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ESTUDOS DALCIDIANOS

Casa de Cultura Dalcídio Jurandir Apresenta

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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) J91p

Estudos Dalcidianos – 4ª. ed. – Belém: Marques, 2015. 100p. – (Estudos Dalcidianos / organizada por Marques Editora e Casa de Cultura Dalcídio Jurandir) ISBN ?

1. Literatura paraense. I. Título.

Distribuição: Marques Editoras Av. Magalhães Barata, 391 Belém - Pará Fones: (91) 3249-5800 Impressão: Grafica Sagrada Família Ltda. Av. Magalhães Barata, 391 Belém - Pará

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1ª Edição

Belém - Pará - Amazônia - Brasil Marques Editora 2016

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Coordenação Editorial Carlos Pará

Realização Marques Editora Casa de Cultura Dalcídio Jurandir – CCDJ   Revisão Elias Teles Diagramação Elias Teles

Digitação Carlos Pará

Projeto Gráfico/Capa Marques Editora Foto da Capa Acervo Dalcídio Jurandir

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SUMÁRIO Apresentação .......................................................................................................................................... 07 1 - DALCÍDIO JURANDIR: AS OSCILAÇÕES DE UM CICLO ROMANESCO por Benedito Nunes...................................................... 10 2 - DALCÍDIO JURANDIR, UMA LEITURA DO CAROÇO DE TUCUMÃ: VIAS DE SONHOS E FANTASIAS por Rosa Assis ....................................................................................27 3- MARAJÓ SOB O SIGNO DA ANTROPOLOGIA E DA ESTÉTICA por Audemaro Taranto Goulart ..................................................35 4- CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA DE DALCÍDIO JURANDIR E O CICLO DA BORRACHA por Anderson Luiz Cardoso Rodrigues.....................................................................................................30 5- PALCOS DA LINGUAGEM: UMA LEITURA PSICANALÍTICA DE CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA, DE DALCÍDIO JURANDIR ............................................................................34 6- PERSONAGENS E PROBLEMAS EM DALCÍDIO JURANDIR. O FAZENDEIRO-CORONEL por Gutemberg Guerra................................................................................40 7- “NÃO INSISTA. A DESPEDIDA É LOGO MAIS, É HOJE, É AGORA´: LINDANOR CELINA PRANTEIA DALCÍDIO JURANDIR”por Julia Maués ...............................................46 8- MITO E SOCIEDADE EM DALCÍDIO JURANDIR: ANOTAÇÕES EM TORNO DE MARAJÓ por Silvio Holanda ....................................................................50 9 - UNIVERSO DERRUÍDO E CORROSÃO DO HERÓI EM DALCÍDIO JURANDIR por Marli Tereza Furtado.................................................................................60

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10- FAZENDEIROS E VAQUEIRAGEM NO MARAJÓ, DE DALCÍDIO JURANDIR por Marcos Vinnícius C. Leite. ........................................................................66 11- DOS CAMPOS DE CACHOEIRAS A BELÉM DO GRÃO PARÁ por Josebel Akel Fares .............................................................................................................................74 11- DOS CAMPOS DE CACHOEIRAS A BELÉM DO GRÃO PARÁ por Josebel Akel Fares .............................................................................................................................74

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APRESENTAÇÃO Com a responsabilidade de promover e divulgar a vida e a obra de Dalcídio Jurandir (19091979), considerado um dos maiores escritores da Amazônia, apresentamos os Estudos Dalcidianos Jurandir, uma reunião de artigos e publicações do autor e sobre ele publicados em livros, jornais, revistas, dissertações e teses acadêmicas para servir de fonte bibliográfica e referência teorica aos professores e alunos da rede estadual de ensino. Através desses ricos e diversos pontos de vistas sobre as Obras produzidas entre os anos de (1941- 1978) que constituem o Ciclo do Extremo Norte (Chove nos Campos de Cachoeira, Marajó, Três Casas e Um Rio, Belém do Grão Pará, Passagem dos Inocentes, Primeira Manhã, Ponte do Galo, Chão dos Lobos, Os Habitantes, Ribanceira), os quais nos apresentam um detalhado retrato da sociedade e um amplo quadro da cultura amazônica baseado em pesquisas etnográficas e antropológicas, em um estilo documental, sem folclorização e com propriedade para procedimentos poéticos, propomos uma grande ação educativa, cultural, artística que reúne ações educacionais, literárias, jornalísticas sobre Dalcídio Jurandir. O Ciclo de debates e homenagens ao escritor vem sendo desenvolvido com várias atividades exemplares na França, Alemanha, Belém, Rio de Janeiro, Niterói e nos Municípios da Ilha do Marajó (Ponta de Pedras, Cachoeira do Arari, Salvaterra, Soure), em prol da sua herança cultural, tanto arqueológica e histórica, quanto literária e artística, em parceria de pessoas, grupos e várias entidades culturais, de pesquisa, ensino, formação, governamentais e não-governamentais. Em 1972, a Academia Brasileira de Letras concedeu a Dalcídio Jurandir um prêmio pelo conjunto de sua obra — entregue por Jorge Amado. E ao longo dos tempos, essa obra vem servindo de referência para estudantes, professores, pesquisadores, atores, artistas, escritores e, através dos comentários expressos por personalidades do nível de Antonio Olinto, Luiz Antonio Pimentel, Josué Montello, Bruno de Menezes, Ferreira de Castro, Benedito Nunes, José Cândido de Carvalho, Moacir Werneck de Castro, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, podemos legitimar a importância desse escritor amazônico que, sem dúvida, escreveu uma obra prima que merece ser incorporada ao cânone da literatura brasileira. A falta de publicação, debates e referências sobre Dalcídio Jurandir, considerado um dos maiores romancistas da América Latina, determina um trabalho intenso de pesquisa, documentação, editoração e reprodutibilidade. Neste sentido, no ano em que Belém do Pará comemora seus 400 anos de Fundação, a Secretaria de Educação do Estado do Pará – SEDUC, através do Projeto: “Belém 400 Anos” promove o programa: “Dalcídio Jurandir nas Escolas” uma grande ação literária, educativa, cultural, artística com a responsabilidade de promover e divulgar a Vida e a Obra de Dalcídio Jurandir. A iniciativa é da Escola Estadual Barão do Rio Branco (USE5), escola onde o autor iniciou seus estudos acadêmicos, em parceria com a Casa de Cultura Dalcídio Jurandir – CCDJ, a Fundação Casa de Rui Barbosa, Estudiosos de Dalcídio, Universidades e a Revista PZZ- Arte, Educação e Cultura

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Dalcídio Jurandir: as oscilações de um ciclo romanesco por Benedito Nunes O romance de Dalcídio Jurandir (Ramos Pereira), nascido na vila de Ponta de Pedras, no Marajó (Pará), em 1909, é uma formação plural. Cresceu por acréscimo, obra após obra. Chove nos campos de Cachoeira, Marajó, Três casas e um rio, Belém do Grão-Pará, Passagem dos Inocentes, Primeira manhã, Ponte do Galo, Os habitantes, Chão de Lobos e Ribanceira. Dez romances ao todo, publicados de 1941 a 1978, e que, excluindo-se Linha do Parque, de temática proletária, posta em ação no Extremo Sul, integram um único ciclo romanesco, quer pelos personagens, quer pelas situações que os entrelaçam e pela linguagem que os constitui, num percurso de Cachoeira na mesma ilha — cidade de sua infância e de sua juventude — a Belém, onde o autor viveu antes de transferir-se para o Rio de Janeiro. ‘Desde os vinte anos eu sonhava em fazer uma obra que fosse o pensamento da juventude”, declarou Da[cídio Jurandir, referindo-se a esse ciclo romanesco iniciado em Chove nos campos de Cachoeira e pela doença interrompido no décimo volume, Ribanceira (1978), mal o romancista chegara à velhice, Pode-se dizer que o escritor maduro, falecido em 1979, conseguiu concretizar nessa obra extensa o pensamento de juventude, o seu sonho juvenil. A primeira oscilação do ciclo é a que vai, acompanhando o seu percurso, do rural ao urbano, de Cachoeira, focalizada em Chove nos campos de Cachoeira e Três casas e um rio à metrópole paraense, Belém do Grão-Pará, que dá título ao quarto livro da série, e que será ainda em Passagem dos Inocentes, Primeira manhã, Ponte do Galo, Os habitantes e Chão de Lobos, horizonte da ficção do nosso autor, antes de retornar, em Ribanceira, a uma urbe rural da Amazônia. Cachoeira, como descrita em Três casas e um rio, “vivia de primitiva criação de gado e da pesca, alguma caça, roçadinhos aqui e ali, porcos magros no manival miúdo e cobras no oco dos paus sabrecados”. Salvo as notabilidades locais, a cujo número pertence o Major Alberto, pai do menino Alfredo, que o tivera da preta retinta Dona Amélia, sua empregada e ama solícita, salvo as grandes famílias, proprietárias de latifúndios, onde um gado ainda selvagem dispunha de imensas pastagens, os personagens, nascidos nas páginas do primeiro livro, Chove nos campos de Cachoeira, pertencem à raia miúda: são vaqueiros, empregados das fazendas, domésticas, pequenos criadores, vendedores ambulantes na metrópole, Personagem central do ciclo, alter ego do narrador, Alfredo só não está presente em Marajó, É ele, ainda criança, transferido para Belém, afim de prosseguir nos estudos, que faz do conjunto um ciclo biográfico e geográfico, da ilha do Marajó à capital do estado do Pará. Porém, esse percurso vai estender-se indefinidamente dentro do romance, graças ao mínimo e miraculoso objeto, um caroço de tucumã, fruto comestível de uma palmeira espinhenta, manejado como veículo de imaginação pelo menino, e que dele, de suas mãos, salta logo em Chove. “Era então necessário aquele carocinho na palma da mão”, escreve-se em Três casas e um rio, “subindo e descendo, de onde magicamente desenrolava a vida que queria [.,] Com efeito, o carocinho de tucumã na palma da mão e no ar, era movido por um mecanismo imaginário, por um pajezinho fazendo artes dentro do coco”. Mas por que se pode aplicar a essa obra a expressão “ciclo romanesco”? Muito embora, pelos seus antecedentes folhetinescos, a escrita do romance em geral tenda ao episódico, à recorrente multiplicação de ações, situações e personagens em períodos de duração determinada, não são tão numerosos, como se poderia crer, os romances de caráter cíclico, nos dois sentidos que é lícito dar a essa expressão. O primeiro sentido corresponde à execução de amplo e continuado projeto, seja o conhecimento do indivíduo em meios e ambientes sociais diversos, como o que Balzac perseguiu em seus vários romances, sob o título geral de Comédia humana, seja a comprovação de uma idéia ou tese, como a da hereditariedade fatal das taras em famílias debilitadas pela pobreza e pelo álcool, ordenadora do grande painel naturalista de Émile Zola, os Rougon-Macquart. Entre nós, Octávio de Faria escreveria uma Tragédia burguesa em mais de dez volumes para focalizar a decadência moral e espiritual ou religiosa da sociedade brasileira moderna, 10


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Mas o ciclo de Dalcídio Jurandir não tem projeto cognoscitivo antecipado nem obedece ao intuito científico de comprovar conceitos abstratos. O que não está ausente em qualquer das obras que o compõem é, porém — e teremos o segundo sentido da expressão, com a denominação de roman fleuve — a interligação de cada uma delas com as demais. Tal como acontece em O tempo e o vento, de Érico Veríssimo, Os Buddenbrooks, ou José e seus irmãos, de Thomas Mann, ou, ainda, em Os sonâmbulos, de Hermann Broch, o romance de Dalcídio, com paisagens, personagens e situações comuns, desdobra-se em romances. Em todos eles encontramos uma história dividida em histórias de diversificada narrativa, mas de forma circular, porque sempre voltando aos mesmos pontos, em longo percurso temporal, que pode depender da memória de quem narra, lembrança após lembrança, parte após parte, tomo após tomo, como em À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust. Tal como nesta, a memória do narrador, remergulhando na sua infância e na sua juventude, abastece o ciclo do nosso romancista. Se não posso deixar de relacionar o roman fleuve de Dalcídio com os de Balzac e com os escritos ficcionais do Nordeste nos anos 30 — os quais, por sua vez, descenderiam da narrativa “naturalista” do paraense nascido em Óbidos, Inglês de Sousa (O missionário e O coronel sangrado) — também não me é possível esquecer, por esse lado da introspecção, de que depende o mergulho na infância e na juventude, o seu parentesco espiritual com Marcel Proust. As paisagens urbanas e rurais recorrentes — Cachoeira do Arari e Belém, o vilarejo na ilha do Marajó e a metrópole, além de Santarém, no Baixo Amazonas — se personificam na memória de Alfredo, um dos principais personagens, se não for a sua figura central como ligação entre os romances componentes, e que mais visceralmente próximo está do narrador, com um estilo indireto livre tendendo ao monólogo. O Ciclo do Extremo Norte, o ciclo de Dalcídio, enxerto da introspecção proustiana na árvore frondosa do realismo, afasta-se, graças à força de auto-análise do personagem e à poetização da paisagem, das práticas narrativas do romance dos anos 30, como uma certa constrição do meio ambiente e da tendência objetivista documental, afinadas com a herança naturalista. De maneira precisa, esse afastamento, já marcante em Belém do Grão-Pará, se tornará definitivo em Passagem dos Inocentes. Este romance se volta, de novo, para Belém, onde Alfredo já estivera e que aquele primeiro abrira num largo panorama urbano. Cumpre-nos abrir um parêntese sobre esse panorama. Quem lê Belém do Grão-Pará, como o romance dos Alcântaras (o casal seu Virgílio/dona Inácia e a filha Emilinha), lê a inteira cidade dos anos vinte, tal como a tinham deixado, após o início da decadência econômica, conseqüente à crise da borracha, que culminara em 1 91 2, as reformas do Intendente (prefeito) Antônio Lemos, O drama daquela família, com a qual Alfredo vai viver, drama todo exterior, de perda de status, levando-a, após o lemismo, a uma mudança de casa e de rua, está relacionado com aquela decadência, Sob a inspiração da gorda filha do casal, os Alcântaras, para tentar recuperar o status perdido, transferemse para a rua dos ricaços, dos fazendeiros, a Av. Nazaré, mas vão habitar uma casa arruinada pelo abandono e pelos cupins, enquanto seu Virgílio se deixa subornar pelos contrabandistas, perdendo o emprego público. É o momento em que a casa, que cheirava a cupim e a mofo, ameaça desabar. A família, com a participação dos empregados e de Alfredo, carrega, de madrugada, os poucos móveis que lhe restam, incluindo um piano, símbolo da perdida distinção social, que a adiposa Emilinha mal podia dedilhar, para a acolhedora sombra das mangueiras à beira da calçada. Só o curioso Alfredo, dono de mágico carocinho, vê a cidade com olhos preparados para descobri-Ia. A segunda oscilação do ciclo é a que vai da descrição da realidade rural ou urbana à sua recriação poética. São os olhos do menino do sítio, matuto e bicho do mato, que inventam os recantos e encantos da grande cidade: as ruas sombreadas de mangueiras, o Largo da Pólvora sonolento, com o Theatro da Paz, neoclássico, no meio da verdura, as casas baixas ajaneladas, de corredor ou puxadinha, os sobrados revestidos de azulejos que brilham ao sol. E que silêncio naqueles azulejos, que viver lá dentro muito do bem macio, sossego de se respirar o cheiro. Não sabia se por causa das mangueiras ou por ficar embevecido nos azulejos de baixo, lhe parecia que as arroxeadas casas subiam céus adentro com aquele azul de cima e as nuvens por telhado,132 Alfredo surpreende a riqueza pictórica do Ver-o-Peso, inseparável de sua densidade humana. E na fase das águas grandes, das enchentes. 11


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Viva maré de março visitando o Mercado de Ferro, lojas e botequins, refletindo junto ao balcão os violões desencordoados nas prateleiras. Os bondes, ao fazer a curva no trecho inundado, navegavam. As canoas, no porto veleiro, em cima da enchente, ao nível da rua, de velas içadas, pareciam prontas a velejar cidade adentro, amarrando os seus cabos nas torres do Carmo, da Sé, de Santo Alexandre e nas sumaumeiras do arraial de Nazaré.133 Ora, nessa recriação poética da paisagem urbana, alternam-se, como antes na poetização do interior ou dos campos do Marajó, a fabulação e a rememoração, pólos da terceira notável oscilação desse ciclo, cunhando o seu porte altamente memorialístico, de que provêm, por vezes, as passagens mais patéticas e pungentes dos romances já mencionados. Assim, a auto-análise prima no episódio da morte da irmãzinha de Alfredo em Três casas e um rio: Alfredo não quis ver a irmã no caixão [,1 Os passarinhos revoando, chocavam-se na parede de madeira do chalé. Teriam compreendido também? Dirigiu-se à sala e olhou novamente o relógio. Gostaria que o relógio se dispusesse a trabalhar andando para trás até a primeira hora em que nasceu Maninha.134 Esse traço proustiano se adensa com um toque forte, à maneira de Dostoievsky, da mimese de rebaixamento, de que fala Northrop Frye, quando esse personagem central descobre que a mãe, D. Amélia, para desgosto e indignação de major Alberto, se embriagava: Abandonando a mão de pilão, d. Amélia veio em busca dele e Alfredo sentiu-lhe o hálito tão forte, como o hálito dos bêbados que se habituara a observar na taberna de Saiu ou no mercado, [.1 De repente, despregou os cabelos, abandonou o pilão, passou a mão cheia de alho nas fontes, dirigiu-se para o fogão num andar vacilante. Soprou as brasas, uma onda de cinza cobriu-lhe o rosto e espalhou-se pela cozinha. Alfredo naquele instante não sentia nenhuma piedade por ela e sim um ácido ressentimento quase próximo do ódio, do horror e da repulsa. Quis gritar qualquer coisa quando eia se voltou para ele, puxando-o para o seu colo e o acariciou com aquele ardor de bêbada e de louca, com aquele fedor de álcool e de alho.135 Em 1963, momento da publicação da Passagem dos Inocentes, encontrei-me, no Rio, com Dalcídio, então emocionalmente abalado, senão traumatizado, pela leitura de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Escritor nato, ele jamais tentaria imitar Rosa; mas esse impacto estético serviu para despertar nele as mais recônditas potencialidades de sua linguagem, um tanto recalcadas pela vigilância realística, senão política, que exercera sobre o seu estilo, sem que jamais tivesse podido afiná-lo ou desafiná-lo pelo metrônomo do realismo socialista, então fórmula adotada pelo Partido Comunista Brasileiro, a que desde a juventude pertencera. Essa vigilância podia exercer-se como censura interna ou externa, o que de qualquer forma gerava uma situação dramática para o escritor, pondo em causa o ciclo, seu sonho de juventude, mas não a causa política, que, de certa maneira, foi outro sonho. A solução do autor, para esse conflito, foi, a meu ver, sacrificial. Linha do Parque, que está fora do ciclo, é uma outra escrita. Dalcídio não podia afinar com o realismo socialista, prescrito pelo Partido, sem trair o seu sonho de juventude. E para não traí-lo ou trair-se fez-se outro autor escrevendo Linha do Parque Sem pseudônimo. Outrou-se, como diria Fernando Pessoa, na criação de uma escrita romanesca diferente: escreveu um livro de aventuras, com personagens heroificados lutando em prol da causa do Partido. O autor é aí uma outra personalidade literária diferente. Um heterônimo. Passagem dos Inocentes, quinto volume do ciclo, não foge ao realismo, mas requalifica, lingüisticamente, o permanente vínculo com a sociedade e com o mundo que essa tendência respeita. É preciso dizer desde logo, para evitar todo e qualquer equívoco, que pelo uso não só de termos locais ou regionais, tanto substantivos, adjetivos e verbos, quanto expressões coloquiais, a narrativa do nosso autor sempre primou, desde Chove nos campos de Cachoeira (1941), pelo relevo dado à fala dos personagens, como um dos principais dados da atestação documental da realidade, também preeminente em Marajó (1947), Três casas e um rio (1958) e Belém do Grão-Pará (1960). Lá estão, como amostras desses dados, em Passagem dos/nocentes, “assado” (aborrecido), “panema” (azarado), “sereno” (os que assistem festa do lado de fora), “mundiar” (atrair a caça), “pitiar” (cheirar a peixe) e seu derivado “pitiosa” (como “pitiú”, cheiro de peixe), “ariar”_(limpar 12


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com areia), “zinideira” (zunido de pernilongo), “variar” (ter alucinações), que não será preciso reforçar com os nomes regionais peculiares de árvores, ervas, velas, mastros, cordames de barco, quando não fosse com as diversificadas expressões: vocativa (“mea filha”), exclamativa, de repulsa ou asco (“axi”!), diminutivas (“iazinho”, “descerzinho”) ou com as várias palavras que o romancista pode ter inventado, apoiando-se no imaginário lingüístico da região, como, entre outras, nessa rápida coleta, “empanemar” (de “panema”), “tristição”, “ralhenta”, “despaciente”, “trovoadal”, “navegagens”, “esposarana” etc. etc Assim, as metamorfoses da língua, já trabalho do imaginário lingüístico, que sempre responde a uma realidade humana, social e politicamente dimensionada à qual se ata, ingressam largamente, mas principalmente através da fala dos personagens, na fabulação da narrativa e no seu desenvolvimento romanesco. Chamamos de fabulação da narrativa a resultante da elaboração de uma história pelo discurso que a exprime mediante o ato de narrar, a narração propriamente dita, como voz de quem conta, encadeando os fatos numa seqüencia de ordem temporal. Em geral, a voz do narrador é neutralizada pela dos personagens a que dá iniciativa, seja quando monologam, seja quando dialogam. Em Passagem dos Inocentes, como nos anteriores romances, se a dominância do estilo indireto livre evita o completo monólogo, não tolhe porém a introspecção, a conversa do personagem consigo mesmo, sua reflexiva reação aos acontecimentos e aos outros ou a sua visão do mundo manifesta, verbalizada: Por certo a professora nunca viu um laranjal e dele falava na forma de números. riscos, fração... [...] Faltava a laranja na aula. Uma boa aula de maracujá faltava. Em vez da laranja ou do maracujá, era: Quem em mil quinhentos e quarenta e nove chegou na Bahia? [..,] Ensinar era palavrear? Aprender engolir palavra? Alfredo não via os objetos de que falavam as lições [,..] Aquela figuração da Terra num globinho paradinho em cima da mesa, de redondez de não se acreditar, em cores, seus continentes e mares de papelão? Mais planeta Terra era o seu carocinho sobe e desce na palma da mão, no mesmo segundo à roda do sol, colégio, chalé, rio, Andreza e borboleta, e ele, Alfredo, trapezista, no arame do equador.136 Mas o que sucede nesse texto, Passagem dos Inocentes, é, precisamente, como requalificação da narrativa pela linguagem, a adesão da voz de quem narra à fala dos personagens, o que leva a um grau de máxima aproximação o ato de narrar e a maneira de ver e sentir o mundo de cada um deles — de Dona Cecé, do filho dela, Belerofonte, do marido, seu Antônio, de Leônidas, do bêbado falastrão, o Cara-Longa, postado na taberna da esquina, em concorrência com o ponto de vista onipresente de Alfredo. A partir daqui, a partir desse Passagem dos/nocentes, a voz do narrador tende a ser neutralizada pela dos personagens, a que dá plena iniciativa nos diálogos que entretêm. É como se em Primeira manhã, Ponte do Galo, Os habitantes, Chão de Lobos a dialogação conduzisse a narração e com a narração se confundisse como maneira de ver e de sentir o mundo dos personagens em afluência. Os personagens afluem e confluem seus falares, suas dicções. É nesse nível, também, que a história se desdobra em histórias, o que é um procedimento clássico, usado desde Boccaccio e Cervantes. Que melhor exemplo do que o caso contado por Dona Abigail em Primeira manhã? — Isso de secu/o secu/orum me faz lembrar a vez que fui me confessar no padre, eu menina, me assanhando de moça, mas ninguém me achando senão moleca. Pois o padre, foi abrir a janelinha do confessionário, me viu, me cochichou: entreaberto botão, entrefechada rosa .,. Mas nunca, olhe que nunca mais me esqueci dessas palavras, não, nunca, então eu já não era menina, não? Eu podia me confessar? O padre me fazia moça. Menina não é mais, seu olhar dizia. Eu escutei duas vezes, fiz que estava rezando, um medo me deu, mas contente, depois do espanto, de descobrir que eu chegava a moça. Assim ajoelhada. Num repente me botei de pé, enfiei a cabeça pela janelita, fiz uma língua deste tamanho pro padre: entreaberto é a mãe, reverendo, cuchel E olhe! Não sei como me vi no meio da rua, foi num relâmpago.137 Mas por esse mesmo lado, que acentua o caráter memorialista da obra (vejam-se os trechos de freqüentação do Ginásio Paes de Carvalho em Ponte do Ga/o e Os habitantes, a descrição dos meninos capinadores de rua, a morte de um carrossel do interior em Chão de Lobos), destaca-se a oscilação do ciclo entre o individual e o coletivo. É como se o romancista fizesse a crônica da década 13


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de 20 a 30 (Chão de Lobos, p. 26-28) — visando mais a ação de grupos ou a atividade coletiva. Dona Cecé da Passagem dos Inocentes, no Umarizal, perto da Santa Casa, que desejava fosse a mais nobre Passagem Mac Dowel, a mesma Dona Celeste do sobrado de Muaná, fala, queixosa e maternal, com a menina cabocla Arlinda, vinda do interior para trabalhar nos serviços caseiros: — [...} tu não vieste para um castigo, isto aqui não é um degredo, Arlinda, aqui podes encorpar ou não cresces, és baé? Pior era se teu tio — Deus te livre — te metesse no orfanato. Amanhã, possível, estás aí emplumada, saindo daqui pela mão dum rapaz trabalhador. Doutro modo não. Te assoa neste pano, toma. Prum castigo tu vieste? Te disseram isto? Vai, aquela-menina, puxa um balde d’água, te asseia, te passa sabão, te esfrega com sabugo de milho, passa folha de vindicá no braço e peito, tu precisa é duma lixa, te desencardir minha encardida! Ariar bem teu corpo, sua pitiosa, mea papasiri, mea papa-gurijuba... 138 Cara-Longe faia mal de todos, vizinhos e autoridades, apostrofando, criticando, condenando: [,..] Que vai que amanhã é quarta-feira. Feriado na Inocentes. Vou contratar banda dos bombeiros E...] Vai sair numa carruagem invisível, de pluma e sombrinha, a rainha das nossas paihas. Vai passar a cidade em revista. Vai dar o seu bordo, sim, o seu giro pelo Centro. É a sua via amorosa? Caia-te, Sardanapaio [.1 Gente, soa por aí que o forno da Cremação, adeus, se apagou, quebrou, parou de vez reduzido a ferrugem. Não se tem mais onde incinerar o hxo e os cachorros hidrófobos. Não ouviram que principiou a dar uma moléstia nas crianças que os médicos não sabem? As repartições de Saúde estão reunindo, conferências e mais conferências.139 Talvez seja esta adesão do narrador ao personagem — maior no caso de Cara-Longe, quase uma invasão ao ponto de vista — que também possibilita piurahzar a narrativa. Essa pluralização se torna patente com a entrada, na estrutura do romance, das múltipias vozes em tumulto de uma multidão rebelada, protestando contra o descaso das autoridades responsabilizadas pela morte de numerosas crianças, vítimas de um surto epidêmico, batizado popularmente de “tiaguite” (do nome do prefeito, Tiago), que grassava na cidade. Alfredo correu-que-correu para o Largo da Pólvora, deshzou peia macia calçada do Rotisserie, cego para os cartazes do Oiímpia, rodela o chafariz sem água, avistou: iá se vai, á se vai, na sina do caminhar, já noutro iado, meio desfeita na sombra bem fechada das mangueiras [.1 Em tão tamanha acumulação de pessoas que é que acontecia? Alfredo atrapalhou-se, engolido peia enchente, não sabia romper as maihas, cai num rebojo fundo, que tantas criaturas, procissão de santo não era, então que era, que era?14° Inicia-se, então, ionga e diversificada passagem dramática, onde interferem, ao iado de incidentais discursos autônomos, faixas, cartazes de protesto e diálogos cruzados de anônimas figuras do povo. É uma cena aberta na Praça da República. Ao pé da estátua alegórica republicana, aglomeram- se diferentes grupos de trabalhadores, homens e mulheres, que envolvem Alfredo, ah chegado depois de haver seguido, por muito tempo e de longe, Dona Cecé, num de seus misteriosos passeios das quartas-feiras. A narrativa continua em distintiva forma dialogada, em que se alternam Uma voz, A mulher grávida, A primeira voz, A voz de outra mulher, o tamanco na mão. Faixas se sucedem: Sociedade Beneficente dos Funileiros, Federação das Classes em Construção Civil, União dos Caldeireiros de Ferro. Depois, A voz do cabeludo empunhando a bandeira. Dos protestos contra a tiaguite, passa-se ao protesto político e à reivindicação social: “— Segundo o Eclesiastes, o proveito da terra é para todos... “141 Esse transbordamento dramático, a rigor, cênico, da ação, é uma polifonia de vozes, decorrente do entrechoque dos diversos faiares em tumulto, em correspondência com a diiatada envergadura lingüística, grupal e coletiva da narrativa. Creio que a partir de Passagem dos Inocentes, o Cicio do Extremo Norte cresceria na proporção dessa envergadura, que adquire, em Ribanceira, um porte de sátira social. Novamente a ligação biográfica: Alfredo, Secretário da intendência (Prefeitura) de uma cidadezinha das ilhas, a caminho do baixo Amazonas. A geografia é bem outra: a sede do Município é uma ruína, parada no tempo. Mas a sátira não é arrogante ou perversa; o 14


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estilo adquire a leveza do transbordamento cômico, os personagens tornam-se caricaturas, a reflexão salto de c/own de um Alfredo melancólico a ouvir do Chefe Prefeito: — Fino, ouviu? Fino, Neutro diante das altercações e boatos [...] Também vim para as próximas eleições. Não estamos tratando de capinar os cemitérios? Desde já agradando, com prioridade, aqueles nossos fiéis correligionários defuntos [...] — Esta? Esta cidade é toda-toda cemitério [...] Toma um fôlego o Intendente, se encolhe, piscando muito, Salta a toiça de capim, cai-lhe um botão do dólmã. — Nomearam-me Intendente Municipal dos Escombros.142 Nesse interior do Pará, onde vai viver o Secretário, a História, jamais trágica, vira farsa. O memorialismo do romance de Dalcídio entra numa galea de espelhos, com múltiplos reflexos internos, em que o ciclo se converte. Cada romance traz a memória dos que o antecederam. No município podre, “Alfredo vê os Alcântaras fugindo da casa, em Nazaré, que desabava. Apanha um caco de azulejo, se lembra de Dona Celeste e seu sobrado demolido”. Em concorrência como realismo do painel sócio-satírico, sem proselitismo político, dá-se, no Ciclo do Extremo Norte de Dalcídio Jurandir, a interna harmonia da vívida ou vivida lembrança proustiana, que é sempre recordação da infância, se não for sonho de juventude.

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BELÉM DO GRÃO-PARÁ. Crônica de Belém: “Belém do Pará” por Benedito Nunes Com a publicação recente de Belém do Grão-Pará, que pertence ao primeiro ciclo de romances do Extremo Norte — do qual fazem parte Chove nos campos de Cachoeira. Marajó e Três casas e um rio — Dalcídio Jurandir firma definitivamente o seu nome como introdutor da paisagem urbana da Amazônia na literatura brasileira de ficção. Belém não figura nesse romance apenas como um pano de fundo tropical. É mais do que um simples conjunto de quadros pitorescos enlaçados para realçar o conteúdo humano da narrativa. A cidade está presente em Belém do Grão-Pará com a sua atmosfera característica e. mais do que isso, com a personalidade inconfundível de seus aspectos sociais, integrando um vasto panorama, uma paisagem, que é a síntese da sociedade do Extremo Norte. A Belém que polariza a ação do romance, e que define a situação dos personagens. dentro das distintas camadas da população urbana, é a metrópole dos primeiros anos que se seguiram ao debâcle econômico da Amazônia, em conseqüência da perda do monopólio mundial da borracha. À euforia do súbito enriquecimento, sucedeu o início da depressão e da estagnação que se prolongaram no atual marasmo da sociedade e da economia regionais. O espelho em que se reflete esse declínio, ocorrido no primeiro decênio do século — e até trouxe novos chefes de prestígio para substituir os governadores e prefeitos dos bons tempos da borracha—, é a família dos Alcãntaras, cujas vicissitudes reproduzem, em ponto menor, sob a forma de um drama doméstico, a desventura política e o desastre econômico da região. Não se pense, porém, que os tipos criados por Dalcídio Jurandir, em seu novo romance, sejam espectros de uma situação objetiva, diluídos no meio social urbano que o escritor descreve magistralmente. Belém funciona na história a título de personagem maior, mas não aparece como um cenário fixo que encerre e limite o movimento dos personagens propriamente ditos. É através da experiência subjetiva desses personagens, Alfredo, Libânia, Emilinha, Inácia, Virgílio, Isaura, Mãe Ciana e Antônio, que a cidade começa a existir, ora palpável e visível, nas ruas que eles percorrem, nos jardins que visitam, nas casas em que moram, ora desmaterializada, concentrando-se toda nas sensações fugidias, nos aromas, nas cores, na qualidade do ar e da luz que eles percebem. Ela se humaniza na medida em que vai sendo descoberta e vivida, Os personagens dialogam, defrontam-se com a cidade, que, além de ser ambiente e paisagem, compõe uma figura multiforme, humanizada e ideal, que tem personalidade própria. Cada qual ocupa, nesse confronto, nessa dialética de uns com os outros e de todos com a cidade, uma posição determinada no contexto social. Desse modo, os seres humanos do romance de Dalcídio Jurandir, Belém do Grão- Pará, que existem em função de um certo meio urbano, com as suas características peculiares, não constituem um simples reflexo das condições desse meio. É por intermédio deles que Belém se transforma numa paisagem interior riquíssima, num conjunto de vivências coordenadas, que dão forma aos acontecimentos e expressões, ao que de objetivo, histórico e socialmente relevante está envolvido nos episódios particulares e circunstanciais. Daí os dois aspectos que caracterizam a estrutura do romance: a unidade de visão e transfiguração poética da realidade. A unidade de visão nada mais é do que a fixação simultânea dos elementos objetivos e subjetivos que compõem uma dada situação humana. Esses elementos se entrelaçam intimamente, formam um todo vivo, animado, auto-subsistente e válido do ponto de vista artístico. Assim, por exemplo, o drama doméstico dos Alcântaras está relacionado com a decadência material e a desagregação política do Norte subseqüente à crise da borracha. Esse aspecto propriamente histórico e social, que é o lado objetivo da situação humana total focalizada pelo romancista, não é exposto separadamente do outro aspecto, subjetivo e doméstico. As duas ordens de acontecimentos se interpenetram na mesma trama articulada unitariamente. A mudança de nível social que a família experimenta, depois da queda do prefeito Lemos, a cuja política pertencia o casal, Virgílio e Inácia Alcântara, ele como administrador do Mercado de S. Braz, ela como dirigente entusiasta da ala féminina que apoiava o lemismo, traduz-se por uma simples mudança de casa. Os prósperos afilhados do poderoso prefeito, privados da proteção oficial, vão residir, após o tombo político do padrinho, que ainda foi um episódio complementar da crise elásti16


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ca da borracha, numa casa modesta, localizada atrás da Basílica de Nazaré, em rua sem calçamento, onde procuram esconder o seu estado de pobreza. Na sala da nova residência, o piano solitário é o indício da antiga abastança. A filha do casal, Emilinha, solteira, gorda e infeliz nos amores, sente-se frustrada: de sua janela vê somente os fundos do 26 BC e o capinzal de uma vacaria. A mãe,

D. Inácia, que é um caráter primoroso, tem nostalgias do lemismo e, conservando a psicologia da mandona política, censura Virgílio por não ter ele sabido aproveitar as boas graças do prefeito. A família, sob a inspiração de Emilinha, tentará recuperar, pelo menos coerentemente, a posição perdida. Essa tentativa de ascensão é o lado doloroso e trágico do romance. Os Alcântaras se transferem para a Avenida Nazaré, a rua dos fazendeiros, da gente rica. Aí continuarão a viver na ilusão de que podem disfarçar a falta de recursos, numa casa arruinada pelo abandono e pelos cupins. O aluguel, caro, valia o local ruidoso, trepidante, que os bondes sacudiam ao passar. Virglio, depois de uma luta de consciência, é subornado pelos contrabandistas e perde o emprego. É o momento em que a velha casa, que cheirava a cupim e a mofo, ameaça desabar. Os Alcântaras, de madrugada, evitando o olhar curioso dos vizinhos, carregam para debaixo das mangueiras acolhedoras, os poucos móveis que tinham e que mal davam para encher a enorme sala de visitas. O pequeno mundo que se forma em torno dos Alcântaras deixa-nos entrever a composição da sociedade belenense, que muito pouco se tem modificado até os dias de hoje. A serva da casa, Libânia — retrato perfeito da nossa jovem caboclinha, com a sua sedução nativa, a sua espontânea sensualidade, sua malícia infantil — e Antônio — o menino que veio de um ponto distante do interior e que sabe contar histórias da assombração nas matas e nos rios — são exemplares perfeitos do imenso contingente da nossa população rural desenraizada, que emigra para Belém. Outra linha de personagens — Mãe Ciana, Isaura, Lício, Magá — representa a camada semi-indigente dos habitantes da cidade, descendendo dos antigos escravos que trabalhavam nas fazendas do Marajó. Ela é depositária de uma tradição cultural heterogênea, em via de perecimento, na qual os elementos religiosos, negros e indígenas, se misturam com os usos culinários e com os específicos da perfumaria e da farmacopéia regionais. Os personagens, como se vê, pertencem a hierarquias distintas, que integram o universo humano arquitetado pelo romancista. Esse universo, por sua vez, é inseparável do panorama social que ele soube reconstituir, e da paisagem urbana que soube plasmar. Fundindo, numa só expressão de conjunto, a realidade exterior com a experiência vivida, o objetivo com o subjetivo. Dalcídio Jurandir alcança a transfiguração poética de Belém. E isso ele consegue especialmente devido à interferência de Alfredo, figura original do ciclo do Extremo Norte, que vem de Cachoeira para a companhia dos Alcântaras, a fim de completar os estudos na cidade grande, Alfredo, que é o elemento de conexão entre os diferentes personagens e o elo entre os mais importantes episódios da trama, espectador e também participante dos acontecimentos, introduz, no processo da narrativa, o ângulo de experiência pessoal necessário à recriação poética da realidade, São os seus olhos de menino-do-sítio, de matuto, de bicho-do-mato, que descobrem os recantos e os segredos de Belém: as ruas sombreadas de mangueiras, o Largo da Pólvora, sonolento, com o Theatro da Paz, neoclássico, no meio da verdura, as casas baixas, ajaneladas, de corredor ou puxadinha, os sobrados revestidos de azulejos que brilham ao sol. Mas a recriação poética de Belém, quer como paisagem, quer como meio social — os dois aspectos formando uma só realidade — para exprimir o que ela tem de típico, de característico, de concreta universalidade, baseia-se no aproveitamento das peculiaridades linguísticas regionais. Os modismos, locuções e vocábulos privativos de consumo local, além da forma sintática que a fala nortista adota espontaneamente, permitiram, melhor do que outros aspectos mais estabilizados e mais conhecidos da cultura regional, já em estado de folclore, penetrar na psicologia do povo e na sua maneira de interpretar a vida. Foram elementos dessa ordem, que fazem parte da linguagem popular (sendo a linguagem um modo de ser, de sentir e de agir), que Dalcídio Jurandir estilizou tanto nos diálogos quanto nas narrativas, valendo-se, ao máximo, do rendimento estético e do valor poético que podem oferecer a sintaxe melodiosa e a riqueza semântica do linguajar nortista. Disso é que se origina, talvez, a poesia elementar, bem terrestre, demasiado humana, que o seu romance transmite, dando livre curso aos sentimentos contraditórios e ao pensamento confuso que a terra amazônica, ainda não subjugada pelo homem, inspira à alma nativa, perplexa e impotente dentro de seu próprio meio.

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DALCÍDIO JURANDIR,uma leitura do caroço de tucumã: vias de sonhos e fantasias por Rosa Assis Ler a obra de Dalcídio Jurandir é sempre despertar para nova pesquisa, novo estudo, porquanto é abundante e rico o material folclórico e lingüístico encontrado em cada página de seus romances da série Extremo-Norte, ambientados na região amazônica, mais especificamente na ilha de Marajó e nos bairros e subúrbios de Belém, cenário constante dessa obra cíclica. Assim, no extenso texto dalcidiano, brota desde o começo do ciclo, e intencionalmente, um curioso personagem, ou melhor, uma espécie de elemento mágico, ou meio mágico meio mítico, proveniente ao mesmo tempo da mata marajoara, da língua nativa e da cultura popular, que de imediato encanta o leitor: é um simples caroço de tucumã, apanhado no chão da vida natural, interiorana, ribeirinha, dos habitantes do Marajó. É um elemento constante ao longo de toda a obra, mas que é sobremodo freqüente e importante no primeiro romance, Chove nos campos de Cachoeira, no qual o caroço de tucumã domina do princípio ao fim e quase que produz toda a narrativa, e ao qual, por isso mesmo, restringiremos com exclusividade nossa análise e exemplificação. Muitas vezes, esse caroço, como veremos, aparece no livro sob outros nomes ainda mais simplificadores, no sentido da coisa simples mas significativa (carocinho, bolinha). Ele é "plantado" no texto dalcidiano, como dissemos, logo no início do ciclo narrativo, no germinal, a todos os títulos, Chove nos campos de Cachoeira, e rolará pelo ciclo inteiro, à exceção do segundo romance, Marajó. É o próprio narrador, aliás, já para o final do primeiro livro, quem define claramente a natureza e os poderes mágicos do nosso pequenino e insólito personagem, capaz de operar maravilhas em favor do seu companheiro inseparável e personagem principal e propriamente dito em toda a história: Alfredo Alfredo tinha ainda de buscar querosene. A garrafa presa no cordão, a bolinha no bolso. Agora, com a noite, não pode jogar o carocinho. Mas é bom, quando no escuro, dentro da rede, a bolinha sobe e desce na palma da mão. Assim dá um encanto maior, varinha mágica, varinha de condão que as fadas invejariam. Os meninos do mundo inteiro não conhecem o carocinho de tucumã de Alfredo. As fadas morreram, o encanto vem dos tucumãzeiros da Amazônia. O carocinho tem a magia, sabe dar o Universo a Alfredo. Tem um poder maior que os três Deuses reunidos... (p. 374) 1 Como se vê, o carocinho (como é mais freqüentemente e afetuosamente chamado ou invocado) foi a fórmula mágica, vinda da floresta amazônica e da cultura indígena, do folclore regional, que o romancista marajoara recolheu e recriou para servir como um tipo curioso, e quase personificado, de leitmotif do personagem Alfredo, ao longo de todo o ciclo. Com efeito, as coisas começam a acontecer já na primeira cena, na primeira página, na primeira linha do Chove, graças ao poder mágico do carocinho que aí faz sua aparição e continuará aparecendo e interferindo por toda a narrativa, tornando-se desde aí para Alfredo - personagem central da série - o seu singelo talismã (tucumã) ou a sua tosca varinha de condão, conforme se lê no próprio texto do romance, sempre pronta e apta a levá-lo onde quer que o empurrem os seus sonhos e anseios, desejos e fantasias, imaginações ou devaneios: Voltou muito cansado. Os campos o levaram para longe. O caroço de tucumã o levara também, aquele caroço que soubera escolher entre muitos no tanque embaixo do chalé. (p. 117) Daí em diante, o carocinho mágico e maravilhoso (isto é, que tem o dom do maravilhoso,conforme também diz explicitamente no texto o narrador, como se verá, e aliás no sentido estritamente 18


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literário do maravilhoso fantástico2) rolará pelo livro inteiro, até o último capítulo, até as últimas linhas da última página do romance, quando Alfredo inadivertidamente o deixa cair no chão e sente-se impotente para juntá-lo, por temer, mais uma vez, as reprimendas do pai, do severo Major. E assim termina o Chove, literalmente sob o signo do carocinho prestimoso e travesso: Alfredo sacode o lençol, o carocinho salta no soalho correndo para debaixo da rede do Major, como se fugisse. E o menino, como que desamparado, perguntava a si mesmo: - E agora? - Major, na rede, parecia proteger aquela fuga. Sem coragem para recolher o carocinho, com medo que Major tivesse visto e quisesse ralhar, Alfredo se aquietou na rede e esperou que seu pai ao menos se levantasse para ouvir Salu, na saleta, contando baixinho a Dadá o romance da Rainha e Mendiga. (p. 401) O texto literário, como se sabe, parte da realidade do mundo para a deformar ou transformá-la, no sentido estético do termo, isto é, dar outra forma, uma outra linguagem àquela realidade, criando assim uma outra realidade. Daí ser difícil estabelecer com segurança e exatidão uma correspondência direta entre a vida real de Dalcídio Jurandir e a vida literária, imaginária, poética, do personagem Alfredo. Todavia, as inúmeras coincidências que se pode encontrar entre as dificuldades e ansiedades do menino pobre que realmente viveu em Cachoeira do Arari, e as ansiedades e dificuldades do fictício menino Alfredo, são tão evidentes que em muitas passagens do romance parecem de fato corresponder à vida e ao cotidiano que tivera o menino Dalcídio, projetando-se no comportamento do menino-personagem, no seu dia-a-dia, na sua vidinha, por assim dizer, como se lê nos seguintes passos do texto, sempre recorrendo aos mágicos poderes do carocinho:Já estava aborrecido com aquele mercado. Perdeu a bolinha numa toiça. Agora ia sem bolinha. Um quilo de carne. Todo dia isso. (p.214) Mas quem manda não levarem ele para Belém? Para o colégio? Para longe do quilinho de carne? Do carocinho de tucumã? (p. 340) Nessa mesma manhã vira o pai de Tales de Mileto comprar três quilos de carne e ele com o seu quilinho ... Vamos, carocinho, leva quatro quilos de carne para o chalé! O carocinho tinha o dom do maravilhoso. (p. 371) Carocinho, faça Alfredo no colégio, livre do querosene, da carne, do açúcar e do pão! (p. 375) Aliás, quanto a esse papel mágico ou fantástico do carocinho, surgindo desde o início e gerando toda a obra cíclica, é o próprio romancista que nos fala explícita e poeticamente, em entrevista concedida em Belém do Pará, em 1976, a Antônio Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão: o caroço de tucumã, jogado na palma da mão de Alfredo levava o menino ao diálogo com sonhos, e ambições e miragens. Esse jogo solitário, no campo ou debaixo do ingazeiro, se tornou em fermento romanesco. Do grelo no caroço pobre brotou Chove nos campos de Cachoeira, matriz de toda a obra. Com o tucumã na mão, foi capturando almas, cenas, figuras, linguagem, coisas, bichos, costumes, a vivência marajoara que ressoa, miudinho como num búzio, em dez volumes. Acompanhemos pois, mais uma vez, a presença do caroço de tucumã na mão do personagem, observando, inclusive, sua multiplicação de acordo com o contexto em que aparece. A febre faz Alfredo mais agarrado à rede, às revistas, aos caroços de tucumã que joga na palma da mão. (p.191) 19


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Tudo fazia para que Alfredo se encharcasse de sonho, de imaginações. A bolinha subia e caía na palma da mão. (p.248) A bolinha no bolso, os passarinhos brincando no ingazeiro, o quarto fechado, aquela roupa na corda... (p. 347) Vai procurar o carocinho. O carocinho deve estar dentro da rede. (p.386) Alfredo, com o carocinho na palma da mão afastava a morte, dava alegria ao chalé, seguia na Lobato para Belém. (p. 397) No último exemplo, o personagem-caroço assume, como por vezes acontece, a identidade do próprio Alfredo, ou com este se misturando, se confundindo, numa só figura romanesca. O caroço livra o menino dos perigos, transporta-o para um mundo de riquezas e farturas, ora conversa, ora discute, discorda, confidencia, ou mesmo faz as pazes com o protagonista, satisfazendo, também, os sonhos do agora menino-rapaz, seus anseios afetivos, até mesmo, indiretamente, seus desejos sexuais. Enfim, o caroço e Alfredo se identificam a ponto de tornarem-se quase que inseparáveis. É como se a existência de um dependesse da presença do outro. Nas mãos de Alfredo, o caroço resolvia tudo; apenas em raras situações parece ficar impotente para resolvêlas, mas nem por isso é afastado, abandonado por seu dono. Alfredo não seria ninguém sem o caroço, ou por outra, só seria alguém com o caroço. Para tudo, virtualmente, o caroço (carocinho, bolinha) era a salvação, ou a solução, e, se chegarmos ao extremo, era até o impossível. Fazia de conta tudo o que pudesse fazer de conta. Na verdade, o faz-de-conta, no sentido poético do termo, é que era o verdadeiro mundo do menino Alfredo, um mundo de sonhos e fantasias, vivido na magia do caroço de tucumã: O caroço ficará nos campos queimados contando a história do faz-de-conta. (p. 119) Ele então armava um Brasil faz-de-conta. (p. 250) A bolinha sabia criar o faz-de-conta. (p. 304) Sem o carocinho, como imaginar as coisas, como ser mais que Tales de Mileto, como saber viver no faz-de-conta? (p. 378) O colégio era um sonho, faz-de-conta era a única salvação; mas as mãos paravam fatigadas de tanto jogar o carocinho. (p. .398) Assim, os acontecimentos se delineavam e se resolviam, nas fantasias mais simples ou nas mais exóticas; a magia do caroço era a impossível magia da vida. A roda-viva, bem vivida ou mal vivida. Se conferirmos a esse romance um caráter autobiográfico, como antes sugerido, aí parecem se confundir o menino Dalcídio com o menino Alfredo, o passado com o presente, tanto que sentimos a cada passo da extensa narrativa (em seus romances do Extremo-Norte) a experiência e a história de vida de um homem cuja única riqueza residia apenas na leitura e na produção literária, gerando tantas páginas de tão densa e tão rara sensibilidade. O fato é que os tipos, as circunstâncias, os contextos de vida onde sua narrativa se desenrola misturam-se num só rio, por onde navega, sonha, sofre o escritor. E por falar em rio, no Chove o rio corre, o rio fala, o rio se entristece, o rio transborda. A seguir passa o igarapé, delineia-se o campo, os campos floridos onde a bolinha bole, rola, corre, se esconde, descobre coisas, faz milagres, - o carocinho faz-de-conta! Ele faz que conta tudo e não conta nada a ninguém, salvo a seu dono - Alfredo. Às vezes na rede ou na mão, o caroço é o poder, a força, a arma, o inimaginável e até mesmo o mágico dos desejos, pois o caroço de tucumã, segundo a crença popular paraense, tem de fato o poder da magia,3 como de fato o confirmou pesquisa feita junto ao povo simples de Belém, no meio do qual continua viva a confiança nos poderes mágicos do caroço de tucumã. O carocinho tem a magia, sabe dar o Universo a Alfredo. Tem um poder maior que os três Deuses reunidos (p. 374) Vale aqui lembrar que o carocinho grelado nas páginas do romance famoso é evocado em uma das inúmeras correspondências que Dalcídio manteve, ao longo de muitos anos, com a professora Maria de Belém Menezes, sua fiel amiga de Belém do Pará, ao "germinar" novamente na lembrança do romancista, após trinta anos, como um elemento presente em sua infância de criança pobre: 20


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O espírito comunitário da prelazia de Ponta de Pedras me aquece o peito. Algo se faz naquela outrora vila de minha meninice, de minha juventude, espécie de caroço de tucumã na palma da mão ao sabor de minha fantasia.4 Assim, antes de transformar-se em personagem do Chove, ratifica-se sua existência real vinculada à biografia do escritor. Como se constata, o caroço continuava, portanto, vivo e pulsando no coração do escritor de Cachoeira do Arari. Daí percebermos logo que o chão da infância de Dalcídio o fez depois um homem-menino, que corria, pulava, escapolia, driblava a vida triste e dolorosa, vida malvivida, ou apenas sobrevivida, no final dos anos setenta, como o fora, guardadas as proporções, a do início de sua infância e adolescência5. E estas fases podem justificar o vínculo vital e telúrico mais forte de seu romance, a força do seu passado nas beiras do Marajó. Na verdade o passado é uma evocação permanente que sombreia as páginas do Chove, é uma imagemsímbolo, quase obsessiva, sempre à procura de uma posterior vida ideal, aquela que Dalcídio não teve, a não ser, parcialmente, através de Alfredo. Só o carocinho compreendia todas as coisas e mudava os caminhos do destino, da vida e da morte. (p. 375) No texto, como se acabou de ler, o caroço de tucumã aparece, por vezes, encapado com formas diminutivas, como bolinha ou carocinho, mas sempre com o mesmo significado nucleal. Essa forma diminutiva de tratamento, documentada em Celso Cunha quando cita um passo de Sílvia Skorge, é interessante e pertinente para nossa interpretação afetiva6 envolvendo o significado da lexia caroço. Por outro lado, a par de reduzir-se no texto à mais pura simplicidade do diminutivo, o nosso milagroso, mítico, mágico, utópico, simples carocinho, além de rolar em quase todos os capítulos do romance, ainda galga lugar de destaque no livro, por ser, na sua forma locucional, a expressão escolhida para compor sozinha o título de um capítulo, o VIII - CAROÇO DE TUCUMÃ. Dentre os inesgotáveis milagres da bolinha, ela poderia fazer o rio Amazonas o mais rico, o mais largo e até mesmo o mais belo rio do mundo: Pois sua bolinha ia fazer o Amazonas o mais comprido, o mais largo, o mais belo rio do mundo. (p. 250) A bolinha o levava do insondável e imenso mundo dos meninos para onde quisesse levar. (p. 251) Como se isso não bastasse, essa bolinha ainda conseguia trazer para o Brasil tudo aquilo que de mais importante estava documentado nas revistas que Alfredo folheava; era o Brasil crescendo a ponto de tornar os nossos engenheiros superiores aos engenheiros holandeses: pois a bolinha fazia os holandeses ficarem por baixo dos engenheiros brasileiros. (p. 251). É interessante observar que Alfredo escolhe, como por ironia, a Holanda, para comparar com a beleza do Brasil, aquela Holanda que, no início da narrativa, aparece como referência por ter seus belos campos floridos, explicados por Seu Alberto, pai de Alfredo, à D. Amélia, sua mãe, nos seguintes termos: Ouvira Major dizer à D. Amélia: campos da Holanda. Chama-se a isso prados. (p. 117). Além de todos esses exemplos, em que o caroço passeia na palma da mão do personagem, ou funciona como elemento apaziguador, tranqüilizador, ou de força maior, ele surge também como força erótica, transformando o menino em homem. Para isso, basta lembrar que o caroço pulava na rede, deitava com o menino, tanto no quarto fechado, como no escuro, sempre às escondidas. E o menino se deixando ficar escondido, inquieto, por vezes sobressaltado, ofegante. E mais, o caroço está sempre presente nos sonhos do menino Alfredo (acordado ou dormindo) com as meninas maiores, sedutoras, proibidas, cobiçadas. O fato é que o prazer do fruto da sua região se mistura com o prazer da vida plena. Assim, com o permitido e o proibido, ele pode comer, roer, se lambuzar e deixar suas marcas na boca, nos lábios e nos dentes - o que confirma a insinuação daquele elemento erótico nas significações do tucumã no texto do Chove, como a seguir se lê em diferentes passagens sugestivas: Adormecia, a bolinha rolava entre o lençol e o camisão. (p.308) Nem sempre era a bolinha, eram as meninas como Moça. (p.308) 21


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Alfredo ia pelos campos com a bolinha e se exaltava pedindo a Nossa Senhora da Conceição, que fizesse Irene muito dele,... (p. 312) A bolinha seria uma criatura abençoada por Nossa Senhora? Havia muito de pecador, de tentação na bolinha (p.312) E Moça é uma ansiedade, a bolinha subindo e descendo, lhe mostrando a vantagem que há nos meninos maiores para namorar, fazer uma porção de coisas ocultas e proibidas. (p. 283) e meninas que vieram depois, lhe dando tentações, curiosidades viciosas, proibições, faz-de-conta lhe fazendo cada vez mais entendido e triste, desconfiado. (p. 282) Por conseguinte, o proibido, o seu segredo, o do caroço, não podia se tornar público, era apenas dele e só dele. Para Alfredo, revelar o faz-de-conta do caroço era acabar a fantasia, era acordar do sonho, era castrar a sua imaginação. Desse modo, quando sonhou alto demais a ponto de ser ouvido, e ficou desnorteado, teve vontade de "esbrechar" com o caroço a cabeça de dona Geminiana: Subiu-lhe a lembrança dos campos queimados e daquele sapo que o espiava através do chalé, uma tarde, como se o sapo visse e compreendesse o que era que estava acontecendo dentro do caroço de tucumã pulando na mão do menino. E distraído, com o caroço pulando na mão, começou a falar bem baixinho, quando tão de repente aquela mão lhe tocou muito de leve no ombro. Falando só, hem? O caroço deslizou pelo braço e rolou para debaixo da escada como se compreendesse o susto e a vergonha do menino que ficou frio e teve um desejo de morder a mão de d. Gemi, quebrar-lhe a cabeça com o caroço. (p.122) O cuidado em esconder o caroço era a maior preocupação de Alfredo, sobretudo quando o personificava em forma de companheiro ou amigo: Só a bolinha tomava corpo de gente, era uma amiga. Era o corpo da imaginação. Bolinha fiel e rica de sugestão! Ela achava tudo, ele achava desde a salvação do Brasil até uma caixa de charutos Palhaço para sua mãe. (p. 250) Adormecia, a bolinha rolava entre o lençol e o camisão. (p.308) Nem sempre era a bolinha, eram as meninas como Moça. (p.308) Alfredo ia pelos campos com a bolinha e se exaltava pedindo a Nossa Senhora da Conceição, que fizesse Irene muito dele,... (p. 312) A bolinha seria uma criatura abençoada por Nossa Senhora? Havia muito de pecador, de tentação na bolinha (p.312) E Moça é uma ansiedade, a bolinha subindo e descendo, lhe mostrando a vantagem que há nos meninos maiores para namorar, fazer uma porção de coisas ocultas e proibidas. (p. 283) e meninas que vieram depois, lhe dando tentações, curiosidades viciosas, proibições, faz-de-conta lhe fazendo cada vez mais entendido e triste, desconfiado. (p. 282) Por conseguinte, o proibido, o seu segredo, o do caroço, não podia se tornar público, era apenas dele e só dele. Para Alfredo, revelar o faz-de-conta do caroço era acabar a fantasia, era acordar do sonho, era castrar a sua imaginação. Desse modo, quando sonhou alto demais a ponto de ser ouvido, e ficou desnorteado, teve vontade de "esbrechar" com o caroço a cabeça de dona Geminiana: Subiu-lhe a lembrança dos campos queimados e daquele sapo que o espiava através do chalé, uma tarde, como se o sapo visse e compreendesse o que era que estava acontecendo dentro do caroço de tucumã pulando na mão do menino. E distraído, com o caroço pulando na mão, começou a falar bem baixinho, quando tão de repente aquela mão lhe tocou muito de leve no ombro. Falando só, hem? O caroço deslizou pelo braço e rolou para debaixo da escada como se compreendesse o susto e a vergonha do menino que ficou frio e teve um desejo de morder a mão de d. Gemi, quebrar-lhe a cabeça com o caroço. (p.122) O cuidado em esconder o caroço era a maior preocupação de Alfredo, sobretudo quando o 22


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personificava em forma de companheiro ou amigo: Só a bolinha tomava corpo de gente, era uma amiga. Era o corpo da imaginação. Bolinha fiel e rica de sugestão! Ela achava tudo, ele achava desde a salvação do Brasil até uma caixa de charutos Palhaço para sua mãe. (p. 250) Concluindo, volto a recordar que o caroço de tucumã das narrativas de Dalcídio - o carocinho, a bolinha - foi grelando, crescendo cada vez mais, tomando forma firme do princípio ao fim da grande obra, dando ao texto dalcidiano mais encanto, mistério, magia, bulindo ora no bolso ora na mão do menino Alfredo, e sempre rebrotando na memória e na imaginação do homem Dalcídio, o escritor, esse ser mágico em si mesmo, que sabe encontrar e colher como ninguém as palavras mais significativas e sensíveis para recriar a vida e a linguagem do mundo marajoara. É realmente uma colheita mágica e poética, sentida, pensada, sonhada, que dá à narrativa um sabor genuíno e pitoresco, diferente. E tudo por obra e graça de um simples mas significante carocinho, criando suas "histórias da carochinha" , tão comuns de dizer entre a gente simples do Marajó e desses nossos perdidos interiores. Como arremata por mim o menino Alfredo, sem deixar qualquer dúvida, já quase ao final do romance. Dentro do carocinho bem redondo não muito leve nem também pesado, se escondiam todos os poderes do sonho, toda a graça do maravilhoso. (p. 378) FONTES CONSULTADAS ASSIS, Rosa Maria Coelho de. O vocabulário popular em Dalcídio Jurandir. Belém, Universidade Federal do Pará, 1992. COUTO, Magalhães de. O Selvagem. Rio de Janeiro, Editora Nacional, Coleção Brasiliana, 1935. CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Gramática contemporânea da língua portuguesa. BeloHorizonte. Nova Fronteira,1985. JURANDIR, Dalcídio. Edição crítica de Chove nos campos de Cachoeira / Rosa Assis. Belém, UNAMA, 1998. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo, Cultrix, 1974.

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MARAJÓ sob o signo da antropologia e da estética por Audemaro Taranto Goulart Esse Seminário tem como objetivo homenagear o escritor Dalcídio Jurandir, reunindo estudiosos numa tarefa, aparentemente fácil, que é a de mostrar o valor da obra do escritor paraense. Digo aparentemente fácil porque a obra de Dalcídio é tão instigante que poucos não se deixam seduzir por ela. Entretanto, não há como negar que o próprio das obras de qualidade é justamente isso: lançar o seu canto de sereia representado numa narrativa atraente e, logo em seguida, quando já tem o leitor enredado na sua sedução, pôr em relevo um mundo enigmático que confronta o leitor com o desafio da sua decifração. É exatamente isso que me proponho fazer aqui. É preciso, no entanto, que se coloque uma observação prévia: as falas deste Seminário estarão, essencialmente, voltadas para Chove nos campos de Cachoeira, pois a oportunidade é a comemoração dos 60 anos de seu lançamento. Mas eu não consigo me desgarrar do segundo livro de Dalcídio, o singular Marajó, lançado seis anos depois, e considerado importante documento etnográfico e sociológico, além de ser uma narrativa de irrecusável valor literário. É, pois, de Marajó que vou falar. A DIMENSÃO ANTROPOLÓGICA Começo, pois, dizendo do que me seduziu nesse livro e que são as instigantes ligações que ele revela com mundos e valores que, a princípio, parecem estar inteiramente separados no tempo e no espaço. À medida que a leitura da narrativa evoluía, ia ficando mais nítida, para mim, sua dimensão antropológica. Os ecos do Totem e Tabu, de Freud, soavam mais alto a cada página e eu ia confirmando a importância do texto de Dalcídio na evocação desse sentido revelador do trânsito que o homem realizou da natureza para a cultura. Quer dizer, uma narrativa que se passa no interior do mundo amazônico tem essa dimensão fundadora que nos exemplifica o modo como se deu a inserção do indivíduo no mundo da cultura, como se deu a transformação do indivíduo em sujeito do mundo simbólico. O meu encantamento com essa perspectiva se acentuou mais ainda quando li as considerações que Vicente Salles fez sobre Marajó, mostrando a sua filiação ao “velho romance Dona Silvana, chegado até nós de fontes ibéricas”. E isso é feito através do tema do pai incestuoso, expresso no irrefreável desejo que o Coronel Coutinho “ personagem maior da narrativa” tem pela sua filha Orminda. Vicente Salles lembra bem que o tema do pai incestuoso se faz presente em todas as literaturas. Sua proposição mais celebrada é a da Pele de Asno , de Perrault, que fez transitar diferentes variantes pela via da oralidade. É o caso da clássica versão da Cinderela , de Perrault. Salles informa que, no Brasil, o Pele de Asno aparece sob vários disfarces como Pele de Burro , Bicho de Palha , Cara de Pau , Maria de Pau . Essa associação da narrativa com o mundo folclórico é indicada pelo próprio Dalcídio Jurandir, ao colocar na boca de Nhá Diniquinha, remendadora de tarrafas, a história de Maria de Pau, a princesa encantada que foi encontrada fechada num tronco de árvore de bubuia no mar . O rei traz o tronco para seu palácio e o dá ao seu filho, o príncipe, que o recolhe ao seu quarto. A princesa que ali se escondia, freqüenta os bailes e se faz par do príncipe. Ninguém a conhecia, pois, antes da meianoite, ela fugia. Finalmente, o príncipe descobriu que ela era Maria de Pau. Maria se desencantou, o príncipe casou-se com ela e houve tanta festa no reino que até hoje estão dançando e comendo, que até as fadas e os anjos entraram pelas janelas do palácio, foram dançar e comer também (p. 339). A narrativa estabelece, assim, formalmente, a ligação com o texto folclórico. Entretanto, para além dessa clara confluência com o mundo folclórico, Marajó vai beber no mito 24


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do assassinato do pai totêmico. Em Totem e Tabu, Freud apresenta pela primeira vez a teoria que aponta como o homem escapou de seu passado animal. Para fazer isso, baseia-se nos estudos antropológicos de Frazer, na sua própria interpretação, recolhida de seus pacientes, na teoria do totem, de Robertson Smith e em estudos de Darwin, para quem a primeira sociedade humana teria sido composta por um grupo ou grupos dominados por um poderoso macho despótico. Segundo Freud, esse macho era o pai da horda primordial. Ele sujeitou todos os outros machos mais jovens, impôs seu poder absoluto, guardando para si todas as mulheres. Os filhos foram então obrigados a viver em completa obediência até o dia em que se rebelaram. Reunidos num bando, mataram o pai e o comeram. É por isso que se diz que a festa do totem é vista como a repetição e a comemoração simbólica do ato criminoso original. Depois, os filhos foram dominados por um sentimento de culpa com a conseqüente necessidade da expiação do ato criminoso. Afinal, como diz Freud, havia um sentimento de ternura em relação ao pai. Para além do ódio, há o amor. Isso levou à proscrição da morte do totem e à exaltação do pai como o animal totem da tribo, um animal cuja vida era sagrada, exceto em determinadas ocasiões festivas, quando ele era sacrificado e o antigo crime era simbolicamente absolvido. Ocorre que os irmãos também se temiam uns aos outros, com o inevitável receio de que um deles poderia querer repetir o pai primitivo, do que resultou o acordo de que eles deveriam renunciar aos frutos de seu ato comum, o que significava renunciar à posse das mulheres libertadas. Dessa forma, estabelece-se dentro da tribo um tabu contra o assassínio. Para evitar que algum macho quisesse tomar todas as mulheres para si, criou-se o tabu do incesto, o que tornava obrigatório o casamento fora da tribo. Desse modo, a suposta disputa pela posse das mulheres deixou de ser uma ameaça para a organização social que então se fundava. É assim que se estabelece uma relação entre o totemismo e a proibição do incesto. .Em quase todos os lugares regidos pelo totem existe também a norma de que membros do mesmo totem não tenham vínculos sexuais recíprocos, ou seja, não tenham a permissão para casarem-se entre si. É a exogamia conectada com o totem.. (Fromm, apud Thompson. 1993) Assim, aparece um curioso diálogo entre três narrativas diferentes: a de Marajó, a do mito do assassinato do pai totêmico e uma das variantes do tema do pai incestuoso, a história de Maria de Pau (que faz parte do grande diálogo que envolve o romance Dona Silvana e as narrativas do .Pele de Asno.). Essa interação não é uma simples coincidência. Ela faz parte de um vasto painel em que uma rede de relações se estabelece. E isso tudo se deve ao fato de que há um elemento essencial estabelecendo essas interações. É o inconsciente, instância fundamental para produzir a aproximação de fatos e seres aparentemente dissociados. É o que nos ensina Marcel Mauss, ao dizer que o inconsciente configura-se como algo que pré-existe ao sujeito, afirmação que Lévi-Strauss reforçou mais ainda ao dizer que o inconsciente seria o termo mediador entre mim e os outros. É importante ainda acrescentar que, para Lévi-Strauss, os dados do inconsciente, tanto em nós como nos outros, constituem formas de atividade que são, ao mesmo tempo, nossas e dos outros, condições de toda a vida mental de todo homem e de todo tempo. Por aí se pode ver como o diálogo entre Marajó, as narrativas folclóricas e a antropologia formalizada por Freud não são coincidências mas operações mentais, elaboradas conscientemente por sujeitos, que têm sua gênese em uma estrutura comum, e universalmente válida, da atividade inconsciente. 1 Mas vejamos como essa articulação pode ser entrevista na narrativa de Dalcídio Jurandir. Minha convicção é de que a matriz paradigmática de tudo é a estrutura antropológica que Freud sinaliza no mito do assassinato do pai totêmico. Assim, as narrativas folclóricas e as correspondentes variantes do Pele de Asno, bem como a narrativa de Dalcídio, vão beber na fonte do mito inaugural da organização social e do mundo da cultura. Minha intenção é mostrar essa articulação no Marajó. E isso pode ser verificado por todo o livro. Veja-se que o Coronel Coutinho, personagem que divide o grande 25


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palco da narrativa com seu filho Missunga, concentra o poder, a autoridade, a posse indiscutível de terras e de bens. Além do mais, o Coronel age como o pai despótico que domina tudo e todos, uma vez que, além da dominação exercida, há também a confirmação de que o velho Coronel tem um sem número de filhos com inúmeras mulheres locais, sobretudo na Vila de Ponta de Pedras. Uma pequena amostra dessa condição do Coronel Coutinho, como o macho dominador da horda primitiva, pode ser vista, no capítulo 10, quando Missunga, ouvindo a namorada Alaíde, evoca cenas em que o pai aparece, desempenhando o seu ofício de garanhão abatedor-de-mulheres.. Tais cenas são um desconforto para Missunga, como se pode conferir no trecho seguinte: Missunga escutava como se ela falasse do meio do rio, numa embarcação ao sabor da vazante. Aos poucos, cenas de vaqueiragens, as escrituras do pai, Marta acuada no muro do cemitério, donzelas que seu pai deixava, no campo e na beirada, caídas e abertas como os peixes de Alaíde,despertaram-no confusamente (p. 88). Essas reflexões já são um índice de como se manifesta na narrativa o que corrresponde à revolta dos filhos, tal como está no mito do assassinato do pai totêmico. Essa revolta está representada nas posições do filho Missunga que se opõe, flagrantemente, ao pai, o que pode ser observado, por exemplo, na cena em que o filho substitui o nome da comunidade de Santo André . dado pelo pai . por Felicidade, o que emblema o primeiro ensaio de uma rebelião, na tentativa de libertar-se da influência paterna. E mesmo que o projeto idealizado por Missunga tenha fracassado, nota-se que ele deixou suas marcas, indicando a resistência. A evolução dessa perspectiva de confronto com o pai é bastante marcada na narrativa. Um dos episódios mais significativos do amadurecimento dessa idéia tem-se no capítulo 38,que se segue à cena da morte de Guita, outra mulher na vida de Missunga. Ali, chama a atenção a consciência que o filho tem dos desmandos do despótico Coronel Coutinho, na alusão à grande quantidade de irmãos seus espalhados por aquelas terras e a necessidade de romper com o pai opressor: Verdadeiramente desejou um grande amor pela morta, que o fizesse romper com o pai e salvar Orminda, recolher todos os seus irmãos dispersos. Riu, afinal dessa nova solução. A realidade era a morte da moça, lhe fixara, num relâmpago, toda a sua condição de homem opressor e infeliz. Romperia com o pai, não chegava ainda a pensar se podia romper consigo mesmo. O pai bateu na porta do quarto e entrou. Na escassa claridade, os dois homens defrontaram-se, em silêncio. . Quando você embarca para Belém? A fácil pergunta, a voz tranquila. Nada sucederia naquele instante àquele homem? Tentou compreender que devia lutar contra o pai, diretamente, para dominar a solidão, recuperar a melhor lembrança de sua mãe, e esse desejo, novo ainda, impreciso, que o comovia, de servir à vida, merecer aquele amor desaparecido (p. 272). O certo é que a narrativa insiste, significativamente, no apontamento das diferenças entre o Coronel Coutinho e Missunga, apesar de o filho sempre ser posto como o sucessor do pai, aquele que herdaria tudo. Há uma cena, no capítulo 30, que dá uma boa demonstração de que Missunga já tinha uma outra mentalidade, em que a lei se impõe à arbitrariedade. Trata-se do momento em que Sinhuca Arregalado informa a Missunga que o Coronel Coutinho havia proibido os pescadores de armarem feitorias na beirada do rio que passa pelas suas fazendas. Surpreso com a medida, Missunga pergunta: .Mas é legal?. Uma outra passagem, logo em seguida, também dá a dimensão das diferenças entre pai e filho. É quando Missunga quer ponderar com o Coronel o absurdo que tinha sido a atitude de um dos seus homens que, de arma em punho, subira o rio destruindo feitorias, o que resultou na morte de uma mulher grávida, diante do susto por que passou. O Coronel Coutinho não permitiu o aparte e sua resposta é, simplesmente, sugerir ao filho que vá embora para Belém, para a América do Norte. Cenas como essas, além da sua funcionalidade como mecanismos preparadores do desfecho que culmina com o rompimento de pai e filho, sustentam uma linha invisível na narrativa que opera no sentido de justificar a substituição de um modelo autoritário e descabido na sociedade civilizada. 26


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Pode-se mesmo dizer que se trata de uma transposição, para o nível do enredo do romance, dos elementos que recobrem o mito do assassinato do pai totêmico, justificando a sua evolução. Refirome, no caso, ao impressionante capítulo 32, em que se destacam, em cores marcantes, as denúncias contra o autoritarismo. Ali, percebe-se que Manuel Raimundo surge como imagem especular do Coronel Coutinho. Na verdade, ele é o braço que operacionaliza os desmandos arquitetados pelo patrão. No capítulo, aparecem referências pungentes aos pobres e desvalidos, aos miseráveis explorados. O leitor, nesse ponto, deixa-se tocar por um sentimento de comiseração diante de cenas em que seres humanos são tratados como animais, como se se estivesse num estágio anterior à civilização e ao mundo organizado pelas redes do simbólico. Já próximo ao desfecho, tem-se o rompimento entre Missunga e o pai, o que se representa no nível do enunciado com a viagem meio louca que o jovem realiza com Alaíde. É uma sucessão de lugares: Joanes, Paracauari, Araruna, ilha dos Machados, Cajuúna, até chegarem a rio da Fábrica, a terra de Alaíde. E é aí que o Coronel vem para buscar o filho, sendo, praticamente, enxotado por ele. A morte do Coronel Coutinho, já no final da narrativa, além de simbolizar a morte do pai despótico no mito totêmico, é um primor de invenção da pena de Dalcídio. A começar pelo fato de que Missunga vai se inteirando da morte do pai e tendo dela a verdadeira dimensão, aos poucos. E tudo feito num processo articulador em que se fazem presentes os interesses mesquinhos dos subalternos e do próprio Missunga. Assim é que Missunga recebe uma carta do Capitão Lafaiete, um tabelião . melhor fora dizer, um lacaio . que sempre fez o que o Coronel quis. No nível mesmo da narrativa pode-se perceber as artimanhas, as acomodações por conveniência. Desse modo, o enunciado do texto revela como a realidade, mais do que nunca, é constituída de linguagem, quer dizer, de palavras que se acumulam num discurso balofo e roçagante, interesseiro e desonesto. Veja-se como Lafaiete se refere ao Coronel: .Não sei exprimir o meu profundo pesar, caro amigo. Nosso provecto amigo, compadre e chefe finou-se quando a nossa terra mais precisava de seus serviços, de sua vida toda dedicada à causa pública, de seu nobre caráter que se aliava a um coração de ouro. Deus o levou. Os páramos celestes o receberam.... A insinceridade dessas palavras é logo explicitada no trecho seguinte, este sim, revelador e verdadeiro: .Ignoro qual será o destino do nosso município. Bem sei ou suponho que meu caro amigo não pretende seguir a política nem tenciona substituir seu pai na Intendência. Coronel me havia prometido indicar-me para substituí-lo. Mas os caprichos da política são como os caprichos da Parca.. O ridículo chega a tangenciar o sublime na bajulação a Missunga, no encerramento da carta: .Espero que meu amigo enterre sempre as divergências do passado e aceite esta amizade velha, sincera e esta dedicação de velho tabelião e tarimbeiro da vida. Ela faz parte do inventário de seu pai. Você é herdeiro dela. (p. 301-3) Percebe-se também que há uma preocupação em esconder a causa da morte pelo que ela teria de indigno para a imagem do Coronel; mas, na verdade, o .colapso repentino com que tentaram mascarar o ato final do velho chefe, só fez acentuar ainda mais o talhe do grande garanhão. A narrativa de Dalcídio é primorosa no recortar a morte do Coronel Coutinho, esclarecida na conversa de Missunga com o caixeiro da marchantaria e na reflexão que o filho faz, logo em seguida: . É que a morte de seu pai foi em circunstâncias que não podem ser conhecidas pelo público. Um colapso... . (...) . Exatamente, naquela casa da praia em Soure ele passou bem uma semana lá. Na noite de anteontem... Uma pequena embrulhada num lençol saiu gritando 27


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do quarto e até hoje parece transtornada. Missunga tinha a garganta seca. Apesar do alívio, aquela súbita sensação de ruína iminente viu a moça desgrenhada despojando-se daquele subitamente cadáver, velho e gordo, que pesou sobre ela. Um fim conveniente a um Coutinho (p. 302-303). É de se notar, na passagem, uma outra aproximação com o mito do assassinato do pai. Veja-se que Missunga, ao ler a carta de Lafaiete, lembra-se, com arrependimento, do conflito entre a sua vontade e a estima do pai.. É o mesmo sentimento de culpa que os filhos, no mito, experimentaram com o parricídio. Como diz Freud, .para além do ódio há o amor., e isso explica a admiração de Missunga com os detalhes da morte do Coronel, pois ele como que se orgulha da causa mortis (Um fim conveniente a um Coutinho.). É nesse momento que se percebe como a narrativa se supera, no seu momento mais elevado, elegendo a morte do Coronel como o momento decisivo de todo o enredo. Um mundo se fechava com ela; um mundo novo se abria, logo a seguir. Desse modo, o texto de Dalcídio dubla a narrativa mítica do assassinato do pai totêmico. A morte do Coronel Coutinho e o fato de Missunga vir a ocupar seu lugar abrem a perspectiva da mudança. São novos tempos, uma outra sociedade começa a se estabelecer, há, agora, um outro pai, mas um pai diferente, mais humano, menos arbitrário, menos despótico. A narrativa do Totem e Tabu ressoa cada vez mais alto em Marajó. Nesse sentido, é importante verificar como o enunciado do texto de Dalcídio explicita esses ecos. A começar pela substituição do pai pelo filho. Mas Missunga não se limita a ser o sucessor do velho. Ele quer ser um outro e isso configura-se imediatamente. Veja-se que ele quer substituir, inclusive, seu nome: . . E uma coisa tenho que acabar, Manuel Raimundo, é este meu apelido: tenho que voltar e todos me deverão chamar de Manuel Coutinho, meu nome próprio.... Essa mudança de nome é de fundamental importância porque confirma o alinhamento da narrativa com o ideário mítico. Como se pode perceber, está-se diante de um rito de passagem. Lembre-se que um dos sinais básicos dos ritos iniciatórios é a mudança do ser e um dos elementos que operam essa modificação é a mudança do nome. A propósito, Antônio Cândido afirma que os ritos de passagem comportam muitas vezes a atribuição ou acréscimo de um nome, ou revelação do nome verdadeiro, conservado secreto. Em nossos costumes, é o que se pode verificar no batismo e na crisma. (Cândido. 1978). Assim, Missunga (de mi- prefixo diminutivo, mais sunga, que quer dizer menino, no falar quimbundo), o menininho (ou o sinhozinho), dá início a um novo mundo. É interessante verificar como a narrativa trata esse ato inaugural. O novo patrão, Manuel Coutinho, ao anunciar que aquele era o seu primeiro dia de trabalho em toda vida, afirma com a solenidade de um tom bíblico: . . É o meu primeiro dia de criação. No segundo dia de criação decidiu visitar o seu domínio com o administrador.. A partir de então, um novo relevo conforma as terras de Marajó. Dois exemplos ilustram a nova era. No primeiro, tem-se a expulsão do vaqueiro Francisco e de sua família, por ordem de Manuel Raimundo que via, naquele numeroso grupo, um entrave para o bom desenvolvimento dos trabalhos. Desse modo, .chamou Manuel Raimundo, mandou fornecer um paneiro de farinha, roupa, carne, e quando quis revogar a ordem do administrador, este pôs a mão na cabeça, falou da anarquia geral que tal ato provocaria em todas as fazendas.(p. 313). O patrão respeita a ponderação do administrador mas não deixa de agir de modo humano. Recolhe as três crianças mais velhas e as manda para Belém, para acabarem de se criar com as empregadas de sua casa, além de dar dinheiro ao vaqueiro para que arranje uma barraca. Em outra oportunidade, vê-se diante de um ladrão de gado preso quando esfolava um boi no igapó.. A explicação do homem é de que o boi estava morto, morto de febre e que ele apenas aproveitara a carne. Ao ver o homem ser embarcado preso para Cachoeira, o ex-sinhozinho aproxima-se e diz: - É preciso não quebrar a ordem nas fazendas. Você afinal de contas tirou carne que não era sua. A lei era deixar apodrecer no igapó. Vou mandar dizer em Cachoeira para lhe soltar logo que chegar. 28


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Mas não me apareça mais por aqui. Procure o mundo. Trata de ser um homem de bem. Você de Cachoeira a rio abaixo é livre. Vá. (p. 314) Como se vê, está-se diante de uma nova sociedade. A presença despótica de um chefe que dominava tudo, implacável e insensivelmente, desaparece. Brilha um novo sol, semelhante àquele que Freud colocou no horizonte antropológico do Totem e Tabu. A DIMENSÃO ESTÉTICA Cumpre, agora, refletir sobre a questão da estética que é, no meu entendimento, onde se cristaliza, de modo nítido, o valor criativo da obra de Dalcídio Jurandir. Nesse ponto, acho que seria importante lembrar que Freud desenvolveu também uma explicação para a herança das experiências estéticas do homem. No seu Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud presume que o sentimento estético se origina da excitação sexual que é provocada pela visão do parceiro, num efeito que, primeiramente, era despertado pelos órgãos genitais. Mais tarde, tal efeito passou a derivar também da visão de outras partes do corpo, o que representou uma espécie de sublimação efetuada pelo sentimento estético, como se pode ver pelas palavras de Freud: A ocultação do corpo, que progride junto com a cultura humana, mantém desperta a curiosidade sexual, que aspira à contemplação do objeto sexual mediante o descobrimento das partes ocultas. Entretanto, isso pode ser desviado (sublimado) no âmbito da arte, se se pode afastar o interesse dos genitais para dirigi-lo à forma do corpo como um todo (Freud.1993). Na verdade, o que se tem aí é o confronto entre a agudeza da dor e a graça da beleza. Ou, recuperando os ensinamentos de Anton Ehrenzweig, tem-se a luta entre dois princípios básicos da forma do sonho e da arte: Dioniso (Tanatos, segundo Freud) e Apolo (Eros). Dioniso é a força caótica da vida, que tenta destruir a existência individual; Apolo o princípio de diferenciação da forma (o princípium individuationis, segundo Schopenhauer) que salvaguarda a existência individual modelando o caos dionisíaco em ordem e beleza. Apolo é o deus do sonho que utiliza imagens oníricas para controlar a ruptura destrutiva de Dioniso. Nesse sentido, Apolo e Dioniso são os princípios estruturais da diferenciação e do caos subjacentes a todas as manifestações da vida. (Ehrenzweig. 1977) Como se sabe, a presença desestruturadora de Dioniso se faz acompanhar da ameaça que representam as forças obscuras do desejo e da violência emanadas da mente profunda. Dessa forma, para impedir o perigo dessa ação de Dioniso, surge o controle de Apolo, ou seja, a excitação dionisíaca é substituída pela ordem apolínea. E essa ordem atua no sentido de fazer com que os sentimentos estéticos tomem o lugar das emoções provenientes da excitação, seja eliminando-as desde o começo, seja encobrindo-as através dos mecanismos que explicitam a beleza. Um dos mecanismos que atuam no sentido de fazer com que a beleza (a estética) encubra ou elimine as emoções perigosas decorrentes da excitação é o que se pode perceber na moda. Ehrenzweig mostra que ao se cobrirem os corpos, percebe-se que a excitação proveniente da visão do corpo nu . ou, dos órgãos genitais, tidos como o ponto culminante da excitação, acaba deslocada, posto que ela vai ser substituída pelo sentimento de beleza que a roupa desperta. Da mesma maneira, se esse sentimento deslocado acaba tornando o corpo belo demais e, por conseqüência, desprovido da excitação, basta que se modifiquem os estilos do vestuário para que o corpo, novamente, volte a chamar a atenção e, conseqüentemente, torne a produzir a excitação necessária. É, pois, esse movimento dinâmico do risco dionisíaco e da ordem apolínea que vai promovendo o equilíbrio entre a excitação originada na sexualidade e o belo imposto pela 29


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estética. A propósito, Ehrenzweig afirma que .a rapidez com que as modas femininas perdem sua atração e têm que ser substituídas demonstra como a luta primária entre a visão pangenital e a reação estética está ainda perigosamente viva.. Apenas a título de exemplo, na obra literária, lembraria aqui as considerações de Nietzsche a respeito do Édipo Rei, de Sófocles. De acordo com o filósofo, o elemento estético é fundamental na estrutura do texto do trágico grego, uma vez que Sófocles trabalha a profundidade do mito, tocando um problema extremamente angustiante: o filho que mata o pai e que se casa com a mãe. O afastamento dessa perspectiva angustiante é conseguido graças aos mecanismos do prazer estético trabalhados por Sófocles, ou seja, é quando Apolo confronta com o desconcerto dionisíaco. Segundo Nietzsche, isso ocorre na medida em que se projetam os princípios dialéticos, reconhecíveis no modo como Sófocles propõe a solução para o enigma profundamente obscuro que Édipo vai elucidando, pouco a pouco, até chegar à sua perdição final. É essa luta em busca do esclarecimento do assassinato do pai (que, no fundo, o espectador ou o leitor sabe que é a busca que o herói empreende de si mesmo) que vai obliterando o horrível da situação, até alcançar a sua aceitação. Como diz Nietzsche, .a alegria helênica que se experimenta na presença do lado dialético desta solução é alegria tão autêntica que um sopro de serenidade refletida percorre toda a tragédia e atenua o aspecto horrível dos acontecimentos que conduziram a tal situação.. (Nietzsche. 1972) Volto agora para o Marajó, com o objetivo de verificar a presença dessa dimensão estética na narrativa de Dalcídio Jurandir. Chamo logo a atenção para o fato de que a narrativa trabalha com ingredientes preocupantes. Afinal, lá está, em toda a sua extensão, o problema da exuberância sexual, uma característica que aproxima o homem da animalidade, como o mostram, por exemplo, os trabalhos de Georges Bataille. Essa perspectiva, que poderia ser um desconforto para o leitor, acaba sendo assimilada até mesmo com uma certa facilidade. Ou, por outras palavras, o desconcerto dionisíaco equilibra-se, articuladamente, com a ordem apolínea, sem deixar marcas na sensibilidade de quem lê o livro. E isso se dá porque, na narrativa de Dalcídio, prepondera uma dimensão estética bastante eficaz. Lembre-se que todos os desmandos, desrespeitos e desatinos do Coronel Coutinho, no plano social, político e sexual, como que passam a operar num nível submerso ante a sofreguidão com que o leitor acompanha a evolução de Missunga, na sua inexorável caminhada rumo à desestabilização do pai. Como disse, essa ação de Missunga percorre toda a narrativa, ora flagrantemente exposta, ora insinuada nos deslocamentos dos significantes. Da mesma forma com que o leitor (ou, conforme o caso, o espectador) da tragédia de Sófocles prende-se nas teias da decifração do enigma que a personagem vai, paulatinamente, desvendando, o leitor do romance de Jurandir se prende na sedução do confronto pai x filho que ele vai também, lentamente, desfiando. Isso é que produz a beleza dos textos citados. E quando falo de beleza, estou me referindo à sedução estampada no nível da estratégia de seus enredos e todas as sensações daí decorrentes. Mas o belo estético também se manifesta no nível da linguagem, no enunciado da narrativa de Dalcídio Jurandir. Refiro-me, aqui, à delicadeza da composição lingüística, a graciosidade com que o autor constrói cenas e situações, à ternura mesmo com que fala de assuntos que poderiam ser significativamente apelativos. Aponto, como exemplo, a passagem abaixo, que se encontra no capítulo 33 e que fala do encontro entre Ramiro e Orminda: Apearam-se diante do lago e dos campos que a luz descobria.Viram os garrotes erguerem e acariciarem as belas novilhas. Não se ouviam mais as vozes dos pescadores na lanceação. As virgens novilhas estavam amorosas e belas e o dia parecia nascer do fundo do lago. Os garrotes, babando, escuros e lentos avançaram e cobriram as novilhas espantadas. No dia subindo, um vôo de garça tentava purificar a paisagem. (p. 250-251) Este é apenas um exemplo dos muitos que aparecem em Marajó. Note-se como o narrador desvia o rito amoroso entre o homem e a mulher para a paisagem circundante. Lá estão os significantes metafóricos da conjunção amorosa . garrotes e belas novilhas que se entregam num cenário bucólico, recortado na imagem auditiva do silêncio dos pescadores e nessa outra, visual e cósmica, 30


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em que o dia parece vir do fundo do lago. O cenário é puro, no sentido de que o leitor está diante de uma paisagem natural mas, ainda assim, uma garça vem emoldurar o quadro, pois tentava purificar a paisagem. É essa palavra mesmo tentava .que dá a dimensão do projeto estético de Dalcídio, uma vez que ela indicia, de modo nítido, que o autor desconfia da depuração a que submeteu a narrativa, como que preocupado em elidir nela tudo quanto fosse afirmação direta e apelativa da tópica da sexualidade. Outro exemplo, para encerrar essas considerações, encontra-se no capítulo 18, focalizando um encontro de Missunga e Alaíde. Aqui também se patenteia o ato amoroso, mas ele é apenas insinuado, também num processo de deslizamento de significantes em que a sugestão substitui a explicitação crua da relação. Mais uma vez, o estético, fazendo-se poético, organiza o que poderia vir a ser a desordem das emoções. Vejam-se os trechos a seguir: Missunga meteu os dedos na água, a água coleava como o corpo de Alaíde. Ali estava o corpo líquido e misterioso da mãe do igarapé, com os peitos cheirando a taperebá, a cabeça enterrada no chão onde murchavam as samambaias. (...) . Vamo, insitiu Alaíde. Como um cipó que se destorce, Missunga levantou-se, lentamente, tentando espantar os pensamentos e as torvas sensações. (...) Voltava e parecia tão separado de Alaíde. Que valeram afinal as samambaias? Deixando-o rapidamente para trás, Alaíde corria e desaparecia pelo sinuoso caminho como se, no ato do amor, como uma abelha, houvesse morto o amante. (p. 145) Veja-se, mais uma vez, a delicadeza da cena. Vejam-se as metáforas, enfim, veja-se que essa evitação da narrativa crua, que apela para a linha direta do contar, na pressuposição de que aí está o mais-dizer, além de tornar as cenas mais graciosas e sublimes, ajustam-se ao projeto do livro de Dalcídio Jurandir. De fato, o protagonista Missunga, na sua missão de substituir o pai despótico, não poderia trilhar os caminhos do velho Coronel. É por isso que em nenhum momento da narrativa se vê Missunga entregue, explicitamente, à sexualidade. Ele não transita nos caminhos da luxúria. Nesse terreno, tudo é sugerido, metaforizado, numa palavra, tudo é submetido ao domínio da estética. Ele teria de ser, como de fato é, no texto de Dalcídio, sereno, terno, humano, como convém à sua função: o de iniciador de um novo tempo, uma nova era, em que a solidariedade e a fraternidade devem imperar. Foi isso que Freud procurou resguardar no mito do assassinato do pai totêmico, ao propor o que seria o saguão de entrada no mundo da civilização. Se as coisas ainda não conseguiram ser o que se imaginava com esse novo mundo, é bom que elas sejam re-evocadas, tal como acontece com esse livro de Dalcídio Jurandir. Aí está, enfim, a esperança de que os dias possam, de fato, nascer do fundo dos lagos. Dos lagos amazônicos?

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"CHOVE NOS CAMPOS DE CACHOEIRA", de Dalcídio Jurandir e o Ciclo da Borracha por Anderson Luiz Cardoso Rodrigues2

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ão se sabe exatamente há quanto tempo o lugar hoje denominado de Brasil tem sido habitado, mas recentes pesquisas arqueológicas constatam que essa região já é ocupada por homens há mais de 30 mil anos antes da chegada do europeu nas terras brasileiras. . Alguns estudiosos, como Paes Loureiro (2001), consideram que o homem amazônida ao longo de todo esse tempo, e mesmo após a chegada do europeu em nossas terras, ainda preserva uma cultura muito peculiar, em virtude, principalmente, do isolamento histórico desse povo ao restante do Brasil, e, pela sua relação muito próxima com a natureza.

Paes Loureiro (2001) observa que, na Amazônia, ainda pode-se reconhecer nitidamente dois espaços sociais tradicionais da cultura, cada qual assinalado por características bem definidas: o espaço da cultura rural e o da cultura urbana. No primeiro, especialmente o ribeirinho, a cultura mantém sua expressão mais tradicional, mais ligada à conservação dos valores decorrentes de sua história. Dessa forma, predomina a transmissão de informação oralizada, ou seja, os mitos, a maneira como por eles é visto o mundo, as crenças, a(s) religião(ões), tudo é repassado de geração para geração via oral. De acordo com o mesmo autor, nesse ambiente a expressão cultural é densamente representativa da cultura amazônica. Já na cultura urbana, a presença das trocas simbólicas com outras culturas é mais intensa, há maior velocidade nas mudanças, o sistema de ensino é mais estruturado, há o dinamismo próprio das universidades, e o contato com as tecnologias de "ponta" é maior. Ao longo de sua história, a Amazônia sofreu contatos com outras culturas. Dessa maneira, Loureiro (2002, p.299) identifica três momentos de "ruptura no processo de construção da identidade amazônida": a primeira com a chegada do europeu na Amazônia; a segunda com a introdução das políticas públicas impostas pelo Governo Federal na segunda metade do séc. XX e a terceira quando a região se integra no processo de globalização mundial. Para esta autora, essas rupturas ocorreram quando a identidade amazônica se encontrava em processo de forma ção, isto é, o "eu amazônico" ainda não tinha se formado. Já Paes Loureiro (2001) analisa esse choque cultural a partir do prisma do conflito de signos ou imposição simbólica, identificando a catequese e a pedagogia dos padres da Igreja quando encarnaram a doutrina cristã na cultura indígena; o Ciclo da Borracha, que reforçou o sentimento de inferioridade face à cultura "de fora", principalmente nas grandes capitais como Belém e Manaus; e o aparecimento dos meios de comunicação de massa (Televisão e Rádio) na região da Amazônia. Sendo assim, Dalcídio Jurandir em seus romances, forma um mosaico da vida cotidiana dos habitantes do Marajó e de Belém, destacando o viver e o sentir do homem amazônico, e chama a atenção do Brasil que nessa região não existem apenas exuberantes florestas e animais, mas, além disso, pessoas que possuem almas, que sentem, amam, têm pequenas felicidades e sofrimentos. Ou seja, Dalcídio revoluciona em relação ao tratamento da Amazônia no âmbito literário, parte do regional para o universal, uma vez que não se prende somente a fazer meras descrições naturalistas do universo amazônico, tal como se fazia na literatura até então, como por exemplo, os relatos dos viajantes, Alberto Rangel e outros escritores. Ele vai muito além e se eterniza por fazer dos seus romances uma narrativa caracteristicamente psicológica. Para Bella Josef (apud NUNES, 2001,p. 39) o regionalismo deve ser crítico e com auto nível de autoconsciência crítica, não devendo possuir nenhuma relação de oposição com o universalismo. Este ponto de convergência, que, aliás, os estudiosos de Dalcídio preferem enfatizar, é o que caracteriza o texto dalcidiano, isto é, o rio, a floresta e os animais não são mais importantes que os sentimentos dos personagens, por conseguinte, o 32


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regional não subjuga e nem se sobrepõe ao universal. O contexto histórico retratado no romance Chove nos campos de Cachoeira era o ciclo da Borracha, uma das épocas mais destacadas da história social e econômica da região. Esse ciclo é compreendido por um período de intensa exploração do látex, a hevea brasiliensis, nativa da região, cuja fase mais significativa se estendeu de fins do século XIX até por volta de 1920, e é onde a influência da cultura européia se intensifica, concentrando-se nas grandes cidades como Belém e Manaus, e repercutindo, nas pequenas cidades e nas comunidades ribeirinhas. Em decorrência do boom gomífero, a capital do Pará assume o papel de principal porto de escoamento da produção do látex, além de se tornar a vanguarda cultural da região. "Belém tentou tornar-se bem mais européia do que amazônica" (SARGES, 2002, p. 186), tanto que a cidade foi denominada pelo "francesismo", posto que as famílias ricas tinham o hábito de mandar seus filhos aprimorarem sua educação nas escolas francesas. Essa elite intelectual é que vai determinar o decorurbano europeizado e aburguesado. Então, percebe-se que, concomitante a questão econômica, a cultura também sofre um grande impacto nesta fase de "desenvolvimento" da Amazônia. Segundo Sarges (2002, p. 135): "O processo de urbanização experimentado pela cidade de Belém do Pará, a partir da segunda metade do século XIX, não está assim ligado somente à intensificação da vida industrial, como ocorreu nas cidades européias e americanas, mas pela função comercial, financeira, política e cultural que desempenhara durante a fase áurea da borracha". Em relação ao restante do Brasil, a Amazônia foi a região que mais herdou e preservou a cultura indígena, principalmente aquela população que vive na área rural. Contudo, sob a égide de que ela sofreu algumas "rupturas" ou "conflitos simbólicos" (de acordo com os autores citados acima) no decorrer de sua história, torna-se translúcido crer na descaracterização paulatina da alma amazônica. Dessa forma, no primeiro romance do ciclo Extremo-Norte, o autor nos mostra como essa fase influenciou no imaginário do homem amazônico, portanto, preocupase em demonstrar que a cultura "de fora" o fascinou e o encantou. Nesse sentido, Dalcídio, quando vivo, se mostrava muito preocupado com a rapidez avassaladora do progresso na região. Na visão de Maligo (1992, p. 53) a Amazônia presente de Jurandir "é um mundo em ruínas", onde é expresso nos verbos "desabar" e "cair", não só na decadência física mas, também, na "perda moral", diante das trocas com o que "está fora". Essa preocupação de Jurandir pode ser percebida em uma carta escrita à Maria de Belém Menezes: "Que a floresta amazônica seja protegida, e os índios também, esse índio ameaçado, em breve expulso do seu chão, massacrado. Belém se cobriu também de sangue de índio, batizou-se nesse sangue. Que o progresso não corra tanto, a ponto de nos tornar, mais depressa, mais infelizes e mais duramente iludidos de que somos civilizados, por bem servidos pela técnica [...] Temo pela descaracterização de Belém, condenada a urbs desumana, poluída, igual a qualquer cidade. Esse progresso desigual faz robots, não cria alma. Aumenta a riqueza e multiplica a necessidade..." (DALCÍDIO apud MENEZES, 1996, p. 20). Devido às imposições culturais que a região amazônica sofrera no decorrer de sua história, principalmente, com a chegada do europeu, com o Ciclo da Borracha e, posteriormente, com a expansão da Televisão e de outros meios de comunicação de massa, o padrão europeu se torna o único belo e superior à cultura regional, esse aspecto suscita um fenômeno que Paes Loureiro (1992) chamou de "rejeição da condição cabocla". Esse fenômeno pode ser visualizado em alguns momentos do romance como, por exemplo, quando Alfredo foi para Belém e não pôde sair da casa, distante do centro da cidade, de Mãe Ciana, por sua vez, o menino se enche de tristeza por não conseguir ver a beleza da cidade como era visto pelos olhos de siá Rosália, o que viu, porém, foi o mundo "feio" dessa casa e de suas proximidades. Ele não queria ver moleques sujos empinando papagaios, roupa suja amontoada, torneira sempre vazando, rua cheia de lama, carroças cheias de cachorros presos numa grade. O que Alfredo almejava contemplar era o Teatro da Paz dos moldes da arquitetura européia, os bondes que corriam pelos fios elétricos, os museus e o cinema. Como pode ser observado nesse fragmento da obra: "[Alfredo] Embevevia-se olhando as senhas que siá Rosália lhe dava como se elas lhe contassem a maravilha dos bondes mágicos correndo pelo fio elétrico. Então a cidade para Alfredo era um reino de história encantada, toda calçada de ouro e com casas de cristal, meninos com roupas de seda e museus com muitos bichos bonitos. A cidade onde se fazia o Círio de Nazaré, o fatinho feito na loja, que seu pai lhe trouxe, o par de talher, os brinquedos raros e pobres que duravam uma hora. 33


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Tinha visto com os seus olhos não a cidade de siá Rosália mas a cidade da mãe Ciana, da Gualdina, do seu Ulisses, do Sevico." (JURANDIR, 1995, p. 86). Outro momento em que a imposição cultural se mostra presente na narrativa é quando Dr. Campos, no capítulo Metafísica para os Vermes, convida Eutanázio para beber uma "Bier", mostrando seu desejo de ingerir unicamente cervejas de Hamburgo ou de Munique, se tivesse condições para tal. Prosseguindo em seus pensamentos, Dr. Campos relembra-se, com muito orgulho, dos dias que esteve na Alemanha e Paris, nessa visita ao continente antigo se apaixonou por uma francesa e gastou dezenas de contos do dote de sua pretendente, mas viu a civilização. Viu a civilização? Nesse momento, o padrão europeu de belo se faz mais uma vez explícito, transparecendo como o cosmopolitismo impositivo da civilização européia pousava no imaginário amazônico dessa época, quiçá, do resto do Brasil, e ainda se faz presente nos dias atuais. “Conheci ainda Tobias em Recife. Que gênio! Seu Eutanázio, que gênio! É lírico quando tangia a harpa! Acho ele mais lírico que Castro Alves. Do Castro gosto do seu condoreirismo. Mas as horas já estão adiantadas e preciso ir a Salu. Quer ir comigo beber uma Bier? Hem, Eutanázio? Se eu pudesse mandava buscar de Hamburgo as minhas cervejas. De Hamburgo, não. De Munique! Quando estive em passeio na Alemanha passei dias em Munique. Ah! as cervejas de Munique! Alemanha é a pátria de Goethe, de Bismark, da Brahma! Mas sempre Paris me seduziu. Quando estive em Paris, a Cidade Luz, não bebia cerveja, bebia champanhe e bordeaux! Amei uma francesinha no Bois de Boulogne! A gente se deita naquela areia fina e a francesinha faz a gente ter desejos de voltar à França. França, a pátria do intelecto! Gastei algumas dezenas de contos do dote de minha madame, mas vi a civilização! Ouvi a Duse! Vi Isadora Duncan! A comédia francesa! Tive paixão pelos ditos do grande, do inimitável Bataille! Depois foi aquela estação em Nice. A minha aventura com uma corista em Milão. Madame teve que tirar cálculos da bexiga na Suíça e voltei para o Brasil juiz-substituto e bebedor de cerveja.” (JURANDIR, 1995, p. 119-120).

Os habitantes da vila de Cachoeira admiravam siá Rosália por ter trabalhado como camareira no Teatro da Paz, o maior teatro do Norte do Brasil. Mesmo que nenhum morador tivesse certeza, ela se vangloriava de tal feito, afirmando, com entono, ter conhecido inúmeros artistas europeus. O desejo inconsciente ou consciente de conhecer a Europa, ou de ter nascido europeu, repousava no imaginário de todos da vila, a viúva siá Rosália afirma só não ter sido possível realizar este almejo coletivo, devido ao seu ex-marido, Saraiva, não ter permitido, pois conheceu Lucíola Simões que a convidou para morar ou para passar umas férias (o texto não deixa bem claro) em Lisboa. Como a consolidação deste fato paira como algo muito distante, quase utópico para muitos, Belém passa a ser um sonho mais concreto e acessível, objeto mais próximo de desejo dos personagens de Chove nos campos de Cachoeira. “O fato é que se vive em Cachoeira, mas aspira-se por Belém. A capital é o fascínio, é o desejo mais íntimo de todos os personagens, (é a aspiração do homem interiorano pela cidade grande) não importa o que vão fazer, mas estão de alguma forma em Belém”, nos diz Assis (1996, p. 46). ”Cachoeira não sabia bem como foi a vida de siá Rosália, em Belém. Contavam que servira como criada no Teatro da Paz. Ela dizia sempre, com a voz cheia: - Eu, eu vesti muito artista. Cada roupagem! Era ver uma princesa. Fui camareira do Teatro da Paz! Camareira do Teatro da Paz! Pasmava Cachoeira. Os conterrâneos de D. Rosália achavam, até mesmo irritante, que ela chegasse a ser camareira do maior teatro do Norte do Brasil! Não sabiam ao certo. Uns viam-na em Belém, com a cesta debaixo do braço, a caminho dos mercados. Outros cansavam de ver siá Rosália, ama-seca, vestida a rigor, empurrando carrinhos de bebês ricos em Batista Campos. Viam-na no pé dum charão de doces no arraial de Nazaré, abanando as moscas com um pano. Vendia tacacá no larguinho atrás da igreja de Nazaré, no tempo da festa. Carregava trouxas de roupas na rua para casa do Coronel Soares, fazendeiro em Chaves. Era mulata alegre e festeira no Umarizal, devota do mastro do mestre Martinho, dançadeira de lundu, jogando entrudo na Antônio Barreto com os marinheiros nacionais. Virava muito mulato, soldado de polícia e estivador no 34


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maxixe, na São João. Andando atrás dos bois-bumbás nas noites de encontro no Umarizal e Jurunas. Ia ao cais esperar navio do Acre que lhe trazia seringueiros cheios, balateiros com os milhos. Tinha o seu espartilho, as suas camisas de renda, as suas voltas, as suas chinelas de veludo, os seus bereguendéns. D. Rosália tudo isso fizera e o povo de Cachoeira tinha de tudo isso uma vaga informação. Falava mais por palpite. Mas em Cachoeira a velha mulata, viúva de seu Saraiva, não se cansava de repetir: - Fui camareira do Teatro da Paz. Conheci o maestro Carlos Gomes, artistas de Portugal. Vesti Lucíola Simões. Ela só não me levou para Lisboa por causas do Saraiva. Saraiva que não deixou.” (JURANDIR, 1995, p. 99-100)

Apesar do foco desse estudo ser a obra Chove nos campos de Cachoeira, o seu terceiro romance, Belém do Grão Pará, onde Alfredo vai completar seus estudos na capital paraense, que o conflito simbólico se consolida de fato, pois é quando o espaço da narrativa passa a ser a capital do Pará, que é criada a partir do olhar subjetivo dos personagens. Nas palavras de Benedito Nunes (1961) “é através da experiência subjetiva desses personagens, Alfredo, Libânia, Emilinha, Inácia, Virgílio, Isaura, Mãe Ciana e Antonio, que a cidade começa a existir”, são os olhos de menino-do-mato, de matuto que descobrem os segredos e os encantos da grande cidade Belém. Como a cidade de Belém é vista “de dentro” (interior do personagem) “para fora” (exterior/ meio), e como alguns personagens do romance são originários de um ambiente rural, ocorre um conflito no interior dos mesmos quando se deparam com um ambiente cultural até então estranho, em virtude de que no chamado Ciclo da Borracha, a cultura européia contrastava com a paisagem amazônica. Nas palavras de Benedito Nunes (1961, p.1), “os personagens dialogam, defrontam-se com a cidade, que, além de ser ambiente e paisagem, compõe uma figura multiforme, humanizada e ideal”. Lévi-Strauss (1962) em um artigo intitulado “A crise Moderna da Antropologia” se mostra preocupado para o que chama de o “fim” das sociedades a-históricas. Como observa Galvão (1995, p. 24): ”Sua preocupação com o ’fim’ das formas ’nativas’ fundava-se, sobretudo, na concepção de que esses povos estariam sendo paulatinamente incorporados ao que mais tarde se chamou de ’sistema mundial’, e que tal passagem implicaria necessariamente, a perda inexorável de alguma forma ’original’ de ser”. Foi exatamente a preocupação de Lévi-Strauss que levou Paes Loureiro a estudar a cultura amazônica, assim como, também Dalcídio Jurandir, a retratar o cotidiano amazônico, além de outros inúmeros estudiosos e escritores, pois achavam pertinente analisar, ou simplesmente registrar a memória, a diversidade e a riqueza cultural desse povo antes que se incorpore, por completo, ao “sistema mundial”. Então, estudar Dalcídio é conhecer, experimentar e preservar a cultura amazônica em suas várias formas e multivozes. É reafirmarmos nossa etnia para podermos lutar contra a posse, física e espiritual, do capital mundial, é, por assim dizer, a salvação da nossa mal resolvida identidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Rosa. Dalcídio Jurandir: a simplicidade de um simples e alguns aspectos de sua obra. Asas da Palavra. v. 3, n.4, Jun., p. 41-47. 1996. JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. 3. ed. Belém: CEJUP, 1991. 294 p. LÉVI-STRAUSS, C. A Crise da moderna Antropologia. Revista de Antropologia. v. 10. p. 1-2. 1962 PAES LOUREIRO, João de Jesus. Cultura amazônica: uma poética do imaginário. São Paulo: Escrituras, 2001. 437 p. ______. A questão cultural amazônica. In: Secretaria de Estado do Pará. Estudos e problemas amazônicos: história social e econômica e temas especiais. 2. ed. Belém: CEJUP, 1992. 208 p. LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônida: uma identidade inconclusa. In: SIMÔES, Maria do Socorro. (Org.) Marajó: um arquipélago sob a ótica da cultura e da biodiversidade. Belém: UFPA, 2002. p. 299-306. MALIGO, Pedro. Ruínas Idílicas: a realidade amazônica de Dalcídio Jurandir. Revista USP, São Paulo, n. 13, p. 48-57, 1992. MENEZES, Maria de Belém. Um retrato de Dalcídio Jurandir. Asa da Palavra. v. 3, n. 4, Jun., p. 20-26. 1996 NUNES, Benedito. Crônica de Belém: “Belém do Pará”. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário, v. 5, n. 121, p. 1-3, 25 mar. 1961. NUNES, Paulo. Aquonarrativa: uma leitura de Chove nos Campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir. Belém: UNAMA, 2001. 98p.

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PALCOS DA LINGUAGEM: uma leitura psicanalítica de Chove nos Campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir por Josse Fares e Paulo Nunes QUANDO SE PEDE LICENÇA PARA MERGULHAR2 NOS CAMPOS DE CACHOEIRA Embora tenhamos uma certa intimidade com a obra de Dalcídio Jurandir, em verdade, nunca nos preocupamos em lê-la através de olhos da Psicanálise. Assim, é preciso dizer-se que este esboço de leitura não chega sequer a constituir um passo, mas é antes um engatinhar nas sendas da psicanálise do texto literário. A obra de Dalcídio Jurandir constitui um vasto painel da Amazônia paraense, seja do Marajó, seja de Belém ou mesmo da região do Baixo Amazonas. Este painel é constituído de 10 romances, e inicia-se com Chove nos campos de Cachoeira (prêmio Vecchi/D. Casmurro, 1941). Este primeiro romance é a matriz que será desenvolvida nos demais (exceto em Marajó3 ). Há ele um sem-número de personagens e tipos; nós, entretanto, nos deteremos em dois que nos parecem os mais significativos: Eutanázio (o mais sedutor dentre eles) e Alfredo que, segundo o professor Benedito Nunes4 , é o alter-ego de Dalcídio Jurandir. EUTANÁZIO, FILHO DE PORO E PÊNIA: Se tomarmos a composição da palavra unheimlich, chegamos ao sentido do não-familiar, opondose, portanto, ao heimlich, aquilo que é familiar. No entanto, “entre seus diferentes matizes de significado, a palavra heimlich exibe um que é idêntico a seu oposto unheimlich” (Freud, 1976: 282). Assim, o familiar, na significância de obscuro, secreto, aproxima-se do não-familiar. Talvez por isso se pense no estranho familiar. Em Chove nos campos de Cachoeira (CCC), parece-nos que Eutanázio corporifica o unheimlich. Ele é um masoquista. Seu amor por Irene é uma desmesura. Por ela, ele rasteja. Contrariando o sentido etimológico de seu nome, deusa da paz, Irene põe-se no “Olimpo”, faz-se inalcançável, desdenha do cavaleiro amoroso, rejeita suas oferendas: “Irene apareceu e começou a rir dos presentes. O par de meias era vagabundo. A pulseira era de se comprar na doca do Ver-o-Peso para as caboclinhas do Puca que nunca usaram pulseiras. Os sapatos pareciam de segunda mão. A fazenda do corte era duma cor para enganar babaquaras (...) Axi que eu uso essas porqueiras. Axi!Axi” (p. 1375 ). Ao rejeitar as oferendas de Eutanázio, metonimicamente, a moça rejeitava o próprio Eutanázio e transformava a sua existência numa experiência agônica. Barthes, a partir de Winnicot, diz sobre a angústia de amor: “ela é o temor de um luto que já ocorreu...” (Barthes: 1991: 22). Seria Eutanázio um enlutado? Cremos que sim. Ele sofre o luto da agonia primitiva: o ato de nascer que, no viés da psicanálise, representa a expulsão do paraíso uterino, assim, viver é sofrer. Eutanázio sintetiza este sofrimento, conforme se pode perceber no seguinte excerto: “Eutanázio pensava que a doença do mundo ele tinha era na alma. Vinha sofrendo desde menino. Desde menino? Quem sabe se sua mãe não botou ele no mundo como se bota um excremento? Sim, um excremento. Teve uma certa pena de pensar assim sobre a mãe. Não tinha grandes amores pela mãe. Morrera, e quando o caixão saiu, ele, sem uma lágrima, sentiu sede e foi fazer uma limonada. Aquele choro das irmãs, dos parentes, lhe pareceu ridículo. Enfim, sua mãe tinha morrido. Ele saltou de dentro dela como um excremento.Nunca dissera isso a ninguém. Depois, a sua própria mãe contava que o parto tinha sido horrível. Os nove meses dolorosos. Sim, um excremento de nove meses. A gravidez foi uma prisão de ventre” (124). Toda essa angústia experimentada desde a infância vai repetir-se na casa de seu Cristóvão, o avô de 36


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Irene. Eutanázio, já rapaz, continua sendo um excremento. Ele, um excêntrico (etimologicamente, “deslocado do centro”), tem uma existência marcada de lacunas6 . Dentre estas, a falta que ele, inconsciente, sente da mãe. A mãe que, contraditoriamente, em nível consciente, é renegada por ele: “Eutanázio não tinha grandes amores pela mãe. Morrera, e quando o caixão saiu, ele, sem uma lágrima, sentiu sede (...) Enfim sua mãe tinha morrido” (124). A linguagem, filtrada pela ótica de um poderoso narrador de 3.ª pessoa, acaba por desvelar (e por que não dizer trair?) os sentimentos de Eutanázio. Negar o amor não seria uma forma de reafirmar um desejo édipico? Aquela casa de Cachoeira até poderia ser estranha a Eutanázio. No entanto, o sentimento de rejeição que nela a personagem experimenta, traz-lhe a casa de Muaná, onde nasceu. Estamos diante do estranho familiar, “algo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz” (Schelling apud Freud, 301). A casa de Irene era uma casa unheimlich, uma casa assombrada7 , onde Eutanázio deu de cara com seus fantasmas. Marilena Chauí, a partir de Freud, afirma que o princípio do prazer “não está necessariamente vinculado a Eros, mas, de modo profundo, a Thânatos. Se o desejo supremo dos seres humanos for o equilíbrio, o repouso, a paz, o imutável, somente Thânatos, ou a morte, pode satisfazer tal desejo (...) O ponto essencial é que o princípio de morte não é apenas um desejo de destruição dos outros que seriam obstáculos ao repouso, mas de autodestruição” (Chauí: 1984: 63-4). Eutanázio é movido pela pulsão de morte, pela autodestruição. A rejeição de Irene leva-o à barraquinha de Felícia, a prostituta, “uma mulher que cheirava a poeira, a poeira molhada. Cheirava a terra depois da chuva” e “que já tinha estado desde a véspera com um homem suspeito”. Eutanázio, movido pela piedade, sentiu a quase certeza de que ela não sabia se estava contaminada ou não. Assim, ele, para corromper-se cada vez mais, “sentiu que devia entregar-se a qualquer coisa que ao mesmo tempo contentasse a carne e castigasse a sua impotência para resistir ao riso de Irene”. Desse encontro, Eutanázio levou consigo a doença venérea nunca nomeada por aquele que narra ou mesmo pelas personagens. O nome da doença é palavra interditada no romance. E, por causa de suas privações, ele é, no dizer do narrador, “... um homem apodrecendo por uma falta”. Ao tentar preencher sua falta, Eutanázio findou entregando-se a Thânatos, à cova/terra. E se considerarmos a simbologia do elemental terra, uma representação imaginária do útero, diríamos que só a morte conduziria Eutanázio aos braços da mãe boa. Vale lembrar aqui o “Funeral do lavrador”, inserido em Morte e vida Severina8 , de João Cabral de Melo Neto. Morto, Severino, o lavrador, somente ao morrer, ganhou o aconchego, a “camisa de terra” que o agasalhou. A atitude de Jocasta e Laio, que intentaram eliminar o filho, repete-se em Eutanázio que, parido como um excremento, é também eliminado. Dessa forma, a mãe, numa instância primeira, corporifica o seio mau, que encaminha o filho, conforme Hélio Pellegrino, “aos instintos tanáticos” (Pellegrino: 1986: 331). Numa segunda instância, “a imagem da mãe má - ou do seio mau - será projetada na figura do pai que, desta forma, se transformará num perseguidor odiado” (idemibidem). Diante desta afirmativa, convém lembrar que a relação de Eutanázio com seu pai, major Alberto (cujo nome é precedido por uma patente militar, major: maior) é tensa. Quando enviuvou, o major mudou-se de Muaná para Cachoeira, deixando as três filhas - uma delas, inclusive, era cega - mas levou consigo o filho varão, fato que poderia descartar a idéia da projeção do seio mau no pai. No entanto, esta projeção faz-se real na vida de Eutanázio, o major era alheio ao filho, não lhe dedicava atenção, ridicularizava-o, sobretudo ao descobrir sua inclinação para a poesia: ”...foram mostrar a major Alberto os primeiros versos de Eutanázio.Major Alberto sentou os óculos, leu o papel (...) - Uma porcaria! Que ele cuide doutra vida (...) Largue isso, homem! Largue esse ofício.Não está vendo que você não dá para isso? Que teimosia! Você é um homem de manias. Estude Química, encaderne os livros, procure o que fazer. Perdendo um tempo inteiro. Trate de sua vida. Era a voz do pai...” (141).

A voz do pai, como se vê, é de condenação, justamente ele, um leitor, colecionador de catálogos, impressor de jornais. O que o major não compreendeu é que a escrita é uma tessitura. 37


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Ao tecê-la, Eutanázio entrança fios, urde um manto de palavras que poderá recobrir suas lacunas. Como poeta, entretanto, ele é Orfeu, “que desce à noite dos infernos para recuperar Eurídice, o fantasma dos desejos” (Menezes: 1995: 15). Como no mito grego, Eutanázio também desceu ao inferno, e não recuperou Irene, aliás, ele nunca a teve, ainda que a presença dela tenha se tornado motivo de sua existência, como figura fantasmática da mãe. Se, como no mito do andrógino, Eutanázio é incompleto, ele busca a sua outra metade. Esta outra metade, no entanto, ele não encontrou em Irene. Ela não quis ser a sua alma gêmea. Thânatos sobrepõe-se a Eros? Vale lembrar que Eros é filho de Poros (Recurso) e Pênia (Pena). Eutanázio, por sua vez, é filho do major, amante das artes, conhecedor da História, respeitado tanto em Muaná como em Cachoeira. “Mas a mãe é mulher despossuída de felicidade e conforto, uma imagem especular de Pênia. Eutanázio [parece-nos] reduplica a penúria da mãe. O sentimento dele por Irene, marcado pela desmesura, liga-se ao pathos. A paixão, diz-nos George Bataille, ’nos engaja no sofrimento, uma vez que ela é, no fundo, a procura impossível’, [diríamos nós] a procura do impossível” (Fares: 2002).

Eutanázio, que passa pela vida como um doente terminal, é, como já foi dito, um masoquista (“...tinha em certos momentos até vontade de receber mil insultos que o magoassem muito, humilhassem-no...”): ao querer impressionar Irene, humilha-se, rebaixa-se e, assim, “esboça uma conduta ascética de autopunição” (Barthes: 1991:24). Eutanázio precisa de Irene tanto para viver quanto para morrer. Na hora de sua derradeira agonia, ela estava lá, mas aquela mulher, mansa como água fertilizada - ela estava grávida de Resendinho - não era a Irene que ele amou e sim uma “máscara empastada de lágrimas9”. O que Eutanázio levaria consigo era a Irene do riso mau, a inimiga, a odiosa, que, no dizer do narrador, era a imagem da própria obsessão de Eutanázio. LEMBRANÇAS ENCOBRIDORAS? Se considerarmos as fases da libido, segundo a origem do prazer elaborado por Freud, perceberemos que Eutanázio, já adulto, oscila entre a fixação da fase anal e da fálico-genital. A fixação da fase anal, a que tudo indica, pode ser constatada a partir do seguinte excerto, em que o narrador de 3.ª pessoa, colado à consciência de Eutanázio, afirma: “Quem sabe se sua mãe não botou ele no mundo como se bota um excremento”(124). Marilena Chauí, em “Édipo rei”, afirma, acerca das etapas da libido, que “nas fases oral e anal a criança mantém relações duais, seja porque se relaciona com a mãe ou com parte dela ou com substitutos dela (os objetos parciais), seja porque se relaciona com seu próprio corpo, tanto com partes dele (como se fossem pedaços separados ou autônomos objetos) como com seu corpo inteiro, mas como se fosse o de outrem, como se estivesse diante de um espelho e condenasse a imagem refletida como de outra pessoa que ela deseja ou admira...” (Chauí: 64-5).

É, entretanto, na fase fálica ou genital que Freud identifica o aparecimento do complexo de Édipo. Diz-nos Marilena Chauí: “É nessa fase, entre os 3 ou 4 anos, que Freud localiza o surgimento do complexo de Édipo que permanecerá latente até o fim da puberdade quando deverá resolver-se (ou não)” (idem: 64). É ainda a professora quem afirma: “Na fase fálica, a criança passa a uma relação ternária (ela, o pai e a mãe ou quem faça o papel deles), que já envolve os corpos inteiros dos participantes da tríada (...) Essa relação ternária, feita de amor, medo, ódio, inveja, fantasias agressivas e amorosas, forma o núcleo do Édipo” (idem: 64-5).

A deduzir-se a relação mal resolvida de Eutanázio com major Alberto (o rapaz “mendiga” o amor do 38


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pai) e da rejeição que ele vislumbra por parte da mãe (que no enredo se faz presente apenas através de suas angustiantes lembranças), podemos concluir que Eutanázio não resolveu a contento sua relação edípica. Daí, não raro, ele procurar em Irene (a configuração da mãe má, ou mesmo em D. Gemi, a representação da mãe boa) a referência materna que ele afetiva/efetivamente não teve. Ao nos debruçarmos sobre Chove nos campos de Cachoeira, é impossível não direcionarmos nosso olhar a Eutanázio, personagem tão densa quanto sedutora. Pois bem, ao enfocar Eutanázio, passaremos a investigar as recorrências daquilo que Freud denominou de “lembranças encobridoras”. Segundo o “pai da psicanálise”, que refletiu sobre os questionários aplicados a alguns pacientes pelos irmãos Henri, a idade das primeiras lembranças encobridoras da infância, grosso modo, varia dos dois aos quatro anos (período que abarca as fases oral e fálico-genital, onde, conforme já foi dito, forma-se o complexo de Édipo). Para Freud, o conteúdo mais freqüente das lembranças encobridoras relaciona-se às primeiras recordações da infância, ao medo, à vergonha, às doenças, às mortes, aos nascimentos. Assim, valeria observar quais, dentre estes sentimentos, os que, na fase adulta, são omitidos e quais os que se manifestam. Desse modo, o que é registrado como imagem mnêmica não é a própria experiência, mas um elemento psíquico associado a um fato desagradável, uma espécie de eufemização dos sentimentos. Pois bem, Eutanázio, desde a forma como vislumbra seu nascimento - afinal, ele fora “expelido como fezes” e não nascido parece-nos elucidar que a sua vida presente, nada mais é que a conseqüência de uma infância infeliz, demarcada de rejeições e sofrimentos, sofrimentos que perduram e se arrastam até a morte. O curioso é que o narrador parece sonegar-nos informações, ele pouco se fixa nos detalhes da infância de Eutanázio. Recorremos mais uma vez a Freud, no texto anteriormente referido: “Devemos primeiro indagar por que se suprime precisamente o que é importante e se retém o indiferente” (Vol. III: 1976:337). Eutanázio, em seu drama interior, parece fazer confrontar duas forças psíquicas opostas: de um lado, a importância do que procura lembrar; de outro, a resistência que tenta impedir que tal preferência seja mostrada. Embora Freud diga que uma não se sobrepõe à outra, Eutanázio parece deter-se no sentimento - ele obtura suas carências - que tenta impedir que a imagem mnêmica desagradável se manifeste. Ele teria conseguido esse intento? Parece-nos que não. Caso isso tivesse ocorrido, não teríamos as chamadas “substituições de conteúdos psíquicos”. Estes deslocamentos - os dos conteúdos psíquicos - como se sabe, se dão ora por associação de continuidade metonímica, ora por substituição metafórica como conseqüência de uma repressão. Ao observarmos a conturbada existência de Eutanázio10 (“Como estudante, sempre descuidado dos sapatos e da roupa. Aprendia com aborrecimento ou indiferença, frieza ou desapontamento. Ninguém se interessava por ele. O pai era indiferente. A mãe só dava pela existência da escola quando sentia falta de Eutanázio em casa...”, p. 138), perceberemos que a falta de afeto materno é metonimicamente deslocada para a figura de Irene, obsessivamente desejada pelo rapaz. Ela que, configurando a mãe má, destrata Eutanázio, “tortura-o”, desdenha dele. O rapaz procuraria em Irene o acolhimento e a paz maternal? Sim, embora ele procure, não encontra nela esta referência, exceto na hora da morte, quando ela, então, penalizada, aparece com o “rosto empastado de lágrimas”. Entretanto, neste momento, ele a rejeita. Não reconhece naquela mulher serena a Irene que tanto amou. Se considerarmos a relação Eutanázio X major Alberto não estaríamos diante de um flagrante de substituição metafórica? Afinal, durante toda a sua existência, Eutanázio mendigou o afeto do pai, que sempre lhe foi esquivo e por vezes até violento (“Major Alberto dava-lhe tundas e o pequeno com aquele gênio. O pai, depois da surra, bradava apoplético: - Eu te acabo! Eu te esmurralho a cara, seu patife! Acabo com isso...”, p. 137). Major Alberto não soube, como seria talvez o ideal numa relação triádica, fazer o “natural” corte metafórico. Eutanázio, ao que tudo indica, cresce carente de pai e de mãe. É uma personagem marcada por imensas lacunas, faltas ligadas à infância (no dizer do narrador: “Toda a sua infância [de Eutanázio] fora triste, indecisa, infeliz...”, p. 137), constituindo um caso sintomático e recorrente de lembrança encobridora. Chove nos campos de Cachoeira, se o lermos, como estamos fazendo, através do drama de Eutanázio, constituiria uma manifestação daquilo que Roland Barthes chamou de “discurso da Ausência” (tão lacunar que é grafada com “A” maiúsculo). Leiamos o que nos diz o teórico francês: “O discurso da Ausência é um texto de dois ideogramas: há os braços erguidos do Desejo, e há os braços estendidos da Carência. Oscilo, vacilo entre a imagem pálida dos braços erguidos e a imagem acolhedora e infantil dos braços estendidos” (Barthes: 1991:30). Eis uma síntese poética de 39


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Eutanázio, aquele que é “... raquítico, tinha os olhos sombrios, os dedos trêmulos, contínuas dores de dentes...” (137). Sigmund Freud, ainda acerca das lembranças encobridoras, afirma que as duas mais poderosas forças motrizes da lembrança encobridora são a fome e o amor. Se não há indícios que evidenciam a marca da fome (da fome física, pelo menos) nas lembranças encobridoras de Eutanázio, o mesmo não se pode dizer em relação ao amor. A imagem do amor ligado à obsessão e à violência está significativamente representada na relação entre ele e Irene. Como já foi dito, a paz procurada em Irene pela personagem, terá, por parte dela, um sentimento paradoxalmente oposto. Ele, nunca indiferente aos maus tratos dirigidos pela moça, por vezes, deseja vingar-se violentamente da amada: “Irene o esperava para rir, dizer indiretas, falar de seus fiteiros. [Eutanázio] Mandaria cortar os bicos agressivos daqueles seios...” (135). As fantasias de maus tratos para com Irene, alimentadas pelo Eutanázio já adulto, estão provavelmente ligadas às carências da infância. Afinal, diz-nos Freud que uma fantasia não coincide completamente com a cena infantil, apenas baseia-se nela (os seios maternos foram negados a Eutanázio na infância? Amputar os bicos dos seios de Irene não seria reflexo dessa falta?). O que devemos pensar diante disso? Ouçamos o próprio Freud, que talvez nos dê a pista elucidativa: “O passo intermediário entre uma lembrança encobridora e aquilo que ela esconde é provavelmente uma expressão verbal” (p. 350). Não seria por este motivo que Eutanázio esforça-se tanto para expressar-se através de versos? Leiamos: “[Eutanázio] absorvia-se em chapear o papel com teimosas metrificações. Tinha a pachorra dum amanuense do Parnaso. Todo dia assinava o ponto na repartição das musas” (140). Afora isso, é válido lembrar que Eutanázio, como poeta do boi Caprichoso, de Cachoeira, era quem, durante a quadra junina, dava “forma literária” aos anseios do povo, através das letras de toadas. A linguagem preenche as lacunas da personagem?

ALFREDO:ENTRE OS CAMPOS QUEIMADOS E AS HISTÓRIAS DO FAZ-DE-CONTA Menino feridento e empaludado. Era mulato: “... achava esquisito que seu pai fosse branco e sua mãe preta (...) Por que sua mãe não nascera mais clara? E logo sentia remorso de ter feito a si mesmo tal pergunta. Eram as pretas mãos que sararam as feridas, pretos os seios (...) brotara daquela carne escura” (122). A diferença entre o pai e a mãe de Alfredo é abismal. Ele é o major, homem branco, secretário da intendência municipal. Ela, uma criada que fora tomada como concubina, “esposarana”. Mas é ela, entretanto, quem sonha e economiza seus trocados para mandar o filho estudar na capital. Alfredo investe no sonho da mãe. Ele é um sonhador. Costumava ter às mãos um caroço de tucumã, espécie de varinha de condão ou objeto mágico com o qual ele transpunha as dificuldades, as angústias do cotidiano. É com o carocinho que Alfredo transita do simbólico para o imaginário. Este aqui considerado como tempo/ espaço marcado pela fantasia. Aquele como inserção do sujeito no mundo da lei, da castração do desejo, quando então a criança “entra no mundo da linguagem, da cultura, da civilização” (Fages apud Taranto Goulart: 1985). O caroço é, pois, um objeto transicional. Vejamos: - “O caroço ficará nos campos queimados contando a história do faz-de-conta. Agora tem que ir ao tanque escolher outro caroço que (...) lhe mostre os campos da Holanda, o arranque daqueles campos mormacentos” (119). Diga-se de passagem: Alfredo imagina-se nos campos da Holanda a partir do dia em que os vê num dos catálogos do pai que lhe diz tratarem-se de prados, muito comuns na Holanda. - “Os passarinhos revoam em torno do chalé. O caroço de tucumã já imaginou que os passarinhos moravam no chalé. Ficavam livres do gavião, do fogo dos campos e da baladeira11 dos moleques” (120). Neste excerto, como se percebe, o caroço é humanizado através da prosopopéia, recurso recorrente da prosa de Dalcídio Jurandir, quando ele descreve a natureza do Marajó. Os poderes do caroço, enquanto objeto mágico, possibilitam a Alfredo o deslocamento do real para o imaginário, numa espécie de pacto entre o menino e a natureza. - “Alfredo correu e foi buscar um caroço de tucumã. Começou a ver todos os passarinhos no 40


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chalé dançando uma estúrdia com Mariinha no soalho” (122). Através do caroço de tucumã, uma espécie de carretel do Fort/Da freudiano, Alfredopõe-se num ir e vir constante, que o transporta do simbólico para o imaginário, da realidade para a fantasia. O FORT/ DA FREUDIANO: UM VAI-E-VEM ESPECULATIVO O Fort/Da nasce de uma privação, de uma falta, a falta da mãe, que se situa de imediato no registro do real. Assim, a criança acaba, através do jogo (o vai e vem do carretel) do Fort/Da, inserindo-se no mundo simbólico, o espaço da lei. Alfredo, após o corte promovido pelo pai, vendo destruída a relação dual e instaurada a tríada, vê-se carente de mãe. Como nem sempre é possível dispor da mãe, Alfredo lançará mão do Fort/Da marajoara: o caroço de tucumã. É ele que, como foi dito, nos momentos de angústia e sofrimento, traz-lhe o lenitivo. É como se Alfredo, com o caroço nas mãos, pudesse trazer para perto de si os seios maternos. Roland Barthes, em Fragmento de um discurso amoroso, no verbete “ausência”, explicita o recurso freudiano: “A ausência dura, preciso suportá-la. Vou então manipulá-la: transformar a distorção do tempo em vaivém, produzir ritmo, abrir o palco da linguagem (a linguagem nasce da ausência: a criança faz um carretel, que ela lança e retoma, simulando a partida e a volta da mãe: está criado um paradigma). A ausência se torna uma prática ativa, um afã (que me impede de fazer qualquer outra coisa) (...) Esta encenação lingüística afasta a morte do outro” (Barthes: 191: 29).

O carretel de Alfredo é o caroço de tucumã12 , fruto de uma palmeira amazônica, abundante na região dos campos marajoaras, caroço ao qual são atribuídos, pelo imaginário popular, poderes mágicos, conforme se pode comprovar na tese “Cartografias marajoaras: cultura, oralidade, comunicação”, defendida na PUC-SP, pela prof.ª Josebel Akel Fares13, da Universidade do Estado do Pará/Universidade da Amazônia. Vejamos abaixo:  No dia da morte de Eutanázio, “Alfredo sacode o lençol, o carocinho salta no soalho para debaixo da rede do major, como se fugisse. E o menino, como que desamparado, pergunta a si mesmo: E agora?” (401). No nosso entender, este fragmento é de suma importância para a leitura psicanalítica de Chove nos campos de Cachoeira. Ele representa o corte. O caroço, símbolo do imaginário, é interceptado pela lei do pai. É chegada a hora de Alfredo deixar os campos de Cachoeira e ir cumprir seu destino em Belém, o que ocorrerá no segundo romance da saga de Alfredo, Três casas e um rio (1958). IBLIOGRAFIA CONSULTADA Assis, Rosa. Edição crítica de Chove nos campos de Cachoeira. Belém, EDUnama, 1998. Barthes, Roland. Fragmento de um discurso amoroso. Trad.: Hortênsia dos Santos. 11 ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1991. Bogéa, José Arthur. Bandolim do diabo: Dalcídio Jurandir em fragmentos. Belém: Paka-Tatu, 2002. Chauí, Marilena. Repressão sexual. São Paulo: Brasiliense, 1984. Chemama, Roland & Dorgueille, Claude. Dicionário de psicanálise: Freud e Lacan. Trad.: Leda Mariza Bernardino, et alii. Salvador, Ágalma, 1994. Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: 1998. Fares, Josebel Akel. Cartografias marajoaras: cultura, oralidade, comunicação. [Tese de doutoramento]. São Paulo: PUC-SP. Orientada por Jerusa Pires Ferreira, 2003. Fares, Josse. “Matrizes e germinações em Dalcídio Jurandir: o canto agônico de Eutanázio”, in: Anais do I Encontro da Abralic na Amazônia/ VIII Fórum Paraense de Letras, (cd rom), Belém: EDUnama, 2002. Fares, Josse & Paulo Nunes. Pedras de encantaria. Belém: EDUnama, 2001. Freud, Sigmund. Primeiras publicações psicanalíticas. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

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PERSONAGENS E PROBLEMAS EM DALCÍDIO JURANDIR. O fazendeiro-coronel. por Gutemberg Guerra Na literatura brasileira em geral, o rural invade transversalmente os diversos estilos e áreas, cobrindo boa parte da produção escrita nacional. No Pará, pode-se encontrar essa marca em autores como Inglês de Sousa, Dalcídio Jurandir, Lindanor Celina, Benedito Monteiro, Bruno de Menezes, Ruy Barata, João de Jesus Paes Loureiro, entre outros. Na narrativa dalcidiana, centrada na região norte do país, em particular no que se refere ao Pará, encontram-se personagens e temas recorrentes do mundo rural como coronéis, vaqueiros, peões, lavradores, o roubo de gado, a disputa pela terra, a condição subjugada das mulheres, a sujeição do trabalhador por mecanismos diversos. Escolheu-se, neste trabalho, o livro romance Marajó, de Dalcídio Jurandir, para verificar como as personagens entram em cena e o que representam. Repertoriar e discutir estes elementos do texto do autor paraense é uma possibilidade para entender o mundo rural do qual se apropriou Dalcídio Jurandir, em sua época, para dar consistência literária e social a suas mensagens. Coteja-se a construção ficcionista do autor com elementos históricos presentes no mesmo tempo e espaço amazônico. Verifica-se como estes elementos são descritos do ponto de vista sociológico e como representam uma visão de mundo de um autor da importância deste que é considerado um dos maiores romancistas da Amazônia e do país. O estilo narrativo de Dalcídio Jurandir, por sua fluência e abundância em períodos longos recebeu, de Paulo Nunes (2001:41) a qualificação de aquonarrativa, por oposição à sedenarrativa, estilo que caracterizaria o estilo econômico de Graciliano Ramos. Nunes associa os estilos aos ecossistemas retratados pelos dois autores, a umidade amazônica e a secura nordestina, respectivamente. Mas a exuberância do texto dalcidiano pode ser vista por outros ângulos. A julgar pelo romance Marajó, a profusão de personagens construídos por Dalcídio Jurandir em sua obra representa uma verdadeira multidão. Apenas para ilustrar, utilizando uma edição em que o texto é apresentado em 352 páginas, nas 150 primeiras conta-se com mais de 70 figurantes, entre principais e secundários, aparecendo de diferentes formas no romance. Mas como são construídas as principais personagens naquele livro e como as situações de conflito são identificadas no texto? Para responder a essa pergunta, tentou-se repertoriar uma por uma delas, o que representou um esforço que exigiria muito espaço para esta breve apresentação. Por isso, escolheu-se personagens centrais - Missunga e o Coronel Coutinho - representantes do patronato rural no Marajó. O fôlego exigido para um trabalho dessa natureza é maior do que pode ter um leitor comum, sem especialidade na área das letras, como é o caso, o que não impede, porém, um exercício de observação sobre os aspectos referentes à ruralidade e ao poder político presentes na trama sociológica envolvidos na obra dalcidiana. Leia-se, portanto, este artigo, com a referência de que o autor, engenheiro agrônomo interessado na área da sociologia rural, privilegiou aspectos ligados ao seu universo profissional. O RURAL E O URBANO EM DALCÍDIO A presença da natureza, das atividades agrícolas, da rusticidade nos aposentos, vestimentas e utensílios das personagens, a dispersão geográfica, a falta de serviços básicos como água encanada, escola, postos de saúde, estradas, correios ou outras formas de comunicação, são indicadores de uma ruralidade efetiva no romance Marajó. As relações primárias, onde as pessoas podem ser identificadas pelos nomes e papéis que cumprem, ou tendo seus nomes diretamente associados aos papéis, indicam uma sociedade organizada com destaque nas pessoas1 . As instituições pú42


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blicas aparecem manipuladas pelos poderosos, sem o caráter republicano que marcou a sua generalização desde o século XIX. As relações de clientelismo, parentela, compadrio, paternalismo, expressas ao longo de todo o romance, distanciam da prática social, o exercício da cidadania. O mundo rural dalcidiano, complexo em suas múltiplas formas de expressão, é caracterizado por sua singularidade bipolar, onde dominantes e dominados convivem, mantidas as posições sociais distintas de cada categoria. Na cidade, ou na vila, como prefere Dalcídio ao se referir a Ponta de Pedras, encontram-se os elementos urbanos, sejam eles personagens (tabelião, prefeito, médico, professor, advogado, jornalista), sejam cenários (clubes, residências, hotéis, faculdade), todos instrumentos de legitimação do poder exercido pelos coronéis (pai e filho). O direito, a cidadania, aparecem sendo exercidos ali. O rural é mais explicitamente o espaço do desmando, da lei do mais forte, sem que haja a necessidade de um artifício de legalidade. Cargos, profissões e situações são manipulados para satisfazer os interesses em jogo. E os interesses são a acumulação de poder a partir da concentração de propriedades rurais, do poder político exercido através dos cargos eletivos (intendência e câmara de vereadores), e o domínio sobre as pessoas, este construído sobre favores ou ajudas que se revertem como dívidas (concessões de pequenos lotes de terras ou habitações, pagamentos de dívidas, enterros, doenças, empregos). O VELHO CORONEL MANOEL COUTINHO Presente desde a primeira cena do livro, o coronel vai sendo revelado ao longo de todo o texto. Sua ligação com a terra vem expressa ancestralmente por sua ascendência. Neto de fazendeiro, filho do coronel-fazendeiro Joaquim Alvares Coutinho, demonstra uma avidez por aumentar suas extensões de terras, o que aparece em frases plantadas na narrativa pela expropriação, por artificios variados, dos parentes, vizinhos ou quem quer que se apresente em situação de fragilidade (dívida, doença, inapetência). ...sabia dominar os sítios e a vila de Ponta de Pedras, os lagos e as fazendas de Cachoeira (p. 12). A preocupação em firmar as propriedades em cartório aparece, no texto, antes mesmo que as vítimas comecem a ser declaradas (p.11). O autor expressa a avidez generalizada do coronel por terras, com uma imagem fagocitótica: Devorava pequenas fazendas em Cachoeira, estreitando cada vez mais o cerco em torno das últimas e teimosas pequenas propriedades que deixavam, enfim de lutar com o grande domínio rural. Marajó para Coronel Coutinho e alguns fazendeiros grandes era um mundo à parte, privado, lhes pertencia totalmente (p. 28). Este domínio sobre o ambiente (terra, água, pessoas) era mantido pela força e crueldade: Coronel corria os campos do Arari dirigindo a matança dos jacarés, as malhadase as ferras, tomando terras, surpreendendo vaqueiros no amor com as velhaséguas e as vacas mansas nos encobertos, fechando os lagos para os pescadores e os próprios vaqueiros. Um pescador, Marcelino, antigo vaqueiro do “Paraíso” ousara entrar num lago da fazenda e foi morto a tiros pelo vigia (p. 67 e 68). A associação com a nobreza é patente neste trecho. Não só o aspecto da caçada mas o domínio sobre a vida íntima das pessoas, o sexo praticado pelos vaqueiros com os animais surpreendido pela onipresença do Coronel. A entrada do ex-vaqueiro Marcelino em um lago proibido é punida com a morte, pela onipotência do Coronel. Os atos de apropriação são enumerados e descritos com detalhes dramáticos. Pode-se enumerar, entre os expropriados pelo coronel Coutinho, o primo Guilherme (p. 16 e 17), o casal Felipe e Januária (quando eles e outros posseiros se espantaram, estavam feitas as escrituras por Lafaiete (p. 35), o pai de Tenório (p. 57), o próprio Tenório (p. 59), Dona Mariazinha (p. 59). Peça chave no processo de apropriação das terras pelo coronel é o tabelião Lafaiete, descrito esparsamente no texto, mas compondo um personagem importante na trama romanesca. Sêco, a cara engelhada, os cabelos brancos, os olhos sem cor, as orelhas como que tremiam. 43


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Capitão da Guarda Nacional, responsável pelas falsificações de documentos no cartório a favor dos grileiros, subserviente ao velho Coronel Coutinho, mau carater, disputa com Missunga a gestão das fazendas (quando tenta deslocar o vaqueiro Manuel Raimundo) e o amor de Orminda, com a qual mantém um romance. Mas não só de terras se constitui o poder dos coronéis. A terra se explica pelas criações que nelas pode manter: Seu maior empenho era ter gado (p. 28). Gado e gente: Coronel queria ter o povo na mão (p. 35). E mulheres: Coronel dizia aos amigos em Belém que sabia povoar os seus matos, cruzar o seu fidalgo sangue português com o das índias, encher a terra de povo com a marca dos Coutinhos. De que serviam as vacas e as mulheres senão para aumentar os rebanhos? (p. 28). São muitas as mulheres que aparecem como tendo sido possuídas pelo Coronel Coutinho. D. Branca, mãe de Missunga, é construída como a esposa oficial que, traída, definha e morre de desgosto. Ermelinda assume, como amante, um lugar de destaque na vida do Coronel e de Missunga, atuando como mediadora em muitos casos. Algumas outras mulheres vão ser descritas, no romance, em detalhes, como a comadre Engrácia, a ex-escrava Benedita. Outras, mostradas genericamente, demonstram contudo que parte do poder dos coronéis se expressa pelo domínio do ventre das mulheres que habitam suas terras. Seu poder se expressa, de um lado, por essa posse das mulheres e, de outro, pelas regalias que lhes dispensa, como a casa alugada na Serzedelo Corrêa na qual habita Ermelinda, quando em Belém. Tanto o ambiente quanto as vestimentas e luxo da casa e da amante são descritas com detalhe (p. 156), expressando um poder que se espelha na casa bem situada geograficamente, e na sua aparência arquitetônica. Isto se reforça pela posse das mulheres se realizando em lugares diversos, nas casas das fazendas espalhadas pela ilha. Mesmo na morte, o coronel pesa sobre as mulheres. Teria falecido em plena atividade, com uma jovem que ... embrulhada em um lençol saiu gritando do quarto e até hoje parece transtornada (p. 302). A narração da morte do Coronel é descrita como o rito de passagem de Missunga: Aquele fim os aproximava cada vez mais, os fundia e, como fascinado, embora lutando contra a fascinação, se deixara envolver pelo único sentimento real e total, o da posse universal da herança poupada e tranquila (p. 303). A FORMAÇÃO DO FAZENDEIRO-CORONEL Missunga, filho do Coronel Coutinho, é construído no romance como uma esperança de reprodução do coronelismo que se exercita na maior ilha fluvial-marítima do mundo. No contraponto com o pai, é elaborado, passo a passo, através de uma constante tensão: uma expectativa de ruptura entre o novo e o velho coronel, criada e mantida durante toda a trama, mas que não se realiza. Missunga é o coronel em formação, com todos os componentes de autoritarismo, machismo, ambição por terra e posição social, embora humanizado e reciclado pelo narrador a partir de traços psicológicos angustiados, conflituado interiormente com as possibilidades de incesto com as mulheres que deseja. De certa forma, Missunga se nega ao que lhe pretende atribuir o pai: assumir o mesmo papel de coronel, embora letrado (advogado), o que lhe daria uma distinção exigida pela fricção com as mudanças sociais em curso. Missunga é visto como o futuro coronel melhorado e estas expectativas vão se acumulando nas falas do próprio coronel, seu pai, mas também nas de Lafaiete, o tabelião, e do próprio Missunga, que sonha, apenas sonha, em fazer ou ter feito cursos universitários nos Estados Unidos. A cena inicial do romance mostra o velho coronel chamando o filho, debruçando-se no parapeito do casarão, em uma tomada em que personagens e cenário expressam poder. O parapeito do 44


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casarão é uma sinalização subliminar da imponência do ambiente patronal. Adiante, muito mais adiante (p. 115), uma sala de jantar com dez janelas para o rio é citada. Janelas nas casas antigas eram símbolo da riqueza das famílias. Ainda na primeira cena, a voz do coronel chama o filho e seu apelo, ou ordem, cai no silêncio, justificado pela ausência de Dona Ermelinda que tinha ido visitar uma pessoa doente no Araraiana - as primeiras damas fazem serviço social. O apelo do coronel não deixa de ser respondido com o nervosismo do picapau martelando a macacaubeira. Embora personagem de peso significativo no romance, Dona Ermelinda é apenas uma das mulheres do coronel, a amante que ele assume em uma de suas fazendas, e se torna a principal mulher após a morte de Dona Branca, a esposa oficial, com nome de rainha e santa, mãe de Missunga. Na seqûencia da 1a. cena, Missunga responde pela fala do narrador, adentrando no romance pelo exercício da caça, símbolo de nobreza européia, embora sua distinção venha ajustada às condições ecológicas marajoaras. Ele não caça javalis nem raposas: Com a cisma de haver tatu perdido ou alguma cotia nas toiças, Missunga entrou no capoeiral vizinho, seguindo o cão. Exibia no ombro a espingarda e espreitava os esconderijos mais próximos (p. 9). O cão tem nome emblemático, Famaleal, característica das personagens dalcidianas, aspecto também acentuado por Nunes em seu já citado trabalho (Nunes, 2001:46 e 47). Homem e naturezaem confronto, Missunga estréia no romance, aparecendo armado de espingarda, porém literalmente vencido diante do mato virgem (p. 9). Vencido e pouco disposto a enfrentar o mundo selvagem, uma vez que, herdeiro da fortuna do pai, pode desfrutar de prazeres urbanos, civilizados, como o pai teria feito na sua juventude. Ser caçador é apenas uma diversão, que exerce mal e sob o escárnio dos outros (ver p. ex. 32). Em tudo o que faz, Missunga é retratado como um fracassado. Na caça, como vimos acima, mas também em outras passagens, a associação com a nobreza e o fracasso vão aparecer retratados de forma recorrente ao longo do romance. Na faculdade de Direito, o fracasso é patente e vai aparecer durante o texto como algo inerente à fragilidade intelectual dos coronéis. O forte do poder no mundo rural e feudal não é o mérito pela inteligência, este atributo burguês. O poder oligárquico e aristocrático são produtos da força militar e do poderio político acumulado. A figura de Missunga é construída, portanto, com os atributos da nobreza, sobretudo o não-trabalho e o tempo à sua disposição. Sua preguiça e lassidão, o tempo livre, referido em passagens onde se entrega ao banho de igarapés (p. 12) , é signo do poder. O trabalho é realizado por outros, como Benedito, serviçal com nome de negro, atributos e habilidades de índio (p. 12 e 25). Os símbolos de poder vão ser utilizados ao longo da narrativa revelando as marcas de soberania, podendo ser identificados desde as vestimentas até os gestos: caçadas, a preguiça e lassidão, os anéis. Missunga é filho do coronel Coutinho com D. Branca. Cenas de lembranças (flash-backs), pintam D. Branca como a mediadora entre o poder autocrático dos coronéis (pai e filho) e os subordinados, dando uma aura de generosidade e sofrimento purgatório tanto a ela como ao filho, nos momentos em que a relembra para contrargumentar com o pai: - Aquele administrador, meu filho, fêz por mim o que ninguém faria. - Nem mamãe? (p.108). Missunga vive no romance a dificuldade do príncipe, do futuro herdeiro que tem que conviver com o pai e suas ordens, até o momento em que consegue liberdade para investir em um projeto próprio. Antes disso, os namoros são a sua principal ocupação, desejando e possuindo uma coleção de mulheres do povo, em angustiadas contradições para uma escolha. Parte significativa da contradição calcada na possibilidade do incesto vez que as mulheres do Marajó poderiam ser, todas, suas irmãs. Alaíde vai ser a preferida para habitar a fazenda Felicidade, sendo descrita como a próprianatureza selvagem: ... o hálito de Alaíde, calor, frutas rachadas no chão (p. 13) ... fedia a peixe, a lama da várzea na vazante (p. 29). 45


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Alaíde era mansa como a terra sentindo as raízes, as marés, a inquietação das árvores sob a trovoada. Se abandonava com um jeito um pouco distraído, tão tranquilo, tão natural com uma animalidade inocente, tão inocente, em certas horas, que havia naquilo a sensação quase do incesto (p. 75). Ensaia um passo de modernização da administração das fazendas quando o pai se afastae ele, Missunga, assume o terreno expropriado de Felipe. Contrata e assalaria trabalhadores e dá o nome de Felicidade às terras em transformação. Alaíde é sua companheira neste projeto mas o nome da tentativa modernizadora de Missunga dissolve-se com a volta do pai, imbuídoda idéia de uma associação com os japoneses. A utopica Felicidade gravada em uma tabuleta de madeira é finda arrancada por uma mulher para dela servir-se como remo...(p. 163 e 164). Mais do que desejar, possuir mulheres é um atributo do poder no Marajó, ilha e romance. Missunga é revelado ávido de mulheres desde a mais tenra infância, no colo de Mariana. Vai viver de conflitos pelas comparações entre Orminda, Alaíde, Guita, Hilda, Marta, Adelaide. Seu projeto de tomar as rédeas das fazendas, concretizando sua formação de patrão tem como impecilho e existência e vigor do pai, de um lado e, de outro a presença marcante do gerente, Manoel Raimundo. Vaqueiro experimentado, exercendo o seu poder delegado pelo coronel Coutinho sobre o vasto rebanho, manifesta-se também como poderoso no campo das proezas sociais, como possuidor de muitas mulheres e filhos. Entrelaçando confiança e dependência à uma relativa autonomia e competência, Manoel Raimundo troca com o coronel Coutinho em uma moeda que bloqueia o acesso de Missunga ao coronelato até a morte do seu pai. Depois da passagem do velho coronel, Missunga assume o comando das fazendas e o vaqueiro passa a ser o seu braço direito, faz parte da herança dos bens do velho.O capítulo 47 é prodigo em descrever os poderes acumulados pelo velho e herdado pelo novo coronel que, tomando conhecimento da extensão do seu patrimônio, comemora seu primeiro dia de trabalho igulando-se ao criador: É o meu primeiro dia de criação! Quarenta mil reses redondas, bravias e mansas, búfalos, a melhor cavalaria de Marajó, terras, barcos, lojas, lanchas, depósitos nos bancos, servos, cartórios, juízes, irmãos e contas a receber. Era a herança. As personagens do romance são construídas detalhadamente ao longo de todo o romance. Dar conta de cada uma delas implica em sair recolhendo cada uma de suas características para montar o quebra-cabeça. Faz-se, neste texto, apenas uma parte do que seria suficiente para mostrar a figura do coronel e algumas situações em que ele se envolve por força do seu papel. Outras personagens merecem o mesmo tratamento, como o vaqueiro Ramiro, as mulheres, figuras de densidade lírica significativa na obra de Dalcídio Jurandir. Mas estes ficam para outro trabalho... CONCLUSÃO A figura do coronel apresentada no romance Marajó, de Dalcídio Jurandir, é construída associando o poder conferido à categoria pelo domínio do tempo, de terras, de gentes e de gado. Ênfase no desejo e na posse de mulheres caracteriza tanto o velho coronel como o seu herdeiro. A morte do velho coronel é descrita como tendo sido no pleno exercício de sua virilidade. O novo coronel, depois de exercitar o domínio de sua herança, embarca para o Rio de Janeiro, descrevendo-se seu afastamento da ilha como um misto de pesadelo e morte. O romance encerra, porém com a morte de suas amantes, em ambientes onde se confundem com a natureza, como se o afastamento (morte?) do senhor implicasse o fim de suas desejadas. A riqueza de detalhes apresentadas nos cenários, situações e no comportamento das personagens confirma o sólido trabalho de observação e registro que Dalcídio Jurandir exercitava e utilizava em seus trabalhos. As situações de conflito no campo, como o roubo de gado, os conflitos pela terra, as contradições entre peões, fazendeiros e seus administradores, são todos elementos sociológicos dignos de uma leitura mais refinada e de uma resposta que possa ser dada à proximidade entre ficção e realidade.

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BIBLIOGRAFIA CELINA, Lindanor. Pranto por Dalcídio Jurandir. Memórias. Belém, Secretaria de Estado de Cultura, Desportos e Turismo, 1983. DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 1979. 272 págs. JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 3ed. Belém, CEJUP, 1992. NUNES, Paulo. Aquonarrativa: uma leitura de Chove nos campos de Cachoeira, de Dalcídio Jurandir. Belém, Unama, 2001.

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" ´NÃO INSISTA. A DESPEDIDA É LOGO MAIS, É HOJE, É AGORA´: Lindanor Celina pranteia Dalcídio Jurandir" por Júlia Maués Dificilmente deixa seu lugar aquele que habita próximo da origem (Hölderlin)

Há um novo território sendo percorrido pela literatura em que se desfazem todos os rígidos limites das amarras dos gêneros literários territorializados como “memorialismo”, “ficção”, “autobiografia”, “diário”, “poesia”, porque a escritura se apropria do tempo como um continuum, uma nova littera: em que se tenta recuperar, sem êxito completo, pelo movimento da escrita, a forma total de um acontecimento vivido. Na verdade, é uma desmemória feminina (que não necessariamente será feita pela mulher, segundo os ensinamentos de Freud), para registrar, em forma de narrativa ficcional, a descontinuidade do tempo da memória agora estreitamente ligado ao plano da imaginação. Lindanor Celina pranteia em forma de memórias Dalcídio Jurandir, o Dal, como carinhosamente o chamava, em “Pranto para Dalcídio Jurandir” - memórias (1983). E sobre esse pranto, melancólico, senda em que a memória se mistura à ficção, duas vezes iniciado: em Madri, fevereiro de 1980, Montparnasse, janeiro de 81, resolutamente encetado em Skyros, verão de 81, perante um mar que ele jamais vira, um texto com gosto de sal do próprio mar, do suor e das lágrimas2 , é que iremos enveredar. Nessa vertente talvez corramos o risco de ter apenas um pranto parido a fórceps por alguém que estivesse grávida, mas adiando o parto, como se isso fosse possível, para deixá-lo sair em forma de amor gerado em muita palavra (“ô, muitas palavras, parafraseando Lindanor”). No entanto, a densidade da ficção que entremeia essas memórias já desterritorializadas, ergarçadas pelo tempo, resolvem-se num diálogo com Dalcídio, franqueado ao leitor que de repente, de Skyros na Grécia, entra em Belém do Pará, na sala de Machado Coelho, com Paulo Plínio Abreu, Ruy Barata, Chico Mendes, Dr. Raymundo Moura e ela, Lindanor, filhos pequenos, Durval, o marido, e o Tribunal, o trabalho. Era o tempo da Folha do Norte, jornal em que ela escrevia suas crônicas, aos domingos. Este leitor toma também os fios do tempo e percorre a fiação, a tessitura narrativa dos que não estão mais lá, sem também lá ter estado, e que, apesar disso, pode vivenciar uma experiência livrandoa do esquecimento, quase esquecendo que daqueles idos mais de 50 anos são passados anos. Desde Homero na Odisséia, esse tecer e destecer de tramas fictícias, por isso mesmo falsos em relação ao tempo real, nos são mostrados pela personagem Penélope, ao contar a sua espera do amante Ulisses, o que somente lhe foi possível graças à sua esperteza em saber enganar. Ela aprendera a tecer a sua própria dor com os fios que lhe escapavam das mãos num processo 48


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de espera do futuro, da vinda do seu amado. Assim, o procedimento o tecer panos delicados de dia para destecê-los à noite, sob a desculpa do preparo do enxoval que pela desfaçatez jamais é concluído, fornece o emblema de Penélope ao texto de memórias, segundo Lúcia Castello Branco (1994), na medida em que escrever memórias significa um fazer e um desfazer aquilo que de fato se viveu. Será assim que esse tipo de texto, com seus esquecimentos lacunares, deverá imprescindir da ficção, para poder atravessar o tempo e resgatar o étimo do acontecimento original, garantindo assim, na fidedignidade da memória, ilusoriamente, a inteireza do eu daquele que escreve e tenta rememorar. Lindanor pontua a geografia da sua memória calcada em locais que nos são familiares em Belém, mesmo estando na Grécia, transportando-nos para o dia de sua primeira entrevista com Dalcídio, Aeroporto de Val-de-Cães, tempo do Círio de Nazaré, quando Eneida conseguira passagens para todo um bando de escritores do Rio - Jorge Amado, Zélia Gattai, José e Luísa Conde, Mauritônio Meira. Eneida festejada, Dalcídio moreno e bonito, digno, introvertido, e a carona no carro de Linda e Durval, um Pontiac, ela sequer desconfiando que ali se passava a Glória de estar com aquele que seria o seu grande amigo, o seu mentor, orientador literário, mestre das suas escrituras. Nesse contexto lembramo-nos de Walter Benjamim, ao trabalhar com o texto de Marcel Proust, quando sugere que o processo de memória de La Recherche esteja mais próximo do esquecimento que propriamente da reminiscência. Penélope, às avessas, o narrador proustiano, para Benjamim, buscaria desfazer durante o dia o trabalho noturno da memória. Assim, como um tecido esgarçado, a narrativa de Proust teria, na trama, a recordação, e na urdidura, nos fios que servem de suporte à trama, no tecido propriamente, o esquecimento (Benjamin, apud. Castello Branco, idem). E ela lamenta esse esquecimento que poderia ter como suporte uma maior organização para guardar as cartas, ou o registro de todos os encontros em forma de diário para não trair-se tanto agora: “Onde anda tanta coisa preciosa que ficou para trás? Cada um dos minutos que nos deste, cada hora da tua vida que conosco partilhaste, Dal, eu não devia ter imediatamente transformado em palavras, para que não morresse? Hoje é que vejo (...) Agora é tarde. É como com Papai ... ah, não, recuso! Essa dor, faz favor, esta não.” (P. 15)

Houvesse esse cuidado o livro não seria de memórias, seria um prontuário, registro do vivido para não ser esquecido. E se nele houvesse poesia, talvez resistisse sinfronicamente. Mas, o desejo de reter o tempo não vem como uma obrigação do agora, porque esse agora está sendo construído. O alcance da rememoração é exatamente a tentativa de viver de novo, outra vez, aquilo que foi gratificante, mas que não sabíamos aquilatar o valor no momento em que se deu. Essa preocupação com as relações do tempo e sua incidência sobre o trabalho da memória são preocupações teóricas de Bérgson (noção de tempo como um continuum), Bachelard (inserção do sujeito como um ser de linguagem), Barthes (estudos sobre a escrita do eu), Deleuze (noção de objeto virtual), Freud (noção de traço menemônico), Derrida (a noção da “diferença”) e Lacan (noção de objeto a), dentre outros, que, apesar das devidas diferenças, acreditam que a tessitura da memória tenta recuperar o que foi perdido no tempo, e só porque foi perdido no tempo é que tentará ser achado. “Ali, onde o passado se quer presente e o presente é sempre passado, onde o futuro se introduz como uma determinante, como uma lei do que será lembrado (é só revivido que o vivido se deixa vislumbrar) - ali, nesse absurdo lugar de umtempo sempre presente que se esvai”. (Castello Branco, Lúcia. 1994) No caso de Lindanor Celina sobre Dalcídio Jurandir, ao presente e passado junta-se a imagem das cidades onde foram vividos os momentos agora à mercê da emoção imaginada, erigindo-se do texto como uma escritura vertical nos moldes configurado por Walter Benjamim, e reinterpretado por Willi Bolie, (Fisionomia da Metrólpole Moderna, 1994) nas Representações da Metrópoles 49


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Imagem da Cidade e Imagem do pensamento, cuja característica específica é a incorporação escrita da cidade ou da cidade como escrita em que a escrita se torna uma estrada-texto. Dalcídio não está mais lá, tampouco ela Lindanor está na Europa, na Grécia, Cannes, mas em Belém bangalô da Vila Monção - à rua Conselheiro Furtado, Val de Cães, Arraial de Nazaré, ruas de Belém, Condor, Cremação, Porto do Sal, Travessa Frei Gil de Vila Nova, em Itaiara - Icoaraci, sítio de Santa Isabel; no Rio de Janeiro - quartinho da Lapa, Bolero, Taverna da Glória, Laranjeiras, 14o. andar, Botafogo, Flamengo, Copacabana, Leblon, Cidade Esplanada ... todos estradas textos de uma vivência. Afinal, foram nesses lugares que Lindanor aprendeu as lições da necessidade de lapidamento da palavra, do cuidado com o texto, da diferença entre um escrito e de um texto literário autêntico: “A literatura, minha senhora, é uma coisa muito séria. É uma arte. E não r artista quem quer. Em âmbito nenhum. (...). Não é escritor quem quer, não é romancista quem quer! Escrever bem é dever de todo alfabetizado. Todo o que tem um curso primário bem feito deve escrever correto. Mas escritor?! (p. 65) Ou os lugares para aprender o que escrever e como: A nossa profissão é feita destas coisas. Principalmente desse captar tudo, a cada hora, cada momento. Não é só saber escutar o que as pessoas falam, ou o que a leitura nos traz. Ouvir, ver, gravar o máximo. (p.103) Assim as escrituras literárias da memória tentam de um lado atingir a linearidade do tempo em que o sujeito tenta recompor, restaurar um eu íntegro, suturado sem lacunas, que possam recuperar o vivido; de outro, o texto mostrase como um sujeito cheio de fraturas, de cisões, em que não é mais possível distinguir o que foi vivido do que é ficção, ou o que é imaginação e o que é realidade. Nesse sentido o texto confunde-se sob os domínios da Psicanálise e da Literatura - quase uma Semiótica inspirada na Psicanálise, porque o texto agora se escreve com o próprio corpo ou no próprio corpo de quem escreve - literatura e vivência esfregam-se, atingindo o que Lacan denomina de lituraterra - como “o modo como ela a Psicanálise procura na Literatura a sua outridade, como pudesse imprimir uma “mancha”, risco, alteração, numa maneira específica de organização da literatura feminina. A Psicanálise, então, desenha na letra uma marca-sulco sob a sua impressão ou a marca da sua passagem por ali, deixando o que poderíamos considerar como mancha mnemônica de si mesmo na palavras. Assim, o eu funde-se com a palavra ficcionada, e nessa esfera em que memória e identidade se confundem, encontra-se um determinado Real, para Lacan, que na verdade, é uma impossibilidade, uma invisibilidade, um indizível que é dito, apesar disso: “Não importa, vamos indo, agarra-te ao caderno, agarra-te àquele tempo, ainda que te doa, sim, que se isto é um prazer, é um prazer mesclado de pena, a pena por vezes interfere tão forte que a alegria a bem dizer se apaga, se esmaga sob o peso da mágoa, do “nunca mais” ... então a distância não é bem o que deveria ser, quem sabe.; Agarra-te. Distância, falei em distância. Coisa boa, mesmo esta, incrível: este livro não era para ser escrito em Belém, ali pelo Porto do Sal, ou numa Taverna da Glória? Mas as tavernas da Glória morreram todas. E estás na Grécia: em Skyros, uma ilha de que Dalcídio talvez nunca ouviu falar, a não ser a não ser em alguma crônica tua extraviada - jornal é pássaro que longe voa - alguma terá ido bater ao apartamento das Laranjeiras.(p. 60) Esses textos calam fundo porque mostram o seu próprio umbigo, numa linguagem pulsional como se fosse a língua da mãe-terra em que se conjugam paradoxalmente a plenitude do sentimento amoroso erótico de Eros com o sentimento de finitude da morte de Tanatos. Nessa tentativa de costurar o tempo, as diferenças entre as formas de apreensão do tempo pela memória feminina devem ser vistas segundo Deleuze, pelo traço da diferença e não da semelhança. De fato, será Deleuze que, através da utilização do conceito de “objeto virtual”, não só explica porque a memória é simultaneamente presente e o passado, como assinala com clareza a questão da representação: “se esse objeto é um resíduo do passado puro, se ele só existe ao ser recuperado, e ele só é recuperado enquanto perdido, ele só se dará a conhecer como re-presentação, enquanto presente é 50


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presença de um mesmo que, no gesto da representação, é sempre um outro: é sempre algo que já não é, e sempre um “era”.(Deleuze, Gilles 1988)

Lacan refere-se a esse tipo de escrita como “uma acomodação dos restos”, em que por mais que a palavra escrita procure restaurar o vivido, capturam somente restos de grafia, trapos amoroso perdidos para sempre, e espalhados desorganizadamente dentro de quem viveu. Assim, o texto todo de Lindanor é um lamento pela perda no tempo de uma amizade experimentada no tempo da saúde de Dalcídio e no tempo dos tremores do Mal de Parkinson, das noites boêmias e passeios noturnos no Rio de janeiro, dos banhos de piscinaigarapé em Santa Isabel e Itaiara, dos serões no apartamento de Rute, das perguntas inquietas sobre os amigos de Belém “Mas me conte do Machado, do De Campos, do Bruno! E o Mendes? O Ruy? E o Levy? Me fale do Levy! Ah!, O Moura, não é seu chefe? Me diga! E o Cléo Bernardo?. Questões que comprovam que Dalcídio nunca desgarrou-se do seu Pará, trazia-o no peito, na mente, nos olhos, o seu mundo - o mundo do Marajó, Ponta de Pedras, Cachoeira do Arari, Soure, a Belém da pupunha, da frutas, cujos sorvetes eram todos os preferidos por Jorge Amado: cupuaçu, bacuri, mangaba, graviola, taperebá, açaí, bacaba, milho verde, tapioca, coco, abacate, cajá, manga, jaca, ananás, goiaba sorvetes da sorveteria Santa Rita ou Santa Marta. E embora a busca persista e o homem quer viver no presente aquilo que foi para prepararo que virá num eterno movimento continuum, ad infinitum, porque suportar a realidade é impossível muitas vezes ao homem que está ali, instado a viver a ver a realidade presente, obrigatoriamente, sob a pena de subjugar-se à morte. E a essa morte Lindanor resiste bravamente citando Dylan Thomas: Do not go gentle into that good night (Não entres docilmente nesta noite mansa/ grita, grita contra a luz que está morrendo: trad. Ana César, segunda versão), como para não deixar seu amigo partir, tampouco ela partir assim da gente, deixando não um grito, mas um pranto entalado, por ele, por ela, por todos nós, por quem dobram os sinos. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. 3a. edição., São Paulo, Brasiliense, 1985. V. 1. pp. 36-49: A imagem de Proust; pp197-221: O narrador. BACHELARD, Gaston. A dialética da duração. São Paulo, Ática, 1988. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro, Rocco, 1987. CELINA, Lindanor. Pranto por Dalcídio Jurandir, . Belém, SECDET, Falângola, 1983. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de janeiro, Graal, 1988. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo, Perspectiva, 1971. LACAN, Jacques. Lituraterra, Che Vuoi, Porto Alegre, v. 1, no. 1, pp.17-32, 1986.

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MITO E SOCIEDADE EM DALCÍDIO JURANDIR:anotações em torno de Marajó por Sílvio Holanda Ler Dalcídio Jurandir impõe ao crítico o desafio de romper dicotomias do tipo local/regional, nacional/universal, estabelecendo seu lugar na prosa narrativa tanto em relação à tradição que remonta a Inglês de Sousa quanto a Proust e a Faulkner. Literatura é cultura, sem dúvida; no entanto, o que temos no criador de Missunga e de Alfredo é a ficcionalização de valores culturais amazônicos, que, justamente por comporem um espaço ficcional, para além de limites espaciais, se integram a valores outros, num movimento dialético de afirmação e negação. O tempo, objeto de estudos demorados da moderna teoria da narrativa (Genette, Barthes e outros), por exemplo, ao mesmo tempo que se faz cíclico acompanhando a geografia marajoara, torna-se introspectivo, subjetivo, memória - ainda que dilacerada, não se cingindo apenas pelo fluxo e refluxo das marés. A linguagem dalcidiana não é apenas, como queria José Paulo Paes, “linguajar pitoresco”, pleno de cor local, firmando-se, ao contrário, como plena de modernidade pelo sentido de crítica da metáfora. Tomemos o seguinte trecho: “Os japiins mais de longe teimavam disfarçar aquela solidão grande que espremia da terra aqueles rios de miséria e febres caminhando para a baía”2. No fragmento citado, o item lexical regional japiins (pássaro de plumagem negra) referencia uma dada região brasileira, sem, no entanto, tornar incompreensível a construção hiperbólico-metafórica “rios de miséria e febres”, interpretável mesmo por um leitor que não tenha navegado pelos rios Arari e Marajó-Açu. Assim, a validação estética de Dalcídio Jurandir precisa ser problematizada, não por adesão sub-reptícia a um colonialismo interno que, por vezes, reduz o texto dalcidiano à circunscrição de um regionalismo sustentado tão-somente pela observação e pelo autobiográfico3. Lidando com um texto não-canônico, a crítica simpatizante não pode incorrer no equívoco de uma afirmação apriorística do valor estético da obra dalcidiana, o que é tão discutível quanto a miopia interpretativa adstrita ao perímetro da literatura regional. Esta comunicação propõe, diante desse contexto interpretativo, uma leitura de alguns aspectos temáticos do romance Marajó (1947), segundo volume da série Extremo Norte4 , tais como: a imagética do caos, a representação do mítico e do feminino e a crítica social. Separados pela análise, tais temas, no entanto, se fundem no texto dalcidiano, traduzindo, pela linguagem, o drama social da opressão do homem sobre o homem, o que impõe a fome, a miséria, o preconceito contra o caboclo. (“Na cidade, longe da vila, quanta noite de champanhe, espremido do suor e do sangue daqueles caboclos, dos vaqueiros que fediam a couro e a lama...”(M, 18). A recepção crítica de Dalcídio Jurandir não deixa de salientar, a partir de Benedito Nunes, que seus romances “formam um imenso ciclo amazônico que guarda, no entanto, considerável distância das experiências regionalistas. São ficções que apresentam uma interiorização muito grande, cada vez mais densa; são, na verdade, as aventuras de uma experiência interior”5. A IMAGÉTICA DO CAOS E DO DESALENTO Personificação do vazio primordial, o Caos é anterior à criação e à ordem6. Na prosa dalcidiana, identificamos uma imagética do fragmentário, do desmantelamento contínuo, da morte e do desalento7 . Na construção da imagem, há referências à cultura amazônica - rio, cobra, cobra grande -; no entanto, estão presentes também a dor provocada pela morte e a idéia de uma infância destruída. Tais elementos não podem atribuirse apenas ao valor “documental”, inserindo-se numa dimensão mais ampla de experiência humana: O rio, uma cobra de prata, se desenrolava na sombra e ia urrar na baía. A curicaca8 deslizava no visgo da cobra de prata, a maré enchendo trazia o bafo áspero de mato podre e de bichos. O estirão foi se distanciando, com ele o medo daquelas trovoadas que arremessavam árvore 52


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contra os homens, reduziram Guíta àquele bagaço de cabelo e sangue e àquele redemoinho na consciência. Vinha a saudade dela, seus cabelos sobre o poço, o pranto silencioso no seu ombro, a quentura da noite sobre a nua mulher no chão como um caroço de manga, resto da infância e da virgem. [...] O rio engrossava, lodo, limo, sementes, pedaços de ilhas desmanchadas, vômito das cobras grandes que rabeiam nos poços fundos9. Na poética do mito, segundo Mielietinski, o caos constitui o amorfo contra o formalizado, a treva contra a luz, o vazio contra a substância do cosmo, sendo, em algumas culturas, o ponto de partida do processo cosmogônico: O caos se concretiza em sua maior parte como trevas ou noite, como vazio ou abismo escancarado, como água ou interação desorganizada da água e do fogo, como estado amorfo da substância no ovo, bem como sob a forma de certos entes demoníacos (ctonianos), tais como a serpente-dragão, os gigantes e deuses antigos da velha geração. A transformação do caos em cosmo é a passagem das trevas para a luz, da água para a terra, do vazio para a substância, do amorfo para o formalizado, da destruição para a criação. [...] Na mitologia indiana existe a concepção das trevas e do abismo (a descrição do inexistente ou Asat como terrível abismo subterrâneo), mas existe também a concepção acerca das águas primordiais geradas pela noite e o caos10. Em Dalcídio Jurandir, a imagética do caos e do desalento não traduz uma adesão irrestrita a uma visão mítica da cultura amazônica. O mito como “irrupção do sagrado”11 não é a única questão proposta pelo narrador cujo olhar é pós-mítico. A valorização das irrupções do sagrado no espaço cultural amazônico está presente na crítica da literatura amazônica, considerando o viés mítico como um traço de identidade cultural, como se os amazônicos tivessem o privilégio de, no mundo globalizado, viver, não sob a égide da razão controladora (Habermas), mas sob o império do mítico e do utópico. Trata-se, na história literária regional, desde o indianismo de Vilhena Alves e do olhar antropológico de Inglês de Sousa, de discutir se o escritor amazônico deve subscrever a apologética do mito em moldes eliadianos ou de, movido por um esforço de libertação, opor resistência a uma visão mítica que justifica a injustiça social. Embora discutido no nível da enunciação, o mítico e o sobrenatural fazem-se presentes nas personagens dalcidianas, sensíveis ao poder dos caruanas, dos pajés, da cobra grande, encantados com os sons que reverberam nas águas misteriosas do lago Guajará. Antes de considerarmos a representação do feminino em Marajó, vejam-se outros exemplos da imagética dalcidiana, marcada como diria o Gaston Bachelard de L’eau et les rêves, pelo devaneio gerado pela água: O sol mordia a água que se arrepiava toda, reverberando. (M, 12); O rio parecia crescer, mundiado pelo sol. (M, 12); No leve vento, sob o céu baixo do estirão, os açaizeiros bailarinos. (M, 13); Como tudo lhe parecia morto naquela vila tão vazia como o seu destino. (M, 19); Soprou a preguiça e estirou os braços na manimolência da tarde. (M, 29); As folhas pingavam luar como sereno. (M, 33); O cemitério jazia numa paz doce. (M, 40); Alaíde se delia no braço dele como sapotilha madura. (M, 47); A treva devorou aqueles olhos pesados de lágrimas. (M, 103); Descia pelas árvores um silêncio mole, morno. (M, 86); ... o rio estremeceu como uma cobra que se acorda. (M, 146); Missunga acompanhava aquele vôo claro e pensativo sobre o alagadiço e a solidão. (M, 256); O rio, uma cobra de prata, se desenrolava na sombra e ia urrar na baía. (M, 282); O sol era um olho de boto vermelhando nas águas. (M, 285); A frase boiou no silêncio como um bicho morto inchando na maré. (M, 316); Soure dormia embalada pelo vento, pela voz da baía, num leito de mangueiras. (M, 327); Todos os fantasmas rodeavam-no, penduravam-no na rede. O sono precipitou-se, rio vertiginoso e vermelho onde boiava como um cadáver. (M, 328); Veio a sombra avançando sobre o rio. O mato foi se enrolando na escuridão como se a noite, uma jibóia, o devorasse.(M, 315) O vazio que concretiza o caos se internaliza em Missunga: “Missunga sentia-se como aquela tarde, oco e morno.” (M, 18). Sua relação com o mundo velho e bárbaro da grande ilha e com o pai é lida através da poética do caos e do desalento, a que se soma a passividade diante do pai: Seu pai! Com essa exclamação que fez a si mesmo, Missunga invejou-lhe aquela velhice ciosa ainda do seu ardor, quase insinuante e tocada, muitas vezes, daquela patriarcal jovialidade com a qual Coronel Coutinho sabia dominar os sítios e a vila de Ponta de Pedras, os lagos e as fazendas de Cachoeira. Continuou com os olhos cerrados. O pai desapareceu. Como seria a 53


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morte ou esta é a consciência mesma? Um par amoroso de osgas caiu da parede. Que pensam as aranhas? E as osgas caindo no amor? As sensações da morte, de culpa iminente, do amor físico, do medo, da inércia, do estranho desalento e da extrema passividade diante do pai enchiam o escuro e imaginou um sono na beira do mato, à noite, os passos da onça à espreita... Era preciso ir à vila e apressar Lafaiete em mais uma daquelas escrituras que seu pai sabia mandar fazer de maneira tão fácil e habitual. (M, 12) A imagética do torpor se funde, por vezes, com as imagens da morte: A terra lhe transmitia uma espécie de estupidez amorosa e invencível, lama gostosa na alma, o hálito de Alaíde, calor, frutas rachadas no chão. Por que viera da cidade para aquele torpor? A solidão derramava-se nele como num poço sem fundo. Por que as imagens da infância, do desalento, daquela fartura que seu pai lhe dera, até as imagens da morte? Pensava tirar as visagens confusas, o medo, a quebreira da solidão, ficando horas de molho no igarapé, chupando taperebá, fazendo, de espingarda no ombro, imaginárias caçadas. Ou brincando com Alaíde. E voltava com uma nova pergunta: isto, afinal, não é considerar-se feliz? (M, 13) Pode-se inferir que os processos estilísticos dalcidianos não são meros ludismos lingüísticos, meros ornatos excrescentes ao “documentário”, beleza oca em meio à plenitude da fome. Ao contrário, funcionais, as construções imagéticas em Dalcídio Jurandir, como na crítica de Erich Auerbach (Mimesis), associam-se a uma crítica social plena e múltipla de sentido, para além de uma mensagem monolítico-partidária. O partido, aqui, é o compromisso com o humano, com a luta contra a opressão. O FEMININO12 Capazes de se aproximar do coração selvagem da vida, pulsante e vívida até em suas entranhas, as mulheres dalcidianas - Ermelinda, D. Branca13 , Orminda14 , Alaíde, Guíta - não podem ser compreendidas apenas em função do “retrato” etnográfico da ilha. Pobres ou ricas, estigmatizadas pelo preconceito dos homens e dos “brancos”, as mulheres fundem-se à terra e ao lodo primitivo para suportar a opressão que sobre elas se abate. Vale destacar, integrando os temas aqui abordados, que a imagética do caos e do desalento se projeta também no espaço do feminino. No capítulo 41, por exemplo, diante do corpo esmagado de Guíta, para Missunga, “[v]inha a saudade dela, seuscabelos sobre o poço, o pranto silencioso no seu ombro, a quentura da noite sobre a nua mulher no chão como um caroço de manga, resto da infância e da virgem.”(M, 282) O feminino dalcidiano erotiza-se pelo enlace da mulher à terra e à natureza: “Colada ao tronco, enganchada no galho, meio sumida entre as folhas, balançando o ramo, Alaíde parecia possuída pelo cajueiro.”(M, 33). E a cena erótica, marcada por uma imagética telúrica e por interditos, se entreabre ao leitor: Levou-a uma noite para o igarapé. As folhas pingavam luar como sereno. A maré vinha vagarosa do rio, parecia descer na lua cheia. Trouxera Alaíde, como uma filha das águas brancas, os cabelos de prata, o corpo de peixe, o cheiro de aninga. Não pode evitar que Missunga a despisse, como descascasse uma fruta, tentou escapulir-se dos braços dele, as águas caíam da lua, branca era a terra, o homem, e só a noite, com peludo e escuro mistério, era o que Alaíde cobria com as mãos. - Sou sua irmãgaua! Sou sua irmãgaua! Seu pai é meu padrinho! Sou sua irmã. Me largue. Sou sua irmãgaua... (M, 33-34) No mundo de patriarcal jovialidade (M, 12), o feminino pode assumir a forma de amparo social: “D. Branca não escondia o seu ar de senhora de engenho, de protetora, de madrinha do povo.”(M, 27). A memória da escravidão - um dos elementos básicos do patriarcado na descrição clássica de Gilberto Freyre15 - está entranhada no trabalho cotidiano das mulheres como nhá Benedita, portadora de um saber deslocado por novas relações sociais e pelo próprio tempo: O açaí de nhá Benedita trazia o sabor do antigo tempo quando havia escravos emPonta de Pedras, que fim levaram Catarina, Margarida, Maria de Nantes, netas de escravas? Batiam 54


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algodão nas madrugadas com dois maços de palmeira caraná sobre um almofadão. Torcido e fiado saía o algodão para os velhos e rústicos teares em que as negras trabalhavam fazendo redes. Era a “batição”, como um rumor de tambor surdo nas palhoças, acordando a vila nas madrugadas. - Eu lhe conto porque nunca mais você pega desse tempo, meu filho. Hoje quem é que faz rede, quem bate mais algodão? Não quer mais açaí? Não? Então não gostou. - Gostei sim, tia Benedita. - Missunga carrega em seu coração não a história, mas a carta de alforria que Benedita guardava. (M, 47-48) A mulher cabocla (do tupi kari’boca, procedente de branco), no mundo dos valores de que faz parte o coronel Coutinho, presta-se tão-somente à gratificação sexual dos brancos; traz o estigma da mestiçagem (branco/índio), marca de uma colonização portuguesa ainda presente nos nossos dias. O homem branco jamais deve amá-la sob pena de cair sob o influxo de uma maldade atavicamente concebida, como no diálogo seguinte entre o coronel Coutinho e Missunga: - Você não sabe que uma cabocla besta dessa lhe pode fazer mal? - Mal? - Não sabe o que é mato, não sabe o que é uma cabocla quando pega rapaz... assim... Você lá conhece o que é ruindade de índio. De índio! Afinal você deve partir, meu filho. (M, 66) “Senhora”, cabocla, negra, escrava, a mulher assume a condição ainda de um ser viscoso e ligado à terra nos seguintes excertos em que, pelo recurso ao discurso indireto livre, é um homem quem descreve a mulher: Sim, Alaíde era lodo das águas vivas, lama gulosa. (M, 178) Aquela coisa naturalmente viscosa [o feto de Alaíde] sangrando. Naquela noite as árvores avançaram para ele: Somos mãe, não temos vergonha. Até as cobras eram mães. E aquela cabocla a lhe dizer que o mostrengo tinha a cara dele. (M, 185) Sentia-se [Guíta], obscuramente, mais mulher, como o ar de terra semeada. (M, 193) Alaíde, como as plantas e as chuvas, iluminava-se daquele impudor tranqüilo e vigoroso da terra. (M, 142) Mais forte, como nunca, o cheiro das árvores, de chão queimado, resinas e raízes esmagadas, água estagnada e frutos brabos que apodreciam. Sua [de Guíta] maternidade se fundia com a da natureza, comunicavam-se com os cheiros, os desejos, a moleza e o torpor que havia na mulher e na terra. (M, 269) Porque a terra vinha na água que a banhava e lhe cobria a pele de cabocla como os rios, enchendo, cobrem de lodo a várzea e as ilhas nascentes. (M, 349) Na relação com o branco Missunga, Alaíde tem consciência da sorte que cabe à mulher no mundo regido pelos coronéis e/ou fazendeiros: Missunga, apesar da profunda culpa relativa à sua condição social e de sua terna malícia, embora não tenha a brutalidade dos garanhões felizes, como seu pai, entregues com sofreguidão ao cio, libertos de toda peia, há de abandonal á, preso irremediavelmente a um mundo que, paradoxalmente, considera bárbaro: Voltavam as noites em que esperava Missunga à beira do poço, atrás de sua barraca. Que fez no mundo para ter o castigo daquela amizade? Amizade era a sua palavra de amor, a palavra de seu povo quando ama. Caboclo não conhece o amor pelo nome. Naquele castigo, correu, cega e tonta para os encontros com Missunga. Ele chamava, com terna malícia e gravidade, os encontros com a infância, sob o olhar de sua mãe. Falava em D. Branca, recordava cenas e cenas em que brincavam juntos em Paricatuba. Ela via então naquele homem uma criatura já diferente, se passava para a sua família, falava a sua linguagem, invocava o nome da mãe para ganhar confiança, muitas vezes se tornava quase medroso ao abraçá-la. [...] Quando viu Missunga puxar um balde de água, compreendeu instantaneamente que ele apenas a desejara e a deixaria para sempre com aquele golpe lhe doendo como picada de formiga tocandeira. Teve um súbito e logo contido impulso de se atirar no poço. (M, 192-193) A feminidade do espaço - referência à lenda das amazonas - já está presente na epígrafe 55


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de Marajó, retirada de uma carta do padre Antônio Vieira ao Rei D. Afonso VI, datada de 28 de novembro de 165916 . Nesse contexto de vinculação do feminino ao telúrico, o desejo, em Missunga, está regido pela interdição e por um profundo sentimento de culpa social em relação à mulher, à cabocla: “Imaginava luvas para aquelas mãos que arrancavam guelras, escolhiam camarões, reviravam lama, apanhavam turu, no buraco dos paus pobres” (M, 87). Quando Orminda se entregou a Capitão Lafaiete, Nhá Felismina nos revela que a condição materna tem um componente que escapa a toda metafísica de uma essência feminina: a impotência causada pela velhice e pela pobreza: Em pé, junto ao fogão, velha Felismina permaneceu muda, a mão no queixo, vendo a lamparina apagar-se lentamente. Sou uma pobre, pensou, batida de necessidade, de sofrimento. Um filho morto, dois ladrões. O outro nunca mais voltava da contra-costa. Seu silêncio era um clamor na sombra, escuro e anônimo, clamor de todas as mães de prostitutas e Ladrões. Nem sentiria se a mangueira tombasse. A filha mais velha, a Das Dores, teve a mesma sorte. Foi violão, foi flauta, foi serenata toda noite, cochicho de homem no terreiro, tição de fogo acendendo cigarro de homem à porta dos fundos e o dia em que Das Dores se esvaiu em sangue com um parto sem explicação. (M, 101) Simultaneamente, buscando-se diferenciar-se do pai, o Coronel Coutinho - garanhão feliz -, Missunga quer proteger o feminino de uma brutalidade que nada tem de intrínseco ao masculino, brotando das condições sociais: Aquele corpo de moça tinha misteriosamente desassossegos. Em vez de uma lua na caixa de fósforos havia um corpo naquela saia encarnada da pimenteira, um quarto, o banheiro de folhas de açaizeiro para esconder no banho aquela intimidade tão conhecida pela mala aberta, e pelos santos do oratório de miriti. Guita não devia ser possuída pelos brutos da terra. Não devia casar. Ele a ensinaria a amar, a fazer de seu corpo uma perfeita máquina de prazer. Alaíde era mansa como a terra sentindo as raízes, as marés, a inquietação das árvores sob a trovoada. Se abandonava com um jeito um pouco distraído, tão tranqüilo, tão natural com uma animalidade inocente, tão inocente em certas horas, que havia naquilo a sensação quase do incesto. (M, 75) A mulher, em conclusão, na ilha ficcional de Dalcídio Jurandir, contrapõe à impotência masculina de Missunga no sentido de se libertar do mundo bárbaro do Marajó e de suas estruturas sócio-econômicas arcaicas, o poder da vida, que traz o amargor para Missunga: “Aquele poder de vida, mesmo no sono, em Alaíde, o deixava extenuado e tão amargo como se fosse ele o doente, voltando do delírio.” (M, 300). Cindido entre o novo e o velho - cisão intensificada pela morte de Guíta -, Missunga fracassa, mas esse fracasso diz menos dele do que duma ordem social que tece uma rede de opressão e de morte mesmo em torno daqueles que individualmente queremos proteger. Na sua relação com Alaíde e Orminda, o filho do coronel de Ponta de Pedras, do patriarca da vila, em reflexão profundamente introspectiva, quer romper com o passado, tentando abrandar as condições de vida implicadas por uma ordem social que combate, mas da qual, em última análise, não consegue libertar-se, uma vez que “ao pai e ao tio sua vida pertencia, era parte do latifúndio.” (M, 272): Não seria possível, através desse esboço de remorso, arrancar uma nova vida, ter o pungente heroísmo de olhar fixamente para dentro de si mesmo e retirar a face da morta como o primeiro gesto de reconciliação com o mundo e de aceitação do sofrimento? Com Orminda fracassara. Orminda, a exuberância solta do povo. Seria possível estender a mão para Orminda através daquela morte? Verdadeiramente desejou um grande amor pela morta [Guíta] , que o fizesse romper com o pai e salvar Orminda, recolher todos os seus irmãos dispersos. Riu, afinal, dessa nova solução. A realidade era a morte da moça, lhe fixara, num relâmpago, toda a sua condição de homem opressor e infeliz. Romperia com o pai, não chegava ainda a pensar se podia romper consigo mesmo. (M, 271-272) O MÍTICO Mielietinski, estudioso russo do mito, define as características gerais do pensamento mitológico, evitando diluir este na psicologia e defendendo a idéia de que o mito “modela o mundo 56


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circundante por meio da narração da origem das partes desse mundo”17, tendo por função mais importante a manutenção do cosmo contra o caos, o que estabelece a inseparabilidade entre o homem e a natureza. Fugindo à leitura puramente etnográfica da obra dalcidiana, valemo-nos da idéia de ficção, não como verdade, mas como problematização da verdade, a partir das formulações téoricas de Wolfgang Iser18 e Luiz Costa Lima19 , para nos furtar a radicar o valor desta obra justamente na veracidade descritiva em relação a uma cultura amazônica, que Paes Loureiro leu sob a égide do imaginário20 . Minha leitura da obra dalcidiana, sem negar a presença da oralidade em Dalcídio Jurandir, funda-se nos conceitos de desmitologização e de um tempo pós-mítico, marcado pela reorganização do espaço social pela organização patriarcal. “Marajó para Coronel Coutinho e alguns fazendeiros grandes era um mundo à parte, privado, lhes pertencia totalmente.”(M, 28). Antes de tratar desse processo desmitologização, apontemos algumas linhas de leitura das imagens cosmogônicas presentes em Dalcídio Jurandir, indiquemos o conceito de caos em Ovídio. Na mitologia estilizada das Metamorfoses, o caos é uma “rudis indigesta moles”[massa informe e confusa]: Ante mare et terras et quod tegit omnia caelum Unus erat toto naturae vultus in orbe, Quem dixere Chaos; rudis indigestaque moles Nec quicquam nisi pondus iners congestaque eodem Non bene iunctarum discordia semina rerum21 . A imagética romanesca aproxima-se, em Marajó, dessa idéia de uma massa informe anterior à criação, recorrendo à imagem de um lodo primitivo. Mesmo aqui não há a afirmação da vigência atemporal do mito, uma vez que tais imagens extremamente belas surgem mais como a descrição do mundo anterior à “desmitologização”, provocada pela nova or dem senhorial, do que como uma poética mítica. O leito das cobras grandes foi demarcado pelo latifúndio, sendo guardado pelos rifles dos coronéis, num processo que se espraia até nossos dias, quando sabemos que três ou quatro famílias dividem entre si a maior ilha flúvio-marinha do mundo nos termos de uma geografia ufanista que esconde as misérias das Alaídes e das Ormindas contemporâneas, entregues, ainda, ao império da fome e do analfabetismo: O lago [Arari] se espalhou pelos campos, comeu as lonjuras, ilhou as palhoças, bateu de leve debaixo dos jiraus, espiando o sono dos pobres. Caiu então um silêncio de princípio de mundo em que os homens se misturavam com os bichos deslizando nas águas e na lama, na espuma das enxurradas e na folha dos morurés. [...] Nos lagos próximos onde há peixe, o rifle dos fazendeiros está na mão do vigia atento. Recolhia a linha de anzóis com isca de pitomba e nem um aracu, um apapá. Os donos do rio não eram mais os peixes nem as cobras grandes, mas Coronel Coutinho, Capitão Guilherme, Sinhuca Arregalado. Também na fazenda, Missunga via no fundo da água o rosto de Aristides, as piranhas devorando Gaçaba e Mariana de coxas molhadas e lisas em que o menino escorregava à beira do igarapé. Aquelas chuvas e a enchente lhe davam um novo torpor, a suspensão da vida, a solidão da água. Tudo voltava ao lodo primitivo. (M, 260-261) A desmitologização dá-se também pelo desaparecimento dos contadores, sem cuja memória não se pode transmitir o encanto dos botos e dos navios encantados: Missunga recordava as histórias de seu Felipe. A lenda e o mistério de Paricatuba desapareciam. A maré enchendo trazia a morte para o contador das histórias. A vazante levaria o enterro, o caixão na montaria e dentro os botos e os navios encantados. (M, 107) A referência aos caruanas22, força mágica que emerge de um fundo primitivo, permite a discussão sobre o papel do mágico e do mítico (se considerarmos as referências aos caruanas como narrativas). No trecho abaixo, Nhá Leonardina, exemplo de uma união sobrenatural entre o homem e o boto23, percebe-se que o narrador não faz a apologia do mito como uma forma privilegiada e mais poética de aceder a uma compreensão do mundo. Não se afirma, no plano da enunciação, que os vaqueiros e pescadores afogados estão no mundo dos caruanas e sim que nele estariam, forma verbal denunciadora de que não há por parte do narrador adesão completa aos valores da personagem. É que o autor de Três casas e um rio não precisa recorrer a um pseudofolclorismo para dar conta da riqueza e da identidade culturais da ilha de Marajó; ao contrário, transformando em forma literária aspectos sociais e culturais da ilha, o narrador cria um texto que engloba, de maneira rara na ficção brasileira, o mítico e o não-mítico, ciente 57


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de que, sem esse consórcio dialético e paradoxal, não se pode compreender uma das formações sociais mais singulares da cultura amazônica: A pajé enrolou-se toda no fumação que traz a misteriosa força do fundo. Era o mundo do caruana onde estariam os vaqueiros e pescadores afogados, apanhados pelas sucurijus e jacarés, as meninas desaparecidas, as mulheres que pariram filhos de bichos, a explicação da feitiçaria. O mundo das tribos mortas onde, nas agaçabas, os velhos pajés se encantaram. A noite desdobra o silêncio em que a voz de Leonardina caminhou para os longes, uma voz de criança e de louca. [...] Um dos capítulos mais relevantes, nessa discussão sobre a interação mítico/não-mítico, é o capítulo 34. Nele assistimos ao momento em que Nhá Leonardina perde seu poder evocatório relativamente aos caruanas. O reino da feitiçaria, lembrança de um outro Marajó mítico, desaparece e, com ele, a voz de resistência ao mando dos poderosos: A pajé perdia o poder da invocação. Aquelas palavras não tinham mais significação para o caruana com quem a velha Leonardina tivera uma vivência tão longa e tão misteriosa. E em vão Orminda tentava levantá-la e conduzi-la para a barraca. Aquelas palavras, queixa ou súplica, onde o poder das palavras? Quem cortou a língua de feiticeira que os donos do mundo temiam? Corria ao longo da praia. Perdeu a voz, perdeu a memória dos encantamentos, o fumo do cachimbo perdeu o dom do mistério. Para onde o fumo que enche as almas, acompanha os destinos, embalsama os feitiços, ronda em torno das sessões da meianoite, puxa dos poços e dos lagos as vozes da vidência? onde estás, Cavalo Marinho? Onde perdi meu corpo bonito, mais bonito que o de Orminda? Por que dei meu corpo para a pororoca, por que perdi, bichos do fundo, a minha força de enfeitiçar e de fechar os corpos contra o alheio enfeitiçamento? [...] Os caruanas não voltavam. Nhá Leonardina olhava o céu, as águas e tremia. (M, 258-9) Finalmente, devemos considerar as referências à lenda do lago Guajará e ao mestre Jesuíno presentes no capítulo 49: Guajará era um lago falado, a lenda enchia os campos. Os vaqueiros contavam: tinha comunicação com o mar, a maré enchia e vazava, boiavam quilhas de barcos, lemes, pedaços de velas, vozes de afogados, bois bufavam no fundo, ninguém ousava pescar ou atravessar à noite no lago Guajará. [...] A sombra do jupatizal caía no lago, subia o hálito do lodo e do moruré. A água parada, a mesma água do encantado que vem do mar, pelo fundo da terra, de todos os náufragos e de todas as lágrimas. O silêncio de Jesuíno era como sono. Aquele corpo parecia enorme como o lago abrindo as margens para os descampados tristes. Para ele os caminhos não vinham das águas do mar e dos campos mas das dores do homem. Com esses poderes o pajé ditava a receita e emplastava a esperança no peito do povo. (M, 323-324) Para Mestre Jesuíno, morador na estrada de Joanes para Condeixa, bem como para o narrador dalcidiano os caminhos romanescos vêm das dores do homem. O mítico, assim, faz-se denúncia, acusação, apóstrofe contra o mundo da opressão social. O SOCIAL Incrustada nos outros temas, a reflexão sobre a sociedade marajora pode ser concebida, segundo a aguda análise de Antonio Candido, a partir da idéia central de que, na dialética da obra literária, o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem “como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornandose, portanto, interno.24” Refletindo sobre as relações entre crítica e sociologia, o mestre uspiano defende, no texto mencionado, a prioridade da análise estética em relação a outras abordagens do texto literário, com as quais, contudo, a crítica precisa interagir dialeticamente: 58


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Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretaçãodialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. § É este, com efeito, o núcleo do problema, pois quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar25 . Considerado a partir da formulação acima, o romance Marajó permite se estabeleçam fatores atuantes na organização interna, uma vez que Dalcídio Jurandir transforma a conflitual do real (grandes proprietários vs. vaqueiros, o velho e bárbaro marajó vs. o novo Marajó, etc.) em elemento da fatura romanesca. A descrição da cisão interna de Missunga, dividido entre o novo e o velho, ainda culpado preso ao status quo por herança - “... o mundo sólido e bárbaro que precisava conservar.” (M, 311) -, é um dos pontos máximos da arte dalcidiana: ... o mundo sólido e bárbaro que precisava conservar. (M, 311). A permanência do mundo velho, do mundo sólido e bárbaro, em Missunga, afirmada pelo narrador, revela, por outro lado, um fracasso existencial da personagem de mudar situações sociais a partir de uma espécie voluntarismo social: as estruturas anquilosadas perduram contra o indivíduo. Mestre Raimundo, administrador de Mussunga, guia deste no mundo da propriedade, nesse contexto, aconselha ao discípulo: - Ponha estes projetos de lado e consiga o seu diploma, menino. Em Marajó quemmanda é a providência. Isso só melhora quando Deus mandar. No princípio do mundo não foi o dilúvio? Você perdia dinheiro e não fazia nada. Não acredito em doutores de gado. Já ouvi falar na engenharia na Holanda mas isto é lá para os holandeses. O que Deus lhe dá basta, menino. O gado não cresce e não se multiplica? Coronel era homem sem projetos. Fazia o que a lei da natureza mandava e deu-se muito bem. Só uma coisa ele trouxe pra cá, foi o zebu. O resto deixou que tudo viesse com o tempo. E não deixou uma grande fortuna? Trate de formar-se e esqueça os projetos. (M, 311) 24 A paisagem de Marajó, longe dos ouropéis turísticos, é descrita como um enlace de sofrimento e magia. Assim, apontar apenas a magia, dentro do viés de que olhamos a obra, é ver apenas parte do universo romanesco dalcidiano; é romper a via dialética de compreensão da cultura amazônica pelo narrador: Não pôde fixar nenhum sentimento que correspondesse àquela música dos miritis, era como a essência daquela paisagem sulcada de sofrimento e magia, os ais dos desenganados e o silêncio dos que esperavam salvar-se. (M, 320) A opressão passada e presente, que impôs formas extremas de violência social como a morte do indígena, traduz-se na dura inquietação do filho do Coronel Coutinho, rico e inútil, patriarcal malgré lui26 : Abriu a janela. Não era a madrugada, era o luar. Soure dormia embalada pelo vento, pela voz da baía, num leito de mangueiras. Esperava o barco motor para seguir até Belém e de Belém partiria para o Rio. Haveria de passar muito tempo para se libertar da morte de Guíta. Ela ficava solta na terra, seiva e silêncio subindo nas plantas selvagens. Os cabelos inocentes de Alaíde ficariam verdes entre as palmas e os morurés. Os miriis moles se desfaziam nas mãos dela como para agradá-la. Se mestre Jesuíno tivesse adivinhado a sua história? E por que tantos mortos no seu caminho? (M, 327) O romance permite ainda uma reflexão sobre a formação da elite ilhoa a partir de instituições como a Faculdade de Direito (Largo da Trindade): Ele via, com pena, muito estudante pobre copiando dos livros que não podiam adquirir. Desgraçados! Se espreguiçava com os seus cigarros e as suas contas a pagar. Decorar noventa pontos! - estava já, veja só, no primeiro ano da Faculdade de Direito, um imprevisto e ousado passo que dera! / Respeitável, incômoda sabedoria! [...] Missunga soube, então, como passar na Faculdade. O direito não era conquistado através daqueles compêndios hostis e daqueles inacessíveis ventres que se petrificavam nas cátedras e sim pela honrosa possibilidade que o estudante obteria, junto ao mestre amigo, de pagar-lhe o hospital, as letras do jogo e o enterro da mulher. (M, 31) Valendo-se de construções estilísticas comparáveis às ecianas (pingando daquelas bocas fi59


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éis), o narrador denuncia ainda a hipocrisia religiosa da elite paraense de início do século XX: Ouvia com indefinível azedume o ora pro nobis monótono pingandodaquelas bocas fiéis a Nossa Senhora. Sentia-se como despojado daquela religião com latim errado e fé bem certa. Belém era Adelaide morrendo pelo marinheiro negro, era a Hilda, o tênis, o garçom. Os trenzinhos da Estrada de Ferro tuberculosos tossindo pelos apitos. A Basílica exibindo em mármores e vitrais da Itália a vaidade e o temor de Deus dos fazendeiros, advogados e comerciantes. Tudo ali parecia apodrecer. As últimas chuvas amoleciam o resto de caráter daquela gente de cima. Belém crescia na várzea lodenta sob as chuvas, os carapanãs e a Fé na Virgem de Nazaré. Missunga preso ao seu mundo, desovando na solidão o seu pensamento desasado e miúdo. Rico e inútil, sem saber coisíssima; não dava para nada. Para nada. Sua família tinha um vitral na Basílica, tinha um altar, um automóvel, nos domingos de maio, com uma criada para distribuir pelas igrejas as esmolas anuais que Deus pedia. (M, 52) O segundo romance dalcidiano, no âmbito da prosa brasileira, ressai, em síntese, pela capacidade de, rompendo dicotomias, de articular dialeticamente introspecção e denúncia, que se manifesta ao longo do ciclo, capacidade essa que nos faz lembrar o autor de um outro ciclo (Port Wine), Alves Redol , pela superação da contraposição estanque do instrospectivismo de Presença e do compromisso social neo-realista. Antes de concluir minha comunicação, gostaria de ler um trecho de Marajó, trecho singular em que todos os temas por nós abordados - a imagética do desalento e da morte, a representação fantasmática do feminino, a dimensão social integrada à fatura da obra - se fundem plástica e indissociavelmente em uma unidade, reveladora da morte do novo em Missunga, vencido pelas estruturas arcaicas e pela barbárie, as mesmas estruturas arcaicas e a mesma barbárie que puseram fim à utopia político-social dos cabanos: Deitou-se novamente. Veio-lhe a náusea da casa do mestre Jesuíno, os nervos sob agulhas, as pernas pesavam. Noite imunda aquela em que o pajé dançava no braseiro e as banhas chiavam no fogo dos sofrimentos. E com seu impetuoso desejo de partir, subiu-lhe o velho desalento de Paricatuba. Todos os fantasmas rodeavam-no, penduravam-se na rede. O sono precipitouse, rio vertiginoso e vermelho onde boiava como um cadáver. Evidentemente estava morto, saía-lhe o sangue pelos cabelos, espumando. Estou morto, dizia. Por que os mortos não me reconhecem? Por que entre eles não vê Alaíde, não distingue a mãe e Guíta carregando um enorme tronco no ombro? (M, 328) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADONIAS FILHO. Modernos ficcionistas brasileiros; 2a série. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1965. 90p. ALVES, Enilda Tereza Newman. Marinatambalo: construindo o mundo amazônico com apenas três casas e um rio. Rio de Janeiro, 1984. 133p. Dissertação de Mestrado, PUC-RJ. ASAS DA PALAVRA. Dalcídio Jurandir. Belém, n. 4, 1996. 76p. ASSIS, Rosa Maria Coelho de. O vocabulário popular em Dalcídio Jurandir. Belém: UFPA, 1992. 208p. ASSIS, Rosa. Vinte anos depois, Dalcídio “volta” à Belém de seu tempo. O Liberal, Belém, 16 jun. 1999. Cartaz, p. 5. ASSIS, Rosa Maria Coelho de. Edição crítica de Chove nos campos de Cachoeira. Belém: UNAMA, 1998. BATISTA, Olinda. Dalcídio Jurandir: da re-velação da Amazônia ao Sul. Rio de Janeiro, 1991. 257p. Tese de Doutorado em Letras (Literatura Brasileira), Universidade Federal do Rio de Janeiro. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991. 2v. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1989. 183p. FARES, Josse. O Entorno da serpente: um discurso do imaginário tecido em verbo e imagens. Belém: UNAMA, 2001. 100p. FREIRE, Gylberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946. 2v. FREUD, Sigmund. La feminidad. In: Obras Completas. Trad. Luis Lopez-Ballesteros y de Torres. Madrid: Biblioteca Nueva, 1968. v. 2. 790p. p. 931-943. FURTADO, Marli Tereza. Eutanázio, Luís da Silva: decrepitude e angústia no romance de 30. Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, 4, 1998. Campinas. Anais do IV Congresso Brasileiro de Literatura Comparada. Campinas: ABRALIC, 1998. ISER, Wolfgang. O ato da leitura. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996-9. 2v.

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UNIVERSO DERRUÍDO E CORROSÃO DO HERÓI em Dalcídio Jurandir por Marli Tereza Furtado Dalcídio Jurandir (1909/1979) escreveu e publicou onze romances entre 1939 e 1979, dez deles pertencentes ao ciclo Extremo Norte, em que segue a trajetória do protagonista Alfredo, de menino do interior a rapaz urbano, que luta por aceitar-se mestiço, dividido entre o universo erudito do pai e o popular da mãe, e, gradativamente, adquire consciência de classe social. O autor traça um painel da Amazônia decaída pós auge do ciclo da borracha e nos revela as fantasmagorias desse ciclo econômico na região. É visível o trabalho de Dalcídio Jurandir em aprimorar as técnicas narrativas de romance em romance, no sentido de produzir uma obra sempre inovadora, que já começa, em Trinta, distanciada do naturalismo de grande parte da produção da década. O objetivo de nosso trabalho é a análise do ciclo romanesco de Dalcídio Jurandir, sob a perspectivadas personagens e do ambiente em que atuam, para, em seguida melhor situar o autor na História da Literatura Brasileira. Se considerarmos o ano de 1939, em que Dalcídio Jurandir (1909/1979) reescreveu Chove nos campos de Cachoeira, seu romance de estréia, e o ano de 1979, quando morreu, desejando ainda acrescentar um romance aos dez que compõem Extremo Norte, temos um percurso de quarenta anos nos quais o autor foi publicando seus livros e ao longo dos quais demonstrou obstinada persistência em dar cabo do ciclo a que se propôs na juventude. É, no mínimo, curioso o trajeto de publicação de Dalcídio Jurandir por duas razões: a primeira relaciona-se ao fato de ele ter-se iniciado escritor na ditadura de Vargas e ter encerrado a carreira na ditadura militar, pós 64, aparentemente sem grandes problemas com as censuras desses regimes; a segunda diz respeito aos diferentes momentos da literatura brasileira por que passou a obra dalcidiana, gerando dificuldade para enquadrá-la historicamente. Lembremos brevemente seu percurso literário: o autor surgiu em 1941 (com Chove nos campos de Cachoeira, escrito em 1939), na chamada segunda fase do Modernismo, a da consolidação do romance renovado, de cunho acentuadamente social; publicou ainda nos anos quarenta outro livro escrito em 1939 (Marajó); contribuiu nos anos cinqüenta com dois romances(Três casas e um rio, 1958, e Linha do Parque, 1959), o segundo deles resultado de um compromisso com o PCB; entrou na década de sessenta retratando a Belém dos anos vinte (Belém do Grão Pará, 1960; Passagem dos Inocentes, 1963) e seguiu durante o período da ditadura militar, pós 64, insistindo na Belém decaída dos anos vinte (Primeira manhã, 1968; Ponte do galo, 1971; Os habitantes, 1976; Chão dos Lobos, 1976; Ribanceira, 1978). Se por um lado não foi censurado, por outro também não foi recebido como par dos autores considerados renovadores, tanto na década em que surgiu quanto na década de setenta. Na primeira, ficou à margem dos considerados bons romancistas de 30, na segunda, não foi incluído no rol do então chamado romance brasileiro dos anos 70 , jargão instituído para denominar a produção literária da década, que desconhece Dalcídio Jurandir de Os habitantes, Chão dos Lobos e Ribanceira. Em ambas as décadas o que caracteriza a obra dalcidiana é seu caráter inovador. Ao mesmo tempo em que o autor persiste na pintura do retrato de Alfredo entre os dez e os vinte anos, e focaliza a Amazônia da década de vinte, com retrospectivas aos anos áureos da borracha, Dalcídio trabalha (e isso é o mais importante) as técnicas narrativas de romance em romance, no sentido de produzir uma obra em que o esfacelamento é traço de composição. Estudar a obra romanesca de Dalcídio Jurandir, incidindo o foco nas personagens e no universo em que transitam, se fez o objetivo de nosso trabalho, justamente para não perder de vista o olhar social do autor, que se outorgou o título de cantor de uma aristocracia de pé no chão , e para poder justificar a complexidade e excelência de sua literatura, o que, cremos, ajudará a tirar esse escritor do limbo e renovará as páginas da História da Literatura Brasileira. 62


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Para tanto, nos apoiamos na tipologia do herói problemático de Georg Lukács2, e Lucien Goldmann (1976), seguindo os passos da personagem Alfredo em seu trânsito da vila de Cachoeira para a cidade de Belém e da infância para a juventude, matéria do capítulo que abre o trabalho e denominado Alfredo: trajetória de um herói derruído. Nesse capítulo, entre as dificuldades e ansiedades do menino pobre que realmente viveu em Cachoeira do Arari, e as ansiedades e dificuldades do fictício menino Alfredo, são tão evidentes que em muitas passagens do romance parecem de fato corresponder à vida e ao cotidiano que tivera o menino Dalcídio, projetando-se no comportamento do menino-personagem, no seu dia-a-dia, na sua vidinha, por assim dizer, como se lê nos seguintes passos do texto, sempre recorrendo aos mágicos poderes do carocinho: Já estava aborrecido com aquele mercado. Perdeu a bolinha numa toiça. Agora ia sem bolinha. Um quilo de carne. Todo dia isso. (p.214) Mas quem manda não levarem ele para Belém? Para o colégio? Para longe do quilinho de carne? Do carocinho de tucumã? (p. 340) Nessa mesma manhã vira o pai de Tales de Mileto comprar três quilos de carne e ele com o seu quilinho ... Vamos, carocinho, leva quatro quilos de carne para o chalé! O carocinho tinha o dom do maravilhoso. (p. 371) Carocinho, faça Alfredo no colégio, livre do querosene, da carne, do açúcar e do pão! (p. 375) Aliás, quanto a esse papel mágico ou fantástico do carocinho, surgindo desde o início e gerando toda a obra cíclica, é o próprio romancista que nos fala explícita e poeticamente, em entrevista concedida em Belém do Pará, em 1976, a Antônio Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão: o caroço de tucumã, jogado na palma da mão de Alfredo levava o menino ao diálogo com sonhos, e ambições e miragens. Esse jogo solitário, no campo ou debaixo do ingazeiro, se tornou em fermento romanesco. Do grelo no caroço pobre brotou Chove nos campos de Cachoeira, matriz de toda a obra. Com o tucumã na mão, foi capturando almas, cenas, figuras, linguagem, coisas, bichos, costumes, a vivência marajoara que ressoa, miudinho como num búzio, em dez volumes.3

Acompanhemos pois, mais uma vez, a presença do caroço de tucumã na mão do personagem, observando, inclusive, sua multiplicação de acordo com o contexto em que aparece. A febre faz Alfredo mais agarrado à rede, às revistas, aos caroços de tucumã que joga na palmada mão. (p.191) Tudo fazia para que Alfredo se encharcasse de sonho, de imaginações. A bolinha subia e caía na palma da mão. (p.248) A bolinha no bolso, os passarinhos brincando no ingazeiro, o quarto fechado, aquela roupa na corda... (p. 347) Vai procurar o carocinho. O carocinho deve estar dentro da rede. (p.386) Alfredo, com o carocinho na palma da mão afastava a morte, dava alegria ao chalé, seguia na Lobato para Belém. (p. 397) No último exemplo, o personagem-caroço assume, como por vezes acontece, a identidade 63


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do próprio Alfredo, ou com este se misturando, se confundindo, numa só figura romanesca. O caroço livra o menino dos perigos, transporta-o para um mundo de riquezas e farturas, ora conversa, ora discute, discorda, confidencia, ou mesmo faz as pazes com o protagonista, satisfazendo, também, os sonhos do agora menino-rapaz, seus anseios afetivos, até mesmo, indiretamente, seus desejos sexuais. Enfim, o caroço e Alfredo se identificam a ponto de tornarem-se quase que inseparáveis. É como se a existência de um dependesse da presença do outro. Nas mãos de Alfredo, o caroço resolvia tudo; apenas em raras situações parece ficar impotente para resolvê-las, mas nem por isso é afastado, abandonado por seu dono. Alfredo não seria ninguém sem o caroço, ou por outra, só seria alguém com o caroço. Para tudo, virtualmente, o caroço (carocinho, bolinha) era a salvação, ou a solução, e, se chegarmos ao extremo, era até o impossível. Fazia de conta tudo o que pudesse fazer de conta. Na verdade, o faz-de-conta, no sentido poético do termo, é que era o verdadeiro mundo do menino Alfredo, um mundo de sonhos e fantasias, vivido na magia do caroço de tucumã: O caroço ficará nos campos queimados contando a história do faz-de-conta. (p. 119) Ele então armava um Brasil faz-de-conta. (p. 250) A bolinha sabia criar o faz-de-conta. (p. 304) Sem o carocinho, como imaginar as coisas, como ser mais que Tales de Mileto, como saber viver no faz-de-conta? (p. 378) O colégio era um sonho, faz-de-conta era a única salvação; mas as mãos paravam fatigadas de tanto jogar o carocinho. (p. .398) Assim, os acontecimentos se delineavam e se resolviam, nas fantasias mais simples ou nas mais exóticas; a magia do caroço era a impossível magia da vida. A roda-viva, bem vivida ou mal vivida. Se conferirmos a esse romance um caráter autobiográfico, como antes sugerido, aí parecem se confundir o menino Dalcídio com o menino Alfredo, o passado com o presente, tanto que sentimos a cada passo da extensa narrativa (em seus romances do Extremo-Norte) a experiência e a história de vida de um homem cuja única riqueza residia apenas na leitura e na produção literária, gerando tantas páginas de tão densa e tão rara sensibilidade. O fato é que os tipos, as circunstâncias, os contextos de vida onde sua narrativa se desenrola misturam-se num só rio, por onde navega, sonha, sofre o escritor. E por falar em rio, no Chove o rio corre, o rio fala, o rio se entristece, o rio transborda. A seguir passa o igarapé, delineia-se o campo, os campos floridos onde a bolinha bole, rola, corre, se esconde, descobre coisas, faz milagres, - o carocinho faz-de-conta! Ele faz que conta tudo e não conta nada a ninguém, salvo a seu dono - Alfredo. Às vezes na rede ou na mão, o caroço é o poder, a força, a arma, o inimaginável e até mesmo o mágico dos desejos, pois o caroço de tucumã, segundo a crença popular paraense, tem de fato o poder da magia,3 como de fato o confirmou pesquisa feita junto ao povo simples de Belém, no meio do qual continua viva a confiança nos poderes mágicos do caroço de tucumã. O carocinho tem a magia, sabe dar o Universo a Alfredo. Tem um poder maior que os três Deuses reunidos (p. 374) Vale aqui lembrar que o carocinho grelado nas páginas do romance famoso é evocado em uma das inúmeras correspondências que Dalcídio manteve, ao longo de muitos anos, com a professora Maria de Belém Menezes, sua fiel amiga de Belém do Pará, ao “germinar” novamente na lembrança do romancista, após trinta anos, como um elemento presente em sua infância de criança pobre: O espírito comunitário da prelazia de Ponta de Pedras me aquece o peito. Algo se faz naquela outrora vila de minha meninice, de minha juventude, espécie de caroço de tucumã na palma da mão ao sabor de minha fantasia.4 64


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Assim, antes de transformar-se em personagem do Chove, ratifica-se sua existência real vinculada à biografia do escritor. Como se constata, o caroço continuava, portanto, vivo e pulsando no coração do escritor de Cachoeira do Arari. Daí percebermos logo que o chão da infância de Dalcídio o fez depois um homem-menino, que corria, pulava, escapolia, driblava a vida triste e dolorosa, vida mal-vivida, ou apenas sobrevivida, no final dos anos setenta, como o fora, guardadas as proporções, a do início de sua infância e adolescência5. E estas fases podem justificar o vínculo vital e telúrico mais forte de seu romance, a força do seu passado nas beiras do Marajó. Na verdade o passado é uma evocação permanente que sombreia as páginas do Chove, é uma imagem-símbolo, quase obsessiva, sempre à procura de uma posterior vida ideal, aquela que Dalcídio não teve, a não ser, parcialmente, através de Alfredo. Só o carocinho compreendia todas as coisas e mudava os caminhos do destino, da vida e da morte. (p. 375) No texto, como se acabou de ler, o caroço de tucumã aparece, por vezes, encapado com formas diminutivas, como bolinha ou carocinho, mas sempre com o mesmo significado nucleal. Essa forma diminutiva de tratamento, documentada em Celso Cunha quando cita um passo de Sílvia Skorge, é interessante e pertinente para nossa interpretação afetiva6 envolvendo o significado da lexia caroço. Por outro lado, a par de reduzir-se no texto à mais pura simplicidade do diminutivo, o nosso milagroso, mítico, mágico, utópico, simples carocinho, além de rolar em quase todos os capítulos do romance, ainda galga lugar de destaque no livro, por ser, na sua forma locucional, a expressão escolhida para compor sozinha o título de um capítulo, o VIII - CAROÇO DE TUCUMÃ. Dentre os inesgotáveis milagres da bolinha, ela poderia fazer o rio Amazonas o mais rico, o mais largo e até mesmo o mais belo rio do mundo: Pois sua bolinha ia fazer o Amazonas o mais comprido, o mais largo, o mais belo rio do mundo. (p. 250) A bolinha o levava do insondável e imenso mundo dos meninos para onde quisesse levar. (p. 251) Como se isso não bastasse, essa bolinha ainda conseguia trazer para o Brasil tudo aquilo que de mais importante estava documentado nas revistas que Alfredo folheava; era o Brasil crescendo a ponto de tornar os nossos engenheiros superiores aos engenheiros holandeses: pois a bolinha fazia os holandeses ficarem por baixo dos engenheiros brasileiros. (p. 251). É interessante observar que Alfredo escolhe, como por ironia, a Holanda, para comparar com a beleza do Brasil, aquela Holanda que, no início da narrativa, aparece como referência por ter seus belos campos floridos, explicados por Seu Alberto, pai de Alfredo, à D. Amélia, sua mãe, nos seguintes termos: Ouvira Major dizer à D. Amélia: campos da Holanda. Chamase a isso prados. (p. 117). Além de todos esses exemplos, em que o caroço passeia na palma da mão do personagem, ou funciona como elemento apaziguador, tranqüilizador, ou de força maior, ele surge também como força erótica, transformando o menino em homem. Para isso, basta lembrar que o caroço pulava na rede, deitava com o menino, tanto no quarto fechado, como no escuro, sempre às escondidas. E o menino se deixando ficar escondido, inquieto, por vezes sobressaltado, ofegante. E mais, o caroço está sempre presente nos sonhos do menino Alfredo (acordado ou dormindo) com as meninas maiores, sedutoras, proibidas, cobiçadas. O fato é que o prazer do fruto da sua região se mistura com o prazer da vida plena. Assim, com o permitido e o proibido, ele pode comer, roer, se lambuzar e deixar suas marcas na boca, nos lábios e nos dentes - o que confirma a insinuação daquele elemento erótico nas significações do tucumã no texto do Chove, como a seguir se lê em diferentes passagens sugestivas: Adormecia, a bolinha rolava entre o lençol e o camisão. (p.308) Nem sempre era a bolinha, eram as meninas como Moça. (p.308) 65


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Alfredo ia pelos campos com a bolinha e se exaltava pedindo a Nossa Senhora da Conceição, que fizesse Irene muito dele,... (p. 312) A bolinha seria uma criatura abençoada por Nossa Senhora? Havia muito de pecador, de tentação na bolinha (p.312) E Moça é uma ansiedade, a bolinha subindo e descendo, lhe mostrando a vantagem que há nos meninos maiores para namorar, fazer uma porção de coisas ocultas e proibidas. (p. 283) e meninas que vieram depois, lhe dando tentações, curiosidades viciosas, proibições, faz-deconta lhe fazendo cada vez mais entendido e triste, desconfiado. (p. 282) Por conseguinte, o proibido, o seu segredo, o do caroço, não podia se tornar público, era apenas dele e só dele. Para Alfredo, revelar o faz-de-conta do caroço era acabar a fantasia, era acordar do sonho, era castrar a sua imaginação. Desse modo, quando sonhou alto demais a ponto de ser ouvido, e ficou desnorteado, teve vontade de “esbrechar” com o caroço a cabeça de dona Geminiana: Subiu-lhe a lembrança dos campos queimados e daquele sapo que o espiava através do chalé, uma tarde, como se o sapo visse e compreendesse o que era que estava acontecendo dentro do caroço de tucumã pulando na mão do menino. E distraído, com o caroço pulando na mão, começou a falar bem baixinho, quando tão de repente aquela mão lhe tocou muito de leve no ombro. Falando só, hem? O caroço deslizou pelo braço e rolou para debaixo da escada como se compreendesse o susto e a vergonha do menino que ficou frio e teve um desejo de morder a mão de d. Gemi, quebrarlhe a cabeça com o caroço. (p.122) O cuidado em esconder o caroço era a maior preocupação de Alfredo, sobretudo quando o personificava em forma de companheiro ou amigo: Só a bolinha tomava corpo de gente, era uma amiga. Era o corpo da imaginação. Bolinha fiel e rica de sugestão! Ela achava tudo, ele achava desde a salvação do Brasil até uma caixa de charutos Palhaço para sua mãe. (p. 250) A relação Alfredo/caroço é tão íntima, que o próprio caroço já personificado dissimula dentro de si aquilo que deveria ser ocultado por Alfredo: Clara ou a morte de Clara tinha de ficar mistério dentro de Alfredo. Ficou dentro do carocinho. Toda vez que Alfredo desejava uma menina para passear nos campos, ser amiga dele no colégio, ler com ele os livros de viagens, o carocinho fazia Clara da idade do menino e era meia hora de sonho. (p. 283) Servindo ao mesmo tempo de cofre e confessor, o fiel carocinho guarda os sigilos e as confissões fantasiosas de Alfredo, traçando nas paisagens psicológicas o perfil do meninohomem, ora sonhador, ora misterioso. Sonhar é para ele, Alfredo, concretizar através das palavras suas idéias. Sonho é caroço. Assim, em Dalcídio, fantasia, imaginação e sonho se misturam, se confundem, se somam, e isso só é possível com a ajuda da “varinha de condão”, do mágico e mítico caroço de tucumã: Os passarinhos revoam em torno do chalé. O caroço de tucumã imaginou que os passarinhos moravam no chalé. (p.120) Alfredo correu e foi buscar um caroço de tucumã. Começou a ver os passarinhos no chalé dançando uma dança esturdia com Mariinha no soalho. (p. 122) Ficou brilhando dentro do carocinho de Alfredo. No carocinho o cometa voltava a brilhar no céu de Cachoeira. (p. 305) De certa maneira, os sonhos de Alfredo acabam virando uma espécie de “vício”, digamos, no sentido mais popular do termo: Passava a febre, passava a febre de sonhar viagens, tirava o vício do carocinho. Quando o tenor Florentino esteve em Cachoeira leu a mão de Alfredo. (p. 305) Por outro lado, quando está doente, com febre, no seu sonho delirante, Alfredo é tratado com miraculosos remédios inventados pelo caroço, com plantas medicinais da região. E o carocinho passa de milagroso a curandeiro, bem de acordo com a cultura popular regional: O carocinho inventava um remédio para febre que não fosse quinino, como já inventou remédios 66


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para vermes que não eram mamona. (p. 370) Então lhe parecia um pouco bom aquele quarto fechado, ninguém com ele, o suor da febre passara, a rede, a bolinha em movimento. (p. 347) Enfim, os sonhos de Alfredo só eram possíveis graças aos poderes de sua imaginação e à presença constante do seu inseparável amuleto, em especial nos campos batidos, nos escuros, na calada da noite. E aliás, não se deve esquecer que a lenda indígena do caroço de tucumã é justamente a do surgimento da noite7. Concluindo, volto a recordar que o caroço de tucumã das narrativas de Dalcídio - o carocinho, a bolinha - foi grelando, crescendo cada vez mais, tomando forma firme do princípio ao fim da grande obra, dando ao texto dalcidiano mais encanto, mistério, magia, bulindo ora no bolso ora na mão do menino Alfredo, e sempre rebrotando na memória e na imaginação do homem Dalcídio, o escritor, esse ser mágico em si mesmo, que sabe encontrar e colher como ninguém as palavras mais significativas e sensíveis para recriar a vida e a linguagem do mundo marajoara. É realmente uma colheita mágica e poética, sentida, pensada, sonhada, que dá à narrativa um sabor genuíno e pitoresco, diferente. E tudo por obra e graça de um simples mas significante carocinho, criando suas “histórias da carochinha” , tão comuns de dizer entre a gente simples do Marajó e desses nossos perdidos interiores. Como arremata por mim o menino Alfredo, sem deixar qualquer dúvida, já quase ao final do romance. Dentro do carocinho bem redondo não muito leve nem também pesado, se escondiam todos os poderes do sonho, toda a graça do maravilhoso. (p. 378) Tucumã - s. m. Astrocarym tucuma Mart., fruto do tucumãzeiro; palmeira da região amazônica, com frutos oleosos que servem para um tipo de vinho. Das fibras do tucumãzeiro podem-se fazer rede de pesca e, até mesmo, redes de dormir. Seu nome popular é tucum. (ASSIS, Rosa. Vocabulário popular em Dalcídio Jurandir). FONTES CONSULTADAS ASSIS, Rosa Maria Coelho de. O vocabulário popular em Dalcídio Jurandir. Belém, Universidade Federal do Pará, 1992. COUTO, Magalhães de. O Selvagem. Rio de Janeiro, Editora Nacional, Coleção Brasiliana, 1935. CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Gramática contemporânea da língua portuguesa. BeloHorizonte. Nova Fronteira,1985. JURANDIR, Dalcídio. Edição crítica de Chove nos campos de Cachoeira / Rosa Assis. Belém, UNAMA, 1998. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo, Cultrix, 1974.

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FAZENDEIROS E VAQUEIRAGEM NO MARAJÓ, de Dalcídio Jurandir por Marcus ViniuciusLeite Se O presente trabalho é uma análise das representações sociais dos grupos de fazendeiros e vaqueiros a partir do romance Marajó (1947) de Dalcídio Jurandir. Ele se pauta por uma abordagem intertextual ao articular este romance com outros textos sobre a Ilha de Marajó, como A fazenda Aparecida (1955) e Marajó em tempo de Muratã (1974). Enfocamos, primeiramente, a percepção do poder pelo grupo dominante dos fazendeiros e sua relação com os subalternos. Segundo, expomos a situação social dos vaqueiros e suas formas de resistência às relações de poder. Palavras-chaves Marajó, Dalcídio Jurandir, fazendeiro, vaqueiro

O presente trabalho é uma análise da situação social de fazendeiros e vaqueiros exposta no romance Marajó (1947), de Dalcídio Jurandir. Enfocaremos, também, outros romances, sobre a Ilha de Marajó, como A fazenda Aparecida (1955), de João Vianna, e Marajó em tempo de Muratã (1974), de José Carlos Cardoso. Nossa perspectiva analítica é entender a literatura não como um documento histórico ou sociológico e, muito menos, tendo sido produzida por um escritor na intencionalidade de sê-lo. Ela é uma escrita autônoma, mas social. Isto é, não tem nenhuma obrigação de representar o real, mesmo que parta dele ou para além dele. A literatura está direcionada na construção do seu efeito artístico, através de representações. Enfocaremos, no presente artigo, primeiramente, a percepção do poder pelo grupo dominante dos fazendeiros marajoaras e sua relação com os subalternos. Segundo, expomos a situação social dos vaqueiros e suas formas de resistência às relações de poder. O PODER DOS FAZENDEIROS MARAJOARAS No romance Marajó, tem-se a narrativa da formação da personagem Missunga, de sua luta para se impor ao poder do seu pai, Coronel Coutinho, até assumir a posição de herdeiro, como ManuelCoutinho Filho. Portanto, neste romance “reina” Missunga. No primeiro capítulo, tem-se apresentação da personagem:”- Missunga, ó Missunga!” (JURANDIR, 1992, p.9)1, Coronel Coutinho chama -o. O apelido dado por Guíta, sua amiga de infância, de significado africano que quer dizer príncipe (SALLES, 1992). Tal apelido é reforçado pelo pai que dizia quando seu filho saía para caçada: “- Lá vai o Príncipe para as suas caçadas reais, ele pensa que é no tempo das Cortes de França...” (M, 32). A fazenda Paricatuba é a sede do reino dos Coutinho, reino este que se espalha da vila de Ponta de Pedra, na qual o Coronel é seu Intendente, às várias fazendas de gado no entorno do lago do Arari. Coronel Coutinho estava incomodado com a presença do filho no Marajó, depois da temporada na cidade para estudar. Sua demora na vila poderia fazer o “povinho” tomar liberdade de pensar coisas. Com isso, refletia o Coronel: “Perdia o ar de necessário respeito e distância que deve haver entre pessoas de categorias diferentes” (M, 30). O velho Coutinho tinha uma “teoria”, em conversas com os amigos, “insinuava que a vantagem do prestígio está em manter certa distância entre o prestigiado e prestigiadores” descreve o narrador (M, 30, grifo nosso). Usando a figura do Papa, para exemplificar esta concepção, dizia: “Que seria do Papa se estivesse sempre aparecendo ao povo? [...] Que seria do Sumo Pontífice se não tivesse a guarda suíça, a pompa, o Vaticano?”(M, 30). A sua “teoria” era uma exposição da sua maneira de explicar o seu poder e justificar a hierarquia social que considera tão natural e que recobria as desigualdades sociais. O poder do Coronel era assentado em um cerimonial que participava sua mulher, D. Branca, “madrinha do povo” da redondeza, Vejamos: Tardes de domingo, sentada na sua poltrona, no velho alpendre [...],D. Branca recebia as 68


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velhas comadres, as afilhadas que sentavam pela escada, nos bancos, nas esteiras, contando casos, lhe pedindo roupa velha, retalhos de seda, sapatos usados, remédios. Algumas traziam almofadas para tecer renda que D. Branca comprava. [...] Os curumins lhe traziam ingênuos feixes de miriti com que ela mandava fazer gaiolas, barquinhos, presentes da terra para os amigos em Belém. Traziam frutas silvestres, plantas, um filhote de quatipuru, uma ariranha e pediam em troca latas de biscoitos vazias, caixas vazias de figo, vazios carretéis de linha, os papéis coloridos dos embrulhos de D. Branca que tanto os maravilhavam (M, 27).

As deferências do povo aos poderosos locais expressam uma maneira de relações de poder assentada no personalismo. Haja vista, quanto mais “o homem é detentor de poder ou de privilégio, tanto mais é marcado como indivíduo, por rituais, discursos, ou representações plásticas” (FOUCAULT, 2004, p. p.160). Esta era a característica do regime feudal. E no dizer da personagem Seu Felipe, um parente pobre dos Coutinho: “Coronel queria ter o povo na mão. Terra por terra ele tinha que enjoava. Queria terra que tivesse povo. Povo ficava agarrado a ele como turu dentro do pau” (M, 35). Não era atoa que ele sentiu, após a morte da mulher, “a ausência das afilhadas de D. Branca que iam a Paricatuba aos domingos tomar a bênção” - arremata o narrador (M, 28). O respeito é a atitude sempre ressaltada pelos grupos dominantes. Por exemplo, os relatos biográficos da proprietária da fazenda Tapera em Soure, Dita Acatauassú (1998, p.36): “O ‘tomar a bênção’ era sinal de respeito, aos patrões, aos padrinhos”. Esta questão é presente, também, no romance A fazenda Aparecida, de 1955, de João Vianna (1998), no qual a esposa e a filha da personagem Zé Martinho vêm ao encontro do Major Leocárdio: “Nhá Raimunda enrolou o cabelo, fez um pitó atrás da cabeça, e veio, a pressa, cumprimentar o Major. Botão tomou-lhe a benção”. (VIANNA, 1998, p. 48). A imagem da Ilha como um grande domínio privado é recorrente, o próprio narrador de Marajó afirma algo assim: “Marajó para Coronel Coutinho e alguns fazendeiros grandes era um mundo à parte, privado, lhes pertencia totalmente” (M,28). Fica claro agora por que o escritor, norte-americano Desmond Holdridge, que viveu entre 1920 e 1940 no Pará, ao escrever sobre a Ilha do Marajó chamou seu livro de The Feudal Island, publicado em 1939. O livro trata da Ilha do Marajó, a qual é vista como um espaço de anacronismo social: “uma sociedade feudal operando hoje prosperamente e pagando dividendos [...]. É feudal no lado das propriedades, na autoridade absoluta dos proprietários, na independência de cada rancho do resto do mundo.” (apud PEREIRA, 1956, p.49, n.10, tradução nossa). Contudo, não concordamos com esta nomenclatura de feudal à Ilha, mas não podemos deixar de concordar com Alfredo Wagner de Almeida, ao dizer que os fazendeiros de Marajó “além de detentores tradicionais do poder político local, controlavam imensas extensões territoriais destinadas principalmente à pecuária [...] e monopolizavam o acesso aos três recursos naturais prevalecentes: solo, florestais e hídricos” (SUDAM/PNUD, 1998, p.10). Retornemos ao romance Marajó. Quando de um debate entre Coronel Coutinho e seu filho, aquele disse: “Pensa que fazenda em Marajó é criação de gado na Inglaterra?” (M, 206). Esta pergunta irônica do velho Coutinho é paradigmática da situação do grupo dos proprietários. Vejamos Em um outro romance de Jurandir, Três casa e um rio (1958), é apresentado a personagem de Eduardo Meneses, herdeiro da fazenda Marinatambalo. Esta personagem fora estudar na Inglaterra ainda adolescente, e lá, ficou isolado da situação econômica da família. Vivia de uma bolsa, herança da mãe, que lhe possibilitava os estudos no campo da agronomia. Contudo, fantasiava retornar e assumir a fazenda que trazia na memória e dos souvenirs da Ilha, presenteados pelo pai nas viagens que fazia a Londres. Construía para os colegas ingleses uma visão idílica da Ilha do Marajó. Comparando-a a um paraíso2. Quando a olhava no mapa do Brasil, dizia: Era a ilha que se atravessava no meio da luta entre o Atlântico e o Amazonas para que os dois rivais fizessem as pazes, deixando-a estirar vagarosamente as suas terras. Mal nascendo nos charcos de Breves, madura nos tesos de Ponta de Pedras e no barranco de Joanes, desenhando os campos de Cachoeira, as dunas de Soure, inchada de mondongos, Marajó que lhe parecia de lodo e aninga, búfalos, cemitérios, indígenas e bandos de aves pernaltas dominando a encharcada paisagem. [...] Seu aquele selvagem território (JURANDIR, 1994, p. 248)3.

Quando imaginava como iria administrar a sua bela Marinatambalo, dizia: “Farei mínimas reformas. Quero a fazenda com essa cor marajoara e tudo farei para que fique mais primitiva, mais colonial e meio indígena” (TCR, 247). Seguiria, quanto ao modelo de exploração da força de trabalho, 69


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os métodos da colonização inglesa na África, contudo, haveria uma grande diferença, entre a cidade inglesa e a fazenda marajoara era que, enquanto os operários da cidade se tornavam cada vez mais exigentes com salários tão altos, na fazenda os vaqueiros pareciam mais felizes na sua vida primitiva, exigindo cada vez menos o pouco de que necessitavam. Acreditava na inferioridade das raças de cor, sobretudo dos mestiços (TCR, 247-248, grifo nosso).

Com a morte do pai, resolveu voltar a sua Ilha imaginária. Porém, tem uma decepção, quando encontra sua fazenda em ruínas. A família tinha arruinado a sua “herança”. Ele se perguntava o que seria dele agora, o que faria, já que só foi ensinado a ser proprietário. Dizia a si mesmo que o conhecimento que adquiriu “foi como água num copo sujo. Ninguém pode bebê-la. Está contaminada” (TCR, 348). Sua cultura inglesa era um verniz, que precisava se livrar: Deveria era ter se educado nos igapós da fazenda, no lombo dos animais e das canoas, agüentando sol e chuva nos lavradões marajoaras, pés gretados e grossos como aqueles troncos que via encordoados pelos cipós (TCR, 305).

Se comparemos a situação da personagem Eduardo Meneses com a de Missunga veremos quanto os predicativos de uma educação formal (título de doutor) só era necessário como elemento simbólico ou de status no reconhecimento social. No trato cotidiano com as coisas da fazenda eram outros os requisitos, digamos mais práticos. O perfil da fazendeira marajoara, Sue Ann de Miranda Tibery, pode ser esclarecedor, na reportagem de Tatão de Oliveira (1993, p. 51): Ela garante poder conferir, só de passar a vista num curral, se falta algum animal, graças ao treinamento da infância [distinguir pela silhueta o cavaleiro ao longe]. [...] Em seu aprendizado prático para fazendeira, Sue Ann desenvolveu outras habilidades, as corriqueiras: montar a cavalo, ferrar o gado, cortar as orelhas, orientar a castração e, se for preciso, laçar e trazer um boi arrastado ao cavalo.

No romance Marajó, o velho Coutinho deseja ver o filho “doutor”, na medida em que o título era elemento distintivo dentro de sua classe, pois os Teixeira, os Menelau e os Leão se vangloriavam disso. Ele queria ver o diploma e ter o gosto de comprar o anelão de bacharel. Missunga advogando as suas questões. Ou de beca, no júri, defendendo os réus amigos. Era deputado pelo PRF, o filho não poderia substituí-lo com melhor capacidade? Missunga secretário-geral, deputado federal, líder da câmara...” (M, 21)

Todavia, esses projetos eram do Coronel e não do filho. O seu retorno à Ilha, decorria depois de anos de boêmia, de várias amantes e de consumir várias boiadas nas cidades de Belém e do Rio de Janeiro, sem nunca estudar. A lide da vaqueiragem marajoara A representação da condição da vida de vaqueiro marajoara é apresentada, de uma forma mais intensa e explicita no romance Marajó. As personagens dos vaqueiros acendem as páginas do Marajó a partir do vigésimo nono capitulo. O Coronel Coutinho e o filho, Missunga, estão visitando as suas fazendas entorno do rio Arari. O capítulo abre com a reunião dos gados “asselvajados” que se encontrava intocado nos campos, principalmente nas “ilhas-de-mata” (pequena área de mata no meio do campo). Os vaqueiros punham os gados na “esteira” cercando-os e conduzindo-os para o curral “para a ferra, assimilação [sic], a castração dos novilhos, cerração dos chifres, contagem” (M, 205)4. Ouvindo os “eias” da vaqueiragem tocando o rebanho, o filho do Coronel relembra a conversa com o pai no dia anterior, na qual dizia ao pai que queria administrar as fazendas. Tiraria o capataz Manuel Raimundo, vista que lhe roubava reses e assumiria o seu lugar. O velho Coutinho responde-lhe que o feitor lhe é muito útil e lhe dá segurança nos seus negócios, principalmente no trato com a mão-de-obra. Ele parece, afirma o Coronel, um general em campo. É analfabeto o homenzinho. Mas que tino para tratar de gado. Como sabe trabalhar. Com vaqueiro ele diz duas palavras. Escreveu não leu, já sabe. Nossos gênios se combinam tão bem. Tem seu gadinho... Que gaste...Furtar-me? Que desfalque de gado já me fez que me abalasse? Dou-lhe tudo quanto quiser (M, 108).

Finaliza, dizendo:”De qualquer maneira você não pode se comparar com ele. Sua posição é outra” (M,109). Aqui fica claro que os planos do Coronel para o filho não são para o trabalho. Analise70


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mos o lugar-tenente do Coronel, Manuel Raimundo. Ele fora seringueiro e havia fugido da “escravidão das dívidas”. Passara um tempo no Anajás, também foi soldado de polícia até tornar feitor e, depois, administrador das mais de setenta fazendas do Coronel. Sabia agir com desenvoltura e dureza no trato dos negócios, mesmo sendo analfabeto. Tinha obtido a confiança cega do patrão. Sabendo disso, podia dizer que “a disciplina de uma propriedade, deve ser uma questão do administrador e não do filho do proprietário” (M, 230). Ele falava isso para não ter suas ordens de demitir dois vaqueiros contrariadas por Missunga. “Aqui deve haver ordem, senão eles montam em nosso cangote. [...] Se você me desmoralizar uma ordem, a disciplina está perdida” (M, 231-2). Essa relação entre fazendeiros, feitores e vaqueiros, na Ilha de Marajó, é enfocada também por uma personagem-proprietário de nome Pedro Paranhos, do romance Marajó em tempo de Muratã, de Jose Carlos Cardoso (1974) “descendente de uma tradicional família de fazendeiros do Marajó. A citada personagem comentando o sui generis relacionamento entre patrão e empregado que havia antes dele assumir a fazenda do pai “provavelmente na década de 1960”, o qual irá abnegar. O fazendeiro era, afirma a personagem Pedro Paranhos, um dependente de seus empregados. Estes, por sua vez, cônscios de sua importância, traziam o patrão pelas mãos. Era o empregado que sabia das condições da boiada, da situação dos bezerros, da dispersão do gado, da situação da cavalhada, etc... o fazendeiro, por sua vez, cuidava de envolve-los numa dependência quase absoluta que partia o terreno puramente econômico e expandia-se pelas áreas mais diversas, incluindo a doméstica (CARDOSO, 1974, p. 82).

Essa estrutura de organização social, informa-nos o publicista Dalcídio Jurandir (1943), em artigo ao Observador Econômico e Financeiro, é a persistência da rotina dos tempos coloniais. Examinemos melhor esta afirmação. Padre João Daniel (2004, v.2), no seu Tesouro Descoberto do Máximo Rio Amazonas, no qual relata suas experiências no Estado do Maranhão e Grão-Pará entre 1739 e 1755, expõe a rotina de uma fazenda de gado no Marajó. Ele apresenta a estrutura social montada entorno dos currais próximos dos arraiais, nos quais residem a família do proprietário, do capataz e dos “curraleiros” (como chama os vaqueiros). Os currais também são postos estrategicamente à margem de rios, para a criação ser melhor transportada. O capataz junto com os outros trabalhadores são responsáveis pela vigia do gado contra animais e os atoleiros, correndo a campina a cavalo para cercar a boiada tocando para o curral. Segundo Padre João Daniel (2003, v.2, p.108), o capataz era, normalmente um branco europeu, que era contratado “com o ajuste de lhes darem os quartos das crias de cada ano; e eles pelo grande interesse que no contrato lucram põem mais cuidado na vigilância, e benefício do gado”. O naturalista inglês Alfred Wallace (1979) visitando, em 1848, uma fazendo de gado, na ilha de Mexiana, observou o mesmo modus faciendi descrito por Padre João Daniel. Já no começo do século XX, como nos informa Miranda da Cruz (1999), o fazendeiro ainda residia na fazenda e mantinha seus vaqueiros com o “rancho” (gênero de primeira necessidade) e alojamento para suas famílias; contudo após 1940, a relação com os vaqueiros mudou: São uns assalariados sem direito a nada, apesar de terem a carteira profissional assinada, não recebem seus salários mensalmente, continuam as prestações de contas anuais, como no sistema anterior a grande maioria dos vaqueiros ficam devendo em tudo a fazenda, ficando todo tempo preso aquela situação (MIRANDA DA CRUZ, 1999,p. 335).

Retomemos o romance guia deste trabalho. Acompanhemos a narrativa da história do vaqueiro Antônio, vulgo Parafuso. Ele vivia “remanseando”, quando atravessou o caminho do Coronel Coutinho, que o interpelou “ - Ah, és o tal de Parafuso. E malandro. Não serve pras minhas fazendas. Não cria amor ao gado, à fazenda. Aposto que és um folião, ein? Parafuso riu e sentiu de perto o quanto era poderoso aquele branco” (M, 238). Ele tinha vindo do Anajás. “Já taludo, encilhava cavalo, sentava sela, ensebava corda, encurtava rédea, botava as marcas no fogo em tempo de ferra, se atirava pros campos e lagoas, farras, embarques e pescarias”. Contudo, para assumir trabalho em fazenda nem pensar, pois “via muito bem como os outros caíam arrebentados e podres” (M, 239). Antônio apreciava era a época das férias dos filhos dos fazendeiros. “Parafuso se aproximava dos estudantes, ganhava camisas velhas, lenços de 71


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seda, gravatas, um palinha, um pente quebrado, um cinturão. Generosas lembranças dos meninos fazendeiro”. Porém, sua vida iria mudar ao conhecer a filha do pescador Zacarias, Jovenila. Quando ela “lhe passou a mão pelo cabelo duro, cabelo de espeta, ele disse adeus à vida macia” - constata o narrador (M, 240) (Figura 30). Saltemos alguns anos de trabalho para o Coronel Coutinho e quatro filhos. Mais precisamente, o dia que Parafuso foi demitido da fazenda S. Maçal. A voz de Manuel Raimundo, administrador do Coronel, ao mandá-lo embora retumbou no seu ouvido, como água: “Vaqueiro não podia aumentar a família, desfalcava o rancho”. Pelo cálculo do administrador, sua “conta no rancho passava de dois alqueires de farinha, três barras de sabão, dois quartilhos de querosene, dois metros de morim e tudo isso aumentaria com quatro filhos que comiam e vestiam como pessoas grandes” (M, 236). Quando sai com a família da fazenda ecoava as palavras do administrador “ - Vaqueiro não pode ter familião”. Antônio sacudiu as palavras do administrador, pensando: Quantos anos vaqueirando. Chovesse ou fizesse sol, era ali, queimando chifre de gado para defumar os currais, procura vaca parida pelos campos, quando não amansa poldro, rodeava, ia correr pelo mato e igapó atrás do gado arisco, desatolar bezerro nos lagos podres. Chifradas, postemas, febres, moição do corpo, tudo isso se curava na natureza (M, 236).

Subitamente, o vaqueiro queria se livrar da metade da filharada. Até tentou livrar-se da única filha, Rita, que foi pedida pelo canoeiro aos pais da menina: “Vocês me dão que eu levo ela pra Belém. Conheço quem precisa de uma menina assim” (M, 241). Mas a “peste” relutou e os pais deixaram ficar. A noite caiu e com ela a fome. Estavam longe da casa do irmão. Então, de repente, Parafuso levantou-se, saltou para a noite sob o espanto da mulher e dos meninos. [...] Ritinha esperava. Não esquece nunca mais a volta do pai, com o terçado, a calça manchada de sangue, um pedaço gordo de carne na mão. [...] Mas com o couro, Antonio? [diz Jovenila] (M,242-3).

Depois, Rita teve de ouvir do tio: “ - Teu pai é o culpado do que acontece a vocês. Um ladrão de gado” (M,243). A narrativa da história da personagem do vaqueiro Antonio, o Parafuso, cruza-se com o fim da personagem de um outro romance, Fazenda Aparecida, o velho vaqueiro Zé Martinho. Ele havia sofrido um acidente e se encontrava impossibilitado no trabalho da fazenda que anos a fio se dedicará como encarregado. Segundo o narrador: “Mandou escrever uma carta para Belém, contando ao patrão sua desventura, e este mandou-lhe alguns mil réis que suavizaram os apertos de uma semana”. (VIANNA, 1998, p. 183). Mas não passou disso. Para a família sobreviver só restou a filha se prostituir. Na narrativa do romance aparece um fala panfletária da personagem Juliano Valente, que nada faz concretamente a favor do velho vaqueiro moribundo: Não se compreende que um homem, como o senhor, possa nascer e viver no trabalho construtivo de uma fortuna particular, empregue-se de corpo e alma no seu desenvolvimento, faça disso o seu único entretenimento e, quando alcançado pelas malhas dum infortúnio cruel, não tenha uma lei que o socorra, um direito que o assista, tudo porque a legislação trabalhista houve por bem considerá-lo trabalhador rural!” (VIANNA, 1998, p. 184-185).

Porém, quais são os pontos de resistências dos grupos dominados. Identificamos três: a sátira através do estilo musical, chamada Chula, a quebra de gado na hora do embarque e, claro, o roubo de gado exposto acima. Vejamos. Segundo James C. Scott (2002), em “Formas cotidianas de resistência camponesa”, diz que os atores sociais podem apresentar o “fazer ‘corpo mole’, a dissimulação, a submissão falsa, os saques, os incêndios premeditados, a ignorância fingida, a fofoca, a sabotagem e outras armas dessa natureza” (SCOTT, 2002, p. 12). Uma interprete do antropólogo americano, Marilda de Menezes (2002) informa que as interações dos atores, presente no trabalho de Scott, que “são analisadas como uma teatralização, em que os indivíduos se utilizam diversas máscaras para lidar com as situações de poder”(MENEZES, 2002, p.34). Portanto, a prática da deferência da benção, tão valorizada pelo grupo dominante, pode ser apenas uma máscara ou transcrição pública (SCOTT, 2002). Então, uma forma de resistência é as letras das músicas dos tocadores de chula. Esta é uma música popular de origem portuguesa, com um tom satírico ou zombeteiro “- as chulas corriam os campos, batiam bem fundo no coração do povo” (M, 208). No século XIX, era um 72


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estilo apropriado pela melodia dos cantadores negros que a utilizavam através de uma espécie de viola primitiva, da qual tiram apenas três ou quatro notas, repetindo-as horas a fio, na mais enfadonha monotonia.Em cima dessa pobre melodia, improvisam uma letra, geralmente relacionada com os acontecimentos daquele dia.Os feitos dos brancos são os temas mais freqüentes dessas canções (WALLACE, 1979, p.68) Entre esses cantadores de chula, podemos encontrar uma personagem em Marajó, o vaqueiro Ramiro, e outra, Armiro Ferreira, em Fazenda Aparecida. Este era, ressalta o narrador, “um vaqueiro do Açaiteua, lá para os confins de Anajás, e, quando aparecia na vila, as famílias mandavam-no convidar para beber um ’mata-bicho’ e cantar chulas”(VIANNA, 1998, p. 34). Os versos de suas músicas “seus versos em nada agradam as pessoas visadas, são entusiasticamente aplaudidas pelos admiradores desse estilo poético” (VIANNA, 1998, p. 35). O vaqueiro Ramiro é descrito pelo narrador (M, 208): não tinha emprego certo nas fazendas. Quando a necessidade era muita, a ponto de não ter mais uma camisa curta, ia ajudar os seleiros. Tido como bom curtidor, armando bem um celim. Sangrava bois velhos pras matalotagens5 do Coronel Coutinho e gostava de se vingar também dos fazendeiros ruins [...].

Ele estava provisoriamente nas terras dos Coutinho, contudo fora expulso pelo Manuel Raimundo. Segundo a personagem Gaçaba “ vaqueiro de ‘varra e ferrão’ (M, 205), sinônimo de excelência”, seu amigo, o motivo foi medo. “Medo da língua e da música de Ramiro, seus instrumentos lhe davam aquela liberdade, aquela cadência, aquela franqueza que os brancos temiam. As chulas de Ramiro falavam dos vaqueiros, visagens, assombrações, podres dos brancos, davam vidA” (M, 244). Publicista Dalcídio Jurandir (1943), em um artigo, disserta sobre a indústria pastoril, mostrando as dificuldades presentes neste empreendimento, como o embarque do gado que ocorre “durante o dia nas “caiçaras” (portos de embarque) à beira dos campos [...]. Depois dos ásperos trabalhos do embarque feito pela perícia e coragem dos vaqueiros, os barqueiros fazem a travessia da baía de Marajó” (JURANDIR, 1943, p.80) - ver Figura 24 e 25. O mesmo procedimento já era usado desde da época colonial. Gaçaba e Ramiros estavam, agora, trabalhando para o primo do Coronel, Capitão Guilherme. Era tempo de apartação do gado para o embarque. “As baetas6 vermelhavam ao sol, as cordas giravam no ar, as marcas esbraseavam na fogueira, o gado mugia e bufava aos montes nos currais poeirando”(M, 247). Como o Capitão era muito ruim para os vaqueiros, “Gaçaba combinava com os vaqueiros: o coirão velho nos paga. Quebra, sem pena. Uma rês quebrada é rês sangrada, é matalotagem forçada [...]. Seus companheiros rodearam a rês. Gaçaba desceu do cavalo e foi peiar [sic] a bruta. Atira-lhe o relho nos traseiros, a rês espinoteia e cai com os vaqueiros em cima. “ Quebrou! Quebrou!” (M, 247-248). O gordo Capitão saltava impropérios contra os vaqueiros, mas não podia fazer nada, só tentar recolher a carne das reses quebradas. “Carnes sangrentas chiavam no braseiro, os homens comiam filé com pirão de leite [...], os convidados para o adjutório, trataram, então, de esconder carne e miúdos. O feitor fazia vista grossa. Em torno da carne cerrou-se uma rápida e vigilante solidariedade.” - observa o narrador (M, 248). Nosso trabalho pautou-se em apresentar as representações sociais construídas a partir de romances que focam a Ilha de Marajó, principalemnte, Marajó, de Dalcídio Jurandir. Abordamos, também, outras obras de autores paraenses sobre o Marajó. Nestes romances, as relações de poder pululam no entretecimento da narrativa. Nas dores, nos suores, nos risos do fazer cotidiano das personagens vivenciadas naqueles textos ficcionais. Permitindo ter uma boa figuração da representação sócio-histórica da sociedade que aquelas imagens são devedoras. Nossa análise dos romances enfoca dois atores sociais: os fazendeiros e os vaqueiros. Os vaqueiros têm o seu adestramento através da sua lida com o trabalho com o gado, mas na produção estratégica do grupo dominante, eles apresentam pontos de resistências: as músicassatíricas, chulas, a quebra das reses e roubo de gado. Em relação aos fazendeiros, apresentamos sua “teoria do prestígio” que era uma exposição da sua maneira de explicar o seu poder e justificar a hierarquia social que considera tão natural, a qual recobria as desigualdades sociais. A situação social representada pelos grupos marajoaras narrada nos romances estudados é 73


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exemplar. Ela expressa bem o exercer, pelo grupo dominante, do conduzir as condutas do grupo subalterno. A estratégia daquele grupo pode ser bem clarificada na percepção da personagem Edmundo Meneses de que “na fazenda os vaqueiros pareciam mais felizes na sua vida primitiva, exigindo cada vez menos o pouco de que necessitavam” (TRC, 248). Ou nas falas da dona da fazenda Tapera: “O serviço de campo era considerado muito importante, mas era feito com alegria e dava prazer a todos que moravam nas fazendas”e a “destreza do vaqueiro naqueles tempos era saber laçar, mesmo correndo na terroada no tempo seco, nosso chamado “verão” ou no lamaçal do nosso “inverno” (ACATAUASSÚ, 1998, p. 44). Esta visão idealizada se mantinha, à medida que deixava o “serviço sujo” para seu “quadro administrativo” (feitores, capatazes etc), para lhe dar diretamente com os grupos dominados. Lembremos do “general” do Coutinho, Manuel Raimundo, que na “batalha” de administrar sua criação de gado cavalar e vacum, utiliza-se de táticas variadas para “equacionar” a relação entre a reserva de força de trabalho (Antônio, o Parafuso, é uma “peça” descartável, alegoria bem empregada por Dalcídio Jurandir; como ele há centenas nos campos do Marajó) e a sua adestração com os recursos naturais disponível ao rebanho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARDOSO, José Carlos. Marajó em tempo de Muratã. Viseu: Edição do Autor, 1974. CATAUASSÚ, Dita. Marajó, minha vida. Cejup. Belém, 1998. DANIEL, Padre João. Tesouro Descoberto no Maximo Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004, 2 v. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 28 ed. Tradução Lígia Vassallo. Petrópolis: Vozes. 2004. JURANDIR, Dalcídio. Três casas e um rio. 3. ed. Belém: CEJUP, 1994. ___________. Marajó. 3. ed. Belém: CEJUP, 1992. ___________. A Ilha de Marajó. O Observador Econômico e Financeiro. Rio de Janeiro, n 89, p. 77-87, 1943. MENEZES, Marilda A. de. O cotidiano camponês e a sua importanciã enquanto resistência à dominação: a contribuição de James C. Scott. Raízes. João Pessoa, v. 21, n. 1, p. 32-44, jan/jun. 2002 MIRANDA, Vicente Chermont de. Glossário Paraense: Coleção de Vocábulos Peculiares à Amazônia e Especialmente à Ilha do Marajó. Belém: Universidade Federal do Pará, 1968. MIRANDA DA CRUZ, Miguel E. Soure. Pérola do Arquipélago do Marajó. Belém: Empresa Jornalista e Editora Gráfica, 1999. OLIVEIRA, Tatão de. Senhora da ilha. Globo Rural. Rio de Janeiro, p.48-54, dezembro de 1993. PEREIRA, Manuel Nunes. A Ilha de Marajó. Estudo Econômico-social. Rio de Janeiro: Serviço de Informação agrícola, 1956. PINTO, Fernando. Marajó, três bois para cada homem. Manchete. Rio de Janeiro, p.48-65, 11/ 07/1964. SALLES, Vicente. Chão de Dalcídio. In: JURANDIR, Dalcídio. Marajó. 3. ed. Belém: CEJUP, 1992. p. 367-381 SCOTT, James C. Formas cotidianas da resistência camponês. Raízes. João Pessoa, v. 21, n. 1, p.10-31, jan/jun. 2002. SUDAM/PNUD. Transformações econômicas e questões sociais na borda do Lago Arari. Ilha de Marajó. Belém, 1998, 2 v. Mimeografado. VIANA, João. A Fazenda Aparecida. Belém: SECULT, 1998. WALLACE, Alfred R. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. Traduçao Eugenio Amado.Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1979. 74


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AS ESFINGES DA CIDADE: MULHERES EM BELÉM DO GRÃO PARÁ, DE DALCÍDIO JURANDIR por Marcus ViniuciusLeite* O presente trabalho pretende ser um ensaio sobre a percepção das imagens da cidade, no caso, Belém transmudada pela escrita de Dalcídio Jurandir. A nossa leitura enfocará as personagens femininas em Belém do Grão Pará (1960), em quanto produtoras de enigmas sobre o poder, a sedução e o trabalho. São as esfinges do “mundo da cidade”. Em 1996, Amarílis Tupiassu, falando sobre o feminino em Chove nos Campos de Cachoeira (1941), de Dalcídio Jurandir, comenta que a crueza poética do escritor paraense atinge, por vezes, “tonalidade da mais angustiosa estranheza” (Tupiassu, 1997, pág. 44). Diríamos que, alguns momentos, Dalcídio Jurandir produz “inquietantes estranhezas”. Identificamos essas sensações de estranheza na performance de três personagens de Belém do Grão Pará: D. Inácia Alcântara, Libânia, “a criada” dos Alcântaras e a Mãe Ciana. É nas suas estranhezas que devemos aplicar nosso aparelho de leitura, para produzirmos as imagens da cidade, as quais não estão de pronto dadas; requerem construção. Estas personagens femininas são um dos pólos de uma tensão que possui na sua outra extremidade as personagens masculinas: Seu Virgílio Alcântara, marido de D. Inácia, o jovem Alfredo e o Seu Lício, companheiro de Mãe Ciana. Elas se apresentam aos homens como esfinges propondo-lhes enigmas. Estes dizem respeito ao “mundo da cidade”. As esfinges personagens são possuidoras do elemento estranho (unheimliche) – pode ser traduzido, também, por “ inquietantes estranheza” (veja Chaves. 1997-pág.30, nº 3) - que nas palavras Sigmundo Freud (1976,pág.277), “é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. O termo é ambivalente, como as nossas personagens, possuindo tanto um aspecto familiar e agradável quanto o que está oculto, fora da vista do pensamento abstrato. É sabido que as esfinges são monstros imaginários com busto e rosto de mulher e corpo de animal. Portanto, são seres “desfigurados” que se apresentam com deformação. Exigem serem decifrados. Na Grécia antiga, elas seriam crueis criaturas ávidas por sangue e prazeres eróticos. Tinham as características de propor cantando enigmas e encantando os belos jovens - proponham, também, provas iniciáticas a eles. A mais conhecida das esfinges é a de Tebas da tragédia Édipo Rei de Sófrocles. Nas antigas concepções míticas, elas teriam nascido na produndeza de Geia ou do inconsciente -segundo Brandão (1991,v.1, pág.385). A proximação entre as esfinges e aqueles elementos da psicanálise deve ser entendida como recurso heurístico que possibilita a construção do médium de exposição do “mundo da cidade” - não objetivamos uma interpretação psicanalítica, mas uma leitura alegórica.redondeza, Vejamos: Tardes de domingo, sentada na sua poltrona, no velho alpendre [...],D. Branca recebia as I A esfinge – Inácia é uma fisiognomista do caráter dos homens, principalmente da política, havia feito este aprendizado dentro de casa e fora, nas suas lidas com a liga feminina lemista, onde aprendeu a interpretar o sentimento da canalha dos políticos “tamanduais” e “vira-casacas”. Para a canalha reservava ódio e ressentimento, que tinha dado o golpe mortal ao Senador Antonio Lemos e com ele acabavam para ela os dias de glória, de festas e de poder. O herói político desta pespiscaz mulher era Antônio Lemos, maranhense e republicano “adesista” que se elege à Constituição Estadual pelo Partido Republicano do Pará (PRP). Valeram-lhe dois importantes instrumentos na sua carreira política: a posição de Secretário da Comissão Executiva do PRP desde 1891 e a condição de proprietário do Jornal A Província do Pará. Elas lhe serviram para tecer uma intrincada rede de favores, compromissos e lealdades dos membros do partido, especialmente no interior do Estado. Constituída essa “máquina de mando”, 76


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foi possível a ele galgar o posto de Intendente de Belém em 1897 e se manter no poder durante quinze anos ( Rocque, 1996). Nesse tempo se desenrolam as andanças políticas dos Alcântaras. Seu Virgílio, marido de D. Inácia, esta às voltas com a administração do Mercado de São Brás, um cargo de favor recebido pela intermediaçãoda astuta D. Inácia. Moradores da casa da Avenida 22 de Junho (atual Alcindo Cancela) viviam no “bem-bom”, quando o Mercado se encontrava na dispensa da casa e nem pensavam num rebaixamento morar na Gentil nº 160. O lemismo foi derrotado. O primeiro ato foi a queima da sede da Província do Pará. O segundo ato foi o assalto à residência de Lemos, quando “tudo comem e tudo roubam”. D. Inácia entende que queriam o monopólio das latas de lixo. “E dentro da lata de lixo lá se foi o Senador” (Jurandir, 1960pág.12). “ E lá se vão os Alcântaras para uma das três casas iguais a do meio, de porta e duas janelas nº 160, salvos de cair numa palhoça dos Covões, o fim dos lemistasde cabo a rabo”. Neste novo endereço há “60 mil réis de aluguel e mais seis de taxa d’água, e sem platibanda, meia vidraça, persianas, passeio ralo na frente e algum carapaná”.(BGPpág. 5) -conta o narrador. Nela podiam se dar por felizes, apesar do sentimento de “ostracismo” de D. Inácia. Ainda podiam ver bonde passar e o Seu Virgílio ficava satisfeito por seu espírito precavido que lhe rendeu um “empreguinho” na Alfândega, no momento da queda do leminsmo. Nesse momento de” vacas magras” aparece a “gordura”. Vem do Marajó para o nº 160, “o pirralho” Alfredo, com a idéia de estudar na cidade. Seu Virgílio e D. Inácia entram em discussão sobre os méritos de receber o menino, oportunidade para se falar e rememorar o tempo do lemismo, o “tempo do champanhe escorrendo pelos babados, ensopando mangas dos fraques” e que se tinha o “Mercado de São Brás dentro da dispensa da 28 de Junho” - fala D. Inácia “BGP-PÁ.6). Enquanto Seu Virgílio olhava, do seu trabalho da Alfândega, os cais esvasiados, barcos secos e armazéns fechados, D. Inácia rememorava a cidade do Fausto, no apogeu da economia da borracha, na qual o senador Lemos mantinha sua corte. Ela a comparava às cortes de Lourenço, o Magnífico. Repetia a exclamação comum no palácio: “este Guajará é o Adriático, o senador é o Doge” (BGP -pág.19). Sabemos como é comum uma época citar outra para legitimar-se. “A Revolução Francesa se via como uma Roma revivida” (Benjamin,1987-pág.230-trad.mod). A oligarquia lemista tinha a sensação de que “ Veneza poderia de súbito, boiar com seu Adriático nas águas do Guajará” (BGPpág 19). D. Inácia via-se como uma dama veneziana aos péis do condorttiere. “O mundo da cidade se travestia na sua imaginação fáustica. Seu Virgílio não foi tomado pelas vertigens do lemismo. Preferia ficar sozinho esperando a mulher voltar de Veneza. Precavido, achava que aquilo não ia durar para sempre. Por isso, pediu aquele empreguinho que lhe rendeu um “sorriso de escárnio” da mulher. Contudo, foi este que os manteve na cidade, que agora “exibia sinais daquele desabamento de preços e fortunas” (BGP-pág.18). II Um dia, Alfredo adentra à casa dos Alcântaras enfeitando o peito com um “ quadro de honra”, era o aluno laureado do mês do Grupo Escolar Barão do Rio Branco. Ganhou o respeito de todos, desde D. Inácia a Libânia. Esta chamou-o para almoçar. A “cria” dos Alcântaras aparecia a Alfredo como uma “índia”, cheirava a pupunha, à lenha de “maraximbé”, à água fervendo, à rua, ao jogo do bicho e ao sol - cheiros de suas atividades na casa dos Alcântaras. Por conta de uma “formiguinha” nas costas da empregada. Alfredo toca na moça para livrá-la do inseto. Sentindo, ainda, o toque de sua pele e seus dedos, ele toma ciência do seu encanto e “comia - e – não comia”. Enquanto, ela” lavando a louça, cantava que (en)cantava!” (BGP-pág.65), como uma sedutora esfinge. A mando de Emília, filha dos Alcântara, Libânia sai e leva consigo o “quadro de honra” (Alfredo). Sem lhe contar nada o levou ao Largo da Pólvora (atual Praça da República). Pelas mãos da índia, Alfredo transporta-se para um panorama. “Alfredo reconhece velhas fotografias de sua intimidade” (BGP-pág.65). Através do apresentar das imagens do panorama diante de si com o Teatro da Paz, o Grande Hotel, a Estátua da República, o Cine Olímpia e etc, o menino do Marajó“rememora” o tempo de Cachoeira, quando folheava as estampas do Álbum Comemorativo do Centenário de Belém com a mãe, D. Amélia. Após passar pela “grande mágoa” de D. Inácia, a ruína do edifício d’A Província do Pará, dirigem-se para o Ver-O-Peso. O Ver-O-Peso é o espaço da encantaria, o ambiente da esfinge - Libânia. Antes de adentrar diretamente nele, a “cria” dos Alcântaras leva o “quadro de honra” através do Largo do Palácio (Praça D. Pedro II) até A Igreja de Santo Alexandre. Ao se defrontar com aquele monumento, o menino tem 77


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um vago arrepio “ a igreja apareceu feita de uma pedra só” (BGP_pág.68). E nela está “encantada” uma menina, “seca-seca, por ter levantado uma vassoura contra a mãe” - conta Libânia (BGP -pag.68). Retornam ao Ver-O-Peso. maré de março visitava o Mercado de Ferro, os bondes navegavam a cidade. As canoas “parecem prontas a velejar cidade adentro” (BGP_pag.68). Os barcos no porto com suas velas cor de telhas cobriam o Ver-O-Peso com” um telhado de velas” (BGPpág. 69). Libânia observava as bilhas (pequenos potes de barro), queimados como sua face, sendo descarregadas. Ela aponta uma que tinha o “seu nome gravado em letras verdes” (BGP_pág.69). Contudo, um militar do 26 B.C. a compra e se larga no bonde do Marco da Légua. Ela nem teve tempo de dizer: “Ô seu praça passe pra cá a bilha, que a Libânia sou eu”, pois o perdeu. Restando-lhe dizer: “lá se foi eu” (BGP_Pag.69). A esfinge - Libânia é uma bilha, uma identificação totêmica (metafórica). Ao se transmutar em bilha, assemelha-se a uma vasilha, cheia de experiências. Para decifrar esta metamorfose, façamos um jogo anagramático com o seu nome. Extraímos de Libânia o verbo libar, que sorver, experimentar e gozar e o substantivo libação que significa tanto beber, mas por prazer que por necessidade, como promover o ritual de oferenda líquida às divindades (novo dicionário Aurélio,1985-pág.835). Ela era “bebida” pelos olhos do desejo dos canoeiros. Ela flanava “entre aqueles atrevimentos, ditos assobios, velas, maré, coisas de barro. Copos de cana erguidos a sua passagem” (BGP-pag,70). Trazia consigo, por onde passava, “ os desejos dos homens” (BGP_pag.71). Aos olhos do menino Alfredo, Libânia - bilha é a fonte iniciática de seu conhecimento sobre a cidade, de uma experiência erótica do “mundo da cidade”, através dessa flânerie iniciática. “Nunca tão de perto vira homens assim em torno de uma mulher” - pensa Alfredo, descobrindo em Libânia uma mulher (BGP_71). Contudo, o narrador não deixa que nos iludamos quanto a essa imagem herótica de Libânia. Ela, no domingo, retornava ao Ver-O-Peso e trazia “ às costas o saco de açaí, comprado pelo Seu Alcântara”. Enquanto este voltava de bonde, ela “seguia o mesmo itinerário a pé, descalça, açaí às costas marcadas, doídas de caroço de açaí” (BGP_pag.72). A imagem mítica é quebrada pela imagem de exploração. III A esfinge - Ciana está envolvida em cheiros, alcançada pelo tempo e acalentada pelo calor do ferro de passar roupa, seu “vício”. Os cheiros de suas ervas, dos temperos, do “suamento do trabalho” que impregnava as “Rocinhas”. Essas imagens dominam a cena do “ mundo da cidade”, o mundo subterrâneo percebido pelo sentido do olfato, uma das sensações dita menos nobre. Mãe Ciana sabe passar roupa, com seu velho ferro a carvão havia realizado magicamente a sua arte de fazer mil engomações de rouparia branca. Desde a mocidade aprendera a salivar o dedo para aprovar a quentura. Em cada paletó e uniforme que passava imaginava seu companheiro Lício a vesti-los em palácio ou num navio de guerra. Contudo, a imagem de desejo de Ciana era contraposta à postura errante do companheiro que preferia deixa-la nos suarentos serviços a abrir mão de sua boêmia no Porto do Sal. Hoje, dia da transladação da santa, ele a deixa para se entocar pela Cidade Velha. Mãe Ciana de chale, sai ao encontro da santa, mas é a noite que a encontra “ muito sozinha dentro daquele desassossegamento de gente na esquina da 14 de Março, esperando a Santa sair da capela do Instituto (Gentil Bittencourt)” (BGP-pag 321). Na transladação, Ciana se transporta para a “Rocinha” - quase grudada ao “Colégio das Moças”. Ali, na “Casa Grande” , ela entrava com seus cheiros para vender às senhoras “brancas”. Ela nunca sentava nas cadeiras da varanda. Dirigia-se à cozinha para haver com sua gente de “raça”, “batendo língua em torno dos que-fazeres de fogão, pia e ferro” (BGP_pag.321). Enquanto, na varanda, a escolher os seus cheiros, as senhoras em suas cadeiras de embalo, se embalavam aborrecidas. Um “aborrecimento de não ter do que se aborrecer” (BGP-pág 321). Lembrando a fala de Lício, Ciana, houve o deciframento daquela Rocinha: “a massa daquela construção? Cheirassem bem, debaixo da pintura, do mosaico e azulejo, logo se sentia a catinga dos pretos, a inhaca dos vaqueiros, suamento do trabalho que faz o mundo” (BGP-pag.322). Mas a imagem da santa passa e Mãe Ciana segue descalça na noite de transladação. Ao chegar ao seu ponto, a Sé, a esfinge Ciana via “o tempo velho chegar” (proto-história) e a Cidade Velha cobriase de visões: nascia-se aqueles igarapéis em que os índios andavam e cabanos viam. Para dentro da Sé, vinham os pagés do Salgado, as marujadas 78


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de Portugal, os negros do Mazagão e tantos outros. Todos eles guardam a imagem, “falando suas tantas reclamações seus ais” (BGP-PAG 327). E o Cobra Norato debaixo da Sé, a Mãe Ciana escutava seu sono. Enfim, a percepção de uma cidade pelos seus moradores está muitas vezes condicionada à sua maneira de se relacionar com o seu tecido, como também ao enquadramento de sua classe de origem. O romance Belém do Grão-Pará, de Dalcídio Jurandir, entretece um enredo sobre a capital do Pará nas suas fissuras pós-economia da borracha, através deste condicionamento que salta aos olhos a partir da força das personagens femininas da narrativa. A representação desse gênero na sua obra sempre foi de grande riqueza, seja de tensão emocional, seja de “estetoscópio” social. A apresentação das imagens do “mundo da cidade”, por meio do fio condutor das esfinges-personagens do romance em estudo, permite construir uma experiência com a cidade de Belém. Como diz Renato Mezan, (1986-pág.418): a imagem “emerge na e pela obra (literária), e que somente a decifração desta permite ao analista (intérprete) reconstruir aquela”. Extrair, decifrar ou construir as imagens foi a meta deste ensaio. Configurou-se a percepção da política da classe média belenense no início do século XX, com sua prática de “sangue suga” do Estado. Expõe-se a visão erótica e sensorial da labuta das classes subalternas na cidade. *Marcus Vinnicius C. Leite – Mestre em Planejamento do Desenvolvimento no NAEAUFPA. Professor de Comunicação Social da Universidade da Amazônia-UNAMA.Publicou Cenas da Vida Amazônica. Ensaio sobre a narrativa de Inglês de Souza (Belém,Unama 2002).

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DOS CAMPOS DE CACHOEIRA A BELÉM DO GRÃO PARÁ: encontro de vozes em Dalcídio Juradir por Josebel Akel Fares Dalcídio Jurandir, romancista brasileiro, nascido no Marajó, onde vive sua infância, é autor de uma dezena de romances, que ele intitula de Ciclo do Extremo Norte, além de Linha do Parque (Rio de Janeiro: Vitória, 1959), do extremo sul. Inaugura o Ciclo do Extremo Norte com a publicação de Chove nos campos de Cachoeira (Rio de Janeiro: Vecchi, 1941), que ainda consta de Marajó (Rio de Janeiro: José Olympio, 1947), Três casas e um rio (São Paulo: Martins, 1958), Belém do Grão Pará (São Paulo: Martins, 1960), Passagem dos Inocentes (São Paulo: Martins, 1963), Primeira Manhã (São Paulo: Martins, 1968), Ponte do Galo (São Paulo: Martins, 1971), Os Habitantes (Rio de Janeiro: Artenova, 1976), Chão dos Lobos (Rio de Janeiro: Record, 1976), Ribanceira (Rio de Janeiro: Record, 1978). A maioria destas obras tem edições esgotadas, excetuando-se os três primeiros, do ciclo Marajó, editados pela CEJUP. Hoje, especialmente no Pará, há um movimento acadêmico em torno da leitura da obra de Dalcídio Jurandir, que vimos crescer no final dos anos 90 e início do século XXI. Escrevem-se teses, dissertações, monografias, artigos, ensaios. Cito os estudos de Zélia Amador, Paulo Nunes, Elizabeth Vidal, Paulo Ornela, Marli Furtado, Ernani Chaves, Gunther Presler, Artur Bogéa, Silvio Holanda, Rosa Assis, Ruy Pereira. Sem deixar de lembrar trabalhos pioneiros, década de 1980, das professoras Enilda Newman Alves (defendido na PUC/RJ), Olinda Batista Assmar (da UFAC, defendido na UFRJ), e de alguns importantes críticos, entre os quais destacamos Benedito Nunes, Pedro Maligno e Wille Bolle. Além desta produção autoral, assinalo publicações e eventos institucionais, como a revista Asas da Palavra1 e a promoção do Seminário Dalcídio Jurandir (Final da década 90 / UNAMA); o Colóquio Dalcídio Jurandir (promoção do Mestrado em Letras/ UFPA e do curso de letras/UNAMA, 2001); e a criação do Instituto Dalcídio Jurandir, junto a Casa Rui Barbosa, no Rio de Janeiro (2003). Com estes relevantes trabalhos, que agora crescem, e com a possibilidade de reedição da obra, acreditamos estarmos mais próximos de incluir Dalcídio Jurandir na cartografia literária nacional. Este estudo divide-se em três partes: I. Os campos de Cachoeira: lembranças, saudades, imaginação.. II. O tucumanzeiro e o caroço de tucumã: dois textos orais. III. Belém do Grão Pará: um roteiro poético do Círio de Nazaré2 I Os campos de Cachoeira: lembranças, saudades, imaginação.3. Minha infância foi roseira, Hoje conservo em um jardim. Me lembrou de Cachoeira, cidade rainha do Ararí. Mas que tão lindas paisagens, e ao chegar eu percebi, vi lindos campos verdeados, fileiras de mangueiras a sorri. Chove nos Campos de Cachoeira é título do livro de Dalcídio Jurandir, poeta que escreveu o lindo cenário, da terra que nasceu, ô, ô, ô Cachoeira minha terra, tanto amor, ô, ô, ô Cachoeira de novo aqui estouAh, eu estou.

(Lino Ramos - letra de samba enredo) 80


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Os romances do ciclo do extremo norte , de Dalcídio Jurandir, são, em parte, ambientados no Marajó, especialmente em Cachoeira do Arari, cidade da região dos campos marajoaras, entre eles estão Chove nos campos de Cachoeira (CCC), Três casas e um rio (TCR), Marajó (MAR), Belém do Grão Pará (BGP). Estes livros são leituras obrigatórias para qualquer estudioso da cultura amazônico - marajoara. O ambiente marajoara retratado na obra de Dalcídio Jurandir, bem como seus personagens são colados em pessoas e espaços reais. Ao caminhar nos campos de Cachoeira e conviver com a população da cidade desvela-se uma nova leitura do fingimento poético do autor. A ação promove entendimentos de significados ausentes, a partir do espaço e, muito especialmente, dos discursos construídos pela voz, pois, frequentemente, depara-se com rastros da passagem do escritor, e com um coro de vozes-narradoras a reconstruir territórios, a memória das personagens, passagens dos romances. Jamais tive a real dimensão do que representava o autor para o espaço marajoara. Para usar uma expressão de Paul Zumthor, ele é letra e é voz, e, acrescento, também imagem. Em Cachoeira, onde o autor viveu parte da infância, as pessoas o conhecem de nome ou foram seus contemporâneos. Poucos leram sua obra4, todavia há toda uma construção imaginária, difundida a partir da realidade literária oral, ou seja, daquilo que ouviram falar dos romances. Agendome para um encontro com a cidade-Dalcídio: guardo-me para conhecer os resquícios da passagem do escritor, para ouvir o que se conta, para visitar cenas, para conversar com os parentes remanescentes e com os amigos de infância. Entre os narradores ouvidos estão Raimunda Cunha Paiva5, Ivete Paiva6 e Lino Ramos7, estas vozes me dirigem no tecido deste texto. Lino é meu cicerone. A cidade, a casa. Situada num teso entre os campos e o rio, a vila de Cachoeira, na ilha de Marajó, vivia de primitiva criação de gado e da pesca, alguma caça, roçadinhos aqui e ali, porcos magros no manival miúdo e cobras no oco dos paus sabrecados. O rio, estreito e raso no verão, transbordando nas grandes chuvas, levava canoas cheias de peixe no gelo e barcos de gado que as lanchas rebocavam até a foz ou em plena baía marajoara. Na parte mais baixa da vila, uma rua beirando o rio, morava num chalé de quatro janelas o major da Guarda Nacional, Alberto Coimbra, secretário da Intendência Municipal de Cachoeira, adjunto do promotor público da Comarca e conselheiro do Ensino (TCR, p.5

Em uma rua larga de chão batido, no bairro de Petrópolis, fazemos, eu e Lino, a primeira parada na caminhada pela cidade-Dalcídio. A casa apontada como moradia do escritor é uma construção humilde, de madeira, com telhado em duas águas, cinco cômodos, sem a imponência do chalé de quatro janelas do Major Alberto e Dona Amélia, construído imaginariamente, a partir de descrições das duas obras ambientada em Cachoeira do Arari. Ela guarda, entretanto, em seu interior semelhanças com a morada da ficção: A um canto da varanda, nome que se dá no Extremo Norte às salas de jantar, major Alberto, major também de muitas artes, instalara a tipografia. A sua rede de sesta era na pequena sala onde passava horas se embalando, a ler catálogos ou a contemplar as duas estantes de ciência popular em edições portuguesas, gramáticas e dicionários. No bárbaro guarda-louça, ganho na rifa, e atulhando a despensa, Major guardava os poucos instrumentos de sua arte de fogueteiro e fabricante de sabão. Havia um único quarto, cruzado de redes à noite e com um modesto oratório esperando a sempre tão encomendada e nunca chegada imagem de Santa Rita de Cássia, devoção do Major. Via-se, no corredor, o lavatório onde não apenas se lavavam mãos e rostos, mas chapas, rolos, vidros de candeeiro, utensílios, formas de foguetaria e de saboaria. (TCR, p.5)

O texto oral ouvido ali traz-me cenas de infâncias vividas em áreas rurais da Amazônia evocadas pelos relatos do esconder-se ou do correr em busca das “criações domésticas”, sob as tábuas do assoalho. Era-me familiar andar debaixo da casa atrás não só dos bichos de penas, como montada em carneiros. Estes serviam de “cavalos de caubói”, e, muitas vezes, ficava-se entalado ou batia-se 81


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a cabeça no soalho, de pequena altura. Os parentes do escritor, moradores da casa, explicam-me que era ali, debaixo da casa8, que Dalcídio-Alfredo fugia do mundo com o seu caroço de tucumã, corria atrás das galinhas. Ainda vejo um pequeno buraco no chão da varanda e sou levada pelas vozes - narradoras a cenas em que o protagonista real-ficcional, na cheia, pescava por uma fresta no assoalho. A fenda tinha calculadamente menos de um dedo de comprimento por meio polegar de largura. Alfredo enfiava a linha geralmente com um anzol novo. Por isso mesmo parecia mais perigoso aos dedos e mortal para os peixes. O menino esperava o sinal da isca de carne e pão. (TCR, p.8) Ao apanhá-lo, como passá-lo pela fenda, mesmo que fosse tão pequeno como um peixe matupiri? Por ali só era possível peixinhos que saltavam reluzente no soalho. Se Mariinha,dentro de seu camisão, cabelo no rosto, espreitava da porta do quarto, lá corria em socorro, chamando-os de filinhos, a indagar porque não choravam e cadê suas mães etc.(p.9) Alfredo fisgara um peixe, talvez sardinha, que bateu de encontro ao soalho. Teimosamente, ao querer ver o peixe passar pelo buraquinho partia-lhe a cabeça, rogando pragas. Afinal rompe-se a linha, o anzol perdido... Enfiava agora a linha, sem anzol, com um miolo de pão amarrado na ponta e sentia-se puxando de cima para o rio que o espreitava lá de baixo. A linha comprida ia embora, fugia pelo quintal. Na imaginação de Alfredo, corria pelas marés, redemoinhos e lagos, levada por um peixe ou visagem de criança apanhada pelos sucurijus(p.17). Andamos mais um pouco. Lino mostra duas casas antigas, uma em ruínas e outra onde, talvez, tivesse funcionado a intendência, e sugere a possibilidade de serem as casas-título do “Três casas e um rio”. Ele conta de uma ponte que ali passava, chamada Ponte do Galo, referindo-se ao romance homônimo. Na primeira parte dessa obra, o narrador refere-se repetidas vezes a um trapiche em frente da cidade, mas não o dá nome, e, em algumas partes, chama de ponte. Sentou na ponte, pés pendurados sobre o rio. Aquela vez, certa menina correndo a beirada, subiu pelo esteio desta ponte, como um lagarto. [...] Ele desceu a escada e avistou: no casco do Didico aquele menino pescando. Me pega aqui na beira Alfredinho (PG, 35). Entre as conversas e as caminhadas pelo município marajoara, entramos na casa de D. Raimunda da Cunha Paiva, acompanhados da filha, Ivete Paiva. A senhora que se embala numa rede, conta sobre a paisagem natural, as enchentes, os afogados, de antigamente. Aqui era um lugar que não tinha muitas casas, num era Lino? Tinha uma casa aqui, uma casa ali, mas era muito mais... como é que a gente diz? Era muito mais, muito mais... deserto. Ah! Enchia muito, a casa lá enchia. Morreu uma filha... do pai dele, morreu uma filha do pai dele afogada, pai do Dalcídio..., no quintal de lá. Enchia tudo... Ivete ratifica, complementa as narrativas da mãe e saudosa sonha com a velha Cachoeira, que ela preferia a atual: Enchia tudo, a gente andava nas canoinhas. Lá, tinha uma ponte grandona, aí a água passava por debaixo, o pessoal pra ir lá pra cima tinha que vir na canoinha até lá na igreja . Esses postes eram tudo pra esse lado, no meio da rua. Mas Cachoeira, num tempo que era mais atrasada, achava melhor do que agora, porque existia campo de futebol, tinha o Arari, o Cachoeirense, que era bacana, a gente ia pra lá, era tudo bem organizado, e agora fica mais... Pois é, Cachoeira já foi muito bom, já foi melhor, que eu que agora [...] É, tinha uma ponte aí pra trás bonita, né? A gente brincava, tomava banho, de lá de trás, se jogava de lá de trás. Essa casa hoje é da Edite, mas era do Viloca, né? Eu ainda cheguei a conhecer essas casas. Tinha uma bem aqui, tinha uma mangueira bonita, bem aqui defronte. Tem vez que eu me lembro, eu 82


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sonho, eram umas manguinhas assim. Se lembra, mamãe? Era aqui da casa do Dr. Rui, era bacana, tinha quintal aqui, tem até negócio de criação, que ela criava aqueles patos, n’era? Muito bacana, tem vez que eu me lembro, eu sonho com essas ... , com as coisas boas que a gente teve aqui.

A mãe arremata saudosa: Mas, no tempo do Dalcídio, era muito melhor, era muito melhor. O autor e a família: Lino Ramos, como primo do autor, guarda uma série de informações vividas ou repassadas pelos seus pais. Ele apresenta os dados biográficos do escritor, conta do cárcere por suas convicções políticas, suas influências e a gênese dos seus romances: Dalcídio Jurandir nasceu em Ponta de Pedra em 1902 e mudou-se pra Cachoeira em 1910. A mãe dele, Margarida Ramos, era irmã do meu pai, José Ramos. Ela veio pra cá pra Cachoeira do Arari, casada com o capitão Alfredo, que foi intendente em Cachoeira do Arari e o Dalcídio ficou aqui até uma média de 15 anos de idade, depois foi pra Belém continuar os estudos e de lácomeçou a idéia de escrever. Ele começou a escrever o livro dele, quando ele foi preso. Ele era esquerdista, foi preso, e, inspirado num livro de Jorge Amado, que ele leu dentro da cadeia, elecomeçou a escrever o Chove nos campos de Cachoeira.

A correspondência que Dalcídio mantinha com a família perdeu-se, mas os laços afetivos com “tio José” são mantidos na memória do primo, que também informa sobre os cargos administrativos que o autor assume ao voltar do Rio de Janeiro:

Ele era muito ligado no meu pai. Quando ele foi embora pro Rio de Janeiro, ele escrevia muitas cartas pro meu pai, muitas cartas. As cartas que ele escrevia pro papai, então, era tio José, que ele chamava pro papai. Essas cartas, eu doei tudo pro Museu do Marajó, umas estavam já estragadas, o Gallo xerocou e guardou a original. Num sei se ele vai lembrar onde está, mas deve ter cópia. Tem fotografias dele.[...] Ele foi secretário aqui em Muaná e em várias outras localidades, como em Soure. Ele teve cargos, ele teve muitas funções, trabalhou no Diário do Pará, se não me engano. D. Raimunda conta dos tempos de infância. As referências misturam a vida do escritor com a própria vida da contadora, que “era mocinha na época dele”. Ela comenta sobre os irmãos e os pais do autor, das relações desses com seu pai, revive a Cachoeira de outrora, cenário romanceado. Sobre Dalcídio? Ele era moreno, num era muito alto, o mais alto era o Ritacino [irmão do escritor]. Tu conheceste ele, Lino? Pois é, ele era moreno, baixo, num era muito escuro não, moreno claro, simpático. [...] Ele morava ali. Meu pai era ajudante dele lá. Ele era escritor. Eleera um cara legal, né? Deus o livre... Tinha muita coisa aqui, na cidade, feita por ele. Escreveu o livro “Chove nos Campos de Cachoeira”. Tu tem, não? [pergunta a Lino]. Da família do escritor, D.Raimunda, saudosa, avisa: “Eu conheci todos os irmãos dele, Ritacinho é médico, tá no Rio, né?”. Pergunto se ela sabe quem ainda está vivo. E ela me responde que são “o Tacinho, a Fifi e a Lindinha” mas Lino contesta e informa que a Lindinha já morreu, morreu ano passado, se não me engano [...].Quando a Fifi veio em Belém, mandou me chamar, que teve um almoço lá na casa da Nazaré, foi reunião de família lá, que ela queria ver o pessoal. Ela contou que a Lindinha tinha morrido. A partida dessas pessoas, que pertenceram à infância e à adolescência de D. Raimunda, a comove, mas ela acompanha o estudo, a profissão, as viagens da família Pereira. Lembro quando foram embora... Eles moraram em Belém, daí eles foram para o Rio. Quer dizer, o 83


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Ritacinho foi logo, foi o primeiro a ir para o Rio, ele pouco durou aí, em Belém. Ele foi logo para o Rio, já era formado, Ritacinho, quando ele foi daqui, já era formado. Ainda teve em Belém, dando umas consultas, daí ele foi para o Rio. Sobre a relação D. Margarida e capitão Alfredo, pais de Dalcídio, comenta a intérprete, retirando do acervo memorial: A mãe dele morou ali, muitos anos. Meu pai que lidava com ela. Quando ela bebia, meu pai que levava ela carregada, era meu pai que levava ela carregada. Mas não era todo dia também, que ela bebia , ela tinha os dia de beber. O capitão Alfredo, pai dele, o marido, ficava zangado com ela, mas não era de tá brigando, ele se aborrecia, chamava atenção, mas eles eram muito unido, muito unido. Capitão Alfredo e ela era Dona Margarida Ramos. A amiga da família do escritor se espanta e lamenta ao saber que o escritor já havia morrido e repete sobre a importância dele e dos livros escritos por ele para a cidade. Personagens, na voz e na letra. Francisco Costa narra a presença dos tios Mundico como Didico, Lindolfo como Rodolfo e Ezequiel como Ezequias, personagens de “Chove...”. Didico, o tocador de pistão, amo do boi Caprichoso, Rodolfo, o tipógrafo e oficial de justiça, Ezequias, comerciante, assombrado com a sífilis e a guerra, campeão de damas na vila que lia o jornal novo chegado de Belém. Eram os três irmãos falados de Cachoeira. (p.119) Dona Raimunda, filha de Lindolfo Paiva, depõe a presença do pai em Chove e explica as correlações entre personagem real e ficcional. Fala do meu pai lá, Lindolfo Paiva [...] A redação era ali na casa donde ..., na casa que ele morava, lá que tinha as máquinas de datilografia, tipografia. Fazia o jornalzinho, era. Meu pai era ajudante de lá. Era quem lidava com a máquina [...] Fabiano Pereira, irmão dele, era ele que era o dono do jornal. Eu sei, que meu pai trabalhava lá, na tipografia com ele. No jornal, ele quemvendia o jornal, era meu pai, espalhava o jornal na cidade. O tipógrafo era o Dalcídio mesmo. Ao falar da obra literária de Dalcídio, Lino explica que as personagens desse romance são reais e dali mesmo de Cachoeira. Ele defende que o escritor apenas troca os nomes das pessoas pelas personagens ficcionais: Dona Amélia seria a mãe dele, que era negra e alcoólatra, como na ficção. Era minha tia, a tia Margarida que por sinal, ela morreu alcoólatra. O major era o capitão Alfredo, o pai dele. Tinha a Andreza, que morreu há uns cinco anos, mais ou menos, atrás. A Andreza era uma pessoa que ele citava muito no livro dele. Andreza é a menina-amiga de Alfredo na ficção. Em “Três casas...”, a garota reaparece e depois de uma brincadeira com Alfredo, se apresenta: - Mas tu não me conheces? Quando eu vim na tua casa, faz muito tempo. Tu te lembra? Estavas cego. Não me viste. Por isso tu não te lembra. Fui-me embora para essas fazendas daí de cima. Agora voltei a morar de vez em Cachoeira com um meu tio. Não tenho paia nem mãe. Morreram. Mataram meu pai. Vi um irmão morrer. O outro, deste tamanho assim, levaram. Algum irmão teu já morreu? E tu, nunca saíste daqui? [...] - Cego, te lembra de mim. Cego. Sou a Andreza, cego (TCR, 148/9)

Sobre a morte de Andreza, a imprensa de Belém noticia: Morreu ontem, em Cachoeira do Arari, Andreza Gomes da Gama. Os leitores de Dalcídio Jurandir a conhecem melhor, 84


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com ela tendo convivido nas páginas dos primeiros romances do escritor paraense, lembranças de Cachoeira do Arari fortemente marcadas por Andreza. Andreza morreu aos 101 anos. Continuava a ser uma cozinheira de mão cheia, não usava óculos, nem para costurar ou tricotar, e mantinha-se lúcida, com a lembrança perfeita do menino e adolescente, que se tornou homem feito, o romancista da sua Cachoeira (Liberal.13/ 03/93 1o. caderno, p.3)9 D. Amélia estreitou a filha em seus braços, sacudindo a cabeça que não, não . Alfredo escancarou a porta e deu um grito. Major Alberto surgiu com os fascículos na mão e Marcelina saiu correndo para comprar uma vela. A vaca urrava no quintal. Major curvou-se sobre a filha, tentando pegar-lhe o braçinho(...) Viu-a só, com um negror pálido, majestosa, à cabeceira daquele caixão branco, como uma fada negra que, com um gesto, poderia levantar daquele berço de rosas e violetas, a adormecida menina. (TCR, pp.200 e 201) Muitas outras semelhanças entre vida e obra, realidade e ficção, são apontadas nas entrevistas e nas caminhadas por Cachoeira do Arari. E, mesmo que não seja através da leitura dos romances, os moradores reconhecem a importância de Dalcídio Jurandir. Ivete Paiva conclui a entrevista, dizendo que apesar de não ter conhecido o escritor, sei que ele era importante aqui, né? Que todo mundo fala. [...] todo mundo que vem aqui, quer saber da história dele. Ainda tem aquela casa, que todo mundo que vem, tira foto e tinham dois rapazes filmando ela. II O tucumanzeiro e o caroço de tucumã: apresentação de dois textos (não mais) orais Assim dá um encanto maior, a varinha mágica, a varinha de condão que as fadas invejariam. Os meninos do mundo inteiro não conhecem o carocinho de tucumã de Alfredo. As fadas morreram, o encanto vem dos tucumanzeiros da Amazônia. O carocinho tem a magia, sabe dar o universo a Alfredo. Tem um poder maior que os três Deuses reunidos. (Jurandir, 1998:374). Em Retiro Grande, localidade rural, pertencente ao município de Cachoeira do Arari, outra vez, Dalcídio Jurandir sussurra-me. O caroço de tucumã, tão peculiar o território, é objeto mágico da personagem Alfredo10 e também das crianças daquela localidade. Tiro dos olhos do menino Isaac11 a emoção do convívio. A crônica oral é forte, proferida num só grande fôlego, após trinta anos de ausência do menino dos campos marajoaras. E ao chegar em casa, o nosso trabalho, era ajudar nossos pais, como eu falei. A mamãe tinha muita criação, muita galinha, porco, pato, ela tinha muito, e a gente tinha um compromisso de manhã. Se a gente fosse estudar de tarde, ou quando chegasse do colégio, tínhamos o compromisso de quebrar os caroços, no verão. No inverno, a ge nte fazia o seguinte, ajuntava os caroços, ou o tucumã, a gente fazia aquele processo de com uma faca cortar, amassa de cima e picotar tudinho assim, a ponto que a galinha pudesse comer e os porcos também comiam e patos e etc. E depois, aquele caroço assim, totalmente descascado, liso por fora, a gente depositava dentro de uma caixa que já estava pronto, esperando o verão. No verão, aquele caroço seca e a amêndoa que está dentro, ela solta da casca, ela fica solta, a gente vai para um cepo, uma marreta de pau ou de ferro mesmo, e quebrava aquele caroço. Aquela massa de dentro, justamente, a gente quebrava miudinho, pra dar pra pinto, pra galinha, e quebrava também pra porco. Era um alimento muito importante, inclusive as criações eram gordas, robustas e os porcos também, era uma coisa muito importante, é um alimento muito sólido, muito importante que existe aqui no Marajó, nesta região, para os animais. E, até hoje, depois de uns 30 anos, eu não vejo já essa consumição para os animais. Eu num vejo mais, num querem mais ter o trabalho, tem o farelo, outras coisas aí, né? (...) Me lembro, daquela época, ainda também, das minhas pescas, dos meus momentos que fui pescar no rio Quió, que fica defronte aqui à casa pastoral e eu, muitas vezes, eu fui pescar neste rio. Gostava, e até hoje eu gosto, do ofício de pescar, quando eu tenho chance, eu gosto, é uma distração, é uma coisa boa, é um lazer que a gente pode exercer, executar, praticar. Então, naquela ocasião, eu ia no mato, juntava o caroço de tucumã. E o caroço de tucumã, ele passa por vários processos. Depois que ele cai da árvore, aquele que fica embaixo da árvore, o porco come a massa de cima. Aqueles caroços que ficam ali, se ele num ficar muito exposto ao sol, certo?, ainda tem esse processo também. Que o caroço que fica exposto ao sol, ele num cria isto, entendeu? Tem que ficar na sombra. Então, ele fica úmido, nem molhado, nem quente demais, é uma temperatura, digamos, normal, bem importante. Aí, ele cria dentro dele, é o processo da natureza, ele cria dentro dele um animalzinho, chama o bicho do caroço do tucumã. Eu vi, muitas vezes, isso, porque eu quebrei muitos caroços. A gente ia, tirava. Antes dele criar esse bicho, ele cria uma massa, que dá acesso a uma arvorezinha, uma nova árvore de tucumanzeiro, é aquela massa tão gostosa que a gente come. [Existia até, professora., uma história, eu não sei se

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TRAGÉDIA DE UM ESCRITOR DO NORTE por Dalcídio Jurandir Estava um pouco aperriado com a divisão do município de Itaituba em setores censitários... Tinha vindo desse município, o maior do Brasil, com uma vilazinha jogada na solidão do Tapajós, um poeta da velha escola, com rimas ricas, que é o poeta Rodrigues Pinagé e o prefeito Fortunato, patriarcal prefeito com a mesa farta, mandando buscar a banda de música de Aveiro para tocar no aniversário de sua esposa e a sua malquerença com o judeu Moisés, gordo homem que tem a única frigidérzinha da vila e um piano em casa. Itaituba não fica muito distante das cachoeiras e dos índios lá do alto Tapajós. Tem também a febre, criatura muito conhecida na Amazônia. Há também umas sondagens de petróleo que ficaram para outra ocasião. Tomei banho, de madrugada, num poço de água sulfurosa, água morna vinda do fundo da terra, que foi uma maravilha. Cheguei a Santarém na lancha “Eulina” rebocando o seu pontão cheio de passageiros, da gente não ter um lugar para armar rede. Dois dias assim no Tapajós, descendo. Tapajós é um grande rio, seu povo luta asperamente contra a febre, a miséria, a ignorância, a exploração comercial e vai tirando a sua borracha, o seu caucho, couros e plantando seringa na concessão Ford. Sempre dá um movimento à concessão Ford. Pena é que não deixe que os seus trabalhadores tenham garantia alguma no seu trabalho. O Instituto dos Industriários mandou seu funcionário lá e os súditos do Rei do automóvel não quiseram se explicar. Ali na concessão quem manda é Mr. Ford e isso de Caixa de Aposentadoria e Pensões é para Mr. Ford engulir. Também tem o Dr. Mac Dowel que é um grande advogado, servido por uma incomensurável cultura dentro de biblioteca tipo castelo feudal, majestosa e a pique, com a respectiva ponte levadiça por onde sua senhoria desce para o seu austero e patriótico escritório. Mas isto não quer dizer nada com o prêmio “Dom Casmurro”. Estava trabalhando quando me vieram dois telegramas. Fiquei alarmado. Minha família mora em Belém e podia ser alguma notícia má. Mas era o primeiro prêmio. E o engraçado foi que em Belém deram a noticia da vitória do romance “Marinatambalo”, mandado para o concurso pelo Maciel Filho e o meu querido Abguar Bastos. De São Paulo. Quando mandei o “Chove” já o outro andava no concurso. A carta de Abguar avisando, veio na hora em que se mandava o “Chove” pro Rio. Quando minha mulher mandou o telegrama de Brício de Abreu fiquei pensando em Salvaterra, onde passei a limpo, ano passado, o “Marinatambalo” e escrevi o “Chove”. Do “Chove” tinha uma papelada velha que se pode convencionar como material todo desarrumado e roído de traças, vindo das alturas de 1929. Me lembro que fiz essa tentativa com uma literatura desenfreada e uma pretensão a fazer estilo, que era um espetáculo. Andei escrevendo em Gurupá, depois num barracão no rio Baquiá Preto nas ilhas de Gurupá, onde era empregado. Ali ensinava os dois meninos do patrão Pais Barreto, a ler, nos livros de Felisberto de Carvalho. Passou o tempo e larguei o troço sob o peso do castigo de tanta presunção literária. Em Salvaterra pensei então retirar do entulho os personagens mal esboçados, o fio de algumas impressões vagamente fixadas e fiz o romance. Nada ficou da tentativa de 1929. Estava de férias como inspetor escolar, na vila de Salvaterra, para onde me mudei de Belém, por medida de economia. E ganhando 365$000 por mês, porque 100$000 que eu podia ganhar mais, eram para pagar a prestação da máquina de escrever que tive a loucura de 86


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comprar. Sem ela não podia ir pra frente o plano de escrever o “Marinatambalo e o “Chove”. E eu e Guiomarina, minha mulher. fazíamos os maiores malabarismos com os trezentos e sessenta e cinco. Não éramos somente nós dois em casa. Eu metido com os dois romances e ela vendo se os trezentos e sessenta e cinco rendiam mais. Tinha umas diárias de 150$000 mas foram cortadas porque vieram as férias escolares. Perdi as diárias magras e arrancadas com unhas e dentes do Sr. Pernambuco Filho, diretor da Educação, apesar de ter sido eu o único inspetor escolar que saiu de Belém sem temer febre, chuva, rompendo atoleiros, andando em montarias, para visitar as escolinhas auxiliares, perdidas no mato e no campo. Roemos uma chepa fazendo os romances. Depois o dinheiro custava a vir. Esperávamos as canoas de Belém. Uma era a “Antuérpia” e outra era a “Vila de Salvaterra”. Esperávamos angustiados. Tínhamos. É verdade, a camaradagem do Valdemar cavando no boteco pra salvar o capitalzinho, do Veloso da mercearia. do David Paulo. de Soure, da família Bla. Sai com os dois romances mas fiquei devendo dois meses de casa a sessenta mil por mês, e cento e quarenta mil no Veloso, queainda não pude pagar. Por essa época — me lembro de certa noite que dormi no chão porque a rede já não prestava mais e dinheiro não havia para se comprar uma nova. Foi nessa época que tive a honra de ser apresentado a uma senhora Nenê Macagi, que apareceu escritora em Belém, pirangando os moles no Pará, até com a Prefeitura de Soure. Esta senhora não me deu importância alguma, primeiro porque eu, caboclinho, estava de macacão e tamanco, segundo, porque a dita senhora era uma escritora. Muita gente ainda pensa que o Pará é terra de seringueiros coronéis. Aparece uma turminha de malandros metidos a literatos, cantoras, etc., e caem em cheio em cima do governo, sangrando o Tesouro. Os da terra ficam no peixe frito. Ah! é notável a influência do peixe frito na literatura paraense! Peixe frito é o peixe vendido em postas nos taboleiros do Ver-o-Peso ao lado do mercado em Belém. É a comida para quem não deixa almoço comprado em casa. Ao chegar o meio dia, o pobre se tem a felicidade de haver arranjado dois mil réis leva um embrulhinho envergonhado de peixe para casa. A vida literária do Pará tem se movimentado em torno do peixe frito. Conheço profundamente esse drama. Sempre fui empregadinho público como me chamou certo imortal (da Academia de Letras do Pará), morando numa barraca na São João, com família e perseguido pelos camisas verdes. Vocês sabem o que era naquele tempo viver perseguido pelos camisas verdes. Acabei gramando xadrez comum, o mesmo xadrez onde os ladrões de galinhas e porristas passam vinte e quatro horas. Nele passei três meses, apenas porque a infâmia dos camisas verdes chegava a tudo naquele tempo. Me ficava bem, aliás, estar em companhia daquela pobre gente em vez de estar na companhia dos autores da infâmia. E outras histórias. E outras misérias. E a vida do chamado intelectual na província é mais trágica do que se pensa. Bancamos bobos de rei, mas de graça. A não ser a honra dum convite para uma qualquer chateação literária e mais nada. O resto é o peixe frito. Agora com a geração mais nova aparecem moços que felizmente, vieram de famílias mais remediadas. Mesmo assim estão fechados na província, isolados, boicotados, negados. Se na geração de Abguar Bastos há nomes como o desse Bruno de Menezes que tem poemas lado a lado com os melhores de Jorge de Lima e Manuel Bandeira, na geração mais nova temos um Ribamar de Moura, um dos grandes pensadores jovens do Brasil, Leví Hall do Moura, cronista admirável, Stélio Maroja, F. Paulo Mendes, Machado Coelho, Cecil Meira, Daniel Coelho de Souza. Novíssimos como Carlos Eduardo, o poeta de “Este rumor que vai crescendo”, e Mário Couto, um contista dos maiores entre os jovens contistas brasileiros. Nomes como De Campos Ribeiro que acaba de publicar um belo livro de poemas. Oséas Antunes quetem três romances inéditos e muito bons, Jaques Flores, poeta de Cuia Pitinga, as poetisas Miriam Morais, Adalcinda e Dulcinéia Paraense, os desenhistas Ângelus, vindo do movimento Graça Aranha, o admirável Gari e o singularíssimo Mariz Filho. Agora mesmo o autor do filme “Aruanã”, Libero Luxardo descobriu em Marabá um desenhista fabuloso mesmo. Chama-se Morbach. Seus desenhos têm muita coisa de “terreur”, de bruto, de essencialmente amazônico. Aquele grande amigo que é Nunes Pereira, insatisfeito e vigoroso Nunes Pereira com a sua dispersão e os seus pés infatigáveis, rompendo todos os caminhos da Amazônia, metido com 87


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índios, peixes, selvas e febres, Nunes achou em Morbach aquilo que ele entendia como verdadeira interpretação da paisagem e da humanidade na Amazônia. Quero fazer aqui uma referência especial a “Terra Imatura”, a nossa pobre e querida revista fundada pelo meu amigo Cleo Bernardo, um novíssimo, uma alegria e um entusiasmo sem limites e uma das mais puras amizades que encontrei na minha vida. Com ele lutam Sílvio Braga, Rui Barata, além dos que já falei. Antes de acabar estas notas escritas apressadamente para pegar a mala aérea, quero contar um pouco da história do “Chove”. Pensava acabar o romance um pouco antes do encerramento do concurso. Mas não acabei. Voltei de Salvaterra sabendo do adiamento. Mendes e Stélio leram o livro e acharam que eu devia mandar uma cópia mais limpa. Como, se faltavam vinte dias para terminar o prazo? Então Guiomarina, minha mulher, doente como se achava, se dispôs a datilografar o romance. Eu, desanimado, não dava conta e depois ocupado na luta do peixe frito e mesmo porque aceitara um lugar no Recenseamento oferecido pelo amigo Adelino Vasconcelos, delegado regional do Pará. Guiomarina, doente, em quinze dias passou a limpo o romance. Foi uma obstinação. Ela queria que eu mandasse a pulso o romance para o concurso. Por isso que todo o sucesso devo a ela. Mas faltava o dinheiro para mandar o livro pelo avião. Só havia três dias de prazo. E com Mário Couto fomos cavar entre os amigos o dinheiro. Paulo Mendes e Stélio me deram dez mil. Jorge Malcher, cinco. E eu tinha vinte. Fui à Panair expedir o livro como encomenda por ser mais barato. Mas me disseram que não se fazia mais encomenda. Olhamo-nos eu e Mário, desalentados. Meu desejo era corresponder ao esforço da Guiomarina. Não queria voltar para casa com o livro debaixo do braço e vê-la triste, sabendo que todo o trabalho havia sido inútil. Ao menos o consolo de enviá-lo ao concurso, queríamos. Saímos da Panair e voltamos. Cavamos mais dez e fomos ao correio. Entrei na bicha e esperei a minha vez. Tinha o dinheiro na mão e aflito porque não sabia de certeza quanto era a taxa. Se fosse mais? Esperei meia hora na bicha para chegar ao guichet e ouvi do funcionário que a taxa era tanto e o dinheiro não dava. E me olhou com uma tal superioridade funcional que sai. humilhado. E eu era a desolação em figura. Faltavam vinte mil réis e onde encontrar esses vinte mil réis? Pensei no personagem do “Chove” e sai com Mário, atrás dos vinte mil réis. Vimos na Confeitaria Central o pintor Barandier da Cunha e Osvaldo Viana. meu amigo e uma das figuras expressivas nos meios de Belém. Eles nos deram os vinte. Corremos, faltava meia hora para fechar a mala. Entrei na bicha, suando e pensando em Guiomarina, em casa, esperando o resultado do trabalho. E mandamos o volume no porte simples, sem recibo, sem nada, para um rumo incerto, podendo nunca mais chegar ao DOM CASMURRO! Tudo isso humilha e esgota a gente. Conto tudo isso rara mostrar como é que se escreve no Brasil. Nada direi da minha vidinha literária. Nasci em Ponta de Pedras, me criei em Cachoeira, Tenho trinta e um anos, com caderneta militar de segunda categoria, etc. Cultura: estudos primários com o professor Chiquinho e Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em Belém. Estive dois anos no ginásio. Nele desaprendi o que levara do grupo. Quase todos os professores me desanimavam, dinheiro não havia, tive sarampo, curado pela minha segunda mãe Dona Lulú, acabei perdendo os exames do segundo ano e virei vagabundo de subúrbio em Belém, morando na barraquinha de Dona Lulú que me dava comida, luz para escrever versinhos, e um sapato de quando em quando. Fui ao Rio na terceira braba do “Duque de Caxias” e acabei lavando pratos no Hotel São Silvestre, na rua Conselheiro Zacarias, passando o esfregão no corredor da pensão onde morava de favor, dormindo em cima duma colcha rota no chão e comprando para a patroa a carne no açougueiro e levando cesto feito criado quando o amante da dona ia na feira fazer compras. Tinha dezenove anos. Tinha mais dois cartões. Um para o então senador Lauro Sodré. E o outro para o doutor Gustavo Barroso. O do Dr. Lauro não dei porque não sabia a casa dele. Com o do Dr. Gustavo Barroso fui 88


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ao “Fon-Fon”. E issodepois de vou-não-vou, temendo a importância do Dr. Barroso e do “Fon-Fon”. Encontrei um senhorzão bem nutrido e vestido, que ao receber a minha carta me perguntou com voz sonora c confortável “sabe revisão?” • Me botou num caixote à espera que o revisor da revista pedisse demissão e eu ocupasse o lugar. Um dia o desânimo aumentou. Nada do revisor sair e a dona da pensão me aponta outros empregos, muito impaciente com a minha situação. E me despedi do majestoso Dr. Barroso, cujo displicente olhar caiu sobre mim com uma tranqüila superioridade e com tão solene desdém que desci a escada do “Fon-Fon” como um escorraçado. Voltei na mesma terceira classe do “Duque”. Fracasso completo. Vagabundo sempre. Papai em Cachoeira sem nada poder fazer e Dona Lulú na barraquinha me dando o que podia arranjar na sua máquina de costura. Foi então que escrevi ao Sr. Paulo Maranhão, proprietário da “Folha do Norte” uma carta floreada como página do meigo Dr. Aluízio de Castro, pedindo um cargo de suplente de revisão. Ele me respondeu de testa que “emprego era o que não havia e que fosse bater noutra porta”. A nota vai comprida demais. Escrevo apressado para não perder a mala aérea. DOM CASMURRO me lançou e nada posso dizer porque o que ele fez foi agitar a terrível questão dos pobres escritores mergulhados na província. Foi a obra magnífica de DOM CASMURRO. Nada mais posso dizer acerca do “Chove nos campos de Cachoeira”, porque somente poderia dizer coisas ruins. É um livro tão meu que não sei falar bem dele, não sei explicar finalmente. Tem toda a desordem, os defeitos, as lutas dum livro sincero. Eis a coisa ruim que posso ainda dizer... Mas quero acabar que tive uma grande homenagem por causa do prêmio. Fui com o meu amigo Cronge da Silveira, em Santarém, tomar tarubá na casa de dona Ana, no bairro da Aldeia. A casa de palha, o chão batido e as moças simples e alegres cumprimentaram o “escritor premiado...” O tarubá é uma bebida fermentada de mandioca muito usada em Santarém. E naquela noite da Aldeia, num banco no terreiro, tomamos o tarubá, bebida da terra e do povo. Não me esquecerei nunca da Aldeia. ca da borracha, numa casa modesta, localizada atrás da Basílica de Nazaré, em rua sem calçamento, onde procuram esconder o seu estado de pobreza. Na sala da nova residência, o piano solitário é o indício da antiga abastança. A filha do casal, Emilinha, solteira, gorda e infeliz nos amores, sente-se frustrada: de sua janela vê somente os fundos do 26 BC e o capinzal de uma vacaria. A mãe, D. Inácia, que é um caráter primoroso, tem nostalgias do lemismo e, conservando a psicologia da mandona política, censura Virgílio por não ter ele sabido aproveitar as boas graças do prefeito. A família, sob a inspiração de Emilinha, tentará recuperar, pelo menos coerentemente, a posição perdida. Essa tentativa de ascensão é o lado doloroso e trágico do romance. Os Alcântaras se transferem para a Avenida Nazaré, a rua dos fazendeiros, da gente rica. Aí continuarão a viver na ilusão de que podem disfarçar a falta de recursos, numa casa arruinada pelo abandono e pelos cupins. O aluguel, caro, valia o local ruidoso, trepidante, que os bondes sacudiam ao passar. Virglio, depois de uma luta de consciência, é subornado pelos contrabandistas e perde o emprego. É o momento em que a velha casa, que cheirava a cupim e a mofo, ameaça desabar. Os Alcântaras, de madrugada, evitando o olhar curioso dos vizinhos, carregam para debaixo das mangueiras acolhedoras, os poucos móveis que tinham e que mal davam para encher a enorme sala de visitas. O pequeno mundo que se forma em torno dos Alcântaras deixa-nos entrever a composição da sociedade belenense, que muito pouco se tem modificado até os dias de hoje. A serva da casa, Libânia — retrato perfeito da nossa jovem caboclinha, com a sua sedução nativa, a sua espontânea sensualidade, sua malícia infantil — e Antônio — o menino que veio de um ponto distante do interior e que sabe contar histórias da assombração nas matas e nos rios — são exemplares perfeitos do imenso contingente da nossa população rural desenraizada, que emigra para Belém. Outra linha de personagens — Mãe Ciana, Isaura, Lício, Magá — representa a camada semi-indigente dos habitantes da cidade, descendendo dos antigos escravos que trabalhavam nas fazendas do Marajó. Ela é depositária de uma tradição cultural heterogênea, em via de perecimento, na qual os elementos religiosos, negros e indígenas, se misturam com os usos culinários e com os específicos da perfumaria e da farmacopéia regionais. Os personagens, como se vê, pertencem a hierarquias distintas, que integram o universo humano 89


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arquitetado pelo romancista. Esse universo, por sua vez, é inseparável do panorama social que ele soube reconstituir, e da paisagem urbana que soube plasmar. Fundindo, numa só expressão de conjunto, a realidade exterior com a experiência vivida, o objetivo com o subjetivo. Dalcídio Jurandir alcança a transfiguração poética de Belém. E isso ele consegue especialmente devido à interferência de Alfredo, figura original do ciclo do Extremo Norte, que vem de Cachoeira para a companhia dos Alcântaras, a fim de completar os estudos na cidade grande, Alfredo, que é o elemento de conexão entre os diferentes personagens e o elo entre os mais importantes episódios da trama, espectador e também participante dos acontecimentos, introduz, no processo da narrativa, o ângulo de experiência pessoal necessário à recriação poética da realidade, São os seus olhos de menino-do-sítio, de matuto, de bicho-do-mato, que descobrem os recantos e os segredos de Belém: as ruas sombreadas de mangueiras, o Largo da Pólvora, sonolento, com o Theatro da Paz, neoclássico, no meio da verdura, as casas baixas, ajaneladas, de corredor ou puxadinha, os sobrados revestidos de azulejos que brilham ao sol. Mas a recriação poética de Belém, quer como paisagem, quer como meio social — os dois aspectos formando uma só realidade — para exprimir o que ela tem de típico, de característico, de concreta universalidade, baseia-se no aproveitamento das peculiaridades linguísticas regionais. Os modismos, locuções e vocábulos privativos de consumo local, além da forma sintática que a fala nortista adota espontaneamente, permitiram, melhor do que outros aspectos mais estabilizados e mais conhecidos da cultura regional, já em estado de folclore, penetrar na psicologia do povo e na sua maneira de interpretar a vida. Foram elementos dessa ordem, que fazem parte da linguagem popular (sendo a linguagem um modo de ser, de sentir e de agir), que Dalcídio Jurandir estilizou tanto nos diálogos quanto nas narrativas, valendo-se, ao máximo, do rendimento estético e do valor poético que podem oferecer a sintaxe melodiosa e a riqueza semântica do linguajar nortista. Disso é que se origina, talvez, a poesia elementar, bem terrestre, demasiado humana, que o seu romance transmite, dando livre curso aos sentimentos contraditórios e ao pensamento confuso que a terra amazônica, ainda não subjugada pelo homem, inspira à alma nativa, perplexa e impotente dentro de seu próprio meio.

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OS VIRADORES DE MADEIRA por Dalcídio Jurandir Na minha viagem às llhas pude ver de perto o trabalho dos madeireiros. Madeira é o nome que apaixona o povo das llhas como foi a borracha no seu tempo. É a coaruba5 que vai para Hamburgo. A Alemanha quer a coaruba das llhas para qualquer ersatz nos seus aviões. Quando vi todo aquele trabalho dos caboclos para abater e atorar, bolear, estivar e virar os toros até a emboiação e da desemboiação para o embarque, fiquei com pena e vergonha da literatura. O literato grã-fino não entra nas llhas para escrever suas páginas de antologia ou manufaturar romances de nome bonito, estilo engomado e capa imbecil. Os aviões exigem o suor e o sangue dos caboclos das llhas para servir a Hitler na sua histeria guerreira. Não é o dinheiro gasto, mas o trabalho humano reduzido a simples instrumento da guerra mecanizada e nutrida com 420 discursos do Fuherer e a poemas do acadêmico Marinetti. Andei pelas llhas no casco, de reboque, em escaler, na montaria, em navio pontão. Peguei no remo de faia sob o solzão da baía de Curralinho quando um dos nossos remeiros, de baço inchado e peito comido pela febre, tinha um passamento e se vazava de disenteria. Andei pelo atoleiro do igarapé S. Roque e fui ver a rolação da coaruba no centro onde a onça deixa rastro e o jaquiranabóia espeta o ferrão no marupaseiro. Ali os homens mergulham no mato e saem com os toros enormes amassando a terra que a chuva empapa nos últimos dias de maio. Os homens, silenciosos e sombrios quando entram no mato, se transfiguram desde o momento que começam a rolar os toros nas estivas longas. Enchem de exclamações a floresta contra os paus bem criados de duas ou três toneladas. Corriam as suas vozes na pesada solidão vegetal, seus peitos tufam sob a brutalidade do serviço. Com seus gritos com que tentam tanger os rolos, eles desejam talvez que as vozes suadas e angustiadas do seu trabalho sejam ouvidas através do mato e dos rios. Sejam ouvidas na cidade entre os sambas da Carmen, o clarão dos cartazes e a torcida de futebol. Mas a distância abafa as grandes vozes dolorosas, Aterra tem ciúme daquele surdo clamor quase trágico. Naquele clamor, naquele ritmo atropelado de homens virando os toros sob o coro singular dos viradores de madeira que não tem a inflexão, a poesia, aquele desespero lírico dos viradores de terra que Nunes Pereira encontrou em Capanema. É um coro subterrâneo, sufocado, de vozes curtas que não cantam, praguejam e bradam soturnamente sobre o toro que não vira... A floresta récolhe as vozes na sua formidável solidão. E eles continuam a derrubar as coarubeiras, a rolar os toros, noite adentro, à luz dos candeeiros e dos fachos. E é ainda à noite que eles vão embarcar as coarubas nos feixes de aninga cortados na véspera. E quando tombam nas redes no taperie, têm um sono de bichos, um sono de troncos abatidos na vigília da floresta saqueada. Moram no taperi durante todo o preparo da madeira. Roem jabá ardido, um mapará seco ou carne do Marajó, carne de boi morto de doença que produz a ‘hemorróida sangrada” no pessoal... Mas os trabalhadores assumiram o compromisso de preparar a madeira para o embarque. Não há trovoada nem sono, não há mesmo fome quando às vezes falta o rancho, não há febre nem moição de corpo que os faça desertar do trabalho a 4$000 diários a troco com direito a mantimento. Só mesmo quando um foro amassa uma coxa, parte uma rótula, rebenta um pé, esmaga um braço. Gritam de dor e são afastados da luta, mas os outros continuam. O trilho pelo qual rolam os madeiros tem mil, dois mil passos ou mais longe do igarapé onde os feixes de aninga esperam para emboiar os toros. Agora imaginem o drama embrutecedor desses homens lutando, se espremendo, de noite e de dia, para arrastar os toros em cima da estiva que eles antes preparam depois de destocar a estrada até a emboiação! Dormi uma noite no taperi dum amigo para assistir ao drama. Acordei para ver a viragem noturna, o espetáculo de troncos humanos, curvos e viscosos, atracados a um toro monstro que não quer subir um lombo de terra, que escorrega do trilho ou corre numa descida. Há um homem na frente que com o espeque de meraúba corta a carreira do rolo, endireita-o na estiva. Vem na frente do madeiro como um baliza. Um descuido, um pé que falseie, um esmorecimento e eis o homem debaixo 92


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do toro, ou no mínimo com a perna esmagada. Tem ainda os proeiros que ficam nos extremos da coaruba dirigindo a viragem. São eles que gritam o “vira-viral” inicial, mandam parar ou chiar o pau. O espeque transmite a ordem e os outros viradores arrancam: “Vira, vira, moreno!” E os homens agarrados ao monstro, braços, dorsos, peitos, cabeças, confundidas num só bloco empurram-no aos gritos, aos “vira-vira” numa excitação quase lúgubre. Eu os acompanhei naquela noite dentro do mato à hora em que a jaquiranabóia assanha-se com a luz, a surucucu se desenrola e a onça acende os olhos no cerrado. “Tambariramba!” É uma das interjeições selvagens com que eles dobram os paus encalhados ou caídos fora da estiva. “Tambariramba!” é um grito heróico, uma grande voz humana saltando da terra onde se abatem os madeiros. Do igapó onde se cortam os cipós e a aninga para a jangada. Das águas onde se embóiam os toros e do porto de embarque onde o guincho sacode as coarubas no porão do cargueiro. [.1

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CHÃO DE DALCÍDIO por Vicente Salles Em 1978, por solicitação do escritor-editor Moacir C. Lopes, escrevi o estudo intitulado “Chão de Dalcídio”, análise da estrutura do romance Marajó, publicado como posfácio à segunda edição do mesmo, revista pelo autor. Dalcídio Jurandir ainda vivia, no Rio de Janeiro, modestamente, carregando seus sonhos e suas mazelas. Debrucei-me com interesse sobre a obra desse debuxador de paisagens e costumes paraenses. Reafirmo que não é possível escrever a história social do Pará sem uma leitura dessa obra. O conjunto interligado pela “história de vida” de Alfredo constitui mesmo a verdadeira história social paraense evocada em momentos que coincidem com a vida do escritor. Marajó situa-se, nesse conjunto, de maneira singular. É um livro solteiro, desligado da trama de Alfredo. Mas, ao contrário de Linha do Parque, também solteiro, não se isolou daquele contexto. Contém uma soma considerável de informações folclóricas, com interesse etnográfico e antropológico, o mais vasto e coerente que já se introduziu na literatura regional. Nele pode-se vislumbrar algo valioso e renovador na técnica da ficção brasileira: sua estrutura é basicamente a estrutura do rimance “Dona Silvana”, tradição ibérica que se incorporou ao nosso folclore. Partindo desta constatação, observei que Dalcídio Jurandir construiu uma história extremamente complexa em que o arquétipo folclórico funciona como suporte. Ele decompôs estruturalmente, como o faria Wladimir Propp com os contos de fada, a narrativa popular, integrando-a depois, por partes, ao seu próprio romance, com os acréscimos sugeridos pelo contexto local, O rimance folclórico ajustase simetricamente ao Marajó e de tal modo se cerca de outros fatos folclóricos que a obra resulta, afinal, num vasto painel da cultura popular. É claro que Marajó é apenas parte de um todo: o conjunto da obra de Dalcídio Jurandir, obra trabalhada com a dedicação e a honestidade de quem ama a terra e o seu povo. Nesse conjunto se fundem valores não apenas folclóricos, mas todos aqueles que exprimem as lutas e vicissitudes de um povo, valores que extrapolam o conformismo colonizado e possibilitam a aproximação com a dura verdade regional, sociedade historicamente contida ou bloqueada pelo autoritarismo. A regra social se apóia na forma de exploração econômica implantada no afã da imposição do modelo europeu de cultura na terra conquistada: o trabalho escravo, dos índios e dos negros. aqueles dizimados, estes introduzidos pelo interesse dos proprietários. Na ilha do Marajó, como em toda a Amazônia, há constante interação de estímulos e afirmação da vida numa unidade perfeita com o pensamento. Mito e lenda, crença e superstição, magia e heroísmo convivem em harmonia com o homem. Como exercício de pesquisa do cotidiano viver paraense, “todo cheirando a mato e a maresia”, na expressão de Astrojildo Pereira, é possível descolar da obra inúmeras peças de inspiração folclórica, tais como os contos populares que ele ajustou aqui e ali, de modo sempre apropriado, numa colagem perfeita. O reconto de Dalcídio Jurandir, emérito contador de estórias, tem o sabor da narrativa popular e os oito exemplares apresentados valem como mostras da mais autêntica jornada do conto popular.10° Aqui nos encontramos com o artífice da reconstrução dos contos populares. No estudo “Chão de Dalcídio” analisei o processo de construção de uma obra em que o arquétipo folclórico funciona como suporte. Uma questão que se impõe na análise de cada texto descolado da obra do escritor é a das vertentes do saber popular que se derramou no Marajó. O escritor contextualiza e integra o conto popular na sua narrativa. Mas também dá um destaque especial aos narradores, homens e mulheres. As estórias narradas pela boca feminina, de negras e mulatas, mostram o imaginário do europeu adaptado à região. Nhá Fé narra a melhor recriação do escritor, o conto Maria Sabida, no último tomo da saga amazônica de Dalcídio Jurandir, Ribanceira, admiravelmente intertextualizado. As narrativas de Antônio, o curumim caboco de Belém do Grão-Pará, são aquelas que cheiram a mato, mostram o imaginário do nativo adaptado ao mundo que o europeu conquistou. A narrativa de Eutanázio, em Chove nos campos de Cachoeira, funde vertentes européias, africanas e indígenas. Josse Fares101 chama a atenção para os narradores em Chove nos campos de Cachoeira, 94


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primeiro tomo do ciclo, destacando três figuras, todas masculinas, Salu, Eutanázio e Bita. As narrativas de Salu giravam em torno de um tal Manuscrito Materno, de sua própria autoria. Sentados na frente da casa velha, Lucíola, Dadá, Alfredo e Eutanázio ouvem um narrador que dá sentimento às palavras. Entretanto, como Sheherazade em As mil e uma noites, SaIu interrompe suas histórias antes do fim, deixa-as no clímax, certamente de propósito para que o interesse de seus ouvintes seja contínuo. Usando essa estratégia, Saiu teria sempre platéia garantida em suas “horas de contação”. A lembrança de Sheherazade é oportuna. O próprio Dalcídio faz referência às Mil e uma noites páginas atrás, no terceiro capítulo, — “Letícia bem podia abrir As mil e uma noites que seu pai esqueceu dentro do guarda-roupa e ler o conto do Ali Babá para Marialva ouvir”. Letícia e Marialva são duas das três filhas que Major Alberto, viúvo, deixara em Muaná, passado que ele preferiu esquecer, Marialva, a menor, era cega. A terceira era Natárcia. Três personagens perdidas no vasto elenco. Eutanázio, irmão das três moças e único filho que o Major levou quando decidiu refazer a vida em Cachoeira, também se investe na função de narrador. Ao contar a Alfredo, meio-irmão, as aventuras de um sapateiro aprendiz que mata seu próprio mestre e se vê perseguido pelo fantasma do morto, o contador se utiliza de um gestual e de expressões que fazem Alfredo gelar diante dos fatos narrados. O narrador, para ele, é personagem que interage com o texto. “Eutanázio contava fazendo caretas, gestos, erguia-se, com os cabelos despenteados caindo pelos olhos, Havia qualquer coisa de trágico e cômico na história”, Na verdade, Eutanázio-narrador lançava mão de recursos cênicos para tornar seu ouvinte o mais atento possível. O personagem é exímio contador de estórias. Desfilava a estória da vingança da porta. Estórias trágicas, coisas medonhas, Quando conta ao irmão uma história que lera numa revista, sobre um urubu que dizia ao homem: “Nunca mais! Nunca mais! —visível intertextualidade com O Corvo, de Allan Poe — Eutanázio, tentando imitar o urubu, dá à voz um som tremido e abafado. A estória e o narrador se fundem: “Eutanázio contando a história, contava a seu modo a sua própria história. Ele não tinha morto um homem para roubar mas estava como aprendiz, correndo, perseguido pelos fantasmas, sem saber onde cair morto”. Por isso, o menino Alfredo, que escutava atento, “sentiu que ele parecia representar a cena na cozinha e com a voz rouca, o meio riso, os cabelos caídos, a camisa saltando para fora da calça. Era a figura do próprio sapateiro e do aprendiz ao mesmo tempo.” Eutanázio conta: ESTÓRIA DO SAPATEIRO Era o aprendiz de sapateiro que matara o mestre. Ao transpor a porta da oficina com o dinheiro no bolso, que furtara, já lhe aparece o fantasma do morto, nítido, com os olhos em chama. O rapaz duvida, recua, mas o medo o leva para adiante e, enquanto tenta avançar, o fantasma do morto danava-se em aparecer de todas as formas, ora dançando, ora rindo, ora de cabeça para baixo, ora de quatro pés com os olhos em fogo. O aprendiz corre, apavorado, grita, bate os queixos, esbugalha os olhos, numa opressão. O cabelo se empina, a cara se muda em mil máscaras de medo, quanto mais corria mais se multiplicavam os fantasmas do morto surgindo de todos os lados. E o assassino não sabia mais onde meter-se, onde refugiar-se, onde morrer, Abeirou-se dum rio e vê as águas fosforescentes e ponteadas de mil olhos do morto sobre ele. Mas o rapaz se atira naquele turbilhão de fantasmas que o devora, no meio das águas revoltas.102 A estória de Eutanázio lembra alguns aspectos do Bingo, conto africano, da cultura fã, povo sudanês, e alguns elementos do boitatá brasileiro. Bingo nasceu do casamento do deus Nzamé com Mboia, moça muito bonita. Bingo furtou uns peixes de Nzamé e este atirou-o num abismo. Mboia precipitou-se atrás do filho, sob forma luminosa e sonora, procurando-o por toda parte, sem jamais encontrá-lo.103 Nunes Pereira104 localizou pistas dos fanti-Ashanti na ilha do Marajó. Mas, ao contrário do mito fã, a estória marajoara articula-se aos mitos punitivos que, como o boitatá dos indígenas, acomete os índios transgressores dos códigos da natureza e mata-os. L. C. Cascudo chama a atenção para as semelhanças semânticas entre Mboía, da língua fã, e Mboi, língua tupi, com significado de cobra e para a formação mboitatá, cobra de fogo. O verbete respectivo encaminha os mitos ígneos de várias culturas, indígenas, européias e africanas. Cita a versão semelhante de Valdomiro Silveira, Mixuangos, 1937 (Fogo de Batatá). Mãe-do-fogo, mito ígneo geral na Amazônia. O cânone da punição do furto provém de remotas culturas orientais transmitido possivelmente pelos árabes e incorporado aos códigos europeus. Existe, também, no folclore, o furto não penalizado, o furto tradicional, condição precípua para obter certos amuletos, figas, ferraduras, imagens de santos, e até, num tempo não muito remoto, o furto de moças casadoiras. 95


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No estudo dos contos populares brasileiros ressaltam, desde logo, as vertentes européías num vasto repertório, Os textos descolados da obra de Dalcídio Jurandir mostram, contudo, a variedade e diversidade das vertentes, encontrando-se neles fontes européias, africanas e ameríndias. O primeiro texto selecionado é bom exemplo do encontro de etnias e culturas. A explicação ameríndia do boitatá é insuficiente, pois emergem elementos da tradição européia do fogo-fátuo e a evocação do Bingo, herói do povo fanti-ashanti, área sudanesa, em África oriental, donde provieram escravos para o Grão-Pará. ESTÓRIA DE MARIA DE PAU Nhá Diniquinha, remendando a tarrafa, ia contando a história de Maria de Pau vestida de campo com todas as flores, vestida de mar com todos os peixinhos e vestida de céu com todas as estrelas. Os pescadores e as mulheres viam Maria de Pau fechada num tronco de árvore, de bubuia no mar. Foi achada moça de rara beleza, aparecia nos bailes do palácio real, que ninguém sabia quem era e de que nobreza ou linhagem vinha. O príncipe se apaixonou por ela, seu par efetivo de valsa e schotisch, e dançava que nem uma fada. Mas quando batia meia noite, a moça fazia um jeito, se escapulia do príncipe e sumia. Um dia o príncipe descobriu, era Maria de Pau. Maria se desencantou, o príncipe casou com ela e houve tanta festa no reino que até hoje estão dançando e comendo, que até as fadas e os anjos entraram pelas janelas do palácio, foram dançar e comer também.105 Estória narrada pela negra Nhá Diniquinha. Maria de Pau encontra-se com a vertente mais antiga coletada no Pará do clássico Pele de asno, de Perrau[t, que teria se inspirado no conto narrado por Gianfrancesco Straparola no volume Piacevoli Notti (“Noites divertidas”), publicado entre 1550-1553. O conto, de nítida inspiração européia, se expandiu para vários continentes. No curso da oralidade, os elementos se fragmentam, se associam a outros, dando origem a diferentes versões. No Brasil, Pele de asno aparece sob vários disfarces: “Pele de burro”, “Bicho de palha”, “Cara de pau”, “Maria de pau”. L. C. Cascudo faz erudita análise, indicando fontes.106 A ação do romance passa-se toda na ilha do Marajó, e o “texto-embrião”, conforme o autor, encontra-se na “papelada velha”, rascunhos datados de 1929. A segunda versão encontrada na literatura regional se deve a Samuel Sá, 1 972, oriunda dë Arca dos Engenhos, Benevides, proximidades de Belém107. Ambas foram examinadas no texto da comunicação “Contos populares da área amazônica” (publicada em Microedição, n.° 24, 2000), que apresentei no II Encontro de Folclore da Paraíba, João Pessoa, em novembro de 1977. O ciclo foi objeto de investigação acadêmica de Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos, na dissertação de mestrado Era uma vez— Memórias da infância/Memórias de gente grande, apresentada no Centro de Letras e Artes da UFPA, 1998, orientada por Maria do Socorro Simões, em texto mimeografado e no CD-ROM “Caleidoscópio amazônico — Uma aventura de imagens e cores”, UFPA, 1999. Três versões foram coligidas por professores e alunos do Centro de Letras. O corpus paraense se compõe, portanto, até agora, de 5 versões. ESTÓRIA DA CEGUEIRA D. Amélia [,,,J foi contando que “era uma vez” um cego. Tinha três filhos. Mesmo assim cego, gostava de caçar. Um dia apontou a arma na direção de um galho onde estava uma pomba. A ave bateu a asa e falou: — Não me atira que eu te ensino um remédio pra tua cegueira, meu velho. O velho abaixou a arma. — Então me ensina. — Mande buscar a folha do lilás no palácio das águas e ponha nos olhos. [...] O velho com a arma no ombro foi para a casa, cabeça baixa, pensando. {. ..j E contou para a mulher e os filhos, O mais velho então disse: Pai, vou buscar a folha de lilás. [.1 — Não vale a pena, meu filho, é longe... — Pai, eu vou. E o velho então perguntou: Bem... Queres muito dinheiro e pouca bênção ou muita bênção e pouco dinheiro? [...] — Muito dinheiro e pouca bênção, disse o filho mais velho. A mãe preparou um balaio de comida e deu ao filho mais velho que foi-se embora. Quando passava por uma casa muito pobre viu lá dentro uma mulher, muito doente, com um filho feridento, com fome. [.1 — Meu filho, disse a velha, que tu leva de comida? 96


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— Só pedra, mea velha, mentiu o rapaz. — Pedra há de ser, disse a velha. E quando ele, cansado da caminhada, arriou o balaio e foi comer, a comida era só pedra. [.. — Pedra há de ser, repetiu d. Amélia. E assim o filho do cego nunca mais voltou. Passado tempo, o segundo filho disse ao pai: — Já que o meu irmão mais velho não voltou, irei ver a folha do lilás. — Ora, não vai, meu filho. Ë tão longe. A pomba me enganou. [.. .1 O segundo repetiu: Pai, eu vou. — Então seja feita a tua vontade. Queres muito dinheiro e pouca bênção ou muita bênção e pouco dinheiro? — Muito dinheiro e pouca bênção. E...] Bem, quando o rapaz passava pela dita casa, a velha perguntou o que ele levava no balalo. [...] — Só carvão, mea velha. — Carvão há de ser... [...] Tal e qual como o mais velho, disse d. Amélia, — o segundo filho nunca mais apareceu. [...] — O filho mais novo ainda era um menino... E...] — Bem, o filho mais novo respondeu: Pai, quero muita bênção e pouco dinheiro. Os pais chorando abençoaram muito-muito o filho que partia, E...] — Ao passar pela mesma casa, o menino apeou do cavalo deu com a criança feridenta, tratou, pensou as feridas. [...] Repartiu com ele e a velha a comida do balalo. A velha, então, ensinou o caminho da folha de lilás. — Vá por esse caminho direito. Não se incomode. Se passar entre duas pedras, saberá que são duas comadres... A narradora deteve-se, sua memória falhava.108 Conto de remota origem, já se encontra no Pantschatantra, vulgarizado na Espanha nos livros de exemplos Calila e no DIrectorium vitae de J. de Cápua, por influência dos árabes. O príncipe indiano cego refugiou-se no isolamento da floresta, onde chorava livremente sua desgraça. Lá ficou largos anos e de tanto viver junto dos pássaros chegou a entender sua linguagem. Certa ocasião, deitado sob uma moita, ouviu um pássaro dizer para o filhote que a cegueira se curava com o suco de certa planta. O filho quis saber onde se encontrava esse remédio. E soube que se achava ali mesmo, ao pé da árvore em que estavam empoleirados. Ouvindo isto, o jovem saltou de seu abrigo, espremeu nas mãos as folhas que ali estavam, tão fáceis, à sua espera. Esfregou a massa verde nos olhos. E, ao abri-los, trêmulo de emoção, estava enxergando. No conto paraense, a planta milagrosa é o lilás, arbusto da família das oleáceas (Syringa), que tem uma flor arroxeada, reconhecida também pelo forte aroma. O episódio inicial pertence ao conto “Castillo de Irás y no Volverás”, 1 39, da coleção espanhola de Aurélio M. Espinosa. Aparece também, até o encontro da velha, no conto Pedro, José e João, coletado por Luís da Câmara Cascudo, Contos tradicionais do Brasil, 14. ed., 2000, p. 13231327, de S. José de Mipibu, RN, sem os desdobramentos subseqüentes. ESTÓRIA DO BICHO SOCUBA As moças faziam roda em torno da ginjeira109 carregada. Adaizira, então, contou que, certo dia, uma moça viu no sítio aquele pé de maniva e exclamou: Ah, se esse pé de maniva fosse um homem, eu me casava com ele. Dias depois, no mesmo roçado, lhe apareceu um rapaz que ela achou tão bonito, tão alvo... Namoro vem, namoro vai, a moça não demorou emprenhou. — Mas fala baixo, Adaizira. Olha se passa uma pessoa... Tu com essas conversas... — Que conversas? Não é coisa que pode acontecer com uma de nós? Não nascemos, para isto? — Para isto o quê? — De ficar assim. Eu, por exemplo... E Adalzira com as mãos sobre o ventre fez o tamanho da sua possível gravidez. [.1 — Mas bem. A moça ficou grávida, não foi? Pois quando ela teve o filho, o rapaz disse: nunca banhe 97


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o nosso filho — lá deles — na água fria. E ela assim fazia. A criança era alvinha que só uma tapioca, os olhos verdes como a folha da maniva. A mãe — lá dele — criava o filho como o pai — lá dele — mandava. Um dia, a moça teve que ir ao roçado e deixou o curumim com a avó. A avó era uma velha tão birrenta, tão sem paciência, que só fervendo a diaba velha dentro de uma chaleira. A criança na mão da velha principiou foi a chorar. Talvez, e isto é por minha conta, talvez por via de só olhar a cara da velha. A avó — lá da criança — fez uma papa de beiju cica e deu pro neto. Quall Nada do guito se calar. A velha não pôs dúvida. Fez foi encher uma tina dágua, tirou o penso da criança e meteu o bichinho dentro da água fria. Paf! Pois a criança não se desfez todinha na água tal qual a tapioca? Pois foi. A velha aí ficou com cada zolhão em cima da água e disse: “hum, metida com meuâ! Teve filho com bicho”. A moça tinha tido filho com um pé de maniva. — E depois? Quando a moça voltou? Acabou-se o que era doce. Não sei mais de nada. E adeus, que quero entregar estas amaldiçoadas cartas pra aquele pé de maniva. Mas só sei que o filho que tiver dele,.. Hum! Credo. Podia meter em dez tinas dágua. O bicho era ali, de carne e osso,11° Bicho socuba, verme dotado de anéis de várias cores. Só come a folha da sucubeira. Sucuba (Plumiera af. FaIIax Mueli,); sucubeira, árvore pequena que produz um látex branco. A seiva lactescente é considerada vermífuga. Seus frutos possuem muitas sementes aladas. A narrativa parece ser tipicamente marajoara. Portanto, conto de nítida inspiração amazônica. Não encontrei, nas séries que possuo e pude consultar, nenhuma outra semelhante em seu contexto. Dividindo-o é possível reconhecer a lenda da origem da mandioca, que se encontra em outras fontes da literatura oral paraense. MEUÃ, GENTE METIDA COM BICHO Voltando a Lucíola, veio-lhe esta indagação como um choque: Ou Lucíola não é mais donzela? [...] Foi aí que a costureira se lembrou de lhe contar da prisão de um pajé na Madre de Deus, começou a falar nos meuãs aparecendo de certa época para cá no Arari. — Lucíola, tu acredita em meuã, em gente metida com bicho? E para surpresa da moça, foi contando o parto da cabocla que des-cansou só vermes ao pé da sucubeira. — Espere. Vou fazer um tacacá pra nós. Um compadre meu lá das Pindobas trouxe tapioca e tucupi. A senhora fica. Passa o resto da tarde comigo. Dadá foi pra casa do SaIu. E olhe; lhe conto também o que se deu com uma conhecida minha. Assim foi que me contaram. Hum... A gente vive aqui e vai se impressionando. Ah, D. Doduca, essas coisas podem acontecer com as moças de dezoito anos, novas... E com o tacacá no fogo, excitada, Lucíola resolveu contar o que sucedeu a Diae que conhecera há tempos, muito mocinha ainda, quando veio se crismar na passage do arcebispo pelo Arari. Diana era a filha mais velha de seu João Lúcio de Oliveira, ue família que morava no Anajás, vivendo de um gadinho e peixe salgado. Depois qe perderam tudo que tinham naquele rio, foram morar no Maguari. Uma vez, numa fes:e de aniversário, às nove da noite, após a ladainha, a casa cheia, quando começaram dançar, Diana viu subir no jirau um rapaz desconhecido. Entrou no salão dirigindo-se logo para ela como se a conhecesse de muito tempo. Foi a orquestra tocar, ele tirc Diana, e tal era a graça do rapaz, o dançar e a conversa — cheirava, entãol — que Diara não mudou mais de cavalheiro. A moça parou a narrativa, para tomar fôlego. Mexeu-mexeu com a colher de pau na panela do tacacá e voltou à história. D. Doduca junto ao fogão, escutava, fazendo c molho de pimenta. — Bem, disse Lucíola. Quando deu meia-noite o rapaz falou assim: Diana, estou muito cansado. Da viagem, talvez. Remei foi muito pra chegar aqui. Agora eu quero que me arrume um quarto, me feche nele, tire a chave e guarde sem mostrar e dizer a ninguém. Como o rapaz pediu, a moça fez. Deixe estar que havia outra moça, de apelido Miúda, acompanhando todinho c namoro. Viu o jeito, já muito na vista, deles dançarem e quando o moço entrou no quarto. Deixou passar um tempo, experimentou se a porta estava mesmo fechada, empurrando-a com o ombro na passagem para a cozinha. Fechada. E entrou a tocaiar Diana. Tocaiou, tocaiou, até se aproveitando de uma distração dela tirou-lhe a chave. Rápida, abriu o quarto e recuou de um salto, gritando ao ver, enrolada na rede, uma negra e enor98


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me cobra dormindo, Diante do povo que se amontoou, mund lado, a cobra ergueu então a cabeça com dois olhôes amarelos que brilhavam como relâmpagos e falou ainda na voz do rapaz: — Ah, Diana, tu me traíste. Mas tu me pagas. Desenrolando-se toda, crescendo imensamente, a cobra soltou um urro e arrastou consigo a casa cheia, o jirau, o sítio inteiro, as embarcações para o fundo.111 Outra estória amazônica, em que se reconhece o episódio do boto que entra para dançar nos bailes sitianos e os contos de encantamento, com o desfecho trágico para o encantado. Dalcídio Jurandir usa do substantivo “meuã”, puro tupi, segundo Chermont de Miranda, que significa carantonhas, visagens, caretas, esgares para amedrontar ou para assombrar. .:“A guariba faz meuã ao caçador”. Este significado está diluído no Marajó, aproximando-se aí do “encantado”, o ser que tem ou pode ter dupla existência, formando um panteão de crendices. “Encantado”, define E. Galvão (Santos e visagens, 1954, p. 198) são os sobrenaturais, companheiros do fundo, advertindo que o conceito não se aplica aos santos. MÃE DO MATO (1) Antônio pôs o dedo no meio da testa alisou, alisou, até se lembrar, contando que era uma vez uma mulher que morava com o marido lá pros centros. Tinha um casco na beira do rio. Viviam ali. A mulher, sempre que os caçadores atiravam no mato, gritava: dá cá um pedaçol Era ouvir um tiro: dá cá um pedaçol Assim. Quando o marido foi por terra, fazer umas compras, ela ficou só. Que atiraram, ela pediu: dá cá um pedaçol Nisto lhe apareceu aquele caboquinho trazendo duas peras na mão, peras de caranguejo, e que abaixou no chão. Deu bom dia, Depois tirou um quarto de veado de dentro da pera e disse para a mulher: está aqui teu pedaço. A mulher tinha um filhinho. Quando viu aquilo, o menino ficou desinquieto. Foi espiar dentro das duas peras: ah! E viu os bichos vivos, janaí, cheios de janaís com um olho vivo. O menino veio segredar para a mãe o que tinha ali. A mãe compreendeu: Olha, vai pra casco, Tu grita, tu não vem. O caboquinho, ali. Ela pegou, disse: Mas se abanque que vou lhe fazer um café. Meu filho vai lavar o coador de café no rio. O filho foi, de lá gritou: — Meu senhor, disse ela ao caboquinho, me dê licença, vou ver meu filho. Chegando lá, o filho pegou no remo, ela no outro. Então se ouviu da barraca o grito da mãe do mato já correndo para a beirada: É o que te vale! E assim mesmo soltou os janaís, muitos, que o rio ficou escuro, com os olhos de fogo deles em cima dágua, E danados de fome, nadaram nadaram um pedaço atrás do casco que levava mãe e filho. É o que te vale, gritava a mãe do mato. Mãe e filho se sumiram no cabo do remo pelo rio abaixo. É o que te vale!112 Mãe do Mato é superstição do Pará, anota L. O. Cascudo (Dicionário do folclore brasileiro, p. 455), que abona transcrevendo texto de Ignácio Baptista de Moura: Notei que, nos acampamentos feitos dentro das matas, os trabalhadores, ao se encaminharem para o serviço, desarmam as camas, com medo de que a velha Mãe- do-Mato, protetora dos animais fabulosos, venha colocar em cada leito algum graveto de madeira, como sinal que possa fazer o efeito de morfina, prostrando em sono profundo o incauto que ali se deitar, predispondo-o a ser devorado por esses animais [...]h13 Confunde-se com a Curupira ou Caamanha (Stradelli, Vocabulário Nheengatu, p. 386), ser fantástico, de inequívoca inspiração indígena, mas que também recebe atributos e formas físicas pertencentes a outros entes ameaçadores procedentes da Antiguidade Clássica dos europeus, aqui desembarcados com os conquistadores e povoadores da terra americana. A narrativa de Dalcídio Jurandir justapõe episódios de outros contos e lendas amazônicos como o conto “A velha gulosa”, coletado por Couto de Magalhães e reescrito por José Veríssimo. MÃE DO MATO (2) {...]Antônio conta... Três caçadores sumiram-se no mato, sumiram-se que foram longe. E encontraram um fígado no moquém, eh, que recendia. Abria mesmo o apetite. Um dos caçadores, não resistindo, comeu. 99


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Também ele que acabou de comer, a barriga principiou a inchar e a piar: tooôooô... Bem, daí, continuaram caminho os três caçadores. Quando o bicho chegou ao lugar do moquém e não achou o fígado, deu foi um urro, que se ouvia nas cabeceiras, furos, ilhas. Os três caçadores caminhavam. O bicho, atrás, naqueles gritos: me dá minha embiara, me dá minha embiara, que eu te faço marupiara. [...j a mãe do mato, que era o bicho, ia fechando os paus da mata, caiu a noite, os caçadores, coração pela boca, fizeram alto. E atrás — me dá minha embiara que eu te faço marupiara! — o bicho se aproximando. Os perseguidos subiram num pau uma desconformidade de alto. Mas o outro, o que comeu, de barriga grande e piando, pôde subir? Ficou foi ao pé. Aí chega a mãe do mato, cega que nem viu o da embiara ali, dá seu grito, sacode a árvore, os dois lá em cima que aflição; a arvore ia e vinha. estalava, e em volta trovejava nos arvoredos fundo, grosso e desabando os paus: Me dá minha embiara que eu te faço marupiara!’ Passou um tempo, a árvore sossegou. Voltava o mato a espalhar as suas variadas conversações e bate-bocas de bicho, folhagem, vento e almas. Como um paneiro de farinha de tapioca que se abre, assim era o céu, entornando as suas estrelas. Quando foi pela madrugada, os dois caçadores só viram um sossego e um rainho de sol os espiando entre as folhas deu bem na testa dum, Desceram e acharam ao pé do pau, tudo muito branco e limpo, os ossos do companheiro.114 Mãe-do-Mato é a caapora, duende amazônico representado por uma velha que vive no interior das matas, defensora e protetora da floresta e da caça. Confundida às vezes com o Curupira, que tem as mesmas funções, mas é um caboquinho, com os pés voltados para trás. L. C. Cascudo remete para o verbete “caipora”, com erudita análise. O estribilho “Me dá minha embiara / que eu te faço marupiara!” rima duas palavras nheengatu: embiara = presa, o que se colheu na caça, na pesca ou na guerra; marupiara pessoa feliz na caça e na pesca, antônimo de panema. ESTÓRIA DE MARIA SABIDA Escoou-se um silêncio. — Surucucurana cantando, sa gente. Que aviso é? — Deixe a cobra, é a distração dela. Ela que não vai nos contar a estória, é a senhora. — Enfiei o fio na agulha. Vou contar o que a surucucurana está me dizendo de lá dos paus, oiçam. Tu acompanha com essa tua viola, meu velho? — Não fosse lhe faltar com o respeito, dizia que a senhora... — Confianças, menina! Confianças...! ver se desatrapalho a memória. Da Maria Sabida? A viola cessou. — Maria Sabida... Nhá Fé mascou seu tabaco como se tirasse dele a visão de Maria Sabida: Tinha duas irmãs. Roça, o pai delas fazia e apanhava camarão na praia. (O aquela-menina... Bebendo água com a lamparina acesa na mão?) Um dia, o pai de Maria Sabida resolve ir para a mata real cortar madeira. — Deixo vocês três aqui até que eu volte. Olhem olhem o que vão fazer. Tu, Maria Sabida, sendo a mais velha, põe cobro nas tuas irmãs. Aqui estão três manjericões, um pra cada. Aquela que deixar murchar o manjericão, perde a fala. (Eh gente, chovendo. É recado da lua: de com pouco estou saindo. Seu Pernambuco me disse ontem que no sertão dos diamantes, quando chove, é só virar o cinturão do avesso a chuva passa.) E sim: Maria Sabida tanto que aconselhava as irmãs, quem disse? Os dois manjericões murchando, os dois manjericões murchando. Tanto foi, morreram. (Boa noite, mestre Farausto, que é que vem trazendo nesse frasco? A pororoca?) Morreram. O maniericão da Maria Sabida, não. Igual àquele meu que aí um tempo eu tive... Que tanta bebeção d’água essa, aquela-menina, mea estória está salgada? Só no pote, só no pote, tua sede é mais sono. Ou saudade do Avelar? Não bate assim no pote por fora que senão acorda a mãe -d’água. Estou é te dando sono, te deita, lugar de sono é rede. Onde eu estava? Surucucurana, me sopra aqui no ouvido, onde? Ah, sim. E foi que lá um dia pois não aparece o príncipe? Coberto de ouro. (Dormir, meu velho, põe no saco a tua viola,) 100


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Coberto de ouro. Por onde passasse, já se sabia, as cunhatãs que te contassem. Com as duas irmãs da Maria Sabida assim deu-se. Foi arriando a asa em volta das duas, brincou com uma, brincou com a outra, adeus donzelas. Que foi, aquelas meninas, botando esse teu zolhão em cima de mim vendo o príncipe? E sim: as duas, não sendo mais, não se conformavam que Maria Sabida guardasse a jóia dela. Maria Sabida, com o seu manjericão, faz de conta que não está aí perto dela nem a sombra do príncipe. O manjericão dela? Pena que vocês aqui deste nosso triste copiar não vissem. As irmãs procuraram toda arte de atrair a mais velha para o príncipe. Por fim se fizeram de doentes, se fingiam mal de morte, ataque em cima de ataque na esteira, ai, Marial te condói, vê um remédio na casa do príncipe, nossa irmãzinha! Maria Sabida, ‘por isso, não”, foi. O príncipe toca a soprar a música dele no ouvido de Maria Sabida. Ai que não se cansava. Cada palavra linda, cada queixa sentida. Maria Sabida, entrava por este ouvido, saía pelo outro. Então os dias passavam, as duas irmãs se desesperavam, o príncipe de goela seca. — Maria Sabida, me dá desse teu beijo um gole. — Lhe dar um gole do meu beijo não me atrevo. O senhor me dá, mas só em riba dum véu. Me cubra este meu rosto com um véu, só então sim, Me beije em riba do véu. O príncipe assim fez, beijou em riba do véu. (Não disse? Que era só passar a chuva, a lua?) E sim: o príncipe meio cismou que fosse arteirice dela, saiu-se: — Me deixa ao menos que eu deite a cabeça na tua coxa, Maria Sabida. (Ao menos por cima do vestido, creio que ele também falou.) Por isso não, lhe dou licença, o que ela respondeu. O príncipe, agora siml mas cansado de tantos dias foi foi pegando num sono, a cabeça na coxa de Maria Sabida. (Sente, me deixem ao menos molhar a goela enquanto o príncipe está roncando, sim?) E sim: devagarinho, Maria Sabida foi, tirou a coxa, botou a cabeça do adormecido num chão de folhas. No que ele se acordou: — Maria Sabida, Maria Sabida! Corria o príncipe pelo mato atrás dela, deixa que eu te dê meu beijo sem ser em cima do véu! Vem cá, Maria Sabida! Aí Maria Sabida parou, fez que deixou, quando o príncipe vai estalar o beijo na face dela, Maria espreme bem nos olhos dele um sumo. Sumo este que o príncipe se viu foi longe, só abriu a vista no fundo do lago, montado no cavalo-marinho, o sumo roxo verde verde roxo lhe escorrendo pelo corpo. — Devera, Nhá Fé? Dá sua palavra? — Axi, quem fala! Tu que me andaste contando outro dia ao pé do forno de farinha que cincoenta porco do mato entraram no buraco do pau, as perninhas dos bichos varando pelos buraquinhos do pau, assim os bichos carregavam o pau andando, todos com as perninhas de fora até chegarem em casa, quem que fala... — Não foi a senhora, Nhá Fé? Me parecendo que foi, sim, a senhora. — Não dê cavaco, Nhá Fé. Deixar a estória pela metade, não presta. E sim: Ora vai que as duas irmãs pois não apareceram de filho? Aí ah que se queixavam, pediam a morte, os dois curumins mijando em riba da palha. Maria Sabida não teve conversa, conversa rouba tempo, se virou numa velha, cambeta, põe os gitinhos dentro do balaio, cobriu de flores, rumo da casa do príncipe. — Meu príncipe, ora vós me dê um agasalho só por esta noite, um zinho de comer, sim? — Criado, dá comida pra essa velha. A velha se regalou. — Conte da comida que ela comeu, Nhá Fé. Que foi? — Aquieta aí tua gulodice, esfomeada. É mais fome do Avelar, não? A velha se regalou. No que se viu só, entra na alcova do príncipe, deixa debaixo do leito de ouro e cortinado o balaio com os dois sobrinhos, pois me esqueci de vos dizer que eram machos. Maria Sabida saiu na carreira largando os disfarces de velha pelo caminho, O príncipe, vindo da caça, escuta aquele choramingo na alcova. — Tocando, meu velho, de novo? Mágoa de mim que tu espreme dessa tua viola? O Maria Sabida! falou o príncipe. Sempre tu. Deixa teu pai chegar. Passado um tempo, o pai chega da mata, bem do satisfeito, madeira deu, embrulhado no bolso um 101


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bom boró. — Os manjericões? Ah aí que as duas se pegaram que se pegaram com a Maria Sabida. — Mana, manazinha, nos dá o teu. De conta que o teu é os nossos três que assim se juntaram, sim? Maria Sabida entretia o pai mas o pai: — Os manjericões? — Nosso pai! Maria Sabida tanto fez tanto fez que o pai a língua não arrancou das duas que as duas bem mereciam que arrancasse. Ora vai, o príncipe voltou: — Maria Sabida, vou te pedir a mão. Mas na noite do casamento, te degolo, aceitas? — Se aceito. O príncipe pede a mão da moça. O pai dela: — Se o senhor acha mea filha suficiente... Os enxovais? O primeiro, Maria Sabida mandou de volta. O segundo, Maria Sabida também não. O terceiro, Maria Sabida espichando o beiço: — Este até que arremedeia. Moradia, que fosse uma bem grande. A primeira não servia. Não se agradou da segunda. A terceira arremediava. Chega o dia do casamento. Deixe que Maria Sabida teve cabeça de fazer uma boneca igualzona a ela, do tamanho mesmo dela. Na noite do casamento, deita a boneca no leito das núpcias com a cabeça presa ao fio que a noiva, debaixo do soalho, bem debaixo do leito, fica segurando. O príncipe entra na alcova: deitada, toda de branco, a cobiçada Maria. E o príncipe foi falando de coisas naturais, Maria, te lembra disso, Maria, te lembra daquilo... Dela, Maria Sabida, só a cabeça se mexia, Até que o príncipe num só golpe degola a esposa. Lambe a faca, oh como foi! Pra que que fiz semelhante horroridade! Se o sangue dela é um puro mel, doce toda é a sua pessoa. Maria Sabida, que ouvia tudo bem debaixo do soalho, corre para a casa do pai, dançando em roda do manjericão dela. O príncipe no que se dá conta foi no rastro, foi atrás: — Maria... — Não, meu príncipe. Maria Sabida já morreu para o senhor. O senhor degolou a sua mulher. Viva eu aqui e vós lá como puder. O príncipe se fez um errante, flechando o ar à toa à toa, olhando os ocos de pau na fiúza de encontrar a Maria Sabida. Um dia passou por um olho-d’água, ficou a vida inteira olhando o olho-d’água. (Te cala, Fé, gruda a boca, que estou nestas noites estoriando demais). Tira esse teu sentimento da viola, meu velho, meu tipiti chorão, meu velho cochiloso. Aí o senhor aquele-moço, nos conte uma da cidade, senão paga prenda, o senhor que é de lá e tem o falar de quem decorou a tabuada. Ai de mim que nunca fui lá na cidade, a vida inteira me preparando para passar o Círio, chega ano passa ano, cadê, tu foste? O olho-d’água não me larga. Puxe aí um assunto da cidade, aquele-moço, o senhor que é tão de lá, sim? O padre-nosso, agora, é o senhor que reza.15 Ribanceira é o último romance da saga amazônica de Dalcídio Jurandir. Estória colada logo no início, entre as páginas 16 e 20, é talvez a melhor recriação do escritor. Admiravelmente intertextualizada. Começa num clima de surrealismo mágico: a surucucurana, lá dos ocos dos paus, sussurra a estória que Nhá Fé vai narrar. E ela ainda pede ao marido (‘meu velho”) que acompanhe a narrativa ponteando a sua viola. A narradora está atenta a todos os movimentos dos ouvintes, em volta, quem chega, quem sai, interrompendo a narrativa e fazendo observações acidentais, aqui e ali. Notar o linguajar caboco, palavras e expressões. Rosa Assis, autora de dois ensaios sobre a fala do caboco em Dalcídio Jurandir — O vocabulário popular em Dalcídio Jurandir Belém, 1992, e A fala ‘caboca’ em Passagem dos Inocentes, Belém, 2002 — explica: Narrador fluente e polifônico, Dalcídio Jurandir tem o dom de equilibrar com segurança as linguagens literária e popular. Assumindo a condição de narrador-caboclo, leva o leitor a imaginá -lo mais falando (contando mesmo, como se fosse ao vivo) do que escrevendo sobre os casos e as coisas do Pará. Assim, o linguajar do homem amazônico, notadamente o do paraense, que é parte fundamental nesses romances, revela com precisão a vida e os costumes de nossa gente interiorana, do nosso genuíno “caboco” paroara, marajoara, em toda a sua expressão. Maria Sabida é conto de remota origem européia. Forma vasto ciclo com elementos oriun102


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dos de várias literaturas. As fontes mais antigas encontram-se no Pentamerone, de Giambaifista Basile, II Dia, Conto IV, bibliografia referenciada por N. M. Panzer, 1, 256, e elementos oriundos das Mil e uma noites, dos árabes. A bibliografia brasileira não é abundante. A versão mais antiga, coletada em Sergipe, acha- se em Sílvio Romero, Contos Populares do Brasil, 3 ed., 1954, p. 93/98, nota adicional de L. C. Cascudo, que remete às versões portuguesas de Teófilo Braga, Maria Sutil, Contos Tradicionais de Portugal, 1, 74-8; Consigliere Pedroso, Maria Fina, Contos Populares Portugueses n.° 7; Bernardino Borba, Maria Sabida, Contos Populares de Évora, Revista Lusitana XXII, n.° )OôJl; Francisco Xavier d’Ataíde Oliveira, Dona Maria, Contos Tradicionais do Algarve, E Adolfo Coelho, Esvintola, Contos Populares Portugueses e uma versão aproximada, narrada por Luiza Freire, de Ceará Mirim/RN, coleta do próprio L. C. Cascudo, Maria de Oliveira, Contos Tradicionais do Brasil, 1 4 ed., 2000, 141. Indica ainda versões espanholas de Aurélio M. Espinosa, Cuentos Populares Espaõoles, II, 61/78, com bibliografia e análise, russas de Afanasiev e a coletânea de Alfredo Apell, assim corno a bibliografia de Bolte e Polivka. Neste ponto, volto ao primeiro romance de Dalcídio Jurandir, Chove nos campos de Cachoeira, onde se inicia a saga de Alfredo, vocação despertada aos 20 anos de idade, quando construiu a primeira versão, e que só terá oportunidade de se mostrar em 1 940, quando conquistou o prêmio Vecchi-Dom Casmurro, recebendo a notícia em Santarém. Ali se encontrava na tarefa do recenseamento. Tinha então 31 anos de idade, A construção desse romance lhe custara muito. O prêmio inesperado carecia de comemoração. Com seu amigo Cronge da Silveira, foi tomar tarubá, bebida da terra, no barraco de dona Ana, no bairro da Aldeia, recanto pitoresco e pobre. Dalcídio Jurandir construiu um vasto painel da cultura popular paraense. Fruto de paciente e metódico trabalho. Em 1 960, obra ainda inacabada, confessou ele à jornalista Eneida: “Há mais de trinta anos venho recolhendo e acumulando experiências, anotações, estudos, pesquisas, memória, imaginação, indagações, faço ou não faço, no sentido da obra”.116 Tudo guardado em pastas e cadernos. Aí, certamente, encontra-se o máximo tesouro descoberto no chão do Marajó, acervo inestimável do Instituto Dalcídio Jurandir. As fadas morreram, o encanto vem do tucumanzeiro da Amazônia, hoje simbolicamente plantado no jardim da Casa de Rui Barbosa. Para os meninos do mundo inteiro conhecerem o carocinho que tem a magia, sabe dar o Universo a Alfredo. A bolinha mágica e infatigável dá um encanto maior, varinha de condão que as fadas invejariam. Levava Alfredo do insondável e imenso mundo dos meninos para onde quisesse levar. “Era mais poderosa que a lâmpada de Aladino, que ele não conhecia.” E “tinha o poder maior que os três Deuses reunidos”. O MENINO EM BUSCA DO CAROÇO DE TUCUMÃ117 Tucumã, astrocaryum tucuma, é o fruto do tucumêzeiro, palmeira da região amazônica de mil e uma utilidades. Dos frutoa oleosos, socados ao pilão, tira-se vinho apreciado pelo caboco. Os caroços não têm utilidade imediata. Ovóldes, duros, medem aproximadamente 4 x 3 cm. Das fibras do tucumãzeiro podem-se fazer redes de pesca, esteiras, tapumes, cordas, bolsas e até redes de dormir, Das palmas, o taperi, casa do caboclo, erguida à beira d’água. O nome popular é tucum. Este texto foi apresentado no “Ciclo de Palestras pela Fundação do Instituto Dalcidio Jurandir”, na universidade do Estado do Rio de Janeiro, em lulho de 2003. 9JuRANDIR, Dalcídio. Chove nos Campos de Cachoeira. Rio de Janeiro: vecchi, 1941, p. 13. 2O JURANDIR, Dalcídio. Obra clt., p. 13. 2 MAGALHÃES, Couto de. O selvagem, 1876, p. 172-174, Dalcídio no chão do Marajó. Ali criou o seu universo e escreveu com prazer, candura e desencanto, com obstinação ingênua e saboroso desgosto, e viveu a mais comprometida e amarga ilusão literária, a partir da experiência do menino Alfredo. Disse ele que o caroço do tucumã, jogado na palma da mão de Alfredo, levava o menino ao diálogo com sonhos, ambições e miragens. Esse jogo solitário, no campo ou debaixo do ingazeiro, se tornou em fermento romanesco. Assim falou da sua aventura literária aos companheiros Antônio Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão, entrevista publicada na revista Escrita, ano 1, n.° 6, 1976,118 O caroço do tucumã é a metáfora usada por Dalcídio Jurandir para explicar o fenômeno da criação. Alfredo, menino, estava cansado, [...] mais cansado ainda talvez porque perdera o caroço do tucumã no princípio dos campos queimados. O caroço saltara da mão e se escondeu num buraco de terra. Então não podia compre103


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ender, nem mesmo fazia grande esforço para isso, porque voltava mais fatigado, como que trazendo nos ombros a própria noite para o chalé.119 Ele voltara com a noite dentro do carocinho e desejava “se embrulhar na rede e ficar sossegado como quem está feliz por esperar a morte”.120A vida tem um sentido binário entendido como a luta dos contrários, como relação dialética da própria natureza. Os campos não voltaram com ele, nem as nuvens nem os passarinhos. Ele voltava donde começavam os campos escuros e levava a noite presa no carocinho. Como na estória referida por Couto de Magalhães, “Como a noite apareceu”: A filha da Cobra Grande casou com o filho do tuxaua, mas não queria dormir, porque sentia falta da noite. Naquele tempo, só havia dia. Só homens e coisas. Nada de bichos. Quem tinha o segredo da noite era a Cobra Grande, que morava na cabeceira do rio: então resolveram mandar uns índios para pedir-lhe a noite de presente, pelo amor da filha, Eles foram lá e voltaram com a noite presa dentro de um caroço de tucumã. Durante a viagem, curiosos, ouvindo certo barulhinho, quebraram o caroço: a noite estourou e eles viraram macacos.121 Do caroço do tucumã brotou Chove nos campos de Cachoeira, matriz de toda a obra. Com o tucumã na palma da mão, foi capturando almas, cenas, figuras, linguagem, coisas, bichos, costumes, a vivência marajoara que ressoa, miudinho como num búzio, em dez volumes, a dimensão do seu universo marajoara — “a única obra de ficção verdadeiramente significativa que a Amazônia já deu à literatura brasileira”: Chove nos campos de Cachoeira — primeira versão escrita em 1 929 — reescrito em 1 939 para concorrer ao prêmio instituído pelo jornal Dom Casmurro e pela editora Vecchi do Rio de Janeiro. Foi premiado, concorrendo com quase uma centena de escritores. A premiação determinou sua ida para o Rio de Janeiro, onde se radicará definitivamente. “E o engraçado” — diz ele — “foi que em Belém deram a notícia da vitória do romance Marinatambalo, mandado para o concurso pelo Maciel Filho e o meu querido Abguar Bastos, de São Paulo.” Por sinal, classificado em 4° lugar; • Marajó — concluído em 1932, revisto em 1939 e publicado em 1947; • Três casas e um rio — escrito em 1948, publicado em 1958; • Belém do Grão-Pará — 1960; • Passagem dos Inocentes — 1 963; • Primeira manhã — 1968; • Ponte do GaIo—1971; • Os habitantes — concluído em 1967, publicado em 1976; • Chão dos Lobos — concluído em 1968, publicado em 1 976; • Ribanceira — concluído em 1 970, publicado em 1978. Os dez volumes constituem uma única história, imenso painel que descreve a vida social e os costumes no Extremo Norte, tendo como cenário e palco as pequenas comunidades da Ilha do Marajó e Belém do Pará. Esse conjunto ele chamou de Ciclo do Extremo Norte. Marajó situa-se de modo especial no ciclo como romance desligado da trama do menino Alfredo, filho do branco major Alberto e da preta Amélia, Fora do ciclo, produziu outro romance de excepcional significado literário e social, Linha do Parque, “o único romance proletário digno desse nome que já apareceu no país”, afirmou Homero Homem. Em suma: “Uma obra escrita com paixão, humildade, disciplina e talento, por um homem íntegro, fiel às suas raízes e à sua profissão de escritor. Mas, acima de tudo, uma obra bem escrita, no exigente sentido que essa expressão deve ter”. Não vou repisar episódios já conhecidos de sua formação e iniciação literária. Vou assinalar que a Revolução de 1930 também foi um marco em sua vida. Dalcídio Jurandir naquela altura já havia definido sua vocação literária como autêntico intelectual orgânico. Epal Não se espantem. O perfil do intelectual orgânico foi elaborado pelo pensador italiano Antônio Gramsci (1891 -1 937). Gramsci classifica os intelectuais em intelectuais orgânicos, de que qualquer classe progressista necessita para organizar uma nova ordem social, e intelectuais tradicionais, que se consideram uma classe ou comunidade à parte, comprometidos com a situação estabelecida, a ordem que remonta a um período histórico mais antigo. Deve-se, portanto, discutir o papel dos intelectuais na sociedade, pois cabe a estes, num certo sentido, a organização da cultura e a elaboração de políticas culturais. Gramsci era natural da Sardenha, ilha no mar Mediterrâneo, vizinha da Córsega. Entre a Sardenha e a península itálica, a perder de vista, o mar Tirreno, Filho da camada mais humilde 104


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da classe média provinciana, Gramsci fez os estudos formais completos e, com bolsa de estudos, chegou à Universidade de Turim, onde eram vivas as discussões das idéias e a fermentação de ideologias. Impressionado pelo movimento da classe trabalhadora de Turim, tornou-se militante do Partido Socialista e começou a colaborar nos jornais. Em 1921 ajudou a fundar o Partido Comunista Italiano. O caminho de Dalcídio Jurandir guarda algumas semelhanças. Ele veio de condição mais modesta e sua universidade foi a vida. De comum, nascer numa ilha, não tão distante do continente, mas na foz do rio-mar, donde se pode ver, no horizonte e na maré baixa, as luzes de Belém, Nasceu no dia 10 de janeiro de 1 909 em Ponta de Pedras, filho de Alfredo Pereira e Margarida Ramos. Criou-se em Cachoeira, onde o pai exerceu o cargo de Secretário da Intendência Municipal. Aí aprendeu as primeiras letras em casa com a mãe. A cronologia da vida registra as dificuldades de sua formação e ele conta como interrompeu os estudos no segundo ano do Ginásio — onde, aliás, não encontrou professores que o estimulassem — por haver contraído sarampo. Virou então vagabundo de subúrbio em Belém, morando na barraquinha de Dona Lulu que lhe dava comida, luz, para escrever versinhos, e um sapato de quando em quando. Em 1928, com 19 anos de idade, resolveu viajar para o Rio de Janeiro. Embarcou na terceira classe — o porão — do costeiro Duque de Caxias. No Rio de Janeiro viveu dificuldades e a experiência da exploração do trabalho intelectual. Resolveu voltar para Belém no mesmo costeiro. Ganhou a passagem de volta trabalhando na copa. O mais está contado na Nota Prévia publicada na 1a edição do Chove nos campos de Cachoeira, Escreveu: “é uma página que dói, dói muito, dizendo como é que se escreve no Brasil e como vive, humilhado e esgotado, o escritor independente na província”. “E o carocinho de tucumã fez Major escrever uma carta ao intendente pedindo dinheiro, mandando falar nos estudos de Alfredo”. II As condições de vida social e material de Belém daquela época não permitem traçar equivalências entre a formação intelectual do sardo e a do caboco marajoara, que passara pelas mais desestimulantes experiências. De comum, o encontro da mesma filiação ideológica. Impressionado pelo movimento da classe trabalhadora de Belém, Dalcídio tornou-se militante do Partido Comunista Brasileiro e começou a trabalhar como intelectual orgânico por uma nova ordem social. A distante e medíocre capital do Grão-Pará sempre esteve atenta ao que acontecia no Brasil e no Mundo. Pode-se observar este fenômeno desde os tempos mais antigos. Belém ostenta singular experiência intelectual, desde os tempos da Revolução Francesa, a Americana, a Bolivariana e, com mais entusiasmo e participação, os pronunciamentos republicanos em Pernambuco, em especial o da Confederação do Equador. Até Belém chegaram, por meios e modos diversos, as idéias comunistas de Babeuf, guilhotinado em 1 797122 Um corpus de idéias fermentou os impulsos libertários dos Cabanos, em 1835. Se as concepções religiosas se propagam com tanta facilidade, por que as concepções políticas não se propagam? Esta é a matéria do livro Memorial da Cabanagem: esboço do pensamento político-revolucionário no Grão-Pará123, com farta documentação, e dados adicionais no livro Marxismo, socialismo e os militantes excluídos, de 2001. Certo, a nossa história conta basicamente a história da exclusão social e intelectual. Ela tem sido contada principalmente pelos intelectuais tradicionais no seu afã de preservar o status quo. No estudo do pensamento político revolucionário — a Cabanagem é uma referência histórica da fusão das contradições — chego às últimas gerações de intelectuais proletários, principalmente ao grupo que se formou em torno do editor pernambucano Francisco Rodrigues Lopes (1878-1946), que tinha sido operário gráfico em Belém e em 1 914 conseguira instalar sua primeira tipografia na qual imprimiu o Jornal Pequeno, dito vespertino “socialista e independente”, dirigido pelo poeta Olívio Raiol. Esses pioneiros ainda manifestavam precária formação ideológica, indecisões e vacilações. Esse socialismo limitava-se às reformas dos costumes; no seu programa dizia: “Não opinamos pela reforma total por acharmos absurdo”; pregava a humildade. Na última página iniciou a publicação do romance Os emancipados, de Fábio Luz. Francisco Lopes deu dimensões inesperadas à literatura popular no Pará, com larga repercussão em toda a Amazônia e no nordeste: especializou-se na publicação de folhetos de modinhas, e versos da chamada Literatura de Cordel. Em 1919 lançou a revista quinzenal Guajarina, que atraiu a inteligência moça do Pará: Peregrino Junior, Osvaldo Orico, Olívio Raid, Jônatas Batista, Eneida, Ernani Vieira etc. O momento propiciava a revitalização das lutas proletárias. O conflito europeu estava cer105


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cado de conflitos ideológicos; a revolução soviética em 1917 acabara causando tremendo impacto. Os acontecimentos do leste europeu apressaram a organização, em março de 1918, da III Internacional, orLênin. A repercussão foi imediata no Pará. Os gráficos são particularmente motivados pelas novas idéias. Classe bastante politizada, Por tradição, no Brasil, representa quase uma espécie de vanguarda proletária. A imprensa proletária ganha novo alento com A Revolta, dirigido pelo anarquista português Marques da Costa, e O Semeador, dito “órgão de propaganda sociológica”, que refletiu as idéias emanadas da internacional comunista. As greves de 1918, no Pará, revelaram a força da União Geral dos Trabalhadores. Pelo mês de outubro ocorreram outras greves. O movimento foi iniciado pelos operários navais de Val-deCans, das oficinas da Port-of-Pará, abrangendo mecânicos, metalúrgicos, carpinteiros, calafates e caldeireiro de ferro, e logo atingiu outras categorias, coordenada pela União Geral dos Trabalhadores. Em 1918 o operário gráfico Bruno de Menezes (1894-1963) adere ao anarquismo e passa a se dedicar à imprensa proletária. Funda pequena editora com a colaboração de outros gráficos já meio emancipados e, em 1923, uma revista que vai ter larga repercussão: Belém Nova. As greves e a repressão foram particularmente intensas na década de 20, Também no Pará, no final dos anos 20, observa-se a decadência do movimento anarquista e se impõe, pouco a pouco, a ideologia comunista. Em 1929 foi lançado O Gráfico, órgão da União Gráfica do Pará, cujo primeiro número data de 26 de dezembro. A luta dos trabalhadores sensibilizou muitos intelectuais. Refletiu-se em obras que retratam a Belém dessa época, tais como os romances: O gororoba (de Lauro Palhano, lançado no Rio de Janeiro em 1 931); Quarteirão (de Oséas Antunes, lançado em Belém em 1 943) — é uma pena que eu esteja citando desafortunados escritores — e retorna em páginas admiráveis de Belém do Grão-Pará, de Dalcídio Jurandir, lançado em 1960, ampliadas depois no Passagem dos Inocentes, 1963. “O caroço ficara nos campos queimados contando a história do faz-de-conta”. III Aconteceu 1930. No plano nacional com profundas repercussões. O governo acolhe os sentimentos da classe operária, cria o Ministério do Trabalho, a Previdência Social e dá forma a ma ampla, por vezes difusa, legislação. O Sr. Lindolfo Collor, ministro do trabalho da primeira era getulista, percorre todo o país levando a mensagem do trabalhismo governamental. A 11/11/1931 realiza-se no Theatro da Paz, em Belém, grande manifestação ao visitante promovida pelo Sindicato dos Trabalhadores do Livro e do Jornal. Com o registro dessa manifestação encerro o ensaio Memorial da Cabanagem, concluído em 1985, publicado em 1992. Em 1931, o poeta Bruno de Menezes, operário gráfico que se emancipou, publica Batuque, poemas da negritude no Pará. Dalcídio Jurandir percebeu a importância deste livro: “Batuque é um retrato de Belém, história do Umarizal, da Pedreira, da Cremação, do cais e das velhas docas. O subúrbio e o terreiro, em suas páginas, estão dançando e cantando... Batuque tem uma importância histórica e literária na poesia brasileira, sobretudo na poesia da Amazônia. O poema atravessa a cidade como um igarapé de maré cheia... Batuque faz parte de nossa cidade, como a Sé, a tacacazeira, a lembrança de Angelim, o Ver-o-Peso”.124 JURANDIR, Dalcídio. Belém e o seu batuqueiro, Folha do Norte, Belém, [1953?]. Além da questão social, Dalcídio trata da questão do negro na ação mobilizadora dos intelectuais, na sua poesia, na pele do menino em busca do caroço de tucumã. Pai branco, mãe negra. A sua produção poética é neste momento intensa, Ele não deu muita importância a esta fase, mas é quase certo que a poesia constitui um exercício constante e necessário do prosador, Nessa década vazaram para os jornais e revistas de Belém muitos poemas de Dalcídio Jurandir e há um momento em que ele surge como letrista de canções do pianista e compositor Gentil Puget (1 91 2- 1948), que desde 1933 vinha divulgando suas produções em concertos e recitais. Tanger a lira já não é pouco. A ação mobilizadora dos intelectuais para a questão do negro torna-se mais conseqüente e tem a decidida colaboração da companheira Guiomarina. A questão do negro ganhou relevo em 1934-35 em decorrência do 1 Congresso Afro-Brasileiro, realizado no Recife, chamando a atenção de Dalcídio Jurandir, Bruno de Menezes, Gentil 106


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Puget, Levi HalI de Moura. Era o tempo de sua adesão à Aliança Libertadora Nacional. Em 1936 foi preso, incomunicável, por suas idéias esquerdistas, conseguindo levar, a custo, o Dom Quixote, de Cervantes, que lê nos dois meses em que permanece na prisão. Ao sair do cárcere, continua a militância política. Já não pode colaborar nos grandes jornais. Então o velho Francisco Rodrigues Lopes, ainda editor de folhetos de cordel e de modinhas, resolve lançar a terceira fase da revista Guajarina, entregando a redação a Dalcídio Jurandir. A revista acolhe jovens intelectuais, entre outros, Daniel Coelho de Sousa, Machado Coelho, Cecil Meira, Levy HalI de Moura, Francisco Paulo Mendes, Direção artística de Ângelus e Salvador Soliva. Entre as colunas, além de poemas, Dalcídio publica crítica de livros e de arte. Também participa do movimento da revista Terra Imatura, de Cléo Bernardo. Um depoimento de Puget diz de seu papel na mobilização dos intelectuais: Um dia, Dalcídio procura-me a fim de fazer ciente do convite que viera da Bahia. Era uma circular da turma que ia promover o li Congresso Afro-Brasileiro. A oportunidade era deveras magnífica p’ros dois. Haviam de surgir novas oportunidades e o Congresso não nos viu por lá”,125 O Congresso realizou-se em Salvador, de 11 a 20 de janeiro de 1937. Nele foram discutidas as restrições que a sociedade brasileira impunha à livre manifestação religiosa dos negros. Depois da fracassada tentativa de participação no Congresso, Gentil Puget agitou o problema da liberdade dos cultos africanos em Belém e, no dia 16 de dezembro de 1938, um grupo de intelectuais126 compareceu ao palácio do governo e entregou ao interventor federal, Dr. José Maicher, um memorial solicitando o restabelecimento dos cultos afro-brasileiros, então proibidos pela polícia. O interventor prometeu ler o documento e resolver o arrazoado, nada fazendo, entretanto, possivelmente receoso das sanções intolerantes do eleitorado católico ortodoxo, Argumentavam os intelectuais paraenses que o caráter dos batuques era religioso e que não se tratava apenas da liberdade dos cultos, mas da contribuição desses terreiros aos estudos sociais brasileiros.127 Cumpre assinalar que em 1 938 a missão folclórica paulista, chefiada por Luís Saia, não teve dificuldade em documentar o ritual do Babaçuê.128 ... “olhando os tucumãzeiros que mostravam os cachos verdes e os perequitos que passavam em algazarra...” É a prosa com encantos poéticos, que inspira hoje a tantos admiradores da obra de Dalcídio Jurandir, como o romancista Benedicto Monteiro ou a jornalista Elisangela Marchioni, criadora de uma página na internete. Muitas pessoas que têm entrado em contato com a jornalista são homens com um interesse comum: a poesia. “Engraçado, Dalcídio é romancista! Tirei a conclusão que o lirismo que torna seus livros irresistíveis faz os fãs de poesia sentirem atração por ele, também. Só acho injusto a obra de Dalcídio não estar nas prateleiras das livrarias do Brasil!” E que poeta de versos tão musicais! Gentil Puget é uma figura importante na música paraense, mas não alcançou o sucesso do seu conterrâneo Waldemar Henrique. Se Waldemar Henrique teve em Antônio Tavernard um letrista que retratou “cenas amazônicas”, Puget teve em Dalcídio Jurandir excelente letrista de motivos semelhantes, A dupla se firmou no concerto realizado no Theatro da Paz em 6 de março de 1937, patrocinado pela Instrução Artística do Brasil. O programa traz nada menos de sete criações da dupla, dadas em primeira audição: 1a Parte — 1 — Cenas amazônicas, interpretações de Celeste Camarão: “Bumbás de minha terra” (sobre motivos dos bumbas de Belém); “Cantiga da minha terra” (Açaí, sobre um tema popular da terra); “Tacacá” (bebida típica que as mulatas do Pará preparam do tucupi com folhas dejambu, goma de tapioca e camarão, e é seR/ida em cuja preta); “Cantiga do pregão da cidade” (sobre um motivo popular da rua); “Ver-o-Peso” (cena descritiva de uma paisagem característica da cidade). 2ª Parte — 1 — Temas Paraenses, interpretação de Celeste Camarão — “Chorinho do canoeiro” (motivo típico do interior do Estado). II — Motivos do Folclore Negro — interpretação de Camila Camarão: “Cantiga dos negros cativos” (sobre um tema dos tempos da escravatura). III — Canções do Brasil — interpretação de Celeste Camarão — “Festança” (sobre um motivo mineiro coligido por Mário de Andrade) e, encerrando o concerto, “Minha terra caboclinha” (Hino de exaltação à Amazônia, poema da dupla Dalcídio Jurandir e Gentil Puget, interpretação de Celeste Camarão), 107


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Do recital de 1937 duas canções tiveram larga repercussão nacional — “Açaí” e “Tacacá” — porque foram gravadas em 1 940 por Gastão Formenti, um dos cantores brasileiros mais populares na época e impressas em São Paulo por E. 5. Mangione. A divulgação comercial omitiu o nome de Dalcídio Jurandir, tanto no disco como na edição da partitura, Mas o programa impresso em 1937, que tenho em mão, restitui a autoria dos versos, com a circunstância de “Açaí” ter sido assinado pela dupla — letra de Dalcídio Jurandir e Gentil Puget. Em 5/01/1 940, outro programa que tenho em mão, festa de arte organizada por um grupo de artistas em homenagem à consagrada violinista paraense Liége Aurora, no Theatro da Paz, ainda está documentada a parceria “Cantiga dos negros cativos”, agora com o título “Banzo de negro”. O programa contém uma descrição, talvez redigida por Gentil Puget: “Negro mina dentro da noite recorda os areais que deixou da outra banda do mar. Revê o navio negreiro que o trouxe para o Brasil. E chora de tristeza ouvindo o batuque rolar dentro da noite mais negra que ele, Dentro de si anda o banzo da raça que vive no seu coração”. A palavra “banzo” como título, ao que parece adotada por Gentil Puget — significa tristeza, nostalgia mortal que acometia os negros africanos escravizados no Brasil —‘ embora citada no texto de Dalcídio Jurandir, parece-me inadequada porque lembra a canção “Banzo” de Hekel Tavares e Murilo Araújo, lançada em 1 933, uma das primeiras gravações do cantor carioca Jorge Fernandes em disco Odeon n. 11 .039. Em 15/10/1943, quando Gentil Puget realizou um recital no salão nobre da União Nacional dos Estudantes, com sua intérprete Jane Gipsy, foram omitidas as parcerias de Dalcídio Jurandir em “Ver-o-Peso”, “Açaí”, Tacacá” e “Banzo de Negros”. Ignoro se Dalcídio Jurandir tomou conhecimento dessa falseta do companheiro de tantas lutas e de ideais, Parece-me que ele, com o tempo, se desinteressou da poesia, concentrando-se na sua literatura de ficção. Essa parceria musical merece ser lembrada porque envolve vários aspectos que coincidem com o interesse do escritor, nessa época bastante envolvido com a questão do negro. Tão envolvido que desejou formar uma delegação paraense para participar do II Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Salvador. A título de curiosidade, transcrevo as “letras” recuperadas: “Açaí”, letra de Dalcídio Jurandir e Gentil Puget. ia audição dada no concerto de 6/03/1 937, Theatro da Paz, por Celeste Camarão, com o título “Cantiga da terra”. Apresentada depois no Rio de Janeiro por Jane Gipsi, com o autor ao piano, no concerto do auditório da UNE em 15/1 0/1 943. Gravada em disco Odeon n.° ii .994A (matriz n.° 6601), por Gastão Formenti em 3/04/1941, como “toada” e editada por E.S.Mangione, no mesmo ano, como “batuque”. No selo do disco o nome do autor está grafado “Poget”. A face B contém a gravação de “Tacacá”, pelo mesmo cantor (Matriz n.° 6602), na mesma data. O disco foi lançado no mercado em junho de 1941. AÇAÍ Asai-Yuricé (cena característica do Pará) Batuque Coro Bis: Quem vai ao Pará? Parou.,. Tomou açaí? Ficoul Quem chegar em minha terra há de ver açaizeiros carregados de açaí muita vela em Ver-o-Peso, tacacá com tucupi muita mulata cheirosa e... cadê que volta mais? Coro Bis: Quem vai ao Pará, etc... Boi-bumbá lá no Jurunas E círio de Nazaré com seu carro de milagres S. João vendendo cheiro pro cabelo das morenas na barraca da sinhá 108


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e... cadê que volta mais Coro Bis: Quem vai ao Pará, etc... Bis: Eita Belém do Pará ninguém sabe mas eu digo Bis: seu feitiço faz a gente Ficar doido sem saberl... lv Chegou no Pará? Paroul Olhou pra morena? Gostou! Tomou açaí? Ficoul Coro Quem vai ao Pará? Parou... Tomou açaí? (ora... oral) Ficoul... “Banzo de negro” (Lamento de negro na terra distante), encontrada em manuscrito, cópia de Maria Silvia Pinto, RJ, doada a VS em 1 981. O título primitivo, possivelmente o título do poema de Dalcídio, “Cantiga dos Negros Cativos” (sobre um tema dos tempos da escravatura), foi o texto de maior sucesso da dupla. Apresentado inicialmente por Camila Camarão no concerto de 6/03/1937, Theatro da Paz, teve interpretação posterior no mesmo teatro em 5/01/1941 pelo tenor Lindolfo Jorge Corrêa na festa organizada por um grupo de artistas paraenses em homenagem à consagrada violinista paraense Liége Aurora. Com o título “Banzo de negro” foi apresentada no concerto de 15/10/1 943, Rio de Janeiro, auditório da UNE. Tenho duas cópias, uma com o título ‘Banzo de negro” (lamento negro), fornecida por Hermelindo Castelo Branco, datada de 10/03/1983, outra com o título “Lamento negro”, fornecido por Maria Silvia Pinto, Rio de Janeiro, 1 961. Foi incorporada à peça Aruanda, de Joaquim Ribeiro, músicas de Gentil Puget, encenada no Teatro Ginástico, Rio de Janeiro, em 23/12/ 1948, pela Companhia Teatro Experimental do Negro. No elenco: Tia Zefa — Ruth de Sousa; Rosa Mulata — Renée Ferreira; Pai João — Claudino Filho; Quelé — Abdias Nascimento. Direção: Abdias Nascimento. Cenários: Tomás Santa Rosa Júnior. Teve outra apresentação no extinto Teatro Follies, em 20/07/1950, pela mesma companhia e direção e com elenco renovado. BANZO DE NEGRO (Lamento negro ou Cantiga dos Negros Cativos) Palavras de Dalcídio Jurandir Música de Gentil Puget Negro é Oxum vem vindo lá do mar, vem vindo em porão em cima do mar, ah! em cima do mar! no mar é ô no mar êô é ô ê 6.. Vem o veleiro da Costa Negro bantu vem de longe Veio em cima do mar veio em cima do mar no mar ê ô ah! no mar ê 6 lemanjá nossa mãe tá no fundo do mar Nossa mãe tá no fundo do mar no mar, no mar ê 6 no mar ê 6 Chora o banzo, Sinhô, nas ondas do mar Pai de Santo, Pai de Santo ô lemanjá oh! lemanjá. Eh! negro Orixá lá da Costa chegou, vem falando Nagô Negro Orixá, ah! negro Orixá no mar ê 6 nomarêôêôêô... Nosso choro foi o banzo Nossa casa foi senzala Nossa esperança Zumbi 109


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Só nos resta o Orixá. Bumbás de minha terra (sobre motivos de bumbás de Belém), peça não localizada. 1a audição dada no concerto de 6/03/1 937, TP, por Celeste Camarão. Cheiro Cheiroso, canção amazônica, sobre motivo popular de rua, a venda por ambulantes do cheiro-cheiroso para o banho da felicidade no dia de S. João. ia audição dada no concerto de 6/03/ 1937, TP, por Celeste Camarão, com o título Cantiga do pregão da cidade... (sobre um motivo popular de rua). Interpretação posterior na PRC-5 por Marcílio Viana e Lucíola Araújo. Letra publicada na coletânea Cantor Brasileiro, vol. 2, Guajarina, out. 1939, p. 8/9, no Acervo Vicente SalIes no Museu da UFPA. CHEIRO CHEIROSO Canção amazônica (Sobre um motivo de pregão da rua no dia de 5. João) Palavras de Dalcídio Jurandir Música de Gentil Puget Interpretação na RR. 0-5 por Marcilio Viana e Lucíola Araújo V “Quando o carocinho de tucumã escapulia da mão, corria para o chão, se escondia numa toiça de capim, Alfredo descia do sonho. Como desorientado, em vão procurava o carocinho”, Instigado pela jornalista Eneida129, Dalcídio Jurandir fez uma confissão: P,: — Seus romances sempre tomam partido? R.: — Meus romances, sim, tomam partido. Sou um pequeno escritor de atritos, indeclináveis compromissos. Estes me dão a liberdade, que necessito, pois ser um pouco livre é muito difícil. Minha visão do mundo não se inspira em Deus nem no Demônio nem no Bem nem no Mal, mas nesta vida em movimento, em que há classes sociais em luta, etc, Precária e miúda, seja, mas me ajuda a ver homens, coisas, paixões, a História, o quotidiano anônimo, o efêmero, a eternidade.,. Eu me prezo, honradamente, de ser bem parcial. Objetividade, imparcialidade olímpica, não há, o Olimpo se mete em tudo, é só ver na filada, ou na Biblia, os deuses são da política mais rasgada, do puro campanário. Todo romancista não é político? O exemplo vem dos grandes, sempre interessados pelo homem, pelo destino da sociedade, por mil e uma formas ou aspectos da conduta do indivíduo e do homem, Três grandes políticos no romance moderno sob a absoluta aparência de artistas puros ou puros visionários: Kafka, Joyce, Faulkner. Já é uma banalidade dizer que é impossível a um romancista, o menos intemporal dos artistas, fugir do seu tempo, E intemporal, uma palavra, ela existe? Atrás dela pode estar o paraíso, ou a evasão mais sem vergonha. O que existe é o homem, terrestre, temporal como diabo, e está aí a sua grandeza. Linha do Parque, romance político, escrito entre 1951 e 55, é o livro que mostra, sem rodeios, o seu pensamento como escritor e como romancista. Manteve-se fiel a isso durante toda a vida. Disse que encontrou uma filiação ideológica que lhe deu razão. Seu depoimento a Antônio Torres, Haroldo Maranhão e Pedro Galvão13° é franco e sincero: Linha do Parque se passa no outro extremo. É a história.do movimento operário no Rio Grande do Sul, desde 1895. Eu fiz uma pesquisa longa no meio dos velhos operários anarquistas. Levantei um quadro do Rio Grande. O livro não agradou. Os operários ficaram zangados porque eu não embelezei o quadro. Apareceu muita miséria. E eles ficaram zangados comigo. Mas é um livro em que eu tenho muita fé, como romance político. Esse é um dos melhores textos para compreendér o romancista e o seu papel político: aprofundar as realidades humanas da ilha do Marajó e de Belém do Pará, sua obra atravessa essa fronteira. É uma visão de toda a sociedade do Extremo Norte. E, nesse sentido, é uma denúncia. Daí, assumindo suas responsabilidades: A visão que eu tive como romancista era a visão de que a realidade social é feita de lutas, De forma que eu tomei uma posição política, Meu romance é um romance político. Fui menino de beira-rio, do meio do campo, banhista de igarapé. Passei a juventude no subúrbio de Belém, entre amigos nunca intelectuais, nos salões da melhor linhagem que são os clubinhos de gente da estiva e das oficinas, das doces e brabinhas namoradas que trabalhavam na fábrica. Um bom intelectual 110


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de cátedra alta diria: são as minhas essências, as minhas virtualidades. Eu digo tão simplesmente: é a farinha- d’água dos meus beijus, Sou também de lá, sempre fiz questão de não arredar pé de minha origem e para isso, ou melhor, para enterrar o pé mais fundo, pude encontrar uma filiação ideológica que me dá razão. Os temas dos meus romances vêm do meio daquela quantidade de gente das canoas, dos vaqueiros, dos colhedores de açaí. Uma das coisas que eu considero válidas na minha obra é a caracterização cultural da região. Acumulei experiências, pesquisei a linguagem, o falar paraense, memórias, imaginação, indagações. Para um escritor pobre, sem vagares e ócios remunerados, o esforço foi, às vezes, de desesperar, de tão braçal. Mas foi ao mesmo tempo uma delícia, uma forma de satisfeita revolta contra o magro ganha-pão, o sucesso fácil, a cômoda posição pessoal no mundinho. Os meus livros, se nada valem, valem por serem o documentário de uma situação que ainda tinha caráter cultural. Hoje, com a invasão dos rádios de pilha, da televisão, os costumes estão mudando. Os meus livros ficariam como um instrumento de nostalgia, o registro de uma cultura que está sendo destruída pela invasão da Amazônia. Uma espécie de destruição sistemática dos costumes, sem fixar o progresso, sem dar benefícios às populações. O quadro cultural está mudando. Mas o quadro de pobreza e exploração persiste. A situação social e humana vai para pior. Existe o progresso técnico, mas para destruir, para manter a exploração. Tem um padre Giovanni, Giovanni Gallo, que mora no lago Arari e faz reportagem a respeito do lago, sobre a vida das pessoas, seus problemas. E é a mesma condição de vida que está no Marajó. Mesmíssima. Maria de Belém, filha do velho amigo Bruno de Menezes, remeteu-lhe o rótulo bilíngüe de um vidro de conserva de palmito. Dalcídio Jurandir foi mais uma vez veemente: O rótulo, em inglês’e francês, do palmito de açaí, mostra que a civilização do enlatado entrou definitivamente em nossa selva. Vamos comer o palmito em inglês e francês, e abandonamos a bárbara bebida de nossos avós. O rótulo é o símbolo do desmatamento da Amazônia, entregue, agora, às serrarias de madeira, às pastagens, aos magnatas americanos. O pajé some, o açaí some... Ë meu temor essa civilização do saque, da derrubada, do palmito... A floresta amazônica está indefesa. O que se quer é arrancar lucros imediatos, é o progresso urgente e inumano, é o enriquecimento a qualquer preço.131 Dalcídio Jurandir serviu-se do caroço de tucumã para construir a realidade e a fantasia do menino Alfredo. Pois a bolinha ia fazer o Amazonas o mais comprido, o mais largo, o mais belo rio do mundo. Tudo o que via nas revistas de importante e pertencia ao estrangeiro, a sua bolinha passava para o Brasil. Bolinha mágica e infatigável. Era mais poderosa que a lâmpada de Aladino, que ele não conhecia... Aí está o salto para o maravilhoso. O caroço ficara nos campos queimados contando a estória do faz-de-conta. Mas debaixo do chalé havia muitos outros caroços. Era só escolher um que fale como o outro. O caroço de tucumã merece um capítulo (Cap. VIII). A metáfora é recorrente. Volta no terceiro romance Três casas e um rio, 1958: ‘Com efeito, o carocinho de tucumâ na palma da mão e no ar (p. 144); no quarto, Belém do Grão Pará, 1960, com a procura ansiada de um sonho: “podia encontrar para o faz-de- conta, nos alagados da baixa, um carocinho de tucumã?” (p. 52); no quinto, Passagem dos inocentes, 1963, como a perda dolorosa de um defunto: “Enterrou naquele chão e em Dolorosa o derradeiro caroço de tucumâ?” (p.284); no sexto, Primeira manhã: “la meter pelo olhinho dum caroço de tucumâ toda a saudade dela” (p. 29); finalmente, em Os habitantes como um fetiche: “pendure quanto antes o caroço de tucumã no pescoço” (p. 83). E descobrimos, afinal, nas estórias do menino que segurava a bolinha mágica, a dura realidade de um povo oprimido e espoliado. coaruba dirigindo a viragem. São eles que gritam o “vira-viral” inicial, mandam parar ou chiar o pau. O espeque transmite a ordem e os outros viradores arrancam: “Vira, vira, moreno!” E os homens agarrados ao monstro, braços, dorsos, peitos, cabeças, confundidas num só bloco empurram-no aos gritos, aos “vira-vira” numa excitação quase lúgubre. Eu os acompanhei naquela noite dentro do mato à hora em que a jaquiranabóia assanha-se com a luz, a surucucu se desenrola e a onça acende os olhos no cerrado. “Tambariramba!” É uma das interjeições selvagens com que eles dobram os paus encalhados ou caídos fora da estiva. “Tambariramba!” é um grito heróico, uma grande voz humana saltando da terra onde se abatem os madeiros. Do igapó onde se cortam os cipós e a aninga para a jangada. Das águas onde se embóiam os toros e do porto de embarque onde o guincho sacode as coarubas no porão do cargueiro. [.1

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MEMÓRIA E ESQUECIMENTO: EXPERIÊNCIA, NARRAÇÃO E ROMANCE EM DALCÍDIO JURANDIR por Edilson Pantoja A série do Extremo Norte constitui importante capítulo da literatura brasileira. Resultado de longo processo de composição, seus dez romances cristalizam, conforme palavras do autor (cf. MORAES, 1996, p. 49-50), décadas de paciente recolhimento de experiências, anotações, estudos, pesquisas, memória, imaginação... Cristalizam, enfim, enquanto conjunto ficcional, o labor criativo do artista. Labor este no qual a memória tem papel fundamental, seja enquanto arquivo involuntariamente impregnado de experiências, seja enquanto expressão de uma intencionalidade, de uma mnemotécnica ávida por guardar cenários, acontecimentos, tipos, expressões... Dalcídio Jurandir reconhecia bem a importância da memória para sua arte. Tanto que teria declarado a Celina (1983, p. 170): “O romancista, mais que qualquer outro artista, vive da memória”. No entanto, apesar disto, e de dedicar considerável atenção à revisão de seus escritos, um detalhe, um esquecimento, pode comprometer, quem sabe, até mesmo a coerência interna de sua Obra. Ou tudo apontaria para algo mais amplo? O detalhe em questão, cujo sentido recobre toda a Série, tem a ver em particular com Três Casas e Um Rio (1958) e Passagem dos Inocentes (1963), terceiro e quinto volumes, respectivamente. Romances, ressalte-se, escritos no Rio de Janeiro. Diz respeito ao encontro de Alfredo com seu avô, o artesão Bibiano, pai de D. Amélia. Apresentado logo na primeira página de Passagem dos Inocentes, o encontro fará o leitor a ele tornar muitas vezes, posto haver algo ali que o atrai, embora ele, leitor, nem mesmo tenha consciência do porquê. Sem a posse da resposta, é possível que atribua à beleza ali presente esta força de empuxo. Mas não será apenas isto o que verdadeiramente o atrai. Além deste fato, caso tal leitor já conheça Três Casas e Um Rio, a força gravitacional que sempre lhe atrai para o mencionado encontro, que na verdade é um encontro consigo mesmo, pode, num desses retornos, causar-lhe um incômodo, lembrando-o de que Bibiano, o artesão animista que convictamente se recusa a deixar seu lugar, mesmo ante a morte, já é finado no terceiro romance... Ora, não é apenas na ordem numérica, mas também na cronologia da saga do menino, que Três Casas e Um Rio antecede Passagem dos Inocentes. O motivo que leva à menção de Bibiano naquele volume tem a ver com o alcoolismo de D. Amélia, problema iniciado ainda em Chove nos campos de Cachoeira (cf. p. 264), mas somente posto à luz em Três Casas e Um Rio. No trecho em questão, Major Alberto, admirador de Augusto Comte (há um retrato de Comte na parede do chalé) cogita uma possível causa para o problema: Por que Amélia se precipitara naquilo? Que motivos, qual a origem?... Teria sido culpa dele ou mal de herança? Os irmãos dela continuavam os mesmos, pretos de correção exemplar. O pai, sim, talvez fosse o finado velho Bibiano, caboclo com sangue português, bom amigo do óleo (JURANDIR, 1994, p. 376-77). É perfeitamente possível que se conteste a opinião sobre Bibiano estar morto, argumentando-se, por exemplo, que finado tem aí sentido figurado a designar certamente um juízo de valor, algo como fracassado, uma alusão a sua condição de alcoólatra. Há motivos para se crer que não. Além de nada em todo o contexto justificar tal interpretação (ver também p. 261), a dúvida do major, expressa no termo talvez sugere que ele não chegou a conhecer Bibiano pessoalmente, de modo a fundar a suspeita do possível alcoolismo do velho, na mestiçagem1 deste último: ‘talvez fosse o velho Bibiano (caboclo com sangue português) bom amigo do óleo’. A morte de Bibiano deve mesmo ser entendida, ao menos por enquanto, literalmente. Mas se Bibiano é finado em Três Casas e Um Rio, por que o narrador, em Passagens dos Inocentes, não oferece a mínima explicação, prosseguindo o enredo como se desconhecesse por completo a situação anterior da personagem? E bem mais que sobre os motivos do narrador, cabe perguntar sobre os do autor que, conforme mencionado, valorizava sobremaneira a memória na composição de sua obra, praticando constantes exercícios de memória, ao que chamava “técnica da atenção” (CELINA, pp. 171-72), técnica que envolvia não apenas a captação de material para os romances, mas também compunha seu paciente 112


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método de composição pelo qual cada página costumava ser recopiada “cinco, seis, sete..., onze vezes”. Um método minucioso, onde “cada linha, quase cada palavra” (CELINA, pp. 134, 159), costumava ser pacientemente laborada, revista. Dado que fosse assim, e tratando-se de um autor tão consciente de seu trabalho, como o sabemos, pergunto: Teria Dalcídio Jurandir esquecido completamente a referência a Bibiano em Três Casas e Um Rio a tal ponto de comprometer a verossimilhança interna de sua Obra? Apesar de toda a atenção do autor, de sua produção sem pressa e de geralmente publicar um livro vários anos após o anterior, o que em tese lhe daria tempo suficiente para manter a mencionada coerência, não me parece impossível que o esquecimento - esta força inibidora ativa de que nos fala Nietzsche (2004, p. 47-8), tenha-se exercido, enquanto força2, inibindo exatamente neste ponto a consciência de nosso autor. Também Freud, que concede grande importância aos detalhes, vendo nos atos e omissões aparentemente acidentais sintoma de algo inconsciente, nos dá em Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana vários exemplos de como o esquecimento se impõe ao estado de consciência3. Assim, caberia fazer pelo menos três perguntas, a saber: Que necessidade secreta teria o autor para esquecer o detalhe sobre Bibiano, de modo a não explicar sua aparição num volume posterior àquele em que aparece morto, gerando, assim, uma espécie de non sense? Por que o personagem se mostra tão decidido a permanecer em seu lugar, mesmo após a morte e, contrastando-se com Alfredo, diz que este vai percorrer muitas distâncias? Finalmente: Por que motivo o leitor retorna tantas vezes ao trecho do encontro entre Bibiano e Alfredo? A resposta a tais perguntas (sim, é uma só!) é imanente à forma da obra dalcidiana – uma forma mista e, por isto, mais significativa do que parece. Forma esta que alguns conceitos e pressupostos da reflexão estética de Walter Benjamin nos ajudarão a destacar. Aproveitando então a menção da palavra “experiência” pelo próprio Dalcídio (ver primeiro parágrafo), gostaria de mencionar um conceito fundamental à reflexão benjaminiana, que é o conceito de Experiência (Erfahrung), aí definido como matéria da tradição, quer na vida privada, quer na coletiva, constituída mais de dados inconscientemente acumulados na memória do que com aqueles dados isolados e rigorosamente aí fixados (BENJAMIN, 1994c, p. 105). Preocupação de Benjamin por toda a vida, a Experiência, assim entendida, será pensada sempre em oposição a um outro conceito, o de Vivência (Erlebnis), experiência vivida isoladamente, assistida pela consciência. Diz respeito ao indivíduo solitário, desorientado, despossuído do sentido de sua vida, posto que submetido à “frieza e ao anonimato sociais criados pela organização capitalista do trabalho” (GAGNEBIN, 1999, p. 59). É esta oposição, pois, o que está na base da reflexão benjaminiana sobre o impacto que o enfraquecimento da Erfahrung e a conseqüente hegemonia da Erlebnis produz no mundo moderno. Uma das conseqüências desta imposição, diz Benjamin em O Narrador, é o fim da capacidade de narrar. Característica das sociedades baseadas no trabalho artesanal, em que uma tradição e uma memória comuns garantiam a existência de uma experiência coletiva fundada no compartilhamento de um “mesmo universo de prática e de linguagem” (GAGNEBIN, 1994, p. 11), a narrativa aí alicerçada agoniza. Como seu substituto e dirigido ao indivíduo marcado pela Erlebnis surge o romance, forma essencialmente vinculada ao livro e completamente desvinculada da tradição oral, distinto que é da ação de narrar. Nesta, diz Benjamim, o narrador, dotado de uma autoridade fundada na própria experiência, retira daí o que narra e que, nesta transmissão, é sedimentado à experiência dos ouvintes. O mesmo não acontece com o romancista, indivíduo marcado pela Erlebnis e, por isto, incapacitado de falar exemplarmente sobre suas preocupações fundamentais. Nascido, pois, da desorientação, o romance põe em cena um herói também desorientado, sempre em busca de um sentido, “o sentido da vida” (BENJAMIN, 1994b, p. 212). 113


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Tão desorientado quanto o herói, o leitor do romance, outro solitário, se apodera da matéria lida querendo “transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo” (p. 213), tal sua avidez pelo sentido perdido. Ainda sobre o narrador, Benjamin diz que uma de suas características fundamentais é a capacidade de aproximar o distante, quer no espaço, quer no tempo. O narrador, pois, possui uma aura, podemos dizer, autorizados pelo próprio filósofo que, em carta a Adorno, diz haver uma íntima relação entre a perda da experiência e a perda aura (Apud GAGNEBIN, 1994, p. 12), conceito este definido como “o fenômeno irrepetível de uma distância” (BENJAMIN, 1994c, p.140). O narrador é também um justo, qualidade que o aproxima da natureza, afinal, “O justo é o porta-voz da criatura e ao mesmo tempo sua mais alta encarnação”, de modo que “A hierarquia do mundo das criaturas, que culmina na figura do justo, desce por múltiplos estratos até os abismos do inanimado” (BENJAMIN, 1994b, p. 217). Ora, não parece temerário supor, pelas características do artesão Bibiano, que parece dedilhar enquanto tece seus paneiros e aconselha Alfredo: “Escutou, meu capitão? É. E o que escutou guarde” (JURANDIR, 1983, p. 10); que olha os miritizeiros, matéria de seus cestos, como se fossem seus iguais, uma notável semelhança com o personagem das sociedades tradicionais descrito por Benjamin. Semelhança, aliás, é outro conceito caro ao filósofo. Tem a ver com este jogo casual que, com a velocidade de um raio, toca passado e presente. Por causa disso, diz Benjamin (1994a, p. 110) sobre a semelhança: “Ela perpassa veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser fixada”. A semelhança, de alguma forma, toca a Erfahrung, embora não a sustenha. A semelhança, pois, é o que envolve o leitor que tantas vezes revê o encontro de Alfredo com o avô-narrador. Ali, na verdade, ele encontra a si mesmo na forma de um duplo para sempre perdido, “recuperável” apenas por um instante. Por isto volta tantas vezes, embora não saiba o porquê, e precise deixar Bibiano para prosseguir, com Alfredo, a marcha em busca do sentido perdido. Não é Alfredo, o herói solitário, tão despossuído de si quanto o leitor que o acompanha, que se pergunta: “Só o passado era feliz?”, lembrando-se de que o pai falava sempre no “bom tempo que deixara apenas resto de coisas e pessoas” (JURANDIR, 1994, p. 267-8)? Aliás, membro de uma comunidade que dia-a-dia se perde ainda mais, esta “última fronteira” do capitalismo chamada Amazônia, Bibiano, o morto que insiste em permanecer em seu lugar, falando de ‘putirum’, (mutirão) o trabalho coletivo que ergueu sua casa, diz saudoso: “... aqueles bons tempos... tempos de boa índole” (JURANDIR, 1983, p. 9). Diz isto por que, morto, sai deste tempo apenas como expressão inconsciente da experiência fragmentada de seu criador. A frase: “Entre o avô e os miritizeiros havia uma sociedade” (p. 10) possui significado tão amplo quanto a distância que separa o leitor de si mesmo. É esta distância aurática, pois, o que se aproxima, ainda que fugazmente, segundo a natureza da semelhança, quando o leitor retorna àquele encontro. Mas por que Dalcídio põe tudo isto na forma de um esquecimento? Sim, a morte de Bibiano no terceiro romance é literal, ainda que seu sentido seja uma alegoria4. Dalcídio, que tanto treinava a memória, recalcou, exatamente por isto, este detalhe de sua experiência amazônida. Prossigamos a fim de entender isto melhor, pois entre os pressupostos benjaminianos está a valorização da psicanálise como instrumento para a compreensão da esfera cultural. Em Sobre Alguns Temas em Baudelaire, Benjamin menciona Além do Princípio do Prazer, de Freud, para vincular a oposição aí estabelecida entre a memória e o consciente à oposição existente entre erfahrung e erlebnis. A argumentação benjaminiana consiste em recuperar o que Freud dispõe sobre a função de defesa exercida pelo consciente contra estímulos externos, estímulos estes que se dão na forma de choques, de modo que, destaca, a conscientização e a permanência de um traço mnemônico serão sempre incompatíveis entre si num mesmo sistema. Como resultado, resíduos mnemônicos serão mais intensos e duradouros se o processo que os imprime jamais chegar ao consciente (p. 108). Com base nisto, conclui Benjamin: Quanto maior é a participação do fator do choque em cada uma das impressões, tanto mais constante deve ser a presença do consciente no interesse em proteger contra os estímulos; quanto maior for o êxito com que ele operar, tanto menos essas impressões serão incorporadas à experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de vivência (BENJAMIN, 1994c, p. 111). Isto talvez explique porque em Dalcídio, escritor marcado pela erlebnis, o treino consciente da memória tenha relegado ao esquecimento um dado tão especialmente memorável. Tão especial que se faz retornar, ainda que inconscientemente, para enformar uma obra cujo grande fundamento está em evocar a experiência cada vez mais ameaçada, experiência que não é apenas individual, mas de uma comunidade sempre mais distanciada de si por conta da influência hegemônica do Capital. Influência esta que Dalcídio, há muito deslocado no Rio de Janeiro, comenta após receber um rótulo co114


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mercial que Maria de Belém Menezes lhe enviara. Diz ele em carta a ela remetida: O rótulo em inglês e francês, do palmito de açaí, mostra que a civilização do enlatado entrou definitivamente em nossa selva. Vamos comer o palmito em inglês e francês, e abandonamos a bárbara bebida de nossos avós. O rótulo é o símbolo do desmatamento da Amazônia, entregue, agora, às serrarias de madeira, às pastagens, aos magnatas americanos. O pajé some, o açaí... É meu temor essa civilização do saque, da derrubada, do palmito... A floresta amazônica está indefesa. O que se quer é arrancar lucros imediatos, é o progresso urgente e inumano, é o enriquecimento a qualquer preço (MENEZES, Revista Asas da Palavra, Op. cit., pp. 20-21).5 Este “enriquecimento a qualquer preço” que nos torna cada vez mais pobres em experiência faz lembrar Experiência e Pobreza (1933), obra na qual Benjamin, um pouco antes de O Narrador aborda a relação entre a arte da narrativa e o romance. Para efeito de conclusão, vale mencionar rapidamente o que Benjamin diz sobre Proust e Kafka - autores que para ele expressam, cada um a sua maneira, tentativas de se trabalhar a perda da experiência por meio de uma nova narratividade -, e dizer que Jurandir, apesar do valor que concede à técnica da atenção, trabalha esta perda de maneira profundamente rica exatamente no momento em que, vencido pelo esquecimento, dá expressão à experiência. E se o velho artesão, alegoria da experiência estilhaçada, diz ao herói da série do Extremo Norte: “Me escuta, meu neto, tu aí, menino, esse teu pé no bostoque, sim, vai-é-quevai correr muita terra muito ar do mais variado no teu nariz no teu bobó muita viagem” (Sic, 1983, p. 9), é porque a abertura (GAGNEBIN, Op. cit.), característica pela qual a uma narrativa sempre sucede outra, é o meio pelo qual o romancista, inconscientemente, cede espaço ao narrador. O resultado é uma forma significativamente mista de romance-narração, na qual o leitor, não obstante a desorientação expressa em sua avidez por sentido e explicação, vislumbra, mediante a “incoerência” e o “non sense” casuais, a centelha cujo brilho, embora fugidio, pode levá-lo, senão à experiência perdida, pelo menos a resistir, ainda que por meio de uma refração intermitente, à vivência cotidianamente uniformizante. O leitor de Kafka conhece bem esta experiência. Adorno, cuja reflexão estética recebe influência benjaminiana, referindo-se a este traço insólito da arte do tempo presente, reconhece aí uma novidade, um diferencial profundamente significativo a que chama o negativo da arte contemporânea. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Obras escolhidas I – magia e técnica, arte e política. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994. ________. O narrador. In: Obras escolhidas I – magia e técnica, arte e política. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994. ________. Sobre Alguns Temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas III, 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994. CELINA, Lindanor. Pranto por Dalcídio Jurandir – memórias. Belém, SECDET, Falangola, 1983. FREUD, Sigmund. Psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: 1996. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. 2ª edição revista. São Paulo: Perspectiva. Col. Estudos, 1999. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin ou a história aberta. Prefácio a Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1994. JURANDIR, Dalcídio. Chove nos campos de Cachoeira. 4ª edição. Belém: CEJUP, 1995. ________. Marajó. 3ª ed. Belém: CEJUP, 1992. ________. Passagem dos Inocentes. Belém: Falangola, 1984. ________. Três Casas e Um Rio. 3ª edição. Belém: CEJUP, 1994. MARTON, Scarlett. O Eterno Retorno do Mesmo – tese cosmológica ou imperativo ético? In: NOVAES, Adauto (Org.), Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. MENEZES. Maria de B. Um Retrato de Dalcídio Jurandir. Revista Asas da Palavra. Belém, n. 04, p. 20-26,1996. MORAES. E. Dalcídio Jurandir: criaturada de pé no chão. Revista Asas da Palavra. Belém, n. 04, p. 32, 1996. 115


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_________________________________ NOTAS: 1 Dado este que naturalmente pode deter, embora não tenha conhecido Bibiano. Veja-se, por exemplo, a primeira referência ao pai de Amélia à página 261. O texto diz que Major conhece os seis irmãos de Amélia. Não menciona, porém, que conheça o pai, ainda que este e seu alcoolismo sejam ali referidos. Em Passagem dos Inocentes, porém, ambos os personagens, ao que tudo indica, se conhecem de tempos. 2 Ver, sobre o conceito de força em Nietzsche, Marton (1992, p. 210). 3 Entre os estudiosos da obra dalcidiana encontro dois exemplos daquilo que na obra aí citada (Cap. X, intitulado Erros) Freud chama de erros de memória. Em Chão de Dalcídio, competente estudo sobre a presença de motivos folclóricos na estrutura de Marajó (anexo à edição de 1992), compare-se a referência à página 377 com a página 231. Erra também Paulo Nunes quando afirma em “Aquonarrativa....”, (p.56), ser Dionísio o barqueiro que em “Chove...” manda trinta mil réis por Eutanázio a Felícia. Não há nada no romance em questão que identifique o barqueiro por nome. 4 O conceito de alegoria em Benjamin constitui seu sentido justamente ante a falência de um sentido pleno, único e total. Nascido, pois, da perda e da morte que a temporalidade e a historicidade imprimem às coisas, caracterizase por ser sempre arbitrário e transitório. Por conseqüência, aberto. Nesse sentido, Gagnebin vê uma coerência entre este conceito e a temática da abertura. 5 Entre outros traços de Bibiano que lhe reforçam a característica de narrador e, portanto, da experiência que representa, nas páginas 38 e 39 de Passagem dos Inocentes o personagem é comparado a um pajé.

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Viva e Reviva o Ver – O- Peso de Dalcídio Jurandir por Gláucia Lima As raízes deste artigo estão, de certo modo, fincadas em experiências de infância. Digo isso considerando algumas lembranças de quando ainda criança. Daquele tempo lembro que meu pai contava-me muitas histórias, umas inventadas, outras conhecidas. Essas histórias e/ou estórias, na maioria das vezes, tinham como cenário a cidade onde nasci: Belém do Pará. Lembro ainda que logo no início do período de minha adolescência foi ele também quem me apresentou um livro marcante, “Banho de Cheiro”, de Eneida [de Moraes], (Ed. Civilização Brasileira, 1962), que desvela muito da alma desta cidade, em tempos idos, e cuja dedicatória é escrita nestes termos: Para a minha cidade, na pessoa física que– para mim é minha mãe. /Para a minha cidade, suas ruas e praças, suas manhãs claras e noites perfumadas de jasmim bogari; para os igarapés e os igapós, para os canteiros dos jardins públicos hoje abandonados, outrora moradas de rosas-meninas;/para a minha cidade, sua gente da Pedreira, do Umarizal, Jurunas; para a gente da S. Jerônimo, Nazaré e Independência./Para a minha cidade tão pobrezinha agora, mas tão cheirosa sempre de pau-de-Angola e patchuli; / para a minha cidade, meus amigos de lá, minha família de lá, minha gente de lá. / Para a cidade de Santa Maria de Belém GrãoPará, este livro. / Também para Lea, minha filha./ Precisarei falar de amor?

O encantamento da narrativa de Eneida, que cintila ou lampeja na dedicatória acima, em grande parte focada em Belém, me instigou a procurar a cidade (e sua alma) em vários escritores paraenses: Bruno de Menezes, Walcyr Monteiro, Haroldo Maranhão, Max Martins, Maria Lúcia Medeiros, Dalcídio Jurandir, entre outros. A esses escritores, com interesse voltado para o conhecimento de Belém, acredito ter um débito referente à intensidade crescente de meu amor por esta Cidade; a qual, no percurso de minha formação como cidadã, que se estende à atualidade, acabou por descobrir como um patrimônio – uma herança de valor inestimável, e, que, como tal, não deve jamais ser aviltada, desperdiçada, maltratada ou dilapidada, em todos os sentidos. A partir desse breve contexto de como a literatura influenciou meu interesse pelo patrimônio cultural quando eu ainda não sabia exatamente o que expressão significava, elaborei este texto com base no romance Belém do Grão Pará, de Dalcídio Jurandir (Ed. Edufpa/Casa de Rui Barbosa, 2004), com vistas a uma releitura do Ver-O-Peso, analisando as evidências de identidade e memória ligadas a este patrimônio cultural tão representativo na vida desta cidade, sugerindo-as ou propondo-as como elementos de uma possível estratégia didática no âmbito das Artes Visuais articulada à Educação Patrimonial, capaz a nosso ver de instigar na comunidade o despertar da conscientização para a sua história e/ou a formação de sua identidade através do patrimônio cultural. Aqui a suposição básica é de que se utilizadas de maneira criativa as evidências acima aludidas são capazes de despertar no educando (quer seja criança quer seja adulto) o sentimento de pertencimento com relação aos bens patrimoniais locais – o que, indubitavelmente, é importante em qualquer processo de ensino libertador (no sentido paulofreiriano), ensino esse que além da valorização dos bens culturais, tenha em vista também a formação de um tipo de pessoa capaz de transformar a sua experiência pessoal em algo positivo para si próprio e para a sociedade. No caso do Ver-O-Peso a reflexão que se impõe deve ir além das aparências considerando-o não apenas como um artefato material, mas também imaterial ─ o que implica reconstruí-lo no conhecimento como unidade dialética do visível e o invisível. Para isso o ponto de partida é a relação entre o vivido (o histórico) e o imaginado pelo escritor ao focalizar situações, fatos e personagens naquele lugar de Belém, fundindo a imaginação e a realidade através do realismo literário que lhe é característico. 118


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Foi com esse entendimento que procurei na leitura de Belém do Grão Pará, a partir daí, na realidade concreta, com a ajuda da fotografia, refleti-lo na sua totalidade, ou criar elementos para isso no processo de ensino. Durante a leitura do texto dalcidiano, observei que o escritor aborda temas de reflexão que atravessa os tempos, retirados da experiência cotidiana, brotando como um dos traços mais marcantes de sua obra, pois o mergulho na culturalidade belenense e suas minuciosas observações sobre o modo de vida, os hábitos, as visões de mundo, os sonhos, os dramas individuais e coletivos, compunham uma abundante matéria-prima. Conforme diz Silva (2010, p.53): Dalcídio é um desbravador da alma humana e sua literatura traduz uma desmedida valorização da subjetividade do ser humano. Em seus romances estão presentes como característica marcante, os longos diálogos íntimos, em que se escancaram os sentimentos, os sonhos, as incompreensões, as frustrações e os sofrimentos mais profundos das pessoas. Nesse sentido o romance objeto de estudo facilita, de certo modo, a reflexão desejada conforme espero demonstrar com as observações a seguir. Dalcídio: O Artista do Verbo A ação do romance se situa em 1922 e acompanha a mudança do menino Alfredo, da ilha do Marajó para Belém, transcorrendo toda nesta cidade, salvo pelas passagens em que o menino se transporta para o seu local de origem, por obra da memória ou da fantasia. Em função disso, pode-se dizer, “trata-se de um romance eminentemente urbano, descrevendo uma Belém que, apesar de decadente, preserva certa sofisticação da época do esplendor da borracha (1870-1910)” Senna, Pereira (2004) Em Belém do Grão Pará, lê-se, ao mesmo tempo, a história da família Alcantara, uma família de classe média, decaída do alto do status social que tivera no governo do prefeito Antônio Lemos, durante a alta da borracha, e a história de Belém dos anos 20, já decadente, mas com a estampa moderna parisiense que nela imprimira aquele Prefeito. Na tentativa de recuperar, pelo menos, a aparência da posição perdida, os Alcantara , sob a inspiração da fútil e gorda filha do casal, mudam-se da obscura rua onde moravam para Av. Nazaré, onde se concentravam os ricaços, em geral fazendeiros da ilha do Marajó, mas vão ocupar aí uma casa em ruína, devorada pelos cupins. Quando a nova e chique residência ameaça desabar, a família, com ajuda dos empregados, carrega, de noite, os poucos móveis que lhe restam, para a acolhedora sombra das mangueiras, à beira da calçada. Nunes (2004)

Nessa obra, além do humor irônico e ao mesmo tempo sútil tem se também um forte lirismo, que, de certo modo contamina o leitor num processo de identificação contínua com o cotidiano na contemporaneidade seja pelos arquétipos, ou pela maneira particular de nos remeter ao passado, propiciando um diálogo fecundo com a educação patrimonial, pois faz referência ao patrimônio cultural belenense em sua diversidade de manifestações, tangíveis e intangíveis, consagradas e não consagradas, como fonte primária de conhecimento e aprendizado, a ser utilizada e explorada como instrumento de motivação, individual e coletiva, para a prática da cidadania e o estabelecimento de diálogo enriquecedor entre as gerações. Convém lembrar aqui que a Belle Époque em Belém apresenta-se como uma contradição a qual Castro (2010, p.24) chama de experiência alegórica de modernidade, pois “vivencias e visibilidades do moderno sedimentadas no centro do capitalismo mundial foram trazidas para Belém”, (BASSALO: 2008, p. 43) “contrastando com a figuração social própria da cultura local, alicerçada nas necessidades e condicionamentos do homem amazônico, sem uma relação direta entre o desenvolvimento social da região e as representações estéticas criadas pelo mundo burguês da Europa industrializada.” Os dias do presente de Alfredo resgatam uma vida de Belém em que já se contava dez anos do fim daquela época. O ambiente era de nostalgia de um passado recente e para sempre arruinado. Outro aspecto a destacar é que, conforme registram os estudiosos, o regionalismo em Dalcídio Jurandir, em Belém do Grão Pará apresenta-se crítico: através de seus personagens ele denuncia as mazelas da sociedade, e dramas existenciais de caráter universal descrevendo a realidade peculiar onde vive seu povo. (cf. SILVA: 2010, p. 33, 39). 119


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Além disso: Não é demais lembrar que, na moderna ficção brasileira, Dalcídio Jurandir é um dos autores que mais apropriadamente cria um cenário romanesco adequado para a exposição das mazelas sociais, dos conflitos de classe, dos problemas do latifúndio, entre outros, oriundos do embate humano com a natureza amazônica. (NUNES: 2010, p. 36).

Escrevendo os seus romances de maneira descritiva e visual, como se estivesse fotografando com palavras, Dalcídio Jurandir dá visibilidade ao seu texto levando o leitor a ver a cena como se esta desenrolasse diante de seus olhos. À vista dessas impressões que absorvi no decorrer da leitura de Belém do Grão Pará, a partir de meu universo, as Artes Visuais, imaginei a possibilidade de associar ao processo da educação patrimonial, digamos assim, de forma criativa o amálgama composto pelo cenário do romance e pela minha percepção desse cenário e a realidade concreta que lhe deu origem. A Arte e a Educação Patrimonial a luz de Dalcídio Jurandir. Neste sentido, a estratégia didática consiste na articulação entre a educação patrimonial e o ensino de Arte, onde procurei relacionar as duas “metodologias”. Uma trilha promissora aberta no campo da Arte, é dada pela Proposta Triangular da professora Ana Mae Barbosa, segundo a qual a construção do conhecimento em Artes está baseada em três eixos temáticos: A leitura da obra de arte que nesta pesquisa é propiciada pela leitura do romance e pelas fotografias antigas; a contextualização histórica, facilitada também pelas fotografias de época e o Ver- O- Peso de nossos dias e o Fazer artístico que seria a releitura da obra de arte. Em relação a Educação Patrimonial a metodologia é dividida nas seguintes etapas: Observação, Registro, Exploração, Apropriação (Horta,1999), e na qual o estudo do romance aliado às fotografias antigas e a releitura contempla também esses quatro nichos. Nesta perspectiva, os bens patrimoniais são materialidades e práticas culturais que se destacam no tecido urbano e nas manifestações populares por mediarem diversos e memoráveis fatos históricos e personagens ilustres ou por representarem heranças culturais, técnicas e estéticas de tempos passados. Os bens provenientes do passado carregam traços culturais de seu tempo e os interpretam no presente, compondo um espaço em suas múltiplas paisagens (PELLEGRINO, 2003). Há poucas décadas verifica-se uma significativa mudança na forma de compreender o patrimônio. Gutierrez (1992), traça algumas considerações sobre esse impacto, em que é percebido uma ruptura com uma visão histórica reducionista apoiada por uma ‘historiografia oficial’ que converte em patrimônio bens de origem aristocrática, religiosa, bélica ou estatal. Nessa nova concepção de patrimônio há a inclusão do cultural e das “dimensões testemunhais do cotidiano e os feitos intangíveis”. Superam-se as legislações que reconheciam os bens por sua antiguidade e são ultrapassadas as fronteiras que limitavam o ingresso ao status de patrimônio às edificações oficiais e igrejas. E, ao mesmo tempo, as obras arquitetônicas deixam de ser vistas como objetos isolados e tornam-se relevantes os conjuntos urbanos e territoriais e também a contextualização tanto física como social e cultural destes. Nesse sentido, a proposta da Educação patrimonial é motivar a integração de distintos grupos sociais, constituinte de uma dada comunidade, intencionando a motivação de ações que propiciem o surgimento de diversas proposições que assegurem a defesa e ativação da memória, assim como contribuir para a prática da cidadania. O que se busca é a tomada de consciência das comunidades sobre a relevância da geração, valorização e resguardo de patrimônios culturais locais. É a recorrência ao cultivo da sensibilidade da população como forma de instrumentalizá-la dentro de seus universos comuns para identificação, entendimento e préstimo ao patrimônio cultural no seu âmbito de atuação. (SABALLA,2007)

As imagens ficcionalizadas por Dalcídio Jurandir evidenciam o domínio do escritor ao cultivo da sensibilidade, no romance o leitor é transportado para uma Belém do início do século XX, mas também é levado a visitar o que Pierre Nora apud Horta(2005) (definiu como “lugares de memória”, espelhos nos quais, os grupos sociais se reconhecem e se identificam, mesmo que de maneira fragmentada. Estes “lugares” da memória coletiva operam, de certo modo, como “detonadores” de uma sucessão de imagens, ideias, sensações, sentimentos, e 120


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vivências individuais e de grupo num encadeamento de revivências, ou de “reconhecimento” das experiências coletivas, potencializando o sentimento de pertencimento e de identidade, a consciência de nós mesmos e dos outros que compartilham essas vivências. Horta (2005,p.38) Chegavam ao Ver-O-Peso. – Hein, seu Quadro de honra, quer passar pelas igrejas? Estão de porta fechada. Ninguém reza neste mundo. [...] Alfredo fitou-a, estranhando, e voltou a olhar as torres e os mastros, o rio e as mangueiras do Largo do Palácio. – Vem cá um pouco. Segurou a mão dele e o levou até a igreja de Santo Alexandre, junto do Arcebispado. Daquele casarão, afirmou Libânia, saíam os padres. Alfredo teve um vago arrepio: era uma escuridão lá por dentro! Para o menino, a igreja pareceu feita de uma pedra só. [...] Aqui nesta igreja está encantada um menina. De uma enorme pedra só, a Santo Alexandre, com uma menina dentro encantada. Igreja feita ou ali nascida do próprio chão. Olhou para Libânia, no olhar dela o rosto da menina encantada na pedra. De queixo em cima, olhar subindo a torre, Libânia fascinada. – Aqui nesta igreja encantou-se uma menina, seca- seca, por ter levantado uma vassoura contra a mãe dela. [...] E voltaram correndo para o Ver- O- Peso, como perseguidos. Viva maré de março visitando o Mercado de Ferro, lojas e botequins, refletindo junto ao balcão os violões desencordoados nas prateleiras. Os bondes, ao fazer a curva no trecho inundado, navegavam. As canoas no porto veleiro, em cima da enchente, ao nível da rua, de velas içadas, pareciam prontas a velejar cidade adentro, amarrando os seus cabos nas torres do Carmo, da Sé, de Santo Alexandre e nas samaumeiras do arraial de Nazaré. Libânia corria então para ver: os bons barcos, panos cor de telha, cobriam o Ver-O-Peso com telhado de velas. Libânia apontava as montarias cheias potes queimados como a sua face, e bilhas de barro e as andorinhas curiosas dos mastros, das proas com peixe assando e as mãos de milho verde que descarregavam. [...] o gosto de provar todas as farinhas ali expostas nos paneiros em plena calçada não atingida ainda pela maré. Pôs-se a provar desta, daquela, amarelinha, a bem torrada, fingindo enfado, competência, exigente no escolher. [...] Depois, aquela rapariga de perna inchada- inchada, no rosto um rouge como uma queimadura. A Carroça fazia mudança, atravancando a rua. [...] Desciam a calçada, ganhavam a linha do bonde, invadindo a cidade.(JURANDIR, 2004, p.132, 133, 134, 135 CAP. 9).

No excerto acima é evidente a menção a alguns patrimônios consagrados, o Ver-OPeso, o Mercado de Ferro, as igrejas, as mangueiras, Samaumeiras, e também àqueles não consagrados que destituem a “memória-poder”, a história da menina encantada, o rio, as marés de março, as proas de peixe, os barcos, os panos cor de telha, o provar de todas as farinhas, as linhas dos bondes, ou seja, os bens que estão agregados e socializados na memória coletiva, pois as lembranças dos acontecimentos são compartilhadas e vivenciadas por nós habitantes desta cidade em sua pluralidade. Neste sentido, estamos em contato com as nossas referências locais, sendo oportuna a temática das identidades, que é um processo de identificações historicamente apropriadas que conferem sentido ao grupo Cruz (1973). Ou seja, ela implica um sentimento de pertencimento a um determinado grupo étnico, cultural, religioso, de acordo com a percepção da diferença e da semelhança entre, entre «nós» e os «outros» – vale dizer: diante das circunstâncias em que tendências globais se tornam referências de vida, as pessoas encontram-se num dilema que é viver num mundo cada vez mais homogêneo ou afirmar sua própria identidade, seu vínculo de pertencimento a algum lugar. Stuart Hall (1992) afirma que a globalização explora a diferenciação local, dessa forma, seria preciso pensar numa nova articulação entre “o global” e “o local”. A globalização, nesse sentido, iria produzir novas identificações “locais”, segundo este teórico, isso ocorreria devido a uma mudança estrutural que está transformando as sociedades modernas no final do século XX, provocando a fragmentação das paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que no passado nos fornecia sólidas localizações como indivíduos sociais (HALL, 2004, p.10) Estas transformações mudam também nossas identidades pessoais, estremecendo a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Estamos cada vez mais “deslocados”, “descentrados”, experimentando uma ausência do “sentido de si”. Esse duplo deslocamento, tanto de nosso lugar no mundo social e cultural quanto de nós mesmos gera/ 121


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potencializa uma crise de identidade para o indivíduo. HALL(2004) Para este autor existem três tipos de identidade de um sujeito determinado: a identidade do sujeito iluminista, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno. Com isso, na obra objeto de estudo é possível conjecturar que Dalcídio faz alusão a essa crise de identidade, vale dizer que o romance foi publicado pela primeira vez em 1965, isto é, segunda metade do século XX o que me levou supor e apontar alguns aspectos característicos de dois destes sujeitos: o sociológico e o pós-moderno. O sujeito sociológico reflete: “a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência que este núcleo interior do sujeito, não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado por outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura dos mundos que ele/ela habitava. (HALL: 1992; p.2)

Desse ponto de vista as identidades culturais se configuram como se só existisse o mundo pessoal e o mundo público, alinhando as vivências aos lugares compartimentados do mundo social e cultural. Então no sujeito sociológico a identidade:

“Costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis” (Idem, ibidem)

O sujeito pós-moderno, é por conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente.

“A identidade torna-se uma “celebração móvel” [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”. (Idem, ibidem; p.3)

Dalcídio, com a magia de um autêntico e experimentado artista do verbo narra as primeiras impressões que Alfredo experimenta com relação a Belém na cena de desembarque no cais do Ver-O-Peso, e foi em busca de se libertar das malhas da pobreza do Marajó que Alfredo vem estudar em Belém - vale dizer, que o século XX foi marcado pelos fluxos migratórios do campo para a cidade, a cidade passou a representar o universo com maiores oportunidades, neste sentido, o mote do romance revela o ideal de liberdade da modernidade e em algumas passagens podemos identificar ou conjecturar a crise de identidade entre o sujeito sociológico e o sujeito pós- moderno. Alfredo olhava o convés já limpo, sem mais o cheiro das oito reses deixadas no Matadouro. Nelas ficara o cheiro das três casas, dos campos marajoaras. Também o cheiro de Andreza. Apertou o cabo com uma súbita vontade de chorar não sabia se de contentamento ou saudade, como se nele, as duas paixões, a da cidade e a da menina lutassem, ali naquele instante [...] Entre a paixão de estudar e o estudar mesmo atravessara-se a viagem, os seus novos sentimentos, a perda do carocinho, ou a morte súbita de sua infância? Como Mariinha, teria morrido nele, da noite para o dia, o menino de Cachoeira? [...] Perdia o chão de Cachoeira e não sentia ainda o chão de Belém. Um desconhecido começava a laterjazinho dentro dele, não mais o do Chalé nem ainda do 160. JURANDIR (2004, p. 80, 113)

Em outro momento descreve o que poderia ser o sentido da morte para o sujeito sociológico em confronto com o sujeito fragmentado pós-moderno, ou seja, as memórias do menino do Marajó de hábitos moldados à sua comunidade de origem, Cachoeira, e o menino em que ele era obrigado a se tornar na cidade grande, Belém. E logo sentiu obscuramente que a morte na cidade se despojava daquele pudor, decência e mistério que a todos transmitia em Cachoeira. Lá “fazia mal” deixar um morto assim, o morto era inviolável, tocava-se nele para lavá-lo, vestir, cruzar-lhe as mãos, pô- lo no caixão ou rede, entregue unicamente à sua morte. Dentro do corpo mão nenhuma tocaria, depois que lhe trocara a outra, a inevitável. Não ficaria nunca ali naquela pedra, sem nome, vela ou origem, igual peixe no gelo. Isso doeu no menino, cheio agora de súbitas perguntas, e isto e aquilo, e por quê, que que dizia o pai, e Andreza? Por que vivo, se podia ele também acabar numa pedra, aquela, retalhado, sozinho- sozinho, com tão íntima gordura exposta,

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nunca adivinhada num defunto. JURANDIR( 2004, p.85)

O caráter da mudança na modernidade considera o processo de Globalização o mais relevante no que diz respeito aos impactos na identidade cultural é uma das pontas do iceberg que deu origem ao sujeito pós-moderno, caracterizado por não ser fixo ou permanente. Neste momento o sujeito não possui uma identidade, mas várias identidades, provisórias, variáveis as quais estão em constante formação e transformação, pois estamos a todo o momento sendo bombardeados por uma multiplicidade perturbadora de identidades com as quais nos identificamos com cada uma ao menos provisoriamente. Sendo assim: Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”. As partes “femininas” do eu masculino, por exemplo, que são negadas, permanecem com ele e encontram expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na vida adulta. Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a “identidade” e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude. Hall( 2004, p.10)

Diante da crise de identidade constatada por Hall, em que a tendência da homogeneização da cultura em termos globais é incontestável, coexiste a necessidade de representação, de reconhecimento da nossa identidade cultural local, pois para alcançarmos a compreensão do todo, faz- se necessário compreendermos as diferentes partes e suas peculiares correlações. Nesse contexto, reside a preocupação com a valorização das manifestações culturais e do patrimônio cultural como um bem que representa a alma, a identidade e a tradição de um lugar como espaço do plural, do móvel, onde o indivíduo “(...) mantém, em seu cotidiano, estreitas e complexas relações sociais e culturais” com outras localidades, além de possuir peculiaridades Moraes (2005, p.01).

Assim, no final da primeira década do século XXI, tornam-se cada vez mais agudas as lutas pela retomada de laços de pertencimento e redes de relações perdidas. Vale dizer, que nesta estratégia didática, notei que o estudo Patrimônio Cultural é um território de litígio, campo de tensões em que se valorizam as obras e as construções de classe, ou ideologias dominantes, obscurecendo as classes populares, suas construções materiais, seu conhecimento e suas manifestações. Além disso:

Há uma resistência ou mesmo evitação em se discutir, no campo da cultura, questões como a luta de classes ou grupos de interesses. Fica visível que se busca levar o discurso de proteção do patrimônio das classes dominantes a todos os segmentos sócio-econômicos. Desta forma, pretende-se que todos os cidadãos protejam a história e a memória que pertence, na verdade, a um seleto grupo de pessoas, proprietárias da história dos nomes, sobrenomes, prédios e construções que traduzem, mais das vezes, uma pequena parcela da população, em detrimento dos bens culturais pertencentes aos grupos historicamente alienados da cultura erudita, como são as minorias étnicas e raciais, entre outros. (SOARES, 2009, pg. 22)

Neste sentido o Ver- O- Peso e seu em torno é o lugar que resume, sintetiza a identidade, a alma da cidade de Belém e onde é possível encontrar não só os espaços que representam a “memóriapoder”; citamos a Catedral da Sé, o Complexo Feliz Lusitânia como também, manifestações culturais, narrativas dos distintos segmentos da sociedade, sedimentando um processo de inclusão, propiciando a reflexão sobre a maneira e por meio de quais instrumentos a nossa memória é construída ao longo do tempo, observando que quanto mais ricas e diversificadas as experiências vividas e compartilhadas por um grupo de pessoas vivendo em comunidade, mais rica e complexa será esta memória, ou rememoração. Sendo assim: É importante salientar que a valorização do passado histórico e das peculiaridades locais não deve ser tomada como um saudosismo ou apoteose ao passado. Reconhecer as diferenças nos processos históricos deve ser propulsor para a diminuição das barreiras sociais e abolir a 123


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discriminação. Além disso, o orgulho não deve ser confundido com xenofobia ou separatismo. Antes de qualquer coisa, a educação patrimonial deve preocupar-se da formação de uma consciência cidadã nas quais todos são cidadãos brasileiros em um processo de inclusão sócio-cultural, alicerçado sobre a diversidade como riqueza do país. (SOARES, 2009 p.26)

Este ponto leva ao entendimento do caráter político do uso do patrimônio nas comunidades, bem como da educação patrimonial e neste sentido, é possível perceber que os elementos considerados patrimônios nem sempre estarão representando um coletivo, mas, quase sempre uma pequena parcela da sociedade, o que não significa necessariamente que somente as elites serão representadas. Cabe ao educador mostrar com clareza que não há consenso, unidade, estática na definição dos bens culturais, da memória que se vai preservar. (SOARES, 2009 p.20) Retomando o Belém do Grão Pará, vale dizer que a Belém que polariza a ação do romance, define a situação dos personagens dentro das distintas camadas da população. Alfredo, Libânia, Emilinha, Inácia, Virgílio, Isaura, Mãe Ciana e Antônio, ocupam cada qual nessa lógica de uns com os outros e de todos com Belém, uma posição no contexto social, sendo possível reconhecer as múltiplas influências que uma identidade cultural sofre da outra, percebendo assim, as semelhanças, mas principalmente o que é diferente e que as vivências compartilhadas pelo grupo enriquecem suas experiências e suas memórias. Desse modo, os seres humanos do romance de Dalcídio Jurandir, Belém do Grão Pará, que existem em função de um certo meio urbano, com suas características peculiares, não constituem um simples reflexo das condições deste meio. É por intermédio deles que Belém se transforma numa paisagem interior riquíssima, num conjunto de vivências coordenadas, que dão forma aos acontecimentos e expressões, ao que de objetivo, histórico e socialmente relevante está envolvido nos episódios particulares

e circunstâncias. (NUNES, 2004) Sendo assim, a leitura das memórias de Alfredo proporciona o reencontro com essa nossa identidade local, ao mesmo tempo em que nos coloca diante de questões de ordem social e psicológica de caráter universal transformando o romance num verdadeiro documento da nossa realidade social e cultural.

- O nome da canoa é “Deus te guarde”, do Moju. Venho ver uma encomenda. [...] O apelo foi morrer numa traqueteira lá no meio, entalada entre vigilengas e barcos da Contra- Costa. Um homem, chapéu de palinha, descalço, veio saltando rapidamente de lá como um baliza à frente dum cordão de São João e desceu na calçada ao pé da senhora. O chapéu de plumas cobria a mulher de uma sombra violeta, o que intimidava o tripulante, de palhinha já na mão, roçando o peito da camisa de meia. Ela abanava-se, o leque brilhante e imperioso que mantinha não só o homem à distancia como os demais que a contemplavam de cima dos toldos. Alfredo supôs, ao primeiro instante, que fosse da D. Emília, viesse recebê-los, e a sua perturbação aumentou ante o risco de que poderia seguir com a senhora naquele trajar e com semelhante chapéu. Para disfarçar a perturbação, foi se rindo daquela ornamentação de sedas, rendas, colares, pulseiras, leques, plumas, os laçarotes no peito, o brilho das meias subindo dos sapatos de salto altíssimo. O tripulante voltou à “Deus te guarde”, num átimo trouxe a encomenda da senhora: uma menina de nove anos, amarela, descalça, a cabeça rapada, o dedo na boca, metida num camisão de alfacinha. A senhora recuou um pouco, o leque aos lábios, examinando-a. _ Mas isto? E olhava para a menina e para o canoeiro, o leque impaciente: _ Mas eu lhe disse que arranjasse uma maiorzinha para serviços pesados. Isto aí... [...] O compadre me leva el. Não posso levar comigo como está. [...] A caboclinha esfregou os dedos cheios de saliva no rosto amarelinho. A senhora fechou o leque, que mantinha a distância, os barcos, a intimidade, os fedores do Ver- O- Peso. Foi caminhando atravessou a praça. Seguindo a senhora, até que ela desapareceu por entre as mangueiras do ainda misterioso Largo do Palácio. (JURANDIR: 2004, p.82, 83, 84)

No decorrer da leitura, vamos estabelecendo uma relação de afetividade com o romance em consequência do cruzamento das memórias de Alfredo com as nossas percepções ou vivências do/ no Ver- O- Peso. De modo que a cada capítulo lido, experimentamos uma espécie de emocionalismo reflexivo. Isto porque, acredito que o imaginário cultural de Belém vivenciado por Alfredo se sobrepõe as nossas narrativas pessoais, levando-nos assim a reconstruir memórias individuais através das imagens mentais reveladoras de arquétipos ainda tão presentes nas identidades social e cultural da Cidade. 124


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O romance funciona como instrumento de sensibilização, pois através do envolvimento pela afetividade, inicia-se o processo de despertar para o sentimento de pertencimento que aliado a outras ações educativas da continuidade ao processo de reconhecimento e apropriação do patrimônio de Belém pelos belenenses, pois a educação patrimonial deve abranger toda a cidade sem distinção entre centro histórico e periferia, lembrando que só haverá envolvimento e comprometimento com o patrimônio quando houver identificação com ele, o que não deve acontecer de forma forçada. A noção de pertença leva à mobilização, concebendo o sentido de participação e integração pelo elaborado e projetado na coletividade, pelo valor partilhado, restabelecendo assim, o passado através de objetos pertencentes ao seu universo percebendo-se sujeitos da História. Como agentes transformadores elegem os patrimônios que tenham sentido para o conjunto e buscam o sentido coletivo do reconhecimento da similitude. SABALLA, 2007 p.1)

Isto implica à educação patrimonial, uma perspectiva transformadora que prioriza o conhecimento dialogado, com vista a formação de pessoas capazes de (re)conhecer sua própria história cultural, deixando o status de mero expectador, para assumirem o papel de sujeito, valorizando a busca de novos saberes e/ou conhecimentos. Neste sentido a visão de educação patrimonial abraçada:

[...] é uma ação social, na medida em que visa à transformação a caminho da construção da consciência identitária, portanto, cidadã, atenta às diversidades regionais, bem como a manutenção da ativação das tradições locais [...] proporcionando o debate acerca da importância do direito à memória, consagrando aos comuns a oportunidade de agir no esforço de destituir a “memória-poder” via agregação e socialização da memória coletiva, quando as lembranças dos acontecimentos e as experiências são compartilhadas, vivenciadas por grupos- em sua pluralidade- e legadas a sucessivas gerações. (HALBAWACHS apud adriana saballa)

Contudo, fica claro no estudo da identidade e memória que a educação patrimonial tem um papel decisivo no processo de conhecimento, propiciando ao indivíduo a noção de cidadania e desenvolvendo de modo coletivo o sentimento de pertencimento, elemento que envolve a afetividade e sensibiliza a sociedade, gerando orgulho e auto-estima; ou seja, é capaz de arvorar no educando o senso de preservação do patrimônio. A memória é Patrimônio que a gente tem As representações do Ver- O- Peso no texto ficcional construído por Dalcídio Jurandir, considerando a paisagem urbana, os costumes, os tipos humanos e cartografia simbólica em que se cruzam o imaginário, a história, a memória do Ver- O- Peso e o Ver- O- Peso da memória, este escritor, atribui maior visibilidade à sua obra, o que fez com que ao “ver” a cena, despertasse em mim, a curiosidade de ver fotos da época em que o romance se passa e consequentemente desejasse reconhecer o Ver- O- Peso de Dalcídio Jurandir. O olhar que dirigi às fotografias, do ponto de vista subjetivo me remeteu a uma saudade, foi uma experiência nostálgica, mesmo que eu não tenha vivido a época, porém ouve a sensação de lembrança, isto porque as fotografias fazem parte da historiografia da cidade. As imagens “contam” como era Belém no início do século XX. O contato com as fotografias antigas me permitiu de imediato uma concepção visual do Ver- O- Peso do final século XIX/XX, onde é possível vê-lo tal como se apresentava naquele momento, não somente a infraestrutura, mas também os seus tipos sociais. Pode-se falar que na experiência visual com as fotografias há uma relação do “antes” e do “depois”, momento oportuno para delinear as transformações no Ver- O- Peso ao longo do tempo. No trato com as fotografias antigas, não foi possível precisar as datas de suas realizações, e neste sentido o trabalho se deu na base de aproximações. O Álbum de Belém de 1908 e o Álbum do Augusto Montenegro e o mais recente Belém da Saudade foram as fontes principais, todavia grande parte das fotografias apresentavam o Ver-O-Peso antes ou depois do que foi visto por Alfredo/ Dalcídio no desembarque no cais. A cada fotografia descoberta foi possível conhecer sobre as transformações urbanísticas ocorridas em Belém no início do século XX, o aterramento do Piry, a construção da doca do Ver-Opeso que ocorreu em 1908, acabou-se a praia e o espaço foi ocupado pelas pedras de lioz, os tipos sociais. O Ver-O-Peso de Dalcídio Jurandir começava a apresentar suas primeiras configurações. 125


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Agora, o barco descansava naquele abrigo, ao lado do Necrotério, liberto do mau tempo. Preferia que houvesse atracado defronte das quatro torrinhas do Mercado de Ferro, que davam a Alfredo a impressão das casas turcas vista no dicionário ilustrado. Ou perto das canoas de peixe, ou na escada junto as embarcações de mel, alguidares, jarros, urinóis de barro? Vermelhos urinóis de barro cozendo ao sol. Mas o “São Pedro”, como todas as embarcações do Arari, encostava sempre ao lado do Necrotério, a proa olhando os velhos sobrados comerciais que se inclinavam sobre a pequena praça para saudar, à maneira antiga, as canoas que entravam e saíam. Mais alto,queixo roçando os telhados, era o morrinho do Castelo, os canhões sob a erva- de- são- caetano e um muro em ruína e negror, que uma espessa folhagem tentava disfarçar. [...] Alfredo, então, avançou pela proa e saltou na calçada, pisando o chão da cidade. Viu que andava sobre paralelepípedos. [...] Por entre as pedras no chão da cidade grelava capim. [...] Que a luz do seu olhar cheio de uma cidade que era só sua, não daqueles barqueiros nem de sua mãe nem daquela gente alheia e indiferente que passava. ( JURANDIR, 2004, p. 79, 80)

Aos poucos o Ver-O-Peso de Dalcídio Jurandir foi aparecendo nas fotografias, em uma das imagens é possível ver o antigo Necrotério público construído em 1899, descrito de forma brilhante pelo escritor, mas ainda não era a paisagem vista por Alfredo, o prédio da bolsa de valores construída em função da economia da época, para a circulação do dinheiro da borracha, não chegou a ser concluído em razão da queda da borracha, sendo demolido no início da década de 20. (CRUZ,1952). No romance que se passa em 1922, a bolsa de valores não existe mais, e o que Alfredo vê é uma grande área livre e onde atualmente se apresenta a Praça Siqueira Campos, onde em 1931 recebeu o relógio e ficando conhecida como Praça do Relógio. “Deveria fingir indiferença, mostrar que era menino habituado a ver Belém. Mas durou pouco essa prudente resolução. Deixou- se caminhar pela pracinha deserta, entregue ao seu deslumbramento” Jurandir (2004, p.81) Neste sentido, a única fotografia que mostra aproximadamente a configuração do VerO- Peso à época do romance, é uma imagem aérea realizada provavelmente de um zeppelin, entre a década de 20 e 30 do século passado. Na imagem é possível ver a pracinha deserta, o Necrotério, tal qual a descrição do escritor. No contexto do ensino de Arte, o reconhecimento da nossa identidade, da nossa memória nas fotografias figura o eixo da contextualização histórica presente também na leitura da Obra de Arte e na Releitura e, na Educação Patrimonial configura-se nas etapas de Exploração e Apropriação, sendo esta segunda concretizada em sua totalidade na realização do Fazer Artístico através da Releitura fotográfica. A contextualização deve estar presente nos atos de leitura e releitura, pois é, a meu ver, o elemento articulador dos outros dois. É aí que ocorre a intersecção das informações obtidas sobre o artista, a época em que viveu, a arte, a política, a economia, a sociedade da época e das vivências cotidianas de quem estiver passando pela experiência de ler e criar imagens. ( LIMA, 2002)

A contextualização está também associada à Releitura, na medida em que ocorre a interseção das informações sobre o artista a época em que viveu, a arte, a economia, a política, a sociedade da época e das experiências cotidianas de quem estiver passando pela experiência de ler e criar imagens. Foi nesta perspectiva que realizei as fotografias que culminaram primeiramente no Álbum B’lem, B’lem, Belém, Belém, com uma série de quarenta fotografias. Com o tempo fui me sentindo mais livre para transformá-las na proposição fotográfica Viva e Reviva o Ver-O-Peso de Dalcídio Jurandir, apresentando fotografias que tentaram representar um lugar pleno de lembranças, isto porque: O registro imagético vem permeando cada vez mais a nossa cultura ocidental contemporânea e se transformando talvez no principal “texto orientador” da construção de nossas memórias individuais e da memória coletiva dos grupos sociais. ( SINSON, 2005, p. 31)

As primeiras lembranças de Alfredo em Belém são do desembarque no cais do Ver- OPeso, ao lado do antigo Necrotério Municipal. No prédio já não existem mais as grades vistas por Alfredo. Atualmente conservando a parte externa, mas todo descaracterizado por dentro, funciona um posto policial, um pouco maltratado, mas com tanta história pra contar, com muitas memórias adormecidas prontas a despertar. A fotografia, obviamente, não guarda essas impressões- elas se situam no nível do invisível, além da imagem. São emoções que não podem ser gravadas materialmente: residem em nosso ser e só a nós pertencem. São emoções que não apenas sentimos, 126


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mas que também imaginamos, sonhamos e, portanto, vemos. Imagens que revelamos a poucas pessoas ou a ninguém; imagens comprometedoras. Imagens que a fotografia não revelará jamais. ( KOSSOY, 2005, p.43)

O ato fotográfico de acordo com Philippe Dubois (1990, p. 49), é a extensão do olhar e do progresso visual da captação de imagens que são fixadas e desdobradas na memória. Sendo assim, as imagens mentais estimuladas pelo romance, pela leitura das fotografias antigas e pelo contato com objeto cultural, auxiliaram na construção das minhas fotografias. É interessante esclarecer que são pequenos recortes dessas memórias, com alguns lapsos preenchidos pela imaginação, configurando o processo de reconstruir, refazer, resgatar. “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado” Bosi (1979, p.17). Mas o que aprofunda e amplia a compreensão é o direcionamento do olhar para processamento no inconsciente de imagens que podem ser ou não quimicamente reveladas, e para a percepção de que as fotografias são vistas de maneira diferente, dependendo de quem olha. [...] a pessoa que olha está sempre a procura de uma relação entre ela e a imagem, cada uma verá parcelas e níveis diferentes da fotografia. A câmara funciona como uma extensão do olhar. Mas o olhar também seletivo, funciona ao mesmo tempo em que os outros sentidos e dentro de um contexto espacial e temporal que enriquece as impressões da imagem mental, com inúmeros outros aspectos. A câmara produzirá a imagem, talvez mais precisa e mais ampla que o olhar, mais despida de outros aspectos e características, o que, em alguns casos, pode limitar o seu valor documental. O que ficou registrado pode não ser o que se quer reproduzir. (MIRIAM LEITE, 2005, p.34)

Neste sentido, através desta experiência, pude ter um novo olhar sobre o Ver- OPeso, conhecer sobre sua formação e algumas de suas inúmeras memórias e perceber que o que somos está diretamente ligado ao nosso passado, não podemos fugir dele e tampouco esquecê-lo somos uma somatória de experiências que conservamos e quase sempre desconhecemos até que sejam evocadas, despertadas ou mobilizadas e que “só existe saber na busca inquieta, impaciente, permanente que os homens fazem no mundo com o mundo e com os outros” (Paulo Freire apud, caderno temático do Iphan, n°2, p. 17) Contudo, é deste lugar e desta perspectiva que pude compreender o processo de Educação Patrimonial no campo da Arte e consequentemente a educação como processo que consiste na reflexão constante no pensamento crítico propiciando a formação de sujeitos capazes de transformar suas experiências em algo positivo para a sua vida e para a sociedade promovendo com isso a cidadania entre os homens.

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Os Escritores e a Resistência por Dalcídio Jurandir Nestes últimos meses, agravou-se a situação política em nosso país e por mas que não queiram os nossos auto-suficientes amigos do abstrato e do apoliticismo. essa situação atinge a todos nós, miúdos escritores semicoloniais. Em todo o país foi desencadeado aquele temor da polícia contra a qual dois congressos de escritores se manifestaram com tanta convicção e alarde. Jornais e distribuidoras de livros foram assaltados, presos jornalistas, um vendedor de livros foi encarcerado e acusado de atividades do Cominform... Diante de nosso espanto e da nossa indignação, do silêncio e do estupor de muitos, a reação, cassando os mandatos de legítimos representantes do povo, chega ao cúmulo de aprisionar um deles e acusá-lo como autor de um remoto incêndio no Nordeste. O aparato e as graves declarações de autoridades responsáveis em torno dessa prisão deixaram a nação atônita. A quanto chegou a irresponsabilidade e a infâmia, a quanto chegou o cinismo e a degradação dos poderes que nos governam! E precisamente isto se deu no cinqüentenário do “J’Accusel”, em que Zola, como escritor, como romancista, como homem, soube fulminar a mentira e salvar um inocente. E é evidente que tudo isso atinge aos escritores brasileiros, cuja consciência não esteja ainda embotada e sinta necessidade de gritar contra a torpeza e ficar ao lado do povo nesta hora sórdida, Logo depois da cassação dos mandatos, a Tribuna Popular foi assaltada de madrugada. Vinte e três trabalhadores espancados e encarcerados e agora submetidos a brutal julgamento. Entre estes um herói da FEB que obteve na campanha da Itália as mais altas condecorações, Salomão Malina. Em compensação, soltam-se traidores e acolhem-se nazistas vindos da Alemanha que chegam aqui concedendo entrevistas contra o comunismo e banhados no culto a Hitler. Invertem-se os papéis, os patriotas são postos na cadeia, os traidores, exaltados. O Parlamento transformou-se num morno depósito de capituladores e negocistas, e só um poder manda e desmanda, é o do Catete. Mente-se, mente-se de uma maneira descarada. A censura postal, de correspondência, a violação do domicílio, o espancamento e a intimidação reduziram a farrapo a Constituição. E pensar que isto não atinge a tranqüilidade do trabalho intelectual, a dignidade do escritor, o esforço disperso e dramático daqueles que ainda pensam em literatura no Brasil será admitir a ignomínia e entregar-se a ela. E é diretamente que a reação atinge os escritores. Há pouco tempo, Monteiro Lobato escreve um livrinho para adultos e crianças, um livrinho que é um documento de nossa época pela verdade elementar que ele encerra e porque encarna as aspirações de populações inteiras que querem sair da escravidão a que estão condenadas. A polícia de São Paulo não respeitou o nome de um dos maiores escritores brasileiros, apreendeu o livro como apreendeu o livro de Jorge Amado sobre a vida de Luiz Carlos Prestes. Daí para a queima de livros nas ruas, para queimar Dostoievski como escritor bolchevista, para queimar bibliotecas e caçar escritores, mandá-los para a Ilha Grande e atirar no lixo os seus trabalhos não custa nada. Lembro-me que Graciliano Ramos quase perde os originais de Angústia. Não fosse ter enviado uma cópia do romance para um lugar desconhecido da polícia e hoje a literatura brasileira não contaria com um dos seus maiores livros. Cabe perguntar: que farão os escritores? Reduzir-se ao silêncio, aguardar, ficar naquele pútrido attentisme28 ou resistir também, acusar e lutar como homens? Alguns respondem-nos que trabalham, que a ação anula a criação literária. Mas voltamos a indagar: onde está essa criação literária? Em nome dela, de concessão a concessão, prestam-se a todo servilismo, a toda covardia, a toda sordície, Em nome dela, acomodam-se e não criam nada. (grifo nosso) Dessa rumorosa e colorida teoria de defesa da criação literária saem pílulas poéticas, confeitos de ficção, qualquer coisa tão incolor, tão álgida e “passada” que nem ao menos chega a enganar os leitores. Esses fabricantes de gelatina literária inventam também um ar pessimista e consideram que não há salvação no Brasil e atiram a culpa em cima do povo. Um povo que não reage, um povo carneiro, um povo estúpido. Enganam e traem o povo, tentam uma literatura contra, e quando a reação investe contra o povo é ainda o povo o culpado de tudo. Trêfegos e afoitos quando contra o comunismo, esses escritores preferem recolher-se à ‘solidão criadora” quando os fatos mostram de onde vem o terror, a violência, a brutalidade policial. Ou passam a urdir arabescos em torno de Sartre, de Koestler, chegam até a Kravtchenco... Essa posição não deve ser a da maioria dos nossos escritores que não podem isolar o seu trabalho 128


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criador da atividade humana. Nesta encontrarão um mínimo de atividade política no sentido de ter vigilância e saber protestar e lutar contra os velhos e ferozes incendiários de bibliotecas e inimigos da literatura. Essa a lição de Dreizer e agora a lição de Benda que escolheu o seu caminho na luta contra os mesmos banqueiros que pagaram em dólar e libras, antecipadamente, os feitos de Hitler na Europa. E não podemos desanimar nesta hora quando, no mundo, os caminhos da liberdade estão cada vez mais largos e se multiplicam. Continuemos a trabalhar defendendo porém a porta de nossa casa, protegendo os nossos pobres livros e o nosso humilde trabalho. Porque não é a RádioPatrulha que nos protege nem o Sr. Ministro da Justiça. Somos nós mesmos ao lado das massas, esclarecendo-nos na luta de todos os dias, conhecendo o povo na sua miséria e no seu heroísmo subterrâneo e encontrando nele o verdadeiro mistério da criação literária, a força de uma obra que interprete a humanidade brasileira e ajude a conduzi-la também para diante.

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OS VIRADORES DE MADEIRA por Dalcídio Jurandir Na minha viagem às llhas pude ver de perto o trabalho dos madeireiros. Madeira é o nome que apaixona o povo das llhas como foi a borracha no seu tempo. É a coaruba5 que vai para Hamburgo. A Alemanha quer a coaruba das llhas para qualquer ersatz nos seus aviões. Quando vi todo aquele trabalho dos caboclos para abater e atorar, bolear, estivar e virar os toros até a emboiação e da desemboiação para o embarque, fiquei com pena e vergonha da literatura. O literato grã-fino não entra nas llhas para escrever suas páginas de antologia ou manufaturar romances de nome bonito, estilo engomado e capa imbecil. Os aviões exigem o suor e o sangue dos caboclos das llhas para servir a Hitler na sua histeria guerreira. Não é o dinheiro gasto, mas o trabalho humano reduzido a simples instrumento da guerra mecanizada e nutrida com 420 discursos do Fuherer e a poemas do acadêmico Marinetti. Andei pelas llhas no casco, de reboque, em escaler, na montaria, em navio pontão. Peguei no remo de faia sob o solzão da baía de Curralinho quando um dos nossos remeiros, de baço inchado e peito comido pela febre, tinha um passamento e se vazava de disenteria. Andei pelo atoleiro do igarapé S. Roque e fui ver a rolação da coaruba no centro onde a onça deixa rastro e o jaquiranabóia espeta o ferrão no marupaseiro. Ali os homens mergulham no mato e saem com os toros enormes amassando a terra que a chuva empapa nos últimos dias de maio. Os homens, silenciosos e sombrios quando entram no mato, se transfiguram desde o momento que começam a rolar os toros nas estivas longas. Enchem de exclamações a floresta contra os paus bem criados de duas ou três toneladas. Corriam as suas vozes na pesada solidão vegetal, seus peitos tufam sob a brutalidade do serviço. Com seus gritos com que tentam tanger os rolos, eles desejam talvez que as vozes suadas e angustiadas do seu trabalho sejam ouvidas através do mato e dos rios. Sejam ouvidas na cidade entre os sambas da Carmen, o clarão dos cartazes e a torcida de futebol. Mas a distância abafa as grandes vozes dolorosas, Aterra tem ciúme daquele surdo clamor quase trágico. Naquele clamor, naquele ritmo atropelado de homens virando os toros sob o coro singular dos viradores de madeira que não tem a inflexão, a poesia, aquele desespero lírico dos viradores de terra que Nunes Pereira encontrou em Capanema. É um coro subterrâneo, sufocado, de vozes curtas que não cantam, praguejam e bradam soturnamente sobre o toro que não vira... A floresta récolhe as vozes na sua formidável solidão. E eles continuam a derrubar as coarubeiras, a rolar os toros, noite adentro, à luz dos candeeiros e dos fachos. E é ainda à noite que eles vão embarcar as coarubas nos feixes de aninga cortados na véspera. E quando tombam nas redes no taperie, têm um sono de bichos, um sono de troncos abatidos na vigília da floresta saqueada. Moram no taperi durante todo o preparo da madeira. Roem jabá ardido, um mapará seco ou carne do Marajó, carne de boi morto de doença que produz a ‘hemorróida sangrada” no pessoal... Mas os trabalhadores assumiram o compromisso de preparar a madeira para o embarque. Não há trovoada nem sono, não há mesmo fome quando às vezes falta o rancho, não há febre nem moição de corpo que os faça desertar do trabalho a 4$000 diários a troco com direito a mantimento. Só mesmo quando um foro amassa uma coxa, parte uma rótula, rebenta um pé, esmaga um braço. Gritam de dor e são afastados da luta, mas os outros continuam. O trilho pelo qual rolam os madeiros tem mil, dois mil passos ou mais longe do igarapé onde os feixes de aninga esperam para emboiar os toros. Agora imaginem o drama embrutecedor desses homens lutando, se espremendo, de noite e de dia, para arrastar os toros em cima da estiva que eles antes preparam depois de destocar a estrada até a emboiação! Dormi uma noite no taperi dum amigo para assistir ao drama. Acordei para ver a viragem noturna, o espetáculo de troncos humanos, curvos e viscosos, atracados a um toro monstro que não quer subir um lombo de terra, que escorrega do trilho ou corre numa descida. Há um homem na frente que com o espeque de meraúba corta a carreira do rolo, endireita-o na estiva. Vem na frente do madeiro como um baliza. Um descuido, um pé que falseie, um esmorecimento e eis o homem debaixo do toro, ou no mínimo com a perna esmagada. Tem ainda os proeiros que ficam nos extremos da coaruba dirigindo a viragem. São eles que gritam o “vira-viral” inicial, mandam parar ou chiar o pau. O espeque transmite a ordem e os outros viradores arrancam: “Vira, vira, moreno!” 130


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E os homens agarrados ao monstro, braços, dorsos, peitos, cabeças, confundidas num só bloco empurram-no aos gritos, aos “vira-vira” numa excitação quase lúgubre. Eu os acompanhei naquela noite dentro do mato à hora em que a jaquiranabóia assanha-se com a luz, a surucucu se desenrola e a onça acende os olhos no cerrado. “Tambariramba!” É uma das interjeições selvagens com que eles dobram os paus encalhados ou caídos fora da estiva. “Tambariramba!” é um grito heróico, uma grande voz humana saltando da terra onde se abatem os madeiros. Do igapó onde se cortam os cipós e a aninga para a jangada. Das águas onde se embóiam os toros e do porto de embarque onde o guincho sacode as coarubas no porão do cargueiro.

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