Revista Perifa #3: Especial América Latina

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Especial América Latina | 1


Solo da Aldeia Indígena Avá-Guarani Tekoha Ocoy, em São Miguel do Iguaçu (2009). A cor avermelhada é característica no solo encontrado no oeste do território brasileiro por conta da presença de sedimentos de Basalto, uma rocha gerada a partir de atividade magmática e rica em Ferro, que ao oxidar adota essa coloração. Fotografia por Paulo Silva.

Periódico Digital de Cultura Periférica Ano 1  |  Edição 3  |  Março/Abril/Maio de 2021

Expediente Editor/Revisor/Diagramador:

Pedro Silva Capa:

Fralvez @fralvez 2 | Revista Perifa


Índice

5 |  A Periferia na América Latina (Abya-Yala) e o diálogo com o 6 | centro Editorial: La Periferia somos nosotros Pedro Silva

Gerson Ledezma Meneses

8 |  O objetivo de toda viagem é a volta...: Breve relato sobre a 12 | Turnê sul-americana 2012 da banda Declínio Social O velho-novo normal nas Periferias latino-americanas Carlos Andrés P. Figueredo

Declínio Social

19 |  Breve biografia momposina de Nina Simone 25 |  ¡Ya tu sabes!: A cena de música latino-americana e 27 | caribenha em Foz do Iguaçu Entrevista Xeque Mate La Misión Verónica Acuña Aviles

Mano Zeu

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Poema Sem Título J.D.H. Cifuentes

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34 |  Candombe: mistura de rebeldia, liberdade e irmandade 38 |  Entrevista: 43 | Santiago Machita 49 |  O Parc National Historique (PNH-CSSR) no Haiti: o símbolo 51 | de liberdade desconhecido Registrando a fronteira que nos une Paulo Silva

Laura Sosa

Altaveyda Soriano

Loudmia Amicia Pierre-Louis

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As Periferias satélites Eddy

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Editorial

La Periferia somos nosostros Por Pedro Silva

Se a periferia segue sangrando, é pelas veias abertas da América Latina. Somos centenas de milhões, cada um imerso em seu próprio labirinto de solidão, forjado a muito mais que cem anos. São milhares de quilômetros entre becos e vielas, interligando incontáveis quartos de despejo. Da margem direita do Rio Grande à Terra do Fogo a cicatriz colonial marca as formas de existência e de socialização de toda a população do continente, favorecendo uns poucos e tentando subjugar a grande maioria. Segundo o relatório Panorama Social 2020 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL, um órgão da ONU), as pessoas que vivem em condições de pobreza representam um terço dos latino-americanos1. É esse contingente que segue na luta árdua e sangrenta de conservar e difundir o legado cultural que corresponde a nossa real condição, à herança de nossos ancestrais que segue desprezada e perseguida há mais de 500 anos. É com a intenção de contribuir com a manutenção desse legado que a Revista Perifa orgulhosamente oferece às quebradas do Brasil esta edição especial, onde trazemos um pouco do que compartilhamos com nossos irmãos das favelas, cantegriles, villas miseria e demais correlatos. E não se trata de essencialismo, ou da criação da imagem de uma periferia ideal, mas da busca de uma dimensão concreta da condição social latino-americana. No campo e na cidade, dos povos originários, quilombolas e ribeirinhos ao conjunto dos trabalhadores, do setor industrial ou de serviços, todos carregamos as marcas de séculos de marginalização e da negação de direitos fundamentais. Despossuídos de terra para morar e trabalhar, engrossamos o contingente dos que habitam e resistem nas 1 https://www.cepal.org/sites/default/files/publication/files/46784/ S2000967_pt.pdf

periferias urbanas e nas fronteiras agrícolas. Em realidade, resistimos a políticas de Estado que não reconhecem nossos próprios corpos, nossa individualidade e nosso direito à vida. Quantos choram a perda de seus entes queridos no Jacarezinho e na Colômbia enquanto escrevo este texto? Mas se a realidade é dura, a gente é ruim! Apesar de séculos de políticas públicas de extermínio, silenciamento e segregação, a Periferia se mantém ativa. Chegamos ao século XXI com formas de expressão que superam os limites da língua e compartilham experiências entre periféricos do mundo inteiro. Do Punk ao Hip Hop, passando pela Literatura, seguimos existindo, resistindo e nos comunicando. Talvez nós, brasileiros, ainda não tenhamos dimensão disso tudo, pois historicamente fomos impelidos a virar as costas para nossos irmãos latinoamericanos. Trazemos então um pouco do conteúdo que julgamos relevantes para nossa reconexão com a realidade que nos circunda. Das origens do Candombe no Uruguai, aos movimentos sociais que atuam na fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, passando pelo legado antirracista da história haitiana: a América Latina é uma grande periferia. Logo, podemos afirmar seguramente: a Periferia somos nós mesmos. Pois que essa edição especial da Perifa seja um dos tijolos da muralha dos versos do cubano Nicolás Guillén, “uma muralha que vá/desde a praia até o monte/desde o monte até a praia, bem,/além do horizonte”, construída por todas as mãos que, de fato, constroem o mundo, mas são obrigadas a lutar por migalhas para sobreviver. Talvez essa não seja a melhor contribuição, num sentido ideal, mas é o melhor que podemos oferecer no momento. Mas também estamos em paz com isso. Afinal, pode-se cobrar produtividade em meio ao caos? Especial América Latina | 5


Opinião

AAmérica Periferia na Latina (Abya-Yala*) e o diálogo com o Centro Por Gerson Ledezma Meneses

Amplos setores populares foram jogados para a periferia desde o período colonial, e especificamente depois das “independências” da classe branca criolla. Desde o começo do século XX, depois da abolição da escravatura, para o caso do Brasil, e após os anos 1930, para o restante da América Latina, formaram-se as favelas, barriadas, invasiones, villas miseria, habitadas por populações negras e mestiças, mas também por setores indígenas que, para o caso andino e mesoamericano, foram despossuídos de seus territórios. Quando pensamos em periferia, imaginamos imediatamente um centro, pois não existiria periferia sem centro. Esta ideia nos leva a fazer um percurso pela história da América Latina desde os anos de 1950 quando surgem as discussões sobre a dependência dos países latino-americanos, africanos e asiáticos, passando, assim, a outros debates em torno do que seria o desenvolvimento e o subdesenvolvimento. Várias correntes econômicas consideraram a universalidade do desenvolvimento, e até desenharam etapas pelas quais os diferentes países do mundo deveriam passar para atingilo, tal como na Europa e nos Estados Unidos. Dessa forma, estes debates criaram no imaginário coletivo a ideia de que existe um centro e uma periferia, esta, localizada no chamado terceiro mundo, com suas próprias periferias: zona rural, favelas e bairros pobres das zonas urbanas. A descrição das periferias foi amplamente retratada na literatura que descrevera favelas, conventilhos, subúrbios, inquilinatos; a pobreza foi mostrada a partir, também, das teorias da dependência de países subdesenvolvidos das nações ricas ou centrais. Ser pobre, ser periférico,

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favelado, significava não possuir os bens materiais e culturais que possuíam as pessoas dos centros. Assim, com algumas exceções, entendeu-se que os países pobres ou periféricos deveriam empreender um longo caminho para o desenvolvimento, e para isso criaram-se receitas econômicas como a substituição de importações, industrialização, blocos regionais, dentre outras, até formulas neoliberais como governabilidade, austeridade, disciplina fiscal, etc. A utilização destas fórmulas levaria os países pobres e periféricos a parecer-se ou ser igual aos países centrais. Mas a busca pela realização desses objetivos não apenas tinha a ver com receitas econômicas, mas também culturais, pois, ao final, a dependência não se baseava apenas em questões de cunho econômico, porém da cultura, tal como Anibal Quijano propunha, ainda nos anos da teoria da dependência. Parecer-se com Europa e Estados Unidos virou anseio desde que Iturbide, Simón Bolívar, San Martin e Pedro I proclamaram a “independência” das elites brancas do domínio colonial. A consciência de querer alcançar o desenvolvimento dos países periféricos perante os países europeus e dos Estados Unidos, levou as ciências sociais, os intelectuais e as Universidades latino-americanas a estabelecer teorias e fórmulas para retirar da miséria as periferias das cidades; criando, dessa maneira, saídas à pobreza, à falta de educação, de cultura, saúde, e outros serviços públicos. O combate à miséria e à pobreza nas periferias foi proposto também por projetos eurocentrados. Havia que romper com o sistema capitalista para dar passo ao socialismo. Nas mesmas periferias surgiram programas que tentaram


acabar com as mazelas do capitalismo, criaram-se juntas de ação comunal, formas de acesso à saúde, desde uma perspectiva tradicional e até bancos gerenciados pela própria periferia, tal como aconteceu em Lima nos anos de 1960 e 70. No século XX o populismo surge para trabalhar encima dos problemas advindos da formação das enormes periferias; depois de 1950, nas discussões em torno da pobreza, subdesenvolvimento, centros e periferias, muitas pessoas, todavia presas ao eco populista, especialmente mestiças, empreenderam o árduo caminho do progresso ao encontro da modernidade e do bem-estar social e econômico; fechar a brecha que os separava da classe média foi o objetivo. Esses setores da população das periferias não vislumbraram que a via do progresso não os levaria a parte alguma, a não ser ao encontro com uma ilusão, com um imaginário de superação, e ao abandono da periferia para converter-se em centro. A proposta ia n mesma mão que o capitalismo, o mesmo sistema que os havia empurrado para esse lugar. Ter casa de alvenaria, carro e estudo, bens materiais e cultura eurocentrada, poderia servir de prova da saída da pobreza. O sistema-mundo capitalista, por meio das universidades, oferecia também o caminho a ser trilhado para chegar ao centro, os cursos de graduação transformariam periféricos em médicos, engenheiros, advogados, professores, etc.; cursos de especialização, mestrado e doutorado como mecanismo para pertencer ao centro. Saúde pública, como o sistema único de saúde brasileiro e o sonho do carro popular: medidas perigosas para os setores mestiços latino-americanos, pois os distanciariam definitivamente das lutas periféricas, lugares onde a maioria de pessoas nunca teria acesso a esses supostos benefícios. Os setores negros e indígenas teriam que esperar até o século XXI, para o caso do Brasil, para serem incluídos no sistema de cotas como forma para poder ter acesso ao ensino público universitário. Desde o final do século XX ouvimos

falar de inclusão como forma de a periferia chegar ao centro. Universidades públicas, usadas como se fossem máquinas para branquear pessoas; a estudantes negros, pardos, indígenas e pobres, se lhes obriga a assimilar um currículo eurocentrado, que os branqueia e prepara para repetir o discurso do colonizador, caso não prestem o devido cuidado. Sobre esse problema, chama a atenção o professor da UNB Jorge Carvalho; não adiantam cotas, sem cotas epistêmicas, afirma; os mestres indígenas e negros devem ser convidados nas universidades para dar a conhecer os saberes ancestrais, e, dessa forma, estabelecer equilíbrio entre saberes tradicionais e ocidentalizados. Este como outros processos de inclusão, como a pauta feminista burguesa, alguns movimentos sociais, a saúde pública, com suas práticas eurocentradas, as lutas LGBTQIA+..., muitas das quais tentam incluir-se no discurso heteronormativo: direito a casamento, adoção de filhos, levar aliança no dedo e poder beijar na rua, são alguns exemplos do que poderíamos chamar de inclusão perversa que o sistema capitalista ajuda a fortalecer por meio de várias das suas instituições e grupos aliados, como a maioria da intelectualidade das universidades públicas e privadas da América Latina. Porém, e finalmente, queremos destacar a luta da periferia por superar seus problemas desde sua própria óptica, por meio do resgate e manutenção da ancestralidade, da ligação com a natureza e volta ou resgate da animalidade, superando o especismo e enfrentando o racismo, num modus operandi de relacionar especismo, racismo, sexismo, classe social, gênero, nacionalidade e regionalidade. Lutas decoloniais que levam a redefinir a periferia, pois na medida dos combates, da re-existência, da luta, estas comunidades recolocam a periferia no centro, mas num outro centro que vai ao encontro com a ancestralidade de povos indígenas e negros para, assim, facilitar o trânsito entre centro e periferia.

Gerson Galo Ledezma Meneses é colombiano, da cidade de La Sierra, no departamento de Cauca. Doutor em História Social pela Universidade de Brasília, atualmente é professor no curso de História da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

* “Abya-Yala” é um termo utilizado pelo povo Kuna, originário da Serra Nevada, no norte da Colômbia, que pode significar “Terra Madura”, “Terra Viva” ou “Terra em Florescimento”. É um termo que vem sendo utilizado como autodesignação por diversos povos originários, em contraponto à “América” (Nota do Editor). Especial América Latina

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Opinião

O velho-novo normal

das Periferias

latino-americanas Texto e imagens por Carlos Andrés P. Figueredo O novo normal vai vir, mas é só questão de tempo. Porém, ainda não sabemos quanto exatamente. O vírus é um ente vivo e luta para sobreviver. Sua subsistência é reprodutiva, expansiva, extensiva. Em breve todos teremos aquela lembrança que dividirá nossa vida em duas fases: antes e depois da pandemia. Quando ela começou eu ainda não estava na cidade de La Paz. No início do período de quarentena boliviana me encontrava na floresta, na colheita de cacau silvestre em território indígena. Laranja, lima, limão, toronja, tangerina e gengibre da rosa foram as minhas primeiras opções abundantes de remédio caseiro na primeira onda de contágios. Na minha cabeça eu ainda não contraí a doença. Na segurança do bosque de cacau nativo, não conseguia me sentir sozinho. Enquanto trabalha naquele bioma, em meio à colheita, escutava e via mamíferos de distintas espécies, aves, grilos, rãs. Incessantes encontros com diversos corpos de formigas, cupins, mosquitos, borboletas e abelhas. É claro que sentia a aura da floresta, das árvores, com seus ramos, folhas, flores, raízes e seus troncos que me auxiliavam com a escada e o meu garfo de colheita. Perto do rio, os peixes, e os temidos jacarés. Aliás, sempre tive medo das onças. Já estava a vários meses nessa região tropical, bem depois daquela guerra entre ricos e pobres no golpe contra o Estado Plurinacional da Bolívia, onde os mais abastados brigavam pelo controle estatal, apoiados pelas elites mundiais que querem se apropriar do novo eixo do lítio de forma truculenta e criminosa.

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O mundo é muito bonito, mas também guarda muita maldade, egoísmo e ignorância. O lado maldoso é aquele que, ainda reconhecendo a beleza da natureza e do meio ambiente, continua a explorar os recursos naturais ate esgotá-los, contaminando o planeta. Do lado egoísta, nessa lógica de acumulação, as pessoas que mais tem, querem ter mais e querem distribuir menos para a sociedade, pros trabalhadores e pras pessoas socioeconomicamente mais vulneráveis. E aqui falamos dos patrões, dos empregadores e dos grandes proprietários que contratam ou subempregam a mão de obra de nós, os pobres, despossuídos e periféricos. Essa situação vai se perpetuar em quanto o povo continua lutando para botar no poder governos populistas de esquerda e de direita, grupos políticos que fazem seu show midiático sem nenhum tipo de compromisso com a massa dos trabalhadores e moradores da periferia. O populismo é um fenômeno que tem deixado marcas nas favelas. Uns tem sido bons para garantir uma certa cidadania no aceso a bens e serviços básicos, mas não causaram uma mudança estrutural na sociedade ao ponto de fazer com que essas conquistas sejam permanentes. Com a chegada de alguns governos populares ao poder, a fome ausentou-se da favela. Porém, podemos perceber que aos poucos ela retorna. A saúde, que tinha melhorado, também voltou a piorar. A educação abriu as portas nos distintos graus de formação, mas novamente já tirou a esperança de muitas pessoas jovens que gostariam de se profissionalizar. Os auxílios


Transportando o Cacau para estudantes desde a creche até as universidades no Brasil tem potencializado o progresso científico e tecnológico. Temos que lutar por governos que sustentem essas medidas, mas ainda mais para alcançar e consolidar conquistas no território da autonomia social. A questão não é só apoiar um líder carismático. A periferia pode e sabe comparar propagandas populistas de governo com a sua realidade social mais imediata. Pensando sobre o que conheço das periferias brasileiras, as pessoas identificam as imposições violentas, mas ainda não conseguem se libertar das amarras populistas que massacram a política social em seus territórios. Podemos dar cor às esperanças progressivas do povo da periferia. O que não podemos é cair na espera da desgraça decretada. A realidade social latino-americana passou por mudanças sensíveis, porém relativas nos últimos anos. Desde a primeira década de 2000 os mais pobres tiveram acesso a alguns direitos historicamente negados e até mesmo até a alguns pequenos privilégios dos mais ricos, como viajar de avião. Tudo fruto de políticas com cunho de esquerda, que foram boas para tirar, ao menos momentaneamente, muitas pessoas da miséria e do analfabetismo. Porém, sem que os governos de esquerda tomassem as medidas estruturais pertinentes, muitas pessoas que conseguiram esses acessos hoje já não o possuem mais. Um

exemplo muito atual é a diáspora venezuelana no continente e no resto do mundo. Há ainda uma perspectiva de agravamento dessa situação, sobretudo com o desemprego decorrente da ampliação das atividades remotas virtuais. Isso em uma América Latina com tanta dependência tecnológica, com carência de acesso a níveis básicos dessa tecnologia e possuindo uma taxa crescente de cientistas desempregados em suas respectivas áreas. Nesse processo, a presença da violência sofreu uma mutação, tal qual aquela que deu origem ao COVID-19, intensificando os fenômenos de repressão policiais, agressões estruturais como a fome, o descaso com o sistema de saúde, a interrupção das atividades educativas. O voto popular da periferia deveria, portanto, agora mais do que nunca, se voltar para a defesa da vida e dos direitos. É verdade que a população periférica recentemente retirou o apoio à esquerda progressista e se voltou para a direita carismática. Porém, agora é hora de refletir e reconhecer que as coisas vão de mau a pior. Devemos nos conscientizar, para não apoiar maus governantes e lutar por um projeto político que não seja nem social-democrata, mas que tenha um compromisso real com mudanças estruturais, e nem um aberto defensor dos interesses dos poderosos, que não tenha nenhum sentido equitativo na partilha dos recursos e riquezas com a favela. As mudanças sociais e políticas sempre são produto de grandes acontecimentos. Fazendo menção ao início da pandemia, muitas pessoas pensaram: “Tomara que agora sim dê certo e mude o mundo, e cessem as violentas injustiças. Tomara que se erradiquem todas as formas que reproduzem a desigualdade e a pobreza, que o mundo comece a ser mais solidário no respeito pelo próximo. Que a vida seja mais feliz após a superação social do sistema. Tomara meu Deus, uma nação ‘sul solidaria’.” Enquanto isso, aqui mesmo na América Latina, na experiência nacional venezuelana, o processo de construção da autonomia pelas periferias e das lutas pela soberania popular, o povo já mantinha estratégias contra uma outra epidemia: a de sanções internacionais, parecidas com aquele criminoso bloqueio estadunidense direcionado a Cuba. No assombro dessa pandemia que já tem abalado o mundo; a emergência pegou a uma Venezuela em estado crítico, com baixas reservas de produtos alimentícios, nas areas médica e farmacêutica, nos produtos de higiene pessoal e em suporte tecnológico em geral. A este fenômeno os intelectuais poderiam chamar, e com toda liberdade de “presença totalitária do imperialismo na América”. Através da filmagem do documentário “Ruídos del Alba” na periferia de Caracas, conheci parcialmente a experiência dos Conselhos Locais de Abastecimento e Produção (CLAP), que Especial América Latina | 9


Ajudando a fazer uma cozinha perante a epidemia de sanções internacionais que impactaram o abastecimento e a distribuição de itens básicos no país. A insurgência dessas organizações sociais de base datam desde o ano de 2017. Apesar das melhorias que precisam ser feitas para garantir sua eficiência, elas dão vida a redes comunitárias de logística desde as periferias com certo grau de controle social comunitário. Com o choque imposto à sociedade em nível global, a população mais pobre, aquela que habita as periferias urbanas de Caracas, passaram a ver mais claramente as contradições do conjunto da sociedade venezuelana. Até mesmo nas áreas nobres, em bairros e condomínios fechados de classe média, a escassez de produtos, ocasionada pela falência logística nacional causou grandes transtornos e os CLAP chegaram para auxiliar-lhes. O que o povo venezuelano enxergou foi a consigna que diz: “Sólo el Pueblo salva al Pueblo”, equivalente ao “Nós por nós” em português. Se formos para a atitude latino-americana tradicional de jogar a culpa unicamente no governo, provavelmente não estaríamos tão errados. Mas por outro lado, temos que dar um grande peso para a formação histórica do nosso continente e sua consequente posição dependente, tanto política, quanto cultura e economicamente falando. Com certeza a força do bloqueio estadunidense ajudou a fazer com que a Venezuela tenha se tornado uma periferia mundial na área do comércio

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internacional, como ocorre com Cuba. Os imperialistas, contrariando do direito internacional e ignorando os direitos humanos da nossa população, geralmente lançam mão da violência de uma forma sutil, porém não menos cruel, que atinge diretamente as famílias e pessoas socioeconomicamente vulneráveis das periferias em geral. Sobreviver a tais agressões têm significado um colossal sacrifício humanitário, e é importantíssimo falar das pessoas que tem que cruzar muitas fronteiras caminhando para procurar um futuro melhor para ajudar os familiares que ficam no país e até para salvaguardar a própria vida. Igualmente é vital dar visibilidade às pessoas que não partem. A propaganda neoliberal mundial quer tirar o direito que a resistência popular do povo bolivariano têm de aparecer nas TVs, nas rádios e nos jornais, físicos e virtuais. É legítimo reconhecer a população venezuelana por sua luta cotidiana no processo de manutenção da soberania nacional. Dentro do mesmo regime social existem pessoas, famílias e comunidades de periferia resistindo contra e a favor do governo, porém todos surgidos a partir da experiência catastrófica das sanções internacionais da OTAN. O mundo precisa compreender que a extrema direita nacional venezuelana, em conflagração com as elites internacionais do petróleo, tiraram as refinarias que eram

Os pobres também viajam de avião.


No Hostel El Carretero, La Paz propriedade do país sul-americano nas costas dos EUA. As pessoas nas periferias do mundo precisam saber que tiraram, junto com a Inglaterra, as reservas minerais do povo venezuelano, o ouro do tesouro nacional depositado em Londres. Sem o respeito ao direito inalienável que os trabalhadores nos territórios indígenas e originários, nas regiões camponesas e nas zonas periurbanas têm à propriedade social das empresas nacionais. O “novo normal” das periferias venezuelanas, com certeza, vai continuar com o genocídio das populações pobres, que já se encontra em pleno andamento. Ainda que em crise, a Venezuela vem sendo um dos primeiros países latino-americanos que defenderam o acesso à vacina contra o COVID-19. As (e os) profissionais venezuelan@s, nas pegadas da revolução médico farmacêutica cubana, vêm desenvolvendo protocolos e medicamentos para tentar erradicar a doença. A ação mediática na América Latina tem se polarizado na compreensão e na divulgação do contexto nacional venezuelano. É aqui onde cabe a ênfase no papel do jornalismo alternativo como ferramenta para a defesa dos nossos

interesses como classe trabalhadora nas periferias do mundo. Se a gente é fruto de onde vem, também somos um pouco de onde chegamos ao mexer na massa, na terra, e garantir frutos para nós, enquanto povo periférico. Vocês, que estão lendo o relato, devem se perguntar: “E como é que faz esse pessoal nômade nesse momento de casos?” Aliás, tem monte de “viajeros”, como eu, pessoas que viajam constantemente, sem um destino definido, que foram pegos no meio do caminho. No meu caso, sem as minhas trilhas pelo continente sulamericano sinto uma imperiosa necessidade de me movimentar, apesar de arrastar as correntes da opressão asfixiante nessa prisão econômica global. Somos trabalhadores, mas, apesar de no capitalismo nossa força de trabalho ser o produto mais valioso, infelizmente, o mundo ainda não é todo nosso. Numa última reflexão, sobre a Bolívia, quero expressar a grande luta dos povos originários pela constituição das suas próprias prefeituras indígenas, na busca por um desenvolvimento econômico, sustentável e preocupado com a preservação ambiental, desde a área agroflorestal ate a área mineração.Também segue a luta pelo direito à autonomia comunal, ancestral e cultural, sendo devidamente reconhecidas as diversas nações indígenas que habitam o território boliviano. Persiste a ideia de que todos temos de trabalhar e viver bem. Os povos indígenas, camponeses e periurbanos, possuem demandas muito semelhantes, razão pela qual a luta deve ser conjuntamente articulada em integração social e cultural. Por enquanto minha “base de operações” é o Hostel “El Carretero”, na cidade de La Paz, fazendo umas moedas nos semáforos com malabarismo, na caminhada vendendo doces e artesanatos de arames em metal branco, cobre e bronze. Mais especificamente flores artesanais. Atividades produtivas as quais tive que conciliar com a tarefa de escrever para o povo que lê esta revista. Sigo com planos de voltar para Caracas no longo prazo. Em médio prazo penso em ir para São Paulo e no curto para Foz do Iguaçu. Tudo depende da evolução social e econômica desse contexto pandêmico.

Carlos Andrés P. Figueredo é um cientista social que atualmente se dedica à literatura poética e às artes de rua, circenses e do artesanato. Nascido em Caracas (Venezuela), atualmente transita pela cidade de La Paz, seguindo de perto os processos políticos bolivianos, em paralelo com os da América Latina em geral. É, também, membro do coletivo paranaense “No Hay Fronteira” e se mantém ativo no movimento Hip-Hop.

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Memórias

O objetivo de toda viagem

é a volta... Breve relato sobre a Turnê Sul-americana 2012 da banda Declínio Social Por Declínio Social Nos dois primeiros meses de 2012, a banda hardcore/ punk Declínio Social1 realizou uma viagem por quatro países sul-americanos (Argentina, Chile, Peru e Bolívia): a “Gira Sudamericana”2. Neste texto traremos algumas reflexões e recordações dessa experiência que foi muito marcante tanto para a banda, no que se refere aos aspectos coletivo e musical, quanto para a vida pessoal de cada um de seus integrantes. A Declínio Social foi formada no fim de 2002 por amigxs atuantes da movida punk anarquista/antifascista da cidade de Divinópolis/MG. A ideia surgiu da nossa necessidade de fazer um som rápido e direto, influenciado por bandas punks brasileiras das décadas de 80 e 90. Além disso, queríamos trazer à tona concepções e mensagens políticas em nossas letras, utilizando da música como uma forma de resistência aos padrões e imposições culturais, buscando expor sentimentos, angústias e lutas com as quais nos identificamos. Além do conceito musical e político, as principais propostas da banda eram difundir ideias, compartilhar materiais e vivências, viajar, conhecer novas realidades, espaços e movimentações, além de estabelecer vínculos, amizades, contatos e afinidades. Desde o início da Declínio Social já estávamos envolvidos de alguma maneira em várias frentes de atuação e movimentos sociais, como rádios comunitárias, grupos de estudos, espaços autônomos, centros comunitários, eventos solidários e associações de moradores das periferias da 1 Nosso trabalho pode ser acompanhado por meio de nossas páginas no Facebook e no Bandcamp: https://fb.com/decliniosocial e https://decliniosocial.bandcamp.com). 2 No YouTube há um vídeo da música “Amordaçado” com outras imagens da viagem.

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cidade. Também sempre mantivemos contato e um intercâmbio de materiais e informações com outros grupos semelhantes, em todo o Brasil e também de outros países. Ao longo dessa trajetória podemos destacar algumas iniciativas que se destacaram, como o Coletivo Pulso (2006-2019), a ocupação Iuerepoma Poty (2010-2011) e outros grupos e espaços que foram surgindo. A partir desse contato com outros coletivos, bandas e individualidades, dentro de um contexto de contínua construção e desconstrução, vivências em espaços autogestionados, afirmação de amizades, vínculos e aprendizados, foi amadurecendo uma ideia de longa data: realizar uma turnê por outros países da América Latina. Nossa intenção era conhecer e vivenciar mais de perto as cenas dessas regiões e

O Fiat Elba que cruzou a América do Sul


seus diferentes contextos, compreender outras realidades, formas de resistência e lutas que, mesmo que nos afastem pela distância, por fronteiras geográficas ou barreiras de outros tipos, em essência nos aproximam. Não só dentro dos movimentos alternativos, mas na sociedade brasileira em geral há uma tendência muito forte ao conhecimento e à valorização de influências tanto musicais, quanto culturais e estéticas advindas da Europa ou dos Estados Unidos. Isso faz com que várias manifestações sinceras de outros países latinoamericanos não tenham o devido (re)conhecimento. Grande parcela da população do território denominado “brasileiro” não se reconhece enquanto latinx-americanx, por uma série de motivos. X brasileirx vê a América Latina como algo distante e esse fator, infelizmente, se vê presente também em alguns movimentos de contestação. A viagem foi pensada a partir dos anseios de compartilhar e conhecer formas de organização e uma parte do cenário musical e político autônomos de alguns dos países vizinhos. Acreditamos que é necessário valorizar essas movimentações, que tanto historicamente, quanto culturalmente, são muito mais próximos da realidade brasileira do que imaginamos. Realidades marcadas pelas consequências do colonialismo presentes no cotidiano, o extrativismo, a globalização e as políticas neoliberais, que trazem enormes efeitos, como a exclusão de grupos sociais, marginalização, repressão, opressões, intolerância, miséria, violência e desigualdades. Mas por outro lado, trazem também lutas por autonomia e fortíssimos exemplos de resistência cotidiana. O Punk, nesse sentido pode ser compreendido como um dos instrumentos que trazem à tona os anseios e vozes dxs marginalizadxs e periféricxs. Não só através da música, mas também de outras formas de expressão, como ilustrações, publicações independentes, teatro, encontros, espaços comunitários, feiras e diversas manifestações artísticas. No início de 2011 a ideia de excursionar pela região

mencionada ganhou mais força e, a partir de vínculos estabelecidos na caminhada da banda, foi possível organizá-la no ano seguinte. Foram vários meses dialogando, buscando contatos, analisando mapas e rotas possíveis, distâncias, custos, burocracias, logística e outros detalhes. Inicialmente a viagem seria feita de ônibus, mas faltando pouco mais de um mês da data prevista para a saída, um amigo disse que gostaria de acompanhar e que estava com um carro com problemas mecânicos parado há muito tempo, mas que seria possível consertá-lo e fazer toda a rota. Esse amigo tinha grande conhecimento de mecânica e ele mesmo poderia fazer os reparos. Apesar da “loucura”, visto que a rota determinada ultrapassava 17.500 quilômetros e que, além de estar por meses parado, o carro era um modelo do ano de 1988, nascia assim a “Declínio Social – Gira Sudamericana - 2012”. A partir daí, foram várias madrugadas planejando/ replanejando a rota, procurando contatos, criando materiais da banda para levar, reunir outras produções autônomas (zines, publicações, panfletos, livros, camisetas, CDs e vinis de bandas de amigxs, patches, etc) para distribuir, trocar, difundir e de alguma maneira ajudar nos custos da viagem. Além do material citado, nas bagagens tínhamos os instrumentos, pouca roupa, barracas, algum alimento, anotações e informações sobre os caminhos a seguir, mapas impressos (não tínhamos GPS), muita vontade, ansiedade e inspiração para enfrentar o que viesse na sequência. A data prevista para partirmos era o dia 26/12/11, pois a Declínio Social tocou e ajudou na organização da 8ª edição do festival “Aqui Não Existe Natal”, em Divinópolis, mas o carro não ficou pronto a tempo. Com isso, só foi possível iniciar a viagem no dia 29, por volta das 15hs. Partimos então com destino a Buenos Aires, na Argentina, onde a banda se juntaria a um membro que já vivia a algum tempo na cidade e daí rumaríamos para a nossa primeira atividade, que estava marcada para o dia 06 de janeiro. Por problemas mecânicos Especial América Latina | 13


Declínio Social em ação - Rancágua, Chile com o automóvel a viagem durou cinco dias, e nesse trajeto os banhos eram tomados em rios e lagos, o alimento feito em um fogareiro improvisado e para dormir, barracas montadas em beiras de estrada. Em meio a essa experiência intensa, regada a muita chuva, cruzamos a primeira fronteira, entre Brasil e Argentina, com passagem pelos municípios de Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú. Chegamos em Buenos Aires no dia 03/01 e nossas primeiras impressões foram fortemente marcadas pela quantidade de manifestações políticas nas ruas, chamadas pelxs argentinxs de “marchas”. Com a banda completa, começaram os ensaios e a nosso primeiro compromisso, numa sexta-feira, 06 de janeiro, que ocorreu em San Miguel, cidade da região metropolitana. Ali, de fato, começou a turnê. Além de San Miguel estava marcada uma atividade para o dia seguinte, sábado, em solidariedade a presxs políticos anarquistas em uma ocupação no bairro de Mataderos, que infelizmente foi cancelada poucas horas antes do horário marcado. No domingo tocamos em Grandbourg, zona norte da região metropolitana de Buenos Aires. Durante esses dias foi possível conhecer alguns espaços, centros sociais ocupados (okupas), bibliotecas autônomas e bandas bastante atuantes do cenário punk/anarcopunk da cidade. Sempre com uma ótima receptividade, intensa troca de ideias, materiais e afinidades com xs compas dali. O próximo destino era Mendoza, cidade cravada na cordilheira dos Andes. Chegando lá nos deparamos com atos

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em denúncia aos efeitos da mineração e lutas em defesa da água, ali também houve uma grande troca de informação e conhecimento. Nosso som foi em uma cidade próxima, chamada Tunuyan, e ao término voltamos para a estrada, sem dormir (somente o motorista dormiu) para cruzar a fronteira entre a Argentina e o Chile, pois nossa próxima apresentação seria em Santiago. Após todo um processo burocrático de cruzar a fronteira, o carro passou por um problema mecânico e tivemos que empurrá-lo para passar ao lado chileno. Após solucionar o contratempo seguimos viagem e, após algumas horas, chegamos na capital. Nenhum de nós havia estado em Santiago antes, então demoramos um pouco para encontrar a okupa onde tocaríamos e ficaríamos, pois só possuíamos o endereço, sem GPS e com conhecimento zero da cidade. Depois de rodar

Punk’s bed - San Miguel, Região Metropolitana de Buenos Aires.


muito, chegamos em um quarteirão vazio, com nenhum ruído ou movimentação, onde havia uma construção que contava somente com um grafite enorme com uma caveira, frases anarquistas e bandeiras negras. Imediatamente pensamos: só pode ser aqui! Quando batemos no portão, um dxs compas responsável pela organização da atividade nos recebeu e ao entrar nos deparamos com uma cena surpreendente: muita gente. O galpão estava lotado! Várias bancas de materiais como zines, CDs, LPs, camisetas, patches e comida vegana, com uma banda metalpunk tocando. Uma energia incrível! Muitxs amigxs tinham nos falado sobre a cena chilena, com suas as bandas, a organização, o nível de politização, as casas ocupadas (okupas), o ativismo e a resistência, mas vivenciar tudo isso foi bastante inspirador. Após Santiago, o destino era o sul do país: Temuco, território mapuche. Na sequência cruzamos o país pela Ruta 5, tocando na região central, nas cidades de Curicó,

Rancágua e Valparaíso, passando pelo deserto de Atacama até a cidade de Arica, já na fronteira com o Peru. A passagem pelo Chile foi muito intensa. Mais uma vez: recepção incrível, grande organização, eventos lotados, muitos materiais, pessoas bastante ativas, interessadas e politizadas, espaços fantásticos. Ao todo foram 15 dias no país, onde participamos de atividades em oito cidades: Santiago, Temuco, Curicó, Rancagua, Valparaíso, Copiapó, Antofagasta e Arica, quase todas realizadas em okupas. Após a última atividade, que ocorreu em um domingo, passamos a noite acampados em uma praia e, no dia seguinte, rumamos para a fronteira com o Peru. No Peru foram seis apresentações: duas em Arequipa, três em Lima e região metropolitana e uma em Cajamarca. Ficamos por lá cerca de 20 dias e boa parte do deslocamento dentro do país foi feita de ônibus. Conhecer a realidade peruana também foi uma grande experiência. Ao atravessar a fronteira entre Chile e Peru fica nítida a mudança, sobretudo as marcas

Ao vivo na Casa Tiao - Valparaíso, Chile. Especial América Latina | 15


e a presença da cultura e da população originária (indígena). Fomos recebidos por grandes amigxs que nos deram todo o suporte. Compartilhamos bons momentos, vimos ótimas bandas em atividades organizadas em associações e nas periferias das cidades. Tivemos contato com muitas produções no estilo “faça você mesmx” e nos chamou a atenção a sinceridade e a força das pessoas envolvidas na cena em organizar as atividades para mantê-la viva. Como foi o país onde ficamos mais dias, foi possível conhecer um pouco mais do cotidiano e das lutas das populações periféricas e originárias, que travam lutas diárias de resistência real contra as formas de opressão do sistema capitalista.

outros países foi incrível conhecer um pouco da realidade do país, suas contradições e lutas, principalmente as dos povos originários, uma constante na América Latina. Foi muito significativa toda a vontade, o interesse e a receptividade dxs companheirxs que encontramos pelo caminho e que faziam o possível e o impossível para manter as atividades. Após esse intenso período de dois meses viajando, vivenciando e compartilhando grandes experiências era hora de voltar a nossas casas e colocar em prática tudo que o que aprendemos a partir de um turbilhão de reflexões. Tanto as questões positivas quanto as negativas e todos “perrengues” que passamos, com certeza, fortaleceram cada umx de uma

As bandas Declínio Social e Autonomia - Lima, Peru Após a inspiradora estadia no Peru foi hora de partir para a Bolívia, onde estavam marcadas atividades em La Paz, Sucre e Potosi, sendo que as duas últimas foram canceladas às vésperas. Além destas, conseguimos agendar um ensaio aberto feito às pressas em um estúdio em Santa Cruz de la Sierra. Na Bolívia a realidade foi um pouco diferente: uma cena menor, com menos pessoas envolvidas e mais dividida, poucos espaços para atividades, mas bastante sincera. Nossa passagem por lá foi mais curta, mas, ainda assim, como nos

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alguma maneira. Os fatores que mais nos impactaram nessa viagem foram a cooperação, a receptividade, o interesse das pessoas, a resistência e a persistência, a solidariedade, a autonomia e o espírito vivo e ativo do “faça-você-mesmx”. Foram bem importantes também os diálogos cotidianos com as pessoas de cada lugar, as refeições coletivas, os passeios e a abertura honesta e solidária de pessoas que não nos conheciam e mesmo assim compartilharam suas casas, comidas e seu


Bodeados no Terminal Rodoviário - Arequipa, Peru tempo com a gente, antes e depois dos eventos musicais. Nesses sons conhecemos pessoas muito parecidas nas angústias e nas aspirações de mudança social e de construção da solidariedade. Foi fascinante notar as diferenças e semelhanças da movimentação punk de cada lugar, que, assim como no Brasil e em outros países, se adapta aos aspectos regionais e funciona como uma grande ferramenta de expressão e atuação para vozes marginalizadas, indignadas e atuantes contra as atrocidades e injustiças cotidianas, tanto a nível local como global. Percebemos e vivenciamos a potencialidade dessa rede que conecta pessoas de distintas regiões com sentimentos, “correrias”, visões ideológicas e culturais plurais, mas, ainda assim, muito semelhantes. Foram dois meses de muita troca que jamais esqueceremos. Mais de 17.500km percorridos, quatro países, 20 sons e um ensaio aberto, vários climas e realidades imagináveis: selvas, desertos, litoral, montanhas, cidades enormes, cidades pequenas, pessoas e espaços que nos acolheram e jamais esqueceremos, e que, apesar das fronteiras criadas, estão conectadas pela história dessa grande região nomeada América Latina. Como parte das reflexões finais que nos deixou a turnê, a questão dos racismos estruturais dentro das sociedades que visitamos e como isso se vê reproduzido nas cenas Punk/Metal é algo bastante interessante. Na Argentina

e no Peru vimos que a cena que nos acolheu tinha membros descendentes de minorias racializadas, algo também visto no Chile (principalmente fora de Santiago). Diferente da Bolívia, o país com a maior população indígena da América do Sul, mas que tinha uma cena um pouco mais “branca”, algo similar ao que vemos no Brasil, o país com mais negros no mundo após a África. No Peru e na Argentina a falta de uma cena de Hip Hop mais forte pode ser uma influencia para que a rebeldia das juventudes periféricas racializadas sigam tendo no Punk um canal catalizador de suas inquietudes e revoltas de forma mais notória. No Brasil a cena Punk é não só mais branca e menos periférica em comparação a certas realidades que vimos na turnê, senão também com um perfil de classe bem mais específico. Talvez seja pela força que o Rap alcançou nas periferias brasileiras e, como consequência, acabou levando uma parte da juventude operária, mestiça e negra, que nos anos 1980 e 1990 tinha maior participação na cena Punk, a migrar para o Hip Hop, na medida em que a própria radicalidade política do próprio Punk foi perdendo espaço para debates exclusivamente musicais, e muitas vezes intencionalmente despolitizados. Algo que também ocorre no Hip Hop e sua vertente de ostentação. Sem se meter (tanto) mais nesse debate bastante complexo, nos parece que na América do Sul o punk ainda Especial América Latina

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Atravessando a fronteira entre Peru e Bolívia consegue ser um importante veículo de mobilização artística, intelectual e estética da juventude racializada e empobrecida. Isso nos fez sentir bem acolhidos e também nos propiciou uma vivência bem próxima das realidades mais sofridas dos países visitados. Nossa inserção nas culturas locais foi muito mais forte que qualquer outro tipo de viagem por turismo ou mesmo alguma turnê mais convencional com todas datas fechadas, hotéis e tocando somente em “casas de show” que possam pagar com dinheiro nossa estadia e gastos totais. Assim fomos muito bem recebidos e tivemos todas nossas despesas básicas, como comida e estadia, financiadas economicamente pela solidariedade das pessoas que nos receberam e as arrecadações dos eventos onde tocamos. Um punk mais periférico e solidário segue vivo nos nossos países “Hermanos” de lutas e do trágico histórico de saques coloniais e neoliberais similares aos nossos. Olhar e se inspirar neles pode oxigenar a cena Brasileira e, de certa, forma fazê-la questionar seu eurocentrismo e branquitude,

que a viagem nos fez ver como exacerbados. Punks indígenas, punks campesinos.... é algo bastante comum no Peru e partes do Chile. Por que no Brasil não se vê tanto, por que tão poucos punks pretos? Toda viagem é uma volta em nós mesmos, que rompe e desloca nossos lugares comuns, nossos lugares de fala e nossa própria forma de falar e escutar (de maneira literal quando entramos em contato com uma língua diferente). As linguagens que tínhamos em comum eram nossa música e nossa vivência no punk e isso representava uma forma de identificação e aproximação muito verdadeiras e maiores que qualquer idioma ou nacionalidade e suas vicissitudes e casualidades geográficas. Somos mais latino-americanos e internacionalistas que brasileiros depois desse rolê. E também mais punks. ¡Hazlo tu mismo! Abya Yala segue resistindo!

Declínio Social é uma banda hardcore/punk/antifascista formada no final de 2002 na cidade de Divinópolis – MG. A formação atual é: Felipe (guitarra/vocal), Lucas (baixo/vocal) e Sérgio “Chegado” (bateria). Contatos: facebook.com/decliniosocial decliniosocial@hotmail.com decliniosocial.bandcamp.com

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Entrevista

Xeque Mate

La Misión Entrevista por Pedro Silva

Xeque Mate la Misión (Xemalami) é um grupo do distrito do Grajaú, zona sul da cidade de São Paulo, que tem como princípios de atuação o Xadrez e a cultura Hip Hop. “Xadrez sem muros” é o principal projeto do grupo, onde são desenvolvidas atividades em várias quebradas, com apresentações de Rap, discotecagem, oficinas, Graffiti, desafios e torneios de Xadrez. A ideia central é ocupar a rua e os espaços públicos, corre que Drezz e Hyt mantêm a quase 20 anos. Trocamos uma ideia com eles para entender melhor essa caminhada e como a América Latina, um tema recorrente nos trabalhos da dupla, fortalece a ideia do projeto. Especial América Latina | 19


Hyt Revista Perifa: A partir de que momento o Rap falou mais alto pra vocês? Teve algum fato específico que marcou o início desse interesse? Hyt: Eu nasci no começo dos anos 90. Quando chegou no comecinho de 2000, por influência de uns primos que moravam no Jardim Primavera, aqui na região do Grajaú, comecei a ouvir aquelas coletâneas Dinamite, que tocou muito naquela época, principalmente a Dinamite 2000. Também ouvia bastante Rap nacional também. Meu irmão tinha uns álbuns dos Racionais e do Mv Bill, que eu escutei bastante, principalmente o Bill. Esse período foi bem importante pra minha formação. Também ouvi muito 50 Cent, que estava no auge nessa época. E de lá pra cá fui conhecendo mais pessoas do meu convívio aqui na quebrada, que foram me apresentando outros grupos, alguns clássicos como o Wu-Tang, o Cypress Hill, o KRS-ONE, que se tornaram grandes referências do Rap norte-americano e latino pra mim. No nacional a minha maior referência são, com certeza, o MV Bill, os Racionais e o RZO. Foram os que marcaram mais esse meu período de inserção no Rap, até o momento em que eu conheci as atividades do Projeto Xadrez Sem Muros, que os caras do Xemalami organizavam aqui no bairro onde moro, o Jardim Reimberg. Em 2008 comecei a participar dessas atividades, mas só dois anos depois eu passei a integrar o grupo. De lá pra cá estou sempre em busca de conhecer mais. O Drezz sempre traz bastante influências do Rap latino e também várias pessoas que somam na nossa caminhada aparecem com novidades. A gente tenta se manter atento a todas novas vertentes e tendências pra agregar no nosso trabalho, mas também mantendo a nossa essência. Drezz: O Rap começou a impactar a minha vida na década de 1990. Pra falar a verdade, a gente não tinha muita dimensão do que ele era, do significado do nome, que fazia parte de uma cultura específica. Até então, os gêneros musicais com que eu tinha mais contato eram o Brega, a Lambada, entre outras músicas populares e da periferia que a minha família escutava. Tudo mudou quando mudei para a Mina, no Grajaú, na década de 90, que foi bem tensa pra todas as quebradas por conta do aumento da violência, os altos índices de assassinato de jovens, a explosão do crack na periferia… Mas a gente não entendia o por quê dessas coisas. Não tínhamos a noção do por quê morávamos no fundão da cidade e da origem de tanta desigualdade. Então, quando eu ouvi um Rap pela primeira vez, no início dos anos 90, aquilo me impactou de uma forma muito profunda. Foi meu primeiro contato com uma música que falava do meu cotidiano, de coisas que eu nunca tinha parado pra pensar antes, que me fez refletir sobre coisas que não eram discutidas. Tínhamos recém-saído de uma ditadura militar e,

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apesar da redemocratização e da constituição de 1988, ainda tinha muita repressão, tinha o esquadrão da morte, muitas chacinas. Tinha-se muito medo de falar das coisas, de criticar o governo. Então quando eu escutei Athalyba e a Firma, Região Abissal, Thaíde, aquela primeira coletânea de Hip Hop do Brasil, “Hip Hop Cultura de Rua”, que eu até comprei o disco na época, e depois vieram os Racionais, Os Metralhas, com o Rap da Abolição, aquilo tudo abriu o meu campo de visão. Era uma música que trazia reflexão, a questão racial, fazia você pensar sobre a cidade, sobre o por que de você viver ali e das opressões do sistema. Isso foi um incentivo pra eu estudar, pra tentar entender minha posição, o meu papel no mundo e o que eu poderia fazer, o que estava ao meu alcance. O Rap entrou na minha vida como uma formação mesmo, a partir daí eu fui estudá-lo, e foi aí que eu descobri que ele era um elemento do Hip Hop, uma cultura mais ampla que também contava com o B-Boy, o Graffiti, o Dj e o Conhecimento como outros aspectos fundamentais. Ele ganhou muita importância na minha vida e foi com se tivesse se tornado a minha religião, como se fosse o pai que eu não tive, e até hoje eu carrego isso como se fosse uma bandeira de vida, de luta e de autoidentificação. É um instrumento que me deu voz, ajudou a formar a minha


personalidade, contribui com a minha formação, desenvolveu a minha autoestima e a partir disso já formei vários grupos. Estive no Testemunhas do Holocausto, no início dos anos 90, depois compus o Pacto Latino, que teve até o Criolo na formação, junto com o DJ Edu Neto e o Celinho, também conhecido como Dj El Pesquisador, que infelizmente faleceu recentemente, vítima do descaso com que nosso povo tem sido tratado em meio a uma pandemia. Então o Hip Hop se tornou meu estilo de vida, a partir da tomada de consciência por meio do Rap. Revista Perifa: A proposta do Xemalami é bem específica e gira em torno desse encontro do Hip Hop, que já tem esse ímpeto de somar com a comunidade e mobilizar um conjunto de saberes e práticas em torno de seus elementos, com o Xadrez, que por muitas vezes passa batido nas quebradas. De onde veio essa inspiração? Na visão de vocês como o Xadrez complementa o Hip Hop e vice-versa? Dezz: O xadrez apareceu na nossa vida antes do Hip Hop. Eu estudei no antigo Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM), que formava alfabetizadores para dar aula no Ensino Fundamental e nessa época comecei a ter contato com o jogo junto com alguns amigos. Na real a gente nem tinha muita clareza sobre o que era o xadrez, as regras e tal. Mas ele impactou a gente por conta da alegoria com os significados das peças, da estética e da história, que muitas vezes é mais interessante até que as técnicas do jogo em si. Percebemos que era um esporte que tinha muita relação com a ordem social, que tinha os peões, que são maioria e que sempre ficavam na frente, e outras peças que remetiam muito à questões como a exploração de classe e tudo mais. E isso tudo na década de 90, que é considerada a Era de Ouro do Hip Hop, com o Boom Bap, com o engajamento político que era explícito nas letras, que também eram mais incisivas e contundentes. Era um cenário onde não podíamos falar qualquer bobagem em um Rap, você poderia ser cobrado. O movimento e sua ideologia eram levados muito a sério, tinha a questão racial também, que era muito forte. Daí começamos a relacionar isso com o xadrez, essa coisa de raciocinar, pensar bem no que vai falar, de ter um zelo com as palavras ser mais consequente, tanto nos dizeres, quanto nas ações. Isso na verdade já tinha muito no Rap, essa ideia de ter postura e de manter uma coerência. Então o Xemalami surge em 2002, com esse nome que é o acróstico da expressão “Xeque Mate La Misión”, um resumo do objetivo do xadrez: capturar o rei do oponente e fazer assim o xeque mate, apoiado por todas aquelas forças que você tem no tabuleiro. Ele se torna aqui uma metáfora para a própria cidade e a relação entre centro e periferia: o fundamento do Drezz

jogo é a disputa pelo centro. Quem tá mais próximo do centro tem um maior campo de visão, que vai diminuindo a medida que fica distante, uma relação que a gente trouxe como uma lição pra vida. Em 2002 a gente se encontrava no Centro de Valorização e Divulgação da Leitura (CEVALE), no antigo Clube da Comunidade Parque América, também chamado de Gigantinho, onde assumimos uma biblioteca comunitária que estava abandonada. Éramos a minha irmã, Chris, o Digaz, o Gor Flow, o Esze, o Mut e eu, mas também colavam muitos grafiteiros, MCs, gente da cena punk. A gente jogava e ensinava xadrez, ao mesmo tempo em que cuidávamos da biblioteca. Nisso, o Esze levava umas tapes e a gente ouvia muito Rap, o que ajudou a criar essa relação entre a música e o jogo. Isso é até inusitado, porque o xadrez é um jogo que demanda silêncio e reflexão. Mas a nossa vida é uma turbulência a todo momento, principalmente pra gente, que viveu os anos 90, com cobrança e pressão o tempo todo, ao mesmo tempo em que precisa pensar e tomar decisões em meio a tudo isso. Além disso, muitas vezes o silêncio também pode ser um revelador de omissão, ou de aceitação das coisas como elas são. Paralelo a isso, começamos a perceber que outros grupos

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também faziam referência ao xadrez, como os caras do WuTang Clan, que também jogavam e tal. Tem também a Hip Hop Chess Federation, que existe na cidade de São Francisco, na Califórnia, e é uma associação multirracial que possui um espaço dedicado para cada elemento da cultura Hip Hop, além de também dar aulas de xadrez e de artes marciais, voltadas para a não violência. Então, meio que sem querer, a gente viu que tava nesse caminho da relação inusitada entre xadrez e Hip Hop. Uma ligação que envolve um senso de responsabilidade, de compromisso, de ação coletiva e com princípios de convivência. Esse é o contexto do surgimento do Xemalami em 2002, mas que só se tornaria de fato um grupo de Rap três anos mais tarde. Começamos a articular o jogo com os elementos do Hip Hop através de pequenos eventos e de ações coletivas que buscavam alimentar um senso de comunidade e de responsabilidade social. Trabalhamos também com a ideia de que um grupo é mais forte que um indivíduo sozinho, porque a atuação a partir da coletividade ajuda a diluir as fraquezas individuais. Começamos a estudar mais o xadrez, a promover eventos, campeonatos, oficinas abertas pra pessoas não inciadas no jogo, desafios e conseguimos mobilizar um público em torno disso e nos colocar como referência disso. O xadrez e o Rap são nossas principais ferramentas de trabalho.

cultura Hip Hop por conta dos ensinamentos que ele traz de paciência, de visão, de estratégia… Que são coisas que a gente precisa desenvolver pra vida. Na caminhada dos Mcs mesmo, precisa ter sempre um planejamento feito com calma, de forma estratégica e tal. Ele poderia, de repente, se tornar até um novo elemento da cultura. Também tem a ideia de respeito ao próximo, porque você está ali no tabuleiro, enfrentando outra pessoa, mas, ao mesmo tempo, tem que existir um respeito pelo adversário. E isso é muito construído a partir de uma análise que você faz da forma como ela joga: se ataca ou defende mais. Isso é outro aspecto que a gente traz pra vida, porque temos que interagir com outras pessoas o tempo todo.

Hyt: Acho que o xadrez também pode ser um complemento à

Hyt: As primeiras parcerias que a gente fez com Mcs de outros

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Revista Perifa: Vocês já gravaram uma música com a Abigail, do Santa Mala, e com o Delapaz, que são bolivianos, também lançaram um som chamado “Las Calles Perifericas” e o próprio nome do grupo é em espanhol. Por outro lado, aqui no Brasil temos uma tradição de dar as costas aos países vizinhos e poucas pessoas possuem consciência do passado que partilhamos. Como foi essa aproximação por parte do Xemalami? O Rap teve um papel fundamental nesse processo, ou ele se relaciona com alguma experiência individual ou da dupla?


países foram em 2012, quando gravamos um som chamado Lucha Constante com o KNC, que é da Colômbia. Um ano depois teve um trabalho solo do Drezz, com o KNC e o Phantom, que também é colombiano, chamado Viva Sudamerica. Essa parceria com o KNC rendeu algumas outras produções, como também Vivencias do Gueto, com a participação do Cado também. E em 2016 gravamos Las Calles Perifericas. Os trabalhos do Xemalami sempre tiveram essa mistura do espanhol com o português, principalmente por parte do Drezz. Ano passado gravamos esse som com a Abigail, do Santa Mala, e o Delapaz, chamado Orgulho Latino e que faz parte de um projeto nosso que se chama “São Vários, Vol. 2” e que tem um lyric video no YouTube. Pra esse ano temos uma outra produção em andamento, que é a cypher Puro Hip Hop Latino, que conta com a participação de Mcs do Brasil, Bolívia, Peru e Argentina. Vamos lançá-la agora, entre meados de Março e início de Abril11. Dezz: Essa questão da América Latina, e do Brasil dentro desse contexto, já vem desde a essência do Pacto Latino, que até onde eu tenho conhecimento, foi o primeiro grupo aqui do país a tentar romper essas fronteiras. A gente sempre acreditou que o Rap não tinha que ter esses limites, porque é uma grande rede formada pelas periferias e pelos subalternos do mundo inteiro, e que se organizaram a partir da cultura criada pelos negros norte-americanos, mas que no fundo possuem a mesma origem africana daqueles que estão espalhados por outros países. E partir disso, a gente também não pode negar a contribuição e as influências que os latino-americanos deram pro Hip Hop. Toda uma estética que acabou sendo incorporada pelos próprios negros dos Estados Unidos também. Então eu trago essa bagagem do Pacto Latino e no Xemalami a gente sempre teve clareza de que há uma unidade do Hip Hop na América Latina. Mais que isso, o Hip Hop daqui, depois do norteamericano, tem um grande protagonismo como vanguarda cultural a nível mundial. Acho que aqui a gente leva a coisa com aquele espírito guerrilheiro. Apesar de já ter mudado bastante nos últimos anos, onde a gente observa um esvaziamento do discurso crítico do Rap em nome da indústria fonográfica. Acho que perdeu um pouco do potencial. Revista Perifa: Na opinião de vocês, qual a importância de fazer essa ponte entre as quebradas da América Latina? Drezz: Dentro dessa proposta do Rap, de denúncia das opressões que o nosso povo vive, a principal característica comum a todos os países latino-americanos é o fato de termos 1 Entrevista concedida em 10/03/2021. A cypher já foi lançada e conta com um lyric vídeo no YouTube.

sido colônias de exploração. O que muitas vezes é tratado como uma descoberta, foi na verdade um saque. Fomos vítimas de uma política de rapinagem e nos tornamos países fornecedores de matéria-prima apenas, de produtos primários, para suprir as necessidades alheias. A riqueza da Europa se deu a partir da exploração da América Latina, inclusive do Brasil, que mesmo sendo um país de dimensões continentais dentro desse grupo, não se enxerga como tal, como latino-americano. A gente acabou desenvolvendo aqui um olhar muito mais voltado pra Europa, pros Estados Unidos, e acaba ignorando nossos vizinhos. Teve o Mercosul, que foi criado pra fortalecer uma integração econômica, mais ainda é muito pouco. O brasileiro ainda não se vê como latino-americano. Revista Perifa: O que vocês escutam/assistem/leem de outros países da América Latina? O que acham fundamental para indicar para o público periférico que busca entender mais a nossa história? Drezz: Eu gosto muito de escutar Rap underground do mundo inteiro, mas em especial dos países vizinhos: do Chile, da Bolívia, do Peru, da Colômbia, do México… Tem muitos grupos. Por exemplo: tem o La Etnia, o Las 3 Coronas, que são colombianos. O Rap da Colômbia é muito foda. O próprio KNC… No Peru tem o Rapper School e o Homicidio Bando. Tem o Control Machete do México, e que eu indico o álbum Mucho Barato, que é um clássico. Tive até a oportunidade de conhecer um dos caras. Aqui na América do Sul tem o Rap chileno, que é muito forte também. Mas na verdade em todos os países o movimento vem crescendo. Na Venezuela tem o Prieto Mafia, o Canserbero e o Akapellah… Tem o maior festival de Hip Hop do mundo, que tá parado por conta da pandemia, mas que acontece na Colômbia. Se chama Hip Hop Al Parque e a proposta dele é trazer os grandes nomes do gênero, tanto da América Latina, quanto dos Estados Unidos e também da Espanha. E pra conhecer um pouco desse legado da nossa ancestralidade, que foi em parte destruído, eu recomendo o livro do frei Bartolomé de las Casas chamado “O Paraíso Destruído”, onde ele relata um pouco do que foi o extermínio dos povos nativos. Uma outra leitura que eu indico é o “Veias Abertas da América Latina”, do Eduardo Galeano, um escritor uruguaio, e que ajuda a gente a ter uma dimensão do que foi esse saque que sofremos com a colonização. E também recomendo o Pablo Neruda, um poeta chileno, autor que resume bem os impactos da colonização na célebre frase “A espada, a fome e a cruz iam dizimando a família selvagem”. E isso tudo, na verdade, é uma pequena parte do que eu acho importante a gente ter contato. Mas é um bom começo. Especial América Latina | 23


Revista Perifa: Quais os próximos planos do Xemalami? Podemos esperar algum outro trabalho nessa linha dos que já abordamos aqui? Hyt: Acho legal falar um pouco do que fizemos recentemente. No primeiro semestre de 2020 lançamos o projeto “São Vários, Vol. 2”, que é uma reunião de diversas pessoas, entre músicos e produtores que contribuíram com o Xemalami em algum momento da nossa história. É um material bem diverso, tem desde Rock, até Forró. E, inclusive, foi dentro desse trabalho que aconteceu a colaboração da Abigail e do Delapaz em Orgulho Latino. Saiu também um e.p. solo do Drezz, “Marchando pra Vitória”, que pode ser encontrado nas principais plataformas de streaming, e um meu, chamado “Gueto Progresso”. Teve uma parceria do Drezz com o Nilsen Tattoo, que é boliviano, chamada “Hijos del Rap”. Mais pro final do ano o saiu a faixa “Entorpecidamente”, do Drezz com o

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Kisobras… Esses trabalhos estão todos no canal do Xemalami, no Youtube. E coisa de uma semana atrás eu lancei um single, que chama “Aconteceu Comigo”. Nesse momento estamos finalizando a cypher Puro Hip Hop Latino, idealizada por nós do Xemalami e com as participações que eu citei ali em cima. E temos mais vários eps planejados pra esse ano. Um dos próximos lançamentos já tem até nome: “En Passant”, que é um movimento específico do peão no xadrez, e que vai ser um ep com cinco faixas. Ainda tem um outro, que é uma produção com o nosso parceiro Cado Torre, e tá num processo mais avançado também. E tem um projeto solo do Drezz chamado “Sueños Se Viven”, “Sonhos Se Vivem” em tradução pro português. E é isso, a produção não para! Temos mais coisas planejadas, mas vamos deixar no segredo. Acompanhem nosso trabalho pelas redes sociais, YouTube, Facebook e Instagram, que sempre atualizamos com a caminhada do Xemalami.


Conto

Breve biografia

momposina de

Nina Simone Por Verónica Acuña Aviles

Eram seis da tarde. Era 6 de agosto de 1815. Era lua cheia. Nina estava se preparando para se encontrar com Eulálio e Araminta no muro que margeia o rio no trecho de Tres Cruces. O povo de Mompóx brilhava por su ausência, e Nina acreditava que Ananse tinha conspirado para tudo dar certo, porque se a rua de Albarrada estava sozinha, ninguém a humilharia. Naquela época era inadmissível que corpos negros transitassem por espaços diferentes dos das cozinhas das casas coloniais. Ela estava com muito medo. Para se acalmar um pouco, esfregou o óleo essencial de lírio no pescoço e nos pulsos, depois com as pontas dos dedos aplicou um pouco de manteiga preta nos cabelos para definir seu afro, e o decorou com algumas florzinhas de jasmim. Araminta era sua melhor amiga. Trabalhava como cozinheira em uma das muitas embarcações conduzidas por Bogas, em que geralmente transportavam mercadorias e brancos catingosos, sedentos de poder pela geografia estratégica que a Mompóx daquele tempo lhes oferecia. Alguns meses antes, elas tinham combinado que nesse dia estariam lá para fugir com Eulálio em uma daquelas grandes canoas e descer o Kariguaño para obterem a liberdade. Quando o relógio

da torre da Igreja de Santa Bárbara batesse oito horas, Nina desceria os degraus de Tres Cruces e diria adeus para sempre àquele mundo pálido de espelhos estéreis em que o reflexo de seu rosto não se encaixava. E foi assim que ela fez. Ela esperou pacientemente por aquela hora, mas antes arrancou um dos pregos da porta principal que, entre outras coisas, indicava o número de escravizados servindo nos Portais da Marquesa, para que no dia seguinte seus senhores e o mundo soubessem que ela seria um corpo sossegado, uma mulher feliz, apaixonada e livre, indo rio abaixo, com a ajuda e a proteção de seus ancestrais, para viver tranquilamente em algum pedacinho de terra das margens do Kariguaño. A brancura leitosa do amanhecer acusava que era 7 de agosto. Exatamente às oito da manhã, Candelario Obeso bateu a aldrava e, dirigindo-se à marquesa, lhe perguntou se ela concedera liberdade a alguma das suas escravizadas. Diante de tal interrogante, a mulher branca rapidamente enxugou as remelas dos olhos, examinou detidamente o poeta e disse-lhe o que tinha feito ele pensar uma coisa daquelas. Ele se limitou a apontar o buraco enferrujado na madeira. Ela olhou para ele, Especial América Latina | 25


Iglesia de Santa Bárbara Mompós - Aquarela de Edward Walhouse Mark, 1845 farejou como um cão faminto e enfiou automaticamente a mão direita no bolso da camisola de cetim que cobria sua figura esquelética. Tremendo de raiva, começou a tocar um pequeno sino de bronze. Em menos de cinco minutos, cerca de 60 mulheres negras a rodeavam. Ela as chamou uma por uma. Sem olhar para elas, a marquesa podia reconhecer cada conjunto de cordas vocais, afinal, eram suas cordas, seus corpos lhe pertenciam e isso incluía cada uma das entradas daquelas

mulheres. Quando ela não ouviu a voz de Nina, soube porque o prego na madeira estava faltando. Um leve sorriso embelezou o rosto de Candelario e ele se despediu. Ao atravessar a praça Del Moral, ele pegou seu velho caderno e sentou-se em uma das cadeiras para escrever o título de um dos tantos poemas que mais tarde culminaria no silêncio da sua casa.

Verónica Acuña Aviles nasceu em Corozal-Sucre e foi criada entre o PalomarMagdalena e Mompóx-Bolívar, lugares localizados no sul do Caribe colombiano. É técnica-profissional em Pedagogia, pela Instituição Educativa Normal Superior de Mompóx, e formada em Antropologia e Diversidade Cultural da América Latina, pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

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Memórias

¡Ya tu sabes! A cena de música latino-americana e caribenha em Foz do Iguaçu Por Mano Zeu Foz do Iguaçu é uma cidade paranaense cravada no coração de uma fronteira trinacional, dividida pelos rios Iguaçu e Paraná, que confluem e se mesclam entre idiomas e culturas. De um lado do rio está o Paraguai – Ciudad Del Este, com o famoso comércio de importados e forte cultura indígena, tendo o Guarani como um de seus idiomas oficiais. Do outro lado a Argentina – Puerto Iguazú, com seus restaurantes, feirinha e uma costañera toda iluminada. E aqui desse lado o Brasil – Foz do Iguaçu, com suas belezas naturais e uma gama de 78 etnias. Transitando pelas três cidades podemos nos deparar com lanchonetes árabes vendendo sharwarmas e esfihas, restaurantes chineses e indianos, bares latinoamericanos, narguiles, sushis, paella, choripán, tererê, mate, cestas de chipa equilibradas na cabeça de vendedores de rua, feiras populares e uma diversidade de temperos e costumes. As moedas Dólar, Guarani, Real e Peso circulam pelas mãos de cambistas de rua sentados em banquinhos de madeira ao lado dos artesanatos indígenas expostos sobre um tecido no chão, vendedores ambulantes insistentes e milhares de mototaxistas com seus capacetes amarelos atravessando pessoas e mercadorias por entre pontes que atravessam rios. É nesse território cosmopolita que acontece uma cena musical única, calcada na diversidade e no encontro, onde tudo se mistura no caldeirão cultural de la frontera. Basta um olhar atento e sensível para perceber a grandiosidade cultural desse pedaço de chão do sul do Brasil, onde o hibridismo se faz presente de forma orgânica, dando vazão a tantas vozes que muitas vezes são ofuscadas e sufocadas pelo turbilhão midiático da cultura mercadológica. “Ya Tu Sabes” é a vinheta que anuncia o aclamado encontro chamado “Sexta Tropical”, no hermoso Sudacas Bar, espaço latino-americano decorado com luzes da cor da noite e um enorme mapa da América do Sul grafitado na parede. Se na Espanha a palavra Sudaca foi usada de forma xenófoba contra

os povos sul-americanos, por aqui significa espaço de encontro e solidariedade. A começar pelos proprietários que são a paraguaia Kathe e o chileno Gaston e também pelo acolhimento de músicos de todo o continente que se apresentam no singelo palco desse pequeno bar, contrastando com o enorme batalhão do exército localizado em frente. Enquanto nas sextas-feiras as redes sociais se enchem de mensagens com o famoso “sextou”, por aqui o “Ya Tu Sabes” anuncia uma noite caliente que começa com aulas de Salsa, comandadas pelo cubano Pablo Mestre e a colombiana Mildred Torres. Depois das classes de dança a pista é revezada por djs de vários países. O colombiano Camilo Ortiz, a cubana Mariana Alom e o equatoriano Álvaro Glg botam o povo para bailar ao som de ritmos latino caribenhos como a salsa, cúmbia, bachata, punta, merengue, reggaeton e clássicos brasileiros. Ainda no Sudacas a salsa cubana se juntou ao forró nordestino em uma noite denominada “Rumbaião – Salsa Forrozeira”. Idealizado pelas professoras Bruna Macedo e Larissa Fostinone, o encontro busca unir em uma única noite os ritmos baião e rumba. Com a chamada: “aprenda forró e ensine salsa, aprenda salsa e ensine forró” o povo lotou a pista do Sudacas. Enquanto o baile comia solto com ritmos como salsa, forró, rumba, baião, merengue, xote, cha-cha-cha e xaxado, perto dali, no pub Amarantha o embrazamento era numa noite em que se mistura funk carioca, reggaeton e pop latino. Depois da segunda edição, o Rumbaião se transformou no projeto “Baile Latino: Integração pela Dança”, com uma variedade maior de danças latino-americanas. Em Foz do Iguaçu a tempo vem se construindo esse imaginário coletivo do Brasil como país latino-americano. O termo “brasilguaio” é bastante utilizado para referir-se a brasileiros e paraguaios que vivem pelas duas cidades e o Portunhol é falado comumente. Já nos anos 90, os comércios da Vila Portes (que faz fronteira com o Paraguai) e da Av. Especial América Latina

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Sudacas Bar Morenitas (fronteira com a Argentina) utilizavam o idioma bilíngue Português e Espanhol e também o Portunhol selvagem que nasce da convivência entre os falantes de PortuguêsEspanhol-Guarani. As casas noturnas sempre reservavam um dia da semana para organizar suas festas latinas. Na entrada da Acapulco o público era surpreendido pelas lendárias “tequileiras” e seus shots de tequila na badalada Sexta Latina. Já na saudosa Agência Tass o agito era na quinta-feira, na clássica Quinta Latina. O público era essencialmente formado por argentinos e paraguaios. Nessa época o comércio paraguaio estava a todo vapor e a moeda argentina “dolarizada”, então atravessavam a fronteira pelo custo-benefício de curtir nas noites iguaçuenses. Mais tarde quando a moeda argentina se desvaloriza acontece o efeito inverso: brasileiros e paraguaios atravessam a fronteira para curtir na Argentina em bares como La Barranca, Cuba Libre e na feirinha de Puerto Iguazú. Nos anos 2000 a vanguarda do movimento musical da cidade era o Hip-Hop e o Hardcore. No Rock n’ Roll tínhamos o intercâmbio com bandas paraguaias no lendário bar Taberna e no Casulo Rock Bar, ambos sob o comando da Cristina Peretto. Bandas iguaçuenses como Socialmente Incorreto e Artilleria Pesada traziam a atmosfera da fronteira em suas músicas e ações. No Hip-Hop, coletivos como o MH2I, Cartel do Rap e Family Roots, expandiam o horizonte do rap. Músicas como “Da ponte pra lá” de Mc Rodrigo, “Muamba, Marihuana, Contrabando” de Aliados da Periferia, “Ponte, Fronteira, Histórias” de Profecia da Fronteira e tantas outras canções foram ambientadas na experiência de se viver entre fronteiras. Em uma festa da

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Family Roots você podia ouvir muita música jamaicana e rap como dos hispano-estadunidenses Cypress Hill, dos cubanos Orishas e das argentinas Actitud Maria Marta. O iguaçuense Dj Caê, membro fundador do MH2I e Family Roots comandava um programa de rap numa rádio paraguaia. O epopeico “La Onda” na rádio 103.5 ia ao ar nos domingos e podia ser sintonizado em Foz do Iguaçu, como muitas outras rádios e canais de TV paraguaias. Rádios e TVs brasileiras também podiam ser sintonizadas do outro lado da fronteira, inclusive algumas rádios de Foz são sediadas no Paraguai. Um dos programas que a galera acompanhava na 103.5 era um programa baseado no reggae jamaicano e comandado pelo Dj Juan Martin Siqueira. Juan é um argentino radicado no Paraguai, adepto dos sounds systems e da música de vinil que agita a cena cultural de Ciudad Del Este com seu coletivo CDE Sounds e o evento Black Music Party. Tantos outros encontros com músicos da fronteira aconteceram no bar underground El Bardal e no festival Fiesta de La Cultura de CDE. Outro dj paraguaio que vem embalando as noites fronteiriças é o Taguato Delmonte que discoteca cúmbia espiritual e muita música com ambientação na sonoridade indígena. Um dos fundadores do MH2I, o iguaçuense Kanibal, hoje vive na argentina e integra a banda “É nois La Família” que mistura o rap brasileiro ao rock argentino. Mais um espaço latino-americano em Foz é o gastrobar Soy Loco Por Ti. Comandado pela Cristiane Palomo, o bar restaurante proporciona uma verdadeira imersão na cultura, culinária e música do continente. O ritmo tango ganha destaque na “Noite de Empanadas com Tango”. A clássica festa mexicana


Fiesta de Los Muertos, organizada anualmente pelo Soy é ambientada em músicas latino-caribenhas de ritmo intenso, pinturas faciais e cores que se assemelham ao carnaval brasileiro. Foi com o pessoal do Soy Loco e do SouLocal que tive a oportunidade de discotecar numa noite cubana, regada a rum, charutos, comidas típicas e músicas da ilha. Na Argentina eu tive a oportunidade de me apresentar junto ao grupo de rap guarani Hae Kuera Ñande Kuera, que faz canções no idioma nativo e em espanhol, na luta pela retomada de suas terras. Foi junto a esses hermanos que dividi a grande tela no documentário Portuñol, dirigido pela cineasta porto-alegrense Thaís Fernandes. Premiado no Festival de Gramado o filme acompanhou a cultura das cidades de fronteira que falam o portunhol. Ali também conheci o grupo Vape Afropercusion, um

americanos e caribenhos, além de africanos e refugiados com visto humanitário. A música “Latinoamérica” do grupo Calle 13 se transformou num verdadeiro rito de passagem para quem vem a Foz estudar, trabalhar e conhecer a cena local. Foi essa canção que inspirou a criação do grupo musical Projeto Kahlo, da qual fui um dos integrantes, interpretando canções de todo o continente. A versão de Latinoamérica executada ao som do cajón peruano tocado pela argentina Victoria Darling era o ponto alto da nossa performance. A música por si só já representa um pouco dessa confluência. Escrita e interpretada pelos irmãos porto-riquenhos Residente e Visitante conta com a participação da peruana Susana Baca, a colombiana Toto La Momposina e a brasileira Maria Rita. Trazendo temas históricos e culturais do continente, mescla rap, salsa, cúmbia, tango e

Feira da Consciência Negra no bairro Vila C grupo de percussão de rua argentino com forte influência da música baiana. Outro espaço de intercâmbio do lado argentino é o Espaço Cultural La BarCasa, localizado no Bairro de Las Orquídeas. O bar é mesmo numa casa, com grandes janelas de vidro que dão vista para um parque de preservação ambiental. Por ali se apresentam músicos da região e a casa também oferece aulas de dança e diversas outras atividades culturais. Em 2010 Foz do Iguaçu deu um salto importantíssimo para se consolidar como recanto latino caribenho no Brasil, que foi a criação da UNILA – Universidade da Integração Latinoamericana. Essa universidade reúne estudantes e professores de vários estados do Brasil e de vários países latino-

a abertura do videoclipe traz um locutor de rádio peruano falando em Quíchua. A UNILA amplificou a presença latino caribenha em Foz e em seus 10 anos de existência foi palco de várias atividades de integração cultural. Organizadas pela instituição, por professores, estudantes, funcionários e pela comunidade, aconteceu dentro e fora de seus muros projetos de extensão e uma série de eventos com temáticas latino-americanas, caribenhas e africanas. Festivais de música, gastronômicos, a famosa festa junina chamada “Junila”, festa da bandeira haitiana, calouradas pretas e outras calouradas. Na feira agroecológica – que acontece na UNILA Jardim Universitário Especial América Latina | 29


Coletivo No Hay Frontera – encontramos alimentos de produtores locais e uma gama de comidas típicas de vários países. Ali podemos tomar um café brasileiro comendo uma arepa colombiana ou venezuelana, uma chipa paraguaia ou um pão de queijo mineiro, uma empanada argentina carregada de pimenta mexicana, um chá de folhas de coca boliviana, suco de frutas brasileiras, enquanto escutamos música de todo o continente. Garrafas de mate e tererê personalizadas passeiam pelas mãos utópicas de povos que estão em Foz somando forças na desafiadora batalha de construir a integração latino-americana. É importante salientar que falar de música latina é praticamente falar de música afro latina e ameríndia. Boa parte dos ritmos elencados aqui vêm de origem afrodescendente e indígena. Maracatu, coco, carimbó, forró, tango, salsa, cúmbia, kompá haitiano, zouk, choro, samba, bachata, dancehall, reggaeton e rap são alguns dos ritmos que embalam as noites fronteiriças. O argentino Yaguá Pirú cantando suas chacareras; o paraguaio Orlando Martinez com suas guaranias, milongas e chamamês; a venezuelana María Betania Hernández com seu violino interpretando folclores latino-americanos, son jarocho e joropo junto a dupla brasiguaia Clarissa Souza e Lizle Martinez Ramirez no trio Amarelo Sol; o grupo Quinteto Coisa Fina disseminando a

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brasilidade; a banda Onda e seu rock instrumental psicodélico carregado de referências latino-americanas; haitianos no passo do samba, brasileiros se jogando no raboday haitiano e no dembow dominicano como se estivessem num baile funk. Isso é uma pequena amostra do que vem acontecendo na cena musical da fronteira. Com o Coletivo No Hay Frontera, organizamos festas afro latinas e bailes caribenhos. Estamos a frente da casa coletiva La Comuna e das produções do Estúdio Comunitário ECO. Mais focado no rap latino caribenho produzimos por aqui o haitiano Johnny Le Majeste que escreve e canta em criolo, francês, português e espanhol. O hermano paraguaio Hipi gravou música onde mistura os idiomas guarani, espanhol, português, inglês, chinês e árabe, trazendo toda a atmosfera de Ciudad Del Este onde trabalha no comércio de rua e improvisando rimas nos ônibus. O parce colombiano Santiago Gomez Gonzalez, multi-artista de rua que produz artesanalmente suas quenas e flautas indígenas, escreve e canta rap e cumbia eletrônica. O pana venezuelano Jecke com sua música Mãe Caribe – produzida sob um sample de tango argentino – faz um recorrido pela cultura, política e culinária do continente. Esses são alguns dos muitos músicos que passaram pelo Estúdio Comunitário gravando rap e ritmos


Ya Tu Sabes - Sudacas Bar latinos.

Outro espaço de gravação que vem fortalecendo é o Pachuca Sonora. O coletivo de articulação artística Pachuca está sediado aqui nas Três Fronteiras e trabalha com a produção de vídeos de bandas locais, que são disponibilizados em seu canal no YouTube. Em outro trabalho, o videoclipe da canção “Há algo que eu gosto em você” traz uma bachata interpretada pelo colombiano Charly Ramos em parceria com Pablo Alvarenga de Salvador e a participação da peruana Jessica Mijael e o haitiano Jerry Cantave. Fora da “oficialidade” da cidade, dos eventos organizados pela prefeitura, dos shows em grandes bares e restaurantes como o Show Latino-americano da Churrascaria Rafain ou A Lenda das Cataratas no Marco das Três Fronteiras, existe toda uma movimentação cultural pelas periferias. Pequenas atividades em praças, centros culturais, casas coletivas e repúblicas estudantis são a base que sustenta a música latino caribenha em Foz. Seja com algumas pessoas

reunidas num quintal com uma fogueira, um violão, um pandeiro, um cavaquinho, um par de maracas, um cajón, até grandes eventos como a Feira da Consciência Negra da Vila C organizada pelo grupo Kaburé Maracatu, as Festas Juninas da Biblioteca Comunitária do Cidade Nova ou o Café com Teatro no Teatro Barracão. Tem manifestações que só acontecem ali, longe da indústria cultural e do apelo turístico da cidade, como é o caso da Festa de Las Velitas Colombianas que no começo de dezembro pode rolar em várias casas onde habitam colombianos. É muito mais processo do que produto. Festa Mexicana, Luar da Tandera, Ajô da Vila, Magia Negra, Gandaia, Forró da Fossa, Arraiá Fagulha, Festa na Roça no Espaço Arapy, Guarany Rock Festival, eventos no Centro Cultural Base Um e uma série de atividades que só tem acesso quem ousa se aventurar pela vida cultural que acontece nas bordas. *Obs.: Por conta da pandemia de coronavírus essa cena em Foz está praticamente parada.

Mano Zeu é DJ, produtor, agitador cultural e escritor de Foz do Iguaçu, no Paraná. Membro fundador de La Comuna, Coletivo No Hay Frontera, Selo Editorial Kapivara Kartonera, Estúdio ECO Comunitário e Biblioteca Comunitária CNI.

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Poesia

Sem Título Por J.D.H. Cifuentes Guatemala, 2021 não me desperta uma canção de pássaros, ainda que eu tenha árvores em meu jardim me desperta o eco das sirenes, constantemente presentes no fundo DESTA MALDITA CIDADE não vejo gente sorrindo, ainda que tenham televisores de 80 polegadas em frente de suas camas vejo gente caminhando com os olhos no chão, para que ninguém reconheça sua tristeza fumaça no lugar de ar cinza, cinza, cinza fumo, mas para aguentar esta vida verde, verde, verde não choro desfrutando da beleza de um rio esticando-se pela borda de uma colina choro enquanto caminho até uma poça de sangue apenas coberta com areia, ou talvez seja cal não me alegra ver o sol subir no horizonte em cada manhã, momentos antes de começar meu trabalho me alegra ver anúncios de que haverá uma marcha dxs campesinxs, pedindo um fim para a destruição de suas terras…

a violação de suas terra…

o assassinato de sus guerreirxs1...

ainda que a ninguém importe NESTA MALDITA CIDADE

1 Mantivemos as duas últimas duas palavras em espanhol para manter o uso do pronome neutro e garantir o sentido dado ao texto pelo autor (Nota do Editor).

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Sin título Guatemala, 2021 no me despierta una canción de pájaros, aunque tengo árboles en mi jardín me despierta el eco de sirenas, constantemente presentes en el fondo de ESTA MALDITA CIUDAD no veo gente sonriendo, aunque tienen televisores de 80 pulgadas en frente de sus camas veo gente caminando con los ojos en el piso, para que nadie reconozca su tristeza humo en lugar de aire gris, gris, gris humo, pero para aguantar esta vida verde, verde, verde no lloro disfrutando de la belleza de un río estirándose por la orilla de un cerro lloro mientras camino hacia un charco de sangre apenas cubierto con arena, o tal vez es cal no me alegra ver el sol subir en el horizonte cada mañana, momentos antes de comenzar mi labor me alegra ver anuncios de que habrá una marcha de lxs campesinxs, pidiendo un alto de la destrucción de sus tierras… la violación de sus tierras… el asesinato de sus guerrerxs…

aunque a nadie le importa en ESTA MALDITA CIUDAD

Texano perdido na Guatemala. Escreve canções e poemas. Grita, mas ninguém liga. Diz que dá aulas de música, mas ninguém acredita. Suspeito demais para ser professor. Ainda crê no punk. Imbecil? Talvez. Imbecil? Jamais!

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Fotografia

Registrando a fronteira

que nos une A Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai é uma das regiões fronteiriças mais movimentadas da América do Sul. Para além da importância do comércio de mercadorias entre a cidade paraguaia de Ciudad del Este e Foz do Iguaçu, ali se desenvolveram dinâmicas cotidianas próprias, marcadas pelo contato facilitado entre a população dos três países. Como não poderia deixar de ser, também é uma região marcada pelas contradições sociais e, consequentemente, por movimentos que lutam para garantir um mínimo de direitos e de condições para a sobrevivência de seus integrantes. É em meio a esse turbilhão, que representa bem as mazelas da América Latina, que Paulo Silva registra cenas do cotidiano dessas organizações. Cria do Jardim Anchieta, em Mauá, na Grande São Paulo, Paulo vive desde 2016 em Foz do Iguaçu, onde estuda História e participa ativamente em movimentos sociais, sempre armado com sua câmera fotográfica. Do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra aos indígenas Guaranis, passando por ocupações urbanas e quilombos, as fotografias de Paulo nos mostram um pouco das lutas concentradas na Tríplice Fronteira mas que, ao mesmo tempo, estão dispersas pelas quebradas de toda a América Latina.

Mural da Acción Poética, Ciudad del Este (2016). Acción Poética é um movimento literário e muralista que tem sua origem no México em 1996 e acabou difundido em toda América Latina. A frase da imagem aparece em Espanhol e Guarani, os dois idiomas oficiais do Paraguai.

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Acampamento Sebastião Camargo, São Miguel do Iguaçu (2018). Este acampamento do MST, também localizado no oeste do Paraná, homenageia em seu nome um trabalhador rural assassinado durante uma ação ilegal de reintegração de posse no município paranaense de Marilena.

Ciudad del Este (2016). Foz do Iguaçu e Ciudad del Este são cidades conurbadas que marcam o contato entre Brasil e Paraguai no extremo oeste do Paraná. A vizinha paraguaia é conhecida por seu centro comercial, que é um dos maiores do mundo por conta do fluxo de brasileiros que buscam mercadorias para revender em vários pontos do país.

Quilombo Apepú, São Miguel do Iguaçu (2019). Apepú é uma comunidade remanescente de quilombo reconhecida como tal desde 2005. Seu nome é referência à laranja ali produzida e que serve para a elaboração de um doce típico.

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Acima: Manifestação em solidariedade ao estudante haitiano Getho Mondesir, que sofreu um ataque racista e xenófobo no centro da cidade, Foz do Iguaçu (2010).

À esquerda: Horta da Dona Laide, Foz do Iguaçu (2019). Mobilizando saberes ancestrais de origem quilombola, Dona Laide conserva a mais de 30 anos uma área pública da cidade de Foz do Iguaçu que está na eminência de se tornar um Parque Público. Há uma mobilização popular com o intuito de que esse espaço tenha um caráter agroecológico, para manter o legado do trabalho de Dona Laide.

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Acima: Ocupação Bubas, Foz do Iguaçu (2018). A Ocupação Bubas, iniciada em 2013, é a maior ocupação urbana do estado do Paraná, contando atualmente com cerca de seis mil habitantes, que aguardam a regularização de sua situação em um grande terreno da região sul da cidade de Foz do Iguaçu.

Aldeia Indígena Avá-Guarani Tekoha Ocoy, São Miguel do Iguaçu (2019).

À esquerda: Comunidade Chico Mendes, Matelândia (2019). O Acampamento Chico Mendes é um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) formado em 2004 e que luta pela causa da reforma agrária no oeste paranaense.

Acima: Stencil com referência às vítimas da ditadura civil-militar argentina (1976-1983), Puerto Iguazú (2019).

Paulo é mauaense, filho da Tereza, sobrinho da Madalena e neto da Almerinda. Faz zuada com cavaquinho.

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História

Candombe: mistura de rebeldia, liberdade e irmandade Por Laura Sosa

Para entender o Candombe em sua integridade, é necessário conhecer sua essência ancestral. Isso define, mais além do passar dos séculos, o sentir inalterável dessa expressão musical característica do Uruguai. Apesar de ter sua origem na capital, Montevidéu, dada a sua condição de cidade portuária, atualmente ele é tocado na maior parte do território nacional. Ele se tornou uma forma de socialização que ocorre em espaços públicos, onde as assimetrias sociais se apagam, ao menos temporariamente, expressando através da música a rebeldia, a liberdade e a irmandade. Proponho então, que recorramos parte de sua história para entender suas raízes. O Candombe foi a dança e a expressão musical religiosa mais importante e representativa da população afrodescendente no Uruguai. Surgiu de homens e mulheres provenientes de mais de vinte povos africanos, sequestrados e trazidos a estas terras a partir do século XVII na condição de escravxs. Elxs encontraram na música e na dança uma forma de expressão que os fazia sentir vivxs e conectadxs com suas raízes, opondo-se à subjugação e a opressão a que eram submetidxs. Essa história começa no ano de 1516, quando nosso território foi invadido por espanhóis, aparecendo em 1608 o primeiro registro de presença africana com a expedição de Hernandarias, que incluía, segundo textos da época, 30 escravizadxs negrxs. Em 1680 os portugueses entram em cena fundando Colônia do Sacramento, onde desde seu porto foram inseridos cerca de 1200 escravizadxs por ano. Muitos delxs

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foram redistribuídos para outros lugares, como Buenos Aires, por exemplo. Anos depois, em 1726, espanhóis comandados por Zabala fundam Montevidéu, a princípio sem uso de mão de obra escravizada, porém, o Cabildo1 dessa nova cidade portuária solicita às autoridades coloniais a importação de africanxs, se tornando, assim, em 1743, o único ponto autorizado pela Coroa Espanhola a participar do tráfico de pessoas. A princípio eram trazidos da costa da Guiné e comercializados em troca de couro. Três décadas mais tarde ocorre um outro fluxo com homens e mulheres trazidos de Angola. Por volta de 1773, dado o aumento do núm ero de africanxs na população, os espanhóis decidem, junto com a Igreja Católica, aplicar as Leis das Índias, obrigando a evangelização dos escravizados. Esse processo possibilitaria que xs negrxs se organizassem em torno das chamadas Cofradías2 e tivessem acesso a certos “direitos”. As Cofradías eram reguladas pela própria Igreja e vinculadas ao poder espanhol. A primeira dessas associações foi a Cofradía de San Benito de Palermo, na Igreja de São Francisco, localizada na Ciudad Vieja, e em 1787 é fundada a Cofradía na Igreja Matriz, chamada San Baltasar. Nesse mesmo ano é otorgada a permissão para a Real Companhia das Filipinas realizar o tráfico de cinco a seis mil africanxs por ano. 1 Junta que administrava as cidades na América Hipânica (Nota do Editor). 2 Semelhantes às Irmandades religiosas negras aqui no Brasil (N. do E.).


“Cena de Candombe” - Autor desconhecido, Montevidéu, 1870 O Cabildo então considerou pertinente construir um edifício para abrigar xs negrxs recém chegadxs a Montevidéu, para que cumprissem uma quarentena a fim de evitar a propagação de possíveis enfermidades antes de serem enviados para outros territórios, como Buenos Aires e outras cidades das regiões que compreendem hoje o Chile e Peru, além do comércio local. Esse edifício foi chamado “Caserio de Filipinas”, ou “Caserio de los Negros”, e esteve localizado fora dos muros da cidade, em um lugar estratégico, pois ficava de frente para a nossa costa oeste. No local exato onde existiu essa construção funciona nos dias de hoje uma escola pública, que fica ao lado do Parque Capurro. Lamentavelmente as últimas ruínas dessa edificação se perderam no início do século XX, feito que ajuda a ocultar o passado escravista do nosso país. Com a presença de mais escravizadxs, então, e levando em consideração as Leis das Índias, que previa o direito de dispersão devido à opressão que viviam os africanxs, elxs começam a formar suas próprias organizações, chamadas “Salas de Nación”. Elas eram reunidas de acordo com o grupo étnico da qual eram provenientes seus integrantes e possibilitavam uma maior liberdade com relação ao controle dos poderes colonial e eclesiástico. Porém, com o passar do tempo foram alvo de censuras e repressão por parte do poder público, que as via como uma potencial ameaça para a sociedade da época. A Sala de Nación era um espaço legítimo, onde os es-

cravizados podiam experimentar um pouco de liberdade. Por meio dela evocavam sua cultura, defendiam seus direitos, dançavam, cantavam e tocavam Candombe, dando lugar para as práticas religiosas que conseguiram manter vivas apesar da repressão. Esses rituais acabaram, dessa forma, marcados pelo sincretismo, evidenciado pelo fato de San Baltasar e San Benito serem patronos de muitas dessas organizações. Cada Sala de Nación era regida por normas específicas e contavam com Rei, Rainha, Príncipe e outras autoridades. Em 6 de janeiro era celebrada a “Coronación de los Reyes Congos”, onde havia a coroação, em geral, dos mais velhos. A cerimônia durava um dia inteiro e incluía uma procissão3 com seus Candombes, tocando tambores e cantando pelas ruas daquela cidade murada. Os tambores eram presos ao corpo por uma correia, chamada “talín”, que cruza o tronco a partir do ombro. Somavam a eles outros instrumentos: a “tacuara”, a “huesera”, o “mate” ou “porongo”, a “marimba”, os “palillos”, os “trozos de hierro”, o “Macú” (tambor cerimonial) e a chamada “Bambora”. Além disso, participavam personagens típicos da Sala, sobretudo o “Bastonero”, ou “Escobero”, que conduzia o grupo de tambores, indicando o início e final de cada toque. Por volta de 1800 estava permitida essa celebração entre os dias 25 de dezembro e 6 de janeiro. Entre procissões e festas de rua as Salas de Nación abriam caminhos para a participação 3 Essa procissão parece ser a origem da marcha com os tambores a pé, característica que continuou até os dias atuais.

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“Personas bailando (Candombe)” - Pedro Figari, circa 1920 da população em geral, de viajantes e autoridades da época. A partir de 1842 são editadas uma série de leis que encaminham o país para a abolição da escravatura, fato que não impediu que houvessem outras formas de exploração da mão de obra afrodescendente. Sob o nome de “colonos”, uma nomenclatura que visava dar uma aparência de legalidade ao fato, xs negrxs continuaram a ser explorados, tanto no campo, quanto na cidade. Durante a Guerra Grande4 (1843-1851) africanxs e seus descendentes foram recrutados para servir o exército e combater. Em dezembro de 1862 o Governo da Defesa declara definitivamente abolida a escravidão no Uruguai. Segundo dados do censo à época, aproximadamente 30% da população uruguaia era composta por afrodescendentes. Isso determinou a formação do proletariado urbano e rural, juntamente a indígenas e imigrantes pobres, compondo o estrato de trabalhadores menos qualificados dessa sociedade. Logo, a maioria dxs negrxs acabaram habitando pensões e cortiços localizados em zonas de pouco valor econômico: nos bairros Sur e Palermo, assim como em Cordón e na periferia da cidade. Durante este período as celebrações das Salas diminuíram, devido ao fato de que havia cada vez menos pessoas 4 Guerra civil ocasionada pelo antagonismo entre os partidos Blanco (federalistas, apoiados por Buenos Aires/Argentina) e Colorado (unitaristas, apoiados pelo Império brasileiro, pela França e pela Inglaterra) (N. do E.).

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trazidas da África. Ao mesmo tempo, uma crescente desvalorização da cultura negra fez com que muitos afrodescendentes nascidos no Uruguai se distanciassem desses costumes em busca de aceitação social. Apesar disso, várias Salas de Nación continuaram seu legado até o início do século XX. Isso foi possível, em grande parte, por conta do Candombe ser integrado oficialmente ao Carnaval uruguaio em 1865, festa que abrange toda a sociedade de Montevidéu e que, atualmente, dura 40 dias. A primeira comparsa5 a desfilar naquela época se chamava “Raza Africana”. Atualmente, dentro do Carnaval uruguaio, essa categoria se chama “Negros y Lubolos”. A palavra Lubolo faz referência a um grupo étnico africano de raiz Banto, as quais muitxs negrxs se declararam pertencentes no censo realizado no Uruguai no final do século XIX. Porém, até 1874 essa denominação era utilizada por um grupo de europeus que haviam formado uma comparsa de Candombe e que desfilavam com os rostos pintados de preto para emular os verdadeiros criadores dessa tradição. Esse grupo, inclusive, contratou africanxs para que lhes ensinassem a tocar os instrumentos. Ao longo do século XX os cortiços se consolidaram como um espaço multicultural, onde o Candombe novamente cumpriu o papel de fortalecedor da identidade de uma parcela marginalizada da população. Os cortiços Mediomundo, no 5 Equivalente aos Blocos e Cordões do Carnaval brasileiro (N. do E.).


bairro Sur, o Complejo Reus al Sur em Palermo e o Gaboto em Cordón, são referências históricas do período, pois foram o berço das três variações rítmicas do Candombe que se conhece na atualidade: o Cuareim (Sur), o Ansina (Palermo) e o toque de Cordón, que é mais rápido. Lamentavelmente, no final da década de 1970, durante a Ditadura Civil-Militar, o cortiço Mediomundo foi desalojado devido à deterioração do edifício e o perigo de desmoronamento. Em 3 de dezembro de 1978 o Mediomundo ficou vazio e seus habitantes foram realojados em bairros da periferia de Montevidéu. Uma vez mais cidadãos e cidadãs pobres foram expulsos de lugares com potencial de desenvolvimento econômico e valorização imobiliária. Em dois dias foi concluída a demolição do prédio. Mais que uma concentração de 40 habitações, com dois banheiros e um poço, Mediomundo foi um ponto de encontro de artistas, onde aconteceu até uma conferência internacional da UNESCO em 1954. De lá surgiu, a partir das mãos da família Silva, a comparsa Miscelánea Negra, que depois se tornou Morenada. Na atualidade seu legado é mantido pela comparsa C 1080. Algo similiar aconteceu com Reus al Sur, que foi desalojado em 1979, tendo seus habitantes levados para uma fábrica textil no bairro Capurro e posteriormente para o Cerro Norte.

Apesar de não ser mais necessário para afinar os instrumentos, o hábito de dispor os tambores ao redor de uma fogueira é uma tradição que acompanha o Candombe até os dias atuais. No total, foram realojadas cerca de 2000 famílias somando os dois casos. Em Reus al Sur surgiram as comparsas Fantasia Negra, Concierto Lubolo e Sinfonía de Ansina. Na atualidade, a comparsa que sustenta o toque Cuareim, criado neste cortiço, é a Valores de Ansina. No cortiço Gaboto, no ano de 1940, a família Pintos desenvolveu o toque Cordón. Daqui se destaca a comparsa Llamada de Gaboto, que depois virou Llamada del Cordón e hoje em dia se chama Sarabanda. Desde 2006, a partir de proposta de Edgardo Ortuño, um deputado afrodescendente, se reconhece o dia 3 de dezembro como o Dia do Candombe, da Cultura Afrouruguaia e da Equidade Racial no Uruguai. Em 2009 o Candombe uruguaio e seu espaço sociocultural são declarados bens de Cultura Imaterial pela UNESCO. Tudo isso reafirma a importância do compromisso assumido então pelo Estado de gerar políticas de equidade, que até os dias atuais seguem pendentes. Então, com todo esse legado, no Uruguai atual xs afrodescendentes seguem fazendo história, conforme seu tempo, espaço e possibilidades. Os tambores ancestrais foram acompanhando esses processos há mais de 200 anos, mudando sua forma, que inicialmente era feita a partir das madeiras utilizadas em barris de erva mate. É certo que, da mesma forma, seus nomes e sons variaram, mas de modo que mantiveram inalterável sua essência e sua linguagem, que transmite tantos sentimentos e emoções. Atualmente os tambores utilizados são o piano, o repique e o chico, em ordem do maior ao Cordão de Candombe nos dias atuais. Especial América Latina | 41


menor, sendo o primeiro o mais grave. Os três compõem uma corda polirrítmica. No livro “Los Tambores del Candombe” Luis Ferreira esclarece que, em realidade, eles são o mesmo instrumento, mas com variações de tamanhos e os descreve como “[…] um tambor abarrilhado unimembranófono leve, aberto no extremo oposto à pele; é de fabricação artesanal a partir de pequenas tábuas de madeira”6. Inicialmente a pele era pregada na madeira, o que tornava necessário usar o calor do fogo para afinar. Daí a tradição de acender uma fogueira na rua e colocar os tambores ao redor. Hoje em dia os tambores possuem tensores, que facilitam sua afinação. Porém, continua a tradição da fogueira, pois há uma crença de que em cada tambor existe um espírito ancestral que ilumina os caminhos antes de começarem a tocar. Atualmente, nas comparsas aparecem, junto com os tambores, as bandeiras, o estandarte, os triunfos e xs dançarinxs, além de certos personagens típicos das Salas de Nación, como o Escobero, a Mama Vieja e o Gramillero. Essas representações são referências diretas a crenças e tradições de origem africana. Historicamente o Escobero, ou Bastonero, era responsável por dirgir e animar, movimentando uma vassoura, o início e o final do Candombe. Seus passos mágicos abriam o caminho, que era varrido, para que a comparsa tivesse um bom desempenho e, em algum momento da história, enfrentava um Escobero de uma comparsa rival. Vencia aquele que conseguisse derrubar o oponente sem perder o ritmo e sem deixar de girar a vassoura, que poderia ser utilizada como arma. Segundo relatos, golpes como empurrões, rasteiras e cotoveladas, também eram válidos. A Mama Vieja simbolizava sabedoria e bondade, representando também a velhice, tão reverenciada pelos povos 6 No original: “Es un tambor abarrilado unimembranófono liviano, abierto en el extremo opuesto al parche; es de fabricación artesanal a partir de duelas de madera”.

africanos. É a Rainha da comparsa, e da Sala de Nación como um todo, sendo vista ao mesmo tempo como mãe e avó sábia e doce. Trazida para a América para desempenhar o papel de ama de leite, além de outros mil ofícios, foi responsável por transmitir a bagagem cultural africana através da oralidade e de outras tradições muito diferentes das eurocêntricas, como cantos, mitos e a religiosidade. Por último, o Gramillero foi o sucessor do Rei da Sala de Nação e representa a figura do bruxo, ou curandeiro. Em seus pés vive a tradição africana. O tremilique que ele realiza constantemente simula o estado de transe tão recorrente nas religiões afro, além de carregar essa ancestralidade no conhecimento do uso de hortaliças para curar, por isso leva sempre consigo uma malinha cheia de ervas. Sua barba e seu bastão lhe dão aparência de idade avançada, fazendo referência ao respeito direcionado aos anciãos7. Definitivamente o Candombe representa toda a riqueza cultural, todos os processos e mudanças herdados de geração para geração, sendo um ritmo que preserva a história e o legado de milhares de africanxs e seus descendentes, que conseguiram sobreviver a tanta opressão e injustiça até a atualidade. Ele representa a sabedoria de seguir transformando essas desigualdades em redes de irmandade, resistência e identidade, através da música, da dança, de seus rituais e de suas tradições orais, sem espaço para o ódio e a discriminação. Hoje em dia o Candombe é tocado e dançado nos espaços públicos por todxs aquelxs que se aproximem com respeito por sua história, socializando nesse emaranhado em que vivemos, de bairro em bairro, chamando-nos com os tambores, para que as vozes silenciadas possam ser ouvidas. 7 Estes significados e simbologias são apresentados por Oscar Montaño no livro “Historia Afrouruguaya Tomo 1”, lançado em 2008 pela editora Mastergraf, de Montevideo.

Sou Laura Sosa, trabalho como diretora em um Liceu para estudantes com dificuldades de aprendizagem e estudo Antropologia Social. Também faço parte da Kuera Candombe, uma comparsa de mulheres, onde toco o tambor pequeno. Construir espaços para aquelxs que, de uma maneira ou de outra, estejam longe da possibilidade de acessar, conhecer, experimentar e participar ativamente dessa sociedade é como defino minha decisão de viver o amor na prática. Contato: laurasosarodriguez@gmail.com

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Entrevista

El Viajero Entrevista por Pedro Silva

Santiago é um multiartista e “viajero” colombiano que recém concluiu uma viagem de 6 anos pela América do Sul, onde passou por quebradas de diferentes países. Trocamos uma ideia com ele para compartilhar um pouco do que foi essa experiência e quais marcas ela deixou em sua vida. Revista Perifa: Você é um multiartista: faz desde malabares, até desenhos e poemas. Quando começou nesse caminho? Como a arte entrou na sua vida? Em que momento você deu conta de que ela era algo fundamental na sua vida? Santiago: Acredito que, na verdade, pelo menos a inclinação, ou o gosto por essas atividades artísticas, saber que podemos apreciá-las e senti-las vem desde que somos crianças. Já na escola eu só gostava das aulas de desenho e de educação física. Nos recreios, e também no bairro, brincávamos de muitas coisas, como pião, por exemplo. Meu pai foi organizador, por muitos anos, de um evento muito representativo na região onde morávamos, em Caldas, no distrito de Antioquia, onde aconteciam competições de vários jogos recreativos tradicionais da rua, como o pião, o bilboquê, o catapiz, o ioiô, a centopeia, a amarelinha, o pau-de-sebo, carrinho de rolimã, entre vários outros… Vinham até mesmo pessoas de outros municípios para participar, tanto do mesmo estado, quanto de outras partes do país. Então eu cresci vendo isso e admirando essas pessoas, que som seu talento e destreza me cativaram parar ser como eles. Esses torneios foram minha motivação para aprender e praticar essas atividades de origem popular, para além do entretenimento e da diversão que buscava quando criança. Na minha adolescência, mais ou menos aos 19 anos, comecei a realizar pequenas viagens dentro do meu país. Esse foi o início de um caminho onde pude abrir as portas que me

comunicavam com coisas que me completavam e satisfaziam, como fazer música para pessoas desconhecidas, ouvir meus amigos recitarem poemas nas praças, dormir onde a noite nos levava… Comecei a apreciar o que cada pessoa podia dar para outras, ver como se transformavam os momentos e os espaços com a arte. Esses sentimentos me fizeram adotá-la como algo essencial para a minha vida. O momento exato desse

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despertar foi quando viajei a Ukumarí, Salento e Pereira1 junto com uns amigos de infância, da época da escola. Meses depois realizei minha primeira viagem para fora da Colômbia, onde entendi que por meio dessas atividades artísticas poderia viver e, sobretudo, trabalhar: era uma possibilidade de me manter na estrada constantemente. Isso era o que eu realmente queria fazer da minha vida naquele momento, não me importava mais nada. Ao dar-me conta de que essa ideia era possível, e muito próxima da minha realidade, estava em Máncora, no Peru, onde tomei a decisão de realizar uma viagem mais longa da próxima vez. Tranquei meu curso de desenho industrial e arrumei minha mochila. Revista Perifa: Quais são as influências mais importantes de seus trabalhos? Santiago: Bom, acredito que, de início, a maioria dos trabalhos que realizo se baseiam, ou foram desenvolvidos, a partir do contexto da rua, do contato com os bairros e com outros artistas desse meio. É o que dá ao meu trabalho o rótulo de “callejero”, ou que é proveniente das ruas. Falando mais especificamente, e sobretudo no Brasil, estive muito influenciado pela ideia de América Latina, da afrodescendência, da ancestralidade dos povos originários e da ideia de uma comunidade unida sem fronteiras. Essa era a essência do coletivo a qual me juntei em Foz do Iguaçu, chamado “No Hay Fronteras”. A maioria das músicas e trabalhos em que desenvolvemos aí tratavam de ressaltar esses valores. Trabalhei com amigos do Paraguai que cantavam Rap em guarani, com brasileiros em português, com haitianos em criolo e francês, e eu, somando com o espanhol. Assim, mantive a ideia de que não há fronteiras, que podemos nos unir sem diferenças e que a arte era um dos meios, nesse caso específico com o Rap, para levar adiante essa mensagem. Musicalmente, pegávamos como base ritmo latino-americanos, principalmente brasileiros e com influência africana, para fazer nossos Raps. Procuramos sempre tratar de temas sociais a partir de uma perspectiva crítica, enfatizando as injustiças e desigualdades tão semelhantes nas realidades de nossos países: a discriminação, as agressões e tantas outras formas de violência que, infelizmente, ainda unem o nosso continente. Essa concepção, contudo, não era algo quem deixamos impresso apenas nas canções, era a nossa forma de viver também. Fazíamos arepas em casa, tomávamos uns mates pela manhã e almoçávamos feijoada. Nosso cotidiano fazia com que vivêssemos essa ideia de integração latino-americana, a qual queremos difundir e representar diariamente, graças também 1 Um parque e duas cidades localizadas na região noroeste da Colômbia (Nota do Editor).

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à oportunidade de conviver com pessoas de diferentes lugares. Revista Perifa: Você passou 6 anos viajando pela América Latina, não? Que países visitou? Santiago: Sim. Na verdade foram quase 6 anos viajando pela América do Sul, que recorri por diversos meios de transporte: carro, ônibus, moto, caminhão, Kombi, barco, lancha, cavalo, trem, bicicleta etc… Foi uma viagem muito intensa, entre 2013 e 2019, onde o tempo passou muito rápido e vivenciei situações muito diversas, porém imprescindíveis de alguma forma. Tive a oportunidade de conhecer: Equador, Peru, Bolívia, Argentina, Uruguai, Brasil, Chile e Paraguai. Ainda falta viajar para a Venezuela. Espero poder fazê-lo na melhor oportunidade e, talvez, levar adiante o projeto e seguir para a América Central, o que sempre foi minha ideia nos planos de viagem. Revista Perifa: Que impressões você teve com essa experiência? Quais foram as marcas que essas viagens deixaram na sua vida e no seu trabalho? Santiago: Bom, creio que, primeiramente, mais além da experiência pessoal, existem as impressões de diferentes épocas de cada viagem. Sinto que toda pessoa que sai de suas dinâmicas normais, do cotidiano que contribuiu para a sua formação, sempre vai sentir um alívio profundo e descobrirá o seu verdadeiro ser ao dedicar tempo para conhecer a si mesma e ao mundo ao redor. Essas são ideias que alimentam o bem-estar pessoal e que te ensinam a conviver em outros lugares e com outras pessoas. A partir dessa sensação você


Na estrada pode se dar conta da magia da vida, pela forma como ela se desenrola ao longo da viagem, os encontros com pessoas que te oferecem exatamente o que estava procurando. Acredito que, de acordo com a forma como você conduz a vida, ela vai te mostrando e te entregando as coisas. A energia em que você vibra depende de que suas experiências sejam agradáveis ou não, mas nunca completamente “más”, pois todas elas podem te ensinar algo. Foi lindo fazer amigos, ganhar uma família não biológica e relações amorosas, onde sempre seria o desconhecido, o forasteiro, e encontrar essas pessoas que abrem o coração para você. Isso é o mais valioso e bonito que a viagem deixou marcado em mim. Mas também tem a outra perspectiva, quando se dá conta do contrário, das atitudes egoístas de algumas pessoas, da violência e das más condutas que te ajudam a desenvolver uma defesa e a experiência para lidar com situações adversas, sempre que elas aparecem. A polícia é um exemplo, porque não é muito diferente em todos os lados. Muitas vezes não era seguro ficar próximo a eles, uma vez que muitos se aproveitam da condição de vulnerabilidade de alguém que é estrangeiro e

está viajando. Podem te deter, te roubar e até mesmo cobrar para “deixar” que você trabalhe nos semáforos e em outros espaços públicos. Você acaba virando um observador da vida, pois não tem uma rotina, um lar, um amanhã… De alguma forma é um modo de viver imprescindível, e isso faz com que você se torne um excelente observador. Todos os dias me dava conta da realidade de muitas pessoas apenas pela expressão de seus rostos, pelo caminho que faziam, seus gestos, a forma com que faziam as coisas. A partir disso eu ilustrava toda uma história na minha mente. Fazia isso naturalmente todos os dias. Me sentia como um espectador da vida, o que me ajudou muito a entender como devia me aproximar das pessoas, ser mais humano e empático com a vida. Em mais de uma ocasião nos abriram as portas de uma escola para compartilharmos um pouco de nossas experiências com as crianças, da mesma forma que em diferentes eventos, em bairros e praças, nos proporcionavam essa aproximação e interação com as pessoas de todos os âmbitos da sociedade. Essas coisas marcam muito por seus significados e também Especial América Latina | 45


A receptividade das escolas: interagindo com estudantes do ensino primário no Peru. pela forma repentina e esporádica com que acontecem. A viagem me ensinou a ser um ser do mundo, a me desenvolver em qualquer lugar, a olhar a vida sorrindo e a encará-la com intensidade. A valorizar a arte como um instrumento da integração com todas as pessoas, como uma forma de transformar a realidade, como meio para chegar a qualquer lugar da humanidade, para romper com esteriótipos, estigmas e, sobretudo, para aceitarmos uns aos outros. Hoje em dia posso fazer música, compor canções, fazer artesanato, pintar murais, entreter crianças com malabares ou cantando um Rap. São conhecimentos que me ajudaram a ser uma pessoa que pode ajudar a transformar a sociedade, e isso devo à viagem. Revista Perifa: Na Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai, você participou de um coletivo composto por artistas de vários países. Quanto tempo passou com eles? Que tipo de trabalhos vocês desenvolveram e como foi conhecer outras vivências? Santiago: Sim, vivi com vários Hermanos, de diferentes lugares: Haiti, Paraguai, Venezuela e Brasil. Foram aproximadamente

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dois anos, ou um pouco mais de tempo, não sei ao certo, que permaneci em Foz do Iguaçu, no bairro Cidade Nova 2. Durante esse tempo eu também viajei para outras cidades e estados brasileiros, mas apenas com uma bagagem mais leve. A maior parte das minhas coisas ficavam guardadas em Foz. Agradeço muito por ter conhecido o Mano Zeu, uma pessoa que tem muita influência na cena Hip Hop e cultural da região. Nos conhecemos graças a uma convenção de artistas de circo realizada anualmente no Paraguai. Viajei para esse evento em uma Kombi com vários artistas e a casa do Mano Zeu era uma das paradas obrigatórias. Cheguei e já acabei ficando lá por um tempo. Logo vi a facilidade que tinha de desenrolar várias ideias com ele, além dos escritos que vinha acumulando ao longo da viagem. Vi que a sua casa era um estúdio de gravação também, fato que me emocionou bastante e inclusive me permitiu registrar vários trabalhos. Além disso, percebi também que ele era uma pessoa com um trânsito intenso nos movimentos sociais e culturais da cidade. Depois também tive a oportunidade de conviver os demais Hermanos, graças à Unila2, onde se encontram estudantes 2 A Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) é uma instituição fundada em 2010 e que visa fomentar a integração dos países


de toda a América Latina, muitos dos quais acabaram frequentando a casa do Zeu. Compartilhávamos das mesmas ideias e pensamentos, o que nos levou a criar a “Comuna”, um espaço autônomo e coletivo, regido segundo os princípios de um mundo onde não hajam fronteiras. A partir de nossas diferentes vivências e formações, nos esforçamos para produzir várias canções, que no final compuseram um trabalho chamado “No hay fronteras” e também um pequeno livro de poesia chamado “Hermanos”, que foi nossa última produção. Minhas experiências, tanto na Comuna, como em meus trabalhos diários como artista de rua na Tríplice Fronteira, foram muito enriquecedoras. O dato de levantar todos os dias para logo cruzar uma ponte, sob a qual passava um rio tão grande (O Rio Paraná), para trabalhar no Paraguai te coloca em um contexto estranho. Primeiro, tem que aprender a dominar a linguagem, se acostumar com os horários diferentes, ao câmbio da moeda, saber que é mais ou menos valorizada em cada país… Não exercia muito meu trabalho no Brasil. Era pouco proveitoso por assim dizer. Existia uma espécie de estigmatização com o trabalhador informal, o que me obrigava a viajar até Ciudad del Este, a cidade paraguaia, onde a informalidade e os trabalhos na rua eram bem distintos. do continente (N. do E.).

Me pareceu que em Foz do Iguaçu um rechaço muito grande em relação a esse tipo de atividades e personagens, uma vez que existem registros que mostram a polícia arremetendo violentamente contra essas pessoas. Então, pra mim sempre houve um certo temor de ser agredido, ou pior, detido. São coisas com as quais tive que aprender a lidar, para que minha vida fosse mais fácil e fluida ali, para além de suportar o forte calor que faz naquela região. Apesar disso, sempre me recordo da Tríplice Fronteira como o lugar que foi meu lar por muito tempo, onde conheci pessoas muito importantes para a minha vida, aprendi muitos valores e desenvolvi trabalhos das quais tenho muito orgulho. Revista Perifa: Na sua opinião, qual é a importância da arte para as periferias da América Latina? Santiago: Bom, quando entrava em contato com as comunidades percebia que cada pessoa, fosse uma criança, um adulto ou um velho, me olhava, porque chamava a atenção. O fato de ser artista já é algo que causa comoção por ser uma atração nova. As crianças, por exemplo, sempre se aproximam, começam a fazer perguntas e querem ver o que você faz e o que pode compartilhar. Elas mostram muito interesse em aprender também.

Na Comuna, em Foz do Iguaçu

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Na periferia, como já é bem sabido, vive uma população esquecida e que é carente de oportunidades, fazendo com que essa vulnerabilidade as leve a praticar atividades pouco aceitas e valorizadas socialmente. Não têm muitas chances de conhecer o diferente, o novo, algo que crie e ao mesmo tempo satisfaça a curiosidade. Como consequência, se torna difícil desenvolver raciocínios mais profundos sobre a própria vida, autoconhecer-se e encontrar um potencial. Para mim, isso é algo que a arte ajuda a criar. Mais além do mero entretenimento e do prazer momentâneo que possa nos oferecer, ela também nos ensina. Foi sensacional que qualquer pessoa, em todo o lugar em que eu chegasse, desse conta disso e passasse a pensar que por meio da arte poderia viajar pelo mundo. A arte, nas periferias da América Latina, é muito importante, já que pode mudar, melhorar e salvar vidas. Em várias ocasiões conheci pessoas em condições econômicas muito ruins e as ensinei a fazer alguns artesanatos que pudessem vender. A partir desse trabalho conseguiram incrementar a renda da sua família e, inclusive, começaram a modificar e desenvolver melhor a técnica que haviam aprendido. Assim também foi com os malabares. A maioria dos “points”, casas que recebem artistas e viajeiros, ficavam em bairros da periferia ou povoados mais humildes, onde realizamos “variettes”, eventos onde reunimos toda a comunidade para apresentar espetáculos. Essas apresentações entretinham os moradores por meio das diferentes qualidades de pessoas provenientes de diferentes partes do continente. Cada um de nós apresentava seu respectivo show, ambientado com sua música e seu figurino,

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tudo organizado de forma que permitia a todos apreciar nossa arte. Ali conseguimos estabelecer um contato mais estreito com a sociedade e ver os impactos positivos que geramos. A arte ajuda a entreter, mas para além disso, ela mostra às pessoas que existem outros caminhos, que oferecem oportunidades diferentes das já estabelecidas e baseadas em formas de viver e conviver de formas dignas e humanas, o que é muito importante para a época em que vivemos hoje. Revista Perifa: Quais serão seus próximos projetos? A pandemia impactou seus planos? Santiago: Primeiramente, sim, a pandemia impactou a vida de todos nós, tanto coletiva, quanto individualmente. Pouco antes que ela começasse, eu estive viajando pelo Brasil e, pouco mais de um mês depois que regressei, começou tudo isso. Então, eu acabei deixando de fazer algumas viagens aqui pela Colômbia e só pude entrar em contato com as pessoas pela internet. Ainda consigo desenvolver algumas coisas dessa forma, mas sinto muita falta de ter um contato direto, é algo que penso ser bem importante. Por conta dessa situação eu vou ficar um pouco mais em casa, com a minha família e seguirei fortalecendo os projetos relacionados aos malabares, ao artesanato e às artes em geral. A princípio, tinha planos de viajar até o México, recorrendo a América Central e, quem sabe, ir de navio até a Europa. Mas no momento só penso em me manter na Colômbia e fortalecer as atividades que desenvolvi até aqui para poder compartilhá-las nos lugares por onde passar futuramente.


Machita Crônica

Texto e imagens por Altaveyda Soriano

Dona Comalina, uma velhinha de oitenta e poucos, a quem os anos não tocam, passam por ela com respeito e até com certa admiração. É uma das poucas lideranças do velho campesinato dominicano que resistem ao esquecimento e à exclusão por parte dos setores que propagandeiam “desenvolvimento!”, “progresso!”, e que são os mesmos que em algum momento se beneficiaram da produção agrícola mal remunerada e sem garantias dos hoje “velhinhos do interior”. Dona Comalina, Mamá Chita, ou Machita para aqueles que têm o grandessíssimo prazer de ser seus sobrinhonetos, comer seus cafés da manhã aos sábados, acompanhála à igreja a pé pela estrada à tarde e voltar pela noite, atravessando terrenos para cortar caminho e, claro, deixar uma bênção noturna em cada casa. Isso inclui orar por alguém

que estivesse passando por um mau momento, ajudar algum enfermo a preparar sua janta ou conversar com alguém que estivesse amargurado. Quão grande e luminoso tem sido a trajetória de Machita (para mim, ou Dona Comalina para vocês) por essa terra. É curioso como nunca precisou dizer a ninguém como deviam chamá-la. Todos que a conhecem imediatamente tomam o “Dona Comalina” e deixam o “Machita” para nós, os netos. Estamos constantemente exigindo que receba um respeito que ela mesma nunca pediu, porque sabe que involuntariamente o tem. A Machita devemos muito, e seguirmos devendo mais ainda… Apesar de que já quase não reconhece mais quase nenhum de nós, ou se confunde constantemente enquanto

Dona Comalina

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está falando, passando a automaticamente chamar-nos “Você. Sim, você mesmo”, tem sido uma referência pra todos nós, em todos os sentidos. Desde a defesa dos direitos do campesinato, como subir a voz para qualquer autoridade máxima, se colocar à frente dela e lançar o desafio de que “Se são tão bons como dizem, que passem por cima”. Até seu constante empoderamento da mulher negra rural, com um “Defenda seu cabelo duro como é” ou “Nunca deixem que te digam isso por ser negra”. Tem levado uma vida sem precedentes, ainda que de muita solidão. Desde que seu marido faleceu, a uns trinta ou quarenta anos atrás, nunca voltou a casar. Sempre defendeu que Deus sempre a acompanhou e nunca esteve sozinha. No início a casa estava sempre cheia de pessoas. Alguns iam e vinham na época das férias. Outros viviam com ela até que, com o passar dos anos, os filhos e os netos cresceram e deixaram a Deus todo o direito de acompanhá-la. O que é isso, se não o destino final de todos os idosos neste país, a solidão? Como esquecer de quando costumava gritar “Muchachiiita!”1, enquanto olhando por uma das tantas prateleiras de sua velha casinha, via que estávamos passando dos limites com brincadeiras de mão, ou quando me chamava para que fosse varrer o pátio, para buscar uns pães para a janta ou simplesmente para fazer-lhe companhia. É certo que a memória melancólica evita muitas coisas, pois lembro vividamente de ir à horta para colher mangas e voltar para casa com os baldes meio vazios, porque comia metade no

caminho. Mas quase nunca lembro de quando sua velha casa enchia de água por conta das chuvas e ela tinha que nadar para ir do quarto para a cozinha, os dois pontos mais altos da habitação. Ou das vezes que a vi comer porções mínimas e justificar com “falta de apetite” para evitar que eu sofresse. Em julho de 2020, véspera das eleições presidenciais, um dos meus tios foi levar para ela o símbolo nacional do assistencialismo: uma cesta básica enviada por algum candidato político aos velhinhos da região, que ainda vivem e votam baixo promessas de que se os ajudarem a ganhar, suas vidas mudarão em todos os sentidos. Mas que sentidos serão esses? Muito provavelmente nenhum. Isso ela sabe melhor que ninguém, por conta dos quase 17 processos eleitorais que viveu e sempre ouviu o mesmo. Em um momento seus olhos se encheram de lágrimas e disse: “A gente aqui cozinhando esse pedaço de mandioca para comer puro, mas com uma esperança tão grande!”. Assim está todo desprivilegiado, em cada canto que tem sobrado neste bagaço de país, sempre esperando, ainda que não saiba o que, nem como, nem para quando, nem de quem. Os “velhinhos do interior” hoje esperam uma vacina, amanhã a próxima pior seca de todos os tempos, passada a próxima cesta básica em busca de votos e assim até que deles não reste nada mais que a espera do primeiro dia de descanso.

1 “Garotiiinha!” em tradução livre.

Altaveyda Soriano é dominicana, estudante de Economia e Desenvolvimento Latino-americano, escritora e fotoperiodista do cotidiano periférico nas horas vagas.

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História

O Parc National Historique

(PNH-CSSR) no Haiti: o símbolo de liberdade desconhecido Texto e imagens por Loudmia Amicia Pierre-Louis

Na pequena cidade de Milot, no departamento do Norte, no interior do Haiti está edificado o complexo monumental do Palácio Sans-Souci e suas dependências, a Cidadela Henry e o Site des Ramiers que fazem parte do Parc National Historique (PNH-CSSR). Essas obras foram tombadas como patrimônio internacional pela UNESCO em 1982, e nacional em 1995. Vamos apresentar um pouco do contexto no qual esses monumentos foram erguidos, os quais materializam a história da resistência negra e antiescravista da Nossa América. Mas antes de tudo é preciso situar o Haiti geográfica, social e histórico-culturalmente, visto o desconhecimento que se tem no Brasil dessa ilha. Apesar do grande fluxo imigratório

de haitianos que se dá desde 2010, ainda é frequente sermos identificados como originários de algum país africano. Pois bem, o Haiti é uma das grandes ilhas do Caribe junto com a República Dominicana com a qual divide a ilha Quisqueya1, Cuba, Jamaica e Porto Rico. Dependendo da época e do autor consultados, a definição 1 Preferimos o nome de Quisqueya atribuído à ilha pelos indígenas, hoje dividida entre a Rep. do Haiti e a Rep. Dominicana. A historiadora Odette Roy Fombrun defende seu uso, em vez de Hispaniola como Colombo a denominou. Segundo ela, Quisqueya evoca a cultura taína, enquanto, Hispaniola evoca o genocídio dos indígenas. Cf ROY FOMBRUN, Odette. Renommons l’île: Quisqueya, non pas Hispaniola. Revue d’Histoire et de Géographie, n. 206 . 2001. p. 52, 53.

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de “Caribe” pode incluir somente as ilhas do arquipélago Americano, ou além delas, alguns territórios do continente. Falam entanto, do Caribe extenso composto do Caribe insular (as grandes e pequenas ilhas) e o Caribe continental (as costas dos países da América Central, as costas dos países do norte da América do Sul, as penínsulas de Yucatan do México e da Flórida)2. São territórios geograficamente banhados pelo Mar 2 ELÍAS CARO, Jorge E.; VALLEJO S., Fabio. (Ed.). Los mil y un Caribe…16 textos para su (des) entendimiento. Colombia: Universidad del Magdalena, 2009. p. 380.; MUÑOZ, Laura. El Caribe en los mapas de la revista National Geographic. Revista Brasileira do Caribe, São Luis-MA, Vol. XIV, nº28, p. 271290, Jan-Jun 2014. Disponível em:<http://www.periodicoseletronicos. ufma.br/index.php/rbrascaribe/article/view/2899/pdf>. Acesso em 10/01/2021.; SAN MIGUEL, Pedro L. Consideraciones intempestivas sobre los estudios caribeños. In: MUÑOZ, Laura. (Ed.). Narrar el Caribe: Visiones históricas de la región. México: Instituto Mora, 2019. Disponível em:<https://books.google.com.br/books?id=AQrPDwAAQBAJ&pg=PT5 45&lpg=PT545&dq=Odette+Roy+Fombrun+quisqueya+ou+hispaniol

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do Caribe e que historicamente sofrem da mesma ventura - exceto nesse caso da península da Flórida pertencente aos Estados Unidos. O Haiti é então um país do Caribe insular, região que se definiu como estratégico por sua relevância geopolítica desde o século XV com a chegada do colonialismo com Cristóvão Colombo, e as políticas intervencionistas e militares dos Estados Unidos desde o final do século XIX. O Caribe, em geral, é fortemente estereotipado e exotizado. É o lugar das praias paradisíacas, do negro e mestiço sensual, do indígena aniquilado, dos tesouros escondidos e dos piratas, mas também da pobreza. O Haiti em particular carrega esse último aspecto, e também incorpora os estereótipos da barbárie e da feitiçaria os quais são amplamente adaptados pelas produções cinematográficas Esse hollywoodianas3. Haiti, outrora, chamado de “Pérola das Antilhas” tanto pela beleza das suas cidades e a riqueza que os escravizados a&source=bl&ots=SrHljY55uL&sig=ACfU3U2TqKFCs9JDuZ49xCvwPTBzXO YtIQ&hl=pt-BR&sa=X&ved=2ahUKEwiP5Pv325TuAhVUELkGHZjCCA8Q6AEwC HoECAYQAg#v=onepage&q=exotis&f=false>. Acesso em 15/01/2021. 3 Entre 1915 e 1934, durante a ocupação militar estadunidense, o vodu, religião de matriz africana foi objeto estereótipos, difundidos nos Estados Unidos e na Europa pela imprensa e, sobretudo, no cinema, como um culto de canibais em que imperam sacrifícios e bruxaria. O filme White Zombie de Victor Halperin, por exemplo, lançado em 1932, primeira produção de terror dos EUA baseado na “superstição” negra, do vodu, deu espaço para outras produções que atraíram cada vez mais público, como Ouanga (1936) de George Terwilliger; I walked with a zombie (1943) de Jacques Tourneur; Voodooman (1944) de William Beaudine, entre outros. Cf: PEPIN, Amélie. Du mythe à la subversion: trois manifestations de la figure du zombie filmique. Mémoire - Faculté des lettres et sciences humaines, Université de Sherbrooke. Sherbrooke, 119. 2011


proporcionaram à metrópole francesa4, hoje é considerado como o país mais pobre do hemisfério ocidental. As informações acima são bem breves, foram encurtadas devido ao espaço reservado a essas linhas que precisamos respeitar, mas podem orientar um pouco o leitor que se depara pela primeira vez com o assunto. Então agora falemos um pouco dos nossos monumentos. A Citadelle Laferrière, o Palais Sans-Souci e o complexo de Ramiers foram erguidos na cidadezinha de Milot, no norte do país5 no contexto da pós Revolução de 1791. Esta Revolução, uma das menos prestigiadas das revoluções da modernidade, se caracteriza 4 A colônia francesa de Saint-Domingue era a mais lucrativa, mas também a mais rica de toda a América no final do século XVIII. É importante frisar que a riqueza produzida em Saint-Domingue se valia do sistema de plantation e pelo fato desta colônia ter sido a mais populosa de escravizados do Caribe, a região “acolheu” mais escravizados que o próprio Brasil, por exemplo colônia que por si só importou quatro milhões de africanos. Cf TROUILLOT, M.-R. Silenciando o Passado: Poder e a Produção da História. Curitiba: Huya, 2016, 263p.; GOMEZ, E. Alejandro. Le Syndrome de Saint-Domingue: perceptions et représentations de la révolution haïtienne dans le monde atlantique, 1790-1886. Thèse de doctorat en Histoire - ÉCOLE DES HAUTES ÉTUDES EN SCIENCES SOCIALES, Paris, 2010. 5 ELIE, Daniel; CHÂTELAIN, Philippe. La Citadelle Henry: Un monument qui le mît debout. Bulletin de L'ISPAN, Haïti, n° 28, p. 20, 1er Septembre 2011.

por seu caráter antiescravagista, antirracista e anticolonial. E, estas características são justamente as que dão origem ao silenciamento sobre a importância da dita revolução, uma vez que questiona e vai em contra dos próprios fundamentos da Modernidade. Ressaltemos aqui que a Revolução de 1791 que deu lugar à independência haitiana, não passou despercebida pelos escravizados das outras colônias, que a evocavam em diversos momentos. Tampouco foi ignorada pelas elites coloniais, para as quais o Haiti não era apenas um exemplo histórico diferente, mas sim um “exemplo perigoso”6. Pois bem, o Estado haitiano, cujo marco fundador se 6 GOMEZ, E. Alejandro. Le Syndrome de Saint-Domingue: perceptions et représentations de la révolution haïtienne dans le monde atlantique, 1790-1886. Thèse de doctorat en Histoire - ÉCOLE DES HAUTES ÉTUDES EN SCIENCES SOCIALES, Paris, 2010; HERNÁNDEZ, Juan Antonio. Hacia una história de lo imposibles: La revolución Haitiana y el “Libro de pinturas” de José Antonio Aponte. 2005. 285 f. Tese (Doutorado) - Curso de Philosophy, Arts and Sciences, University of Pittsburgh, Pittsburgh, 2005; NASCIMENTO, Washington Santos. “São Domingos, o grande São Domingos”: repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista (1791 – 1840). Dimensões: Revista do Programa de pósgraduação em História da UFES, Vitória, n.21, 2008.

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dá em primeiro de janeiro de 1804 com a proclamação da sua independência e abolição da escravidão, decreta três meses depois, mediante o imperador Jean-Jacques Dessalines, a construção de fortalezas em lugares estratégicos do país. Para defender a liberdade e a independência conquistadas após longos séculos de resistência, contra uma provável volta do colonizador7, no alto das montanhas foram então elevadas fortificações que permitissem uma vista panorâmica do território, e portanto, uma excelente vigilância do mesmo. Esses três monumentos do PNH-CSSR fizeram parte, primeiramente, da Cidade Real de Sans-Souci arquitetado por Henry Barré como capital política, militar e administrativa do reino de Henry Christophe, que se autoproclamou Rei Henri I em 1811 da parte norte do país, dividido então entre uma República no Sul e um Reino no Norte8. Ao retomar a etimologia latina “monere”, isto é, 7 A preocupação em defender a nação contra uma volta dos franceses não era infundada, tendo em conta que a França realizou várias tentativas para restabelecer o sistema colonial no Haiti. Cf RENÉ, 2019, p. 215. 8 PÉRARD, Jean-Herold. Henry Christophe: un grand méconnu. Canada: Protech LP, 2018.

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advertir, lembrar, da noção de monumento9, as construções do PNH-CSSR podem ser classificadas como tal. Pois, a edificação das obras foi pensada a priori, intencionalmente, como elementos para rememorar e defender a vitória da revolução e o saber-fazer dos negros ex-escravizados de Saint-Domingue. A Citadelle Laferrière - maior das fortalezas do Haiti, inclusive do Caribe, construção inacabada, localiza-se a 970 metros de altitude acima do nível do mar - como o resto da Cidade Real serviria para fazer lembrar para sempre, que a revolução teve lugar e que a nação dirigida por negros estava de pé e não pretendia cair. Os monumentos do parque passaram a ser objeto de interesse do poder público nas décadas de 1920 quando o Estado começa a promulgar leis e decretos para administrar os bens culturais da nação. Mas, foi em 1940 e 1941 que teve especificamente uma lei e um decreto-lei voltados à preservação dos sítios e monumentos históricos. Contudo, foi no final da década de 1950 que se observa uma real atenção do Estado haitiano para com a cultura e os bens culturais10. Antes 9 CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade/Ed.UNESP, 2001. 10 PIERRE-LOUIS, Loudmia A. Haiti entre a nação e o patrimônio: 1940-


disso, observava-se apenas algumas medidas ocasionais, limitadas. É importante aproveitar o espaço aqui cedido para apontar que a década de 1950 corresponde ao período da ditadura militar dos Duvalier (1957-1986) no país. E, vale pensar nos males do período ditatorial como não totalmente superados. Nos dias atuais, o período da ditadura não é estudado na escola e, quando tratado, é de forma bastante superficial11. Foi nesse período de violência arbitrária contra a população local, que o PNH-CSSR foi reconhecido como patrimônio da humanidade (UNESCO, 1982) por carregar o simbolismo de liberdade contra a opressão colonial escravista, enquanto, a nação era brutalmente oprimida. Apesar das várias críticas que podem ser feitas ao Estado haitiano que logo após a sua independência vem aplicando formas coloniais na sua administração12, o Haiti, sua revolução e os monumentos do PNH-CSSR junto com outras fortalezas construídas para defender os valores desta resolução, constituem-se em símbolos importantes da 1990. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em História AméricaLatina) - INSTITUTO LATINO-AMERICANO DE ARTE, CULTURA E HISTÓRIA (ILAACH), Universidade Federal da Integração Latino Americano, Foz do Iguaçu, p. 76, 2019. Disponível em: <https://dspace.unila.edu.br/ handle/123456789/5500>. Acesso em: 30/01/2021. 11 Não conseguimos ainda acessar nenhum trabalho que trate desse assunto, mas por enquanto esta afirmativa parte da nossa experiência na escola no Haiti e nas conversas recentes com alunos(as) do ensino fundamental e médio. 12 No período pós-independência, várias violências da época colonial foram mantidas. Por exemplo, os campesinos praticavam trabalhos forçados nos latifúndios da elite e eram submetidos a penosos castigos corporais, Suas práticas culturais como a língua kreyòl e a religião vodu também eram perseguidas. Cf CASIMIR, Jean. Une lecture décoloniale de l’histoire des Haïtiens: Du traité de Ryswick à l’occupation américaine 1697-1915. Port-au-Prince: L’imprimeur, 2018; RENÉ, Jn. Alix. Haïti après l’esclavage. Formation de l’État et culture politique populaire 1804-1846. Port-au-Prince: Le natal S.A, 2019.

resistência contra as violências da modernidade. Pois, pela primeira vez, temas como raça, colonialismo e escravidão eram questionadas e postas em xeque. É preciso falar sobre o Haiti e sua revolução de forma desmistificada para superar os silenciamentos acerca da Revolução de 1791 e os estereótipos e exotismos sobre o país que a academia e as grandes mídias13 vêm impondo. Faz-se necessário resgatar as referências negras de resistência para articular nossas lutas presentes, porque o nosso presente requer liberdade. Portanto, acreditamos ser de suma importância, sempre que possível, lembrar desta revolução e tentar trazer seus valores para nosso mundo presente. Estudar o Haiti e seu simbolismo no Brasil, por exemplo, país com a segunda maior população negra do mundo, é também estudar além da história do colonialismo, seus efeitos nas antigas colônias e as resistências dos marginalizados. É sobretudo, entender esse pequeno país caribenho a partir das similitudes históricas que essas duas nações, e outras da região, têm em comum. É se abrir também para conhecer melhor os imigrantes haitianos presentes no território brasileiro. 13 Quando o Haiti aparece nas mídias brasileiras é sempre para falar da miséria desse país caribenho, sem no entanto, mencionar as colonialidades que estão por trás e para propagar uma série de estereótipos e exotismo acerca do país.

Loudmia Amicia Pierre-Louis é haitiana, graduada em História e reside no Brasil há 10 anos.

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Opinião

As Periferias satélites Por Eddy

Nasci e cresci no interior da Guatemala, em um antigo pueblo de indios do período colonial (provavelmente um Amaq’ pré-hispânico fundado no século XII), que durante a Independência e as Reformas Liberais do século XIX se converteu no atual município de Patzicía. Durante toda a época colonial esses pueblos de indios tinham uma relativa autonomia política, se relacionando com os poderes centrais coloniais principalmente através do trabalho forçado e do pagamento de tributos (e através da Igreja, claro). Mas a partir do final do século XIX isso mudou, com a instituição do Estado da Guatemala como um ente político único e fortemente centralizado. Na verdade, seria um erro acreditar que – por mais anarquista que alguém possa pensar-se – não se é guatemaltecx, cubanx, mexicanx, brasileirx, ou de onde quer que se tenha nascido e/ou vivido. Talvez a “apatridez” possa existir a nível individual, mas dificilmente em nível coletivo. As fronteiras são reais, e terminam por nos definir, pelo menos culturalmente. Talvez os únicos povos que não possuam pátria, por exemplo, sejam aqueles que habitam sobre uma fronteira, cujo território ficou dividido por dois ou mais países distintos (na América Latina há muitos exemplos), ou povos e comunidades de onde o Estado se ausentou. Mas não esqueçamos que a repressão policial também é presença estatal, e talvez em sua mais pura forma. Em países pequenos com os da América Central (onde o maior, Nicarágua, é um pouco menor que o estado brasileiro do Amapá e o menor, El Salvador, não chega nem a metade do Rio de Janeiro), com uma larga história de centralismo, as cidades que são capitais nacionais concentram um grande peso, em vários sentidos. Dessas seis cidades, a Ciudad de Guatemala segue sendo a maior, devido à sua herança colonial de capital da Capitanía General de Guatemala (que compreendia todo o istmo centro-americano, desde Chiapas, no México, até o extremo oeste do Panamá). É aí onde se concentram as oligarquias mais poderosas da América Central, que até hoje atuam como uma nobreza. No século XX a Ciudad de Guatemala se consolidou como coração e cérebro do Estado guatemalteco.

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Isso fica claro quando observamos que a metade da população total, 17 milhões, é rural (48,9%), e na região metropolitana, a única do país, habita apenas um quarto desse contingente populacional. A vida de todos os guatemaltecos está diretamente ligada à Ciudad de Guatemala e é aqui onde queria chegar. É comum pensar que a periferia é formada unicamente por aqueles bairros pobres, marginalizados, das grandes metrópoles de nosso continente. E claro que também o são. Temos, por exemplo, Jorge Teixeira, Novo Aleixo, Compensa, entre outros em Manaus (bairros que são chamados pela imprensa escrita como “periferias da periferia”); as favelas em toda a região metropolitana de São Paulo; e em Ciudad de Guatemala La Línea, Barrio Gerona, El Gallito, El Basurero General (que não é um bairro, mas sim um punhado de gente vivendo em um lixão), La Limonada, La Bethania, etc. Mas a explosão urbana na América Latina também criou zonas periféricas formadas dentro do centro e mesmo das próprias periferias. Seria uma espécie de primeiro e terceiro mundo em cada país, como diriam os geógrafos. É possível ver como isso se reproduz desde os poderes centrais nos países do centro do sistema internacional até o âmbito local. Isso em qualquer parte do mundo. É comum, ainda que não seja uma regra, encontrar a raiz da população das periferias urbanas nas zonas rurais. Lembro que quando, pela primeira vez, li “El Trueno en la Ciudad”1 (O Trovão na Cidade), um livro sobre operações de uma célula guerrilheira do Ejército Guerrillero de los Pobres (EGP), no final da década de 1970. Desde então não consigo pensar o urbano sem pensar em uma cidade cercada por guerrilheiros. E acredito que é uma boa metáfora para 1 Publicado pela primeira vez em 1987 (Juan Pablo Editores) na Cidade do México, “El Trueno em la ciudad” é um livro de Mario Payeras (19401995), filósofo, poeta, escritor e comandante guerrilheiro guatemalteco. Ele relata as operações urbanas das guerrilhas do Ejército Guerrillero de los Pobres (EGP), da Organización Revolucionaria del Pueblo en Armas (ORPA), e como a inteligência militar destruiu as casas seguras dessas organizações. O objetivo do autor foi fazer uma análise dos erros da guerrilha urbana na Guatemala.


o fenômeno da segregação urbana (segregação que tem expressões fora do espaço urbano). Uma cidade cercada por um exército de pestilentos e malnutridos guerrilheiros, que vivem aí em qualquer parte. A cidade é importante como palco de acontecimentos. Uma greve geral ou uma passeata em São Paulo, Brasília ou Ciudad de Guatemala pode mudar o rumo do país. Tem sido assim desde o século XVIII, pelo menos. A América do Sul é um bom exemplo disso. As manifestações em 2019, que a imprensa chamou de “Primavera Latino-americana”, contra as políticas neoliberais em Quito, Bogotá, Santiago, La Paz, e que se estenderam a outras cidades como Guayaquil, Cochabamba, Santa Cruz, Medellín, Cali, Valparaíso, Temuco, entre outras, demonstraram a importância das grandes cidades como cenários políticos, onde os movimentos políticos usam estrategicamente o poder da organização social. Mas para além das cidades grandes, existe a margem rural, que representam outro tipo de periferia, com um potencial organizativo e identitário que supera o ideário do Estado-nacional. A população das zonas rurais, e claro, das periferias urbanas, foram determinantes nas manifestações de 2019. A presença indígena e rural foi pesada e histórica na Bolívia, no Equador e no Chile. Porém, o objetivo aqui não é fazer uma exaustiva revisão desses movimentos de dois anos atrás, nem de suas causas e consequências, mas abrir o debate sobre a questão do rural, visto como um elemento dialeticamente ligado à cidade, especialmente na América Latina. O abandono da periferia, urbana ou rural, pelo Estado, ou sua presença unicamente como agente repressor, raras vezes transcende para além de seus limites com o centro. Parafraseando uma socióloga indígena guatemalteca,2 na periferia só se conhece o Estado pela escola ou pela polícia/ exército, como instrução e como disciplina. As manifestações que ocorreram em 2015 na Guatemala, e que terminaram com a renúncia de um presidente e sua posterior prisão (a BBC escreveu “Revolución Pacífica en la región más violenta del mundo”), foram na verdade a típica demonstração urbana das classes médias (e das que

aspiram a essa posição) vestidas com as cores da bandeira, algo bem conhecido no Brasil. A história terminou com a simples substituição do representante do governo e, desde então, tudo piorou. Nesse mesmo contexto, as mobilizações indígenas se deram em todo o ocidente do país, uma região predominantemente ocupada por descendentes dos povos originários. Elas foram mais intensas em Cumbre de Alaska ou Cumbre de Nahuala’, o ponto mais alto da Rota Interamericana3, no departamento de Sololá, onde três anos antes o exército nacional havia assassinado seis manifestantes campesinos e indígenas. Para concluir, o texto acima é apenas uma reflexão que parte do fato de como a segregação espacial, criada pela concentração de riqueza nas grandes cidades, símbolos do progresso capitalista, não se expressa unicamente na materialidade do espaço urbano, mas por relações que se estendem a todo o território controlado por um Estado-nação. E no atual contexto de mundialização capitalista, que significa que o capitalismo não é apenas internacional, mas que possui enclaves no mundo todo, é possível encontrar polos de riqueza absoluta e de pobreza absoluta dentro de uma mesma cidade, ou em uma cidade em relação às zonas rurais. Para superar essa condição e avançar na construção de uma sociedade mais inclusiva, somente uma articulação de frentes urbanas e rurais pode conduzir, e garantir, grandes mudanças sociais. Acredito que hoje em dia isso é relativamente mais fácil, não apenas por causa dos avanços das tecnologias de comunicação, mas pelo amadurecimento, a partir da reflexão constante e da construção dialética de identidades interseccionais, formas de se perceber no mundo a partir de meditações críticas. 3 Rodovia que atravessa a América Central de norte a sul, ligando o México ao Panamá.

2 Veja entrevista com a socióloga Gladys Tzul Tzul no canal da CLACSO TV, no Youtube (em espanhol).

Eddy nasceu músico. É também indígena, dos que são vistos nas notícias, não daqueles dos cinema. Pagão e antropólogo, (quase) geógrafo, entusiasta das lutas campesinas e da destruição do latifúndio. Às vezes é acadêmico, às vezes montanhista e quase sempre punk.

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