ela própria efeito de uma ação determinante por causas materiais, e seu valor é nulo; ou bem essa tese é afirmada por uma vontade livre, exceção em relação à regra que enuncia. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Neste segundo caso estamos às voltas com uma contradição pragmática, onde o conteúdo da tese contraria sua condição de enunciabilidade. No primeiro, estamos diante de uma proposição menos que falsa; não estamos sequer diante de uma autêntica proposição, pois para erguer pretensão de verdade é preciso que o discurso se encontre meta-situado em relação à realidade sobre a qual ele pretende incidir. Rejeitando a extrapolação cientificista, Bergson limita a validade do conhecimento científico à esfera da atualidade material, sem pretender estendê-la para o todo. Essa postura salvaguarda a possibilidade de uma ação livre e criadora, que revela em última instância, a efetividade virtual-ontológica do espírito. No entender do filósofo, matéria e espírito não são duas coisas distintas, duas naturezas diferentes, duas substâncias numericamente separadas, elas são na verdade “duas” tendências, “dois” ritmos que diferem em natureza no interior da mesma experiência. A tendência materializante é responsável por aquilo que há nesta experiência de repetitivo, ao passo que a tendência espiritual por aquilo que nela há de singular. Mas como compreender o estatuto da tendência ou da noção de ritmo? Para esclarecê-lo, é preciso inicialmente mostrar o que implica a noção de mudança, pensada absolutamente. O esforço de Bergson consiste em partir de algo cuja essência própria é mudar (a duração), ao invés de derivar da coisa estática uma mudança que lhe seria acidental. Pois não existem no entender do filósofo “coisas” que mudem, “substratos” que se alterem: a mudança constitui na verdade a natureza a mais íntima da coisa. Esta mudança se faz sem apoio, sem um meio, ela é em si. “A mudança não tem necessidade de um suporte. Há movimentos, mas não há objeto inerte, invariável, que se mova: o movimento não implica um móvel”.4 As duas direções do movimento, embora divergentes, coexistem no ato simples de mudar. Orientando-se ao longo de sua obra por essa intuição fundamental, Bergson mostrará que toda coisa, por mais estática que pareça, é atravessada pela mudança, sendo marcada por uma temporalidade que lhe é constitutiva. O tempo é entendido pelo autor de O Pensamento e o Movente como um processo transitório que se faz à medida que se desfaz. O método de Bergson, presente em todos os seus livros principais, consiste em considerar sistematicamente na coisa as duas direções divergentes de “seu” movimento próprio, as diferenças de natureza que compõem a mistura. Todo existente é o produto de um processo incessante de criação do absolutamente novo que coexiste com um processo inverso, caracterizado pelo movimento de repetir o já dado. Todos aqueles que optam por destacar apenas uma dessas tendências em detrimento da outra, podem ser considerados adversários de Bergson. Os positivistas, por exemplo (vide a psicofísica do início do século XX, e as neurociências de hoje), pretendem tomar a liberdade espiritual como um simples epifenômeno redutível a um plano de determinismo causal, onde a toda ação corresponde uma reação, cabendo à inteligência seu cálculo e previsão. Os espiritualistas, por sua vez, pretendem, atribuir ao espírito o primado sobre a matéria.5 Se esta segunda posição atendia por 260

4 P.M., p. 163; Oeuvres, p.1382. 5 Pode-se definir dois tipos de espiritualismo: um dualista à maneira de Descartes, no qual o espírito é concebido como substância racional separada, independente do corpo; e um monista que estabelece o espírito como constituindo a natureza última das coisas, mesmo as materiais. Bergson, embora se aproxime mais da segunda, nega essas duas posições. Pois diferentemente da primeira, ele vai estabelecer uma distinção, não uma separação, entre corpo e alma. Além disso, ele dá o primado a esta última, não por sua natureza racional, mas devido à sua potência criadora. A segunda posição, por sua vez, consiste em eliminar absolutamente a distinção de natureza entre o plano material e o espiritual da qual Bergson não abre mão.

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6 E.C. p. 269; Oeuvres, p. 722.

7 M.M. p. 1 Oeuvres, 161.

8 M.R., p. 313; Oeuvres, 1225. “A essência de uma tendência vital é desenvolver-se em forma de feixe, criando pelo único fato de seu crescimento, direções divergentes entre as quais dividirá seu impulso”. 9 E.S. p. 136; Oeuvres, p. 917.

um lado ao desejo bergsoniano de salvaguardar a liberdade no ser, ela terminava por desprezar de maneira excessiva o fato das relações causais atestadas pela ciência. E esse desprezo, em plena era do progresso científico, corria o sério risco de lançar, segundo Bergson, a filosofia no ridículo. O espiritualismo “tem razão, sem dúvida, em escutar a consciência, quando a consciência afirma a liberdade humana; - mas a inteligência aí está para dizer que a causa determina seu efeito, que o mesmo condiciona o mesmo, que tudo se repete e que tudo é dado. Tem razão em crer na realidade absoluta do espírito e na sua independência em relação à matéria; - mas aí está a ciência, que mostra a solidariedade da vida consciente e da atividade cerebral”.6 A tese bergsoniana da coexistência de diferentes tendências no interior de um mesmo fenômeno (psíquico ou vital) em mudança surge desde então para solucionar o problema da coexistência do determinismo com a liberdade. Mas essa tese não resolverá o problema colocado sem deixar de trazer um novo: admitindo-se um dualismo de tendências, uma não será exterior à outra? A criação transcenderá a repetição? Se admitirmos, com Bergson, que a filosofia deve pensar a imanência, ou seja, um único plano ontológico, como escapar de recair em um dualismo platônico (para não dizer religioso...) corpo-alma, matéria-espírito? Em Matéria e Memória é dito que a tese central é dualista, mas que encara o corpo e o espírito de uma tal maneira que pretende atenuar muito, senão suprimir, as dificuldades teóricas que o dualismo sempre levantou e que fazem com que, sugerido pela consciência imediata, adotado pelo senso comum, tenha muito pouca estima entre os filósofos (o grifo é nosso).7

Para pensarmos a imanência é preciso escapar dos dualismos, pois eles mantêm a forma da exterioridade, da transcendência. Para Bergson se as duas tendências atuais são distintas, elas não se separam, coexistindo virtualmente num monismo absoluto, numa única realidade mais fundamental. Elas exprimem as direções divergentes de um único e mesmo movimento. Mas qual é a natureza desse movimento? Ele deve ser compreendido a partir do primado de uma das tendências, a saber, a tendência espiritual. Tudo se passa como se a duração espiritual, embora sendo uma das tendências, fosse aquela que repetisse, na atualidade, a natureza única das coisas. Sendo um todo inventivo, aberto, a duração atual revela o fundo último, virtual, de onde origina as duas tendências. Esse fundo virtual deve ser compreendido como mudança pura, na qual deriva a tendência da duração que a repete na atualidade, como também a tendência atual da materialização, que surge a partir de uma divisão no interior da duração.8 A duração encarada como um todo virtual é o que produz as diferenças de natureza atuais (matéria e espírito). Ela “se cinde ao mesmo tempo que se põe. Ou antes ela consiste nessa cisão mesma”.9 A partir dessa perspectiva monista onde a duração virtual é a cisão, o jato único que se lança am direções divergentes, pode-se encarar a diferença de natureza como uma gradação do processo da mudança virtual. Por mais estranha que possa parecer essa idéia à primeira vista – já que Bergson é um crítico daqueles que pretendem reduzir todo o real às diferenças de grau – veremos que, no processo único de diferenciação da duração virtual, há um certo matiz no real. A tese de Bergson consiste em afirmar uma série de nuances desde a repetição material até o pensamento criador. Contudo, é necessário ressaltar desde já que essa noção de grau não deve ser entendida no sentido quantitativo, matemático, senão

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o bergsonismo seria contraditório consigo mesmo, pois teria reduzido o real, tal como o positivismo, às diferenças de grau. A gradação ontológica de que nos fala Bergson, deve ser compreendida no sentido qualitativo, por isso muitas vezes ele emprega o termo nuance para não confundir com uma grandeza matemática. A gradação ontológica confunde-se com as nuances do processo, os matizes do ser, não com as grandezas intensivas.10 O estabelecimento das diferenças de natureza, embora sendo uma operação intermediária até que se chegue ao monismo gradativo da duração, serviu para evitar que se tomasse o fenômeno apenas como um dado positivo mensurável. A diferença de natureza revela que o real não se reduz ao que aparece, mas guarda um fundo invisível e virtual que a coisa arrasta consigo, para além de sua dimensão “espacial”. Com as duas tendências, Bergson introduz a idéia de tempo ou de duração no interior da coisa. Mas ele vai mais longe ainda quando, numa perspectiva monista, insere toda coisa num grau qualitativo da duração. Se o real para o bergsonismo é redutível em última instância à duração espiritual, por que então Bergson critica o espiritualismo? A concepção monista da duração virtual não será também redutora? O que parece distinguir Bergson do espiritualismo tradicional é que, embora ele defina a duração virtual como uma série de graus do espírito, ele pode considerar os extremos desses graus como naturezas diferentes, já que se encontram muito afastados uns dos outros.11 Assim fazendo, Bergson salvaguarda um lugar para a ciência que deve se ater ao conhecimento de uma das duas tendências: a matéria. Para o espiritualismo a matéria sensível permanece ignorada, ao passo que Bergson considera a materialidade passível de ser conhecida pela inteligência científica. Se o real como um todo é espiritual, capaz de ser apreendido pela filosofia, nem por isso ele deixa de ser conciliável com a ciência. Pois a esta cabe conhecer da coisa o que lhe é repetitivo. Buscando leis na matéria, a cientificidade tende a abolir completamente a mínima porção de mudança presente nas coisas. Se o ritmo da repetição apresenta uma certa temporalidade, por “menor” que seja, a inteligência científica a abole inteiramente tornando todo fenômeno uma mera instantaneidade. Um “espiritualismo” conciliável com a cientificidade, eis o que parece o bergsonismo. Estabelecer um domínio à cientificidade é restringi-la ao conhecimento dos fatos. No domínio filosófico, Bergson inverte o modo intelectualista de pensar, dando o primado não aos fatos representáveis, mas às interpretações baseadas numa intuição filosófica; não ao objetivismo exarcebado, e sim, ao pensamento inventivo. A materialidade positiva deve servir apenas como pretexto para a inventividade do espírito. Vale ressaltar que esta espécie de “primado” do espiritual sobre o material não significa, entretanto, um retorno à velha superioridade da alma sobre o corpo cara a um espiritualismo racionalista, mas do pensamento criador (não intelectual) sobre o dado empírico. É nesse sentido que entendemos o bergsonismo como uma ética. Pois sua filosofia visa sobretudo estimular a potência inventiva do pensamento e da vida, ao invés de limitar o primeiro à simples representação dos fatos ocorridos no espaço, e a segunda à mera adaptação às circunstâncias envolventes. Se as regras da inteligência têm eficácia, elas não constituem a natureza última do espírito, à maneira de uma tábua de categorias a priori. O conceito de virtual não quer dizer outra coisa além do fato de que, para Bergson, viver não é sobreviver, como tampouco pensar é classificar.

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10 M.R., p. 313; Oeuvres, p.1225. Para exemplificar essa idéia, Bergson evoca a cor alaranjada. Esta não surge a partir da composição de duas cores previamente dadas, o amarelo e o vermelho. Ao contrário, são essas duas últimas cores que surgem da intensificação do laranja. É somente depois da aparição delas que a inteligência lança-se para trás como tendo sido desde sempre a condição de possibilidade do laranja. Assim fazendo, a inteligência toma a coisa como o resultado de partes agregadas, previamente existentes, e não como derivadas da intensificação de algo que é um todo contínuo.

11 M.R., p.2; Oeuvres, p.982. “Quando uma grandeza é de tal maneira superior a uma outra que esta é negligenciável em relação àquela, os matemáticos dizem que é de uma outra ordem”.

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BIBLIOGRAFIA: BERGSON – A Evolução criadora. Trad. Adolfo Monteiro. Rio de Janeiro: ed. Opera Mundi, 1973. _________ - Essai sur les Données Immédiates de la Conscience. Paris: PUF, 1948. _________ - La Pensée et le Movant. Paris: PUF, 1993. _________ - L’Énergie spirituelle. Paris: Librairie Félix Alcan, 1929. _________ - Les Deux Sources de la Morale et de la Religion. Paris: PUF, 1967. _________ - Matière et Mémoire. Paris: PUF, 1990. _________ - Oeuvres. Paris: PUF, 1970. DELEUZE - Bergsonismo. Trad. Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999. ________ - A Concepção da Diferença em Bergson. Trad. Lia Guarino in Bergsonismo. São Paulo: ed. 34, 1999. GOUHIER, H. – Bergson dans l´histoire de la Pensée Occidentale. Paris: VRIN, 1989. KANT, E. – Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1989. PRADO JR., B. – Presença e Campo Transcendental. São Paulo: Edusp, 1989.

*Lia de Oliveira Guarino é professora de filosofia no Cap da UFRJ e doutora em filosofia pela UFRJ.

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DEBATE

O SER E O SOL REVISITANDO A POLÊMICA SARTRE VERSUS CAMUS Valdir Baptista*

Resumo: O polêmico fim da amizade dos intelectuais Albert Camus e Jean-Paul Sartre, ambos vencedores do Prêmio Nobel de Literatura, envolve temas que mantêm grande contemporaneidade, como o pacifismo e a defesa dos interesses dos povos oprimidos, imperativos éticos que moveram esses protagonistas. A presença daquelas contradições nos conflitos atuais torna o entendimento deste episódio uma ferramenta útil para entender como as posturas ideológicas podem dividir os homens, a ponto de levar ao rompimento irreconciliável, seja na dimensão íntima da amizade ou no palco ampliado das relações entre nações ou etnias. Afinal de contas, reafirmando Sartre, o inferno continua sendo “os outros”. PALAVRAS-CHAVE: SARTRE; CAMUS; POLÊMICA Abstract: The polemic end of the relationship of Albert Camus and Jean-Paul Sartre, winners, both, of the Nobel of Literature, involves subjects that are still contemporary, like pacifism and the defense of peoples’ oppressed interests, ethical imperatives which moved these protagonists. The presence of those contradictions at nowadays’ conflicts makes the understanding of this occurrence a useful tool to get comprehension about ideological attitudes and its power to divide men till the irreconciliable break off: at intimate dimension of friendship or in the wide stage of the relations between nations and ethinic groups. At last, following Sartre’s statement, hell go on being “the others”. KEYWORDS: SARTRE; CAMUS; POLEMIC

Albert Camus e Jean-Paul Sartre protagonizaram uma das mais significativas relações de amizade entre intelectuais do século XX e o episódio que finaliza esse vínculo, pela riqueza do conflito ideológico que contém, merece um estudo sobre a interseção entre a razão do indivíduo e os imperativos éticos de sua consciência e de seu estar no tempo e na história. O caráter público do rompimento e mesmo seus desdobramentos na intrincada rede de posicionamentos dos intelectuais no ambiente dos primeiros anos da Guerra Fria pressupõe que o caso extrapola a esfera particular. O historiador francês Jean-Pierre Vernant, em seu belo texto Tecer a Amizade, explica como os gregos (tão caros a Camus e Sartre, que lhes emprestaram Sísifo e Orestes) entendiam a amizade como a base da vida social:

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Existe em grego uma espécie de sentença, um ditado que expressa um consenso: entre amigos, tudo é comum. Conhecemos bem a distinção grega entre o privado e o público: o privado é o que pertence a cada um propriamente, em sua singularidade, sua diferença; público é o que deve ser posto em comum e igualmente repartido entre os membros do grupo. A amizade aparenta-se a ambos os campos; ela liga e rege a ambos. (...) No espaço privado em que se desenham os amigos, tudo é repartido entre iguais, tudo é comum, como no espaço público da cidadania. A amizade se tece na articulação do privado, do próprio, do diferente com o público, o comum, o mesmo.1

Seguindo esta classificação de Vernant (que, inclusive, foi companheiro de Camus e Sartre na Resistência Francesa), vamos inventariar rapidamente algumas semelhanças entre ambos. Nasceram às vésperas da 1ª Grande Guerra Mundial (Sartre em 1905, Camus em 1913), perderam o pai com menos de dois anos de idade, estudaram Filosofia, revoltaram-se contra as injustiças do seu tempo, engajaram-se na Resistência Francesa para lutar contra o nazismo, escreveram romances, peças teatrais e ensaios, alcançaram o reconhecimento público por suas obras no imediato pós-guerra, ganharam o Prêmio Nobel de Literatura. Até eventuais equívocos os uniam (e unem até hoje): quando se fala em existencialismo, os nomes de Sartre e Camus são invariavelmente citados. Enquanto Sartre assumia a sua versão do existencialismo, Camus repudiava esta classificação e negava, inclusive, ser filósofo. A confusão, nascida em função de um reducionismo tipicamente didático, certamente tem raízes também na profunda associação entre os dois nomes que ainda permanece viva. Mas aquela era uma “época das ideologias” (para usar uma expressão camusiana) e o entroncamento de suas vidas encontrou Camus e Sartre em caminhos invertidos: se Camus havia sido ainda muito jovem membro do Partido Comunista na Argélia e com ele rompido alguns anos depois, Sartre deixara a metafísica de O Ser e o Nada pelo investimento em uma retórica mais participativa e, embora jamais se filiasse ao PCF, passou a defender a URSS como referência política. A ruptura, portanto, era questão de tempo e a “deixa” para que ela ocorresse veio com a publicação do ensaio O Homem Revoltado por Camus, em 1951. Horácio González resume bem o livro: “Em O Homem Revoltado Camus examinará dois séculos de revolta, fazendo uma história das ideologias e das mentalidades européias (...) consagra a visão camusiana por excelência: o valor precede a ação. A ação justifica, porém, a revolta”.2 O próprio González considera que, quando de sua publicação, “a tempestade era previsível. O livro tinha afirmado as fontes da moral e desdenhado as fontes da história. A reconstituição alerta dos pensamentos políticos e literários europeus – entre áspera e esplêndida – não iria tirar-lhe seu caráter implícito de manifesto severamente endereçado contra as filosofias que dominavam o horizonte da época”.3 Les Temps Modernes, a revista dirigida por Sartre com a qual Camus colaborou diversas vezes (no que era retribuído com artigos sartreanos em Combat), depois de um longo silêncio, publicou em maio de 1952 um artigo de 20 páginas de 266

1 VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito & Política. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2001, pg. 27.

2 GONZÁLEZ, Horácio. Albert Camus – A Libertinagem do Sol. São Paulo, Brasiliense, 1982, pg. 77.

3 Idem, pg. 82.

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4 Polémica Sartre-Camus. Buenos Aires: Ediciones del Escarabajo de Oro, 1965, pg. 13 (tradução nossa).

5 Idem, pg. 24.

Francis Jeanson (cuja importância intelectual resume-se apenas a alguns volumes laudatórios sobre Sartre e breviários sobre outros temas) atacando o livro e, especialmente, Camus. O título do texto era Albert Camus ou A Alma Rebelde, cuja ironia fala por si e dá a medida do nível de agressividade de seu conteúdo. Há um “desmanche” não só de O Homem Revoltado mas de toda a obra anterior de Camus e conta com passagens de pura provocação como a que o acusa de ser um “espírito mediterrâneo, incendiado de transparência intelectual, fiel à constância solar, a luz pura do meio-dia”4 e mesmo a que afirma que certamente, Camus não é ateu: é um antiteísta passivo. Não nega a Deus, posto que o acusa de injustiça, não pretende triunfar sobre ele (isto seria ‘desmedido’): só quer desafiá-lo, e permanecer sem descanso, frente a este Senhor, como o escravo rebelde.5

A reação imediata de Camus foi tornada pública em uma carta endereçada a Jean-Paul Sartre, a quem chama de “Monsieur Le Directeur de Les Temps Modernes” e refere-se a Jeanson como “seu colaborador”, o que coloca o autor do primeiro artigo no papel de uma espécie de “capanga intelectual” de Sartre. Certamente aí entra uma concepção de Camus de que o diretor de uma publicação deve concordar com os artigos que nela são veiculados e compartilhar as opiniões emitidas por seus colaboradores, em contraponto a outra, que permite a pluralidade de posições. O fato é que a já citada escassa relevância intelectual de Jeanson e o mal-estar causado pelo artigo publicado “na revista de Sartre” certamente atestam, no mínimo, uma relativa anuência de “Monsieur Le Directeur”. Camus escreve que

6 Idem, pg. 33.

meu esforço consistirá em demonstrar qual pode ser a verdadeira intenção de seu colaborador quando pratica a omissão, tergiversa a tese do livro que se propõe a criticar e fabrica uma biografia imaginária de seu autor. Uma questão, aparentemente secundária, pode situar-nos de imediato no caminho de uma interpretação. Se refere à acolhida que, segundo afirma, teve meu livro na imprensa de direita”.6

Camus contesta esta afirmação citando artigos contra O Homem Revoltado publicados em revistas e jornais de direita, assim com argumenta, com ironia, que com certa freqüência livros de autores ligados a Les Temps Modernes são elogiados por essas mesmas publicações. À acusação de ignorar a história, responde que Jeanson

7 Idem, pgs. 37-38.

ao tomar em primeiro lugar o pretexto do meu método, afirma que eu rechaço a influência dos fatores econômicos e históricos na gênesis das revoluções. Na realidade, não sou tão ingênuo nem tão inculto para isso. Se em uma obra, eu estudasse exclusivamente a influência da comicidade grega no teatro de Moliére, isto não significaria que negasse as fontes italianas de sua obra. Com O Homem Revoltado empreendi um estudo sobre o aspecto ideológico das revoluções. Ao que não só tinha direito, mas também havia certa urgência em fazê-lo, num momento em que a economia é o pão nosso de cada dia e em que centenas de volumes e publicações chamam a atenção de um público demasiado paciente sobre as bases econômicas da história e da eletricidade sobre a filosofia”.7

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E Camus aproveita para espicaçar: “O que Les Temps Modernes faz diariamente com tanta boa vontade, por que haveria eu de refazer? É necessário se especializar.”8 Mas o ataque principal acaba sendo contra o próprio Sartre, ao escrever que estava cansado de ver-me, e a ver especialmente antigos militantes que nunca recusaram nenhuma das lutas do seu tempo, receber sem trégua lições de eficácia por parte de censores que nunca colocaram nada além de sua poltrona no sentido da história.9

E Sartre, que adorava polêmicas, revidou prontamente no mesmo número de agosto de Les Temps Modernes, que trazia ainda uma resposta de Jeanson. Ao “Monsieur Le Directeur”, que muito o irritara, respondeu com “Meu caro Camus” e diz, logo nas primeiras linhas, que “a nossa amizade não era fácil, mas vou sentir a falta dela”.10 Os laços estavam quebrados e a argumentação continuava com trechos como “se temos de falar de si como o anticomunista fala da URSS; infelizmente como você fala dela – que você fez o seu Termidor”11 e Meu Deus! Camus, como você é sério e, para empregar uma das suas palavras, como você é frívolo. E se você se tivesse enganado? E se o seu livro fosse apenas o testemunho da sua incompetência filosófica? Se ele fosse feito de conhecimentos reunidos à pressa e de segunda mão?12

Vale transcrever a lista de acusações de Sartre a Camus elaborada por Horácio Gonzáles: “frivolidade, moralismo, trabalho incompetente, álibi para os privilegiados, ignorância dos processos históricos, único lar das mudanças da realidade”.13 Além da resposta de Sartre, aquele número de Les Temps Modernes trazia ainda um novo ataque de Jeanson a Camus. A polêmica torna-se um grande assunto para as publicações francesas em geral e diversos intelectuais, da direita à esquerda, opinam sobre a “briga entre os existencialistas”. Les Temps Modernes aumenta sua tiragem em função da propaganda decorrente do episódio e Sartre já no número de julho da revista (portanto imediatamente anterior à sua resposta a Camus) havia publicado a primeira parte do seu artigo Os Comunistas e a Paz, no qual defendia que a URSS de Stalin queria a paz e que (usamos o resumo de Michel Winock) “o proletariado é o único agente histórico que traz em si o fim da exploração e uma nova sociedade; a classe operária entregue a si mesma não existe, ela só se torna proletariado pelo Partido Comunista e exclusivamente por ele; devemos associar Partido Comunista e proletariado e seguir sua política como única possível”.14 Isto é, Les Temps Modernes, que antes se alinhava à esquerda independente francesa e tinha uma postura crítica em relação ao stalinismo (chegou a publicar um artigo de Merleau-Ponty em 1950 denunciando os gulags soviéticos), agora dava uma guinada política: Sartre adotava a URSS como referencial no contexto da Guerra Fria, assumindo uma postura antiamericanista e considerando mesmo que “um anticomunista é um cão”15 e que seu alinhamento com o PCF “em linguagem de Igreja, foi uma conversão”.16 Enquanto Sartre caminhava no sentido dos imperativos da razão histórica, Camus recolheu-se. Não respondeu a Sartre em Les Temps Modernes – este lhe oferecera o direito de resposta ao fim de seu artigo –, inclusive porque não queria 268

8 Idem, pg. 38.

9 Idem, pgs. 50-51.

10 SARTRE, Jean-Paul. Situações IV. Tradução de Maria Eduarda Reis Colares e Eduardo Prado Coelho. Lisboa: Europa-América, 1972, pg. 80. 11 Idem, pg. 81.

12 Idem, pg. 89.

13 GONZÁLEZ, Horácio. Albert Camus – A Libertinagem do Sol. São Paulo, Brasiliense, 1982, pg. 85.

14 WINOCK, Michel. O Século dos Intelectuais. Tradução de Eloá Jacobina. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2000, pg. 639. 15 SARTRE, Jean-Paul. Situações IV. Tradução de Maria Eduarda Reis Colares e Eduardo Prado Coelho. Lisboa: Europa-América, 1972, pg. 215. 16 Idem.

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17 Declaração de Camus a seu amigo Urbain Polge apud TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Tradução de Monica Stahel. Rio de Janeiro: Record, 1998, pg. 586. 18 Conversa com Jeanne Terracini apud Apud TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Tradução de Monica Stahel. Rio de Janeiro: Record, 1998, pg. 586.

19 Apud TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Tradução de Monica Stahel. Rio de Janeiro: Record, 1998, pg. 585.

20 Idem.

mais alimentar a polêmica: “Já encheu, não vou continuar a responder e fazer propaganda para eles”17 e recusou mesmo uma solução pelos punhos: “O que você quer que eu faça? Que eu vá quebrar a cara dele? Ele é muito baixinho!”.18 No calor do momento, em 5 de setembro de 1952, escreveu a sua mulher, Francine, que Les Temps Modernes saiu com 20 páginas de resposta de Sartre e 30 de Jeanson. Antes mesmo que a revista aparecesse nas livrarias, alguns excertos foram publicados em L’Observateur. O assunto teve bom destaque, embora sem elegância. Quanto às respostas, uma é maldosa e a outra boba. Nenhuma responde às minhas questões, exceto Sartre, num ponto. Mas as 50 páginas são deliberadamente insultuosas. Tive também o prazer de ser chamado de policial e de cabotino, entre outras coisas. No conjunto é uma longa dissertação sobre meu orgulho, que no entanto desfere, como você vê, um belo golpe. Muita gente vai se deliciar. Decididamente estou pagando caro esse maldito livro. Hoje duvido totalmente dele – e de mim, que me pareço demais com ele.19

Mas ele se ressente mesmo é da amizade quebrada, o que o afasta definitivamente dos sartreanos e está relatado em outra carta a Francine, esta de 17 do mesmo mês: Qualquer defesa torna-se então apologia de mim mesmo. E o impressionante é essa explosão de uma contestação há muito reprimida. Isso prova que essas pessoas nunca foram meus amigos e que sempre as irritei ou feri naquilo que sinto. Daí essa vil demonstração e essa incapacidade de generosidade. Não tenho outra explicação para a extrema vulgaridade desses ataques. Mas não responderei, é impossível.20

Uma visão pragmática do rompimento está nestas palavras da companheira de Sartre, Simone de Beauvoir:

21 Citação de A Força das Coisas apud JEANSON, Francis. Jean-Paul Sartre en su Vida. Barcelona: Barral, 1975.

Enquanto Sartre acreditava na revolução, Camus defendia cada vez mais resolutamente valores burgueses: em O Homem Revoltado os referendava. Como era impossível o neutralismo entre os dois blocos, Sartre aproxima-se da URSS. Camus a detestava, e ainda que não gostasse dos Estados Unidos praticamente se alinhou nesse lado.21

Era um momento de extremos e, naquela mesma época, intelectuais como Edgar Morin e Marguerite Duras seriam expulsos do PCF por desenvolverem uma postura política crítica e independente.

As Razões de Cada Um Está claro que o rompimento entre Sartre e Camus tem uma profunda motivação ideológica, especialmente para Sartre, enquanto para Camus o aspecto pessoal da questão pesa muito mais. Diversos autores discutiram as raízes desta polêmica e vamos transcrever algumas dessas opiniões para entendê-la melhor. Raymond Aron (resumo de sua posição realizado por Hélder Ribeiro):

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Segundo Raymond Aron (L’Opium des Intellectuels, Paris, 1955), a atitude de Sartre e a de Camus não deveria chocar. Sartre e Camus não são comunistas nem ‘atlânticos’, nem um nem outro. Reconhecem ambos a existência de iniquidades nos dois campos. Camus quer denunciar as duas, Sartre quer denunciar apenas as do outro lado, as do lado ocidental, sem negar a realidade do outro campo. Pequeno pormenor, mas que põe em causa a própria filosofia de ambos. Para Sartre, não se podia ser ao mesmo tempo antifascista e anticomunista; a resistência ao fascismo implicava necessariamente a não-resistência ao comunismo. Para Camus, a questão dos campos de concentração era de uma importância fundamental. Sensibilizado como estava pelos de Auschwitz, Treblinka e Buchenwald, não poderia deixar de se revoltar com a idéia de que na URSS, a ‘pátria do socialismo’, o universo concentracionário fosse uma realidade”.22

Horácio Gonzáles: Não há, para Sartre, outra moral exceto a que se verifica historicamente. É óbvio que cada escolha moral inscreve-se, contraditoriamente ou não, em conjuntos histórico-coletivos. A história tem um sentido desequilibrador que faz do emprego de meios excepcionais de ação política, como a violência, uma escolha legítima, quando surge do universo ético dos oprimidos. Para Camus, ao invés, não há éticas ‘atreladas’ a um senso de eficácia histórica, mas éticas permanentes dos valores civilizatórios da justiça, inibitórios de qualquer forma planejada de violência, que carrega em seu bojo o germe do despotismo e da injustiça, sempre. Aqueles intelectuais que conclamam para a ‘violência justa’, além de fazê-lo muitas vezes sem correr os riscos correspondentes – se o fizessem a situação deveria ser julgada de outra maneira –, podem instaurar um universo complementar àquele que pretendem combater.23

Oliver Todd:

22 RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade – A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Estampa, 1996, pg. 136. O termo “atlânticos” era usado por Aron para definir aqueles que se alinhavam com a política externa norte-americana, sendo referência explícita à OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar que unia EUA e países da Europa Ocidental, constituindo um contraponto ao Pacto de Varsóvia, aliança militar da URSS com países da Europa Oriental.

23 GONZÁLEZ, Horácio. Albert Camus – A Libertinagem do Sol. São Paulo: Brasiliense, 1982, pg. 85.

Camus continua acreditando que um socialismo a ser definido, um pouco social-democrata à escandinava e trabalhista à britânica, possa ser realizado. Camus e Sartre são típicos dos intelectuais franceses de sua época em sua relativa ignorância dos dados econômicos. Têm um igual desejo de transformar a sociedade. Sartre e Camus querem uma nova ordem social, mais humana. A paixão não é a mesma. Ainda é revolucionária e violenta por parte de Sartre. Camus já não é um revolucionário: é um homem revoltado que rejeita em bloco o universalismo jacobino e o universalismo comunista. Sartre na França continua sendo o farol de uma parte da esquerda não-comunista. Não é que todos os intelectuais franceses se situem à esquerda, mas na área de influência de revistas como Esprit e Les Temps Modernes, de hebdomadários como France-Observateur, a grande inteligência é Sartre. Não Camus. O jovem crítico do Alger Républicain admirava A Náusea e O Muro e desconfiava do filósofo autor dessas ficções. Em sua Explicação de O Estrangeiro, Sartre admirava o artista mas atribuía notas baixas ao pensador. Sartre tinha Camus em baixa conta intelectual e

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24 Secretário de Sartre.

25 Apud TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Tradução de Monica Stahel. Rio de Janeiro: Record, 1998, pg. 583-584.

26 Prefácio de Jean-Paul Sartre a FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, pg. 14.

27 CAMUS, Albert. O Avesso e o Direito seguido de Discursos da Suécia. Lisboa: Livros do Brasil, sem data, pgs. 130-131.

falou de seus sentimentos a Jean Cau:24 Camus era ‘uma espécie de professor primário, nulo em filosofia mas ostentando uma arrogância moralizadora’ e uma ‘vedeta [nos dois sentidos: estrela e naviozinho] do pensamento’. Sartre considerava-se, segundo Cau, como um encouraçado inaufragável.25

O distanciamento ideológico entre Camus e Sartre continuou. Embora o fim da polêmica tenha encerrado os ataques diretos, cada um seguiu um caminho diferente e oposto. No caso da Guerra da Argélia, por exemplo, enquanto Camus não economizava esforços no sentido da paz, Sartre fazia a apologia da violência anticolonialista. No célebre prefácio ao livro Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon, Sartre afirma que nenhuma suavidade apagará as marcas da violência; só a violência é que poderá destruí-las. E o colonizado se cura da neurose colonial passando o colono pelas armas. Quando sua raiva explode, ele reencontra sua transparência perdida e se conhece na medida mesma em que se faz; de longe consideramos a guerra como o triunfo da barbárie; mas ela procede por si mesma à emancipação progressiva do combatente, liquidando nele e fora dele, gradualmente, as trevas coloniais. (...) A arma do combatente é a sua humanidade. Porque, no primeiro tempo da revolta, é preciso matar; abater um europeu é matar dois coelhos de uma só cajadada, é suprimir ao mesmo tempo um opressor e um oprimido: restam um homem morto e um homem livre.26

Anos antes, em 1957, Camus receberia um prêmio Nobel de literatura que tinha uma espécie de dupla conotação de “Nobel da paz”. No entanto, a Guerra da Argélia já era uma tragédia irrecorrível e Camus, nos seus Discursos da Suécia, coloca a sua posição em favor da não-violência e, portanto, completamente antagônica à de Sartre na época: Sem dúvida que cada geração se supõe votada a refazer o mundo. A minha sabe, contudo, que não a refará. Mas a sua tarefa talvez seja maior. Consiste ela em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrompida, em que se misturam as revoluções falhadas, as técnicas que se tornaram loucas, os deuses mortos e as ideologias esgotadas, em que medíocres poderes hoje tudo podem destruir mas já não sabem convencer, em que a inteligência se rebaixou até fazer-se serva do ódio e da opressão, esta geração teve que, em si mesma e à sua volta, restaurar, apenas a partir das suas negações, algo do que faz a dignidade de viver e de morrer. Em face de um mundo ameaçado de desintegração, em que os nossos grandes inquisidores se arriscam a estabelecer para sempre o reino da morte, ela sabe que deveria, numa espécie de doida corrida contra-relógio, restaurar entre as nações uma paz que não seja a da servidão, reconciliar de novo trabalho e cultura e voltar a fazer com todos os homens uma arca da aliança. Não é seguro que ela possa alguma vez levar a cabo esta tarefa imensa, mas é seguro que, por toda a parte do mundo, ela cumpre já a sua dupla aposta de verdade e liberdade e, chegada a ocasião, sabe por ela morrer sem ódio. É ela que deve ser aclamada e encorajada por toda a parte onde se encontra e, sobretudo, onde se sacrifica”.27

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Embora jamais tenham se reconciliado, Sartre escreveu um belo necrológio para Camus em que há um trecho que demonstra uma certa compreensão – talvez até uma quase-autocrítica em relação àquele que havia chamado de “advogado da República dos Inocentes”: Ele representava neste século, e contra a história, o herdeiro atual desta longa linhagem de moralistas cujas obras constituem o que há talvez de mais original nas letras francesas. O seu moralismo insistente, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os acontecimentos maciços e disformes deste tempo. Mas, inversamente, pela firmeza de sua recusa, ele reafirmava, no coração da nossa época, contra os adeptos de Maquiavel, contra o bezerro de ouro do realismo, a existência do fato moral.28

Voltando a Vernant e seu texto Tecer a Amizade, ele identifica que “encontramos também uma espécie de luta na amizade. A amizade se tece. (...) Isso não quer dizer que não rompam; pode-se cortar o tecido para ser fiel, fiel a si mesmo”.29 Não é possível duvidar da integridade intelectual de Sartre ou Camus, suas vidas são testemunhos de coerência entre vida e obra. Cada um viveu por seus ideais, ainda que possam, aqui e ali, ter aflorado pequenas vaidades e invejas próprias da condição humana. Contudo, que não invalidam suas trajetórias, que, por alguns anos, tiveram uma intersecção e depois se afastaram, cada um fiel aos seus princípios, cada um fiel a si mesmo.

28 SARTRE, Jean-Paul. Situações IV. Tradução de Maria Eduarda Reis Colares e Eduardo Prado Coelho. Lisboa: Europa-América, 1972, pg. 111.

29 VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito & Política. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, pg. 36.

BIBLIOGRAFIA CAMUS, Albert. O Avesso e o Direito seguido de Discursos da Suécia. Lisboa: Livros do Brasil, sem data. CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro; Record, 1996. FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. GONZÁLEZ, Horácio. Albert Camus – A Libertinagem do Sol. São Paulo: Brasiliense, 1982. JEANSON, Francis. Jean-Paul Sartre en su Vida. Barcelona: Barral, 1975. RIBEIRO, Hélder. Do Absurdo à Solidariedade – A Visão de Mundo de Albert Camus. Lisboa: Estampa, 1996. SARTRE, Jean-Paul. Situações IV. Tradução de Maria Eduarda Reis Colares e Eduardo Prado Coelho. Lisboa: Europa-América, 1972. TODD, Olivier. Albert Camus: uma vida. Tradução de Monica Stahel. Rio de Janeiro: Record, 1998. VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito & Política. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. WINOCK, Michel. O Século dos Intelectuais. Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Polémica Sartre-Camus. Buenos Aires: Ediciones del Escarabajo de Oro, 1965. *Valdir Baptista é doutorando na ECA-USP e professor dos cursos de Jornalismo e Rádio e TV da Universidade Anhembi Morumbi.

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HISTÓRIA/ROMANCE

O CANTO DA ESPERANÇA: O PAPEL DA MÚSICA NO ROMANCE DE MALRAUX SOBRE A GUERRA CIVIL ESPANHOLA Rafael Rosa Hagemeyer*

Resumo: No romance A Esperança, o escritor francês André Malraux buscou traçar um painel do que estava em jogo na Guerra Civil Espanhola. Assim como tantos outros intelectuais de seu tempo, Malraux também esteve na Espanha durante aquele conflito e destacou-se na defesa da causa republicana e antifascista. Neste livro, escrito e publicado durante o desenrolar da Guerra Civil, o autor procura demonstrar a necessidade de transformar o entusiasmo revolucionário do início da guerra em uma ação militar organizada, capaz de combater e vencer as forças de Franco. O presente artigo visa analisar qual o significado da música nesta obra, uma vez que Malraux a utiliza fartamente para a ambientação de suas cenas. Desta maneira, procuramos elucidar o significado que o autor empresta à música no contexto da guerra, como instrumento mobilizador ou prática desviante na busca da disciplina militar. PALAVRAS-CHAVE: ANDRÉ MALRAUX; GUERRA CIVIL ESPANHOLA; MÚSICA Abstract: In the novel L’Espoir, the French writer André Malraux, tried to draw a picture of what was at stake during the Spanish Civil War. Like many other intellectuals from that period, Malraux was in Spain during the war and stood out defending the republican and antifascist cause. In this book, written and published while the Civil War was in course, the author searches to establish the necessity of turning the revolutionary passion of the beginning of the war into an organized military action, able to combat and defeat Franco’s forces. The present article intends to settle the meaning of the music in this work, since Malraux widely uses the music to paint the backgrounds. Thus, we attempt to make clear the meaning Malraux gives to music in the war context. It is all about analyzing music as a mobilizing device, as well as a sidetracking in the quest for military discipline. KEYWORDS: MALRAUX; SPANISH CIVIL WAR; MUSIC

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Na segunda metade dos anos 1930, a Espanha se tornou o centro das atenções políticas, envolvida numa guerra que comoveu o mundo. O golpe tentado pelos militares contra o governo da Frente Popular foi frustrado em boa parte do território, desencadando a Guerra Civil Espanhola, conflito que duraria quase três anos. Essa resistência das forças populares representou, a partir de então, o maior combate já travado contra o fascismo. A defesa da República Espanhola foi, sob esse ponto de vista, o último grito do romantismo revolucionário antes da Segunda Guerra Mundial. O engajamento intelectual despertado pela Guerra Civil até hoje não encontra paralelo. Vários foram os intelectuais e artistas que acorreram do mundo todo para observar, registrar e denunciar o que estava ocorrendo na Espanha. Muitos foram aqueles que passaram a defender a causa republicana – e não apenas com palavras, poemas e discursos, mas também com armas nas mãos. Embora as características românticas fossem se desvanecendo com o desenrolar dos acontecimentos, o conflito entre as “duas Espanhas” permanece como fonte inesgotável de inspiração para obras que procuram atacar a indiferença política e enaltece a coragem de defender com a vida um ideal. A Guerra Civil Espanhola continua servindo como cenário para a ambientação de romances, filmes e peças de teatro que problematizam essa temática. Mas é verdade que tal vocação já era pressentida quando o conflito nem mesmo havia terminado. L’Espoir, traduzida no Brasil como A Esperança, foi escrita e publicada quando o conflito ainda estava longe de acabar. Trata-se de um romance-reportagem escrito por André Malraux, o escritor francês que havia se tornado mundialmente conhecido desde que foi publicado seu primeiro clássico, A Condição Humana.1 Sendo militante de esquerda na época, bastante próximo dos comunistas, Malraux emprestou todo seu apoio à defesa da República. Já nos primeiros dias da Guerra Civil ele rumou para a Espanha, tornando-se presidente do Comitê Mundial de Luta contra o Fascismo e a Guerra. Contribuiu na organização de comitês de ajuda humanitária e procurou viabilizar a compra de material militar para a República. Apaixonado pela aviação, ele foi também um combatente, embora não tivesse brevê de piloto. Malraux acreditava firmemente que, naquela guerra, a vitória dependia da força aérea. Por esta razão, foi também responsável pela organização da esquadrilha España, formada por estrangeiros.2 Sendo um prestigiado intelectual e homem de ação, é natural que a publicação de A Esperança em 1938 tivesse um tremendo impacto na opinião pública francesa. A razão disso deve-se principalmente ao papel ambíguo que esse país manteve durante a Guerra Civil Espanhola. De um lado, o governo francês procurava manter uma posição de neutralidade, pois oficialmente a França fazia parte do Comitê de Não-Intervenção da Sociedade das Nações. Esse Comitê, como se sabe, jamais passou de uma farsa para evitar que o envolvimento de outras potências na Guerra Civil Espanhola pudesse levar à deflagração da Segunda Guerra Mundial. Assim, os governos da França e da Inglaterra assistiam à população espanhola ser massacrada pelos bombardeios aéreos do nazi-fascismo, enquanto seus agentes de observação colocavam em dúvida aquilo que viam com os próprios olhos. Mas por outro lado, há que se reconhecer a grande ajuda à causa republicana que veio também da França – ainda que não exatamente do seu governo. Pois era francesa a nacionalidade da maioria dos voluntários estrangeiros dispostos a defender a causa republicana: cerca de dez mil franceses, segundo estimativas. A proximidade territorial e a dramaticidade da situação fez com que o governo 274

1 A primeira edição, em francês, é de 1938. Dispomos apenas da tradução em português. MALRAUX, André. A Esperança. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Record, 2000.

2 THOMAS, H. La guerra civil espanhola. Barcelona: Grijalbo Mandodari, 1996. 3a. edição. p. 383, 393, 397-398. Hugh Thomas cita ainda um artigo de Walter Langlois, que analisa a participação de Malraux na Guerra Civil Espanhola, publicado em La Revue des Lettres Modernes em 1973, chamado “Aux sources de l’espoir”, p. 5.

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3 Sobre este aspecto, ver o artigo de FREITAS, Maria Teresa. Ficção e História: Malraux e a Guerra Civil Espanhola. In: REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. Cultura & Linguagens. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 7 n. 13 set. 1886/fev.1987. Concordamos com a autora ao identificarmos o eixo central de A Esperança como a conversão da guerrilha caótica que frustrou o golpe militar de 18 de julho em exército popular: “Do ponto de vista histórico, o objetivo é mostrar a necessidade de se adotar uma determinada linha política capaz de organizar e disciplinar o entusiasmo revolucionário inicial – a organização do apocalipse, segundo as próprias palavras de uma das importantes personagens do romance – para ganhar a guerra; assim, os combatentes múltiplos e dispersos que compõem a primeira parte do livro, onde imperava uma certa anarquia e uma ‘ilusão lírica’(é esse o título dessa primeira parte, que resume também o caráter romântico da guerra), culminam com a batalha de Guadalajara, vitória importante para os republicanos, onde, pela primeira vez, eles se apresentam como um exército constituído”. p.147.

francês, em alguns momentos críticos, abrisse a fronteira com a Espanha para passagem de material bélico e para o exílio de refugiados espanhóis. A obra de Malraux atingiu os objetivos propagandísticos a que se propunha, muito embora o governo francês não tenha modificado sua postura em relação ao jogo das relações internacionais. Pode-se dizer que A Esperança é o elogio da ação como virtude militar. Tudo no livro se desenvolve nesse sentido: uma trama de histórias separadas, de diferentes personagens que só se encontram ao final, e cujo desafio é transformar o entusiasmo revolucionário inicial em uma ação militar organizada. De modo geral, podemos dizer que as canções – sobretudo os hinos revolucionários - aparecem no livro como uma expressão do entusiasmo inicial que tomou conta do campo republicano, logo que as milícias armadas e forças leais à República conseguiram frustrar o golpe de Estado intentando pelos militares.3 Por outro lado, cabe observar que, para Malraux, essa mesma música – e o entusiasmo que ela reflete ou é capaz de despertar – não parecem ser suficientes para organizar as forças e ganhar a guerra. Ao contrário, podem até mesmo atrapalhar a concentração, a organização e a ação disciplinada, que são as virtudes militares louvadas pelo autor de A Esperança. Porém não apenas os hinos revolucionários são mencionados no seu livro. Há também pelo menos dois outros tipos de música registrados. Uma delas é a música incidental, tocada por algum rádio, cantada por camponeses ou mesmo por combatentes espanhóis. São descritas genericamente como “uma canção andaluza” ou “flamenca”. Fariam parte, portanto, daquilo que representaria a “alma” da própria Espanha, aquilo que Malraux chama de “canto profundo”, vindo diretamente do coração dos homens, e que parece brotar da terra com a mesma naturalidade que as plantas. De outro caráter é a música erudita e religiosa, na qual se expande a reflexão dos homens a respeito do sentido de sua existência. O personagem que melhor encarna essa reflexão é Manuel, que ao longo da guerra deixa de ser um simples operário e torna-se comandante militar. Nesse processo, toda a existência do personagem passa a ser objeto de reflexão, partindo de sua formação religiosa inicial, que incluía o aprendizado da música. O abandono da música em troca da estratégia militar ganha, na obra de Malraux, um sentido metafórico, que sintetiza o dilema da guerra. No entanto, a música não “desaparece” com a evolução do conflito. Ela perpassa A Esperança do começo ao fim. Mas ela não surge sempre da mesma forma, apresentando-se ora como totalidade sonora que preenche todo o espaço, ora de forma fragmentária, agregando-se de modo irregular e incidental. Essas variações correspondem, na nossa interpretação, à intenção de Malraux, onde cada detalhe se prende ao todo, ao fio condutor da obra, qual seja: a transformação do voluntarismo revolucionário em ação militar conseqüente.

O entusiasmo revolucionário cantado nas ruas É a estação central telefônica de Madrid que serve como cenário inicial de A Esperança. Malraux percebeu, naquele contexto, que a conversa telefônica – através de diálogos curtos – era a estratégia narrativa ideal para traçar brevemente um panorama geral do que foi o golpe militar de 18 de julho de 1936. Com isso, consegue transmitir a simultaneidade dos conflitos travados em diferentes pontos do território espanhol. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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A cena se passa quando membros do sindicato dos ferroviários controlam a central telefônica da Espanha, recebendo ligações e procurando se interar da situação em diversas localidades. Vão se revelando, assim, quais eram as áreas controladas pelos militares, bem como aquelas onde a mobilização operária, às vezes associada com as forças públicas, conseguiu assegurar o controle republicano. A situação é de tensão e euforia. A certa altura, o diálogo se interrompe: “ – (...) eu estou ouvindo muito mal, tem muita gente cantando na rua... No receptor, Ramos ouve os cantos, que se misturam aos da estação”. O canto é a própria expressão do entusiasmo revolucionário que toma conta das ruas, onde circulam caminhões e carros confiscados pelos sindicatos, e onde milicias operárias carregam armas e explosivos.4 É nesse quadro que se desenvolve a luta do povo de Barcelona pelo controle da cidade. Pode-se perguntar o que cantavam os milicianos que sobre os caminhões andavam a toda a velocidade pelas ruas naquela noite. Segundo o próprio Malraux, “sob o rangido das mudanças de câmbio, as palavras enchiam a rua, junto com o ruído de passos atravessados pela cadência da Internacional”.5 Mas certamente não era esse o canto do povo pobre que ia às casas de penhor, pois o governo republicano dera ordem de que estas devolvessem tudo sem contrapartida.6 De todo modo, não temos porque duvidar de Malraux quando este observa que a Internacional era cantada por todos os lados no território fiel ao governo republicano. Afinal, graças ao movimento operário anarquista e socialista, o hino internacionalista se tornara amplamente conhecido na Espanha.7 A Internacional possuía várias letras e significados diferentes na Espanha. Anarquistas, socialistas e comunistas espanhóis a cantavam, cada qual com sua própria letra – sem falar nas versões em catalão e nos vários idiomas em que ela foi cantada pelos voluntários das Brigadas Internacionais. De certa forma, o desencontro entre as letras da Internacional serviria como uma metáfora do desentendimento entre as diferentes facções da luta antifascista – algo que Malraux não explora, pois está mais empenhado em demonstrar a construção da unidade das esquerdas do que em retratar as suas divergências internas. O que se seguiu ao dia 18 de julho em toda a Espanha republicana foi um processo desigual de revolução social. Em Barcelona e em algumas comunidades camponesas da Andaluzia, os anarquistas aproveitaram para realizar coletivizações em fábricas e fazendas, muitas vezes com o apoio dos socialistas revolucionários. Mas o livro A Esperança sequer menciona este fato para não comprometer as qualidades propagandísticas de seu conteúdo. A luta contra o fascismo era, na propaganda republicana, a luta pela a “democracia”, no sentido que o liberalismo político empregava o termo. De sua parte, o governo republicano tentava regulamentar o processo revolucionário como um forma de frear sua radicalização, temendo a perda de seu apoio internacional – apoio este que nunca passou de uma simpatia difusa. Neste processo de contra-revolução interna, o governo contava com a ajuda dos socialistas moderados e dos comunistas de linha stalinista. Estes últimos pregavam a manutenção das instituições e da ordem republicana como etapa necessária para o desenvolvimento da “revolução burguesa”. Afinado com a visão dos comunistas, o que o autor de A Esperança está empenhado em fazer é desvalorizar o ambiente festivo criado após a deflagração do conflito – pois este clima não passava de uma situação ilusória, que não tardaria a ser derrotada pela superioridade material e pela organização militar do exército de Franco e seus aliados nazi-fascistas. 276

4 MALRAUX, A. Op. Cit. p. 20.

5 MALRAUX, A. Op. Cit. p. 50. 6 MALRAUX, A. Op. Cit. “Os homens e mulheres carregavam pacotes embrulhados em tecido preto; uma velha carregava um pêndulo; uma criança, uma mala; outra, um par de sapatos. Todos cantavam.” p. 53. 7 Josep Pla, em suas memórias, recorda que, em Barcelona, durante a proclamação da Segunda República (14 de abril de 1931), o povo desconhecia a letra da Marselhesa e do Hino de Riego (hino republicano espanhol), afirmando que o único hino conhecido era A Internacional, que os operários aprenderam na Casa do Povo. DUARTE, Angel. La esperanza republicana. In: CRUZ, R.&LEDESMA, M.P. Cultura y movilización en España Contemporánea. Madrid: Alianza, 1998, p.193. nota 63. Sobre a atividade coral dos socialistas, ver também LABAJO, J. La actividad musical de las agrupaciones socialistas españolas a comienzos de siglo. In: Pianos, voces y panderetas: apuntes para una historia social de la música en España.. Madrid: Ediciones Endymion. 1988. pp-143-173.

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8 MALRAUX, André. Op. Cit. p.175.

9 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 60.

10 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 61.

O clima festivo revolucionário é registrado por Malraux através da memória de Shade, um dos personagens de A Esperança, que como artista plástico norte-americano procurava colocar a arte a serviço da revolução, tal qual fizeram os muralistas mexicanos na segunda década do século XX: “Três meses atrás, Shade, na mesma hora, tinha ouvido os cascos de um jumento e guitarristas que tocavam, na noite, alegremente, a Internacional, voltando de alguma serenata”. Essa imagem não é casual, pois associa o hino a um clima de “fim de festa”, uma vez que a realidade da guerra e de todas as dificuldades que ela traz consigo já haviam, nesse intervalo de tempo, se manifestado.8 Esse choque também fora descrito por Malraux anteriormente. Após a euforia inicial da noite de 18 de julho, o autor descreve os primeiros combates na Serra de Madri. O clima ainda era de entusiasmo revolucionário, de voluntarismo – um voluntarismo embalado ainda pelo hino operário: “Carregado de civis que, brandindo o fuzil, cantavam a Internacional acima do barulho da embreagem, o caminhão partiu”.9 Porém, logo em seguida, sobrevem a realidade da guerra: “Os outros, tensos também, continuavam com a Internacional; olhavam dois civis mortos, dos quais aproximavam-se em alta velocidade, com a confusa amizade que os que estão indo para o combate sentem pelos primeiros mortos”.10 Eram, afinal, os “primeiros mortos”, de uma guerra que estava apenas se iniciando. A despeito da tensão e angústia, os milicianos permaneciam cantando a Internacional. O hino parece servir, nesta passagem, como uma estratégia dos milicianos para manter seus ânimos aguerridos, a despeito da morte. Porém, isso poderia também ser visto como uma espécie de consolo tranqüilizador, na medida em que o que os milicianos encaram na estrada é a possibilidade de sua própria morte. Eles lembram-se do risco que correm, vêem o perigo que os cerca materializado nos corpos sem vida dos seus companheiros. Estas duas funções do canto – ânimo para a ação e consolo diante da morte – não são contraditórias, mas sim complementares. Ao cantar para ir para a batalha, chocar-se diante da morte e permanecer cantando, há uma evidente compensação diante da própria fragilidade humana. Pois o hino lembra do ideal pelo qual esses homens lutam. Pensar nele significa não pensar na morte – pelo menos não na própria morte como um fim em si mesmo, mas como parte de um processo histórico, de um ideal coletivo que levará outros homens a defendê-lo e que, portanto, prosseguirá. É efetivamente esse romantismo revolucionário o alvo da crítica de Malraux. Para ele, uma guerra não se vencia apenas com poemas, com hinos ou com belos ideais. Uma guerra se vence, principalmente, com disciplina e organização, com estratégia e armamentos tecnologiamente modernos. O que não implicava de forma alguma, pensava o escritor, em abandonar esses ideais de humanidade. Do contrário, tornariam-se iguais aos fascistas. A difícil tarefa, portanto, era a de conciliar a ação e a reflexão – tarefa que Malraux atribuía a si mesmo como escritor e ativista. O que se percebe no romance, daí por diante, é o progressivo abandono da Internacional, canto que vai se revelando inútil para a guerra. Em primeiro lugar, vale a pena lembrar que, a despeito de sua popularidade, a Internacional jamais foi oficializada pelo governo republicano. O hino oficial da República permaneceu sendo o Himno de Riego – com o qual

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é possível estabelecer um interessante contraste na obra de Malraux, na medida em que o hino republicano estabelece um divisor de águas entre o entusiasmo revolucionário e a organização do exército – que culmina com o abandono da Internacional. Antes de mais nada, cabe esclarecer que o hino republicano espanhol fora composto na primeira metade do século XIX. Era uma homenagem ao general Rafael de Riego que, em 1820, havia se levantado para reestabelecer a constituição liberal na Espanha. Este hino possuía, portanto, um conteúdo fortemente patriótico e militarista, destoando bastante daquilo que a República pretendia 11 significar durante a Guerra Civil Espanhola. Não seria exagero dizer que sua adoção pelos fascistas teria sido mais apropriada. O grande intérprete da identidade espanhola, Álvaro de Albornoz, já havia escrito então que “entre a revolução e o pronunciamiento (golpe militar) há a mesma diferença que entre a Marselhesa e o Hino de Riego”.12 É com esse hino que André Malraux ilustra a reunião ministerial feita para organizar o Exército Popular em agosto de 1936. O caráter formal – diríamos mesmo protocolar – é expresso pelo fato de que o hino não é cantado, mas sim executado simultaneamente por todas as rádios, entrando pela janela da sala “junto com o cheiro queimado das folhas”. A metáfora aqui é a de que o hino representa o senso cívico, a vontade do povo se organizar, vontade que é ventilada para dentro da sala ministerial. O governo republicano, arejado pela vontade popular, tomava assim a iniciativa de organizar sua defesa.13 Mas não só o hino republicano entra pelas janelas. Os mais variados sons, a cacofonia da desordem reinante, do voluntarismo, tudo indica a dificuldade de organização, ao mesmo tempo em que demonstra vivamente a vontade do povo espanhol em resistir: A vida noturna de Madri, o hino republicano de todas as rádios, cantos de todos os tipos, saluds, altos ou baixos segundo se está próximo ou distante, misturados como notas de piano, todo o rumor de esperança e de exaltação de que era feita a noite enche de novo o silêncio. Vargas balançou a cabeça: – É bom cantar... – E, em tom mais baixo – A guerra será longa...14

11 Sobre o hino de Riego, sua história e seus usos durante a Guerra Civil, ver VIANA, Luís Díaz. Canciones Populares de la Guerra Civil. Madrid: Taurus, 1986. pp. 30-33. 12 ALBORNOZ, Alvaro de. El temperamento español. La democracia y la libertad. Barcelona: Minerva, 1920? Pp. 23 e 29. Citado por DUARTE, Angel. Op. Cit. p. 173.

13 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 106.

14 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 107.

A inutilidade do canto nas frentes de batalha O processo de organização do Exército não foi fácil. Por um lado, era preciso lutar contra o voluntarismo anarquista, avesso a qualquer hierarquia ou autoridade – muito embora em outros aspectos os militantes libertários dessem exemplo de desprendimento e valentia. Em segundo lugar, caberia dar noções de estratégia, formar comandantes militares, conseguir meios logísticos de suportar a guerra dentro das possibilidades existentes. Em terceiro lugar, tendo em vista a inferioridade dos antifascistas nesses dois aspectos, tudo implicaria num imenso esforço de superação das próprias condições em que se encontravam. O caos e o desespero diante do ataque fascista são retratados por Malraux da forma mais grotesca quando as tropas de Franco invadem Toledo. Republicanos abandonavam seus fuzis na porta das casas – ou seja, entregavam suas armas de presente para os seus inimigos, com a esperança de não serem incriminados. A própria quinta coluna presente na cidade de Toledo já as tomava para atirar 278

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contra milicianos. Todos os limites do voluntarismo são expressos nesse episódio. De que serve cantar numa situação como essa? A justificativa é dada por Heinrich, um experiente oficial comunista alemão, que pede a Manuel que organize seus homens para o combate:

15 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 224.

16 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 228.

17 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 260.

18 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 285-288.

- Você vai achar que eu sou um idiota – disse Heinrich a Manuel – mas agora, é preciso fazer com que eles cantem a Internacional. Como estão escondidos, eles não podem se ver: é preciso que se ouçam. O informal comunista em nada diminuía a autoridade de Heinrich. - Camaradas! – gritou Manuel. De todos os cantos, de todas as esquinas, de todas as janelas, cabeças apareceram. Manuel começou a cantar a Internacional, incomodado pelo raminho que não queria deixar, com o qual tinha vontade de marcar o ritmo. Sua voz era muito forte e – os tiros tinham cessado no Alcázar – todos o ouviam. Mas os milicianos não sabiam a letra da Internacional. Heinrich estava estupefato. Manuel se ateve ao refrão.15

A inutilidade do voluntarismo manifestava-se no momento crítico, revelando fragilidades que até então sequer eram suspeitas. O contraste entre a disciplina do exército de Franco, com seus mercenários mouros, era gritante. Enquanto os republicanos se punham em fuga, ouvia-se no centro de Toledo a banda tocar o Hino do Tercio – a comemoração dos fascistas. Diferentemente dos soldados republicanos, os fascistas deixavam a euforia e os hinos para o fim das batalhas, como um coroamento da sua vitória.16 É a partir destas experiências que o canto da Internacional, bem como o seu signficiado romântico, vão cedendo diante da atividade guerreira. Cada vez mais é a Espanha que passa a se pronunciar mais alto – e o hino vai ganhando uma conotação mais estrangeira do que propriamente internacionalista. Agora, eram os voluntários das Brigadas Internacionais que o cantavam: “Próximo à caserna, começaram a cantar: e, pela primeira vez no mundo, homens de todas as nações misturadas em formação de combate cantavam a Internacional. Magnin virou; os mercenários tinham recomeçado o jogo. Para eles, aquilo não significava nada”.17 Enfim, havia homens que estavam ali para lutar por um ideal internacional, enquanto outros buscavam apenas ganhos pessoais – e ambos estavam equivocados na concepção de Malraux. A verdadeira luta era pela defesa da terra espanhola e do povo que nela vivia. No entanto, ainda foi cantando a Internacional que as forças antifascistas defenderam Madri. Porém, já não mais como canto de guerra, e sim como pano de fundo – quase como um réquiem. A cena das mobilizações por toda a cidade é descrita de forma vertiginosa através de rápidos encontros e diálogos entrecortados pelas referências à Internacional. Mas não são os milicianos que cantam, tampouco os voluntários internacionais. A melodia sai dos acordeons, tocados pelos cegos nas ruas, a troco de esmolas. Os cegos acordeonistas aparecem em seqüência, cada um continuando a canção do ponto que o outro a havia abandonado.18 Essa imagem fantástica – quase sobrenatural – acompanha a narrativa até culminar com o diálogo que finalmente arremata seu sentido. Trata-se de uma curiosa conversa travada num dos apartamentos de Madri. A cena é protagonizada pelo italiano Giovanni Scali, um historiador de arte que se tornara combatente

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da aviação republicana. Ele viera buscar um velho intelectual chamado Alvear para que abandonasse Madri, pois a cidade estava sob perigo. Alvear era pai de Jaime, um dos companheiros de Scali que ficara cego em combate. Todo o diálogo é travado no sentido de tentar convencer o velho a deixar Madri. Ao final, tudo se resume numa metáfora: Ele escutou outra vez, foi apagar a luz, entreabriu a janela, por onde entrou a Internacional, acima do ruído dos passos. Na escuridão, sua voz ficava ainda mais abafada, como se viesse de um corpo pequeno, mais triste e mais velho: - Se os mouros entrarem daqui a pouco, a última coisa que eu terei ouvido será um canto de esperança tocado por um cego...19

19 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 300.

A esperança cega que conduz os homens desorientadamente os levaria diretamente ao fracasso, pensava Malraux. Nesse aspecto, o papel da música em insuflar os ânimos de nada adiantava se estes não fossem concentrados na direção correta. Esta opinião do autor se revela ainda de forma mais clara no diálogo que se segue entre esses dois personagens quanto à origem da música: - Não foram os deuses que fizeram a música, senhor Scali, foi a música que fez os deuses... - Mas talvez isso que está se passando lá fora é que tenha feito a música...

Aqui, fica explícita a concepção de que não é a música que faz a guerra. É a guerra – e, sobretudo, a vitória – que inspira a música em seu louvor. Essa troca de posições ao longo do romance vai ficando cada vez mais evidenciada. Após o aguerrido combate da Cidade Universitária, houve a batalha de Guadarrama. Nela, Malraux apresenta uma ordem expressa vinda dos oficiais para os comissários políticos: “No último combate, sessenta por cento dos oficiais e dos comissários políticos de sua brigada tinham sido feridos. ‘Façam-me o favor de permanecer em seus lugares e de não cantar a Internacional na frente de suas tropas’, dissera uma hora antes”.20 Tal ordem procurava não apenas evitar uma grande exposição dos oficiais ao inimigo, mas também reprimir o desejo de traição de alguns soldados republicanos, que aproveitavam o momento para alvejar os seus próprios superiores. Cantar a Internacional à frente das tropas no momento da batalha não era somente inútil, mas até mesmo contraproducente para a vitória republicana. Para comprovar o quanto a ingenuidade romântica dos revolucionários internacionais poderia ser utilizada pelo inimigo, o autor de A Esperança lança mão de um fato ocorrido na batalha de Jarama. Trata-se do episódio em que um batalhão inteiro de voluntários ingleses foi facilmente capturado pelos marroquinos, graças à imprudência que tiveram ao deixá-los se aproximar cantando a Internacional.21 Na batalha de Guadalajara foi diferente: voluntários poloneses, utilizando-se apenas de punhais, conseguiram silenciosamente tomar o Palácio de Ibarra. Para a surpresa de todos os brigadistas que cercavam o lugar, começou a ser ouvida a Internacional dentro do Palá280

20 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 330.

21 Una companía del batallón inglés fue capturada con engaño por haber dejado llegar a sus trincheras a un grupo de marroquíes que avanzaron cantando La Internacional”. THOMAS, Hugh. Op. Cit. p.642.

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22 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 421.

23 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 455

cio, numa língua não identificada. Pela primeira vez, no romance de Malraux, o hino era cantado para comemorar uma escaramuça bem sucedida.22 A música é considerada, portanto, como evento festivo, comemoração das vitórias conquistadas – é uma alegria que pertence ao vencedor, e não mais um antídoto para o medo diante da morte. Ao iniciar-se a batalha de Guadalajara, que marcou efetivamente o batismo de fogo do Exército Popular Republicano, ainda havia, segundo Malraux, alguns resquícios de voluntarismo e ingenuidade, porém a disciplina militar se impôs definitivamente: “Algumas vozes começaram a Internacional, logo cobertas, raivosamente, por uma gritaria dos espanhóis e um berro bem curto em dez línguas do lado dos internacionais: ‘Avante”.23

O canto profundo da Espanha reencontrada

24 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 65.

Embora a Internacional seja a música mais citada ao longo do livro, há espaço para outros cantos anônimos, cuja aparição é incidental, mas nem por isso menos importante. São fragmentos que portam consigo a essência de algo, que despertam a busca da totalidade perdida, e que ao final do livro acabam por agregar-se numa comunhão de sentido. Essas canções surgem dispersas, através do rádio, do canto distraído de um combatente rumo à missão, de um camponês por detrás das oliveiras, de um piano abandonado, de uma vitrola qualquer perto da rua. O que se percebe nessas passagens é a harmonia dessas canções com o ambiente, como se elas próprias fossem elementos da natureza. Ao descrever o ataque do trem blindado na Serra de Madri, Malraux observa que, “no rádio, alguém cantava uma canção andaluza, e a resina dos pinhos arrancados enchia com seu cheiro de enterro o ar que estremecia como se estivesse sendo sacudido pelas metralhadoras”.24 Nota-se um recurso recorrente na obra: a melodia surge como que espontaneamente, combinada com o cheiro dos pinheiros, do ar que estremecia, da terra arrancada de si mesma. Já observamos anteriormente a maneira como Malraux combina os sons e os odores na aclimatação de algumas cenas, como naquela da reunião ministerial para organização do Exército, onde o hino republicano entrava pela janela junto com o cheiro das folhas queimadas. A música incidental chega juntamente com o cheiro da terra – algo como se fosse a “alma da Espanha” falando através destes sinais. Esse recurso também é utilizado quando o autor descreve o assédio republicano ao Alcázar de Toledo, a fortaleza militar na qual oficiais fascistas ficaram sitiados durante meses. Ali, o rádio da praça tocava a “Cavalgada das Valquírias”, a famosa ária da ópera “O Anel dos Nibelungos”, de Wagner. Sabe-se da apropriação que os nazistas fizeram do romantismo alemão, em especial da obra grandiloqüente de Richard Wagner –particularmente dos “Nibelungos”, por tratar da mitologia germânica. A insistência de Malraux em ilustrar a cena do bombardeio com tal música transmite a idéia de algo “fora do lugar”. Sobretudo pelo fato de que a aviação nazista bombardeava várias cidades espanholas. No entanto, ao final do bombardeio emerge novamente a Espanha, dilacerada em pedaços, gritando por socorro: A rádio da praça tinha parado de tocar a “Cavalgada das Valquírias”; um canto flamenco elevou-se: gutural, intenso, ele tinha algo do canto fúnebre e do grito desesperado dos cara-

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vaneiros. E parecia crispar-se sobre a vida e sobre o cheiro dos cadáveres, como as mãos dos mortos crispam-se sobre a terra.25

O Canto das Valquírias era o canto da guerra, do ataque belicoso – o canto do fascismo, que dilacera a terra. Já o canto flamenco era o canto popular da Espanha, soando fúnebre, como um desesperado grito de socorro. Na verdade, tudo ilustrava quão desastradas e infrutíferas eram as tentativas dos milicianos em tomar o Alcázar. Se o povo espanhol desejava sua liberdade, precisaria ser transformado num exército, e para isso precisava de ajuda. Caso contrário, seria esmagado pelos fascistas, ajudados pelos alemães e italianos. A confusão reinante em torno do Alcázar foi agravada pela negociação para a libertação dos reféns que estavam dentro da fortaleza. As ordens do governo de Madri eram de acabar de uma vez por todas com aquela situação e invadir o Alcázar. A conversa telefônica descrita por Malraux era difícil: “Lopez ouvia muito mal: no pátio, um oficial tocava um piano colocado sobre o calçamento; uma velha rumba soava em alguma vitrola, e um alto-falante próximo gritava notícias falsas”.26 Cacofonia, informações desencontradas, os sons que se misturam sem agregar-se de forma harmoniosa, tudo serve como metáfora do que se passava no campo republicano. É apenas ao final do livro, após a batalha de Guadalajara, que essa música incidental e fragmentária encontra seu lugar, se constituindo de forma harmoniosa, tal qual o exército popular recém-formado: À medida que Manuel se aproximava do centro [da cidade de Brihuega], outro ruído se misturava ao das águas, cristalino como ele, harmônico como um acompanhamento: as notas de um piano. Em uma casa vizinha, cuja fachada tinha desmoronado sobre a rua, todas as peças a céu aberto, um miliciano tocava, com um só dedo, uma canção. Manuel prestou atenção: acima do rumor da água ele percebeu três pianos. Todos tocados com um dedo só. Nada da Internacional; cada dedo tocava uma canção, lentamente, como se tocasse apenas para a tristeza infinita das encostas, semeadas de caminhões demolidos, que subiam de Brihuega até o céu pálido.27

25 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 117.

26 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 143.

27 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 472.

A música flui em harmonia com os ruídos da natureza, na desolação das casas destruídas pela guerra. Os vários pianos, martelados por milicianos que não sabiam tocar, encontravam harmonia entre si. Tudo parece se adequar com a paisagem que o cerca, tudo está em seu lugar. Nas tristes encostas, o céu e a terra se encontram, dotando de pleno sentido o reencontro do homem com seu destino.

A música entre a vida e a morte O sentido da música na guerra se relaciona intimamente com a questão da vida e da morte – e nesse aspecto, se remete ao sentimento religioso. Poderíamos lembrar aqui da célebre frase de Nietschze: “Sem música, a vida não teria sentido”. No romance, a equação entre a solidão e a morte se torna central, e isso se evidencia nas palavras de Moreno, um oficial republicano recém-libertado: “há o mundo em que os homens morrem juntos, cantando, cerrando os dentes ou do 282

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28 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 213.

29 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 469.

30 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 462.ttr

31 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 462.

jeito que quiserem – e então, por trás, meu velho, há esse convento com...”.28 O que está em questão é a dignidade da morte: morrer junto aos seus iguais, morrer reconhecido, morrer valorosamente. Outra é a morte na solidão de uma cela, de modo absolutamente anônimo e indefeso. A certeza desta morte tornava a vida desprovida de qualquer sentido, bem como o próprio canto de luta. Essa certeza causava o mesmo tipo de reação entre os fascistas, que capturados se tornavam apáticos, como na cena em que os antifascistas italianos aprisionam um grupo de patrícios fascistas: ‘- (...) são uns pobres diabos. Que cantem, portanto!’, gritou ele agitando os braços para alguns que passavam perto dele. Um dos prisioneiros respondeu com uma frase que o guia não entendeu. - O que foi que ele disse? - Os desgraçados não cantam – traduziu Garcia. - Cante a sua dor, idiota! – respondeu o guia em espanhol Os prisioneiros foram se afastando; ele os seguia com o olhar. - Isso não tem importância, meu pobre velho! Não é importante! Ao longe, no batalhão Garibaldi, alguém tocava um acordeom.29

Aqui a música poderia representar um alento: que cantem sua dor – uma forma de torná-la suportável, uma maneira de justificar a si próprio sua existência, de resgatar o sentido da vida diante da morte, mas eles se negam a resignarse. Ao longe, os italianos do batalhão Garibaldi tocavam acordeom, quadro que por contraste procura diferenciar os fascistas e os antifascistas através da música, que afinal, como em outras passagens do livro, pertence aos vitoriosos. Nesse mesmo quadro, situado temporalmente após a vitória de Guadalajara, Malraux passa a aprofundar as reflexões de Manuel, o jovem oficial do exército republicano. Ao descobrir Ximenes, seu velho mestre de comando militar, em uma igreja transformada em depósito de caminhões, Manuel se reencontra com a música. Um órgão intacto encontrava-se ainda no antigo templo, graças à proteção do “Comitê Estético Revolucionário”, com a justificativa de que “Os órgãos e o coro são coisas importantes”.30 Aproveitando a oportunidade, Manuel resolveu surpreender o “velho pato” – que apesar de republicano era católico executando no velho instrumento uma música religiosa: o Kyrie, de Palestrina. A música retomava a igreja, embora naquele contexto ganhasse outro sentido: Na nave vazia o canto sagrado se desenrolava, firme e grave como o cortinado gótico, mal afinado com a guerra e muito bem afinado com a morte; apesar das cadeiras destruídas, dos caminhões e da guerra, a voz do outro mundo retomava a posse da igreja. O miliciano, pasmo, olhava seu tenente-coronel que tocava um canto de igreja.31

A música religiosa restaurava a dignidade da morte, o sentimento do sagrado dentro do templo. Algo que sobrepassava o uso que da igreja se fazia naquele instante, dado que havia se transformada em depósito militar. Porém, o sentido para Manuel era diferente: O Kyrie é admirável – disse [Manuel] perturbado –, mas eu toquei pensando em outra coisa. Eu abandonei a música... No acampamento, semana passada, você ouviu que, em cima do piano, havia uma partitura de Chopin, do melhor. Eu a folheei

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e tudo aquilo vinha de uma outra vida... - Talvez fosse tarde demais ou... cedo demais. - Talvez... Mas eu não acredito. Eu acho que uma outra vida começou para mim com a luta; tão absoluta quanto aquela que começou quando eu dormi pela primeira vez com uma mulher... A guerra nos torna castos... - Esse é um assunto longo...32

32 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 463.

Essa música renascentista não fazia parte da guerra nem da luta. Fazia parte de uma outra vida, de um outro contexto que não podia existir enquanto durasse a atividade militar. Os antifascistas lutavam, como fica mais claro em outros trechos de A Esperança, por um mundo onde a música pudesse voltar a ter sentido. Talvez um sentido até mesmo mais pleno do que tivera anteriormente. Para Manuel, a vocação militar e musical foram descobertas simultaneamente, através da educação religiosa. Por sua própria vontade, passou a pedir lições de tática, que lhe foram dadas apesar de não serem de domínio do padre que o educara: Ele observou que aquilo não era parte de seus conhecimentos, nem de seu caráter; mas trouxe uma caixa de sapatos cheia de soldados recortados... (...) Depois foram os discos de Palestrina. Na esperança pérfida de se livrar da tática, ele os colocou na agulha de marfim, sob o pavilhão em corola. Pleno sucesso: abandonei a tática e exigi o órgão. Eu era um bom pianista.33

Se por um momento a música havia sido mais importante na sua vida, agora a relação se invertera. Ao trocar a música pela atividade guerreira, reforça a idéia de Malraux a respeito do papel do hino A Internacional durante a Guerra Civil Espanhola. A música só faz sentido no momento da vitória, na paz do homem reencontrado consigo mesmo – do país reencontrado. É o que o autor sugere ao final do livro: “Manuel tinha dito a Gartner que se afastara da música, mas percebeu que, naquele instante em que caminhava sozinho na rua de uma cidade conquistada, tudo o que mais gostaria era poder ouvi-la. No entanto, ele não tinha vontade de tocar, e queria ficar sozinho”.34 O impasse é resolvido através de um gramofone, que permite ao jovem oficial um mergulho profundo de reflexão sobre si mesmo. Aqui, fica explícita essa vocação da música como algo inebriante, muito apropriada para levar os pensamentos consigo: “Como, nele, a música suprimia a vontade, ela emprestava toda a sua força ao passado”.35 Para Malraux, a música da Guerra Civil Espanhola não eram os hinos revolucionários nem a música religiosa, mas sim aquela totalidade encontrada na combinação de elementos fragmentários: melodias isoladas, sons gerados pela natureza, ruídos produzidos pela atividade humana. O som do gramofone que tocava Beethoven era apenas uma parte desse todo – e talvez não fosse nem mesmo a parte mais importante: Aqueles movimentos musicais se sucediam, enrolados em seu passado, falavam como teria falado aquela cidade que, outrora, detivera os mouros, e aquele céu e aqueles campos eternos; Manuel ouvia pela primeira vez a voz daquilo que é mais grave que o sangue dos homens, mais inquietante que sua presença sobre a terra – a possibilidade infinita de seu destino; e sentia aquela presença em si mesmo, misturada ao barulho dos riachos e ao passo dos prisioneiros, permanente e profunda como o batimento de seu coração.36

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33 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 463.

34 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 472.

35 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 472.

36 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 473.

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37 MALRAUX, André. Op. Cit. p. 219.

Esse é o misterioso canto profundo que soa dentro dos homens, e que às vezes aparece em referências isoladas em A Esperança. Como na descrição do ataque dos milicianos espanhóis aos tanques fascistas italianos: “No coração, sem tirar os olhos do tanque que avança por ele, canta o canto profundo das Austúrias. Jamais saberá, mais do que nesse momento, o que é ser um homem”.37

Canções para depois de uma guerra

38 ORWELL, George. Homenaje a Cataluña. Buenos Aires: Reconstruir/DISSUR, 1996. As referências a canções revolucionárias na obra de Orwell aparecem sobretudo no primeiro capítulo, quando o autor ainda estava preocupado em descrever o clima da Barcelona revolucionária sob hegemonia anarquista. Desconhecendo o idioma espanhol, Orwell não indica quais seriam essas canções.

39 Como exemplo, poderíamos citar a inclusão do Hino da Internacional, em catorze idiomas diferentes, no cancioneiro publicado pelo cantor comunista alemão Ernest Busch. Canciones de Guerra de las Brigadas Internacionales. 5a. Edição. Barcelona: junho de 1938, pp.128-132.

A música na obra de Malraux sobre a Guerra Civil Espanhola se apresenta, portanto, como algo que ultrapassa o aspecto estritamente ilustrativo. Ela serve como elemento problemático que simboliza os próprios dilemas da revolução e da atividade militar. Mais do que isso, o que observamos são as concepções de Malraux a respeito do que vem a ser para ele “a verdadeira música”, bem como os diferentes significados que a música pode adquirir no quadro da experiência de guerra. Evidentemente estes são alguns aspectos criados dentro de uma obra de ficção, e portanto marcados pela compreensão subjetiva do autor a respeito dos conflitos de guerra e do significado que a existência humana adquire neles. O que ainda caberia questionar, embora evidentemente fuja dos limites deste artigo, é até que ponto essa visão estava ideologicamente comprometida. Pode-se ainda comparar as considerações de Malraux com as de George Orwell, cuja obra memorialística também dá grande destaque às canções revolucionárias no início da Guerra Civil Espanhola. O que fica patente, para ambos os autores, é que houve um desvanecimento das utopias revolucionárias ao longo do conflito. A referência às canções na obra de Orwell, por exemplo, simplesmente desaparecem à medida que a utopia cede terreno ao pragmatismo dos comunistas.38 Apesar disso, somos obrigados a contestar que tenha havido, como sugere a obra de Malraux, um “abandono da Internacional” nas frentes de batalha após o combate travado em Guadalajara. Na verdade, trata-se apenas de um recurso estilístico – importantíssimo no conjunto da obra – criado por Malraux para ilustrar seu ponto de vista. A Internacional, bem como uma série de outros hinos revolucionários, continuou sendo cantada durante toda a Guerra Civil Espanhola, como atestam os cancioneiros de guerra, posteriores não apenas à batalha de Guadalajara, mas à própria obra de Malraux.39 Ao combater a idéia do entusiasmo revolucionário como força capaz de, por si só, vencer a guerra, Malraux buscava atingir, sobretudo, a opinião pública francesa – que era, afinal, a quem se dirigia o livro. Seu objetivo, portanto, era fazer com que os franceses abandonassem sua indiferença em relação à Guerra da Espanha, ou que pelo menos transformassem seu entusiasmo em ação prática e efetiva. Sob esse ponto de vista, a obra de Malraux obteve absoluto êxito, na medida em que a leitura de A Esperança levara muitos jovens a lutarem como voluntários em solo espanhol. Deixar a música para depois da guerra – eis a idéia que persegue Malraux em seu livro. Não apenas a música, mas a arte em geral, e até mesmo a própria literatura. Sua ambição era fazer com que outros escritores realizassem a dupla tarefa de escrever combatendo e combater escrevendo. “Se alguém sobrevive, sua

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escrita melhorará com a experiência obtida em batalha. Se alguém morre, terá conseguido um documento mais vivo do que aqueles podem ser escritos em torres de marfim”.40 A boa literatura, portanto, só poderia nascer da experiência do combate. Mas seria apenas a luta contra o fascismo nos campos de batalha que escreveria definitivamente, para Malraux, as páginas da História.

40 Palavras de Malraux em sua visita a Hollywood, em 1938. Citadas por THOMAS, H. Op. Cit. p. 729

BIBLIOGRAFIA BUSCH, Ernst. Canciones de Guerra de las Brigadas Internacionales. 5a. Edição. Barcelona: junho de 1938 DUARTE, Angel. La esperanza republicana. In: CRUZ, R.&LEDESMA, M.P. Cultura y movilización en España Contemporánea.Madrid: Alianza, 1998. HAGEMEYER, Rafael R. A identidade antifascista no cancioneiro da Guerra Civil Espanhola. Tese de doutorado. UFRGS, 2004. [mimeo]. LABAJO, Joaquina. Pianos, voces y panderetas: apuntes para una historia social de la música en España.. Madrid: Ediciones Endymion. 1988. MALRAUX, André. A Esperança. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. Record, 2000. ORWELL, George. Homenaje a Cataluña. Buenos Aires: Reconstruir/DISSUR, 1996. REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA. Cultura & Linguagens. São Paulo: ANPUH/Marco Zero, vol. 7 n. 13 set. 1886/fev.1987. THOMAS, H. La guerra civil espanhola. Barcelona: Grijalbo Mandodari, 1996. 3a. edição.

*Rafael Rosa Hagemeyer é Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professor do Centro Universitário Positivo (UNICENP/ Curitiba-PR).

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PSICANÁLISE

FREUD ENTRE A MORAL VITORIANA E O AMOR LIVRE VICISSITUDES DA IDÉIA DE LIBERAÇÃO SEXUAL Carlota Ibertis*

Resumo: Propomo-nos aqui relembrar algumas das vicissitudes da idéia de liberação sexual que contribuíram para a situação atual. Sem dúvida coube a Freud um papel fundamental, embora as suas convicções não coincidissem com as mudanças advindas. Vamos, então, salientar aspectos da influência de Freud que, mesmo não desejada por ele, leva da moral vitoriana, passando pela reivindicação do amor livre, à configuração atual. A pergunta que nos serve de fio condutor pode ser formulada da seguinte maneira: como é pensada a liberação sexual nessas diferentes etapas do processo histórico (o vitorianismo de fim de século XIX, o movimento a favor do amor livre dos anos sessenta e o presente)? Ou, em outras palavras, quais são as mudanças na forma de conceber a liberação sexual e quais as conseqüências de tais variações? PALAVRAS-CHAVE: LIBERAÇÃO SEXUAL; FREUD Abstract: Without any pretense of exhausting the question, we propose to indicate some of the vicissitudes of the idea of sexual liberation which contributed to the present. Doubtless, Freud had a fundamental role, though his convictions did not coincide with later changes. We will therefore underline aspects of Freud’s influence which, though he did not wish it, proceed from Victorian morality, passing through the movement for free love, to the present. Our guiding question can be formulated as follows: How is sexual liberation thought of in these different stages? Put differently: What are the changes in the idea of free love, and what are their consequences? KEYWORDS: SEXUAL LIBERATION; FREUD

Como alguém que pretende estudar a memória, acreditamos que resgatar o passado que esclarece nosso presente faz sentido. Sem pretender esgotar a questão, propomo-nos aqui relembrar algumas das vicissitudes da idéia de liberação sexual que contribuíram para a situação atual. Sem dúvida coube a Freud um papel fundamental, embora as suas convicções não coincidissem com as mudanças advindas. Vamos, então, salientar aspectos da influência de Freud que, mesmo não desejada por ele, leva da moral vitoriana, passando pela reivindicação do amor livre, aos tempos da configuração atual. A pergunta que nos serve de fio condutor pode ser formulada da seguinte maneira: como é pensada a liberação sexual nessas diferentes etapas do processo histórico? (o vitorianismo de fim do século XIX, o movimento a favor do amor livre dos anos sessenta e o presente) Ou, em outras palavras, quais são as mudanças na forma de conceber a liberação sexual e quais as conseqüências de tais variações? REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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(I) Ao longo do século XIX, Alain Corbin identifica um movimento gradativo de liberação do indivíduo em relação aos papéis sociais e econômicos. Os progressos de tal individualização engendram, segundo o mesmo autor,2 novas fontes de ansiedade ao impor a necessidade de uma elaboração de imagens de si mesmo independentes do nascimento, baseadas em critérios de sucesso profissional e pessoal. Nesse processo, a família nuclear é o marco de referência e adquire o papel de mediação entre sistemas de parentescos mais amplos e o indivíduo à procura da sua autodeterminação. A família, como salienta Michelle Perrot,3 é fonte de tensões constantes diante da tendência crescente do individualismo. Quanto à cultura austríaca em particular, Carl Schorske4 distingue dois conjuntos de valores, na segunda metade do século XIX: o moral e científico, por uma parte, e o estético, pela outra. A alta burguesia vienense em moral era: 1

convicta, virtuosa e repressora; em termos políticos, importava-se com o império da lei, ao qual se submetiam os direitos individuais e a ordem social. Intelectualmente, defendia o domínio da mente sobre o corpo e um voltairianismo atualizado: progresso social através da ciência, educação e trabalho duro.5

1 CORBIN, A.: “Bastidores”, in: História da Vida Privada 4, sob a direção de Michelle Perrot, São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 2_________op.cit. , p.563.

3 PERROT, M.: Os atores in: História da vida privada 4. 4 SCHORSKE, C.: Viena fin-de-siècle, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, cap. 1.

5___________: op.cit., p.28.

Porém, nos últimos anos do século, a ordem liberal vienense desmorona-se pela pressão política vinda da criação dos partidos de massa. Segundo a análise de Schorske, a burguesia liberal reage ao fracasso dos seus valores de racionalidade e moralidade, refugiando-se no esteticismo da aristocracia. Aos valores morais vitorianos e à crença na racionalidade científica como transformadora social, sobrepõe-se, gradativamente, uma cultura dos sentimentos que, junto com as mudanças sociais, mina a cultura moralista. Nesse contexto, o ideal universal do homem racional é substituído pelo homem individual, mais instável e mutável, que está à busca de novas identidades. Como exprime J. Le Rider sobre o homem sem qualidades, representante do espírito da época, da obra homônima de Robert Musil: Libertado dos papéis e das identificações que a sociedade gostaria de lhe impor, o homem sem qualidades se afirma como um homem do possível e da experimentação, que não se alarma ao ver sua identidade passar por constante remanejamento.6

A crise da modernidade assumiu a forma de uma crise de identidade em relação ao modelo de homem. Com ela ganha interesse o Homo Psichologicus nos termos de Rieff , que deve construir um novo sistema de crenças no qual se sustentar. Correlativo ao processo de individualização, surge, no homem ocidental, uma crescente consciência do corpo e da sexualidade, inibida pela religião e pela moral. Centrada na família,7 a história oitocentista passou por diferentes etapas na forma de conceber a sexualidade, fenômeno cada vez mais presente e central na cultura ocidental. Entretanto, a divulgação dos aspectos perturbadores da vida 288

6 LE RIDER, J.: A modernidade vienense e as crises de identidade, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1993, p. 500.

7 PERROT, M.: A Família triunfante in: História da Vida Privada 4.

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sexual (doenças venéreas, transtornos mentais etc) têm um efeito retardador desse processo, levando à invenção do amor romântico e da mulher angélica. Assim, a visão oitocentista masculina acerca da mulher oscila entre as figuras de Eva e de Maria.

8 CORBIN, A.: op.cit., p.522

A virgem etérea, diáfana, nega a tal ponto a sexualidade de seu companheiro que se torna inquietante, insidiosamente castradora. O homem volta a ser vítima daquela que o elevou ao nível dos anjos a fim de melhor exorcizar sua animalidade.8

No meio das inquietações culturais provocadas pela tensão entre uma sexualidade exclusivamente procriadora e uma sexualidade marginal voltada ao prazer,9 Freud critica o rigorismo do modelo vitoriano. Em relação aos impulsos sexuais e aos mandamentos culturais, ele afirma:

9 Cf. CORBIN, A. Bastidores in: PERROT, M. (org.) História da Vida Privada IV, São Paulo: Companhia das Letras, 1991 10 FREUD, S., Cinco conferências sobre psicoanálisis, AE, XI, p. 50.

11 FREUD, S.: El Malestar en la civilización, AE, XXI, p.102.

12 A idéia da oposição pulsões-cultura é uma abstração para facilitar a exposição, uma vez que mesmo opondo-se formam um entremeado inseparável. Uma espécie de segunda natureza.

Nossas exigências culturais fazem difícil demais a vida para a maioria das organizações humanas, e assim promovem o estranhamento da realidade e a gênese das neuroses sem conseguir um superávit de ganho cultural em troca desse excesso de repressão sexual.10

Mais tarde, Freud sintetiza o espírito da moral da época no concernente à forma específica da vida sexual aceita e exigida: A cultura de nossos dias deixa entender bem claramente que só permitirá as relações sexuais sobre a base de uma ligação definitiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher, que não quer a sexualidade como fonte de prazer autônoma e está disposta a tolerá-la como a fonte, até agora insustituída, para a multiplicação dos seres humanos.11

A crítica freudiana da moral sexual dirige-se à exigência da monogamia institucionalizada e da sexualidade reprodutora, no seio da instituição, como formas exclusivas de canalizar a libido. A imposição, por parte da moral coetânea, da abstinência sexual fora do casamento acarreta, segundo Freud, mais prejuízos do que vantagens. O esforço para cumprir tal exigência leva amiúde a desenvolver neuroses ou perversões, além de danificar a potência da libido cuja satisfação resulta, então, insuficiente, levando à frustração masculina e à frigidez feminina. Em definitivo, a exclusividade da monogamia legítima, defendida pela moral do fim de século, resulta prejudicada pelo rigorismo das suas próprias demandas. Ora, para Freud, a psique é um sistema em que o pulsional e o cultural, como forças opostas,12 devem manter-se em equilíbrio, e ele acredita ter encontrado o ponto adequado. É preciso salientar que qualquer situação que desconheça uma dessas forças torna tal equilíbrio impossível. Trata-se, então, de defender a coexistência de ambas apesar do seu sentido excludente. Na concepção de Freud, a moral representa um fator fundamental na constituição psíquica do sujeito. Por isso mesmo, as suas excessivas exigências, sobretudo no que diz respeito à sexualidade, teriam sido as causadoras da maior parte das neuroses do seu tempo. Assim, refere-se Freud à moral sexual da época: É uma das manifestas injustiças sociais que o padrão cultural exija de todas as pessoas idêntica conduta em sua vida sexual, conduta que umas, pela sua organização, encontrarão fácil

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respeitar, enquanto que imporá a outras gravíssimos sacrifícios psíquicos; injustiça esta, certamente, compensada as mais das vezes pela inobservância dos preceitos morais.13

O problema é o caráter cultural do ponto que determina esse equilíbrio entre o pulsional e o cultural. Freud critica a padronização da vida sexual, restringindoa ao âmbito do casamento e à finalidade de procriação. Mas por que a sexualidade teria de adotar a heterossexualidade genital como a sua manifestação normal, se o desenvolvimento libidinal pode deter-se em qualquer uma das suas fases? Como Freud mesmo reconhece, quando ele fala de sexualidade “normal”, adota o critério cultural. De fato, ele não extrai as últimas conseqüências da sua teoria do desenvolvimento da pulsão sexual, diferente em cada um. Por que, então, exigir de todos o mesmo desempenho sexual? A ambivalência em Freud entre aceitar e rejeitar os critérios culturais é manifesta. A mesma crítica que ele faz à sociedade da sua época poderia ser feita a ele próprio. Algumas hipóteses que explicariam essa situação nos parecem plausíveis. Em primeiro lugar, pode ser que nos defrontemos, aqui, com os limites impostos pela cultura ao próprio Freud. Podemos postular, em segundo lugar, que a perspectiva darwiniana lhe impusera como normal o comportamento que preserva a espécie. Ou, talvez, ambas as suposições: que o espírito da época, influenciado pela visão evolucionista, visse na família a preservação biológica e cultural da espécie. O certo é que ele defende um equilíbrio entre cultura e pulsão, cujo ponto exato é difícil de determinar. Segundo a descrição freudiana, o preço do desenvolvimento cultural reside na hegemonia do impulso erótico secundário face ao primário e no controle da agressão por meio do acréscimo da culpa. A cultura impõe renunciar à plena satisfação pulsional por laços cada vez mais sutis e eficazes. Porém, o que aqui é relevante salientar é a finalidade adaptativa que caracteriza o fenômeno cultural para Freud. Nessa perspectiva evolucionista, a moral jogaria o papel de controle interno contra as pulsões. A crítica de Freud à moral da sua época reside em que ela teria falhado na sua função, uma vez que as suas exigências desproporcionais levariam à neurose. Se em um primeiro momento Freud deixa entrever que o único empecilho para a felicidade está na moral repressora da época, depois ele muda de idéia. Como salienta Catherine Millot,14 a maneira de conceber a oposição sexualidade-cultura modifica-se a medida em que a teoria vai se desenvolvendo. Em textos anteriores a 1900, a preocupação é estritamente médica e profilática procurando conciliar as exigências sexuais e as sócio-econômicas do casamento em idade mais avançada que a entrada na maturidade genital. Trata-se de dificuldades técnicas de contracepção e a contradição apresenta-se, ainda, como solúvel. Já no artigo sobre a Moral sexual “civilizada” e a doença nervosa moderna (1908), não é mais a insatisfação sexual atual o que o perturba, mas o recalque de representações sexuais por motivos morais. Vemos internalizada a oposição entre a sexualidade e a cultura. Doravante dita oposição é insolúvel. Com efeito, a descoberta da sexualidade infantil e do complexo de Édipo revelam a proibição no âmago da sexualidade. O objeto de amor será sempre substitutivo. 290

13 FREUD, S.: La moral sexual “cultural” y el nerviosismo moderno, AE IX, p. 172.

14 MILLOT, C. Freud: Antipedagogo. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

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Em Sobre a tendência generalizada à depreciação na esfera do amor (1912), Freud distancia-se tanto da moral repressiva quanto da falta de limites em torno dos costumes sexuais de modo que desejo e proibição implicam-se reciprocamente. Se a frustração inicial do gozo sexual se manifesta no fato de que este, vendo-se livre depois no casamento, já não produz efeitos tão satisfatórios, [...] a liberdade sexual ilimitada concedida desde um princípio não conduz a resultado melhor.15

15 FREUD, S. Sobre la más generalizada degradación de la vida amorosar, AE, XI, p. 181.

Depois de 1920, com a postulação da pulsão de morte, a possibilidade de ser feliz desaparece do horizonte teórico freudiano. Eros e Thánatos em luta constante são as pulsões que, junto com a proibição do incesto, explicam a condição humana e o ingresso na ordem cultural. Assim, Schorske observa que Freud, como muitos outros dos seus contemporâneos, experimentou o conflito entre a herança moralista e o reconhecimento da vida pulsional. Mas ele, à diferença dos outros, fez da última o constitutivo do humano. Freud contestou a tradição moralista pela sua incapacidade para compreender o pulsional, porém, também alertou sobre os efeitos perigosos da sua satisfação sem-controle. Com efeito, Freud concebeu, graças à sua nova perspectiva, a índole conflitiva do homem. E é por essa visão que para Freud a demanda de liberalização sexual só poderia ter um significado relativo reformista, cujo alcance seria sempre limitado, e nunca poderia adotar o caráter de uma panacéia universal.

(II)

16 Cf. HOBSBAWM, Eric, op.cit, cap. 15.

17 Cf. HOBSBAWM, Eric, op.cit., cap. 15.

Demos um salto nos anos sessenta. Alguns lembrarão as consignas daqueles anos: “É proibido proibir”, “Faça amor, não faça a guerra”, “Paz e amor”, entre outras. Declarações que refletiam a revolta de uma geração contra a cultura vivenciada como opressiva. Historicamente as condições estavam dadas para que surgisse um movimento que reivindicasse uma outra ordem. Assim, o “Maio francês”, Woodstock, o “Flower Power” representaram o espírito da época. Enfim, o “sexo, drogas e rock and roll” trouxe conquistas inegáveis na flexibilização dos costumes aceitos socialmente. Certamente a reivindicação do amor livre era um aspecto central desse movimento, que exigia mudanças gerais: políticas, sociais, econômicas, artísticas e intelectuais. Com efeito, a libertação sexual não se restringia apenas a uma modificação dos costumes sexuais, ao contrário, ela supunha uma revolução política e cultural com a qual, finalmente, alcançar-se-ia a felicidade. Olhados com certo ceticismo, pelos esquerdistas da geração anterior,16 os jovens defendiam uma nova visão da política que se poderia sintetizar na expressão “o pessoal é político”. Assim, enquanto a geração anterior considerava ilusório o poder revolucionário da nova geração que se mostrava individualista e pouco organizada, na verdade, ela estava provocando uma revolução. Porém, não se tratava de uma revolução no sentido político tradicional do termo,17 mas no sentido de uma radical mudança das formas das pessoas agirem e se relacionarem, com todas as conseqüências disso nos outros âmbitos da cultura.

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O que realmente transformou o mundo foi a revolução cultural da década de 1960. O ano de 1968 pode ter sido menos um ponto decisivo na história do século XX do que o ano de 1965, que não teve qualquer significação política, mas foi o ano em que pela primeira vez a indústria francesa de roupas produziu mais calças femininas do que saias, e no qual o número de seminaristas católicos romanos começou a declinar visivelmente.18

As críticas de Freud à sua sociedade são recriadas por Reich e Marcuse que concebem uma sociedade sem repressão sexual, idéia esta inspiradora para a época. Mais imediatamente ligados ao Maio do 68, Deleuze, Guattari e Lyotard, atacando a concepção freudiana do complexo edipiano, defendem também uma sociedade não repressiva. Sob formulações diversas, a libidinização é para todos estes pensadores não a condição sine qua non da liberdade, mas a própria liberdade: Eros gerador de uma nova civilização, como afirma Marcuse.19

Se a cultura repressiva canaliza toda a libido para a produção ou para a reprodução, a verdadeira revolução consiste em anular tal repressão. A subseqüente libidinização da sociedade seria a liberdade. Na visão de Catherine Millot, Freud mostra o caminho a Reich ao denunciar o vínculo entre as proibições sexuais, a interdição ao pensar e a submissão política. Assim, a repressão sexual seria a “melhor arma de opressão política” e o recalque a “melhor garantia de submissão”.20 Sem levar em conta o pensamento freudiano posterior, Reich defende que a solução estaria, portanto, na revolução política e sexual que levantando todos os interditos sexuais conduziria ao pleno desenvolvimento da libido e instauraria uma sociedade livre e criativa. As descargas orgásticas periódicas da tensão libidinal do id reduzem consideravelmente a pressão das exigências pulsionais do id sobre o ego. Pelo fato de o id estar basicamente satisfeito, o superego não tem nenhum motivo para ser sádico e, portanto, não exerce qualquer pressão especial sobre o ego. Livre de sentimentos de culpa, este apodera-se da libido genital e de certos empenhos pré-genitais do id, satisfazendo-os, e sublima a agressão natural, bem como partes da libido pré-genital, em realizações sociais.21

Como salienta Paulo Albertini,22 o caráter genital associa-se a uma “economia da libido regulada” que implica tanto em atividade sexual genital orgástica quanto em capacidade sublimatória. Isso, não apenas porque a sublimação alimentar-se-ia das pulsões parciais não assimiladas na genitalidade, mas porque a mesma satisfação sexual genital estimula a sublimação. Não mais se trata, como em Freud, de uma energia fixa que deve ser destinada para um fim ou outro, senão de atividades complementares. Nas palavras de 292

18 HOBSBAWM, Eric, op.cit., p.290.

19 COLLIN, Françoise, Diferença e diferendo. A questão das mulheres na filosofia in: DUBY, G e PERROT, M. História das mulheres. O século XX, São Paulo, Porto: Afrontamento e Ebradil, 2000.

20 MILLOT, C., Freud: Antipedagogo, p.30.

21 REICH, Wilhelm. Análise do Caráter. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 174-5.

22 ALBERTINI, Paulo. Reich e a possibilidade do Bem-Estar na Cultura in Revista de Psicologia da USP, 2003, 14 (2), 61-89.

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23 ALBERTINI, Paulo, op.cit. p. 77. 24 Segundo Freud, o mito de Prometeu exprime a oposição entre cultura e pulsões. O herói rouba o fogo dos deuses para entrega-lo aos homens. Ele carrega o fogo resistindo ao desejo homossexual de apagá-lo com a urina. Prometeu carrega o fogo próprio por não ceder ao prazer sensual. Ele renuncia a tal prazer em troca das vantagens que oferece a conservação do fogo. Os deuses castigam Prometeu acorrentando-o a uma pedra e, dia após dia, um abutre come o seu fígado que se reconstitui continuamente. Desse modo, figura-se a hostilidade humana face à demanda de resignação pulsional e a indestrutibilidade das pulsões que ameaça o desenvolvimento cultural. 25 MARCUSE, H. Eros e Civilização, Rio de Janeiro: Zahar, 1981, capítulo 8. 26 MARCUSE, H., Op. cit., cap. 10.

27 Cf. MARCUSE, H., op.cit., cap. 2.

Albertini: “... o autor [Reich] substitui a tese freudiana da ‘sexualidade ou cultura’ pela da ‘sexualidade e cultura’”.23 Em um espírito semelhante, Marcuse contrapõe Prometeu24 com as figuras de Orfeu e Narciso, contestadores da ordem repressiva da sexualidade procriadora a serviço da produtividade. A Prometeu criador da cultura às custas do sofrimento perpétuo, e representante da produtividade e do progresso através da repressão ele opõe Orfeu e Narciso, imagens da alegria e da plena fruição, reivindicadores de um Eros polimorfo mais pleno do que o Eros procriador.25 Ele recusa a separação sujeito-objeto resgatando no narcisismo primário uma outra forma de relação mais fundamental de união com a realidade. Uma nova sublimação começaria pela reativação da libido narcisista que, de algum modo, extravasaria e se estenderia aos objetos. A erotização levaria à sublimação criativa. Nessa nova ordem, liberdade, arte e cultura estariam unidas.26 Todavia, não é claro como a impossibilidade de discriminar-se do eu em relação do resto pode ter efeito criativo. Em todo caso, o que tanto Marcuse quanto Reich pretendem contestar é a necessidade da cultura possuir caráter repressivo. Freud teria confundido uma configuração histórica com uma característica estrutural imodificável da sociedade ao apresentar a necessidade da pulsão erótica ser reprimida e desviada de sua finalidade para destinar parte da sua energia para satisfazer as necessidades da vida. Desse modo, Freud teria identificado o princípio de realidade com a forma histórica própria de uma sociedade voltada para a produção e o lucro: o princípio de desempenho. Desde essa perspectiva, o homem é visto como um ser em função do sistema e limitado no desenvolvimento das suas capacidades e anseios criativos. Quebrar essa falsa identificação faria viável uma civilização nova que não requeresse a “mais-repressão” da civilização atual.27 Não se trata simplesmente de reivindicar um afrouxamento das restrições sexuais, antes bem, é a utopia de um homem pleno que abrange os diversos aspectos da vida social como a sexualidade, o mundo do trabalho, a arte. Porém, a crescente liberalização sexual sob o predomínio do princípio de desempenho não deve confundir-se com a liberdade acarretada pela substituição desse princípio por um outro não-opressivo. Na lógica do princípio de desempenho surgiram controles globais mais eficientes do que a restrição sexual. Segundo Marcuse, as novas modalidades seriam a diminuição da consciência individual e a maior tendência ao consumo, promovidas pelos meios massivos de comunicação. Uma pequena concessão para uma maior dominação. Mais adiante voltaremos a esse ponto. Por sua vez, Deleuze e Guattari reivindicam o primado do desejo estabelecido pela teoria psicanalítica, porém criticam a redução “familialista” da libido atrelada à configuração histórica burguesa. Ao conceito freudiano de inconsciente contrapõe-se o conceito de inconsciente maquínico, não analisável em termos de complexos fixos e universais. Complexos de castração, de Édipo, existem como casos particulares ligados a determinadas áreas culturais ou sociais ou à determinada estrutura psicopatológica. Com efeito, nessa concepção, o inconsciente pode orientar-se tanto para o passado como para o presente e o futuro, e se encontra em constante evolução ao longo da história. O desejo incodificável, indomável, inesperado é subversivo de toda norma e ordem. Não se tratam de “sujeitos desejantes”, mas de “máquinas desejantes” através das quais circula a libido polimorfa. Herdeiros da mesma tradição freudo-marxista de Reich e Marcuse, eles também afirmam o poder re-

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volucionário da libido em relação ao sistema, porém, à diferença dos primeiros, prima neles a crítica antes da utopia. Ao contrário do que pensaram esses autores, para Freud, “cultura não repressiva” é uma contradição em termos. Na sua concepção, a cultura nasce como uma resposta ao transbordamento da libido e da agressividade, contrapondo-se a elas. Enquanto processo, essencialmente ela é um progressivo refrear das pulsões: gradativo deslocamento das metas pulsionais e limitação das moções pulsionais. Da primeva proibição contra o incesto, as limitações à sexualidade ampliaram-se ao longo da história até a época de Freud, em que apenas se permitem os vínculos heterossexuais monogâmicos institucionalizados. No processo cultural, parte da energia psíquica própria da vida sexual destina-se de forma crescente aos laços amorosos de meta sexual inibida. Quanto à pulsão agressiva, a cultura a dirige contra o próprio sujeito, na forma de instância crítica e punitiva.28

28 FREUD, S. El malestar en la cultura, AE XXI, caps. V e VI.

(III) Falar do presente é uma tarefa que implica em um distanciamento difícil de atingir. Por isso, e sem estabelecer generalizações apressadas ou absolutas, propomos-nos apenas apontar tendências e aspectos relacionados com a liberação sexual. Como disséramos, devemos muito à década dos sessenta em matéria de elasticidade nos costumes e do conseqüente espaço para decisões individuais. Quem já viveu em uma sociedade mais rígida aprecia as vantagens atuais nesse sentido. Ora, às etapas anteriores de reivindicação de liberdades sexuais segue-se um processo no qual a crise das formas tradicionais de organização social se abre a novas modalidades, as quais, ainda não sedimentadas, convivem com as mais antigas. Trata-se de alternativas à família nuclear constituída pelo casal heterossexual e seus filhos. Essas realidades sociais em criação estabelecem a necessidade de novas leis que dêem conta da sua especificidade. Sob um aspecto, então, o presente caracteriza-se pela discussão filosófica, psicológica, sociológica e jurídica de princípios e leis que regerão os novos hábitos sociais.29 A reivindicação adquire caráter jurídico-institucional para as mudanças que aspiram consolidar-se. Sob um outro aspecto, o que fora o grito de liberdade dos sessenta, com o correr do tempo, foi assimilado pelo status quo. Comentando a década, o historiador Hobsbawm afirma que o jeans é o grande vitorioso daquela época.30 Usado como protesto contra o conservadorismo, passa a ser a vestimenta própria dos jovens e daqueles que assim se sentem. Atualmente a indústria do jeans deve ser das mais bem sucedidas, e o que era um desafio ao sistema se transformou em um elemento diferenciador de prestígio nos diferentes modelos que o mercado oferece. Também o rock movimenta grande parte da indústria fonográfica. Do mesmo modo que os jeans e o rock, a liberação sexual foi assimilada e absorvida. Hoje há uma complexa estrutura de consumo montada ao redor do sexo. Marcuse antecipara, ao explicar a liberalização sexual como concessão do sistema, a possibilidade de harmonia entre a sexualidade e o “conformismo lucrativo”. Nessa perspectiva, o processo parece ter continuado até converter o sexo em um bem de consumo e, portanto, em mais um controle. Em desacordo com a visão utópica freudo-marxista, Foucault identifica nossa época como um momento especial do dispositivo da sexualidade surgido a partir do século XVII.31 Com efeito, ainda estaríamos sujeitos a discursos, acerca 294

29 Cf. DERRIDA, Jacques. De que amanhã…: diálogo/ Jacques Derrida; Elisabeth Roudinesco. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. 30 HOBSBAWM, Eric, Tempos Interessantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

31 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

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32 BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001. Apresentação.

33 KRISTEVA, Julia. Para que servem os psicanalistas em tempo de desgraça que se ignora? in: As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 39.

do sexo e da sexualidade, que funcionam como formas de normatização, ao propor o sexo como aquilo que salva do sem-sentido, da mediania, do tédio e vazio existenciais. Utopia de felicidade, o livre exercício do sexo despoja-se de qualquer outra finalidade: nem sentimentos, nem ideologia. Foucault denuncia a ironia desse dispositivo querer nos fazer acreditar que está aí a nossa libertação. A despeito do que se sonhava nos sessenta e setenta, a erotização generalizada acentua a sociedade de produção e consumo fazendo do prazer um bem a ser consumido. Temos direitos e, mais ainda, somos compelidos a ter prazer como a ter qualquer outro bem. Todavia, o sexo como fim em si mesmo torna-se muito exigente: desde o ideal único de beleza ao êxito, há um leque de condições a serem cumpridas para não se ficar excluído do circuito de relações. Nessa curiosa combinação de autocentramento e valoração da exterioridade,32 Joel Birman vê a característica própria da subjetividade contemporânea. Julia Kristeva fala da “sociedade do espetáculo e do consumo”, “da performance e do estresse”. Ela identifica na nossa época duas características: retraimento narcísico e declínio do desejo de saber que levariam às pessoas a se fecharem em si numa ruminação indefinida ou a agir sem a intermediação do ato de pensamento, de interpretação. Tal empobrecimento da vida psíquica seria, segundo Kristeva, a doença do mundo moderno. E, justamente, nesse agravamento da doença psíquica a autora vê um apelo em direção à psicanálise; desafio terapêutico que adquire caráter ético e, incidentalmente, também político.33 Igualmente drástica Elisabeth Roudinesco pensa que o processo de independentização do indivíduo iniciado no século XIX em busca de tornar-se senhor da sua história teria desembocado, por uma parte, na “sociedade depressiva” onde não se sabe que fazer com as liberdades conquistadas; por outra, na perda no indivíduo da sua dimensão de sujeito, ao ceder à tentação da solução mágica e uniformizadora prometida pela farmacologia. ...a era da individualidade substitui a da subjetividade: dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de uma independência sem desejo e de uma historicidade sem história, o homem de hoje transformou-se no contrário de um sujeito.34

34 ROUDINESCO, Elisabeth, Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 14.

Os autores coincidem em que passamos por uma crise na concepção do ser sujeito e no desejar, que nos constitui como tal. Percebemos o mal-estar na cultura. Em particular no que diz respeito ao nosso tema, uma grande variedade de vínculos e de alternativas sexuais é aceita e, no entanto, as queixas relativas à solidão e à dificuldade para se envolver emocionalmente não parecem diminuir. Uma possível explicação estaria na exacerbação acima mencionada do componente narcisista nas relações eróticas. Com efeito, se o outro na sua alteridade não é percebido como sedutor e atraente, desejá-lo torna-se impossível. Para quem não consegue obedecer o imperativo midiático do gozo a qualquer preço, a depressão denunciada por Roudinesco é uma possibilidade a espreita. Em todo caso, e sem pretensão de generalização quanto às formas e caminhos duma época rica em diversidade, o que nos parece evidente no presente é que o par “desejo – lei” não foi re-equacionado pela sociedade como uma unidade. A suspeita que nasce é a de que isso pode não acontecer. Quiçá sob a sociedade globalizada permaneçam grupos com identidades culturais diversas.

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Conclusão Não tentamos fazer uma análise exaustiva da problemática da sexualidade. De modo algum tivemos a pretensão de dar conta das causas muito complexas que levaram à situação atual. Apenas evidenciamos nuanças, próprias de cada período, na forma de pensar a liberação sexual, e algumas das implicações concomitantes a cada uma delas. Identificamos, em primeiro lugar, as críticas de Freud à moral da sua época e as mudanças na sua avaliação acerca dos efeitos de uma reforma dos costumes sexuais para a felicidade. Em segundo lugar, vimos como na década dos sessenta enxerga-se na liberação sexual um potencial revolucionário que não se restringe meramente à mudança dos costumes sexuais, mas que ultrapassa suas fronteiras concebendo-a em termos de revolução política, social, econômica e artística. Por último, observamos que a liberação sexual, por uma parte, modifica a estrutura social atingindo a hegemonia da família nuclear, para dar lugar a formas novas de vinculação. Pela outra, a liberação sexual − despojada de conotações político-revolucionárias − tende a erigir o sexo em fim em si mesmo. Assimilado como objeto de consumo, por sua vez, ele se converte em fonte de novas exigências em torno do corpo e a auto-imagem. Ora, a cada época corresponde uma especificidade nos valores sustentados. Se aceitarmos a concepção freudiana de cultura, cada configuração cultural traz consigo uma relação especial de equilíbrio ou desequilíbrio entre pulsões e exigências. Assim, em cada configuração a saúde psíquica demandará de cada indivíduo uma reação diferente perante o próprio superego. Isso, porque ambos os elementos, pulsões e mandamentos, ao limitarem-se reciprocamente, são condições de possibilidade para o sujeito. É preciso, pois, identificar e aprofundar quais são os termos e o ponto de tal equilíbrio hoje caso se trate de encontrar um único para a sociedade como um todo ou quais são os equilíbrios que as diversidades sustentarão. Enfim, o estoicismo freudiano defende que a felicidade, enquanto satisfação plena das pulsões, é incompatível com o fato de pertencermos à ordem cultural. Em outras palavras, a própria condição do homem é alheia à felicidade. Todavia, não se trata de um estoicismo que demanda simples resignação, mas que exorta ao “conhece-te a ti mesmo” para dominar as paixões. A conquista da consciência implica na apropriação de si e no fazer-se dono do destino de cada um. Entretanto, o conhecimento de si e o controle que ele outorga são provisórios. A ameaça das pulsões e dos fantasmas do passado sempre está à espreita. Se o ideal de Freud é racionalista, de maneira alguma o é como crença cega no seu poder transformador. Em primeiro lugar, porque o desconhecimento de si é sempre possível. Em segundo lugar, porque ele suspeita da capacidade da razão vir a mudar a condição agressiva do homem. Por último, porque ele não promete o paraíso. A questão é se a sociedade aceita acreditar que não podemos ser plenamente felizes. Como parafraseava Tomás M. Simpsom, qual será o futuro da desilusão?

*Carlota Ibertis é professora da Unifra, Santa Maria-RS e doutoranda do PPG em Filosofia da Unicamp. e-mail: <carlotam@terra.com.br>.

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COMUNICAÇÃO

DIGITALIZAÇÃO E ESFERA PÚBLICA NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO Valério Cruz Brittos* César Ricardo Siqueira Bolaño**

Resumo: O estudo debate as possibilidades e contradições da esfera pública no capitalismo contemporâneo. Nesse quadro é enfocado o papel das tecnologias comunicacionais (em especial a internet e a televisão digital terrestre) como espaço público, trabalhandose suas contradições e apontando-se para as possibilidades de uma comunicação popular, no que se refere à mídia, mas numa relação que envolve também organização dos movimentos sociais em redes virtuais, educação e governo eletrônico. PALAVRAS-CHAVE: POLÍTICAS DE COMUNICAÇÃO; CAPITALISMO Abstract: In this article, we focus on the role of communication technologies in the public domain - especially the internet and terrestrial digital television. Some contradictions are examined, and we indicate some possibilities of popular media communication, including the organization of social movements in a virtual network, education and the electronic government. KEYWORDS: COMMUNICATION POLICIES; CAPITALISM

Introdução Desde as décadas finais do século XX o mundo vem passando por grandes mudanças, ligadas à reordenação capitalista, as quais, por sua vez, também provocam movimentos dos agentes não-hegemônicos. Tais transformações referem-se ao conjunto da sociedade global, não se limitando às esferas econômica e política. É diretamente afetada a esfera pública, muito devido aos deslocamentos dos meios de comunicação (novos e antigos) sobre os quais ela se estrutura. Diante disso, pensar em espaço público contemporâneo requer um estudo rigoroso do papel das tecnologias da informação e da comunicação, abordagem que aqui se centra na televisão digital terrestre e na internet. Tais dispositivos tecnológicos inserem-se na sociedade de modo determinado historicamente, incorporando, assim, as contradições características de toda a esfera pública burguesa. É nesse processo contraditório que se situam as alternativas democráticas de uma comunicação popular, numa relação que envolve particularmente a mídia, mas requer a participação ativa dos movimentos sociais.

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Nesta nova esfera pública que emerge na confluência de reorganização do capitalismo, aceleração da inovação tecnológica e domínio neoliberal, novos lugares são perifericamente articulados, envolvendo a organização midiática de temáticas indispensáveis ao pleno exercício da cidadania, como aperfeiçoamento dos modelos de educação formal e informal, desencadeamento de sistemas de governo eletrônico, diversidade cultural, pluralidade no tratamento da informação, disponibilização de conteúdos locais, resgate de tópicos histórico-culturais, divulgação de idéias não-hegemônicas e articulação dos movimentos sociais em redes virtuais. Estes elementos de ordem diversa da lógica capitalista, que apontam para a possibilidade de práticas de comunicação mais democráticas, são limitados pela força e controle dos capitais, em especial no campo das comunicações, onde a mídia em geral – afetada profundamente em seu trabalho e em seus negócios pela introdução do paradigma da digitalização – exerce um importante papel, organizado sob os princípios da exclusão. “Na nova esfera pública globalizada, a tecnologia e os novos meios geram impactos, tanto econômicos, quanto políticos e nas formas de sociabilidade, atingindo o espaço público”.1 É na disputa para vencer os limites do crescimento dos lugares para inversão dos capitais – e, por conseqüência, da cultura ligada aos ditames do consumo, ainda que envolvida pela segmentação –, oponentes à concretização de uma comunicação popular libertadora, que se articulam comunicação, democracia e cidadania, testando e construindo potencialidades. Assim, a conexão esfera pública, digitalização e capitalismo, eixos deste artigo, serão discutidos ante os indispensáveis instrumentos da crítica fornecidos pela Economia Política da Comunicação, paradigma teórico fundamental, ainda que não exclusivo, para se entender os fluxos que hodiernamente afetam o campo da comunicação. Se hoje a técnica formatada precipuamente para a circulação de informações envolvendo os interesses dos capitais também é o canal principal de interação social, é por meio dela que as experiências alternativas também devem ser disseminadas, fortalecidas, apropriadas e retrabalhadas.

1 BOLAÑO, César Ricardo Siqueira; BRITTOS, Valério Cruz. Capitalismo, esfera pública global e o debate em torno da televisão digital terrestre no Brasil. Contracampo-revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Niterói, n. 9, p. 47-67, 2. sem. 2003. p. 48.

Tecnologia e sociedade O avanço tecnológico está na base da reestruturação econômica demarcada pela interdependência de mercados, permitindo deslocamento instantâneo de enormes montas de recursos financeiros, bem como informações indispensáveis à realização dos negócios. Num círculo constante, também viabiliza o consumo de produtos fornecidos por companhias distantes geograficamente, o que robustece organizações já poderosas. Ao longo do século XX, tecnologias como o cinema, o rádio e a televisão – e a fotografia, desde o século XIX, como ícone impulsionador da venda de jornais – incrementaram o consumo, mas tal papel é muito melhor desempenhado pela internet e sistemas audiovisuais que incorporam aparatos capazes de captar imagens e áudio remotos, através de satélites, cabos e ligações de fibra ótica. Fica claro que os recursos da técnica têm aproximado compradores 298

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2 CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996. p. 35.

3 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p. 169.

e vendedores ou investidores e instituições financeiras, reduzindo distâncias, por imposição de necessidades internas ao processo de acumulação do capital em suas diferentes fases de desenvolvimento. A questão tecnológica, no entanto, não é a fundamental. Importa é que, a partir dos dispositivos técnicos, constitui-se alguma condição de base para o surgimento ou a reestruturação da esfera pública que garante a legitimidade do sistema de dominação. O que ocorre, com internet e a interatividade permitida pela TV por assinatura, é a ampliação dos lugares mercadológicos, justamente num momento de expansão do caráter excludente do capitalismo. Chesneaux lembra que a resultante da combinação “das novas tecnologias e das modificações impostas à classe operária, no tocante à intensidade do trabalho e à precariedade do emprego” permitiu “aos grupos americanos e europeus a possibilidade de constituir, com a ajuda de seus Estados, zonas de baixos salários e de reduzida proteção social”.2 A técnica pode ser refuncionalizada, como em algumas experiência alternativas, mas, então, para seu uso como instrumento do espaço público, requer intervenção estatal; não pode ficar a mercê de voluntarismos. Economia e política se articulam, assim, através das redes de comunicação. Isso evidencia a contradição inerente àquilo que Habermas chama de esfera pública burguesa, uma organização político-sócio-econômica sem precedentes, forjada com a derrocada do poder feudal e o desenvolvimento do capitalismo mercantil do século XVI. Sua constituição representa, para o autor, um efetivo avanço democrático, ao reduzir o poder do Estado sobre a sociedade: A esfera pública burguesa desenvolveu-se no campo de tensões entre Estado e sociedade, mas de tal modo que ela mesma se torna parte do setor privado. A separação radical entre ambas as esferas, na qual se fundamenta a esfera pública burguesa, significa inicialmente apenas o deslocamento dos momentos de produção social e de poder político conjugados na tipologia das formas de dominação da Idade Média avançada. Com expansão das relações econômicas de mercado surge a esfera do “social” que impede as limitações da dominação feudal e torna necessárias formas de autoridade administrativa.3

Trata-se o marco tecnológico contemporâneo de um enorme potencial que não pode ser desprezado pelos setores populares. Este embate midiático-virtual não anula as distâncias, embora as reduza em larga escala, o que remete à necessidade do empreendimento de ações em direção à utilização e recriação da mídia, ao lado de proposições e confrontos nas diversas arenas sociais. Não se trata de uma valorização excessiva dos palcos comunicacionais, mas de um reconhecimento de que as instituições legais ligadas à esfera pública, centradas nos parlamentos, há muito tempo não protegem os cidadãos contra o Estado. Subjaz uma necessidade de retorno à distinção entre público e privado, princípio com longa tradição no pensamento político e social ocidental, desde os debates filosóficos da Grécia clássica sobre a vida da polis e suas reuniões para projetar uma ordem social sustentada no bem comum. Espaços como o Fórum Social Mundial denotam a possibilidade de separação entre Estados e sociedade civil, com o desatrelamento desta da racionalidade econômica. A esfera pública habermasiana nunca incorporou toda a sociedade, na medida em que refletia as desigualdades do sistema em que estava inserida. Por isso, o que a descaracterizou não foi seu caráter parcial – na verdade, o processo de massificação simbolizou novas dificuldades para sua manutenção, por trazer de-

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mandas de outras ordens, atores com formações diversas e dificuldades de debate racional com públicos tão amplos –, mas seu domínio pelo privado, identificável imediatamente nas indústrias culturais, não só detidas empresarialmente, mas representantes dos interesses dos capitais. Conforme Habermas, há uma formalização da discussão, tornando-se “o consenso na questão” “gradativamente supérfluo devido ao consenso no procedimento. Colocação de questões são definidas como questões de etiqueta”, enquanto os conflitos que resultam “em polêmica pública são desviados para o nível de atritos pessoais”.4 Isso degrada a proposta original do lugar de conversação racional, voltado para a formação de uma opinião pública livre, em contraposição assumindo um espaço público parcial, presente nas bordas da forma publicidade dominante. Se a parcialidade da esfera pública é inerente à própria condição do capitalismo, num primeiro momento não há porque imaginar que a simples inovação tecnológica vá representar sua ampliação. Torna-se essencial ressaltar que essa lógica contraditória, inerente ao capitalismo e à esfera pública burguesa, se manifesta também na estrutura dos meios de comunicação, replicando a contraditoriedade intrínseca ao desenvolvimento tecnológico, nesse modo de produção, entre forças produtivas e relações de produção. No seu clássico texto Teorias de la Radio, Brecht apresenta a questão com toda clareza, ao demonstrar que o rádio poderia se transformar num meio de comunicação “fabuloso”: O rádio seria o mais fabuloso aparato de comunicação imaginável da vida pública, um sistema de canalização fantástico, ou seja, o seria se não somente transmitisse, mas também recebesse, portanto, não permitisse somente ouvir a radioescuta, senão também fazer falar, e não isolar, mas por-se em comunicação com ele. A radiodifusão deveria, em conseqüência, afastar-se de quem a abastece e constituir os ouvintes como abastecedores. [...] Mas é parte destas obrigações da autoridade suprema informar regularmente a nação, mediante o radio, acerca de sua atividade e da legitimidade de sua atuação. A tarefa da radiodifusão, como todo, não se esgota em transmitir estas informações. Além disto, tem que organizar a maneira de pedir informações, converter os informes dos governantes em respostas às perguntas dos governados. A radiodifusão tem que fazer possível o intercâmbio. Só ela pode organizar grandemente as conversas entre os ramos do comércio e os consumidores sobre a normalização dos artigos de consumo, os debates sobre aumento do preço do pão, das disputas das cidades. Se consideram isto utópico, lhes rogo reflexão sobre ele porque é utópico.5

Ou seja, para que a TV digital, a internet, a televisão aberta, o rádio, o cinema ou o jornal possam cumprir um papel de espaço público inclusivo têm que inverter a lógica, que não é determinada tecnologicamente, mas construída na relação empresários-Estado-usuários. Conceber outra televisão (ou uma internet que remonte às utopias projetadas há 10 anos) envolve deixar de encarar os meios como ativos imateriais (e materiais) e vê-los como parte bastante significativa do que pode vir a ser um espaço público democrático. Não são as indústrias culturais simples mediadoras complementares de um debate travado externamente, são o palco onde a realidade social é construída e apresentada. São também os pauteiros da sociedade, que tenta adaptar-se a seus ditames 300

4 HABERMAS, Jürgen, op. cit., p. 194.

5 BRECHT, Berttold. Teorias de la radio. Eptic On Line-Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación. Aracaju, vol. 5, n. 2, maio-ago. 2003. Disponível em: <www.eptic.com.br>. Acesso em: 22 mar. 2003.

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(controlados por capitais privados essencialmente) para que possa publicizar seus propósitos, e o único caminho para a maior parte dos cidadãos orientar-se e informar-se sobre o mundo. Fora da mídia, proliferam micro lugares de disputa pelo sentido de grupos de interesse, que não podem ser confundidos com espaço público, função não verdadeiramente desempenhada pela comunicação industrial.

Global e restrita

6 Ver BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. La génesis de la esfera publica global. Nueva Sociedad, Caracas, n. 147, p. 88-95, jan./fev. 1997. Artigo incorporado em sua totalidade a BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. O império contra-ataca. Disponível em: <www.eptic. com.br>. Acesso em: 21 mar. 2003.

7 Sobre o tema, vide BOLAÑO, César Ricardo Siqueira et allii. Economia Política da Internet. Aracaju: UFS, 2003. Mimeografado.

Com o desenvolvimento das tecnologias midiáticas viabilizadoras da interconexão mundial de amplos segmentos, retoma-se a idéia de constituição de uma “esfera pública global”, próxima da concepção original de Habermas no livro citado, mas mais diretamente vinculada a Marx e à discussão sobre a atual reestruturação capitalista.6 A idéia de uma contradição inerente à esfera pública no capitalismo é central nesta concepção, o que permite explicitar, a um tempo, a sua evolução no sentido do refinamento dos instrumentos de dominação e as possibilidades liberadoras que lhe são inerentes. Dito de outra forma, o espaço público, enquanto dinâmica incorporadora, à disposição de todos e voltada para a participação multicultural, segue como uma meta a ser alcançada. Isto porque a lógica subjacente ao desenvolvimento da internet é a mesma daquela relativa à implantação da televisão segmentada, por oposição à TV de massa: a da exclusão pelos preços, do ponto de vista da economia, que se traduz, no campo da política, na privatização da esfera pública. Assim, a esfera pública viabilizada com a tecnologia contemporânea, de forma semelhante ao que ocorria com a esfera pública burguesa clássica do século XIX, segue restrita a setores cultos e relativamente ricos, permanecendo, para a imensa maioria da população mundial, totalmente válido o paradigma da cultura de massas e da manipulação que Habermas critica no livro anteriormente citado. Não obstante, são inegáveis as possibilidades de efetivos avanços democráticos que o novo meio oferece decorrentes da interatividade e do trabalho em rede.7 A implantação da Televisão Digital Terrestre (TDT) pode ser vista nesse mesmo sentido. Na verdade, como se trata não de um novo meio, ou de um meio híbrido, como a internet, mas de uma nova plataforma de serviços, para a qual podem migrar tanto a TV de massa atual, como a televisão segmentada e a própria internet, além de outros serviços de telecomunicações, o debate em torno da implantação da TDT pode ser entendido como uma oportunidade fundamental para a democratização dos meios de comunicação e a inclusão digital. Nesse sentido, antes de discutir o “modelo de negócio” mais adequado ao meio, como vem sendo feito, é preciso decidir o “modelo de esfera pública” a implantar. Isso, no entanto, passa por uma reorientação do modo de pensar a comunicação, projetada como negócio, atualmente reatualizada como fonte de rentabilização, ante os muitos discursos pós-modernos que não só desresponsabilizam a mídia como chegam a celebrar seus conteúdos, ante a eleição da produção de sentido como fator único a ser contabilizado no jogo comunicacional. São mu-

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danças que se conectam com “a égide do princípio do mercado, que se afigura mais hegemônico que nunca no seio do pilar da regulação, dado que produz um excesso de sentido que invade o princípio do Estado e o princípio da comunidade, tendendo a dominá-los de forma muito mais profunda do que” anteriormente, como raciocina Boaventura de Sousa Santos,8 que se perfila entre os identificadores da pós-modernidade, mas numa classificação própria, a qual permite seu auto-enquadramento como do grupo de esquerda, no âmbito daquela corrente de pensamento. Isto demonstra a inviabilidade de uma esfera pública popular e dialógica ser construída longe do processo de discussão acerca das macromudanças econômico-sociais, forjando-se ações sociais, posturas estatais e reações conservadoras. O que se identifica, desta forma, é que, para a concretização das funções de uma esfera pública ampla na contemporaneidade, é requerida uma ação estatal, invertendo-se o processo original, onde o Estado era um ente que deveria ser distanciado daquele fórum democrático. Isto subentende identificar que, mesmo no plano ideal, o espaço público hoje, conforme abordado pelas Ciências Sociais críticas, é um locus (a ser construído) que vai além de seu protótipo do século XVIII, na medida em que deve incorporar todos os cidadãos, não só os proprietários, o que implica na superação da idéia original de lugar burguês. Por isso, não é o Estado o único antagonista das disputas da sociedade civil, que busca um espaço público para apresentar suas demandas, gerar debate e obter posicionamentos. No limite, as ações que transitam neste lugar e são oriundas dos movimentos sociais agora propõem é a subversão do liberalismo (em sua versão neoliberal) ou seja, apresentam-se publicamente para propor um Estado mais forte e um mercado mais controlado ou que tenda à extinção (no caso de agentes ligados ao marxismo e anarquismo). Isto não só não impede como reforça a consubstanciação da separação entre Estado, capitais e sociedade civil, principalmente entre os dois primeiros.

8 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000. v. 1: Para um novo censo comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. p. 143.

Considerações finais Para que o mercado seja submetido às lógicas sociais, é indispensável o poder de regulamentação estatal. Mas isso não subjaz um entendimento de que o Estado seja um agente neutro. Não se desconhece sua origem de classe e sua condição de instrumento dos setores dominantes. No caso específico, Eli Diniz, estudando a relação Estado e empresários no período inicial de industrialização nacional, observa que alargamento da esfera de ação estatal e consolidação do setor privado da economia não foram percebidos como objetivos contraditórios, senão que solidários, na construção da sociedade industrial brasileira, convergindo teóricos autoritários e lideranças empresariais.9 Mas esse mesmo Estado que é interventor ou absenteísta, conforme os interesses dos capitais, a partir da pressão social pode desviar-se e contribuir com medidas que, se continuadas, a longo prazo podem viabilizar um quadro mais próximo do espaço público. Para isso, os movimentos sociais devem identificar espaços de influência usando o arremedo de espaço público existente, valendo-se de políticos eleitos com compromissos populares e pressionando aqueles que, profissionais, em último caso preferem entrar em choque com grupos econômicos a desgastarem-se junto aos eleitores.

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9 DINIZ, Eli. Empresário, Estado e capitalismo no Brasil: 1930/1945. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 290-291.

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10 BRITTOS, Valério Cruz. Recepção e TV a cabo: a força da cultura local. 2. ed. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2001. p. 198.

A própria idéia de uma sociedade civil mundial pode ser questionada, na medida em que corresponde a parcelas ínfimas de cidadãos de alguns países. Seu caráter global fica comprometido, se muitos governos ainda combatem qualquer arremedo de sociedade civil no âmbito dos países que controlam. Admitindo-se a existência de uma sociedade civil mundial, deve-se aceitar que se trata de um fenômeno ainda mais excludente do que suas manifestações no plano nacional. Isso porque, ao elitismo quantitativo e qualitativo de seus participantes (poucos, com educação formal elevada), características de sua versão tradicional, soma-se a restrição quanto à origem dos países dos participantes. Feita esta ressalva, deve-se acrescentar que a participação de organizações não-governamentais (ONGs) em fóruns multilaterais é uma demonstração de um nível de articulação de setores da cidadania no nível mundial. Trata-se de uma presença que ganha expressão e muitas vezes lugar na mídia e corre o risco de voltar-se para a micropolítica – lutando só pela defesa ambiental, por exemplo – o que remete à idéia de que os espaços públicos existentes não conseguem ser aglutinadores. Sendo assim, um esfera pública democrática e popular ainda não pode ser plenamente constituída, nem pode estar na dependência unicamente de processos de digitalização, seja a digitalização de hoje ou outro avanço de amanhã. Mas isto não se deve a caracteres específicos da dinâmica de globalização. A “participação de agentes oriundos de localidades subalternas” está posta, mas sobrepõe-se as diferenças “entre nações dominantes e dominadas”,10 ou ricos e pobres. É que o problema da exclusão não se circunscreve a fenômenos específicos, como a globalização (na verdade, uma tendência que vem desde o pré-capitalismo), mas está no bojo do capitalismo, sendo o caso de contornar-se seus limites para que a mídia fuja da produção de mercadorias e aproxime-se do ideal de arena pública de publicização e troca de idéias conseqüentes. No entanto, esse contorno só poderá alcançar objetivos sólidos e efetivos se inserir-se num amplo movimento, que vá além da mídia e, superando a contradição entre o mercado e o público, construa novas formas de organização das entidades produtoras, programadoras e distribuidoras de fluxos comunicacionais.

BIBLIOGRAFIA BOLAÑO, César Ricardo Siqueira. La génesis de la esfera publica global. Nueva Sociedad, Caracas, n. 147, p. 88-95, jan./fev. 1997. _____. O império contra-ataca. Disponível em: <www.eptic.com.br>. Acesso em: 21 mar. 2003. _____ et allii. Economia Política da Internet. Aracaju: UFS, 2003. Mimeografado. _____; BRITTOS, Valério Cruz. Capitalismo, esfera pública global e o debate em torno da televisão digital terrestre no Brasil. Contracampo-revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Niterói, n. 9, p. 47-67, 2. sem. 2003. BRECHT, Berttold. Teorias de la radio. Eptic On Line-Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación, Aracaju, vol. 5, n. 2, maio-ago. 2003. Disponível em: <www.eptic.com.br>. Acesso em: 22 mar. 2003. BRITTOS, Valério Cruz. Recepção e TV a cabo: a força da cultura local. 2. ed. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2001. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo, Xamã, 1996. DINIZ, Eli. Empresário, Estado e capitalismo no Brasil: 1930/1945. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1978.

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HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 1984. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento, 2000. v. 1: Para um novo censo comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática.

*Valério Cruz Brittos é professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação (FACOM) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). e-mail: <val.bri@ terra.com.br>. **César Ricardo Siqueira Bolaño é professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde coordena o Observatório de Comunicação (Obscom), e doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). e-mail: <bolano@ufs.br>.

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MODERNISMO BRASILEIRO

A POIESIS PICTÓRICA DE PAU-BRASIL: TRADIÇÃO, RUPTURA E IDENTIDADE EM OSWALD DE ANDRADE E TARSILA DO AMARAL Juliana Santini*

RESUMO: Partindo da contradição peculiar que fundamenta o movimento modernista brasileiro, calcado na tentativa de renovação estética, porém em busca dos contornos de uma tradição genuinamente nacional, este trabalho analisa a dimensão assumida pelas idéias de ruptura e tradição na constituição da fase heróica do Modernismo, de modo que o livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, será tomado à luz do diálogo que estabelece com a pintura de Tarsila do Amaral produzida na fase de sua obra que recebe o mesmo título. PALAVRAS-CHAVE: MODERNISMO BRASILEIRO; POESIA; PINTURA ABSTRACT: Considering a peculiar contradiction that grounds Brazilian modernist movement, based on a trial of aesthetics renovation but in search for a national tradition, this work analyses the dimension assumed by the ideas of tradition and rupture in the formation of the heroic phase of Modernism, in a way by which the book Pau-Brasil, by Oswald de Andrade, will be approached by the dialog that establishes with some pictures of Tarsila do Amaral, produced in a phase whit the same title. KEYWORDS: BRAZILIAN MODERNISM; POETRY; PAINTING

Considerar o trabalho do grupo que ficou conhecido como heróico no modernismo brasileiro a partir da instituição de uma polaridade, por meio da qual se colocam em posições diametralmente opostas as idéias de tradição e de ruptura, é o exercício que fundamenta e orienta parte da crítica que se debruça sobre essa produção: de um lado, colocam-se aqueles estudos que tomam como sustentáculo das propostas defendidas pelo grupo de 22 o intento de estilhaçar tudo o que se produziu até então para que se pudesse instituir o novo – e mais do que isso, o inovador –, o inédito, o contemporâneo; de outro, posicionam-se aqueles que vêem na valorização do dado tradicional – seja na figura do índio, seja na reiterada manifestação do primitivismo – o principal apoio daqueles artistas. Malgrado a aparente pertinência de tal postura, orientada, principalmente, pela oposição semântica que se coloca entre os vocábulos “tradição” e “ruptura”, é necessário observar que a primeira geração modernista não apenas dissolve essa polaridade no interior de suas propostas, mas também faz dessa dissolução um dos pilares de sua obra. Necessidade que se mostra mais evidente quando se toma em consideração a postura de críticos como João Luiz Lafetá (2000), que REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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coloca em primeiro plano a idéia de ruptura como forma de sustentação da confluência entre o que ele chama de projeto estético e projeto ideológico do modernismo de 22, ou mesmo Silviano Santiago (2002) que, na outra extremidade, atenta para o fato de ser necessário desconsiderar toda a inclinação paródica da obra de Oswald de Andrade para que o discurso ativador da tradição seja valorizado e analisado em suas especificidades. Tomar como ponto chave de análise da primeira geração modernista a tensão internamente instituída pelo paradoxo tradição/ruptura não implica desconsiderar a força do projeto de renovação das letras e das artes no Brasil das primeiras décadas do século XX, nem mesmo cometer a ingenuidade de fechar os olhos para a diferença qualitativa que se coloca entre a maneira como os grupos liderados por Oswald de Andrade, de um lado, e Plínio Salgado, de outro, tomaram a idéia de tradição. Trata-se, na verdade, de ter em mãos uma das especificidades do modernismo brasileiro que, a despeito de se apropriar e de se deixar influenciar pelas propostas futuristas de inovação e adequação aos novos tempos, mostrou-se avesso ao potencial destrutivo de quem pregava a queima de museus e bibliotecas e, no nível simbólico, de tudo o que fosse capaz de representar a conservação do passado. É, portanto, a relativização dessa noção – proposta pelo próprio Silviano Santiago (2002) - que irá nortear este trabalho, cujo principal intento é desenhar um percurso por parte da obra de poética de Oswald de Andrade, considerando a maneira como o principal livro de poemas de Oswald, Pau-Brasil, entretece-se com a obra de Tarsila do Amaral que, por um significativo período, manteve-se em sintonia com o trabalho do autor. No diálogo entretecido entre ambos, serão consideradas a relação entre tradição e ruptura e, principalmente, a idéia de revisão do passado como sustentáculo de uma visão utópica do futuro – ambas modulares no projeto estético e ideológico do autor –, de modo que, da articulação entre o literário e o pictórico surja o panorama de um projeto que se mostra em toda a sua coesão e profundidade: nas raízes estéticas que encontraram espaço em Pau-Brasil, literatura e pintura encontram, na confluência de traços, o mesmo espírito de um tempo em que o olhar da modernidade tingiu-se com as cores do primitivo, do arcaico, do nacional.

A invenção do passado ou a descoberta do futuro – a poiesis de Pau-Brasil A publicação, em 1925, do livro Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, representa a continuidade ou, mais do que isso, a realização palpável do conteúdo programático que fundou o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Se, no texto de 1924, o substantivo composto “pau-brasil” fora adjetivado e emprestava toda a sua amplitude de significados à poesia – e, de maneira mais ampla, à estética – que se desenhava no manifesto, aqui, recebe de volta a classificação morfológica original e colocase como um rótulo sobre o livro, como se dissesse ao leitor: “isto é pau-brasil”. E sendo metáfora da imagem primeva do Brasil, o primeiro produto de exportação das terras encontradas além mar, a poesia contida no livro transfigura-se, como se propunha no manifesto, no produto interno mais primitivo e representativo 306

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do conteúdo fundamentador da nacionalidade, seja em termos estéticos, seja na releitura do passado nacional. Reinterpretação que já se mostra com toda a sua força na dedicatória do livro: “A Blaise Cendrars por ocasião da descoberta do Brasil”. No momento da publicação do texto, esta expressão carregava-se de diversos significados e poderia se referir tanto à viagem realizada pelos modernistas ao interior de Minas Gerais, ocasião em que se permitiu aos brasileiros e ao viajante Blaise Cendrars um novo conhecimento sobre o país, quanto à permanência de Oswald na França, junto ao mesmo Cendrars, que teria despertado no autor de Memórias sentimentais de João Miramar o interesse em “ver com olhos livres” uma realidade já vestida com uma interpretação determinada por diferentes orientações ideológicas, de modo a incutir-lhe um novo sentido. E é justamente sob esse novo olhar que se coloca mais um significado para a referida dedicatória, este sim mais amplo e intimamente ligado ao projeto “paubrasil”: a “descoberta do Brasil” a que se refere Oswald projeta-se, assim, para o conteúdo histórico que ordena as nove seções do livro. Trata-se, de fato, de um percurso histórico-geográfico que contempla, sob o prisma da paródia, desde os cronistas que escreveram sobre o Brasil nos séculos XVI e XVII, até os movimentos agitados da cidade de São Paulo no princípio do século XX. Sob esse aspecto, a incursão pelo passado nacional acaba por se mostrar multifacetada na medida em que se articula não apenas com a visão do presente em relação ao que se fora, mas também com a construção desse passado a partir de uma estética fundamentada em novos traços. Nesse ponto, tradição e ruptura aproximam-se pela primeira vez na síntese dos elementos aparentemente díspares que compõem o livro de 1925: entre a realização de recursos poéticos estritamente ligados ao movimento vanguardista de renovação das artes e uma temática que contempla o antigo sem deixar de explicitar o anseio pelo novo, a poesia de Oswald coloca-se como o vértice de um emaranhado temporal em que sincronia e diacronia se entretecem na composição de um novo momento: O poeta de fato continua seu excursus espaço-temporal pela realidade do seu país em nível diacrônico, isto é, trabalhando com textos que nos remetem a diferentes segmentos históricoculturais, e em nível sincrônico, privilegiando situações, fatos, personagens que se referem ao seu próprio contexto (OLIVEIRA, 2002, p.136-7).

A primeira seção das nove que estruturam o Pau-Brasil de Oswald intitulase, não por acaso, “História do Brasil”. Em diálogo com a dedicatória da obra, a proposta de narrar o percurso histórico do país mostra-se como uma forma de re-descoberta, irônica e paródica na medida em que instaura um novo ponto de vista, capaz de promover uma importante inversão de perspectivas: por meio da subversão inerente à paródia, a poesia pau-brasil colocaria o colonizado na posição de colonizador, de modo que aquele que fora descoberto, agora, desvende e traga à tona o que o processo de colonização, ao contrário, fez questão de esconder. Nesse jogo de revelação e ocultamento, os oito cronistas parodiados por Oswald aparecem retratados em seus textos mais característicos, entretecendo-se uma teia em que o fio principal conduz a uma sucessão cronológica que se inicia na descoberta do Brasil, em 1500, e se estende até os liames do processo de independência, três séculos mais tarde. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Encerrada esta primeira parte, inicia-se a série de quinze poemas reunidos sob a inscrição “Poemas da colonização”. Ao contrário do que se esperaria, a revisão histórica empreendida no trecho anterior não se esgota aqui, de modo que o que se transfigura, nesse ponto do livro, é a dimensão paródica outrora definidora da feição crítica dos poemas. Passando a segundo plano, a paródia dá lugar a procedimentos de composição que se baseiam na brevidade e, principalmente, na valorização da linguagem oral como recurso que coloca em cena tanto o falar não oficial, alheio à gramática – o que era uma conquista a ser consolidada pela geração de Oswald, responsável pela quebra da perfeição métrica parnasiana –, quanto a imagem do escravo oprimido pela violência dos colonos, traços quase sempre apagados pela máscara épica criada pela história tradicional. Nos poemas que se reúnem nesta parte de Pau-Brasil, a proposta de renovação da linguagem e da forma poética tradicional se articula, assim como no manifesto de 1924, com o intuito de valorizar a essência do elemento nacional. Buscar os traços de uma identidade que se reconhece como mistura e, mais do isso, aceita a combinação de elementos díspares na constituição de um todo que se reconhece uno na diversidade, significou, naquele contexto específico, o avanço em direção ao objetivo de definir o caráter nacional por meio de pesquisas étnicas alheias à visão redutora do naturalismo científico de então: “com os modernistas de 22, o conceito de mestiçagem cultural chegaria ao grau máximo de lucidez, transformando-se inclusive em bandeira de luta” (PAES, 1998, p. 64). Nesse ponto, mais uma vez os contornos da tradição se esboçam em meio à tentativa de ruptura estética, como se a nova forma se aliasse a uma visão do passado, em que o velho se transforma em instrumento e material para o novo. Deixando de lado as agitações da monarquia, a terceira parte de Pau-Brasil, intitulada “São Martinho”, faz uma incursão pela expansão da monocultura cafeeira no interior do país, principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento de São Paulo. A paisagem rural, interiorana, é agora cindida pelos moldes impressos pelo progresso, pelo surgimento dos centros urbanos, pelos caminhos trilhados ao longo das estradas de ferro que, a partir da metade do século XIX, tiveram suas construções incentivadas pelo governo por meio de concessões para que a produção fosse mais rapidamente escoada até os portos, transformando os esquadros paulistas ao longo das fazendas de café. Essa nova configuração espacial, impulsionada pelo deslocamento do pólo dinâmico do país para a região centro-sul, servirá de mola propulsora para a síntese de elementos díspares dentro da poesia oswaldiana. A captação de registros diversos – o aspecto rural e bucólico da paisagem, aliado aos novos movimentos e elementos inaugurados pelo progresso econômico – coloca lado a lado, nesse trecho do livro, o momento mais singelo do anoitecer no sertão e o movimento agitado da indústria que despontava. Essa diferença de tom que se desenha entre um e outro aspecto de uma mesma realidade pode ser notada nos dois poemas abaixo, colocados em seqüência para que se evidencie o que há de bucólico em um e, por contraste, de laudatório ao progresso em outro: “o violeiro” Vi a saída da lua Tive um gosto singulá Em frente da casa tua São vortas que o mundo dá (ANDRADE, 1966, p.92)

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“metalúrgica” 1.300o. à sombra dos telheiros retos 12.000 cavalos invisíveis pensando 40.000 toneladas de níquel amarelo Para sair do nível das águas esponjosas E uma estrada de ferro nascendo do solo Os fornos entroncados Dão o gusa e a escória A refinação planta barras E lá em baixo os operários Forjam as primeiras lascas de ferro (ANDRADE, 1966, p.94)

Na linguagem que se refaz alheia a si mesma, os dois poemas funcionam como síntese e alegoria de opostos que se congregam: enquanto, no primeiro, a marca dialetal da fala popular se manifesta tanto na alteração da pronúncia de “singular” no segundo verso, seja para forçar uma rima – o que parece bem lógico – ou para marcar de modo enfático o traço de abreviação da fala, quanto na deformação fonética do “l” que se pronuncia “r” na palavra “vortas”, esse sim traço característico do linguajar roceiro, o segundo poema se constrói a partir de um outro registro lingüístico, sem os arcaísmos daquele que o antecede, aliando-se à descrição dos movimentos que deram origem aos trilhos da estrada de ferro. Se as fazendas de café e o surgimento da ferrovia desenham a paisagem em transformação, que marca os poemas de “São Martinho”, é o percurso entre São Paulo e Rio de Janeiro que se mostra esboçado na quarta parte de Pau-Brasil, em que se reúnem 15 poemas sob o título “RP1”, abreviatura de Rápido Paulista 1, trem que promovia o traslado entre as duas cidades. Da cidade de Aparecida até a “capital da república”, Oswald de Andrade pincela um retrato em que diferentes tipos são colocados lado a lado na composição de um quadro em que é ressaltado não apenas o caos humano das cidades em expansão, mas também – e sobretudo – a diversidade cultural reunida sob um único céu acolhedor. Ainda sob os esquadros urbanos que começavam a despontar em “São Martinho” e “RP1”, “Postes da Light” é a realização mais bem acabada das contradições apontadas anteriormente. De fato, se os contrários, como se viu, mostravam-se em poemas distintos, por meio da diferença na linguagem utilizada pelo poeta como forma de síntese da realidade, nos vinte e dois poemas de “Postes da Light” a antítese entre rural e urbano se resolve no interior de cada poema, de modo que elementos desiguais combinam-se sob o mesmo recurso de justaposição, como em “atelier”: Caipirinha vestida por Poiret A preguiça paulista reside nos teus olhos Que não viram Paris nem Piccadilly Nem as exclamações dos homens Em Sevilha À tua passagem entre brincos Locomotivas e bichos nacionais Geometrizam as atmosferas nítidas Congonhas descora sob o pálio Das procissões de Minas

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A verdura no azul klaxon Cortada Sobre a poeira vermelha Arranha-céus Fordes Viadutos Um cheiro de café No silêncio emoldurado (ANDRADE, 1966, p.113)

Se a técnica de composição utilizada é essencialmente cubista, em que a justaposição de estilhaços da realidade compõe múltiplas perspectivas, a realidade que lhe serve de substrato tem as cores da realidade brasileira. A geometrização do espaço depende, como se nota no primeiro verso da segunda estrofe, da aproximação de dois elementos pertencentes a esferas díspares: de um lado, as “locomotivas” como representantes do desenvolvimento industrial de São Paulo, de outro, os “bichos nacionais” colocam-se como uma espécie de ícone de um momento em que os automóveis e bondes dividiam o espaço da capital paulista com chapéus de palha e animais de carga. A fragmentação metonímica da poesia oswaldiana resvala no cromatismo de uma composição em que os modos de percepção entrecruzam-se, assim como o substantivo “klaxon” que, além de atribuir sonoridade especial à estrofe, tornase adjetivo que qualifica uma cor que já recebera pinceladas dissonantes: verde e azul simultaneamente entrelaçados pelo barulho das buzinas e divididos – da mesma maneira que a estrofe o é pelo verbo “cortada” – pelas tonalidades vermelhas, como forma de contraste. Síntese que situa sua realização final na última estrofe, em que os três primeiros versos pontuam o movimento altissonante da metrópole e, ainda, encontram lugar no silêncio que fecha o poema, anunciado pelo prosaísmo do cheiro de café que invade toda a cena construída e emoldurada desde o primeiro verso. Na verdade, o caos organizado que constitui o poema enquadra-se tanto por este mesmo silêncio encerrado pelo adjetivo que “emoldura”, ou seja, coloca em um quadro a paisagem, quanto pelo título, anúncio de um espaço específico para a composição artística. Encerradas as páginas de “Postes da Light”, verdadeira crônica da cidade de São Paulo no princípio do século XX, inicia-se a penúltima parte de Pau-Brasil, uma incursão em vinte e oito poemas, reunidos sob o título “Roteiro das Minas”. É claro que esta seção do livro não deve ser lida sem que se considere a importância da viagem empreendida pelos modernistas paulistas, juntamente com Blaise Cendrars, ao interior do estado de Minas Gerais, de modo que, a partir desse ponto de vista, cada poema passa a se mostrar como uma espécie de micro-retrato de uma parcela da história do Brasil. Também importante para a compreensão desse microcosmo é o significado assumido por aquela viagem dentro do contexto da primeira geração modernista: no momento em que a proposta do modernismo era empreender o trabalho de redescoberta do Brasil, a “descoberta” de Minas articula-se com a proposta de revalorização e re-semantização da história nacional. Dentro de Pau-Brasil, a presença do universo escavado em Minas conecta-se à idéia que abre o livro, na já comentada dedicatória a Blaise Cendrars. Nesse sentido, o primeiro poema desta penúltima parte do livro, cuja sugestão do título “Convite” não pode ser 310

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ignorada, funciona mesmo como uma forma de chamamento para que o leitor tenha sua atenção despertada para a riqueza histórica e cultural até então perdida no interior do país: “convite” São João del Rei A fachada do Carmo A igreja branca de São Francisco Os morros O córrego do Lenheiro Ide a São João del Rei De trem Como os paulistas foram A pé de ferro (ANDRADE, 1966, p.120)

Tradição que se instaura no interior da ruptura: no tipo de relação que serve de mote a este texto, o “Roteiro das Minas” é a exegese do passado colocada como forma de renovação e re-interpretação do presente: O divórcio em que a maior parte dos nossos escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles procuravam (BROCA, apud SANTIAGO, 2002, p.121).

Substituindo o lirismo nostálgico desta penúltima parte, Pau-Brasil encerra-se com os oito poemas reunidos em “Lóide brasileiro”, nome do navio utilizado por Oswald de Andrade no retorno de uma de suas viagens à Europa. Aqui, toda a inclinação crítica e satírica do poeta se renova na oposição ao paradigma romântico de representação do país, o que se manifesta já em “Canto de regresso à pátria”, talvez uma das mais famosas paródias da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Como em uma crônica de viagem, os poemas desta seção mostram toda a aversão em relação ao nacionalismo artificial de idealizações passadas. E essa necessidade de trazer à tona a essência da identidade nacional mostra-se na diversidade geográfica reunida em “Lóide brasileiro”, de Fernando de Noronha, passando por Recife, Bahia e Minas Gerais até chegar a São Paulo, o poeta traceja uma espécie de convite à exploração dessa realidade, sintetizada na metrópole paulista “sometimes called the Chicago of South America” (ANDRADE, 1966, p.136). A poesia que tomou como justificativa para se construir a descoberta do Brasil – ou a tentativa de instituir um novo paradigma de representação histórica do país -, depois de revista a própria história, desenha, ainda, os contornos do nacionalismo oswaldiano (e, por extensão, de todo o grupo que se reuniu em torno de suas propostas): emerge, aqui, a descoberta do passado como forma de interpretação do presente e sustentáculo de um projeto utópico do futuro, semente lançada pelo manifesto e pela poesia pau-brasil, que teria sua realização mais madura sistematizada no Manifesto antropófago.

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O primitivismo na contemporânea expressão do mundo: Tarsila e a pintura dos fatos O primitivismo de pau-brasil não ficou circunscrito, como se sabe, apenas na poesia de Oswald de Andrade. Muito mais abrangente, estendeu-se ao intuito de buscar na imagem do elemento primitivo, aliado à idéia de aproveitar o que era importante das vanguardas de renovação, a saída para dessacralizar a figura romântica do índio e alçá-la à categoria de símbolo nacional. No interior do binômio floresta / escola, uma das propostas fundamentadoras do manifesto de 1924, a pintura de Tarsila do Amaral congrega a um projeto de renovação estética intimamente ligado às produções da vanguarda européia – especialmente às formas geometrizadas de Léger e as experimentações pós-cubistas do purismo – o mergulho na matéria nacional. Nesse sentido, a íntima relação que se estabelece entre Pau-Brasil e a fase da pintura de Tarsila que, não à toa, recebe o mesmo nome, manifesta-se tanto na temática nacional e na tentativa de adequar as formas de percepção estética aos novos movimentos da cidade efervescente, quanto na empreitada de promover a redescoberta da tradição artística brasileira. Mas a filiação entre uma e outra estética não se restringe ao tratamento do elemento tradicional, embora essa seja uma das faces principais de ambos. Na síntese de opostos, traço definidor da poesia de Oswald, o trabalho de Tarsila não deixa de mostrar a tendência à combinação de matérias desiguais em composições em que o hibridismo encontra equilíbrio na harmonia da paisagem paulista em quadros como E. F. C. B., a ser discutido mais adiante. Não se deve desprezar, ainda, o fato de as ilustrações do livro de poemas de Oswald serem de autoria da própria Tarsila, o que não deixa de revelar a sintonia da artista em relação às diretrizes estéticas que nortearam o trabalho do poeta na composição de sua poesia pau-brasil. E já que se falou em combinação de opostos, o quadro Estrada de Ferro Central do Brasil (Fig.1), de 1924, mostra-se como um representante da síntese promovida entre o arcaico e o moderno, assim como na paisagem cindida pelo trem que corta o horizonte, no poema “Noturno” (ANDRADE, 1966, p.90). Composto no mesmo ano da viagem a Minas e ao Rio de Janeiro, o quadro traceja a convivência harmônica entre o desenvolvimento urbano do princípio do século e a sobrevivência da tradição, que persiste seja na figura da igreja, colocada no canto superior direito da tela, seja nas casas tracejadas em estilo colonial, ou mesmo na construção de palmeiras e demais árvores, que brotam do mesmo solo em que se alojam a estrada de ferro e a própria estação ferroviária que dá título ao quadro. Nesse sentido, os signos da urbanização mesclam-se ao espaço da tradição e lhe conferem uma nova roupagem – como no poema “Atelier”, acima aludido: nos contornos geométricos e nas formas simples da estação, das locomotivas, dos postes de iluminação ou mesmo na cancela que controla o fluxo do trem pela ferrovia, os liames do progresso se entrecruzam à simplicidade da arquitetura e à cor ocre do solo que os reúne. A ausência de artificialismo dessa relação se mostra, sobretudo, na torre elétrica situada à esquerda da tela: um dos símbolos do desenvolvimento urbano e industrial abriga, em sua extremidade, a presença de um pássaro em repouso, constituindo a alegoria do nativismo em consonância com a modernidade, principalmente se for considerado o fato de que, do ponto 312

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Fig. 1 Tarsila do Amaral, Estrada de Ferro Central do Brasil (1924).

de vista lógico, seria mais plausível se a ave estivesse pousada sobre a copa de uma das árvores presentes na tela. A maneira como Tarsila traceja as figuras do quadro revela o parentesco de suas formas com a técnica de composição do mestre Léger: não apenas na geometrização do espaço, mas, sobretudo, na utilização de formas essenciais como círculos, retas e riscados, típicos da paisagem urbana nas telas do francês. Enquanto esses traços esboçam a ruptura, na pintura de Tarsila do Amaral, com a representação mimética da realidade e a filiação a técnicas pós-cubistas de composição, a opção por cores lisas e claras – recurso também alheio à tradição acadêmica e definidor das telas desta fase – demarca o nativismo e a tonalidade local no interior de procedimentos de estruturação estética incorporados de vanguardas européias. Nesse sentido, a pintora neutraliza o exercício de mera importação ao atribuirlhe uma feição notadamente nacional não apenas por meio da temática que lhe serve de sustentação, mas também pela utilização consciente do que se poderia chamar de “cor local” – o regional e puro de que fala Oswald de Andrade (1972) em seu manifesto:

No limite, Tarsila acabou por introduzir variantes, todas inspiradas na mesma matriz compositiva de Léger, no intuito de conferir tratamento privilegiado a certos elementos-chave de seu repertório de assuntos e símbolos ‘nacionais’, adiante reiterados como slogans pelos diluidores do modernismo (MICELI, 2003, p.138).

Modo de composição moderno que se entrelaça ao substrato da tradição nacional e a um olhar que enfoca o acontecimento cotidiano, transformando a simplicidade do momento banal em material artístico. Assim como a poesia de exportação oswaldiana abria seu conteúdo programático, em 1924, com a idéia de que o trabalho poético reside menos na transcendência da forma ou na inspiração de linhagem romântica do que na simplicidade dos fatos, a arte de Tarsila não se mostra refratária ao conteúdo prosaico da realidade, de modo a recriá-lo em cores tipicamente nacionais: “Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos” (ANDRADE, 1972, p.5). Se “O Carnaval do Rio é um acontecimento religioso da raça”, como Oswald de Andrade (1972) o descreveu em 1924, Tarsila não deixa de o transformar em signo pictórico, como em Carnaval em madureira, tela que se mostra, ainda, no diálogo com os dois poemas de “Carnaval”, inseridos em Pau-Brasil (Gotlib, 1998). Realidade plástica como a de Morro da favela (Fig.2), composição que data do mesmo ano de E. F. C. B., mas não apresenta os elementos tipicamente urbanos da primeira. Sob esse aspecto, a “poesia dos fatos” exibe-se, na tela da artista, por meio da profusão de cores tipicamente brasileiras, organizadas sob o “azul cabralino” do céu, recorrente nas representações desta fase.

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Cores que se encaixam sem produzir grandes contrastes ou jogos de sombra e, mais do que isso, organizam-se de modo em que a tonalidade do céu se integra ao colorido das casas, seja na pintura das fachadas ou na composição das portas e janelas. De fato, tem-se a impressão de que, mais do que a forma, as cores saltam aos olhos na composição da realidade, como observa Aracy A. Amaral: a cor não tem intencionalidade de conferir volume através do claro-escuro: este é antes uma possibilidade de obtenção de atmosfera, de destacar os elementos identificáveis da realidade, ou seja, um meio de transfiguração (1975, p.124).

Contraste mais marcante se mostra, entretanto, na proporcionalidade das formas impressas às figuras humanas que habitam a tela: enquanto a negra de braços robustos destoa da silhueta esguia do homem que se prostra a seu lado e, ainda, da maior regularidade da imagem feminina colocada ao fundo do quadro, disparidade maior se desenha na relação entre a forma das crianças e o cachorro presente no lado direito da paisagem. Na verdade, essa relação de desproporção mostra-se mais interessante quando tomada no diálogo que entretece com o poema “Viveiro”, de Oswald, em que a organização dos elementos não apenas remete à mesma paisagem, mas também ao mesmo processo de composição e, sobretudo, à mesma realidade prosaica e cotidiana que se transforma em dado estético: “viveiro” Bananeiras monumentais Mas no primeiro plano O cachorro é maior que a menina Cor de ouro fosco As casas do vale São habitadas pela passarada matinal Que grita de longe (ANDRADE, 1966, p.126)

Do verbal ao pictórico, uma única realidade estética se desenha na interseção entre a poesia de Oswald de Andrade e a pintura de Tarsila do Amaral. O manifesto oswaldiano de 1924 tracejou, na verdade, um programa artístico de renovação formal e valorização do elemento primitivo, tradicional e histórico que foi acolhido por Tarsila em toda a sua amplitude, principalmente no que diz respeito à tentativa de aliar a renovação dos meios artísticos à pesquisa do dado primitivo e à definição de um caráter nacional que refletisse a identidade do brasileiro. E como se falou da maneira como o trabalho de Oswald encara a questão da mestiçagem na edificação de uma raça singular porque heteróclita, é importante que não se desconsidere o traço que une a representação do negro em Pau-Brasil e a tela A negra (Fig.3), composta por Tarsila em 1923. Como já se discutiu anteriormente, os “Poemas da colonização” sintetizam a condição marginal do negro e, sobretudo, a violência cometida contra o escravo no período colonial. Nesse sentido, o retrato do negro desenhado por Oswald se Fig. 2 Tarsila do Amaral, Morro da favela, (1924). 314

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configuraria como uma espécie de símbolo da colonização – talvez um dos tabus a serem transformados em totens pela Antropofagia? - figura/síntese de uma das faces da tradição nacional a ser desmistificada pela visão primitivista da nova poesia, capaz de desnudar a orientação ideológica impressa pelo discurso histórico tradicional, cerne da “descoberta do Brasil” empreendida pelo autor com o livro de 1925. Em consonância com esse espírito, a tela de Tarsila enfoca a personagem negra feminina por meio de um processo de composição que antecipa o conteúdo programático do manifesto a ser publicado um ano mais tarde. No descolamento promovido entre a figura e o fundo, a artista separa o elemento nacional da sugestão cubista tecnicizante desenhada pelas faixas paralelas atrás do corpo deformado da negra para, depois, fundir um e outro a partir da colocação, em diagonal, da folha de bananeira geometrizada, que não apenas interrompe a continuidade das linhas do fundo como também lhes imprime um novo percurso, continuado na parte inferior da tela, à direita da figura central. A imagem do corpo deformado da negra de Tarsila – recurso que, cinco anos mais tarde, seria a base da composição das telas ligadas ao movimento antropofágico - congrega em si um conjunto de metáforas nativistas que estabelecem os elos entre todo o contexto moderno em que se insere o personagem e um passado primitivo a ser recuperado pela realização plástica: do seio em evidência como manifestação do acolhimento sugerido pela silhueta materna que amamenta e afaga, à deformação dos lábios que os atrela à visão sexual do mito fecundador, constrói-se, em A negra, não o símbolo da poesia oswaldiana, mas uma alegoria fundadora que acaba por segregar a figura pictórica da representação histórica a que se atrelam os poemas de Pau-Brasil. Na síntese entre o discurso da tradição e a manifestação da modernidade, Tarsila congrega as dualidades sustentadoras dos pólos cultura versus natureza, metrópole versus colônia (DANTAS, 1997, p.50) e as insere no mesmo diálogo de opostos que fundamenta a diluição da contradição ruptura versus tradição no interior do modernismo brasileiro, de modo a inculcar, no signo pictórico, a mesma poiesis capaz de fundir o “carnaval” tradicional à manifestação de “todo o presente”. Na confluência entre uma e outra realização, passado e presente se entrelaçam na mesma tentativa de acertar o passo com a modernidade sem perder de vista o passado fundamentador desse mesmo presente, de modo que os “olhos livres” da nova arte servissem como ponte para que a imagem da tradição – ou o discurso produtor desta imagem – se desvencilhasse de qualquer forma de atavismo. Se o percurso do primeiro grupo modernista foi suicida por destruir sua própria sustentação, ou se, no futuro, reconheceu-se ingênuo e entusiasta demais, não se pode negar a importância de sua contribuição para a reciclagem das artes no Brasil, realização que, no caso do grupo Pau-Brasil¸ deu-se por meio da interseção consciente de tempos e espaços, no limiar entre o novo e o velho, o despontar e a re-descoberta. Fig. 3 Tarsila do Amaral, A negra, (1923).

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BIBLIOGRAFIA AMARAL, A. A. Tarsila – sua obra e seu tempo. São Paulo: Perspectiva; Universidade de São Paulo, 1975. vol.1. ANDRADE, O. de. Manifesto da poesia pau-brasil. In: _____. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; INL/MEC, 1972. p.4-10. _____. Poesias reunidas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966. BELLUZZO, A. M. de M. Os surtos modernistas. In: _____. (Org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial; UNESP, 1990. p.13-29. BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 35.ed. São Paulo: Cultrix, 1997. DANTAS, V. Que negra é esta? In: Tarsila anos 20. Galeria de Arte do Sesi, 1997. catálogo. FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Franteira, 1986. GOTLIB, N. Tarsila do Amaral: a modernista. São Paulo: Editora SENAC SP, 1998. HELENA, L. Modernismo brasileiro e vanguarda. 3.ed. São Paulo: Ática, 2000. HUTCHEON, L. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000. LAFETÁ, J. L. 1930: a crítica e o modernismo. 2.ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. MICELI, S. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. OLIVEIRA, V. L. de. Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro. São Paulo: Editora UNESP: Blumenau: FURB, 2002. PAES, J. P. Cinco livros do modernismo brasileiro. In: _____. A aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. SANTIAGO, S. A permanência do discurso da tradição no modernismo. In: ____. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

*Juliana Santini é do Departamento de Letras da Unesp, Araraquara-SP.

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SOCIOLOGIA

A SOCIABILIDADE HÍBRIDA DOS MIGRANTES TEMPORÁRIOS DE GUARIBA Andréa Vettorassi*

Resumo: Este estudo pretende demonstrar que os migrantes nordestinos de Guariba - SP, cidade-dormitório de economia canavieira, exercem papéis sociais diferentes nas cidades que os recebem e em sua terra natal. Ao voltarem para as terras de origem, recebem uma diferenciação social a partir de seus novos e simbólicos bens materiais. Ainda no “mundo moderno” em que migraram, a relação é inversa. A partir de registros orais e visuais foram resgatadas as identidades e memórias destes dois mundos: um “moderno” e outro “tradicional”. PALAVRAS-CHAVE: MIGRAÇÃO SAZONAL; SOCIABILIDADE; HISTÓRIA ORAL Abstract: This research intends to demonstrate that the northeastern migrants of Guariba – SP (a small city which has it’s economy based on the sugar cane production), have different social identities in the cities that they work and in the ones where they live. When they return to their hometowns, they receive a different treatment because of their new symbolic wealth. Still in the “modern world” in which they migrated, the relation is the opposite. Using oral interviews and photographs, the identities and memories of these two worlds were rescued. KEYWORDS: SEASONAL MIGRATION; SOCIABILITY; ORAL HISTORY

Guariba: a cidade e a vila Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação (Debord).

Ser moderno ou parecer moderno é o que muitos de nós almejamos. O mundo moderno constantemente nos despeja mudanças, contradições e ambigüidades. Conscientemente ou não, aprendemos a incorporar este turbilhão de novas idéias, novos valores e representações que diariamente invadem nossas cidades, ruas e janelas. De acordo com Berman (1986), nossas identidades no mundo moderno são constituídas a partir da internacionalização da vida cotidiana, como também da fidelidade a determinados grupos. No entanto, nem sempre a vida moderna é cotidiana, e os grupos pelos quais nos identificamos são muitas vezes paradoxais. Qual o nosso papel no mundo moderno? Quem somos em sociedades mediadas por imagens, e não por essências (sociedades em que, segundo Adorno (1986), REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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a verdade é tantas vezes falsa!)? E, principalmente, o que é ser moderno em sociedades como a nossa, onde o mundo tradicional ainda é parte constituinte de nossas identidades? Onde o moderno e o global são importados e chegam de formas heterogêneas? O encontro entre culturas tradicionais e modernas é algo intrigante. As comunidades, pensamentos e valores que surgem a partir deste hibridismo são muitas vezes inesperados e surpreendentes. Este encontro é perceptível em Guariba, “cidade dormitório” a 30 Km de Ribeirão Preto, ilhada por um incontável número de plantações de cana-de-açúcar e que tem em torno de 31.085 habitantes.1 Assim como a maior parte das pequenas cidades do interior paulista, Guariba passou no final da década de 60 por uma modernização agrária, quando a civilização cafeeira existente na cidade perdeu espaço para a atual civilização da usina. Neste período, “houve uma reestruturação espacial tanto em relação ao campo como em relação às cidades. Reestruturação não entendida somente a partir do despovoamento do campo e povoamento das cidades, mas também nos aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais” (Moraes Silva, 1993: 31). É a partir dos anos 70 que Guariba recebe intenso número de migrantes para o trabalho no setor sucro-alcooleiro, advindos de Minas Gerais, Paraná e estados nordestinos. A chegada destes trabalhadores separou a cidade entre o centro, onde vivem as famílias mais antigas de Guariba, e a vila (bairro Alto), onde se concentram os “bóias-frias”. O bairro Alto, também conhecido como “João-de-Barro” – denominação que chama a atenção para a forma com que as casas foram construídas pelos próprios migrantes, com a “taipa” (lajotas de barro), e não com tijolos e cimento, que é a forma moderna e paulista de construção das casas –, juntamente com outros bairros como o Jd. Hortência, Jd São Bento e Vila Jordão, constituem uma precária periferia que, na forma de um “U”, abraça o centro guaribense, onde encontram-se a prefeitura, o Fórum e o comércio da cidade, assim como as casas de classe média. Por ser um espaço diferenciado de todos os outros, é que esta periferia pode ser considerada um campo autônomo, um espaço social marcado pelas relações sociais intra e intergrupos. Para os moradores mais antigos de Guariba, é o bairro em que vivem os “invasores”, a gente de maus costumes, violenta e responsável pela desordem existente na cidade, impressões que contribuem para que uma relação preconceituosa entre os “nativos” e os “de fora” torne-se constante entre os guaribenses e os migrantes. Pretendo aqui identificar características do moderno neste universo empírico mergulhado em um contexto que, ao meu ver, é absolutamente moderno: o da migração. Chamo a atenção para a fala destes migrantes que, em pleno século XXI, em uma cidade do interior paulista, continuam reproduzindo relações sociais já previstas por Marx e Simmel há pelo menos um século, e que ainda vêm sendo discutidas pelos autores contemporâneos Berman e Debord. Esta é a modernidade: contraditória, que muda para não ser necessário mudar; que nas suas transformações diárias, torna possíveis as relações sociais existentes há mais de um século.

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1 De acordo com o Censo IBGE (2000).

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Sobre a migração e o novo homem simples O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens (Debord, 1997:14).

2 Termo da Profa. Dra. Mª Ap. de Moraes Silva, em diversos artigos e palestras.

3 Entrevistas realizadas nos dias 15 de novembro e 9 de dezembro de 2004, no bairro Alto e Vila Jordão, com a presença de agentes da Pastoral dos Migrantes, que contribuem com a pesquisa.

Com o uso da metodologia da História Oral – mais especificamente entrevistas e registros visuais -, aplicada em homens e mulheres maranhenses moradores do bairro Alto e Vila Jordão, aspectos importantes puderam ser observados, em especial no que tange aos diferentes papéis sociais que estes trabalhadores exercem nas cidades que os recebem e em sua terra natal. O imigrante para a terra que o recebe é também emigrante para a terra natal que deixa, em uma relação dialética que é parte do cotidiano do migrante temporal, em seu constante “ir e vir”, em uma verdadeira “migração temporária permanente”.2 Qual seu papel social nestes dois mundos tão diferentes, mediados pelo tradicional e pelo moderno? Berman já citava o caráter moderno dos fluxos migratórios: “O capital se concentra cada vez mais nas mãos de poucos. Camponeses e artesãos independentes não podem competir com a produção de massa capitalista e são forçados a abandonar suas terras e fechar seus estabelecimentos” (1986: 104). Em Guariba, encontramos situações semelhantes. Quando questionados sobre o porquê de migrarem para o interior paulista, os trabalhadores maranhenses são idênticos em suas respostas: “Fogoso”, trabalhador maranhense, negro, 39 anos - Falta de emprego, né. Porque se a gente tivesse emprego, nós não estaria aqui. Cê tem o serviço mas não tem o dinheiro. É o que faz nóis vim pra cá, é isso aí.3

Fogoso, assim como outros 40.000 migrantes sazonais do interior paulista (Moraes Silva, 1999), trabalha durante nove meses nas lavouras de cana-de-açúcar. Depois, volta para sua casa, no interior do Maranhão, e ali permanece durante os outros três meses do ano (a entressafra da cana), onde cuida de sua família e de sua plantação de subsistência, em geral arroz, mandioca e milho. Embora lavrador nas duas cidades, Fogoso reconhece as diferenças do seu trabalho: qual a sua profissão atualmente? Fogoso - Rural, rural... Lá [em Morro Branco - MA, cidade de origem] é rural, agora aqui é quatro anos que corto cana direto, né? Vou pra casa mas todo ano volto direto. Nós têm tudo lá, inclusive criação, a gente cria, tem roça, que assim, nós vamo embora agora em novembro pra dezembro, nós vamo fazer outra lavoura lá, que é uma despesa, né? Aí tá no ponto, a gente deixa lá e nós vêm pra cá pra fazer outra. Nós faz duas safras no correr do ano. Aqui é a do dinheiro, e a de lá é a despesa da casa. Nos não para, continua, né?

Fogoso faz um discernimento entre o trabalho que exerce em sua cidade de origem e em Guariba, mesmo que os dois trabalhos sejam rurais. Em Morro Branco, não há monoculturas, e Fogoso trabalha apenas em terras que são suas. Mesmo sendo dois trabalhos rurais, um representa o modo de vida tradicional e camponês dos migrantes, quando ainda estão em suas terras de origem. O outro, nas imensas lavouras de cana-de-açúcar, é parte constituinte do mundo moderREVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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no, “paulista”, da mecanização do trabalho rural, como também do trabalho assalariado, e não apenas de subsistência. O trabalho contínuo durante a safra, exercido pelos migrantes sazonais, corresponde à ruptura com o tempo cíclico camponês existente em seus locais de origem. Em seu novo tempo cíclico, as estações do ano são a safra (maio a novembro) e a entressafra da cana. O tempo vira dinheiro, e é comprado e vendido (Costa, 1993). Ou seja, existe aí uma relação dialética não só entre os espaços (a terra de origem e a terra que os recebe), mas também entre o tempo e as identidades, ambos mediados pelas condições de um mundo que é tradicional (do camponês) e de outro que é moderno (do assalariado).

A sensibilidade moderna Assim como no trabalho, Fogoso e outros trabalhadores maranhenses de Guariba percebem seus diferentes papéis sociais nos locais de origem e nos locais que os acolhem. Ao voltar para as terras de origem, o migrante, quando bem sucedido nas lavouras de cana do interior paulista, recebe um novo status, uma diferenciação social e cultural. Destaca-se em seu mundo tradicional quando se apropria do moderno a partir de bens simbólicos e materiais:4 E quando vocês voltam, como é a chegada [em Morro Branco - MA], como as pessoas da cidade te vêem? Fogoso - A chegada pra nós é maravilhosa, porque nós vai chegando na nossa terra, é uma beleza... E quando dá pra juntar um dinheirinho aqui [em Guariba SP]... Fogoso - Então, é aí onde tá o mistério, nós vêm pra cá, a gente chega com um trocado, né? Dinheiro não, trocado. Aí o pessoal que já tem a vontade de vir, aí vê aquilo ali, é doido pra vir também. Termina vindo, né? [...] E por que o senhor acha que eles vêm, que vocês influenciaram os outros a vir? Fogoso - Ah, às vezes não é nem influenciar, é porque chega com um bom dinheiro, tem vontade de comprar uma coisa, a gente vai e compra, aí você sabe como é que é, né? [...] Eu venho também um pouco por causa disso, né? Aí eles acabam vindo. Então o senhor considera que quando tá no Maranhão é mais bem visto, você é mais importante lá? Fogoso - É, você chega daqui, o cara tem outro critério, né? “Olha, o cara chegou cheio do troco, né?” (risos).

4 Quando por exemplo voltam de boné, “ray-ban” e celular, bens materiais típicos do modo de vida paulista e, portanto, do “moderno”. Aqui existe uma dupla associação do tradicional e do moderno.

Ainda no “mundo moderno” em que migrou, a relação é inversa. Os aspectos de seu cotidiano não estão absolutamente desprendidos do modo de vida de sua terra natal (portanto, um modo de vida tradicional e camponês). A relação “vertical” (com os guaribenses) é portanto tensa, e é por isto que o migrante sazonal torna-se introspectivo, mantendo apenas no dia-a-dia relações “horizontais” (com o seu próximo e semelhante), seja a partir de laços de confiança e obriga320

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5 Como exemplo alguns processos criminais consultados no Fórum de Guariba, que exprimem esta diferenciação do migrante temporário nas relações de crime quando comparados, por exemplo, às mesmas relações dos réus não migrantes, ou até mesmo dos filhos de migrantes que vivem em Guariba há mais tempo ou toda a vida (mais envolvidos em crimes tipicamente urbanos, como o tráfico de drogas).

ções mútuas, seja nas brincadeiras ou, ainda, nas relações conflituosas, de violência,5 na disputa de território e espaço no trabalho, na verdadeira malha social construída e reproduzida nos corredores de cana: E como você é visto aqui em Guariba, você tem contato com os guaribenses, com as pessoas que moram aqui em Guariba? Você vai muito ao centro? Fogoso - É, acho que o contato aqui é pouco, porque a gente mesmo não sai, né? Chega do trabalho, às vezes já de noite, cansado, e vai se acomodar. A não ser fazer alguma comprinha no mercado [...] Às vezes nóis dorme dez horas, onze horas, depende de alguma coisa que tiver passando em alguma televisão aí... [...] Mas se é tão cansativo [cortar cana], por que você volta? Francisco, 19 anos, trabalhador maranhense, negro – Ah, porque “o cara” acha bom o dinheiro! [E relata sua vida em Morro Branco, que é bom voltar, porque tem seus amigos, já que lá pode “brincar”, que significa ir às festas, encontrar as meninas, às vezes arranjar uma namorada, etc]. Lá é mais fácil arranjar namoradas? Francisco – É. Tudo fica mais fácil lá. Chega lá com dinheiro, né? E aqui, também? Francisco – Aqui... Parece que as mulher de Guariba não quer maranhense!.. E pra um moço novo como você, tem coisa legal pra fazer aqui, ou não? Francisco – Aqui, não (silêncio). Aqui normalmente não tem nada, né? Só do serviço mesmo pra casa.

Neste contexto, o trabalhador migra pelo fetiche e status que a mercadoria e o papel moeda oferecem. No entanto, não se sente parte integrante do “mundo moderno”, sendo tomado pelo estranhamento e saudade de sua terra natal. Assim, de acordo com Berman (1986), o migrante vai se integrando à sociedade moderna: ser moderno é viver em uma vida de paradoxos e contradições. A sensibilidade moderna é incongruente, é uma explosão de sentimentos e vontades, como os sentimentos e vontades do migrante, que não sente ser parte de lugar algum: Essa atmosfera - de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma – é a atmosfera que dá origem à sensibilidade moderna (Berman, 1986: 18).

Marx e as relações de trabalho modernas Berman é o primeiro autor a fazer uma análise cultural da obra O Manifesto Comunista, de K. Marx. Seu objetivo é demonstrar que as obras de Marx nos revelam muitas características da modernidade, além de Marx ser o primeiro autor a construir uma visão da vida moderna como um todo. “O Manifesto expressa REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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algumas das mais profundas percepções da cultura modernista e, ao mesmo tempo, dramatiza algumas de suas mais profundas contradições internas” (Berman, 1986:103). A concepção da cultura moderna da época, que se expressa no Manifesto, traz à tona as primeiras discussões acerca de um mercado já mundial e de uma tímida, porém sólida, globalização dos meios de comunicação. Berman ressalta uma exaltação que Marx faz ao mundo burguês, ao mesmo tempo em que o critica, sendo Marx também tomado pelas contradições de um mundo que já era intensamente moderno. Ao meu ver, o mais intrigante das obras de Marx é a possibilidade de trazerem à luz, mais de um século depois de suas criações, relações de trabalho do modo de produção capitalista que ainda são vistas na contemporaneidade, tais como a alienação do trabalho, o fetichismo da mercadoria e o exército industrial de reserva. Um duplo fetichismo da mercadoria pode ser observado nas relações sociais, culturais e econômicas dos migrantes de Guariba. Existe uma desvalorização da força de trabalho do migrante, que é percebido tanto pela comunidade guaribense, quanto pelos modos de produção capitalista como um todo, como um trabalho desqualificado. Há aí um primeiro fetichismo à mercadoria: voltamos os olhos para o produto final e para todas as oportunidades que o setor sucro-alcooleiro oferecem, como por exemplo, o desenvolvimento de um comércio já bem consolidado na cidade de Guariba. No entanto, o bóia-fria, quando percebido, é estigmatizado e indesejado, mesmo sendo mão-de-obra fundamental nas lavouras de cana-de-açúcar. Neste contexto, o bóia-fria é vítima de um fetichismo existente nos outros. No entanto, é também detentor de um segundo fetichismo à mercadoria: sente a necessidade de adquirir o papel moeda e as mercadorias que este oferece, mesmo que para isto seja necessário migrar e submeter-se ao trabalho maçante e pouco valorizado do setor sucro-alcooleiro.6 “A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre classes: parece que uma segunda natureza domina, com leis fatais, o meio em que vivemos” (Debord, 1997: 20):

6 Um trabalhador rural, atualmente, corta dez toneladas de cana por dia e ganha, em média, 600 reais por mês (dados adquiridos a partir das entrevistas com os trabalhadores rurais).

Vocês tinham galinha, então [em Codó, no Maranhão]? Maria, esposa de trabalhador rural, maranhense, 23 anos, parda – É. A criação mesmo que tem. Mas então vocês nunca passaram fome lá no Maranhão? Maria – Não. Fome não. Graças a Deus que não, né? Mas faltava dinheiro? Maria – Ah, dinheiro com certeza que faltava, né? Às vezes eu queria comprar uma roupa, um remédio pro menino [seu filho] e já não tinha. Tinha que vender um arroz às vezes, né? [...] Também nunca chegou o dia de dizer assim que meu filho ficou doente e eu não tenho condição de comprar o remédio. Graças a Deus. Disso eu não posso me reclamar, né? Eu poderia não ter pra comprar uma roupa, uma sandália... Bom, isso aí eu não tinha mesmo não, mas o menino caía doente, tava com febre, um caroço, qualquer coisa, já corria logo pro médico particular. E você considera que a sua situação hoje é melhor ou pior do que antes de vir pra cá? Maria – Ah, é melhor. Porque, Maria?

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Maria – Ah, porque lá no Maranhão tem uma vantagem, porque a gente não paga água, não paga luz e nem aluguel, porque a gente mora na choça [casa feita de madeira e barro típica do Maranhão], na fazenda, né? Mas só que não é tudo que a gente quer comer que a gente tem, não tem dinheiro pra comprar uma roupa, uma coisa, né, assim. Então eu acho melhor aqui. Aqui é ruim assim (...) porque a gente fica muito longe dos parentes da gente. No tempo do frio também é ruim, né, mas além, outra coisa não.

7 A moto é um dos maiores fetiches entre os trabalhadores rurais, um sonho para a grande maioria deles.

Maria jamais passou fome, tinha uma roça de subsistência e criação de animais no Maranhão, e pode, quando necessário, comprar remédios para seu filho. No entanto, migrou com o marido pelas oportunidades que o dinheiro oferecem, porque sonham juntos em comprar uma casa (e não uma “choça”, que muitas vezes não é vista como casa), além de uma moto7 para que o marido possa trabalhar como office-boy. Seu marido volta constantemente com dores e câimbras, e com alguma freqüência não volta para casa porque da lavoura é levado imediatamente ao posto de saúde da cidade. No entanto, Maria sente que a migração valeu a pena, que o casal está investindo no futuro, e que seu marido é bem pago pelo seu trabalho (ver nota 6). Este é o fetiche da mercadoria de um mundo moderno, em que a alienação do trabalho e a mais-valia são possíveis porque, uma vez que o trabalhador rural reclama as condições de seu trabalho, é facilmente substituído por um incontável exército industrial de reserva, ou seja, por novos migrantes à espera de um trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar. O que o migrante produz é uma força independente, não o constitui. “Com a acumulação de seus produtos alienados, o tempo e o espaço de seu mundo se tornam estranhos para ele” (Debord, 1997: 24). Por isto migrar, para estes trabalhadores, é um ato cotidiano e permanente. Debord, ao pensar as sociedades modernas como sociedades de espetáculos, cita a alienação do trabalho, indiscutivelmente presente no mundo moderno. Quanto mais o homem separa sua vida de seu produto, mais se separa da própria vida para tornar-se apenas o que produz, apenas o seu produto, sem essência. “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (Debord, 1997: 25). É também o momento em que a mercadoria ocupou totalmente, e de forma descomunal, a vida social, nossas vontades, perspectivas e projetos: Você pretende voltar [para Guariba]? “Toninho Branco”, 21 anos, trabalhador rural, maranhense, pardo – É, a gente vai ver no final do ano, quando a gente chegar... Vai ver se volta ou não. Mas não tava mais querendo voltar, não. Mas aí a gente chega lá, vê os outros vindo pra cá e aí volta de novo. Mas não tava com vontade de vir mais, não. É? Quer que seja a última? Toninho Branco - Ah, eu quero que seja. Eu não sei se é a última, mas eu quero que seja.

Simmel e a individualidade na vida moderna De acordo com Berman, Georg Simmel insinua, mas não chega a desenvolver, aquilo que estaria mais próximo de uma teoria dialética da modernidade no século XX. Já em 1902, este autor pensava na modernidade, na vida em metrópole, na subjetividade e objetividade em sociedades que já passavam por constantes e REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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profundas transformações, como por exemplo, os fluxos migratórios das comunidades rurais para os grandes centros urbanos. Simmel acreditava que um dos mais graves problemas da vida moderna era a falta de autonomia e individualidade, em face às forças sociais, à cultura externa, às técnicas de vida e outras características do moderno. Desenvolve uma cadeia de raciocínio que nos leva a uma relação dialética: a individualidade, no sentido das relações emocionais e íntimas, é massacrada pela economia monetária e pelo domínio do intelecto. Conseqüentemente, desenvolvemos uma impessoalidade com o outro que nos torna altamente individualistas. “A intelectualidade, assim, se destina a preservar a vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana” (Simmel, 1987: 15). A economia monetária e o domínio do intelecto estão vinculados, deixando para segundo plano o trato e a consideração com os homens. Esta é a dialética do moderno: a estrutura moderna é da mais alta impessoalidade, no entanto promove uma subjetividade altamente pessoal. Daí surge a atitude blasè, que é o poder que todos nós temos de discriminar o outro. O dinheiro, de acordo com Simmel, é o mais assustador dos niveladores. A expressão “quanto?” é a que torna possível uma atitude blasè. As relações quantitativas, nas sociedades modernas, são cada vez mais importantes que as relações qualitativas. Até mesmo o tempo passa a ser medido. A pontualidade, calculabilidade e exatidão não transformam e fazem parte apenas da economia, do dinheiro e do intelecto, mas também do modo de vida que deixa de ser “para dentro” e passa a ser voltado “para fora” (para o dinheiro, o relógio como representante do tempo, a moda, a mídia). Por que não reconhecemos na rua nossos vizinhos de anos? Existe não só indiferença, mas aversão, estranhamento e repulsão mútua. Este é o estilo metropolitano de vida, e segundo Simmel uma das formas elementares de socialização. O indivíduo da metrópole tem qualidade e quantidade de liberdade pessoal nunca jamais vistas, por conta da atitude blasè. “Os conteúdos e formas de vida mais extensivos e mais gerais estão intimamente ligados aos mais individuais” (Simmel, 1987: 22). Simmel, ao pensar a vida na metrópole, compara o homem urbano ao homem camponês. Os fundamentos sensoriais da vida psíquica são diferentes na metrópole (no moderno), quando em comparação com a vida rural. As impressões, a consciência e o ritmo na metrópole são diferentes: enquanto que em um contexto rural o ritmo de vida é mais habitual e uniforme, em um contexto urbano os homens protegem-se das transformações do ambiente e das ameaças, que são constantes. O intelecto é a parte mais adaptável de nossas forças interiores. Desta forma, o homem urbano reage com a cabeça, e não com o coração. Somos, de acordo com Debord, “multidões solitárias” (1997: 23). O relato oral de Martinho, maranhense de Morro Branco, negro, 25 anos e migrante sazonal porque tem o sonho de comprar uma moto, retrata híbridos sentimentos e modo de vida: E você já veio pra cá [Guariba] três vezes, né? Martinho – É, três vezes. E você sente alguma diferença quando volta [para Morro Branco, sua terra Natal]? Martinho – É, chega lá, a coisa muda, né? Às vezes uma terra que tava feia, de repente dão um trato nela [e cita outros aspectos do mundo rural onde sua família tem roça de subsistência e criação de animais]. Aqui se chama centro, lá é interior. Aqui é cidade, é tudo enlatado, tem telha, telhado, tem rua. E aqui a gente muda as “feição”.

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Então você acha que aqui você vive melhor? Martinho – Melhor, assim, porque estamos trabalhando, né, mas bom mesmo é tá na terra da gente... Mesmo morando na choça?... Martinho - Ah, é, mesmo morando na choça o bom mesmo é lá! Aqui é cidade, tem dinheiro, dá pra comprar, pra andar de tênis, mas eu sou pobre e prefiro morar na terra da gente. (Risos) Porque a gente nasce lá. Porque a gente nunca se esquece da terra que se nasceu [...]; sem família é a mesma coisa que nada. E você acha que você mudou muito? Martinho – Ah, eu não sei se eu mudei, mas lá, a gente sempre pensa que a gente muda, mas não. Continua o mesmo. Eles [os conterrâneos] acham que mudou, né, mas a gente não mudou nada. E em quê eles acham que você mudou? Martinho – É, porque chegando lá a gente volta mais danado, porque aqui a gente conversa de todos os assuntos, sobre muita coisa, muita coisa diferente, e aí eles acham que a gente voltou mais falante. [Acham que a gente volta] cheio dos critério, com a pele mais fina, mais branco... Tem gente lá que acha que a gente trabalha em escritório, porque tá com a pele mais fina, mas não, “Ih, gente, o trabalho lá é de roça”. Acham que é trabalho sério, que conseguiu, mas não, é trabalho de roça, com facão também! (risos).

8 Em Morro Branco não há água canalizada e nem asfalto nas ruas e estradas de acesso. Porém existe energia elétrica e, na casa de “Fogoso”, único morador da cidade que já tem televisão, toda a comunidade se reúne no fim do dia para assistir à novela das 9h (informações colhidas através das entrevistas).

Martinho, assim como outros trabalhadores maranhenses, não sente que pertence ao mundo que migra. No entanto, sente que o “moderno”, o “novo”, lhe são familiares, porque são parte constituinte de sua cultura e terra natal, onde a lógica tradicional e camponesa já recebe a influência dos símbolos do moderno, seja a partir da migração existente em Morro Branco há mais de 10 anos (que possibilita o intercâmbio de culturas), seja a partir das imagens da televisão, meio de entretenimento entre os moradores de Morro Branco.8 Há um espetacular integrado, pois mesmo as regiões periféricas foram atingidas pelo espetáculo, pelo moderno, pelo capital (Debord, 1997). Há o desejo de pertencimento e identificação do moderno, mesmo que percebam o estranhamento e a repulsa da comunidade nativa guaribense (e, portanto, moderna), que os mantêm afastados a partir de atitudes blasè e das niveladoras perguntas “quanto você vale?” ou ainda “quanto você tem?”. A saudade e o desejo de regresso estão indiscutivelmente presentes, mas estes querem voltar diferentes, representantes do moderno através de seus novos pertences, imbricados de valores concretos e abstratos e, sobretudo, vitoriosos no mundo metropolitano onde o ser e o viver são “para fora”, ou seja, voltados para as aparências e para o tempo que é calculado, quantitativo, egoísta. Por isto voltam mais brancos, mais fortes, como se trabalhassem em escritório, com dinheiro no bolso, “cheio dos critério”, expressões colhidas não apenas no depoimento de Martinho, mas nos relatos dos outros homens e mulheres maranhenses ouvidos. O “lugar que não é da gente” também faz parte de sua formação identitária. Ter status na “nossa terra” é ter incorporado valores e símbolos do moderno. “Parecer moderno, mais do que ser moderno. A modernidade se apresenta, assim, como a máscara para ser vista. Está mais no âmbito do ser visto do que no viver” (Martins, 2000: 39, grifo nosso). Ou seja, o “viver” do camponês do interior maranhense que migra sempre será “não moderno”, ainda que sua corporalidade (a sua aparência)

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denuncie um hibridismo de culturas. No entanto, sua existência é indiscutivelmente parte da modernidade, uma vez que, sob uma perspectiva econômica, sua força de trabalho sustenta o setor sucro-alcooleiro e, portanto, o luxo e a riqueza do mais moderno estado do país. Neste “jogo da sociedade”, em que se vive e se aprende a jogar, acredito que o trabalhador migrante mais perde do que ganha, mais é explorado do que explora as oportunidades da modernidade. Concluindo, a modernidade, há décadas, vem sendo pensada como uma ameaça a todo tipo de história e tradições. Marx, ora exaltando, ora criticando as conseqüências de uma modernidade embrionária, acusa muitas de suas características perversas, tais como a alienação do trabalho, a mais-valia, ou ainda o fetichismo da mercadoria. Assim como Marx, Guy Debord denuncia com a alma uma sociedade espetaculosa, e portanto surpreendente e enorme em suas proporções. É também a sociedade das máscaras, das representações, lugar onde as essências são pouco vistas ou valorizadas. É a “casca”, o que está do lado de fora, o que torna-se realmente significativo. Georg Simmel, assim como Debord, percebe que nas relações sociais das grandes metrópoles, todos os aspectos da vida cotidiana permeiam e são constituídas daquilo que está “para fora”, ou seja, do dinheiro, da moda, da mídia e tudo o mais que possa ser calculado, quantitativo. Nem sempre simpático aos novos fenômenos da vida moderna, porém imbricado neste turbilhão de novas idéias e valores, Simmel conclui que não cabe à nossa efêmera existência acusar ou perdoar as relações sociais modernas, senão compreendê-las (1987: 28). Berman, assim como Simmel, faz um balanço positivo da modernidade, já que não a enxerga como uma ameaça à história e às tradições, mas como uma variedade de histórias e tradições próprias (1986: 16). De fato, percebemos as novas relações sociais, culturais e econômicas dos homens e mulheres maranhenses, que há uma década vêm migrando para as cidades do interior paulista. Estas relações são frutos das novas histórias e tradições modernas, e não as vejo de forma negativa. Não há porquê impedir que estes trabalhadores “modernizem” seus modos de vida, e isto nem mesmo seria possível. No entanto, esta modernização é feita com bases exploratórias, discriminatórias e desiguais. A maior parte da população do interior paulista volta seus olhares para os prédios espelhados e carros importados constituintes das ricas e modernas cidades de São Paulo como Ribeirão Preto. Poucos tomaram consciência da pobreza relativa e da desigualdade social que amargamente sustentam tanta riqueza para os olhos. Os (as) trabalhadores (as) maranhenses com quem conversei nem ao menos conheciam o significado da palavra “migrar”. Também não compreendem a complexa estrutura social que envolve a migração e, consequentemente, suas vidas e modos de ser e agir no mundo. É perceptível a dor e a angústia destes homens e mulheres que têm pés em um chão e coração em outro, ao mesmo tempo em que não se sentem partes de lugar nenhum. É sabido que a estrutura moderna atual é sólida e autônoma, porém não precisa basear-se eternamente em relações de exploração, ou ainda em atitudes blasè e altamente individualistas. Cabe a nós, atores de uma História processual (que se renova, e é portanto algo vivo e em transformação), mudar, mesmo que a lentos passos, os rumos desta injusta e contraditória malha social. 326

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BIBLIOGRAFIA ADORNO, T. W. A Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1986. BERMAN, M. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. Cap. I e II. COSTA, M. C. S. Entre o Rural e o Urbano. In: Travessia – Tempo e Espaço. São Paulo, Janeiro/ Abril de 1993. Pp. 5- 7. DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Ed. Contraponto, 1997. MARTINS, J. S. A Sociabilidade do Homem Simples. São Paulo: HUCITEC, 2000. MARX, K. & ENGELS, F. O Manifesto Comunista: 150 anos depois. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. MORAES SILVA, M. A. As Cidades dos Bóias-Frias. In: Travessia – Tempo e Espaço. São Paulo: Janeiro/Abril de 1993, pp. 30-34. _________________ Errantes do Fim do Século. São Paulo: Editora UNESP, 1999. SIMMEL, G. A Metrópole a Vida Mental. In: Velho, O. (org). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: E. Jorge Zahar, 1987.

*Andréa Vettorassi, formada em Ciências Sociais pela UFSCar, é atualmente mestranda no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFSCar e bolsista CNPq. e-mail: <andreavettorassi@yahoo.com.br>.

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SOCIOLOGIA

JESSÉ SOUZA E A INTERPRETAÇÃO DO “DILEMA BRASILEIRO” Fabiana Luci Oliveira*

Resumo: A questão do processo de configuração e modernização do Estado e da sociedade no Brasil é tema recorrente no pensamento social brasileiro. Essa questão é abordada aqui a partir da releitura que Jessé Souza faz do chamado “dilema brasileiro” e da “sociologia da inautenticidade” que interpreta esse dilema. São apontadas as contribuições e lacunas no trabalho desse autor, levando a conclusão de que o dilema da modernização brasileira persiste. PALAVRAS-CHAVE: MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA; SOCIOLOGIA DA INAUTENTICIDADE; JESSÉ SOUZA Abstract: The process of configuration and modernization of the State and society in Brazil is an appealing theme in the Brazilian social theory. This subject is approached here by the interpretation that Jessé Souza does of the so-called “Brazilian dilemma” and of the “sociology of inaccuracy”, which interprets that dilemma. The contributions and gaps in that author’s work are pointed, concluding that the dilemma of the Brazilian modernization persists. KEYWORDS: BRAZILIAN MODERNIZATION; “SOCIOLOGY OF INACCURACY”; JESSÉ SOUZA

Brasil: atrasado ou moderno? A questão do processo de formação e modernização do Estado e da sociedade no Brasil é tema recorrente no pensamento social brasileiro. O Brasil pode ser considerado moderno? Se a resposta for afirmativa, que tipo de modernização governa o país? Essas questões são abordadas aqui a partir da releitura que Jessé Souza faz do chamado “dilema brasileiro” e da “sociologia da inautenticidade” que interpreta esse dilema. O caráter de atrasado é atribuído ao Brasil em virtude ao seu processo de formação-colonização e devido à dependência do país em relação ao capitalismo internacional, alegando que o problema brasileiro é que Estado, mercado e sociedade civil não são esferas completamente diferenciadas, que operam a partir de uma lógica própria e independente. O atraso do Brasil seria conseqüência primeiramente do processo de colonização a que foi submetido (“herança ibérica”), sendo que a vinda da família real no começo do século 19 e a transposição das estruturas do Estado português para REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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cá, só vieram a reforçar o tipo de relação existente entre Estado e sociedade civil, na qual predominaria a autonomia do primeiro em detrimento da segunda. Com a Independência, que deveria denotar a autonomização do país, nada mudaria, haveria sim uma continuidade com a herança ibérica e o personalismo português. E com a proclamação da República, tal continuidade seria reiterada. Isso porque ambos os processos teriam sido conduzidos de cima, sem a participação da sociedade civil - a qual, aliás, para muitos autores, nem mesmo existiria. No livro Os Bestializados, de José Murilo de Carvalho (1997), percebe-se essa interpretação em alguns contemporâneos da época, como Aristides Lobo, para quem o povo deveria ter sido o protagonista da proclamação da República, mas ao contrário disso, teria assistido a tudo “bestializado”, e Louis Couty, para quem no Brasil não haveria povo. Nesse trabalho Carvalho discute a vida política no Brasil dos anos iniciais da República até o governo de Rodrigues Alves. Ele busca detectar as relações entre o Estado e seus cidadãos, tendo como cenário a cidade do Rio de Janeiro (escolhida por ser o maior centro urbano e a capital do país). Assim como Lobo e Couty, muitos outros afirmavam a total diferença da situação do Brasil em comparação com a dos países “civilizados” da Europa. No Brasil imperaria a ordem liberal, mas ela seria profundamente antidemocrática, “darwinista e reforçadora do poder oligárquico” (Carvalho, 1997: 161). Esse afastamento da democracia é, para Carvalho, reflexo da herança escravista e colonial, que teria dificultado o desenvolvimento das liberdades civis e da cidadania. Para o autor, no Brasil teria ocorrido o que ele designa por “estatania”, ou seja, a busca de participação através da organização dos interesses a partir da máquina estatal. No que se refere ao aspecto da participação eleitoral, a República teria se consolidado sobre a exclusão do povo: “O pequeno eleitorado existente era, em boa parte, composto de funcionários públicos, sujeitos a pressões por parte do governo” (1997: 86). Mas daí a afirmar a inexistência de povo político é, para Carvalho, um exagero. Do ponto de vista da participação formal, realmente o Rio não teria povo, mas a população se organizava bem para manifestações de caráter apolítico, em que o espírito associativo se refletia em agregações religiosas e de ajuda mútua, ou manifestava-se através de canais de participação informais, via greves e “arruaças”. O autor coloca que desde o Primeiro Reinado ocorreram manifestações populares, sendo que o auge dessas manifestações ter-se-ia dado na República com a Revolta da Vacina. Dada tal revolta, a visão de muitos autores e observadores da época se modificou um pouco, passando da idéia de que não havia povo para a de que o povo que promovia a manifestação não poderia ser classificado como povo político, pois não era a sociedade organizada, sendo apenas a “escória”, “a canalha”, “as classes perigosas”. Rui Barbosa observou que a reação contra a vacina era legítima, mas fora deturpada, pois o verdadeiro povo dela não participava, na medida em que era um povo “resignado, submisso e fatalista” (Barbosa, apud Carvalho, 1997: 115). Mas na visão de Carvalho a revolta contra a vacina representou justamente a descrença da população em relação à República que aqui se havia implantado, sem canais legítimos de participação popular. Segundo o autor, a revolta teria perpassado a sociedade de alto a baixo, sendo que os motivos iniciais de sua eclosão a busca da defesa dos direitos civis, e no que se refere ao povo teria um caráter moralista (defesa da honra do chefe da família contra a invasão ao lar). 330

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Para Carvalho o povo não assistia a tudo bestializado, mas sim tinha a consciência de que a República não era séria, de que as decisões eram tomadas a sua revelia. Os verdadeiros bestializados eram os que levavam o regime a sério e se deixavam manipular. A política era “tribofe” e o povo que a assistia de longe - pois a ele não era dado o direito de participar - era “bilontra”. Afastado da política e da participação formal, ao povo restaria atuar nas associações de bairro, nas irmandades, nos grupos étnicos, nas festas religiosas e profanas, construindo sua identidade coletiva de “brasileiros e cariocas” em torno do futebol, do samba e do carnaval (1997: 163). Com isso, no Brasil ter-se-ia desenvolvido um fenômeno singular, uma República sem cidadãos, sem participação popular legitimada. Tal ausência de participação popular e a sobreposição do Estado à sociedade civil forneceriam a marca do país: hierárquico e desigual, em que predominaria a exclusão e a fragmentação social. O contraponto necessário a essa visão da sociedade brasileira sempre foi, mais do que a Europa, a sociedade norteamericana, considerada igualitária, onde o ideário político liberal teria se desenvolvido plenamente. Essas diversas leituras buscam inspiração na teoria weberiana para interpretar o “atraso brasileiro”. Werneck Vianna (1999b), coloca que Weber tem sido uma das principais referências dessa literatura, e que, embora sejam abordagens um pouco distintas entre si, guardam afinidade quanto ao eixo central de interpretação, indicando a necessidade de ruptura com um passado ibérico com a finalidade de modernizar o país. Werneck Vianna e seus colaboradores (1999) assim focalizam o dilema brasileiro: Dada a natureza da modernização capitalista brasileira, resultado de um esforço liderado pelo Estado, enlaçado à sociedade civil pela malha corporativa, a noção de direitos tornou-se mais prisioneira da concepção de funcionário do que da de cidadão. Decerto que a ausência de direitos de cidadania para a maior parte da população remonta a raízes profundas, em razão do peso histórico da escravidão, das relações seculares de dependência pessoal impostas pelo estatuto do exclusivo agrário e da natural assimetria típica de processos de construção nacional em que a formação do Estado é anterior à do povo. Apor sobre essa base, como se fez a partir da Revolução de 30, um Estado convertido em instrumento de industrialização e da incorporação de trabalhadores urbanos ao mundo dos direitos importou não somente uma estatalização da cidadania nos sindicatos corporativos, como também da economia, que se torna objeto principal da ação do Estado, estratega em geral dos rumos da sociedade e único intérprete da sua vontade geral (Werneck Vianna et alli, 1999: 65).

Essas análises tendem a enxergar um processo de modernização retardatário e ambíguo no Brasil, que combinaria um Estado moderno liberal, mas nãodemocrático, que se baseou primeiro na escravidão e depois no patrimonialismo. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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A influência do Estado aqui foi sempre vista de maneira negativa, sendo ele utilizado em benefício de interesses privados (confusão público/privado) ou inibindo a livre iniciativa. O Estado no Brasil é pensado na linha do que Werneck Vianna chama de metafísica brasileira, de lógica cooptadora, “centrada na idéia de uma comunhão entre Estado e Nação (...), implicando uma modernização sem prévia ruptura com o passado patrimonial” (1999: 176). Para o autor, o desafio posto a uma nova interpretação do Brasil é o de contrapor a essa metafísica a física moderna do interesse público “traduzindo para o plano da sociabilidade a tradição de valorização do público que a Ibéria praticou no interior do seu Estado, cumprindo assim o programa republicano de formar uma comunidade de cidadãos com iguais direitos” (1999: 192). O dilema da modernização brasileira, portanto, se articula a partir de dois eixos centrais: continuidade/ singularidade e atrasado/ moderno. Essas dualidades dão ensejo ao que Jessé Souza (2000) designa por “sociologia da inautenticidade”, que entende o Brasil como modernizado superficialmente, epidermicamente, “para inglês ver”. Essa sociologia gira em torno do argumento da continuidade, dos conceitos de herança ibérica, patrimonialismo e personalismo. A proposta de Jessé Souza é justamente reinterpretar esse dilema, questionando alguns dos seus pressupostos. O autor busca fugir dessa concepção em que o Brasil é visto como um desvio da modernidade, esclarecendo alguns aspectos e criticando algumas imprecisões no argumento desses autores. Para ele a modernização tem que ser considerada a partir da relação entre valores e sua institucionalização (imbricação entre idéias, práticas e instituições sociais), vinculando-a com a questão da estratificação social. A sociedade brasileira tem que ser apreendida em seu dinamismo e em sua complexidade, percebendo-se que a modernização é uma realidade efetiva e que a miséria e o atraso, que ele qualifica como “relativo”, são resultados da seletividade do processo de modernização. A questão chave do argumento de Jessé Souza é justamente a percepção da singularidade do processo de modernização brasileiro a partir da consideração da relação entre valores e sua institucionalização, acrescida da preocupação com a questão do acesso diferencial de grupos e classes aos frutos desse processo. Essa seletividade (enquanto realização parcial de aspectos associados com a singularidade da cultura ocidental) é comum a todas as formas de desenvolvimento observáveis na história do Ocidente, inclusive aos Estados Unidos. Afirmando que os autores da sociologia da inautenticidade não refletiram detidamente sobre alguns pressupostos, trabalhando inadequadamente com eles, Jessé Souza procura desenvolver essa tarefa de esclarecimento.

Os Estados Unidos – o “outro” privilegiado A sociologia da inautenticidade elegeu os Estados Unidos como o contraponto cultural ao Brasil por excelência. Porque essa escolha? Porque o Brasil se aproxima muito desse país na dimensão continental, apresentando uma fronteira interna e um padrão de povoamento igualmente comparáveis. A preferência pelos Estados Unidos e não por algum país da Europa se deve justamente à herança do protestantismo ascético. Porque não a Alemanha? Segundo Jessé, esse país não foi escolhido para contraponto do Brasil justamente por não ter sido herdeiro do protestantismo ascético. Sua herança é do protes332

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tantismo luterano, que coloca a introspecção religiosa e a indiferença política. O próprio Weber enxerga a Alemanha como “atrasada”. Numa carta que remeteu a Adolf Harnack, no começo do ano de 1906, Weber faz a seguinte afirmação: O fato de a nossa nação jamais ter sido formada na escola do protestantismo ascético é a fonte do que eu odeio nela e em mim mesmo. A Alemanha teve uma industrialização retardatária se comparada à Inglaterra e a França. Não havia no país uma burguesia economicamente forte, com comportamento político e prestígio social. A direção do processo de unificação nacional foi conduzida pelos grandes proprietários agrícolas. O processo da Alemanha é, portanto, identificado como sendo muito próximo do caso brasileiro – um caso de modernização superficial, para a sociologia da inautenticidade, ou de modernização singular e seletiva, para Jessé. Eleito os Estados Unidos, a pergunta dessa sociologia é, então: porque o Brasil é tão atrasado e pobre e os Estados Unidos tão rico e moderno? Uma das respostas possíveis a esse questionamento é buscada em Weber, pois a formação concreta da sociedade norte-americana é a que mais se aproxima da realização do tipo abstrato de racionalismo ocidental no sentido weberiano. Essa sociedade é vista como a conjunção do espírito de liberdade com o espírito de religião. Nesse país as instituições sociais seriam produto da criação consciente e racional dos homens, que colonizaram o país, enquanto pessoas de boa condição social, com o objetivo de fazer triunfar uma idéia religiosamente motivada. Portanto a marca dessa civilização - que denotaria o seu sucesso - seria a capacidade de associativismo racional (horizontal). Assim, alguns autores da sociologia da inautenticidade, como Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro, criticam a incapacidade brasileira de associativismo horizontal. Para Sérgio Buarque, nossa tradição seria incapaz de superar o imediatismo emocional que caracteriza as relações de grupos primários como a família. Essa seria justamente a causa do nosso descompasso político e econômico, pois as instituições modernas mais importantes - Estado e mercado -, pressupõem a superação da solidariedade familiar. Isso se daria em decorrência da herança ibérica do personalismo, que subordina o elemento cooperativo e racional ao pessoal e afetivo. O brasileiro seria o extremo oposto do indivíduo formado no protestantismo ascético. Seria o homem cordial, com um comportamento determinado tradicional e externamente, dominado pelo conteúdo emotivo e imediato e pela necessidade desmedida de reconhecimento alheio. Ele traz também a qualidade da plasticidade, enquanto assimilação social e racial dos elementos indígenas e africanos. Como resultado dessa conjunção de fatores teríamos um Estado patrimonialista (abafando os interesses privados). Faoro elabora uma interpretação nessa mesma linha da herança ibérica e do caráter patrimonialista do Estado brasileiro, em que se configura um capitalismo de Estado. Uma elite se apropria do aparelho estatal e o usa como um bem privado, utilizando o poder do Estado de modo a assegurar a perpetuação dos seus privilégios. A causa maior do atraso brasileiro seria justamente a constituição desse Estado “todo poderoso”, anterior a formação da sociedade, que a substitui e suga toda sua força, não deixando espaço para a livre iniciativa. Essas são as abordagens da vertente que Jessé Souza caracteriza como institucionalista, mas ainda há um outro autor nessa sociologia da inautenticidade a ser criticado: Roberto Da Matta. O objetivo de Da Matta é compreender a realidade brasileira por trás de suas auto-imagens consagradas, por trás das aparências. Então ele enfoca a prática do coREVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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tidiano e os rituais. Ainda os Estados Unidos enquanto o outro. Da Matta questiona: “Porque dizemos diferentes, mas juntos e não iguais, mas separados, como eles?” Para Da Mata a especificidade social brasileira estaria justamente na percepção de que há uma dualidade constitutiva no país, em que as categorias são as de indivíduo (leis impessoais, mas não como nos Estados Unidos, uma categoria universalizante e englobadora, mas como o “João-ninguém das massas”) e de pessoa (ser relacional: relações de compadrio, amizade, troca de interesses, favores). Disso adviria a oposição casa/rua, como espaços privilegiados onde indivíduo/pessoa realizariam modalidades de relações sociais. Da Matta identifica a sociedade brasileira como profundamente hierarquizante e personalista (ritual autoritário do “você sabe com quem está falando?”). Segundo ele, as relações pessoais desempenhariam no Brasil o papel que o Judiciário desempenha em países igualitários. Aqui não se aplicaria a lei, mas a força das relações pessoais. Aqui a resolução dos conflitos seria informal, por meio da “carteirada”, do “jeitinho”, da ameaça do “você sabe com quem está falando?”. Com isso o autor situa corrupção como um dado característico e inerente a formação do Brasil. Da Matta preocupa-se com a discussão do conceito de cidadania (que implica a idéia de indivíduo e de regras universais), comparando sua utilização nos Estados Unidos (sociedade igualitária e liberal) e no Brasil (sociedade onde as relações de parentesco, compadrio e amizade são primordiais). O conceito de cidadania é apreendido por Da Matta como sendo um papel social (apreendido e vivenciado) de caráter nivelador e igualitário, afirmando que ele veio a complementar a transformação do sistema social que se iniciou com a idéia de mercado como compensador dos privilégios dados pela hierarquização social nas redes locais. Para o autor, nas sociedades liberais e igualitárias, como os Estados Unidos, o individualismo e a cidadania seriam definidos positivamente, sendo que a desigualdade e a discriminação, para serem exercidas, necessitariam de um mecanismo delimitador da participação de indivíduos em grupos exclusivos: o convite. Já no Brasil, o ideário político liberal estaria na base das instituições jurídicas, mas essas operariam, na prática, privilegiando as relações pessoais (1997: 74). Aqui o que se buscaria seria sempre a personalização de situações formais, a partir do que o autor designa por “ritual do reconhecimento”. Ele afirma que “o cidadão é a entidade que está sujeita às leis, ao passo que a família e a teia de amizade, às redes de relações” (1997: 81). A regra seria a hierarquização, sendo a cidadania e o individualismo definidos negativamente, sofrendo um “desvio”. Esse desvio remontaria a processos históricos e culturais, vindo com a formação, no Brasil colonial, de uma organização burocrática, na qual o todo predominaria sobre as partes e a hierarquização seria o princípio definidor dos papéis, dando origem ao que o autor chama de “personalismo brasileiro”. O termo cidadão é empregado, na maioria das vezes, a fim de “demarcar a posição de alguém que está em desvantagem ou mesmo inferioridade” (1997: 80). Nos Estados Unidos haveria a idéia de comunidade, baseada na igualdade e homogeneidade dos cidadãos. No Brasil a comunidade seria heterogênea e hierarquizada, composta por amigos e parentes. 334

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Da Matta entende que a idéia de redes é pertinente para praticamente todas as sociedades, mas o fato delas serem institucionalizadas, como no Brasil, denotaria a convivência de éticas diferenciadas no país (1997: 81). Embora a utilização das redes pessoais na navegação social remonte ao passado histórico, ela seria, na visão do autor, muito presente na realidade brasileira atual. Ele afirma que “há uma nação brasileira fundada nos seus cidadãos, e uma sociedade brasileira que funciona fundada nas mediações tradicionais” (1997: 86). A cidadania aqui operaria na lógica da “rua”, onde todos são anônimos, onde impera a impessoalidade, na verdade nesse espaço existe o que Da Matta designa por subcidadania (uma vez que a cidadania se define negativamente, por deveres e obrigações). Já a tradição reinaria na lógica da “casa”, onde todos são supercidadãos. Essas duas lógicas se relacionariam constituindo o sistema social brasileiro, a “gramática social profunda” do Brasil. Um outro ponto comum que Jessé identifica na leitura desses autores (e em outros dessa mesma linha, como Simon Schwartzman) é a idéia de um Brasil alternativo em São Paulo. Desenvolvido em meio ao esquecimento de Portugal, em São Paulo haveria um quadro de autonomia e insubordinação em relação à coroa. Seu desenvolvimento seguiria um padrão norte-americano, havendo ali o esboço da lógica do interesse. Os bandeirantes seriam os heróis do desenvolvimento paulista e com a expansão do café o Estado poderia ter ensejado a transformação social do país, caso não tivesse sofrido inúmeras derrotas por buscar desempenhar tal autonomia. Segundo Werneck Vianna (1999), nessa leitura o período de hegemonia de São Paulo teria durado de 1889 a 1930, e com “a chamada revolução de 1930 teria retomado o velho fio ibérico de precedência do Estado sobre a sociedade civil” (1999:178).

A singularidade do caso brasileiro – uma modernização seletiva Com a finalidade de esclarecer alguns dos pressupostos e imprecisões nos argumentos trabalhados pelos autores da sociologia da inautenticidade, Jessé Souza parte para uma leitura da obra de quatro autores que considera centrais para a interpretação do Brasil: Max Weber, Charles Taylor, Norbert Elias e Jürgen Habermas. Ele inicia a discussão com Weber, que é uma das mais recorrentes fontes de inspiração para a autocompreensão do Brasil, sendo seu diagnóstico do desenvolvimento ocidental muito utilizado para explicar o atraso brasileiro. Jessé procura apoio nas ambigüidades da própria análise weberiana a fim de problematizar as noções de atrasado/moderno atribuídas à sociedade brasileira. Weber busca identificar a especificidade do racionalismo ocidental, encontrando sua superioridade evolutiva nos campos moral e cognitivo. Ele observa que o controle racional do mundo se dá na medida em que este se torna desencantado. Com isso, focaliza sua atenção no estudo das religiões. E como a sociologia weberiana preocupa-se com o sentido dado à ação pelos atores sociais, aborda a passagem das primeiras manifestações da religiosidade (voltadas para a vida mundana), designada por naturalismo, para o simbolismo (crença em poderes sobrenaturais), passagem esta que dá vazão ao surgimento do campo de ação religioso (Souza, 1999). O interesse de Weber é demonstrar de que maneira o protestantismo foi introduzindo os diferentes elementos de substituição da magia por uma concepção ética e cognitiva do mundo. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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O que Jessé aponta como o fio condutor da sociologia da religião weberiana, e, portanto, o aspecto que interessa a ele, é o surgimento da “teodicéia do sofrimento” e a percepção de que toda religião de salvação tem uma concepção dualista do mundo (dualidade entre o sagrado dever ser e o profano mundo do ser), mas com influência diferencial sobre a conduta prática dos indivíduos. E Weber atribui a especificidade do racionalismo ocidental à forma como a religiosidade ocidental resolve o seu dualismo. Com isso ele entra nas diferenças entre protestantismo ascético e catolicismo. O catolicismo colocaria um compromisso entre ética e mundo e já o protestantismo apresentaria uma tensão entre ética e mundo, que transcenderia o dualismo religioso através da sua realização prática na sociedade (1999: 25-26). O protestantismo ascético elimina a mediação mágica na relação homem/ Deus, sendo que a doutrina calvinista da predestinação fornece a noção de vocação e a idéia de eleição, e com ela suscita a dúvida da eleição, gerando a doutrina da certeza da salvação, que confere um significado sagrado ao trabalho (representando a glorificação de Deus na terra). É esse afastamento dos homens em relação a Deus que possibilita a “afinidade eletiva” entre a obediência a um Deus longínquo e a idéia moderna de obediência a normas abstratas (1999: 45). E como atenta Jessé: O leitor que percebe a ética protestante inferindo apenas na ética do trabalho, ou seja, com efeitos somente na esfera econômica da sociedade, não alcança a dimensão dessa obra weberiana. Trata-se aqui de uma recriação do mundo, no sentido mais forte, mais amplo e mais profundo do termo: da produção de um novo racionalismo. Racionalismo para Weber significa que todas as esferas da sociedade, assim como todas as ações individuais no contexto dessas, vão obedecer a um novo e ubíquo quadro de referência. No caso do racionalismo ocidental, esse quadro de referência é o princípio da dominação do mundo (Souza, 1999: 43-44).

Um aspecto muito importante para o qual Weber chama a atenção no protestantismo ascético é a passagem da ética da convicção, ética que envolve a ação tradicional, descontextualizada, baseada na “pureza das intenções”, para a da responsabilidade, que envolve a ação racional movida por fins e valores e o cálculo das conseqüências (Argüello, 1999). O produto final dessa passagem é o indivíduo dotado de razão e consciência, capaz de criticar a si mesmo e a sociedade onde vive. Esse indivíduo é central para todos os valores associados à modernidade: mercado competitivo, democracia, direito racional-legal, ciência, tecnologia. Mas como lembra Jessé, a passagem do mundo religiosamente motivado para o mundo secularizado é um ponto central e controvertido do diagnostico weberiano. A não-fraternidade do cominho da salvação do protestantismo ascético impõe a impessoalidade, a exacerbação da atitude instrumental, isso gera a reificação, a perda do convencimento das éticas materiais de fundo religioso e possibilita o aparecimento das pré-condições do individualismo ético, dando origem à secularização, ao desencantamento do mundo. Nesse mundo secularizado o capitalismo e a atitude instrumental influenciam todas as esferas da vida (princípio da dominação do mundo). Para Weber, uma real mudança institucional advém da conversão dos valores, corações e mentes das pessoas e não pela violência, pela imposição. Sem idéias 336

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e valores não há mudança social possível, e sem estruturas que institucionalizem esses valores e idéias na vida cotidiana, não há como eles se reproduzirem no mundo concreto. O protestantismo ascético conseguiu implementar essa conversão, a partir da subordinação de todos os valores em função do serviço a Deus, gerando a reificação e a conseqüente atitude instrumental (Souza, 1999: 44). Segundo Jessé é a partir desse processo que a sociologia da inautenticidade identifica o atraso brasileiro. No Brasil os homens obedeceriam ainda a outros homens e não aos princípios impessoais característicos da reificação do mundo. A obediência aos homens é o que diferencia o patrimonialismo brasileiro e a cultura política do país. Como já foi visto, o que caracteriza o pensamento social e político brasileiro é a identificação de uma incapacidade democrática do país em decorrência da incapacidade de associativismo. Com base nessa caracterização, Jessé trabalha com o conceito de “confiança intersubjetiva”, denotando a presença ou ausência de civismo e participação política. Em Weber a confiança intersubjetiva resulta do espírito da seita por oposição ao espírito da igreja católica. O pertencimento à seita representaria, nos Estados Unidos, uma necessidade econômico-social, gerando a confiança intersubjetiva, e o não-pertencimento implicaria ruína econômica e perda de credibilidade. E como a seita pressupõe a participação voluntária (ao contrário da igreja onde a participação é dada pelo nascimento) ela propicia o igualitarismo democrático (em oposição à hierarquia e ao elitismo da igreja). Mas Jessé identifica uma ambigüidade nesse princípio democrático da seita: na medida em que se dá ênfase à pureza, ocorre uma oposição entre sectários (puros) e não-sectários (impuros), gerando a intolerância com o outro, que com a secularização passa a ser qualquer um que seja diferente. Já o princípio hierárquico da igreja permite que se aceite o “não puro”. Com isso conclui que superioridade econômica não implica superioridade em todos os aspectos da vida, problematizando e relativizando as noções de país “atrasado” e país “moderno”. Embora tenha alcançado um desenvolvimento econômico e uma redistribuição de riqueza invejáveis, a sociedade norte-americana teria “falhado” em reconhecer a diferença, apresentando especialmente um déficit relativo às minorias raciais. O conceito de reconhecimento é de importância central no debate sobre a modernização. Para Charles Taylor a identidade de um indivíduo e de uma sociedade é formada pela presença ou ausência de reconhecimento. Essa noção implica reconhecimento entre iguais e dignidade, por oposição à honra, na qual é necessário que apenas alguns a possuam. A passagem da honra para a dignidade implica uma mudança na percepção da moralidade, que passa a ser vista em conexão com a autenticidade (subjetividade). E na medida em que se representa uma sociedade de maneira distorcida, essa representação pode se tornar uma ferramenta de opressão. Desfazer-se dessa imagem depreciativa é fundamental para qualquer sociedade. Com isso, o reconhecimento não é uma cortesia, mas uma necessidade vital (Jessé Souza, 1999: 51). Jessé vê que o desafio moderno é articular universalidade e diferença. A conquista da dignidade é importante, mas ela é apenas uma parte, o elemento generalizante. É preciso no indivíduo moderno ocidental a dimensão da autenticidade, que representa a busca de características específicas e particulares. É preciso o reconhecimento da diferença. Jessé aponta com isso a importância da rejeição de modelos societários exemplares e absolutos. Para o autor é preciso relativizar o atraso brasileiro. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Perceber o que temos a aprender com outros povos e sociedades demanda uma reflexão que deve ser simultânea à percepção daquilo que devemos rejeitar como impróprio. O primeiro passo para esse desiderato parece-me a tentativa de qualificarmos nosso atraso, torná-lo relativo, determinado (Souza, 1999:53).

Além da obediência a normas impessoais e da tendência ao associativismo horizontal, um outro aspecto da singularidade da cultura ocidental que expressaria a superioridade dessa cultura em relação às demais seria o processo de civilização. Esse processo teria uma dinâmica de luta entre estratos sociais, e depois entre nações, por recursos escassos, por poder relativo. Norbert Elias aborda o processo de civilização a partir da passagem da sociedade tradicional para a sociedade moderna em duas dimensões: uma socioeconômica, com a intensificação da divisão do trabalho e o advento da economia monetária, e outra política, com o processo de centralização a partir do advento do Estado Nacional. Com essas mudanças a sociedade ganha poder sobre o indivíduo. Isso também implicou a passagem de meios violentos para meios pacíficos, com o surgimento do Estado moderno, com um aparato jurídico, baseado em leis gerais e no monopólio da violência, gerando uma transformação do aparelho psíquico individual, no sentido da formação de uma economia emocional específica, na qual as emoções e os desejos seriam reprimidos. E é justamente a dinâmica do impacto dessa pacificação sobre as relações dos homens entre si que denotaria a singularidade do desenvolvimento ocidental. O importante em Elias, na leitura de Jessé, é que ele atenta para o fato de que o processo civilizatório não é único, a sua dinâmica depende do comportamento da luta de classes pela hegemonia material e ideológica no interior dos respectivos espaços nacionais, as distinções são dadas pela forma como o conflito entre grupos por prestígio e poder se deu no interior de cada sociedade. Com isso novamente é possível relativizar as noções de atrasado/moderno. Em Habermas Jessé Souza busca o conceito de esfera pública como o terceiro elemento constitutivo da modernidade. A esfera pública juntamente com o Estado e o mercado vão ser os elementos estruturantes das sociedades modernas. E Jessé critica a pouca atenção dada a essa esfera, pois com sua entrada a discussão do processo de modernização brasileiro supera o aspecto meramente técnico. Habermas aborda a constituição e a transformação da esfera pública. Ela é percebida como uma caixa de ressonância, em que os temas relevantes são problematizados e difundidos. É uma rede de comunicação de conteúdos e de tomadas de posição e opiniões, as quais são filtradas e sintetizadas formando “opiniões públicas”. Nessa concepção o direito tem um papel relevante, regulando todas as relações sociais, econômicas e políticas. Um aspecto que Habermas salienta é o de que a luta por influência na esfera pública pressupõe convencimento dos participantes. Com isso, a desigualdade estrutural do acesso aos meios de comunicação e às fontes de prestígio pessoal não retira a autoridade do público que assente, na medida em que o público de leigos tem que ser conquistado argumentativamente no contexto de uma esfera pública minimamente pluralista. Segundo Jessé O tema da esfera pública possibilita a discussão da questão do aprendizado coletivo no sentido também prático-moral como elemento principal do processo pedagógico pressuposto na democracia. Esse tema é de imensa atualidade para o desafio do aprofundamento democrático no caso brasileiro (Souza, 2000: 93).

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Com essa releitura Jessé pensa a possibilidade do processo de formação e modernização do Estado e da sociedade no Brasil serem abordados sob o signo da singularidade, da especificidade. Aqui o Estado, a sociedade e o mercado não se teriam constituído de maneira “clássica”, mas sim de forma peculiar. Isso não implica o argumento da continuidade da herança ibérica. Ao contrário, há uma ruptura, uma descontinuidade com Portugal. O Estado e o mercado no Brasil teriam se formado a partir de fora, na relação com outros Estados europeus, principalmente Inglaterra e França. Assim, argumenta contra a tese da herança ibérica e do patrimonialismo, que entende a inserção do Estado na regulação da vida social e toda política dirigida a partir do Estado como algo negativo, como patologia social. A “demonização” da ação do estado é para Jessé uma limitação, que coloca o modelo norte-americano - em que o estado é um fenômeno tardio - como regra geral do desenvolvimento ocidental. O autor entende a presença do Estado como algo positivo, sendo antes que patologia, uma singularidade brasileira. De acordo com o argumento do patrimonialismo o atraso brasileiro seria decorrência da permanente interferência do Estado. Jessé afirma que essa sociologia não percebe as transformações que ocorreram no país a partir da vinda da família real em 1808. Para esses autores, isso não passaria do mesmo fenômeno sob outro disfarce. Para Jessé 1808 representa, com a abertura dos portos, a criação de condições para a constituição de um mercado capitalista (estímulo à indústria e ao comércio, aumento da economia monetária) e de um Estado racional (melhoramentos urbanos, transporte público, instituição do ensino superior etc.). O Rio de Janeiro passaria da condição de uma pequena aldeia para a de uma das grandes cidades do globo. Em relação à idéia de que São Paulo teria sido uma tentativa de um desenvolvimento autêntico no Brasil, Jessé afirma que isso não passa de simbolização. E ele utiliza a leitura de Viana Moog (1974). Moog trabalha com a distinção dos tipos sociais americanos como o pioneiro e o yankee. O pioneiro é o pequeno produtor rural, temporalmente anterior, povoador e conquistador de terras. O yankee é o empreendedor capitalista, urbano. É dele a América hoje, mas persistiria no imaginário americano, a imagem do pioneiro como um mito. Com o brasileiro ocorreria o mesmo processo de mitificação do bandeirante. Embora, na realidade histórica, o bandeirante seja o oposto do pioneiro, predatório e extrativista, na esfera do símbolo ele representaria para o Brasil o que o pioneiro representa para os norte-americanos. Mas o principal alvo das críticas de Jessé Souza é Roberto Da Matta. Segundo Jessé, a idéia de identificar a gramática social profunda só faria sentido se Da Matta determinasse a hierarquia valorativa que preside a institucionalização dos estímulos que orientam a conduta dos indivíduos, o que exigiria a articulação entre valores e estratificação social. O autor afirma que em Da Matta não há classes e grupos sociais, apenas indivíduos e espaços sociais, sendo que não fica explícito como os principais elementos de sua “gramática social brasileira” (casa/ rua e indivíduo/pessoa) se combinam, e qual é o dominante. REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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Mas Jessé percebe que pela lógica da análise o elemento pessoal é o dominante. Nisso residiria o maior problema: essa interpretação implica que os brasileiros se comportariam de um modo inverso aos estímulos das instituições sociais fundamentais, como Estado e Mercado. Outro ponto criticado é a separação das esferas casa/rua, sendo que esses dois mundos teriam que estar articulados. Então Jessé questiona: qual é o conjunto de regras e normas que explicaria e constituiria a articulação entre eles? Para o autor, ao contrário do que pensa Da Matta esses poderes impessoais (Estado e mercado) não estariam circunscritos a locais específicos, penetrando na intimidade e na consciência de todos. E aqui ele se apoia em Habermas, que discute o fenômeno da publicização da esfera privada, que tem o direito como seu principal veículo. A separação artificial que Da Matta propõe, em que na rua há “subcidadãos” mas na casa, supercidadãos colocaria outro problema: o autor não considera a estratificação social, não leva em conta grupos e classes sociais. Observando que os grupos oprimidos enfrentam situações de subcidadania independentemente do lugar ou espaço social onde estiveram, Jessé provoca: Seria razoável supor que uma operária negra e pobre da periferia de São Paulo que, depois de trabalhar o dia inteiro e ter efetivamente fartas experiências de subcidadania na “rua”, apanha do marido em “casa”, sente-se uma “supercidadã”? (Souza, 2001).

Também a questão da corrupção (muito enfatizada no argumento de Da Matta) para Jessé não tem nada de especificamente brasileiro, afirmando que se aqui ela fosse maior do que em outros países, isso talvez se devesse a ausência de mecanismos mais eficazes de controle, e não a uma eficácia de padrões culturais tradicionais de personalismo herdados da vida colonial. Poderia ser talvez um déficit de legitimidade da política em relação à economia. Com isso o autor critica a tese patrimonialista e personalista da interpretação do Brasil. A tematização do nosso atraso, miséria e desigualdade não precisa do paradigma personalista para ser criticada. Essa idéia, primeiro gestada por pensadores em universidades e depois transformada em projeto político e prática social e institucional, reveste o brasileiro de hoje como uma segunda pele, com conseqüências e efeitos deletérios. O projeto político do personalismo, especialmente na sua versão patrimonialista, é o programa político hegemônico tanto dos ocupantes do poder quanto da oposição. Para o projeto político no poder, o programa é racionalizar o Estado de modo a estimular a competição e eficiência do mercado. Na oposição, o mote é a crítica populista à corrupção, esse dado estrutural da política moderna, que no patrimonialismo transformado em senso comum adquire contornos de especificidade brasileira. Os aparentes contendores lutam num mesmo campo comum de idéias (Souza, 2001).

Segundo a classificação de Jessé, Roberto Da Matta é ligado à visão faoriana da transmissão da herança patrimonial portuguesa ao Brasil, de um Estado centralizado e todo poderoso que inibiria o associativismo horizontal. Com isso ele desliga o autor da comum vinculação ao pensamento de Gilberto Freyre. Esse 340

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último autor propicia a Jessé os elementos para sua visão da singularidade da formação social brasileira e de sua modernização alternativa. Embora seja possível, e comum, a leitura de Freyre na linha da continuidade, Jessé propõe uma leitura alternativa. A questão principal em Freyre é o que é deixado de fora pela sociologia da inautenticidade: 1) a consideração da institucionalização dos valores do Estado racional e do mercado capitalista, que explicam a influência de novos valores na condução da vida prática dos indivíduos e 2) a questão da estratificação social, que pode esclarecer em benefício de quais estratos se efetivou a mudança de valores (Souza, 2000: 251). A leitura que Jessé propõe de Freyre é a da ambigüidade cultural brasileira, a partir do embate entre a tradição patriarcal e o processo de ocidentalização, através da influência da Europa burguesa que toma de assalto o país no começo do século 19. É justamente esse processo que os autores da sociologia da inautenticidade perceberam como uma mudança inautêntica, como modernização “pra inglês ver”. A possibilidade de uma visão alternativa vem de duas idéias de Freyre. Primeiro da idéia da sociedade colonial como sadomasoquista. Jessé critica a idéia de docilidade da escravidão, da democracia racial, mas se vale de outros aspectos da interpretação freyriana, como a ênfase na mestiçagem e na influência da escravidão muçulmana aqui, propondo a consideração simultânea da distância e segregação com a proximidade e a intimidade, denotando a especificidade da escravidão no Brasil. Jessé reconhece que esse tipo de relação entre privilegiados e oprimidos se mantém sob outras formas após a abolição da escravidão, como, por exemplo, na relação de dependência do coronelismo, mas faz a ressalva de que há uma transição da cultura personalista em favor dos valores impessoais modernos, principalmente os valores do mercado capitalista (Souza, 2000:260). A segunda idéia de Freyre é a da constituição da modernidade brasileira sob a forma peculiar de uma “europeização” que transforma o país a partir do século 19. A vinda da família real propiciaria uma nova forma de Estado, e com a introdução da máquina e a constituição de um mercado, traria mudanças ideológicas e morais. Propiciaria também uma maior urbanização, fazendo com que a hierarquia social passasse a ser marcada pela oposição entre valores europeus e burgueses versus valores antieuropeus do interior. A máquina é a precursora de um novo tipo de relação social baseada no mercado. Ela dá a possibilidade de mobilidade social a partir das necessidades abertas por um mercado incipiente em funções manuais e mecânicas, assim como das necessidades de um aparelho estatal em desenvolvimento. As funções manuais foram rejeitadas pelos brancos fazendo com que os mestiços pudessem afirmar seu lugar. Isso gera um embranquecimento da população a partir de uma configuração valorativa: é branco quem é útil ao esforço de modernização. Para Jessé a europeização do século 19 é a verdadeira revolução burguesa e modernizadora do Brasil. Ela denotaria a transição da cultura personalista em favor de valores impessoais da modernidade. O autor afirma que “ao contrário do que pensa Da Matta, desde a revolução modernizadora da primeira metade do século XIX, o Brasil tem apenas um código valorativo dominante: o código do individualismo moral ocidental” (2000: 254). Assim, no país não existiria nenhum dualismo valorativo, como pensa Da Matta. Essa modernização consolida-se primeiro em algumas cidades (Rio de Janeiro, Recife e São Paulo) e depois, já avançado o século 20, impõe-se também ao REVISTA OLHAR – ANO 8 – Nos 14/15 – Jan-Jul e Ago-Dez/2006

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campo. A conclusão a que Jessé chega é a de que o Brasil é um país moderno não no sentido da afluência material e das instituições democráticas, mas no sentido de que os valores predominantes aqui são os valores modernos e ocidentais da impessoalidade. Afirma o autor que “O que era antes conseguido pela violência subjacente e dependência do escravo em relação ao senhor, na relação sadomasoquista, ou pela subordinação psíquica do dependente formalmente livre em relação ao coronel, é levado a cabo hoje por mecanismos impessoais” (Souza, 2000: 267).

Superação do “dilema brasileiro”? O rompimento com a idéia de um processo de modernização inautêntico é a principal proposta de Jessé Souza em sua reinterpretação do dilema brasileiro. Ele aponta a necessidade de relativizar o atraso e pensar nas peculiaridades do processo de modernização do país. A constatação de que não há uma continuidade com a herança ibérica, havendo sim a influência de outros países na constituição do Estado e da sociedade brasileiros, assim como a superação da visão limitadora da ação do Estado em diversas esferas são aspectos muito significativos para a reelaboração da auto imagem que o Brasil constrói de si mesmo como nação. A interpretação do autor é a de que o país teria passado por uma modernização seletiva, inspirando-se especialmente na teoria de Taylor da dimensão da autenticidade, enquanto busca por características específicas e particulares. O marco da modernização do país é dado pela vinda da família real e pela abertura dos portos em 1808. Esse é identificado como o momento do desenvolvimento do Estado racional e do mercado competitivo no Brasil. Mas que Estado seria esse, quem seriam as pessoas a integrá-lo e dirigi-lo, quem usufruiria dessa máquina racional e quem teria acesso à participação nesse mercado são questões que não são discutidas a fundo pelo autor. Embora o argumento de Jessé Souza elaborado e rico, restam algumas indeterminações e alguns pontos vagos. O autor critica as visões de Faoro, Sérgio Buarque e Da Matta sobre o personalismo e o patrimonialismo, afirmando que, com a revolução burguesa e modernizadora ocorrida no país no século 19, o valor predominante passou a ser o código do individualismo moral ocidental, denotando a passagem da sociedade tradicional para a moderna. Mas como ressalta o próprio autor, isso não significa que a sociedade brasileira tenha se modernizado efetivamente em todas as esferas, pois embora o individualismo moral seja o código dominante, há outros códigos concorrentes. Para Jessé há ainda hoje a permanência de relações de dependência, típicas do coronelismo, como um vínculo de dominação que fundamenta as relações de um exército de párias urbanos e rurais com a classe média. Afinal, vai continuar sendo apenas aquele subordinado que adere aos valores do pai que será premiado com vantagens e favores. Com a modernização esse valores transformam-se,

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com certeza, de pessoais em impessoais, num movimento que vai do pai europeu tradicional representado pelo português até o pai impessoal do capitalismo trazido pelas nações européias na vanguarda do processo, mas algo da lógica inicial se mantém (Souza, 2000: 260).

Não se pode pensar a superação do personalismo na sociedade brasileira de forma completa, especialmente quando se observa o comportamento do eleitorado no país. As eleições aqui ainda têm um forte apego ao personalismo, ainda há o comportamento do coronelismo, da compra e venda de votos, entre outras características. E quando Jessé afirma que as relações de dependência transformaram-se imperando agora valores impessoais, atrelados à lógica capitalista, não fica explícito exatamente qual essa diferença, pois interesse econômico sempre existiu e busca por proteção e “apadrinhamento” é prática ainda corrente hoje. O próprio autor afirma que a lógica inicial se mantém, o que muda é apenas o autor da dominação, que deixa de ser o português (que, aliás, nuca teve exclusividade nessa esfera) passando a ser qualquer um que domine o capital ou outro instrumento de poder. Outro aspecto criticado pelo autor é a permanência do argumento do Estado patrimonialista. Mas ao criticar Da Matta (Souza, 2001) em seu pensamento sobre a dualidade da sociedade brasileira, afirma que a separação casa/rua e indivíduo/pessoa é típica de toda sociedade complexa e não atributo de uma sociedade tradicional (ou semi tradicional), como Da Matta pensaria o Brasil. Para Jessé a confusão entre público e privado é que seria uma característica típica dessas sociedades, como o caso brasileiro. E o que seria essa confusão senão uma das características principais do patrimonialismo? Aqui não se pretende negar as mudanças e mesmo avanços que ocorreram nas esferas política e econômica no Brasil pós-abertura política. Jessé está correto ao afirmar que se pensa muito sobre o país nos anos anteriores a 1964 e se estende à realidade pertinente a esse período para interpretar o Brasil atual. Mas a afirmação de que o personalismo foi superado já a partir de 1808 com a chegada de valores ligados ao Estado racional e mercado capitalista é aumentar demasiadamente a proporção do fenômeno. Jessé buscou questionar as interpretações da “sociologia da inautenticidade”, sugerindo que a problemática central a ser posta ao pensamento social sobre o Brasil não é a de discutir se o país é ou não moderno, mas sim a de procurar compreender e explicar como e porquê apesar dos avanços e da modernização empreendidos nessa sociedade a injustiça e a desigualdade social ainda são muito marcantes. O caminho a ser seguido pelo pensamento social brasileiro, sugerido por Jessé, é o de articular a relação entre valores e estratificação social. Mas ele não trabalha claramente como se daria essa articulação. Em alguns pontos o autor derruba a base da argumentação da sociologia da inautenticidade, mas a construção que levanta em substituição não é sólida o suficiente para se impor. Portanto, o dilema brasileiro não pode ser considerado superado.

BIBLIOGRAFIA ARGÜELLO, Katie (1999). O mundo perfeito: nem possível, nem desejável in Souza, Jessé. O Malandro e o Protestante (1999), Brasília: Editora UNB. CARVALHO, José Murilo. (1997). Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi.São Paulo: Companhia das Letras.

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DA MATTA, Roberto. (1997). A casa e a rua. Rio de Janeiro: Editora Rocco. MOOG, Viana. (1974). Bandeirantes e Pioneiros. Porto Alegre: Globo. SOUZA, Jessé. (1999). O Malandro e o Protestante- a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Editora UNB. __________ (2000). A Modernização Seletiva. Uma reinterpretação do dilema brasileiro.Brasília: Editora UNB. __________ (2001). A Sociologia Dual de Roberto Da Matta: Descobrindo nossos mistérios ou sistematizando nossos auto-enganos?, Revista Brasileira de Ciências Sociais, fevereiro de 2001, volume 16, nº 45. ___________2003. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG. WERNECK VIANNA, Luiz, CARVALHO, Maria Alice Rezende, MELO, Manuel Palacios Cunha e BURGOS, Marcelo Baumann. (1999a). A Judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/ Ed. Revan. WERNECK VIANNA, Luiz. (1999b) Weber e a interpretação do Brasil In: SOUZA, Jessé (org.) (1999). O malandro e o protestante – a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília: Editora UNB.

*Fabiana Luci Oliveira é Doutoranda em Ciências Sociais – UFSCar. Visiting Scholar no Departamento de Sociologia da Northwestern University.

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POEMAS

visão por arte de ártemis, eu, actéon, pasto de cães, de déu em déu aos deuses clamo paz – carne e capim, massa. fraca e bela como tudo que fede, a diva pele, no arrepio da água, eu, actéon, vi, e vi, e vi... eu sei: viver é destroçar sonhos. e vejo ainda e ainda ouço os dentes se unindo dentro da carne minha – os olhos meus-do-cervo vítreos – você cadela no vitral do lago, pantéon de iras, triste estirpe – cadeias do castigo – eu, actéon, vi, e vi, e vi, e vejo, e verei, e mais veria se mais nudez houvesse. ah, venham, cães, o que sei ninguém morde.

por Joaquim Antonio*

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rincão II ex ítaca isso odisseu rilho ilhado nestas itas dês que deusa palas de artes mil disse: dez libações dês não dei e ártemis busco o nada no hades em ex ítaca

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drama hefaístos ígneo trabalha o metal da vida. retorce ligas amorfas, formaliza formas. a espumante afro esposa dança madrepérola forjada d’águas, bonita, modelar modelo, sua musa solta membros perigosa. noutros ares plana ares. deuses escarnecem deuses e homens... a rede recorta perfeita, prende e arde. marca. não ria ainda. há sempre um deus pousado abutre no moirão da tua porteira destino.

o dispersa-nuvens ronca.

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farol os argonautas aportaram às seis. o rei, tropas, trouxeram perguntas, muitas e todas: a Beleza existe?, o Amor?, o Mar?, os Marinheiros? nós somos chegados!, responderam. eis-nos aqui, mitos encarnados. trazemos os segredos da viagem, a origem nos bolsos, a bússola de direções escassas, o mistério das feridas, o sabor do saber isso disseram. içaram velas e ao mar se deram nós miramos o horizonte dês então. esperança nenhuma. nada. miramos apenas.

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Dioniso

ah que venham as nove luas orbitais do monte carne e tu dioniso eu nem penteu turbinado baixe extático tua turba meu sexo turve cant’eu danc’eu tes’eu sob tensos braços gráceis tanger do sabor a fímbria sêmele hera de agave ter das feras a doce morte nos corpos todos ressoar de ninfas e meninos amo naxos? me levem a naxos! *Joaquim Antonio é coordenador editorial da Editora Annablume, São Paulo, SP, e autor de Torre inversa (ainda, poesia). São Paulo: Aix, 2005.

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