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HOspedeira Das Cinzas Indomรกvel
L u c as
M ora g a
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© 2013 por Lucas Moraga
Preparação: Lucas Moraga Revisão: Adriane Rodrigues Diagramação: Lucas Moraga/ João Marcos Oliveira Capista / Ilustrador: Diego D'Andrea
[2013] TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS À LUCAS MORAGA BELÉM - PA
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“Do pó vieste e ao pó retornarás” (Gen. 3:19)
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Para minha m茫e, meu padastro, meus av贸s maravilhosos e meu cachorro Kinder Joy.
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Prólogo
Entre os milênios em que um vácuo, frio e vasto, engolia o universo e as entidades máximas dominavam o que existia, houve uma era inimaginável. Uma era composta pelo caos e repúdio de honra. As entidades cósmicas se denominavam irmãs. Nenhuma era dotada de sexualidade ou contorno. Eram seres disformes e abstratos como o vácuo. Metamorfose, uma das irmãs, representada por uma borboleta sangrenta, era uma entidade rígida quanto ao seu vasto poder de transformação. Mudava sua personificação à medida que sentia que isso era viável. E a terra era sua casa. Encontrava renovação no sangue, que para ela era a maior dádiva da transformação. Metamorfose era astuta e inteligente, como uma aranha que tece suas teias cuidadosamente e não suja as mãos para apanhar suas vítimas. Seu poder ia além de mudar-se, ela exercia um forte domínio sobre alucinações e o que tal ser podia ou não ver. A ilusão poderia causar o caos ou não. Dependeria apenas dela. Na outra parte da linhagem, estava Força Bruta, representada pelo vigor de dois cavalos robustos, era uma entidade que não sabia usar a inteligência e muito menos esperteza. Ela apenas utilizava tudo o que lhe foi concedido algum dia: força. Uma força capaz de arrasar mundos, mover montanhas, manipular o vento para que se deslocasse em outra direção e fazer a temperatura de um vulcão abaixar. Força Bruta não possuía medo algum e era extremamente impulsiva. 20
Na parte mais empática desta família, estava a Sabedoria, representada posteriormente por uma folha de carvalho, era uma entidade cósmica que detinha um grandioso poder. O poder de saber discernir cada coisa detalhadamente e de não ser influenciável. Seu vasto poder “mental” atribuiu a ela um controle sobre as ações de qualquer elemento cósmico. E usava sua sabedoria infinita para reger tudo o que estivesse sobre seus interesses e jamais comprava briga com alguma de suas irmãs. Eis que a árvore se afunila para um lado grandioso dessa “família”. Encontra-se Morte Destemida, simbolizada por um corvo e uma espada cintilante. A figura do corvo era vista como a de um ser obscuro e cheio de mistérios. E a espada representava a coragem e destreza, era outra entidade cósmica abstrata. Sua relação com a irmã maior nunca foi das melhores, ambas disputavam a soberania da regência do universo por se acharem capazes para tal. Antes, Morte Destemida residia dentro de uma dimensão conhecida como o Reino da Morte, que também abrigava o bem infinito, que continha o conhecimento do universo. Os poderes de Morte Destemida eram inconcebíveis e incalculáveis; e como outras abstrações cósmicas, usava infinitas fontes de energia, apenas a sua presença podia causar a destruição de toda uma dimensão. E no topo desta linhagem estava a irmã maior. A Infinidade, chamada também de Cinzas, simbolizada por um dragão que mordia a própria cauda e uma runa viking, chamada Dagáz que significava a infinidade da paz em tempos de guerra. Tratava-se de uma entidade cósmica abstrata que era outra realização da soma total de tudo o que existia no eixo espacial de todas as dimensões. Ela tinha a capacidade ilimitada de manipular o tempo, espaço, matéria, energia, magia, era onipresente nas dimensões e possuía vastos poderes. Cinzas era uma das cinco entidades essenciais existentes no vasto espaço, com Morte Destemida, Metamorfose, Força Bruta e Sabedoria. Embora cada um desses seres referiam-se a si mesmos como irmãs, cada um dos outros quatro possuíam uma ponta de inveja do vasto poder de Cinzas. Ela era a personificação de tudo que existia e representava a vida e a ressurreição em todas as dimensões.
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As histórias mais antigas já contadas estavam alicerçadas no universo. Histórias de um tempo anterior a homens e deuses, quando essas entidades cósmicas dominavam a extensão do universo. As entidades eram poderosas e nada parecia deter a imensidão de seus poderes, entretanto, este glorioso reinado se fez em ruína pelas mãos do seu primogênito Zeus, gerado a partir da força do cosmo das entidades coabitado com os raios do sol. Ele convenceu seus outros irmãos de que suas mães eram detentoras de um ódio rancoroso por eles e que era preciso colocar um fim nisso, antes que elas mesmas os destruíssem. Então, veio o império negro que se chamou de Olimpo onde os filhos traidores das entidades buscavam o poder sobre tudo que existia. Zeus se tornou o Senhor dos Céus. E pelas suas mãos foram feitos do barro os seres vivos e as preces desses seres nutriam a imortalidade dos deuses. E depois disso, Zeus aprisionou as entidades e selou o espírito delas em corpos puros que haviam espalhados pelo universo. Os seres que ele mesmo criou. Seres que jamais podiam receber tal poder. Porém, uma era inefável teve seu início. Não havia completa confiança de que as entidades permaneceriam adormecidas para sempre nos corpos dos hospedeiros. Em meio à jornada do tempo, elas despertariam e trariam consigo todo o ódio e vingança que semearam por seus filhos traidores e o mundo que conheciam cairia em uma completa nuvem de caos.
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Capítulo 1
Destino
ntardecia na geada cortante do ártico e um fogaréu iluminado rasgava o céu, introduzindo cores e formas no arranha-céu celeste. Era a aurora boreal que mais uma vez embelezava a paisagem gelada. – Não deveríamos ir tão longe sem acampar para descansarmos. – sugeriu Nafón receoso. – Aqui estamos vulneráveis a qualquer animal selvagem. – afirmou com um medo latente em sua voz. – Prosseguiremos sem pausas, nosso prazo encurtou depois de três dias de neve constante e os Mordecs odeiam esperar. – replicou Jêki olhando para o avermelhado e flamejante horizonte. O povo Neodiano não aceitava falhas no que dizia respeito ao seu comércio misterioso de especiarias. E essa não seria a sua primeira falha. Era um povo tipicamente mercante e vivia de negócio e trocas. Nenhuma cidade deixara de ouvir falar do famoso vilarejo de Neodin. Eram conhecidos por sua frieza no tratamento familiar e ao redor deles respingavam diversas lendas sobre suas transações, não só de coisas comuns. 25
Eles precisavam se apressar para encontrar com o outro grupo de andarilhos que estavam perto do lago congelado Foreal para, assim, seguirem até Neodin todos juntos. Os garanhões estavam cobertos por neve alva, assim como as malhas de couro marrom dos peregrinos, nada se ouvia além dos galopes e galhos secos sendo pisados. Chegando perto da capital de Mordec, os animais mais brutos alteraram seus passos de rápido para lento. Quando se ouviu ao longe um ruído estranho e alto. – Senhor Jêki, que som é esse por trás daquele pinheiro? – indagou Nafón, interrompendo o sossego que tomou conta dos viajantes. “Pode ser um bicho raivoso.” – pensou Jêki. “Sabia que não deveríamos ter ido tão longe assim sem descanso, essa região é inóspita.” – salientou o pensamento de outro viajante. – Parem seus cavalos! – ordenou Jêki rudemente. – Nafón, venha comigo. – Sim, senhor. – seu rosto era de incerteza do que encontrariam mais adiante. – Nafón, fique mais atrás, irei na frente. – disse Jêki, sacando a faca de seu cinto. No céu, as cores dançavam ao som daquele início de noite fazendo caminhos e labirintos indecifráveis, dando espaço para o glorioso poente solar. A luz do sol descendo acanhado pousou sobre os rostos cansados dos que ficaram mais para trás esperando Jêki. Aquele lugar era definitivamente o último em que queriam passar a noite, afinal era a região em que mais aconteciam ataques de animais selvagens e eles tinham consciência disso, porém não tinham outra alternativa senão essa. O restante dos andarilhos aguardava mais atrás em seus cavalos, enquanto tremiam de frio. Instantes mais tarde Jêki saiu de trás do pinheiro com um bebê no colo. – Veja! É uma criança. – Nafón suspirou, aliviado por não ser algo pior. – É uma menina. E carrega nessa pulseira a runa perdida Dágaz. Extraordinário! – murmurou Jêki, passando a mão sobre o rosto frio. Seu olhar era de surpresa. O bebê chorava tanto ao ponto de quebrar fatalmente o silêncio que assombrava a expedição dos Neodianos. Estava enrolado sobre um manto 26
acinzentado escuro e parecia que seu choro indicava que precisava comer o quanto antes. Jêki chamou sua esposa Belinsa para avaliar por que o bebê chorava tanto e se não estava machucado ou algo assim. Ela, prontamente examinou de maneira cuidadosa a criança e constatou que o bebê estava apenas com fome e como Belinsa havia dado à luz há poucos meses, ela se ofereceu para ser a ama de leite do bebê até ter idade para alimentar-se de outras coisas. Os cabelos do bebê eram de um vermelho intenso e era notório que seria uma linda menina. – Não há nenhum indício de onde ela seja, nem carta, nem informação, como vamos saber de quem ela é? – Belinsa perguntou. – Quem a deixou aqui queria vê-la morta, vamos levá-la. A manteremos a salvo até o tempo certo. – disse Jêki, levantando a criança e colocando-a nas rédeas do garanhão coberto por neve. Os olhares Neodianos foram postos na recém-nascida assim que Jêki, chefe da expedição, a trouxe para ser conhecida por todos da tribo. Ninguém sabia nada daquele ser pequeno, esbranquiçado e ruivo como o fogo celeste do céu gelado. – A criança se chamará Aurora, a emancipadora que trará paz nos tempos sangrentos de guerra e, a partir de hoje, fará parte do povo andarilho Neodiano. – declarou Jêki, erguendo o bebê para o fogaréu astral da Aurora Boreal, que se espalhava criando a imagem mais surreal já vista. Daquele dia em diante nunca mais o gelado espaço do horizonte ártico seria o mesmo. Aurora, nascida no entardecer de exaltantes labaredas, seria agora o início do infinito. *** A dois dias de distância dali, com uma frieza de ranger os dentes, outra parte dos andarilhos Neodianos apressava-se para chegar ao lago congelado Foreal. Flocos de neve assoberbavam o nascer acanhado da noite, enquanto lá no alto despontava a beleza súbita lunar. Era a décima aparição da Lua Quarto Minguante daquele ano. – Socorro, socorro! Tirem-me daqui! – uma voz gritou desesperada. À medida que o jovem Neodiano Kaino chegava mais perto, o tom da voz soava mais assustador. Kaino estava distante do resto do grupo, 27
procurando lenha na estranha e penumbrosa floresta, enquanto as primeiras sombras formadas pela lua emergiam no chão de folhagem escura-morta, a voz o seguia... “Preciso ver de onde vem isso.” salientou seu pensamento involuntário. Os gritos guiaram o jovem franzino até uma das cenas mais horrendas de sua curta vida andarilha. A fogueira estalava ao fundo. Era de longe o pior sentimento, ver e ouvir o último timbre saído da garganta de um homem alto e robusto, com malha de couro cinza-esverdeado que outrora clamava ansiosamente por socorro. Suas mãos se erguiam pela última vez e o sopro de vida se extinguia de seu peito. Ao lado dele, dezenas de corpos, mulheres e crianças em posição fetal, todos aparentemente mortos, porém, ao aproximar-se, Kaino viu algo se mexendo dentro do estábulo. Parecia um acampamento mais que temporário para aqueles desafortunados. Junto às montarias, Kaino encontrou uma criancinha de seus três anos, pálida de cabelos cor de fogo, brincando com um corcel. Vendo que estava cada vez mais perto, a criança tentou esconder-se atrás de uma das pernas do animal. – Venha aqui! Não vou te machucar. – afirmava Kaino estendendo as mãos. Por um momento esqueceu de todo horror visto minutos atrás, só pensava em tirar o bebê daquele lugar e ir embora. Olhando nos olhos azulcéu dele, repentinamente Kaino sentiu suas pernas trêmulas e num movimento instintivo viu-se no chão rasteiro rodeado por feno e fezes dos garanhões premiados. De relance avistou a cor dos olhos da criança, jurou que aqueles mesmos olhos que noutro tempo eram azuis como o mar, agora tornaram-se negros como a noite que ali pairava. A dor física que se espalhou pelas veias e músculos de Kaino ia cessando ao passo que o esquisito menino adormecia ao lado do corcel. A criança cobria-se com a cauda do animal para se proteger do frio, enquanto o vento batia cada vez mais forte dentro do estábulo. Aqueles olhos não eram mais aparentes a vista de Kaino que, sem hesitar, pegara o menino pálido nos braços com inúmeras dúvidas: “Quem matou todas essas pessoas dessa forma tão torturante?”.
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– Quem é você? – indagou sonolento, o menino. Seu rosto era gracioso, porém, havia algo nele que nem mesmo Kaino poderia descrever. – Me chamo Kaino Eneas, do povo Neodiano, não se preocupe vou tirar você daqui! – exclamou a fim de passar segurança ao garoto. – E você, garotinho, como se chama? – perguntou colocando o menino no chão. – Sou Lunno, o Ousado. – disse ele apontando para o céu. Kaino se viu obrigado a contemplar a beleza lunar daquela noite. A lua, revestida por seu vestido prateado, embalava o cintilar intenso das estrelas, sem demora foi coberta com nuvens de um cinza escuro, ofuscando o intenso clarão que irradiava de si. Depois de a lua ser coberta quase que totalmente, um vento frio soprou do norte e eriçou os pelos de Kaino e assim Lunno, o Ousado, com seus belos cachos avermelhados e olhos verdejados fora trazido para junto de seus novos irmãos. Perto do lago Foreal, já com a criança ao seu lado, Kaino apresentou Lunno ao resto do grupo. A maioria não se importou, porém, o líder questionou como o tivera encontrado. – Onde o achou? – Tedar perguntou num tom quase de sussurro. – Sem perguntas agora chefe, por favor. – pediu Kaino. Seu rosto ficara cada vez mais sem expressão e apenas ele sabia o porquê. Uma brisa suave despontou no glacial lago Foreal, adocicando a longa viagem que estaria por vir.
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Capítulo 2
A Lâmina que os Une Em busca da paixão pelo brilho dourado do outono, quais são os segredos a ser revelados abaixo de um velho carvalho?
s galhos desprendiam-se conforme sua passagem, como se tivessem a consciência de que caso o vento não os auxilia-se a desprender-se de sua forma rija, provavelmente seriam quebrados pelo corpo que rompia-se contra em alta velocidade. A jovem escalava cada vez mais rápida a velha montanha de Frazell, um local inóspito e secreto que somente os repudiados conheciam, pois dentre a força e a coragem, todos os renegados não precisam de um lar, e sim de alguém que saiba onde encontrá-los. Para Aurora, Lunno era quem sabia exatamente onde encontra-la, e para a infelicidade dele, hoje, ela também sabia. Virando a direita sobre a encosta íngreme, passando abaixo de um agrupamento de rochas dispostas ao beiral de um penhasco, as madeixas puras beijavam o rosto falsamente gentil, bordadas pelo vento, encorajandoa a seguir em frente. Não que precisasse. 30
Apoiando-se em uma árvore semimorta, a criança que deveria possuir aparentemente cerca de doze anos, apoiou-se entre duas frondosas raízes e pulou entre as mesmas, escorregando, sujando sua nova beca de terra. Provavelmente não teria importância, pois a beca era nova para a mesma, porem já fora usufruída por três ou quatro jovens neodianos anteriormente. Agora, deslocando-se lentamente, chegou ao final do túnel cobrindo levemente os olhos azuis, protegendo-os contra os ofuscantes raios de sol da esplendorosa tarde de outono. Respirando observando o entorno tão familiar da clareira, ela sentou-se abaixo de uma árvore e fechou os olhos, com um semblante familiar pernoitando seus lábios serenos e vermelhos. Um barulho foi feito a sua direita, e o vento cortando-a na vertical não a fez mover-se. O mesmo movimento seguiu-se mais três vezes, e quando finalmente abriu os olhos, Aurora vislumbrou quatro facas brilhantes ao seu redor, prendendo suas vestes relativamente novas a terra, estava imobilizada, e ainda assim, com um semblante sério, olhou para cima vendo a folhagem do carvalho ofuscar o céu. Um jovem encontrava-se debruçado sobre um grosso galho de arvore, logo acima da jovem. Exibia um sádico sorriso em seu rosto, algo assustadoramente não natural em si, que foi rapidamente escondido quando ele soltou uma última faca na direção da jovem, esta varou-lhe e caiu entre as pernas esguias protegidas pela calça de couro que encontrava-se escondida por debaixo da túnica cerimonial. — Sei que não preciso dizer por que estou aqui, então pode parar de jogar facas. — disse a jovem séria, puxando a manga esquerda, rasgando levemente a manga para começar a desprender-se.
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— Se eu sei por que você veio você sabe por que vim, não vamos discutir Aurora, não importa o que faça ou fale, eu não vou. — afirmou o garoto sério, recostando-se. A jovem, sem mudar a expressão, sabia tratar-se entre um conflito de vontades, então, desprendendo-se das facas, empunhou duas das cinco e começou a escalar a frondosa arvore até apoiar-se e sentar-se no galho em que o ruivo encontrava-se, sentando a frente dele. — Sei... eu sei que é ruim e você sabe o quanto odeio aquela gente e o modo como nos tratam, mas uma vez na vida poderíamos tentar seguir alguma tradição... Honrosa... — disse tentando observar o ruivo nos olhos que atualmente encontravam-se cobertos pelos cachos espaçados e rebeldes. Ele moveu-se rápido para pegar-lhe o braço, ao qual recebeu um bloqueio imediato, porém com a mão livre, apoiou-se no galho, tudo em questão de segundos, tudo muito rápido, o rapaz jogou a jovem contra o tronco principal da árvore a prendendo entre dois galhos. A faca que antes se encontrava presa ao tronco para apoiar seu equilíbrio agora jazia apontada para o pescoço da jovem que estava calma de olhos fechados. — Uma vez na vida outra na morte, Aurora, não teime com seu irmão mais velho, eu não preciso participar de uma cerimonia ridícula para provar que sei manejar uma faca, muito menos preciso de uma adaga de ouro, sei lutar com todas as espécies de lâminas e não ficarei me exibindo para as cadelas da vila ou para os anciões que nunca mataram um coelho sequer. Pare de teimar, está bem? — com um semblante de seriedade, colocou uma mecha do cabelo da jovem para traz da orelha, mostrando-lhe a face imparcial de olhos fechados. — Caso contrário, não hesitarei em fazer algo ruim com você. — Findou pressionando um pouco mais a faca.
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Neste instante, a garota meneou a cabeça para o lado esquerdo com força, obrigando o irmão a solta-la, com a surpresa, um leve corte de sangue lhe foi feito no pescoço e a ruiva sumiu de vista. Lunno, que aguardava ouvir o impacto, foi surpreendido por um par de pernas cruzadas a sua frente. A garota estava dependurada de ponta cabeça. Com o cenho franzido ele a imitou, e este foi seu erro. — O que você pensa que está fazendo Auror... — mal conseguiu terminar a frase antes de sentir-se ser abraçado e puxado para baixo. Aurora lançara-se contra seu irmão e soltara seu peso da árvore com o intuito de cair. “Esperta e teimosa!” pensou o ruivo extremamente bravo, segurando com força os pés contra a árvore. — Me largue! — gritou. Aurora sem solta-lo sabia que faltavam dois metros de seus pés até o chão, o que não era muito, mas o suficiente para deixa-lo atordoado com a queda por metade do caminho. — Você disse “uma vez na vida e outra na MORTE” — gargalhou a ruiva com os cabelos dançando contra o vento enquanto o corpo dançava conforme seu irmão se debatia. — Porque você quer tanto que eu faça essa droga de teste? — falou ofegante. — Sabemos qual será o resultado Aurora. Pare com isso! Não quero machucá-la, mas você está pedindo! E terminando a frase ele se movimentou como um pêndulo de relógio que marca o alvorecer da meia noite, fazendo Aurora bater contra o tronco principal do carvalho. O impacto surpresa fez a jovem solta-lo, mas ainda assim, como gatos, ambos caíram de pé, um frente ao outro, duelando por forças de vontades que ambos não compreendiam de modo mútuo pela primeira vez.
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— Porque você não aproveita o que tem Lunno? — Aurora sussurrou. — Porque você nunca aproveita nada do que tem? Já temos pouco! Já somos maltratados! Porque não pode aproveitar nada? — De que droga você está falando Aurora? Você e eu nunca desejamos nada deles! O que deu em você? Está começando a parecer mulher até. — Eu já sou mulher seu idiota! É só que você...você me irrita! — Ela foi para cima dele com os braços erguidos, como se não desejasse lutar, ou tivesse desaprendido a maestria. Com calma ele facilmente interceptou ambos e neste instante se encararam. — Não é novidade que a irrito. Você no momento está bem irritante. Agora, vamos voltar, o que aconteceu Aurora? — Não aconteceu nada. — respondeu tornando a ficar séria. — Só quero que lute e ganhe aquela faca. — Porque você quer que eu ganhe aquela faca inútil? — salientou a última palavra arqueando a sobrancelha esquerda. — Por que... — ela olhou para o lado, quando Lunno rapidamente juntou os pulsos dela segurando-os com uma mão enquanto a destra passou a apertar o firme queixo da adolescente, obrigando-a a fita-lo nos olhos. —Por que... — incentivou-a sem paciência. — Porque eu não posso ganha-la! Que droga Lunno! Eu queria aquela faca, eu sou muito melhor do que você, se eu pudesse participar com toda a certeza participaria e ganharia de você. — ela ficou trêmula de raiva puxando os braços, libertando-se, enquanto Lunno momentaneamente chocado permanecia imóvel. — E não posso mais tentar porque já sou mulher. — ela cuspiu a última palavra. O jovem deixou seus cabelos moverem-se contra o vento escondendo sua face em choque, mesclando-se com o divertimento, ele gargalhou 34
brevemente. Sua voz não combinava com o riso, então os papeis inverteram-se e Aurora que ficou com a expressão atônita. Quando finalmente Lunno recuperou-se, em seus olhos exibiam-se um brilho de determinação. — Então... Quer dizer que você é melhor do que eu não é? Interessante... — Lunno delineou um sorriso de canto. A garota esperou um tempo até perceber a jocosidade na voz da face séria. Ela deu um raro e deslumbrante sorriso. — Sim, eu sou. Num movimento rápido Lunno chegou até a mesma, e antes que pudesse ser impedido deferiu-lhe um afago no topo da cabeça. — Então veremos. Deixe seu irmão ir até a vila pegar a faca e espere aqui. Quando eu voltar teremos um embate por ela. Os olhos dos dois reluziram de entusiasmo. — Você tem que ganhar antes! — gritou Aurora. — Não vale roubar! — Contra os neodianos não encaro como ganhar. — respondeu de volta virando-se com um meio sorriso. — A única adversária de valor que encontro está bem aqui. E com isso o jovem pulou para dentro do túnel. Havia uma relação de troca que ao mesmo tempo duelava com o ego de ser melhor. O que restava saber era até onde isso podia ir algum dia.
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Capítulo 3
Maus Modos Anos mais tarde...
amanhecer limpo e sem neve apontava o término do inverno em Les Baux, França. As folhas dançavam no ar, girando, descendo e subindo com a ajuda do vento, enquanto, num humilde casebre, as janelas de madeira se abriam anunciando mais um nascente do sol. As luzes se espalhavam pelo pequeno quarto indo em direção ao rosto de Aurora, despertando-a. Seus longos fios avermelhados cobriam seu gracioso rosto esbranquiçado, os lábios levemente rosados estalavam-se um no outro, espreguiçando-se do curto sono que tivera na noite passada. A seda de sua roupa aderia em seu corpo, ficando transparente. O frio da França medieval dava lugar à primavera que coloria a paisagem do lugar. Passaram-se dezoito anos desde que a encontraram atrás daquele pinheiro envolta apenas por um manto e, à medida que Aurora crescia, nunca soube o que era ter o amor de uma família, já que ela e seu irmão de criação, Lunno, eram motivo de repúdio por parte da maioria dos moradores de Neodin. Eles tinham medo do desconhecido e os boatos que se espalhavam aos montes, sobre como encontraram seu irmão, eram macabros. Porém, ela 36
não se importava com esses comentários, afinal, ele era seu único laço afetivo. A única ponte de ligação com algo parecido com amor, talvez. Aurora despertou ofegante. O que ela acreditava serem pesadelos da noite, a sucumbiram quase por completo e não havia dúvidas de que aquilo era quase real. Era como a aurora boreal, as chamas cintilavam forte no céu, mas em vez de diversas cores, estava com apenas um tom em todas as extremidades, parecia realmente um fogo alaranjado que cobria todo o espaço celeste, de forma que, ao fundo, ouviam-se uivos de lobos lamentosos, ranger de dentes e ossos quebrando como vidro em meio a uma atmosfera apavorante, que a assustava cada vez mais e ela não via a hora de todo aquele horror acabar logo. — Já está pronta? — uma voz soou atrás da porta. — Estou saindo, não me demoro. — declarou Aurora despindo-se do tecido fino molhado com um pouco de suor, pronta para um bom banho e depois colocar sua roupa mais apresentável, embora odiasse isso. Temia a hora que ficaria mais uma vez frente a frente com os utensílios de mesa que tão mal sabia usar. Lembrou-se de outros banquetes em que tivera de estar contra sua vontade e como aqueles utensílios eram difíceis de manusear. Por seu gosto iria com a roupa que sempre fora treinar no acampamento dondariano, porém, naquela ocasião não podia ter esse “luxo” como prioridade. Na certa sabia que seria motivo de chacota mais uma vez por parte das filhas do chefe Neodiano que tinham quase a mesma idade que a dela. Era o quinto dia do mês, data em que os grandes fornecedores de especiarias vinham até o famoso vilarejo Neodin para ter seu pagamento mensal, assim como o colossal banquete em honra dos mesmos. Por isso, todos deviam estar obrigatoriamente deslumbrantes, embora, nem todos conseguissem tal proeza de fato. Aurora desceu as escadas de seu casebre envolta de seu manto negro de batalha, ornamentado com bordas douradas, sandálias vermelhas de couro de alce, junto com presilhas da mesma cor de seu manto. — Venha, já estamos mais do que atrasadas. — anunciou a criada, puxando-a pelo braço. — Largue-me. Sei o caminho. — disse incomodada, retirando as mãos da criada de seu braço. 37
As portas do Grande Salão dos Anciãos se abriram com o leve empurro de Aurora. Sua beleza era como de uma águia levantando voo. Os cabelos vermelhos bem penteados, lisos como a mais pura seda da região, balançavam ao passo que caminhava em direção à mesa onde seu irmão Lunno costumava esperar por ela, porém ele ainda não havia chegado. Devia ser o sono. O dia anterior no acampamento dondariano foi extremamente exaustivo. Enquanto sua esplêndida beleza fria embriagava os fornecedores de especiarias, viu-se obrigada a sentar junto das filhas do chefe Neodiano. Não as suportava, eram tão mesquinhas e fúteis que se deitavam com qualquer novo forasteiro que chegasse a Neodin. Entretanto sentar com elas seria um belo divertimento para Aurora. “Eu me porto mal a mesa e isso as ofende e as enoja e eu adoro ofendê-las e enojá-las” pensou. Ao sentar-se ao lado delas, notou a cicatriz que seu punhal havia feito no pescoço de Seana há alguns meses quando ela tentou cortar um pedaço de seu cabelo a mando de Tamara. — Aurora Bellator sentando-se conosco, só pode ser piada. Seu irmão lhe deixou, só pode. — ironizou Tamara Frat, filha de Jasedin com sua esposa Vileta, chefes de Neodin. — Finjam que não estou sentada aqui. — sua voz era de desprezo. — Quando Lunno chegar eu saio. — disse. — Se acha melhor que nós, bastardinha? Você e seu irmão estranho são o que existe de pior em nosso povo. A verdadeira comida que deve se dar aos porcos no chiqueiro. O lugar de vocês é com eles. Que os deuses nos protejam. Aurora estremeceu. Num movimento ágil pegou o punhal de sua coxa direita apontando sutilmente para a barriga seca de Tamara. — Volte a se dirigir dessa forma a mim e ao meu irmão e sua comida nunca mais terá para onde ir. — ameaçou Aurora com ódio nos olhos. Tamara se calou em uma fração de segundo com um medo absurdamente engraçado para Aurora. Por um momento se divertiu com tudo aquilo, mas, depois as ignorou por completo. — Um brinde ao glorioso mundo do comércio andarilho! — declarou alegre, Sizhn, chefe dos fornecedores do sudeste. 38
— Viva! — gritou um Neodiano seguido logo depois por todos que compartilhavam do banquete. O som do chocar de vidros tornou-se a trilha musical do salão. As horas se passavam sem Lunno que, ao que tudo indicava, não havia ainda despertado. Ter de aguentar mais tempo aquelas arrogantes não parecia uma ideia das mais animadoras para Aurora, levando em consideração que sua mão formigava para apunhalar Tamara no estômago. Em Neodin o tratamento entre homens e mulheres era praticamente o mesmo. Aurora e Lunno acordavam cedo todos os dias para ajudar a carregar as sacas de mercadorias que chegavam para dentro do depósito e não podiam reclamar do serviço. E nunca reclamaram, já que conseguiam carregar sacas maiores e mais pesadas do que qualquer outro homem robusto dali. Mulheres tinham os mesmos privilégios que os homens, se tratava de uma sociedade aparentemente igualitária e alguns tinham uma postura indiferente para com os irmãos. Muitos ali não os aceitavam como parte do povo e os excluíam de quase tudo que faziam. O banquete fora servido pouco tempo depois do brinde. Eram pratos apetitosos aos olhos dela, visto que não eram comuns refeições assim em Neodin. Depois de todos serem servidos devidamente, só restava a ela comer. Porém, nunca a ensinaram a comer com um garfo e uma faca. Aurora estava faminta e optou por arriscar, assim como nas outras vezes. Na primeira deslocação em direção à carne assada de porco, um pedaço voou pelo ar caindo no vestido de uma das amigas de Tamara. — Sua porca fedida, olha o que você vez! Sujou todo o meu lindo vestido. — pronunciou em voz alta, Ostara, levantando-se da mesa. — Você pode pagar pela sua boca, Ostara, sugiro que tome cuidado. — advertiu Aurora. — Não tenho medo de você, sua bastarda. Esse seu olhar superior não afronta ninguém e muito menos encanta, a não ser esses velhos nojentos daqui. Talvez eles queiram provar essa carne nova e podre, acho que é tudo que você tem a oferecer. Não era a primeira e nem seria a última ofensa vinda por parte das amigas de Tamara. Ela já estava farta disso. Sua paciência ficava no limite toda vez que as encontravam. Havia vezes que a humilhação era tamanha, que Aurora jurava matá-las com as próprias mãos. Mas a cicatriz de Seana a 39
lembrava que voltar a ter mais uma punição do conselho era uma consequência grave para ela, que futuramente poderia resultar na sua expulsão do vilarejo. O conselho dos anciãos de Neodin era rígido e sabia quando e como punir quem transgredisse as leis do lugar e Aurora já estava ciente disso desde sempre, mas a sua raiva não a fazia pensar direito. — Estou avisando, se continuar se referindo a mim como uma prostituta, você vai conhecer sua lápide mais rápido do que imagina. — mais uma vez ameaçou. Aurora definitivamente não queria que chegasse aquele ponto, afinal foi somente um vestido sujo, como nas outras vezes coisas fúteis e ofensas acabavam com a paciência dela. — Nossa, que agressividade. — disse dando uma gargalhada. — Você não assusta nem criancinhas indefesas com esse seu discurso sem sentido. Volte para o chiqueiro, quem sabe os porcos queiram sua companhia. — ironizou Ostara, falando ainda mais alto. O rosto de Aurora estava notavelmente furioso, afinal, prolongar ofensas daquele tipo só a fazia lembrar a todo o momento que nunca fora parte daquele lugar. Nem ela, nem Lunno. — A companhia dos porcos talvez seja menos desagradável do que a de vocês ou até a mesma coisa, afinal, ambos se parecem bastante. — tentou sorrir maliciosamente. “Já fui consumida pela vontade de matá-las, cada uma dessas arrogantes sem cérebro, acho que até já cheguei perto uma vez ou duas.”, pensou Aurora com raiva. — Você merece uma lição. — Ostara disse. Ostara pegou Aurora pelo braço e tentou esbofetear seu rosto, mas foi impedida pela fria Aurora que, num ataque de fúria, sacou seu punhal acinzentado e cravou no peito de Ostara. — Nunca mais me toque. — disse, retirando o punhal ensanguentado do peito de Ostara. Todos no salão olharam a cena, desacreditados, enquanto a moça caía morta no chão. Tamara aos prantos gritava para que Aurora fosse expulsa dali e que a matassem, porém, quem resolvia isso era o conselho. Não seria sua primeira visita à sala de confidências dos anciãos e nem a última se dependesse das amigas de Tamara. Porém, não ligou, afinal, o que de pior 40
poderia acontecer? Minaj já havia matado duas pessoas em banquetes, e o pior que aconteceu-lhe foi ter sua espada confiscada. De repente uma visão veio a Aurora deixando seus olhos, antes azul-claro, brancos como gelo. As imagens, os sons e os cheiros se sobrepunham em sua mente, como tantas outras vezes já tinham feito. Estava em uma floresta rodeada de rugidos medonhos, rastros confusos se espalhavam ao seu redor. Uma sombra passou correndo. Um ferimento aberto encharcado de sangue. Duas sombras seguindo em direção à uma velha. Sacudiu a cabeça expulsando as imagens, as sensações, os sons. Forçou a si mesma para que voltasse a realidade até que, enfim, olhou ao redor e se descobriu mais uma vez no meio do salão sob o olhar surpreso e aterrorizado de todos os presentes. Assustada, passou a mão em seu rosto, e olhando-as percebeu que seu nariz estava sangrando. Limpou-o rapidamente, correndo depressa para fora do salão. No caminho se perguntava: “Que sentido havia naquela visão?” Uma floresta, duas sombras, um ferimento grave e uma velha... Só podia significar uma coisa.
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Capítulo 4
Ousadia água doce pura corria pelos lagos frios da Floresta Izo. Aves agitavam suas asas levantando um deslumbrante voo apresentando o amanhecer. Um atraente carnaval de cores emergia da copa de árvores colossais e o solo transformava seu deselegante marrom em um tapete imperial pintado por folhas. Passados os dezoito longos anos, Lunno Bellator se tornou um esbelto jovem com seus vinte e um anos, de cabelos cacheados cor de sangue e olhos azulados como a pedra em forma de Lua minguante pendurada em seu peito. Sua pele mais parecia a própria neve que aos poucos diminuía ao seu redor. Nas suas veias corria o ódio retraído que tomara conta de si por jamais saber a verdade por trás de seu estranho aparecimento e resgate naquela noite marcada por gemidos de sofrimento e mortes. Em seu cinto carregava sua esplêndida lâmina de aço puramente Dondariano que era capaz de cortar até o mais fino fio de cabelo. Lunno cresceu repleto de dúvidas até quanto ao seu caráter, não confiava em ninguém que não fosse seu fiel amigo Hattan e sua irmã de criação Aurora. 42
Viviam em Neodin desde que foram achados e de lá só saíam para treinar escondidos no acampamento dondariano. Seu manto era de um vermelho menos intenso que seus cachos, dando um espaço para as tiras de couro em volta de suas coxas, onde guardava os punhais de ferro. Era normal em Dondarium usarem botas como a dele. Acinzentadas e escuras, tão macias quanto seus cabelos. Na roupa ainda havia diversos ornamentos dourados e distintivos de batalhas dos quais ele orgulhava-se por ter vencido, porém só os usava quando estava em Dondarium já que era proibido qualquer contato deste tipo com outros povos senão os de origem. Lunno era sagaz e ignorava todos os avisos de não caçar desacompanhado. Era atrevido o bastante para correr riscos. E corria. Sua espada refletia a luz do sol fora das incontáveis penumbras, enquanto corria ágil para destroçar um alce adulto com a lâmina que manejava em uma das mãos. Num piscar de olhos, Lunno estava em cima do animal, atracando sua espada contra a garganta de sua presa. O alce lhe deu um poderoso coice na altura do quadril. O jovem, quase sem ar, apanhou sua espada e em um movimento veloz girou seu corpo junto com o aço, decapitando o alce. Mais uma vez os pássaros levantaram voo e dessa vez, indicando medo. Algo ou alguém se aproximava dali apressadamente. Lunno precisava sair dali o quanto antes. Pressentiu que o pior poderia estar por vir, mas nunca teve medo de caça alguma, por que esta seria diferente? Seus nervos começaram a se alterar, o coração teve uma súbita taquicardia e, ao redor, as folhas das árvores se agitavam ainda mais intensamente. À sua frente podia ver que o lugar onde estava era vulnerável a qualquer ataque, sua única provável saída seria a trilha por onde veio, a mesma pela qual a coisa estava vindo furiosamente. Ele já podia ouvir o som do estalado de galhos e folhas secas no chão de terra marrom-escuro. Quando o arbusto à sua frente abriu-se e a fera saiu, ele pôde ver a fúria nos dentes afiados do animal. Rugia o leão-baio, a ferocidade do animal era tamanha que ele podia sentir a saliva da criatura caindo de sua boca, enquanto encarava Lunno ainda urrando sua raiva. O jovem, então, rodeou a fera e entrou na parte contrária da trilha que ele havia feito; à medida que corria, sentia que o animal estava cada vez mais perto. Aqueles olhos famintos indicavam que ele não comia há dias e Lunno seria uma refeição mais do que perfeita. 43
“Não.” - ele pensou. - “Não posso morrer nas mãos de uma presa. Eu sou o caçador!”. Foi então que chegou à beira de um precipício. Lunno olhou para baixo e só viu algumas pedras minúsculas desprendendo-se e sendo abraçadas pelo abismo. Não havia saída e ele se viu obrigado a lutar. O animal avançou com braveza, rasgando sua malha feita de fio de linho Neodiano, a luta se fazia mais bruta. Chutes, socos, não eram o bastante para manter o leão longe. O suor escorria frio sobre seu peito, a adrenalina que havia produzido em seu corpo era muito grande e ainda estava um pouco ofegante pela corrida que havia feito. Lunno sabia que não duraria muito se não o golpeasse fatalmente. — Aaargh, que droga! — gritou, sendo mordido pela criatura no braço esquerdo. Tentou soltar as presas da criatura de seu braço, mas o ferimento abriu como um buraco negro de sangue. Fechou seus olhos, embriagando-se do suor que escorria em direção à sua boca. Por um instante quis estar longe dali e noutro suas pálpebras desatavam-se agressivamente, fixo nos olhos do leão faminto. Lunno não percebeu, mas seu globo ocular escureceu tornando-se a própria treva em destino ao leão-baio que numa agitação súbita ficou paralisado, dando a liberdade do braço direito de Lunno para pegar sua espada, mas não a encontrou, não deixando alternativa, com a mão boa enroscou-a no pescoço do animal até ouvir-se o ruído de ossos estalando. — M-mas que diabos aconteceu aqui, Lunno? Deixa eu te ajudar. — disse Hattan chegando à parte da floresta Izo onde o amigo estava caído. Foi uma cena indescritível. Lunno sangrando com o rosto pálido e o leão ao lado com o pescoço quebrado. Ele não podia acreditar. Lunno nada respondeu a Hattan. Suas mãos estavam suando intensamente e seu corpo estava trêmulo de dor. Apoiou-se com dificuldade na espada com o braço bom, respirou profundamente e levantou. Hattan ficou de longe impressionado com a mordida violenta que estava à mostra no braço de Lunno, nunca isso havia acontecido antes. Lunno sempre o chamara para caçar junto com ele e Hattan não entendeu porque foi sozinho desta vez. Seria para provar algo a si mesmo? Ambos tinham o mesmo porte físico, não eram franzinos, mas também não podia se dizer que eram demasiadamente robustos. Eram altos, quase com seus
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dois metros de altura. O amigo conhecia a teimosia de Lunno, porém nunca imaginou que as consequências seriam graves a esse ponto. — Hattan, eu matei esse leão-baio apenas com esta mão boa. — disse-lhe Lunno sorrindo e ainda gemendo de agonia, com o olhar distante. Naquele momento seu ferimento se fazia ainda mais profundo e escorria uma boa quantidade de sangue no solo da floresta. Então ele desmaiou. — Pelos deuses, preciso tirar ele daqui. Velha Amur necessita ver este ferimento. — murmurou Hattan para si mesmo. Hattan rasgou um pedaço de sua camisa e amarrou na mordida do braço, em seguida carregou Lunno nas costas e o levou até Neodin a algumas léguas dali. Quando finalmente chegaram, já não se viam tantos andarilhos percorrendo as vielas, porém o cheiro da couraça nas roupas dos que se podiam ver, fedia como enxofre jogado ao ar. Hattan levou Lunno para receber os cuidados sombrios de Velha Amur, a curandeira de Neodin. Apenas ela detinha o dom da cura ali. Uma cortina de névoa pouco pesada e branca invadia Neodin, terra conhecida pelo seu distrito de vendas e trocas de diversas especiarias. Quem quisesse algumas das raras plantas e alimentos de valor comparado ao ouro precisava antes passar em Neodin, tudo que as outras cidades tinham em seus depósitos de alimentos e outras coisas para o intenso inverno, provinha do comércio Neodiano. Havia quem falasse que eles subornavam os chefes dos fornecedores de todas as regiões para burlar as leis e a fiscalização correta dos bens que eles adquiriam e vendiam, mas nada era provado realmente. O poder e influência dos Neodianos eram duvidosos e Lunno sempre desconfiou disso. Como um povo podia ser tão perfeito aos olhares de fora? Neodin possuía o melhor e o pior de Les Baux em apenas algumas jardas e ainda assim continuava fascinante para quem visitava apenas uma vez ao mês para receber pagamentos e dar as raras preciosidades do povo, mas neste dia estava quase vazia, com exceção de alguns locais. Um deles, o salão dos anciãos, estava bem barulhento como de costume no quinto dia do mês. Entretanto alguma coisa a mais havia acontecido. O barraco da mestra Velha Amur era sinistro. Feito de pedras acinzentadas, cruas e apenas com uma cortina para indicar a entrada e a 45
saída; ao lado havia uma árvore sem folhas balançando freneticamente e, ao passo que Lunno e Hattan chegavam mais perto, a névoa parecia cobrir mais o lugar, o que dava um tom mais que sombrio à paisagem ao redor. As cortinas foram abertas por Hattan e foram em direção a uma parte em que acreditavam ser a sala de espera da curandeira. O amigo retirou Lunno de suas costas e o deitou numa cama ali perto. — Mestra Velha Amur? — ele chamou analisando o local. A Velha Amur surgiu calmamente de uma penumbra. — Olá meu jovem, a que devo a inesperada visita? — indagou a velha, examinando-os. — Ah, vejo que o jovem Bellator está ferido, conteme como isso aconteceu. — Leão-baio. — respondeu Lunno num tom impaciente, acordando. O aroma daquele lugar começava a enojá-lo. O cheiro dos restos de ossadas, que até onde Lunno sabia, eram de animais, infestava a sala onde recebia seus feridos e o chão batido de terra molhada, mais parecia uma areia movediça sem fim. Tudo isso era desagradável para Lunno, sem contar os milhares de incensos espalhados por todo barraco de pedra. — Seu amigo tem sorte por ainda estar com este braço, em outra situação o baio o teria arrancado facilmente. — Amur afirmou sorridente a Hattan. — Apenas cuide para que fique bom logo ou ele terá mais uma desculpa para não me vencer num duelo. — sorriu, dando um soco de leve no braço bom de Lunno. — Pode contar suas mentiras por aí, Hattan, mas quando meu aço estiver em seu pescoço mais uma vez não peça clemência. — disse. Seu rosto fora tomado por uma expressão clara de dor. — Você vai sair dessa, como todas as outras vezes. — falou Hattan ao amigo. Além da dor física pela mordida profunda do Baio, Lunno sentia uma carga de terror nas mãos de Amur quando ela tocava-o. Sua avançada idade a fazia mestre na arte da cura antes mesmo do aparecimento dos irmãos Bellator; assustava até o mais bravo Neodiano com aqueles cabelos brancos emaranhados e o andar lento e corcundo. A pele parecia estar desgrudada de seu corpo há séculos e não havia mais espaços para rugas em 46
seu horrendo rosto. O sorriso, então, mais parecia uma mina abandonada de ouro podre de tão amarelados, contudo era muito intrigante a sua forma de falar com o ousado Lunno. Sempre indiretamente, deixando algo misterioso nas entrelinhas de que talvez só ela fosse conhecedora. Ficar mais tempo ali era efetivamente angustiante. — Calma jovem Bellator, com uma boa dose de ervas Solanum, você ficará forte outra vez. — disse, fitando-o com ironia. — Se a senhora diz. — desdenhou. Lunno não suportava o fato de haver perdido um combate e logo para uma caça. — Aaarghh! — gritou Lunno com agonia ao ser tocado no ferimento pela erva. — Como isso pode doer tanto? Ele sentia seu braço latejar de dor e parecia nunca ter fim. Só lembrava de como encontrou forças para quebrar o pescoço do leão, até então ele mesmo não entendia que força foi aquela. Podia jurar que algo fez o leão parar de morder seu braço com aquelas presas enormes e afiadas, só que ele não fazia ideia do que tinha sido. Talvez fosse apenas a sua força mesmo, talvez não. Ele nunca fora atacado desse jeito antes, por nenhuma de suas caças, para ele isso se tornara uma vergonha, já que o caçador virou a caça. Lunno sempre foi orgulhoso demais e deixava claro que nunca abriria mão disso, ele costumava dizer que os que resistiam e se aliavam ao orgulho eram mais poderosos e mais sábios. O seu ódio constante pelo povo Neodin era o que fazia-o continua vivendo, pois lembranças costumavam vir à tona em sua mente. Sonhos em que ouvia que ele havia matado pessoas ainda criança. Que ele era a causa do sofrimento de mães que perderam seus bebês e pastores que choravam pela morte de seu rebanho. Tudo isso ficou guardado dentro dele e jamais conseguiu amar da maneira correta. O amor para ele consistia em proteger Aurora. E somente isso. O medo que sentiu naquele momento foi de longe um dos piores que já havia sentido. Afinal, pensar que perderia a vida nas mãos de uma caça e de presente nunca mais veria sua irmã de criação, era amedrontador e a dor por si só aumentava com esses pensamentos. Mas a agonia era tamanha que por alguns instantes esses pensamentos desapareciam de sua 47
mente e ele quis desmaiar, entretanto sabia que se fizesse isso poderia nunca mais acordar. — A febre não está cedendo. Parece que as ervas não fazem efeito no corpo dele. — disse a Velha. — Mas você mesma disse que essas ervas o fariam melhorar. — questionou Hattan. — Aaargh! — mais uma vez Lunno gritou, todavia o grito se tornou ainda mais forte assim como a sua dor. Ele segurava com o braço bom a mão de Hattan, tão forte que Hattan pensou por um momento que ele quebraria seus ossos. Ali estava o único amigo de Lunno, Hattan. O que estava em todos os momentos, aquele que vivia dando sermões e apostando brigas para ver quem era mais forte e coisas assim. Não queria que morresse daquela forma, mas, estar do lado de um amigo honrado, faria da morte dele uma honra ainda maior. — Lunno, vai dar tudo certo, confie nessa velha. — pediu o amigo. Lunno ainda gritava de dor. O seu braço começou a ficar bastante inchado por causa da mordida do Leão-Baio, porém ele precisava ser forte, ou pelo menos aparentar que estava sendo. De repente, as cortinas do barraco macabro se abriram bruscamente fazendo a claridade do sol entrar junto com a beleza fantástica de Aurora. — Vim o mais rápido que pude, meu irmão. — disse-lhe, tentando tomar fôlego. — Você saiu para caçar sozinho de novo! Não vai aprender nunca? Estavamos todos à sua espera no banquete. — o repreendeu. — Mmas o que aconteceu? — Como você sabia? Ah... deixa para lá, sou mais velho que você, não me venha com esse falso moralismo fraterno. — retrucou. — Lunno, agora não. — afirmou Hattan, olhando-o. — Desculpe, minha irmã, é que esse lugar, esse cheiro, está me deixando atordoado. — murmurou, agarrando as mãos de Aurora entrelaçando-as. Aurora sempre fora muito cuidadosa com o irmão, mesmo que suas ações perante ela sempre fossem inconstantes. Aurora sabia que não era hora, nem lugar de prolongar um sermão ao seu irmão. Só restava a ela pedir aos deuses da cura que o fizesse melhorar. 48
— A bela e fria Bellator. Minha sala humilde está recebendo importantes visitas hoje. — ironizou a velha, pestanejando. — Não vim visitá-la, vim ver meu irmão. — rebateu. Velha Amur nada disse. — Como ele está? — perguntou Aurora não contendo a preocupação. — Vai ficar bem, não costumam dizer que os irmãos Bellator suportam até uma rajada do raio dos deuses? — respondeu mais uma vez ironizando. Aurora mirou seus olhos na velha e erguendo a cabeça declarou: — Não me canse com suas ironias, meu punhal tem um amor demasiado por sangue. — a olhou, desafiando. — Faça com que ele melhore logo. — Aurora... — disse Lunno fechando lentamente os olhos. — Lunno! Irmão, você vai ficar bem, não ouviu a velha dizendo? — o olhar era de preocupação. — A dor só está aumentando e minha febre não baixa. — declarou Lunno sem força na fala. — É verdade, ele parece pior do que quando chegamos aqui. — confirmou o amigo Hattan, coçando a cabeça. — Lembra-se das minhas palavras, velha? É melhor que faça ele ficar bom de imediato, senão... — ameaçou-a, avistando cada passo de Amur. — Aurora, sou Lunno Bellator. Ficará tudo bem, não se preocupe. — segurou-lhe as mãos. Hattan tinha certeza daquilo assim como Aurora. Lunno tinha sangue de guerreiro e seus ossos pareciam ser feitos de aço, não seria uma mera mordida que o derrubaria. Os irmãos Bellator eram temidos pelos Neodianos por serem implacáveis como o vento. Onde quer que fossem atraíam olhares curiosos com suas madeixas avermelhadas e olhares frios. Os Neodianos nunca os trataram com o amor estranho que demonstravam pelos seus filhos e filhas, sempre os desprezaram. Tinham prazer em pronunciar alto que eles eram os bastardos de Neodin, a quem eles mesmos resgataram e deixaram para viver humilhados no vilarejo. “Nunca pedi para vir para cá” pensava Lunno. 49
Lunno, o Ousado, era um guerreiro hábil. Encontrava uma faísca de amor no que fazia. Ser guerreiro não lhe exigia perfeição absoluta. Ou glória. Ou invencibilidade. Ele era a própria força. Essa era a única ousadia verdadeira que encontrava junto a seu aço.
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Capítulo 5
Massacre scurecia densamente na nostálgica Les Baux, o sombrio da noite já havia tomado seu lugar. No fundo do vilarejo ouviam-se os sons abafados e fechados de galopes alucinantes chocando-se contra o chão, acompanhados por gritos pavorosos. Aurora sentia uma vaga nuvem de sentimento de terror indefinido, o qual na noite passada tinha vivido no pesadelo. — O que são esses sons, Aurora? — perguntou Lunno já acordado, sentindo uma agonia no seu ferimento. — Não sei, mas vem do centro da aldeia. Fiquem aqui, vou ver o que está acontecendo. — disse encorajando-se. — Aurora, não sabemos o que é, pode ser perigoso. Fique! — exclamou seu irmão, temeroso. Os galopes ficavam cada vez mais intensos e os gritos frenéticos também. — Eu vou com você. — ofereceu-se Hattan.
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— Não, você fica. Com meu irmão nesse estado quem irá protegêlo? Essa velha bruxa? — bufou Aurora. — Prometo que volto. Lunno sabia que voltaria. Sempre voltava. Aurora correu depressa para a saída do barraco, outra vez abrindo bruscamente as cortinas. Aquele povo que a acolheu, mesmo sem ela querer e mesmo sem dar amor a ela, estava sendo trucidado por seres confusamente medonhos com elmos em forma de falcões negros. A lua refletia em suas brilhantes armaduras douradas e seus aços dilaceravam tudo que encontravam pela frente. O fogo consumia cada barraco do vilarejo, Neodianos eram massacrados sem explicação diante dos olhos de Aurora. — Onde está aquela que chamam de Aurora? — perguntou um dos cabeça de falcão ao padeiro da aldeia. — Não sei, não sei. — respondeu nervoso. Ouvia-se o estalado de mais uma cabeça rolando aos pés de Aurora. Num ato errante e heroico, puxou seu aço do cinto fazendo cintilar sua espada Dondariana com os primeiros raios da lua. Aurora não sabia o que lhe aguardava, mas não podia ver aquelas pessoas sendo mortas cruelmente por sua causa. Eles a queriam. E teriam. — Essa a quem procuram, sou eu. Aurora Bellator. — declarou bravamente exibindo sua lâmina. O vento frio bateu ainda mais forte fazendo as folhas levantarem do chão e lá longe lobos uivavam no crepúsculo de uma nova noite. O espaço celeste lembrou Aurora das histórias que contavam e canções que entoavam a ela quando era apenas uma criança, as chamas que invadiam o céu não tinham cores como a aurora boreal, apenas o calor alaranjado marcado por mortes. — Onde está seu irmão? — perguntou o maior deles, parecia ser o comandante de batalha. — Não tenho ideia. Não é a mim que quer? Então o que está esperando? — mostrava-se cada vez mais corajosa enfrentando o enorme comandante. Aurora sabia do risco que corria em quebrar a promessa feita a seu irmão e não voltar jamais, mas era uma Bellator e honraria seu sangue lutando, vencendo ou morrendo ela definitivamente lutaria mesmo estando 52
em total desvantagem. Eram dez homens-falcão. Ela, uma garota de dezoito anos com uma espada na mão e com o dobro da coragem deles. Os homens avançaram contra Aurora. As folhas se desprendiam do solo e era possível escutar o ruído enlouquecido de passos rápidos. Era a hora, Aurora mostraria o que havia aprendido todos esses anos no acampamento Dondarium. No primeiro e certeiro golpe a própria jovem abriu a garganta de um dos inimigos com sua afiada lâmina. Rodopiou abaixando a cabeça de uma das pancadas e com a parte extrema oposta da espada golpeou na barriga mais dois homens. O suor descia-lhe o pescoço e sua roupa de seda por debaixo de seu manto negro de batalha, aderia-lhe ao corpo. — Matem-na! — gritou o comandante mais atrás. Enquanto o resto dos falcões tentava alcançá-la, Aurora acertou mais dois soldados sem chance para um contra-ataque. Num momento de distração um dos soldados a pegou pela retaguarda, sufocando-a com o aço. Agressivamente ela deu-lhe uma cotovelada no estômago e caiu sobre ele matando-o. Outros dois pularam sobre ela, Aurora em reflexo girou ao redor de uma videira dando espaço para os golpes fatais que viriam a seguir. Corria em direção à ela o penúltimo dos soldados, quando ela se abaixou e o acertou por trás. — Não era a Aurora quem queria? Pois aqui estou. — disse apontando sua espada em direção ao comandante. — Devo matá-la para o bem de todos ou o mundo entrará em declínio. — falou o comandante falcão avançando sobre ela. O encontro das duas lâminas produziu um tinir rápido e um som agudo aos ouvidos. Aurora estava exausta e o falcão sabia disso. Os golpes eram intensos. Segundos mínimos antes de outro ataque, cada um deles bloqueava o efeito do outro. Percebendo sua exaustão, Aurora limitou seus ataques, ficando em total defensiva, quando o comandante a fez cair de joelhos num ataque brutal, ali pensou que quebraria sua promessa. — “Prometo que volto.” Apenas olhou para cima e tentou tirar forças de algum utópico lugar. — Você não me vencerá. — disse, rolando para trás levantando-se. Furioso, a pancada do falcão maior foi ainda mais devastadora; entretanto Aurora juntou forças e o bloqueou gloriosamente empurrando-o 53
para frente com sua lâmina. O encarou fixamente, dando seu último sofrido golpe, rasgando-o do ombro ao tórax. O corpo do comandante caiu violentamente no solo e produziu um eco. Aquele seria seu primeiro triunfo como uma guerreira. — Avisei que não me venceria. — afirmou cuspindo-lhe e limpando o suor de seu rosto. Caminhou até o grande salão dos anciãos e empurrando a porta se deparou com mais um punhado de soldados falcões e os quatro anciãos de Neodin ajoelhados. Ao ver que Aurora estava ali, os soldados sem piedade arrancaram a cabeça dos anciãos, uma a uma. Por todo lado respingou sangue e no silêncio do salão todos correram em direção à jovem para destruí-la. Aurora, enfurecida, parou todos os ataques, desviou de todos os pontapés e cravou seu aço em todos eles. — Ah, me soltem malditos. — gritou Tamara, no fundo do salão, sendo segurada pelos cabelos. — É a mim que procuram. Por que matar todos eles? — Aurora exigiu saber. Nesse momento suas mãos fechavam-se de raiva. — Por que você não veio antes para ser destruída por nós. Agora, eles pagarão o preço. — disse o último falcão que restava no salão, erguendo sua espada para o alto, cortando a cabeça de Tamara. Nunca gostara do jeito como era tratada por Tamara, porém ser morta por sua culpa não lhe parecia uma morte suficientemente digna. Aurora não teve trabalho para cuidar do último falcão, já que sua fúria já tinha passado dos limites há tempos. Nada fazia muito sentido. Por que o mundo entraria em declínio se não fosse morta? Todos os neodianos estavam mortos, seus irmãos comerciantes que por menor amor que tivessem por eles, não mereciam esse fim. Aurora precisava voltar, não havia apenas aquelas aberrações, estava certa que haveria muito mais. No alto, as nuvens começavam a cobrir a beleza lunar acanhadamente. Aurora sempre pareceu invencível em qualquer combate, mas naquela hora quase foi vencida. Seu manto era de um negro como o breu do céu em uma noite límpida sem estrelas, feito com bordas de couro branco,
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mas à medida que o sangue de seus ferimentos escorria, banhava o couro alvo. Pegou seu aço e correndo rumou para o casebre de pedra da velha, onde seu irmão a esperava. Ao adentrar no lugar pelas finas cortinas de fio de linho marrom, Aurora encontrou Hattan sentado bufando de dor. — Hattan, o que houve? — perguntou assustada. — Alguns homens com elmos de falcão negro... — Queriam matar Lunno. — continuou a jovem. — Precisamos sair daqui o quanto antes. A Velha Amur ignorou aquilo. — Se a velha quiser, que fique para servir de comida aos falcões. Hattan, consegue andar? — Consigo sim. — o ferimento de Hattan não era tão grave, o que fez com que levantasse rapidamente. — Acorde Lunno. Irei vigiar a entrada enquanto se preparam. Deu meia-volta e seguiu em direção às cortinas marrons. O breu celeste dava lugar às chamas que iluminavam tudo. Os garanhões relinchavam assustados dentro do estábulo, enquanto os outros galopavam desesperados em meio ao fogaréu da aldeia. Aurora por hora nada podia fazer, ainda havia perigo e precisavam refugiar-se em algum lugar. A vida em Neodin era cercada por constantes mistérios e olhares diziam mais do que as próprias palavras. Os irmãos Bellator foram criados sem nenhuma faísca de amor, mas o desfecho de seu povo a intrigou durante todo o tempo. — Estamos prontos para partir. — anunciou Hattan. Incrivelmente Lunno estava de novo em pé com o braço ainda coberto por ervas sendo apoiado pelo amigo. Hattan sempre fora fiel aos dois. Ele havia ensinado tudo o que sabia sobre o manejo das lâminas. “Sua fraqueza corta mais duramente que o próprio aço.” - dizia-lhes sempre. Tinha uma estatura alta, seus cabelos longos cor de mel-açúcar, olhos castanhos e um manto azul cromado com ornamentos infindáveis da patrulha Dondariana. Era um jovem valente, porém agia sempre com prudência e sutileza, qualquer missão que fosse dada a ele, a cumpria com êxito. Hattan Ylut não 55
possuía as características físicas marcantes dos guerreiros de Dondarium, louros por natureza como o ouro em seus distintivos; mas sua audácia o fazia ser reconhecido em todo lugar. — Lunno, graças aos deuses você acordou, estava preocupada com você. Esses homens, sangue por todo lado, fogo nas casas e cabeças aos montes pelas ruelas me deixaram com medo de perder você. — disse Aurora, segurando o pálido rosto do irmão. — Calma, Aurora, acho que esse mato me fez bem, nem sinto mais dor. — salientou, varrendo seus olhos para Aurora. — Você está ferida, não podemos seguir com você desse jeito. — o rosto dele mostrava uma eterna preocupação. — Não temos tempo para nos preocuparmos com isso. Hattan, leve-nos à Dondarium imediatamente. — murmurou. — Certo. — disse, levando-os até o estábulo. Os garanhões acalmaram-se vendo pessoas entrando e indo ao encontro deles. Hattan colocou as celas em dois cavalos esbeltos de cor marrom-escuro. Aurora por sua vez colocou as celas em outro garanhão e pelas rédeas puxou-o para fora do celeiro, indicando a saída. Hattan ajudou a Velha Amur a subir no cavalo menor, era um pônei marrom-acobreado. Aurora ajudou Lunno a subir na traseira de um dos garanhões maiores e depois, pegando impulso do chão subiu logo atrás, seguido de Hattan que se virou escalando o corpo do animal. Os três puxaram as rédeas dos respectivos animais e em galopes avançaram ao seu provável refúgio, Dondarium.
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Capítulo 6
Honra udo estava estranhamente calmo nas redondezas da floresta Izo, que ficava na divisa de Neodin e Dondarium. As corujas estavam imóveis nos galhos das árvores e não era possível ouvir som algum a não ser o do fogo estalando, na fogueira acesa por Sebastian Addae no meio de uma clareira junto a Hélio Poeu e sua irmã Maria Addae. Sebastian era de uma linhagem pura dos Addae, família que tinha mais influência na cidade Dondarium. Quem pertencia ao povo tinha os fios de cabelo dourados, e não era diferente com Sebastian, que não tinha longas madeixas. Eram nítidas no corpo de Sebastian as cicatrizes dos incontáveis combates que venceu ao lado da irmã Maria e ele tinha orgulho em mostrá-las. Os Addae tinham olhos azuis-celestes como o céu. Ele sempre vestia sua túnica azul com distintivos dos vários campeonatos que vencera. Nas suas costas carregava a aljava com suas preciosas flechas e em sua mão trazia seu arco mais bem trabalhado. Ninguém naquelas bandas manejava tão bem um arco como ele. 57
O silêncio da floresta o incomodava. — Vamos Sebastian, é sua vez de contar estórias de criaturas horrorosas para o Hélio se borrar de medo. — disse Maria soltando uma gargalhada. — Não tem graça Maria, não tenho medo dessas coisas. — rebateu Hélio. — Ah não? — perguntou encostando um graveto no pescoço de Hélio. — Ahhh. — gritou assustado. — Não disse? Aposto que se borrou todo nas calças. — Maria riu. — Pessoal, não acham estranho a floresta estar assim? — indagou Sebastian, olhando para todos os lados. — Assim como? — perguntou Maria. — Silenciosa demais. — É coisa da sua cabeça. — Hélio desdenhou. — Calem-se. — murmurou Sebastian O silêncio fora quebrado quando o som de galopes apressados surgiram. — Armem-se. Pode ser uma emboscada de ladrões. — adiantou Maria. Maria poderia estar certa, não fosse pela surpresa que tiveram ao ver chegando em montarias, andarilhos, os irmãos Bellator num cavalo, uma velha assustadora em outro e o velho conhecido Hattan logo atrás. — Hattan, que surpresa você por essas redondezas. Pensávamos que eram ladrões. Quem são seus amigos? — perguntara sorrindo. — Minha nossa, o que aconteceu para estarem nesse estado? — agora seu semblante parecia assustado por vê-los feridos daquele jeito. Aurora logo desceu do corcel, pegando Lunno em seguida, depois Amur desmontou com a ajuda de Hattan. — Estes são Aurora e Lunno Bellator e Velha Amur, curandeira de Neodin. Sebastian, o povo de Neodin foi massacrado sem explicação aparente ainda há pouco, por um exército de homens com elmos em forma de falcão, todos com sede de sangue. — explicou Hattan. — Estavam atrás de que? — Sebastian indagou olhando para todos. — De mim. — anunciou Aurora. 58
— E o que eles querem de você? — Hélio perguntou curioso. — Me destruir por alguma razão. Nenhum deles estava seguro ali. A fogueira alta seria um ótimo sinal para serem encontrados facilmente, mas a aflição era tamanha que pouco se importaram com isso. Os arbustos começam a se mexer e deles surgiram mais homensfalcão sanguinários atacando de todos os lados e buracos. — Se protejam! — gritou Sebastian, pegando Maria pelo braço. Aurora puxou sua espada impiedosa abaixando-se e cortando os inimigos ao meio, enquanto Lunno, já um pouco melhor, e Hattan desembainhavam suas lâminas protegendo Amur. O açoite de espadas invadiu a clareira da floresta. Os ataques pareciam nunca acabar, pois quanto mais Aurora, Lunno e os outros lutavam, mais soldados falcões apareciam. — Formação quatorze, sete graus ao sul. — gritou Sebastian a Hélio e Maria que estavam logo atrás. Maria prontamente pegou seu martelo de combate correndo furiosa para esmagar todos os soldados sanguinários. Hélio manejava seu bastão dourado, que em deslocações ágeis derrubava os inimigos um a um. Sebastian vinha logo atrás atirando velozmente suas flechas. Quando as flechas tocaram as duras armaduras, se despedaçaram. Percebendo a situação, Hélio rodopiou para frente de Sebastian tentando parar a fúria dos falcões negros, girou seu bastão e atacou o peito de um deles, contudo, o bastão dourado quebrou-se numa dezena de pedaços. Hélio caiu de joelhos e sem piedade alguma, um dos soldados desatou sua espada prateada, degolando-o. O sangue espirrou no rosto de Maria que estava perto. — Não! — gritou ela em prantos, pestanejando com sangue nos olhos e correndo com seu martelo de aço dondariano no caminho para o exército. Maria se desesperou, mas sabia que estavam em batalha e se ela parasse, morreria também. “O que eu sentia por ele, nunca será expresso da maneira que sonhei. Esses soldados destruíram uma das pessoas mais importantes para mim.” pensou. Era só uma noite calma, como tantas outras em que saíam juntos para passear na floresta Izo. Ela nunca imaginou que ali seria o fim de 59
Hélio. Sem despedidas, sem abraços e sem o beijo que nunca aconteceu. Essas dezenas de homens-falcão pareciam imbatíveis, nada que fizessem derrubava-os. Logo Maria foi interceptada apenas com a mão de um deles que segurou o martelo como uma leve pena de pássaro e deu-lhe um empurrão agressivo, jogando-a para longe. Foi parada por uma árvore e caiu no chão. Hattan já estava ocupado demais tentando desviar das investidas daqueles infelizes, mas ao ver Maria sendo cruelmente agredida, precisou se desprender de sua atual luta, tendo em vista que Sebastian estava em desvantagem sozinho. Hattan não conseguia ver injustiças e deixa-las impunes ainda mais naquela situação. — Por Dondarium! — gritou e atacou, erguendo com ambas as mãos a espada repleta de sangue. O chocar das espadas produziu um eco em toda a floresta. O aço de Hattan partiu-se ao meio. Um soldado falcão se aproveitou e fez o que estava ordenado a fazer. E num eco mortal o sangue escorreu pela última vez no rosto de Hattan. De longe, Aurora encontrou a fúria que precisava. — Vocês irão pagar com a vida, desgraçados. — anunciou ela, desembainhando sua brilhante espada. Os cabelos de fogo balançavam depressa enquanto em seu corpo todo ardia o ódio pela morte de Hattan. Ergueu alto seu aço e brandindo-o num golpe horizontal, deixou um soldado em duas partes. Uma sombra emergiu da escuridão de Izo e tentou dar-lhe um duro golpe, porém, Sebastian estava atento, empurrou Aurora para o lado e levou a pancada direto no peito, dada por um dos homens-falcão que estava desarmado, caindo desacordado no chão de folhas. Começou a chover. As gotas intensas molhavam os rostos feridos e caídos de todos. Os garanhões relinchavam de medo, quando um gritou ecoou no ar. — Isso tem que parar! — a voz distante de Lunno soou como um trovão. Seu rosto ainda estava manchado de sangue do amigo Hattan. Um vento intenso se espalhou no clarão onde ocorria o massacre. As árvores balançavam e a chuva caia ainda mais forte. Não se escutou som algum além desses. 60
Aurora avistou os invencíveis soldados caírem um a um e em questão de segundos estavam todos mortos. Aurora viu os olhos de Lunno, negros, mais profundos e mais negros como nunca vira antes. Lunno fechou seus olhos e foi apanhado por Aurora, desmaiado. Amur observava tudo com muito cuidado e frieza. Nenhum dos homens havia sobrevivido ao misterioso ataque, mas Aurora sabia que não fora algo normal. — Velha, não fique aí parada, me ajude a levar Lunno e os outros para fora desta clareira. — murmurou, percebendo que as gotas caiam cada vez mais fortes no rosto dela. A chuva lavou todo o sangue derramado naquela escura noite na floresta. A clareira transformara-se em um leito alagado e os corpos jaziam ali, frios e sem vida. *** Quando os primeiros raios de sol surgiram, Sebastian encontrou os olhos mais belos que já tinha visto. Aurora tratava de seus ferimentos na barriga e no braço com o maior cuidado que já vira. — A-Aurora? — perguntou abrindo lentamente os olhos e já tentando levantar-se. — Calma, fique deitado. — Aurora disse. — Onde está Maria? Ela está bem? — Velha Amur está cuidando dela, não se preocupe. — exclamou. — Já estou bem, deixe-me vê-la. — disse, levantando-se aos tropeços. — Faça como quiser então. — disse. — Vou ver meu irmão. Maria já estava acordada quando Sebastian a pegou pelas mãos. — Fiquei com tanto medo de te perder. — sussurrou ele, beijando as mãos da astuta irmã. — Tive um pesadelo terrível. Um exército de homens com elmos de falcão, Hélio sendo morto. Ainda bem que foi só um pesadelo, não é? — sorriu. Sebastian fez que não com a cabeça, indicando que tudo que aconteceu na noite passada fora real, e não só Hélio como Hattan haviam 61
sido mortos cruelmente. Maria, já sentada, abaixou a cabeça erguendo-a de novo em seguida, mas nada disse. Seus olhos ficaram mais azuis como um oceano que perdera suas ondas, tornando-se monótono e frio. Há tempos que ela amava Hélio e estava prestes a dizer isso a ele e agora sabendo que ele estava morto, suas esperanças morriam junto. Ela não podia aceitar, precisava fazer alguma coisa. — Eu vou matar quem fez isso, eu juro com a minha vida. — disse, chorando. — Hélio e Hattan serão vingados. — Vai ficar tudo bem minha irmã, vamos descobrir porque fizeram isso. Até lá nossa preocupação é voltar para casa, junto de nosso povo. — declarou, abraçando fortemente Maria. — Eu sei. — ainda estava inconsolável. Maria tinha um sorriso fácil e agora, mesmo que tentasse esconder sua tristeza, não conseguia. Hélio e ela eram amigos desde criança. Ela se lembrou de quantas vezes, juntos, escalaram macieiras e Hélio sempre subia dois ou três galhos mais acima para pegar a maçã mais vermelha e doce para ela. Ou das vezes em que se machucava em algum treinamento e Hélio era sempre o primeiro a socorrê-la. Só pensava em como o toque das mãos dele eram suaves e puros quando se encontrava com sua pele, e tudo isso ela nunca mais poderia ter. Nunca mais. Hélio havia partido, entretanto morreu tentando salvá-la. Mas ao invés de isso confortar o coração de Maria, apenas trouxe mais culpa. Estava fadada a pensar que a sua morte foi culpa dela. Um curto tempo se passou e Sebastian estava com a fixa ideia de que precisava voltar logo a Dondarium, porém, Lunno não havia acordado ainda de seu desmaio. Caminhou até onde Aurora afiava sua espada em uma pedra especial. — Desculpe meu mau jeito mais cedo, nem a agradeci por cuidar de mim ao invés daquela velha estranha. — disse, sorrindo, coçando levemente a cabeça. — Não tem porque agradecer, estava lhe devendo. Foi um favor mínimo depois de ter salvado minha vida ontem. Aliás, obrigada. — Aurora, estranhamente, estava agradecendo. Normalmente sua atitude seria outra, mas, nem mesmo ela conseguira entender. — Por que estão atrás de você? — ele perguntou. 62
— Me querem morta por algum motivo, não sei ao certo, mas o comandante daquele exército, durante nossa luta disse que eu precisava ser destruída ou o mundo entraria em declínio. — explicou. Sebastian fez que sim, querendo acreditar no que ela dizia. Seus olhos foram de encontro ao aço que Aurora afiava na enorme pedra que estava na frente de ambos. — Pelo que vejo, você frequenta nosso acampamento. Já não se fazem mais aços dondariano legítimos como o seu e de seu irmão. — a essa altura não apenas o aço que ela brandia o fascinava, mas seu olhar o devastava por dentro. — Posso tocar? — Não. Ninguém toca nele além de mim e você já está fazendo perguntas demais, isso me irrita. — Aurora respondeu, guardando sua espada fora da vista de Sebastian. — Neste caso não faço mais perguntas. Ele era sereno o bastante para não aumentar seu tom de voz para com a bela Aurora, portanto poupou-a de mais perguntas e ficou parado em silêncio mirando-a cuidadosamente. — Vai ficar aí com essa cara de preguiça me olhando? — incomodou-se. — O que quer que eu faça então? — perguntou-lhe sorrindo. Seus dentes brilhavam quase como a luz do sol. — Vem, vamos arranjar lenha, é inútil ficarmos parados aqui. — disse. — Como a senhoria ordenar. — brincou. Velha Amur e Maria cuidavam de Lunno, esperando seu despertar, enquanto Aurora e Sebastian iam a procura de lenha na floresta Izo. Perto da cachoeira Camel, encontraram uma paz que há tempos não sentiam. Aurora pôs-se a sentar em uma das pedras que ficava de frente para o espetáculo da água despencando lá de cima. Sebastian veio logo atrás. — Posso me sentar? — sorrindo novamente. — Ah, esqueci, sem perguntas. — abaixou a cabeça. — Não seja tolo, não sou dona das pedras. Sente-se se quiser, oras. — murmurou.
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Sebastian, com um desejo fixo de conversar com Aurora, sentou. Os cabelos vermelhos de Aurora voavam junto com o intenso vento que soprava. O peito, ainda ferido de Sebastian, não o impedia de admirar Aurora. — Sabe, por vezes tentei entender por que guerreiros honestos como Hattan e Hélio morrem. Honra é a única definição que suas mortes podem receber agora. — disse, olhando para o horizonte. Aurora ficou em total silêncio. — Começamos de um jeito bem esquisito e triste ao mesmo tempo, porém, acredito que com a convivência posso conhecê-la melhor. — salientou. — Me conhecerá melhor, quando minha lâmina estraçalhar suas flechas. — Aurora ameaçou. — Você tem ternura e mistérios nos olhos. — disse mirando-a bem nos olhos, sem importar-se com o que Aurora havia lhe dito. — Talvez, se é o que vê. Costumo enganar com a aparência. — respondeu. — Os olhos nunca mentem. — Será? — indagou, ficando aparentemente impaciente. Ele geralmente tinha resposta para tudo, mas havia algo em Aurora que o intrigava ao passo que conversavam mais. A água respingava em seus rostos brancos como neve, refrescando ainda mais a tarde que já estava prestes a desaparecer na floresta. Aurora sem rodeios apoiou seus braços na pedra gigante, levantando-se. Dando três pequenos passos, tropeçou em alguma coisa, sendo segurada em seguida por Sebastian que mais uma vez estava atento. — Opa, cuidado ruiva estressada. — ironizou, segurando-a nos braços. A posição que Aurora caiu, favoreceu um inusitado episódio. Quando os olhos de Sebastian encontraram os dela, sentiu um súbito desejo de beijá-la. A vista dele Aurora também sentira o mesmo, pois ambos aproximavam seus rostos respingados pela água da cachoeira, ficando cada vez mais perto de realizar seu inesperado desejo de sentir aqueles lábios rosados nos seus. Porém, Aurora o afastou, dando-lhe um soco no peito onde há pouco havia sido ferido. 64
— Aaargh. — gritou de dor, cambaleando para trás, caindo. — Sebastian, me perdoe, eu... — Se afaste, sei me levantar sozinho. — disse ele. “O que ela estava pensando que era? Uma rainha que precisa de adornos e mimos no palácio real? Garota estúpida.” - ouviu seu pensamento. “Quem ele pensa que é para se fazer de coitado? Parece um coelho correndo de um predador. Garoto irritante.” - retrucou o pensamento de Aurora. — Tire sua camisa. — O quê? — perguntou, confuso sobre as suas intenções. — Poupe-me do seu cinismo, Sebastian, só quero ver se os machucados no seu peito abriram com o golpe que te dei. — bufou. — Vocês homens, sempre com pensamentos maldosos. — Não perguntei pensando nisso, só achei estranho a preocupação repentina. — explicou. — Deixe-me ver. Ele sentou-se, retirando a túnica azul turquesa que cobria seu corpo robusto, enquanto Aurora examinava seus ferimentos cuidadosamente. Tirou um pano do bolso e o molhou nas águas frescas da bela cachoeira. — Tente não se mexer tanto. — pediu. — Se prometer que vai ser delicada dessa vez, talvez não me mexa tanto. — sorriu. — Prometo. — estendeu sua mão junto com o pano úmido, limpando o pouco de sangue que saíra dos pontos abertos por sua pancada. Apesar de sua frieza, Sebastian via em Aurora algo que a transformava em uma heroína com capa de vilã, pois dentro de seu intenso olhar, irradiava vida, algo que ele não podia sequer descrever claramente, mas, sentia uma paz absurda estando ao seu lado e por mais desprezo que recebesse, sabia que tudo se rompia com as pequenas demonstrações de zelo que Aurora tinha para com ele. Era impossível não se intrigar e se admirar ao mesmo tempo pelas suas ações. Não tirava os olhos dela, enquanto estancava o pouco sangue em seu peito. — O que foi? Perdeu alguma coisa? — ironizou ela, apertando o pano úmido sobre o peito de Sebastian. — Grandes paisagens necessitam de olhares mais demorados. — respondeu, tossindo de lado. 65
— Bom, vejo que já está melhor. Vamos catar logo alguns galhos e sair daqui, quem sabe Lunno já não acordou. — Certo, estou bem melhor com a aprendiz da Velha. — sorriu. Pela primeira vez, Aurora deu-lhe um acanhado sorriso lateral, que para Sebastian fez toda diferença, afinal não estava sendo um completo tolo para com ela. Aurora juntou algumas plantas medicinais que achou pela trilha, Sebastian por sua vez carregava alguns galhos secos para fazer uma fogueira. E ambos, munidos de estranhos sentimentos, retornaram pelo caminho de volta que fizeram para chegar à cachoeira. No caminho dos tapetes de folhas, Sebastian continuou pensando nos olhos de Aurora e como aquele desejo de beijá-la havia surgido tão repentinamente. Ele estava disposto a mergulhar no azul dos olhos dela para descobrir quão profundo estes eram.
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Capítulo 7
Condenada hegando ao final da trilha feita por Sebastian, Aurora notou que seu irmão já havia acordado e aguardava a sua vinda, ansioso. O caminho de volta era longo, e já havia escurecido, e o breu do início de noite se sobrepunha ao sol da tarde passada. Não havia lua naquela noite, apenas as estrelas enfeitavam o céu negro. — Por que demoraram? — Lunno perguntou. — Acabamos nos perdendo e não achamos a trilha até aqui. — respondeu Aurora indo em direção à ele. — Ainda bem que chegaram, Lunno já estava impaciente. — disse Maria ainda com um ar de tristeza pela morte de seu amado. Seus curtos cabelos cor de ouro e seus olhos marcantes a identificavam bem na multidão, assim como seu constante humor. Mesmo com a morte de Hélio, não queria ostentar fraqueza a todo momento, por mais que não estivesse conseguindo isso por hora. Sebastian fitou-a, compreendendo a dor que Maria estava sentindo. — Depois do seu desmaio, você ficou desacordado por horas. Estou tão feliz por vê-lo novamente. — adiantou Aurora, abraçando-o.
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— Amur e a simpática Maria cuidaram de mim, muito bem, aliás. Assim me acostumo mal, hein?. — disse olhando para ambas. Todos esqueceram por um instante do horror vivido na noite anterior. Mortes, gritos, açoite de espadas, armas se quebrando e sangue derramando. Apenas sorriram por alguns momentos após o caos. Acenderam a fogueira e começaram a contar histórias de guerra nos tempos dos ancestrais Neodianos e Dondarianos, antes de seguirem jornada até Dondarium. — Preciso de um tempo com Aurora e Lunno. — surgiu a voz abafada de Velha Amur. — Como quiser. Venha Maria, vou lhe contar uma história incrível de como matei um alce gigante na floresta. — sugeriu Sebastian, saindo com a irmã. A partir daquele instante as vidas dos irmãos Bellator mudariam para sempre. — Vou lhes contar uma antiga história. — anunciou Amur, olhando-os. — Pois conte. — disse Lunno. — O mundo que hoje vivemos em nada se compara aos mundos paralelos que sempre existiram ao redor de todos. Havia quatro reinos espalhados pela gloriosa Terdállia. Reinos onde a disputa pelo domínio total de um quinto reino, até destruído, era marcada por frequentes guerras e sangue derramado. Dentre todos os reinos, existia um onde a deusa do amanhecer, Eos, era venerada pela elegante beleza e bondade que trazia todas as manhãs ao voar sobre o reino apresentando um novo alvorecer. Eos sempre fora muito bonita. Seus longos cabelos vermelhos destacavamse sobre a seda branca que envolvia seu esbelto corpo claro. Munida de asas angelicais dos ombros aos pés, alguns a consideravam um próprio ser celestial, outros simplesmente a temiam por isso. — Amur dizia, sem gaguejar. Ela nunca havia falado tanto com os irmãos Bellator. Provavelmente esta história precisava do tempo certo para ser contada. Por mais que eles a tratassem como uma traidora misteriosa, ela não se importava, afinal, não sabiam de fato a verdade. Ao passo que o vento ficava mais intenso, os cabelos de Amur se emaranhavam ainda mais sobre seu rosto e quase não se via seus olhos. 68
E a Velha continuou. — Eos na sua graciosidade abria as portas celestes para a carruagem de Hélio, deus do sol, passar e iluminar todos os reinos existentes. Zeus a incumbiu de controlar a intensidade do brilho solar, assim como as tonalidades do céu. A deusa sempre cumprira suas funções com êxito, despertando as pessoas e criaturas dos mais enraizados sonos e cuidando das incontáveis florestas. — o olhar de Aurora parecia atento, ela já havia escutado algo parecido antes, das loêlas, que eram as contadoras de histórias em Neodin. Lunno não esboçava reações de espanto, parecia aceitar facilmente as coisas ditas pela velha e seu olhar estava um pouco distante como se já conhecesse aquilo tudo. A curandeira fez uma pausa como se estivesse tomando mais ar e prosseguiu. — Porém, era uma deusa cercada de paixões que levaram-na à ruína. Era casada com Ericlés, deus da floresta, com quem teve apenas um filho que não vingou. Eos entrou em desespero. Pouco tempo depois se viu atraída por Ares, deus da guerra, com quem teve três filhos, porém, o mais velho morreu pouco tempo depois da última criança nascer. Quando Circê, deusa da noite, ficou sabendo dos boatos sobre o suposto romance de seu futuro esposo Ares, com Eos, ficou enfurecida e partiu para aniquilar os dois, porém ambos eram protegidos diretos de Zeus. Circê então, se viu condenada a aceitar tudo aquilo por hora. Contudo em uma noite decidiu sacrificar sua permanência no Olimpo, invocando um feitiço misterioso sobre as duas crianças de Eos e Ares. Na mesma noite, enquanto dormiam, falcões negros entraram no quarto onde as crianças dormiam e as raptaram, levando-as para bem longe dos braços dos pais. — suas mãos estavam bastante inquietas. A fogueira no centro deles estava baixa, quase apagando-se. O vento estava ainda mais intenso e os cabelos de Aurora se agitavam. Enquanto seu olhar permanecia inerte sobre a velha, as palavras continuaram a sair de Amur. — Ambos juraram destruir Circê, entretanto Zeus os impediu. Circê foi expulsa do Olimpo pela sua inveja e prepotência. Mais tarde se refugiou na ilha Eana, no litoral da Itália. Ela jurou que algo terrível aconteceria e que voltaria no tempo em que isso fosse consumado. — Onde quer chegar com essa história, Velha? — interrompeu Lunno.
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— Deixe-me terminar. — exclamou. — Isso tudo aconteceu há dezoito anos. Na mesma noite em dois lugares distintos, foram achados pelas caravanas Neodianas, duas crianças com destinos traçados ao entardecer daquela noite gelada. E hoje, a maldição começa a se cumprir. — Está falando de quem exatamente? — perguntou Aurora confusa. — Da gente. — Lunno anunciou olhando para o céu estrelado. — Você já sabia disso? — seu rosto fora tomado por uma sutil fúria. — Ele sabia algumas coisas apenas, minha jovem. — defendeu Amur. — Há três anos o mesmo exército, porém menor, me perseguiu pela floresta Izo enquanto eu caçava à noite. Por pouco não fui morto, consegui fugir e recebendo os cuidados de Amur, quis obter respostas para tudo que havia acontecido. Foi então que soube da nossa real origem e a maldição. — explicou Lunno, olhando-a. — E você não me disse uma única palavra? Você sabe quantas vezes quis me matar por causa disso? E você sabia de tudo Lunno, como você... — Eu pedi sigilo a ele. Ninguém além dele poderia saber, nem mesmo você. — interrompeu a Velha, defendendo Lunno mais uma vez. Aurora, irritada, levantou-se. — Eu não estou entendendo mais nada. Reinos, deuses, feitiços. E que maldição é essa de que tanto falam? — Circê precisava matá-los antes do vigésimo primeiro aniversário, antes que se tornassem definitivamente imortais. Ela sabia que com vocês mortos seria muito mais fácil a tomada da regência de Genesis, sem o saber direto de Zeus. — Amur respondeu. — Mas, Lunno já fez seu vigésimo primeiro aniversário, então... — disse surpresa, olhando para o irmão. — Sim irmã. Passado a vigésima primeira idade me tornei imortal. Meu corpo não irá mais envelhecer a partir de agora. Fiquei sabendo disso no casebre de Amur logo depois do ataque do baio. Da imortalidade eu não sabia até então. — explicou. Lunno Bellator, o Ousado. Filho de Eos, deusa do amanhecer, junto a Ares, deus da guerra. Lembrou-se de como foi frustrante saber disso 70
apenas agora, já que poderia não sentir medo diante da presa dele. Envergonhou-se mais uma vez como guerreiro corajoso que não foi naquela hora. Mas a partir de agora ele não temeria mais nada. Ele era um ser imortal e honraria isso. A maldição de Circê se cumpriria. Eles adiando ou não. — Você ainda corre o risco de ser morta. — continuou Lunno. — Por hoje chega, não quero mais ouvir nada. — disse lacrimejando. — Aurora, me escute. — Lunno disse, segurando-a pelo braço. — Me solta. Preciso ficar sozinha. Questionava-se a todo o momento, correndo em direção à cachoeira Camel, seu ponto de paz. Seria ela uma deusa ou não? Por que Lunno não contara nada a ela, afinal, era um direito incontestável que Aurora tinha. Agora não sabia mais se confiava em Lunno, duvidou drasticamente de sua atitude para com ela. Sebastian e Maria estavam rindo de suas lorotas debaixo de uma árvore quase sem folhas, quando Sebastian avistou os passos corridos de Aurora em direção à cachoeira. — Ei, onde está indo? Espere! — gritou, seguindo-a ágil. Não queria mais nada além do som calmo e de gotas que vinham da cascata alta, refrescando seu rosto. Contudo sua momentânea paz supostamente desapareceu quando percebeu que o estorvo a tinha seguido até ali. — Ufa! Quase não alcanço você. O que houve? Vi você passar correndo para cá e fiquei preocupado. — Sebastian falou, tomando ar da eletrizante corrida. — Me deixa em paz, quero ficar sozinha. — repeliu ela, enxugando com ira as lágrimas que se atreviam a cair em seu rosto. — Me conta, talvez ajude. — pediu. — Quer saber? Eu passei a droga da vida toda querendo saber quem eu era, de onde vim. Confiei demais, recebi de menos e estou marcada para morrer. — bufou ao ouvido de Sebastian. — A honra de um guerreiro leal se faz muitas vezes em seus momentos de fraqueza, onde ele repensa e organiza o pensamento e o mais crucial, ele chora. Eu não sei o que aconteceu naquela conversa, nem 71
pretendo saber agora, o importante é te ajudar de alguma maneira se você permitir, Aurora. — disse, sereno. — Existe um coração estraçalhado aqui agora. Uma mistura de sentimentos cruelmente confusos, que eu de longe consigo entender. Só queria que fosse só mais um dos meus pesadelos para ter a certeza de que acordaria e nada teria sido real. — disse abaixando a cabeça sobre os joelhos. — O pouco de Aurora Bellator que eu conheço, posso dizer que ela não tem medo dos próprios medos. Lute. Aurora nada disse. Uma deslocação e ela sentira sob seu ombro o braço de Sebastian a abraçá-la. Na hora pensou em gritar e surrá-lo, porém sentiu-se curiosamente protegida. Sentiu como se o mundo parasse dando uma breve trégua à sua dor, deixando-a leve. Enquanto os braços de Sebastian a envolviam, queria esquecer-se de tudo que ouviu e soube naquela noite estrelada, ainda preferia acreditar que tudo fora utopia da Velha e de Lunno, contudo sabia que não era exatamente assim. — Está melhor? — perguntou Sebastian retirando seu braço do ombro de Aurora. — Não vou xingá-lo, muito menos bater em você. — sorriu acanhada. — Obrigada pelo abraço. — Você é mais intrigante do que imaginei. Imprevisível. É curioso algo a ter deixado neste estado. — Sou filha de uma deusa e estou condenada à morte. — declarou erguendo a cabeça para ele. — O quê? — indagou. — Foi isso que escutou. — disse levantando-se. — Sou Aurora Bellator, nascida no vento sul, filha de Eos, deusa do amanhecer, e Ares, deus da guerra. Era o legado de Aurora. Sua morte seria o prêmio de Circê e sua volta ao Olimpo para reger o quinto reino de Terdállia e destruir para sempre o reino de Nerann, a terra iluminada. Sebastian não entendeu uma única afirmação que saíra dos lábios rosados de Aurora. Ela estava em choque com tudo que soube tão inesperadamente, mas, ao mesmo tempo sabia que ficar assim por muito tempo não seria uma boa ideia. Definitivamente não. 72
— Ao amanhecer partiremos para Dondarium. — falou ela, com certeza no tom de voz. — Mas e essa história de deusa? — indagou, vendo Aurora se levantar. — No caminho eu explico. — deu segurança em seu olhar. O robusto estorvo de Aurora estava sendo uma companhia suportável até então, sem chuva de perguntas. Ele sabia que isso a irritava profundamente e não era a ocasião de vê-la brava, mesmo ele gostando disso. No caminho até onde estava Maria, Aurora explicou tudo que havia descoberto na história da Velha, sobre ser filha legítima de deuses, até sua condenação. Chegando ao lugar, Lunno e a velha haviam acabado de encontrar Maria debaixo da imensa árvore onde esperava pelo irmão. — Quase não achamos você. — disse Lunno, incerto da reação de Aurora. — Não estava perdida, portanto, não precisava ser achada. Sei me cuidar sozinha. — respondeu, arrumando seus fios avermelhados. — Com ele? — Lunno perguntou, apontando para Sebastian. Não se entendiam desde que Lunno perdeu um duelo para ele no acampamento e estando com a sua irmã a antipatia transbordava sobre ele. — Me chamo Sebastian e gosto de ser tratado pelo nome, bravo Lunno. — interrompeu ele. — Não perguntei nada a você, fica na sua. — disparou. — O que, pirralho? — anunciou, partindo em sua direção com braveza. — Parem com isso já! — Maria disse, segurando Sebastian. — Vocês não veem que não temos tempo para isso? Que droga, Sebastian. — bufou. Maria era do tipo que odiava brigas a não ser que fossem realmente necessárias. Ainda mais envolvendo seu irmão que nada tinha haver com tudo aquilo. Que por sinal nem ela sabia. Maria tinha certeza que o irmão nunca provocaria a ira de ninguém que não merecesse. — Aurora, você ainda corre perigo. Existem centenas de homensfalcão procurando-a e uma hora ou outra irão encontrá-la. — alertou a Velha. Nunca a viram assim, apreensiva, com as mãos trêmulas. 73
— Eu sei, Amur. — ela estava ciente de seu novo destino, apenas não sabia exatamente por onde começar a trilhá-lo. — Ao amanhecer seguiremos para Dondarium para pedir ajuda. — sugeriu a voz serena de Sebastian. — Você vai sozinho, Addae. Aurora, não está pensando em ir com ele, está? — Irei, Lunno. Lunno indignado não via solução a não ser ir junto. — Sendo assim irei também. — disse Lunno. — Também irei. — declarou a voz cansada de Velha Amur. — Não precisa nem perguntar. — falou Maria. — Pois então vamos dormir. Ficarei de vigia primeiro e não aceito impedimentos quanto a isso. — Aurora afirmou com uma voz calma, mas autoritária, enquanto sentava no posto de vigia. A noite passava aos olhos dela, enquanto seu pensamento transcorria de tal forma ao ponto de querer saber uma única coisa: seu passado. Certamente havia muitas dúvidas na mente dela, vácuos que se formavam a todo instante pelas lacunas que pairavam sobre ela e estes só seriam preenchidos se Aurora achasse o mentor do massacre de seu vilarejo. *** Pássaros cantavam despertando todos e anunciando uma nova manhã com um céu repleto de nuvens tão alvas quanto a pele de Aurora. Seria nessa manhã que todos partiriam em direção a cidade natal de Sebastian e Maria. — A jornada será rápida, mas precisamos ir o quanto antes. — adiantou Sebastian — Então vamos. — Aurora disse. Os caminhos da floresta Izo eram enfeitados por folhas desde as copas das árvores até o chão. Os primeiros raios de sol começavam a se espalhar por entre toda a vegetação dando uma imagem ainda mais bonita do lugar. Contudo a deslumbrante beleza acabou aos olhos de todos e mais uma vez o caos tomou conta.
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A entrada principal de Dondarium estava repleta por corpos dos moradores da cidade. Todos, em cada casebre, ruela, estavam mortos. — Sebastian, não pode ser. — disse Maria segurando fortemente o pulso do irmão. — Papai! Mamãe! — gritou desesperada, correndo em destino a casa deles. — Maria, espere! Já na casa, os dois encontraram os corpos dos pais juntos. Nasceram juntos, cresceram juntos e assim morreram. — Não! — chorou Maria, segurando o corpo da mãe nos braços. — Voltem, por favor, não nos deixem aqui sozinhos. — pediu junto aos corpos dos pais no chão gelado. Sebastian olhando a cena, nada conseguiu falar, muito menos chegar perto dos pais mortos e de Maria. Apenas juntou forças e saiu dali com uma dose de cólera nos olhos, partindo em direção ao lugar onde estava o resto do grupo. Por mais admiração que ele tivesse por Aurora, não podia confiar inteiramente nela, afinal, mal se conheciam e depois de tê-los encontrado todas essas coisas começaram a acontecer, e por algum motivo Aurora estava em todos eles. Ele estava tomado pela fúria e com os pensamentos confusos agora. — É tudo sua culpa! Está vendo todos esses corpos? Eram famílias do meu povo que foram dizimadas por sua causa. — sua voz soava como um trovão. — Pouco me importa se você for mais uma vez fria e arrogante comigo. Maldita foi a hora que encontramos você, desde então a maré de pragas está nos rondando. Quem você pensa que é Aurora? Esse seu ar de superioridade não faz você ter mais ou menos caráter do que qualquer uma dessas pessoas que estão mortas pela sua negligência. — Aurora apenas o fitava. Parecia não acreditar no que ele dizia. — Ei, olha lá como fala com ela, infeliz. — Lunno disse. — Cale sua boca, imundo. — Sebastian rebateu num tom agressivo, como ninguém jamais viu antes. — Naquela casa ali, minha irmã chora a morte das pessoas mais preciosas para mim e tudo por que você é uma covarde. Você fugiu de medo e assim como o seu povo e seus amigos, agora Dondarium pagou o preço por você. Tenho pena de você, quando essa tal Circê a encontrar. E 75
uma última coisa, nem pense em chegar perto de mim e de minha irmã. — disse irritado perante Aurora, saindo para buscar Maria. Aurora suspirou tão profundamente que por pouco não ficou sem todo o ar. Viu a mesma cena de noites atrás em Neodin e na floresta Izo, com todos os ataques e mortes. Sabia que era tudo por sua causa e Sebastian estava certo, não havia o que rebater com ele, como sempre costumava ter. Agora sua mente entrava em total declínio psicológico e ela não parava de se culpar por tudo. — É mais sério do que previ. — disse Amur. — Precisamos dos conhecimentos de Velha Oblast, apenas ela poderá levar vocês à Terdállia. O reino de Nerann precisa saber que você, Aurora, ainda vive.
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Capítulo 8
O Sangue Addae aria se lembrou de como sua mãe Hermian tratava seus incontáveis ferimentos e mesmo assim nunca levava sermão. As tardes comtemplando o pôr do sol junto a todos da cidade. Os campeonatos e olhares atentos de seus pais, sempre torcendo para ela e seu martelo prateado de combate que manuseava muito bem. Aqueles olhos agora se fechavam não vendo mais nada, o coração parou e a vida de Maria mudou radicalmente a partir dali. A sua habilidade com o martelo a fazia especial dentre as outras garotas do acampamento, que se dedicavam apenas a arte da costura. Devia tudo a Ayr, seu pai, e ao irmão Sebastian, que a ensinaram tudo que ela sabia. E ver que a família se reduzia a ruína, a fez ser triturada pela dor. Não parecia ser verdade. Sua casa cheia de sangue, móveis quebrados e bem à sua frente seus pais mortos. — Maria, vamos sair daqui. — ordenou Sebastian. Maria não lhe prestou atenção.
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— Nem disse que a amava antes de sair. — ela choramingou, fitando pela última vez a face de Hermian. — O que vamos fazer agora? — pestanejou, acariciando os cabelos de sua mãe. — Minhas flechas acharão essa pessoa. Nem que eu tenha que pagar com a minha própria vida e a de pessoas inocentes. O sangue de puros foi dado a eles e este mesmo sangue voltará em dobro, mas agora pelas minhas mãos. Nossos pais não mereciam isso. Ninguém de Dondarium merecia. Pois que arquem com as consequências sangrentas que estão por vir, escute o que eu digo minha irmã. Eu vou lutar até minha última gota de suor para achar o responsável desse ato tão hostil e irei colocar sua cabeça no ponto mais alto de Dondarium como tributo aos deuses. — O desejo de desonrar até seus próprios princípios em busca de vingança era latente em suas palavras. — Agora vamos embora. Sebastian não conseguia demonstrar, mas estava prestes a surtar se continuasse ali vendo seus pais mortos. Suas emoções foram dizimadas externamente e apenas ele sabia que seu coração estava agora em uma centena de cacos. — Para onde irmão? Perdemos tudo que tínhamos, estão todos mortos. — Eu ainda não sei. Pegaremos algumas armas e iremos até Zathroth. — Zathroth? Está de brincadeira comigo? A cidade que negou até água a Dondarium, nem pensar. — disse, cruzando os braços. Ela estava certa, Zathroth de longe parecia o lugar mais amistoso para se buscar ajuda, tendo em vista que em tempos de guerra foi a única cidade que negou ajuda à Dondarium. — É a cidade mais próxima daqui Maria, não temos opção. Algo nos olhos de Sebastian a incomodava ao ponto de hesitar em ir até Zathroth com motivos a mais daqueles que já tinha, entretanto sabia que não mudaria de ideia. Estava profundamente confusa pela grande perda que acabara de sofrer, ela não sabia mais quem era Sebastian ou o que mexia com ele de fato. “Sebastian nunca agiu desse jeito. Ele sempre conseguia ser mais sereno e centrado do que eu mesma. E agora até suas palavras me assustam.” - pensou. Uma insegurança absurda passou a brotar dentro dos pensamentos de Maria, mas ela sabia que agora estavam jogados à própria sorte. Não 78
conheciam nada além de Dondarium e Izo. O desconhecido seria seu pai e sua mãe a partir daquele momento. Nem mesmo ela sabia se podia confiar em mais alguém além do irmão, mas algo dentro dos olhos dos Bellator a fazia querer acreditar que havia uma ponta de esperança no futuro. Seus sonhos altos de um dia se tornar esposa de Hélio e ser mãe de dois lindos filhos, um menino e uma menina (como Hélio sempre quis), foram estraçalhados na chacina em Izo e por mais honra que ela e o irmão possuíssem, a vingança era o único sentimento que aflorava com mais ferocidade. Ela não queria que chegasse a esse ponto, mas não restavam mais escolhas corretas. Maria viu tudo que havia planejado ao lado de Hélio, se esvair em uma fração de segundo. O primeiro beijo, o primeiro abraço apaixonado e a primeira noite juntos. Tudo isso ficaria apenas em planos de um passado que ia insistir em amedronta-la por muito tempo. “Hélio teve honra e mesmo assim morreu. Hattan nunca desobedeceu a uma lei imposta em Dondarium, mesmo não sendo de nosso sangue. E meus pais... meus pais eram a alegria em forma de pessoas. Que negócio lucrativo há na honra, na obediência às leis ou em ser alegre? O resultado final de cada um deles foi apenas a morte. Uma cruel morte, nada além disso.” aflorou novamente um pensamento de uma Maria que estava desacordada há tempos. Porém, havia mais coisas para se preocupar além de ver seus pais mortos daquele jeito. Eles não estavam seguros ainda, e ficar mais tempo ali poderia ser seu decreto de morte. — Partiremos o quanto antes. — anunciou Sebastian. — Mas e os outros? E se acontecer aquilo de novo? Eles também não têm com quem se amparar, estão tão sozinhos como a gente e sabem de bem mais coisas do que nós. Eles parecem ser leais, precisamos dar a eles um voto de confiança. Não podemos ir sem eles. — disse. — Eles já nos trouxeram problemas demais. A partir de agora somos apenas nós dois, entendido? — disse-lhe segurando delicadamente o rosto de Maria. — M-mas... — Maria, não me faça repetir que não. — retrucou. — Não sei nada sobre essa tal Aurora e saber que ela é a possível causa de tudo isso me deixa com mais raiva do que já estou, mas não estou 79
em condições de fazer nada agora e eu querendo ou deixando de querer precisamos deles para encontrar o autor do massacre. — disse, ainda recolhendo as lágrimas em seu rosto. O vento estava estranhamente confuso. Os cabelos de Maria rodopiavam ao ar, enquanto ela tentava achar a melhor posição para ficar. Onde não bagunçasse muito de preferência. “Vento traidor” - ela pensou. Ainda sim, fazia frio e Sebastian precisava de um motivo para sair dali pelo menos para botar a cabeça no lugar. — Vou buscar lenha para acender a lareira. — ele disse. — Vou ficar mais um pouco, não se preocupe. Seu irmão não costumava ser impulsivo, só quando algo ou alguém realmente mudava isso. De certa forma Aurora era diferente tanto para ele como para a própria Maria. Sebastian não era orgulhoso e soube admitir para si mesmo que a raiva tomou conta de si quando se exaltou com Aurora a poucos momentos. Maria acenou para Sebastian, olhando-o sair pela porta de madeira lixada. — Volto logo. — gritou. Maria continuou ali. A nostalgia dos momentos bons que passara ao lado dos pais a fazia ficar um pouco mais calma. Lembrou-se das tardes que passava lutando com Hélio, das inúmeras risadas e o amor forte que sentira por ele, desde sempre. E agora ele estava morto também. O sentimento de ódio por quem fizera isso com eles surgia acanhadamente. Os Addae eram muito unidos e ver aquilo tudo doeu mais em Maria do que qualquer outro ferimento que teve ao longo da vida. — Pela memória de vocês meu martelo será honrado na cabeça de quem mandou tirar a vida de ambos. — disse com gotas saindo dos olhos. Naquela manhã o frio ficava mais constante. E o vento apenas o fazia ficar ainda mais intenso. Os pelos da pele clara de Maria arrepiavam-se toda vez que a brisa gelada invadia a casa onde morava, porém todo esse arrepio parecia agradar seu corpo. A mente dela tentava escapar da realidade que estava debaixo do seu nariz. Os beijos, os abraços estendidos. Ela sabia que nunca mais teria o afeto deles por perto nas horas que precisaria por isso o tempo que lhe restava em Dondarium seria para ficar junto a eles. 80
Perguntou-se o porquê das afirmações estranhas de Lunno com sua irmã na noite anterior. A conversa com Amur a tinha deixado transtornada, pelo pouco que pôde conhecer de Aurora, ela não parecia uma menina frágil e medrosa. Muito pelo contrário. Se lembrou que ela matou mais falcões com sua espada do que ela própria manejando seu martelo. Aliás, os Bellator eram habilidosos por natureza e treinavam no mesmo acampamento que Maria. O jeito de Lunno deixou Maria um tanto curiosa. Algo no olhar dele certamente a incomodava. Velha Amur disse que ele desmaiou depois de todos os falcões morrerem na sua frente subitamente, sem nenhuma explicação lógica, mas ela deduziu que havia muito mais coisas por trás disso. Maria achou singular a forma como ele se referiu a ela na noite anterior. “A simpática Maria”. Debaixo daquele manto quase cor de vinho Maria sabia que pulsava um coração, por mais escondido que fosse. Ele tinha sentimentos também, só não sabia se podia confiar neles ou não. O conhecia fazia poucas horas e não podia deduzir quem ele era de fato e por hora nem se dava o trabalho de fazer isso. Mesmo assim estava disposta a não deixar o grupo para trás. De alguma forma eles precisavam ir junto com ela e Sebastian para Zathroth pedir ajuda, mesmo contra a vontade do irmão, afinal, eles conheciam o inimigo pelo menos mais do que ela mesma. Havia esperança se Sebastian por acaso conversasse com Aurora. Ele poderia acatar a ida de todos, afinal só restavam eles mesmo. A ventania estava serena como a típica brisa de verão espalhando o frio pelo úmido casebre. Tinha inteira noção que aquele tempo ali estava prestes a se esgotar. Certamente ela queria ter o dom de fazê-lo eterno. Enquanto isso, Sebastian andava em direção à nascente do rio Mathi que fornecia toda a água para o vilarejo Dondariano. Ali costumava ser o seu ponto de paz depois de cada longo dia de treino. Ao chegar perto não pôde deixar de notar quem estava limpando seu rosto nas águas do rio. Era ela, a possível causadora de tudo que havia acontecido. Suas mãos se fecharam, não estava com raiva dela, estava com raiva de si mesmo por não conseguir sentir ódio por ela. Era muito contraditório, ele queria controlar aquilo tudo, mas por algum motivo não conseguia. Ao tentar chegar da forma mais sutil possível, pisou em um galho seco que se estalou com seu 81
peso. Rapidamente Aurora virou-se e não esboçou reação alguma ao vê-lo. Apenas virou seu rosto para continuar lavando-o. — Não sabia que você estava aqui, já estou de saída. — ele disse, observando a reação dela. — Você pensa mesmo tudo aquilo de mim? — adiantou ela. Sebastian parou enquanto tentava ir às pressas para a outra parte do rio. Ele não queria prolongar uma conversa ali. Não com tudo que ele havia dito anteriormente. Ele estava hesitante e não fazia a mínima ideia de como reagiria se essa conversa fosse mais adiante, mas não podia deixa-la falando sozinha. — Tá bom. — disse virando-se para encontrar os olhos dela. — Primeiro, me perdoe o jeito como a tratei ainda pouco. Ver isso tudo acontecendo tão depressa me deixou atordoado demais. Não queria ter dito aquilo tudo a você e muito menos daquela forma. Eu só queria botar para fora o que estava engasgado na minha garganta. Eu sinto muito. — se explicou timidamente sentando-se ao lado dela. Aurora ficou ainda mais tensa do que estava quando Sebastian surtou com ela. Não sabia exatamente o porquê da contradição de seus sentimentos naquele momento, mas precisava ter aquela conversa. Ela querendo ou não. Sentia uma culpa, entretanto não apenas a culpa que Sebastian disse a ela, mas a culpa por envolver eles nisso, afinal Dondarium nada tinha a ver com os planos dessa tal deusa, pelo menos era o que achava. — Mas disse. E não tiro sua razão. Se for o que pensa, admiro sua coragem em expor isso. Sua coragem em chorar. Nunca pensei que diria isso, mas estou com medo do desconhecido, nada mais faz tanto sentido. Ela estava amedrontada com os recentes acontecimentos. Não queria se envolver com os Addae, mas não restava alternativa. O povo deles morreu indiretamente por causa dela e Aurora precisava reparar isso, mesmo que custasse um pedido sofrido de desculpas a Sebastian. As folhas balançavam ao toque inquieto do vento e assim Aurora arrepiava-se. Sebastian a olhava fixamente como se agora quisesse estender a conversa e entender o que se passava na mente dela. — Você acha mesmo que eu queria que isso tudo estivesse acontecendo? Que eu queria ver meu povo morto? Ou Hattan? Ou seus 82
pais? Posso ser a garota mais rude que você já conheceu, mas tenho coração e senti por seus pais. — Aurora, tente me entender. Está sendo difícil para mim. Eu quero confiar em você, mas é complicado. — abaixou a cabeça. — Nunca pedi para você confiar em mim. Não estamos juntos nisso. — rebateu, terminando de lavar seu rosto e o enxugando em um pano qualquer que achou. — Agora estamos. Talvez sejamos os únicos vivos num raio gigante de distância. Se não nos ajudarmos pode ser perigoso. — explicou. — Como você quiser pensar. Não vou suportar ficar mais uma vez em um lugar onde não sou bem-vinda. — respondeu. — Não vou. — retrucou com uma nota de tristeza em sua voz. — Então me responde. Quem você acha que está por trás disso? — Circê, a deusa da noite. — respondeu-lhe rapidamente. — Outra deusa? — retrucou. — Onde vamos encontrá-la? — Ainda não sei ao certo, mas a velha sabe mais do que diz, não confio inteiramente nela. Temo que ficar mais tempo aqui é loucura, Sebastian. A saída seria a cidade de Zathroth. A essa altura Sebastian percebera o quanto foi rude e estava inteiramente arrependido de ter tratado Aurora como causadora do caos. — Venha conosco para Zathroth? — pediu com astúcia. — Achei que não quisesse mais a nossa presença por perto. — olhou-o profundamente. — Acho que não temos tantas opções não é? — Sebastian desfechou. A ajuda dela, mesmo que fosse duvidosa ainda para ele, era indispensável se quisesse ter sua a vingança concluída. Ela estava sendo como uma moeda de câmbio. “Ela me ajuda e eu ajudo ela” - ele pensava. — Então iremos agora mesmo. — disse. — Irão aonde? — Lunno surgiu interrompendo a conversa. — Zathroth. — Sebastian logo tratou de responder. — Nem pensar bela Aurora. Iremos até a floresta Luvia encontrar Velha Oblast. Você ainda é alvo de Circê e se continuar se expondo será mais facilmente morta. — disse Velha Amur. 83
— Ela está certa. — continuou Lunno olhando fixamente para o rosto da irmã. Sebastian e Aurora trocaram um olhar perdido. — Amur, esta outra Velha sabe quem destruiu nosso povo? — indagou Sebastian, arrumando a aljava de flechas nas costas. — Oblast sabe coisas além disso. Se você e sua irmã querem encontrar o autor do massacre de Neodin e Dondarium, sugiro que venham conosco. — falou Amur atentamente. — Que tipo de sugestão é essa velha? — Lunno cruzou os braços em dúvida. — Você não pode impedi-los, jovem Bellator. Sebastian e Maria serão de grande ajuda para o que vão ter de enfrentar. — Amur disse. — O que importa? Sou imortal, nada pode me ferir. — desdenhou Lunno. — Um dia sua ousadia o derrubará tão cruelmente que sua imortalidade de nada valerá. — alertou Amur, pestanejando. Lunno estremeceu, porém calou-se e concordou que os irmãos Addae os acompanhassem até a floresta Luvia, mais ao leste de Dondarium. *** Ao passo que a discussão sobre o destino de todos cessou, Maria permanecia na casa que cresceu e construiu grande parte de seus sonhos. Nos seus profundos pensamentos era nítido que por mais dor que estivesse sentindo, precisava ser forte como Hermian e Ayr. Por eles precisava. A casa estava toda revirada, como se um furacão estivesse passado por ali e levado tudo. Mas havia uma diferença dos furacões reais. Eles não levaram as lembranças que aquela casa trazia para Maria. Não levaram os livros que Hermian lia todas as noites para Maria e Sebastian, estavam todos espalhados pelo chão, mas possuíam o mesmo cheiro e as mesmas páginas marcadas das partes que Maria gostava que sua mãe repetisse. No quarto dela e do irmão, avistou em meio ao entulho as cartas que seu pai costumava escrever quando ficava fora por muito tempo para fazer entregas de armas para outras cidades. Ayr era um ferreiro habilidoso como nenhum
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outro, todos contratavam seus serviços e as melhores armas eram confeccionadas por ele. Maria sentiu uma curiosidade além da dor que estava sentindo e pegou a única carta que sua mãe não deixava nem ela, nem seu irmão lerem. Tratava-se de uma carta que estava dentro de um envelope preto selado com um símbolo vermelho que ela não conhecia, mas parecia-lhe familiar. Hermian dizia que aquela carta só poderia ser aberta caso algo muito grave acontecesse com algum dos Addae. “Chegou o momento de abrir.” - pensou. Pegou o envelope preto do meio da bagunça de seu quarto e retirou o selo misterioso que estava sobre ele. Ao pegar a carta dentro do envelope notou que estava escrita em um papel diferente, nunca havia visto antes. Abriu o papel que estava dobrado em duas partes e leu: “Sebastian e Maria Addae. Se estão lendo esta carta, é sinal de que eu e sua mãe não estamos mais entre vocês. Nossa passagem na terra foi cumprida e vocês se tornaram jovens de grande valor. Continuem zelando e honrando o nome de nossa família para que este perpetue continuamente. Vocês saberão o porquê desta carta de despedida com o tempo. Nós dois estávamos na hora certa e no lugar certo quando escolhemos trazer vocês ao mundo. Naqueles momentos, tudo foi tão perfeito. Cada segundo que passamos com vocês, tentamos aproveitar o máximo possível, pois sabíamos que não nos restava muito tempo. Só cabe a nós pedir perdão pela nossa ausência e dizer que amamos ambos e aonde quer que estivermos agora, continuaremos a amar vocês e esse amor dará a força necessária para que juntos, vocês prossigam e achem o seu caminho. Com carinho e um infinito amor. Ayr e Hermian Addae.” Uma lágrima escorreu dos olhos de Maria. Não sabia ao certo se ficaria confusa ou não com o que havia lido, mas de uma coisa tinha certeza. Seu coração pulsou ainda mais forte e conseguia sentir a presença de seus pais abraçando-a e sussurrando em seu ouvido que tudo ficaria bem. Colocou a carta no envelope preto novamente e guardou-a em seu bolso da calça. Aquilo daria forças para ela e Sebastian, sempre que se sentissem impotentes e com medo. Sebastian estava demorando demais, então Maria olhou uma última vez para seus pais. Beijou a testa de seu pai pela última vez, logo em seguida 85
acariciou o rosto de sua mãe e beijou sua testa também. Foi ai que percebeu o colar que sua mãe usava. Era uma joia feita por seu pai, como presente de casamento para Hermian. Brilhava e tinha a forma de uma singela flor. “Ela gostaria que eu usasse no dia do meu casamento.” - ponderou Maria. Desatou a joia do peito de sua mãe e colocou sobre o seu. Aquilo a faria lembrar que sua mãe sempre estaria com ela, nos mais remotos lugares que se encontrasse. Foi até a cozinha e tentou pegar alguns mantimentos que precisariam para a viagem. Não sabia se os outros iriam com eles, mas pegou quantos alimentos e utensílios básicos a mais conseguiu e partiu para procurar seu irmão pelo acampamento. Os fios do curto cabelo cor de ouro de Maria iluminavam a rua principal Dondariana por onde caminhava ao encontro dos demais. A nostalgia dos pais precisaria passar, pelo menos por enquanto. —Vejo que está tudo bem por aqui. — Maria disse vendo uma sútil paz que estava instalada por hora ali. — Me ajudem a carregar esses mantimentos. — pediu. Sebastian e Lunno tratavam de pegar as coisas da mão de Maria e colocaram ao lado dos garanhões que estavam logo atrás. — Iremos todos à floresta Luvia. — adiantou Lunno à Maria. — Ah, eu sinto muito por seus pais. — disse com um tom melancólico na voz. — Obrigada. — Maria fez que sim com a cabeça. — Mudança bem apropriada. — ela tentou sorriu. — Então vamos. Luvia costuma ter Baios e outras feras selvagens esta época do ano, precisamos ir antes que escureça. — Sebastian advertiu. — Me adiantei e peguei algumas armas no acervo do acampamento, caso nós precisemos. *** Luvia se mostrava uma floresta sem encanto algum, desde as árvores até a fauna. Era conhecida como A Última Floresta, pois todos os homens que partiam para caçar ali, nunca voltavam para junto de seus familiares. Os troncos mais pareciam a treva de tão escuros e em épocas de outono em Les Baux, as folhas caiam fazendo os galhos nas copas das árvores, criarem um tom sombrio sinistro. 86
Estavam a poucos metros do casebre escondido de Oblast. O som dos galopes dos garanhões provavelmente ecoava em toda floresta. Oblast era vista como a bruxa da floresta. Não tinha tanto apreço por pessoas ou coisas. Para ela sua floresta era mais importante que qualquer outro bem. — Sejam bem-vindos a Luvia, caros forasteiros. — soou a voz macabra de Oblast saindo de seu casebre. Velha Oblast havia perdido a visão há bastante tempo em uma guerra de seu antigo e extinto povo Giôa. Seus olhos não eram nada além de um branco assustador. Era impossível saber suas expressões. Os cabelos longos de um branco sujo demonstravam uma senhora sem vaidade alguma e o cheiro então, mais parecia que estava quase em estado de putrefação de tanto que os enojava. Entretanto ela possuía resposta para muitas das perguntas de todos ali. Senão todas. — Companheira de título me honra ao vê-la. — disse Amur. — Você não mudou nada desde a última vez. — Oblast falou posando suas mãos no rosto da antiga companheira. — Me diga, o que traz todos vocês aqui? — A profecia de Circê está cumprindo-se e Nerann, assim como Terdállia inteira corre perigo. A filha de Eos está viva, assim como seu irmão que tornou-se imortal ao passar do vigésimo primeiro aniversário. — falou Amur, empurrando Aurora para conhecer Oblast. — Mas isso não é possível. — disse tocando a fria pele do rosto de Aurora. Enquanto tocava seu corpo, se deparou tocando a pulseira no pulso de Aurora. Era uma coisa que estava perdida há séculos. — Runa Dágaz. — continuou. — Você é a emancipadora da Guerra. — disse Oblast surpresa. — Quantos anos você tem minha querida? — indagou a velha. — Dezoito. No mesmo momento Oblast afastou suas mãos de Aurora e perguntou-se como ainda estava viva. — Vocês precisam ir à Terdállia. Nerann, reino que sua mãe rege, precisa saber da existência de uma nova guardiã mortal. Quanto a Lunno, Ares, seu pai, o encontrará para tomar seu lugar como filho legítimo. — disse num tom desconfortante para os irmãos Bellator. 87
— Mas... — tentou questionar Lunno. — E quanto a minha irmã? Não vou deixá-la sozinha aqui. — Não a indaguem. Ela sabe o que diz. — praguejou. — Nos diga Oblast, qual o preço para entrar na dimensão de Terdállia? — perguntoulhe. — Há apenas uma maneira. Nunca foi utilizada antes por ser um preço alto demais. Existe uma fenda no centro de Luvia que dá acesso direto à Terdállia, porém, em escala natural a fenda só se faz visível de século em século. O antigo feitiço proibido diz que para a fenda se tornar visível antes desse tempo determinado, é necessário um sacrifício aos deuses de um humano. É a única solução que eu conheço. Todos trocaram olhares assustados. Ninguém em sã consciência haveria de morrer por um feitiço como esse, contudo era o que restava. — Eu me sacrifico. — anunciou Velha Amur.
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Capítulo 9
Terdállia s velhas histórias que embalavam o sono dos irmãos Addae reacenderam como uma faísca juntando-se ao braseiro. Aquele mundo, dimensão, seja qual fosse o nome, existia. Os gigantes, as mulheres com corpos de gavião e os dragões escarlates. Todas as utopias, agora se faziam vivas. Terdállia era a dimensão favorita de Zeus, o deus do trovão. Seu refúgio em meio à imortalidade agitada no Olimpo. Ele mesmo a criou com este objetivo, ser um lugar de descanso para si. Nesta dimensão foram colocadas criaturas dos mais diversos tipos e lugares, inclusive da terra. Os anos seguintes foram de prosperidade e fartura. Nunca se viu uma dimensão tão próspera quanto Terdállia. Seu rei era Eferus. Um elfo adulto de longos fios dourados e orelhas pontudas. De longe o mais sábio elfo que já existira antes mesmo da criação de Terdállia. Durante séculos Eferus assumiu bravamente o trono terdalliano, sua honra era invejada por muitos. Antes destes séculos sendo o glorioso rei de Terdállia, Eferus vivia em Madescan, que ficava em uma dimensão distante e sem nome. Era filho do poderoso rei Raiêdo Acco e estava de casamento marcado. Entre suas idas e vindas, Eferus se envolveu 89
com uma exuberante humana chamada Adamara. Sua relação com a humana o levou a uma ruína futura que ele desconhecia no momento. À beira de um lago, ao cair do sol, seus corpos se envolveram ardentemente em meio ao despontar das estrelas. A paixão fora pouco duradoura, mas o suficiente para que Adamara lhe desse um filho meses depois. Por não suportar a dor contínua do parto, a linda jovem morreu ao parir e Eferus se viu desolado por perder sua amada e instintivamente chorou com a criança ainda ensanguentada nos braços. Era um esbelto bebê. Tinha os olhos verdes da mãe e as orelhas pontiagudas do pai. Eferus sabia que sua noiva Niestra não ia gostar nada de sua traição, porém, haveria de aceitar passivamente. A avassaladora paixão de Eferus estava agora debaixo da terra, onde sua beleza não poderia sequer ser vista. Entretanto o fruto da noite no lago estava ali em seus braços, chorando, pedindo um colo materno que já não havia mais. Na manhã seguinte Eferus retornou a Madescan, onde era príncipe, com a criança recém-nascida no colo, ainda cheia de sangue do parto fatal da noite anterior. — O que significa isso, Eferus Acco? — perguntou furiosa Niestra. — Me deixe. — retrucou, indo em direção ao seu aposento, trancando-se com a criança. *** Os anos se passaram. Invernos e verões duros moldaram o caráter do bastardo de Madescan. À medida que sua voz engrossava e seus ossos tornavam-se mais fortes, Corban se mostrava ainda mais carente de afeto paterno, que era suprido em partes por sua meia-irmã Aêla, a única que tinha amor por ele. Eferus e principalmente Niestra desprezavam Corban. Niestra sempre dizia que bastardos não traziam sorte, entretanto era apenas seu ego destruído pela traição de seu noivo, que se manifestava toda vez que Corban atravessava seu caminho. No grande dia da coroação de Eferus Acco, como novo rei de Madescan, Zeus se faz homem e convidou Eferus para reger Terdállia, junto ao seu povo. Ele, sem hesitar aceitou e passou a governar com mãos de
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ferro o reino. Jurou proteger não apenas os elfos, como todos os novos habitantes a quem passara a chamar de povo. Os anos em Terdállia apenas aumentaram o rancor que Niestra nutria por Corban, o bastardo. Ela fazia com que o rei se sentisse culpado todas as noites quando se deitavam, Eferus queria amá-lo, mas não conseguia fazer nada além de trata-lo como um filho da criadagem do palácio. Aêla nunca suportou o modo como seu irmão era tratado desde sempre e de longe queria compreender as razões, ela só sabia que ninguém além de si mesma o via com amor verdadeiro nos olhos. Corban cresceu sabendo que era odiado pelo pai e a madrasta o queria morto. Por mais amor que sua irmã lhe dava, ele ao longo de dezesseis anos, alimentou um ódio eterno dos dois. Seu pai fingia que nunca existira e jamais importou-se em dizer quem era e como morreu sua mãe. E Niestra era maliciosa e sem caráter, além de seu esporte favorito ser humilhar Corban. A cólera aumentava cada dia que vinha. Foi então que o rumo de Terdállia começou a ser transformado. Numa límpida manhã sem calor, Corban descobriu onde seu pai guardava os artefatos e tesouros do Reino. Sua raiva por saber que jamais assumiria o trono de Terdállia era tanta que o levou a um completo grau de insanidade. Na mesma manhã Corban conseguiu furar a guarda do tesouro. “Meu trono. Aquele será meu trono.” - pensou. Pegou o suficiente que precisaria para comprar todos os guardas do reino. — Meu pai já está velho e maluco. Não está em condições de conduzir um reino inteiro. Se ele não sair por bem, irei precisar de vocês. — anunciou ele, distribuindo ouro aos guardas. Seu traseiro já se acomodava confortavelmente no trono do reino criador. Corban pela primeira vez sentira-se grande e nada, nem Eferus, nem Niestra o fariam se sentir odiado mais uma vez. Estava nitidamente deslumbrado com a maciez do couro real e suas mãos acariciavam o puro ouro do trono. Era uma visão única para ele. As portas do salão se abriram e Eferus avistou o filho bastardo sentado sorridente em seu trono. — Corban, o que está fazendo? Saia já dai criança inútil. — disse ferozmente.
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— A criança a quem se refere já fez dezesseis anos. A lei é bem clara, papai. “Tendo completado a idade de dezesseis anos, o rei em exercício destrona para que seu filho homem assuma.” — replicou Corban ficando ainda mais à vontade no trono real. — Mas... mas o que está dizendo, bastardo? Desça já do meu trono. — disse. — Você não tem direito a ele e nunca terá. — Receio dizer que ele já é meu, querido pai. — disse sorrindo maliciosamente. — Ordenei que descesse. — declarou Eferus furioso, avançando sobre o trono, agarrando Corban pelos cabelos e jogando-o no chão. — Nunca será digno de ser rei de coisa alguma, bastardo. — disse dando um forte tapa em seu rosto. A fúria que Corban sentira de seu pai passara a ser ainda pior. — Você não me deixou escolha. — sorriu. — Guardas! Prendam este homem. Eferus não sabia como, mas seria preso a mando de seu próprio filho. Ao fundo as portas do salão novamente se abriram. Eram Niestra e Aêla. Junto com elas, o frio daquela manhã entrava também. — Eferus, o que é isso? — protestou Niestra vendo seu marido ajoelhado contido pelos guardas. — O bastardo. Era de se esperar, na primeira oportunidade que tivesse tentaria usurpar o trono. — disse. — Corban? — soou triste a voz de Aêla, mais atrás. — Você vai pagar pela sua boca Niestra. — seu rosto estava transbordando o ódio retraído todos aqueles anos — Ah, então o bastardo resolveu se rebelar? Não me admiro muito, só questiono você se mostrar mais covarde que seu pai, quando me traiu com a prostituta da sua mãe. — soltou uma gargalhada assustadora. Três metros separavam os dois. A lança de um dos guardas estava ao seu lado. Era a chance de se ver livre do tormento Niestra. Sem pensar muito, Corban desembainhou a lança do cinto do guarda e a atirou velozmente em direção ao peito de sua madrasta. O sonho de se livrar dela poderia tornar-se realidade, não fosse pelo azar extremo de Aêla estar bem atrás da mãe. A lança sem dó atravessou o peito de ambas. Nada se ouviu além do grito desesperado de Corban quando viu que a única pessoa que o
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amava fora morta por ele. Nunca se perdoaria. Niestra estava morta, mas sua irmã também estava. Com as poucas lágrimas que se desprendiam de seu rosto, Corban lembrou de todas as aventuras que viveu ao lado de sua irmã. Quis estar morto no lugar dela. Aêla não merecia esta morte. Ele sim. Eferus estava em prantos. Agora, somente agora via que de nada adiantaria seu arrependimento pelo seu desamor com o filho que fora gerado com tanto amor. — Levem este elfo caído até a praça. Sua pena por descumprir a lei de Zeus ao me negar o trono será a morte. — anunciou Corban, segurando Aêla nos braços. A túnica dele estava manchada de sangue e os olhos ficaram marejados de dor. Seu rosto virou novamente ao encontro dos olhos de sua irmã. Não podia acreditar até onde seu ódio pelo seu pai e sua madrasta, o levou. Enquanto Niestra ainda agonizava de dor, Corban via Aêla expelir sangue pela boca. — Aêla não! Não queria que isso acontecesse, me perdoe. — pranteou, passando a mão em seus cabelos. — A lança era apenas para Niestra... você... — continuou. — Por que tinha que estar atrás dela? Você era a única que me entendia, a única que ainda via esperança em mim e nunca me tratou com indiferença como todos tinham prazer em fazer todos esses anos. — O olhar de Aêla refletia perdão e de algum modo Corban percebeu isso. — Juro que vou ser o melhor rei que Terdállia terá em séculos, juro! — ele prometeu à irmã. Naquele momento, quase num último suspiro, Aêla levou suas mãos ao rosto do irmão, ainda choroso, e lhe disse: — Eu perdoo você. O olhar de Corban foi certeiro ao encontro do último olhar de sua irmã. Agora ela havia partido para sempre e ele se culparia pelo resto de sua longa vida. Era o fardo que ele carregaria. A consequência grave de seu ato. A morte. Corban deixou Aêla e fitou de lado Niestra. Ela sim estava morta da maneira que sempre mereceu e ele não sentia remorso por isso. Dirigiu-se
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ao centro do reino para acalmar os boatos que aos montes já estavam anunciados por todo lado. A praça de Terdállia estava coberta de criaturas. Havia se espalhado o rumor de um novo rei, Corban Acco. — Povo de Terdállia. Há muito tempo este elfo foi visto como exemplo de sabedoria e temor às leis de Zeus, entretanto ao reivindicar meu trono, para assim cumprir a lei, ele me negou. Disse mentiras a meu respeito e me agrediu. Terdallianos, este velho elfo traiu todos vocês e devo fazer com que se cumpra sua devida punição. — declarou, gesticulando algo para os guardas. Para todos os lados se ouvia: “Traidor”, “Morra”. Eferus fora humilhado, assim como fez a vida toda com Corban. Não tinha mais honra alguma e sabia que seu fim era inevitável. A multidão de criaturas estava inquieta e queria um resultado imediato ao ato que Corban afirmou que o pai havia feito. O rei surgiu sendo trazido aos tropeços por dois guardas que seguravam fortemente seu braço. Enquanto os soldados o escoltavam até onde Corban se vangloriava de seu novo poder, os habitantes cuspiam em seu rosto nu e gritavam ofensas ao ouvido dele. — Covarde! — disse um senhor de meia idade, cuspindo no rosto de Eferus. Os sinos da cidade tocavam anunciando a traição. Anunciando que o rei de Terdállia havia traído seu povo. Depois das diversas ofensas emitidas com ódio por partes do povo a Eferus, ele chegou ao ponto mais alto da praça e foi colocado ali, sendo visto como desleal por todos. — Eu sou Eferus Acco. Antigo rei da dinastia de Madescan, filho de Raiêdo Acco, o conquistador, e Eneutêra Acco. Senhor de Terdállia. — continuou, olhando para a multidão que agora o ouvia, enquanto seu filho o observava cuidadosamente. — Venho diante de vocês professar minha traição. À vista de Zeus e das criaturas. Traí a confiança que Zeus depositou em mim. Neguei o trono ao meu filho, meu único filho homem. Jurei defender com minha própria alma este povo, mas minha ganância e egoísmo foram maiores. Queria que o trono fosse eternamente meu. — pronunciou olhando para cima.
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— Traidor! Traidor! — a multidão se pôs a gritar novamente. Do meio da aglomeração uma pedra foi jogada atingindo em cheio a cabeça de Eferus que começou a sangrar. — Ouçam o que eu digo. Para que todos saibam e sejam testemunhas do que eu afirmei hoje diante de todos vocês e dos deuses. Corban Acco é o herdeiro legítimo ao trono terdalliano. Senhor das águas negras, do fogo celeste e protetor do reino. — disse Eferus sob a vista acusadora dos presentes. — Assim como pecamos, também sofremos as consequências desse pecado. Este elfo assumiu sua culpa e os deuses, assim como todos vocês são testemunhas. — afirmou Corban aos habitantes. — O que faremos com ele, Majestade? — perguntou o comandante Matheu. — Enquanto eu for o rei, traição alguma ficará sem punição. — declarou. —Lorde Matheu pegue o machado da honra. — a voz do rapaz soou como nunca ninguém ouviu. Era como um rugido de um leão que acabou de destroçar sua presa. E mais uma vez o cardume de criaturas gritou freneticamente pela morte de Eferus. “Matem-no.” O machado da Honra era conhecido em todas as partes do mundo. A execução por esse machado era reservada aos condenados nobres, enquanto os plebeus eram supliciados por instrumentos que traziam longas agonias antes da morte. “Traidor”. Os sons no ouvido de Eferus se concentraram no primeiro choro que ouviu de seu filho naquela noite no lago, afinal ele havia se tornado o homem que Eferus nunca haveria de ser e no fundo sentiu uma ponta minúscula de orgulho de ter um filho com a astúcia que ele jamais tivera. Sua respiração se tornou cada vez mais ofegante e seu coração sofria constantes taquicardias. Seu fim estava próximo e nada podia impedir, só restava a ele aceitar. Corban ergueu o Machado da Honra mirando no pescoço de seu pai. O pensamento dele era um só. “Ele está pagando com a medíocre vida que
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teve.” A lâmina do machado desceu, cortando a cabeça do agora traidor, Eferus. Aves se agitaram no céu e um vento forte se espalhou pela praça. O sangue ainda escorria de seu corpo, quando Corban apanhou a cabeça de seu pai e a ergueu para a multidão agitada, que agora gritava: “Viva ao novo Rei!”. O ego do novo rei de Terdállia inflou-se rapidamente como um balão. Todos aqueles gritos de vida e aceitação que nunca tivera antes foram o suficiente para que estampasse em seu rosto um sorriso fúnebre. De repente, trovões eclodiram no céu daquela manhã. As nuvens se transformaram em um negro que mais parecia que a noite estava iniciando, estas se juntavam à orquestra conduzida pelos raios que começavam a pairar sobre toda Terdállia. Então os trovões ficaram mais intensos e seu barulho tornara-se ensurdecedor. Como meteoros, começaram a cair sobre o chão. Alguns ficaram assustados e correram em direção à caverna Botin, onde era mais seguro. Corban ficou. Não aceitava que a natureza atrapalhasse sua tomada de poder. — Malditos sejam os deuses. — gritou olhando para cima. Gotas de água pura desprendiam-se das nuvens negras e molhavam o rosto de Corban suavemente, enquanto um enorme raio de luz forte desceu ao encontro dele, causando uma claridade comparada ao sol. Não emitiu som algum. No dissipar da intensa luz, Corban não estava mais ali. Algo o tinha varrido impiedosamente. Terdállia estava mais uma vez sem rei. Tudo ficou estranhamente monótono pelo desaparecimento repentino do novo rei. As criaturas que fugiram para Botin, ao norte acima, ficariam a salvo do que viria a seguir. Uma parte dos habitantes, que não temeram as rajadas de trovões, ainda buscavam respostas para interpretar o que haviam presenciado. Ao longe, na entrada dos fundos do castelo, galopes enfurecidos infligiam o solo em direção às criaturas do reino. Os ataques e golpes vinham de todos os lados. Algumas criaturas conseguiram se defender da forma que podiam. Os poucos humanos foram contidos rapidamente pelos soldados com elmo de falcão negro. Definitivamente sem armas, os humanos tinham poucas chances, comparados aos ogros e harpias que eram mais fortes e destroçavam as cabeças de falcão, ou pelo menos tentavam. 96
Havia uma força incomum que manava daqueles seres bizarros, nem mesmo a força dos gigantes os continha. Os golpes se tornaram mais violentos à medida que os galopes soavam mais bravos. Algumas harpias jovens tiveram as asas cortadas e foram montadas sem piedade pelos falcões, sendo mortas como lixo, em seguida. Com as fadas cinzentas acontecia o mesmo. Pouquíssimos conseguiram escapar pelo túnel que dava acesso à caverna Botin. Os gigantes iam a pulos pela entrada principal e outros sobreviventes apenas se esconderam adiando o pior. O céu estava assoberbado de nuvens tão negras quanto às trevas. Os pássaros jaziam no chão onde a baixa do reino de Terdállia foi grande e devastadora. Não seria qualquer ser a derrubar o reino criador, porém algo por dentro dos elmos ensanguentados dos falcões dava a certeza de que aquele era o início do fim. O sangue escorria pelos pátios centrais do reino onde a chacina foi maior e mais cruel. A sede por carnificina daqueles soldados fora notória e era questão de tempo até que destruíssem tudo pelo caminho. E naquele momento, no alto da terceira torre real, quando os cabeças de falcão devastavam o que havia sobrado, vislumbrou-se um falcão magnífico. Uma ave gigante de penas negras rubras pairava sobre o castelo, arrancando com uma força brutal a estrutura de pedra do reino e as lançando para longe. As garras eram afiadas e o som que emitia fez o exército parar para contemplá-lo, enquanto destruía todo reino criador. Quando o ataque teve seu fim e a poeira que havia tomado o pátio central dissipou, pôde-se ver o real estrago e o horror que se fazia ali. Ninguém viu como aquela ave gigante desapareceu no ar e nem seu exército. Apenas sumiram. Na caverna, a sensação de perda era massacrante. Até as mais primitivas criaturas queriam saber o que tinha acontecido com o jovem rei. Foi então que um dos humanos surgiu. — Povo de Terdállia, a desolação tomou conta de nosso reino esta manhã. Perdemos tudo. Pessoas que amávamos, nosso lar, porém não roubaram nossa força de prosseguir. Terdállia é vasta. Há lugares que nem ao menos conhecemos. Se nos juntarmos poderemos enfim recomeçar. E então quem está comigo? — disse Elin. 97
— Não vamos receber ordens de um humano. — bufou uma das harpias, chamada Truena. As harpias eram aves de rapina com rosto e seios de mulher. — Mas não estou impondo nada, Truena, só quero o melhor para todos aqui. Unidos seremos mais fortes. — rebateu Elin, com um tom calmante na voz. — Harpias, alguma de vocês vai aceitar a linda proposta de Elin? Creio que somos mais superiores à sua raça primitiva e fraca, caro Elin. — disse Truena desdenhando. Antes de a discussão tomar rumos maiores, um punhado de dragões ignorou tudo aquilo e seguiu pelo sul de Terdállia. Desde aquele dia na caverna Botin ninguém mais soube notícias deles. À medida que o debate ganhava proporções maiores, os grupos de prós e contras ficavam cada vez mais nítidos. Por estranhos motivos os magos de Terdállia ficaram ao lado de Elin e os outros humanos. Com eles surgiu Nerann, conhecida depois como terra iluminada. Era um reino diferenciado, aceitara todos os outros sem grandes questionamentos. Ficava no limiar do sul e norte de Terdállia, chamado de Linha Divina, onde o sol brilhava mais intenso. Era rodeado por vales e rios cristalinos e no alto do castelo havia uma fonte de água limpa que caia como uma cascata ao encontro das águas do rio. Elin passou a ser o rei de Nerann, sem impedimentos alheios e assim prosseguiu. Por outro lado as harpias mantiveram sua postura. Truena convenceu as fadas mal vistas da região, chamadas de fadas caídas, a se juntarem a elas. As bruxas também se colocaram contra a proposta de Elin. De forma que assim, juntas, construíram o grandioso Reino de Gallia, o céu negro, ao norte. Este, por feitiços das bruxas, era suspenso no ar, como forma de proteção. Ninguém podia entrar lá, além delas. O castelo era rodeado por neve limpa e o frio ali era sempre intenso. Embaixo do mesmo formava-se um redemoinho de água tão profundo quanto o azul no imenso céu gelado. Era praticamente impossível de se chegar até ali, visto que o norte não era tratado com bons olhos. Quem quer que ousasse fazer isso, não voltaria vivo para contar o que pensou ter visto.
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— Somos muito diferentes de vocês e um humano governando não é bom. Os gigantes e outros monstros maiores vamos nos virar. — disse um dos gigantes, indo também contra a proposta de Elin. Visto que a decisão já estava tomada, Elin nada questionou. Então das mãos deles nasceu o reino Zorá, a terra grande. Era de longe o reino com as muralhas maiores e mais fortes. Ficava ao oeste e tinha sempre sol e chuva em suas estações. Neste reino o acesso era bastante limitado, não só pelas gigantescas muralhas, mas porque a força de seus habitantes era temida em toda Terdállia. As criaturas que habitavam este reino eram rotuladas como, “feias”, “asquerosas”, “bizarras” e uma série de outras coisas. E eles sabiam disso com absoluta certeza. Continuando a divisão, a outra parte ficou neutra quanto à proposta do humano. Nesta cabiam os descendentes indiretos de Eferus e Corban Acco. Os elfos, juntos às fadas, duendes e ninfas criaram com extremo cuidado o Reino Cordonne, a brisa suave do leste. Reino tranquilo onde a paz da cachoeira Unêver fazia o céu instigar a favor. Não eram torres enormes, porém a beleza de tudo ali compensava mais do que ver um sol se pondo. Entretanto, havia no antigo reino caído uma força, algo que apenas Zeus e alguns poucos deuses tinham conhecimento. Era ali, no reino que ficou conhecido como Genesis, a terra criadora, que jazia o inicio do infinito.
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Capítulo 10
Magia de Sangue prepotência na fala de Velha Amur assustou até Aurora, que não imaginava tal atitude vindo de uma velha como Amur. Pensando bem, Amur era inteligente o suficiente para saber que não perderia muito morrendo, ainda mais por um bem maior. “Afinal a velha Amur era confiável. Tudo que meus ouvidos captaram até agora só serviram para confirmar que a julguei mal desde o início.” pensou Aurora. — Amur, você tem certeza? — perguntou Sebastian ainda assustado. — Vocês têm outra opção senão essa? — indagou com autoridade. — Já vivi o bastante, o peso de minha morte não será tão grande menino, acredite. — Ela está certa, talvez só atrasasse a gente no caminho. — disse Lunno. — Lunno? Isso é coisa que se diga de quem curou seus ferimentos? — bufou Maria.
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— Parte foi encenação para Aurora não desconfiar que eu fosse imortal. — tentou continuar Lunno. Aurora apenas o olhou e ignorou. — Não se preocupe querida, ele tem razão, eu mal posso andar sem ajuda. Este é o certo a se fazer. — A velha disse, pegando uma faca na sua bolsa de couro marrom. Estendeu, colocando-a nas mãos de Oblast. Sebastian involuntariamente teve uma lembrança bagunçada de um sonho que havia tido dias antes de tudo acontecer. Uma voz estranha soava ao seu ouvido dizendo: “Somente a morte trará a luz do infinito.” E assim repetia-se por dezenas de vezes em meio a um vácuo hostil. Parecia um lugar onde só a escuridão poderia entrar e essa voz clamava por luz. Sebastian suava frio naquela noite e não tinha ideia do que aquele sonho poderia significar, mas ver aquilo tudo acontecendo e logo depois lembrarse desse esquisito devaneio foi coincidência demais. A mente dele se tornou confusa naquele momento e por mais que quisesse respostas, não as conseguiria. Não agora. Que ligação haveria de ter a lembrança involuntária desse sonho? Era a questão que se formara na mente de Sebastian. “Será que o sacrifício de Velha Amur tem a ver com este sonho?” - se questionou, esquecendo logo depois. Lunno esboçava um semblante de desconfiança com o lugar. Nunca confiou demais em alguém que não fosse Aurora e essa não seria a primeira vez. Seus cabelos estavam um pouco bagunçados por causa do vento constante que o alcançava ao passo que os galopes dos garanhões se tornavam mais intensos na caminhada até a casa de Oblast. Há dias que não comiam devidamente e banho passava bem longe de suas vistas. Ainda estavam com as roupas manchadas por sangue e isso trazia à memória de todos que o mundo deles havia se desfeito e as únicas partes que restaram foram eles. Apenas eles sobreviveram e por mais que não quisessem, precisariam lutar juntos agora, como uma família. Eles não sabiam o que estava a espreita de cada um deles, mas todos ali tinham a coragem necessária para não voltar atrás e lamentar eternamente por seus entes queridos. Apalpando a faca que Amur lhe dera, Oblast já sabia o que tinha de fazer agora.
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— Aurora, apenas você e Amur no meu quarto já! — ordenou, levantando-se. Novamente todos na sala trocaram olhares surpresos. Tudo que Oblast dizia soava como uma coisa realmente intrigante. Nada era como eles previam. Nada. — Por que só Aurora? — Lunno quis saber. — Já disse para não questionar Oblast. Fiquem aqui e logo estarão em seu verdadeiro lar. — Amur disse, afastando-se junto com Lunno para perto da varanda. — Proteja sua irmã a qualquer custo e fique atento. Continue a demonstrar confiança e não esboce prepotência por ser imortal. — sussurrou. Foram as últimas palavras de Velha Amur antes de entrar no quarto. As palavras no esquisito sonho insistiam em incomodar os pensamentos de Sebastian, que até então, não compreendia nada. Ele continuava a olhar fixo para a porta que dava acesso ao quarto onde aconteceria algo que eles desconheciam. Não queria admitir, mas Aurora ser a única deles a adentrar ali, o fez ficar com uma ponta de preocupação. Estava sentado e suas mãos acariciavam-se uma nas outras, contendo seus olhos em Aurora até vê-la apenas por uma frecha da porta, até fechar-se definitivamente. Enquanto isso, no quarto de Oblast, Aurora podia sentir pela janela o aroma das flores desabrochando no início da primavera, embora o ambiente não fosse dos mais acolhedores, era ali que Amur seria sacrificada. Aurora se lembrou das vezes que se machucara no acampamento dondariano e Amur tratava de suas feridas sempre com aquele sorriso desdentado e irônico. E agora, por motivos que Aurora mal sabia, sua vida seria ceifada, sem sofrimento, apenas com a certeza de que estava finalmente fazendo o que foi designada para fazer. — Minha jovem, quero que apare Amur e a deite na cama. — pediu Oblast. Logo depois do pedido, Amur disse: — Não morra ainda. — disse olhando para Aurora. “Pensei diversas vezes em cravar minha lâmina no peito desta velha, as suas ironias me irritavam, mas agora vejo que não seria a morte que ela merecia. Seu legado 102
era misterioso para mim, contudo seu desfecho era de longe louvável e de honra."— salientou o pensamento de Aurora. — Está pronta? — Oblast perguntou. Estava sentada em uma cadeira apalpando novamente a faca que Amur lhe dera. Sem que a Velha Amur respondesse, Oblast cravou a faca bronzeada no coração de Amur. ''A morte inesperada mata com menos dor do que a previsível''. Foi a frase de Oblast. Aurora não entendeu o que ela quis dizer no momento. Aparou Amur antes que caísse no chão e a deitou na cama como Oblast havia lhe pedido. — Preciso recitar o feitiço antes de o sangue secar dentro dela. Aurora não fazia ideia do que Oblast faria, ela só sabia que o sangue estava escorrendo e encharcando os lençóis brancos da cama. Não havia jeito de parar, ou pelo menos ela não sabia como fazer isso. Foi naquele momento em que a magia de sangue se fez presente. — Agora preciso que saia. Quando começar a falar, ninguém deve estar neste quarto. A magia acordará poderes e deuses antigos. A morte cantará aqui. Nenhum ser que respira deve vê-los. — disse Oblast num tom sombrio. Aurora fez que sim com a cabeça e saiu do quarto. Fora do quarto era possível escutar sons estranhos e batidas nas paredes. Lá dentro Oblast cantava uma canção medonha que muito estranhamente podia se escutar. "Invoca priscosque deos messis et aeterna particularum deos. Immolate de mortali ens in lecto. Terdállia patefacio porta, pius es. Si que volunt hic. Tua ordinem concessit jocunditas nostra frui. Veni, óh deos, carmina morte canam fac nos suis. Acceptatione indiget sacrificio occiditur et mulieres viris suis in bello plorare. Si biene nos bonis. Infinitum mors et illuminabit." Era latim, mas ninguém além de Oblast conseguia entender a canção entoada naquele quarto sombrio. A agitação de vozes foi percebida por todos na sala. Oblast e Amur não estavam sozinhas. — Vou entrar lá para ver o que está acontecendo. — disse Sebastian levantando-se de onde estava sentado. Era do sangue Addae, não tinha 103
medo. Todos já estavam impacientes com a demora de Oblast com essa magia e ouvir outras vozes além dela própria foi definitivamente angustiante. — Sebastian, Oblast ordenou que ninguém pode entrar. Pode ser perigoso. — disse Aurora afastando-o da porta. O semblante de Aurora era de preocupação. Sebastian viu nos olhos dela que era verdade. No quarto a canção cessara e não se ouvia o ruído de coisa alguma. — Será que já terminou? — perguntou Maria à Aurora. — Não sei. — afirmou. — Velha Oblast? — disse, batendo na porta. Sebastian não conseguia externar tão profundamente sua angústia, mas aquela espera toda estava atordoando não apenas ele, mas todos que estavam na sala, a não ser Lunno que ficou na varanda onde Velha Amur o deixou antes de entrar no quarto junto com Oblast e Aurora. Por que havia de ser daquele jeito? Havia perguntas que nunca poderiam ser respondidas. Ficariam apenas na imaginação e de lá jamais sairiam. Ainda em pé perto da porta do quarto, Aurora continuava intrigada com a forma que Oblast conduzia aquela magia. De longe Oblast não parecia do tipo que falava com espíritos de mortos e coisas do tipo, mas depois de sair daquele quarto seu pensamento mudou completamente em relação a ela. As curandeiras das cidades de Les Baux eram mais poderosas do que se imaginava e tinham segredos trancados a sete chaves no baú da alma. A porta se abriu fazendo um cheiro estranho e desagradável entrar na sala. — A magia de sangue está concluída, meus filhos. — anunciou Oblast apoiando-se sobre Aurora. — Corram até o centro da floresta. Lá haverá uma fenda de luz dourada. Quando chegarem, entrem o quanto antes. Que os deuses estejam com vocês. A troca de olhares por parte de todos foi novamente a única reação. Ninguém ousou perguntar onde estava Amur e muito menos o que a canção em latim significava. Da boca deles não saiu uma palavra sequer. Nem Maria que costumava ser a faladeira do grupo conseguiu raciocinar e articular uma fala. Estavam todos impressionados com a facilidade que 104
Oblast tinha em dizer que a magia de sangue havia terminado. E Amur? Era certo pensar apenas que a curandeira da extinta Neodin cumpriu seu papel até os últimos momentos de sua longa vida e apesar das constantes desconfianças do grupo em relação a ela, Amur mesma provou que estava ali para ajudá-los. E era tarde demais para falsos arrependimentos momentâneos. Certamente já sabiam qual seria seu fim desde que ela se ofereceu como sacrifício. — Estão esperando o quê? Andem, vocês não têm muito tempo. — disse Oblast. — Sigam em frente, no final da trilha de lágrimas. — continuou apontando para fora da janela indicando em que direção ficava. — Vocês irão encontrar uma árvore gigante, chamada Árvore da Noite, onde estão os ossos dos viajantes que passaram por aqui. É exatamente lá. A fenda se abre onde é dada a oferenda aos deuses. — Obrigada. — agradeceu Aurora saindo do lugar. Era a hora. Aurora e os outros partiram rápido para o centro de Luvia onde tentariam achar no final da trilha das lágrimas essa tal árvore. Tarefa que não seria tão difícil pela descrição de Oblast. Os garanhões foram montados e os galopes eclodiram ecoando por todo lado. Enquanto galopavam, Sebastian percebeu como Aurora se tornara grande para ele em tão pouco tempo. Mesmo com tudo que havia acontecido ela parecia inabalável, pelo menos externamente. Entretanto dentro dela transbordava dúvidas sobre seu passado e o futuro incerto a qual estava predestinada e ele sabia disso. ''Não foi culpa dela'' - pensou Sebastian, ainda olhando para ela. Ao chegarem poucos metros do final da trilha, já se podia ver aquela luz dourada irradiando por toda parte. E a Árvore da Noite com todas as ossadas dos caçadores estava ali da forma mais macabra que poderia estar. De longe não se podia perceber que era uma fenda, não passava de uma luz que chegava a cegar de tão intensa. “Somos mais uma oferenda aos deuses?” – Questionou-se Aurora olhando fixamente para o clarão que irradiava no centro da Árvore da Noite. — Todos prontos? Estando uma vez em Terdállia, para sempre em Terdállia. — declarou Lunno. — Sim. Vamos nos vingar de quem matou nosso povo. — disse Sebastian.
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Aurora e Maria também concordaram com um aceno de cabeça. E foi então que entraram no caminho que dava acesso a tal fenda, tapando seus olhos do clarão. E naquele instante o mundo que eles conheciam antes não se mostrava mais. Apenas num piscar de olhos se encontraram no meio do que parecia ser uma arena. Rodeados por seres enormes e monstruosos que mais pareciam gladiadores sendo aplaudidos de pé por outros da mesma ''espécie''. Não falavam a língua deles e tudo que diziam soavam apenas como gritos sem sentido. Aurora e o grupo estavam ali caídos no chão de areia marromescuro, enquanto monstros horrendos e enormes corriam com suas armas. De imediato pensaram que era para matá-los e exibir suas cabeças como troféus diante de todos que aplaudiam freneticamente. Então Sebastian tinha que gritar na língua comum para que os demais se protegessem. E foi isso que fez. — Corram ao redor da arena! Eles são lentos se comparado a nós. — gritou. — Maria, somente seu martelo pode atrasá-los agora. — disse enquanto rodopiava para trás. ''Odeio lutar. Entretanto se faz necessário agora, ou morreremos'' - pensou Maria. Em seguida pegou seu martelo girando-o e golpeando em cheio um dos gigantes. Outros, porém, a cercaram, deixando-a sem saída. Lunno vendo que ela corria perigo, desembainhou sua espada do cinto e tentou atrair a atenção dos gigantes para ele. Assim daria tempo de Maria golpeálos por trás. — Ei, seus monstros venham me pegar! — gritou Lunno com a lâmina nas mãos. Os gigantes se distraíram, tal como ele pensou. Foi a chance que Maria encontrou para esmagar as pernas deles por trás e ir ao encontro de Lunno do outro lado. Os campeonatos eram o prazer do povo de Zorá, exatamente por causa da violência que estes tinham. Era um povo cruel que achava aquele espetáculo digno de ser contemplado. Nada era ensaiado. Pegava-se qualquer ogro horrendo da multidão e os lançavam uns sobre os outros brandindo suas armas, prontos para um festival de sangue. Ali não havia honra alguma, a luta durava até a morte de alguém, momento em que a multidão estremecia. 106
''Pela honra de meu povo e pelas suas famílias, hoje mortas, irei combatê-los, nem que venham cem desses, minhas flechas atravessarão as suas gargantas.'. — indicou o pensamento fixo de Sebastian. Enquanto tentavam correr sem destino certo, Aurora percebeu que Sebastian estava ficando mais atrás. Ele estava ofegante e mal conseguia falar. As flechas que atirava em direção aos gigantes passavam bem longe. Algo estava errado. Aurora voltou e olhou nos olhos de Sebastian perguntando o que estava acontecendo, mas ele nada respondeu. Ele estava pálido e parecia que a qualquer momento ia desmaiar. Então, Aurora levantou a camisa de Sebastian e suas suspeitas se confirmaram. Os pontos que Amur tinha feito em seu peito, haviam se rompido e ele estava começando a sangrar muito. Sebastian olhou para ela ainda aos tropeços como se quisesse dizer: "Eu não tenho mais chance. Corra e se proteja”. Aurora estava decidida a tirá-lo dali, ela devia isso a ele, contudo o seu pensamento não era esse. Ela podia ser a mais fria de todas as garotas que ele já havia conhecido, todavia tinha um coração e nunca o deixaria para morrer ali. Se fosse para ele morrer, ela mesma o faria. No entanto numa distração de ambos, um gigante monstruoso surgiu repentinamente e golpeou duramente o peito ferido de Sebastian. Antes de o gigante golpeá-lo, Aurora foi protegida por uma camada de luz azul intensa que se formou ao redor dela e escapou de ser atingida também. Não houve tempo para um grito de dor. Sebastian apenas desmaiou no chão de terra. Os monstros se moviam tão vagarosamente que Aurora percebeu que era sua chance de sair de onde estava. Ela correu novamente ao encontro dele e o segurou nos braços tentando fazer com que ele acordasse. — Sebastian, Sebastian! Acorde, por favor. — pedia, dando tapinhas em seu rosto. Aurora não entendia e muito menos queria entender o porquê de estar agindo daquela forma, afinal era só um companheiro de jornada, nada mais que isso. Os olhos dela rodearam a expressão de crueldade naqueles rostos macabros e cheios de cicatrizes. Parecia que quanto mais sangue era derramado ali, mais maldade eles manifestavam entre si, contudo notou um rosto que não se podia ver, estava coberto por um capuz azulado ornamentado com cintos e couros dourados espalhados pelo manto e sob 107
seu ombro uma águia emitia um som agudo. Seu braço nu exibia tatuagens estranhas que ela não soube identificar. Ele ainda segurava um cetro quase da mesma altura que a de Aurora e este brilhava constantemente uma luz azul celeste. Só então percebeu que ali, somente ela podia vê-lo por algum motivo. Ninguém além de Aurora percebia a presença dele e o estranho encapuzado parecia estar vigiando-a fixamente. Sacudiu a cabeça para se desfazer daquela imagem e ver como Sebastian estava. Não podia acreditar que mais uma vez ele havia sofrido um golpe que era para ela, com essa já contavam duas vezes e no mesmo lugar. Num surto de reflexo, brandiu sua espada com uma das mãos e cravou na barriga do gigante antes do seu próximo ataque, enquanto ainda segurava Sebastian no outro braço. —Malditos! Parem! — praguejou forte. Quando quis voltar seus olhos para a multidão para ver se o homem de capuz estava lá, não o viu. Seu rosto virou mais uma vez para Sebastian. Estava ensanguentado em seus braços e à medida que o tempo passava sua roupa ficava ainda mais manchada do sangue dele. A pancada havia rasgado mais profundamente o ferimento de Sebastian. E parecia muito mais grave dessa vez. Foi quando ouviu uma voz amistosa atrás dela. — Não tenha medo. Levarei você e seus amigos para um lugar seguro e longe daqui. — disse o homem estranho de capuz azulado. Aurora virou-se. — Quem é você?— perguntou tentando ver seu rosto. — Albus. Lutiel Albus. — respondeu. Lunno e Maria corriam em direção à Aurora depois de matar alguns dos gigantes. Quando finalmente a alcançaram, Maria se desesperou ao ver o irmão desacordado e sangrando nos braços de Aurora, porém sem perda de tempo, Lutiel Albus ergueu seu cetro o mais alto que pôde, pronunciando uma única palavra. — Aldentzeko. — a águia voou e o cetro brilhou ainda mais intensamente. Com a luz, Aurora viu um pouco do rosto de Lutiel. Era gracioso e dono de uma beleza exuberante e tinha uma cicatriz no rosto, como se algo tivesse tentado cortar sua pele com fúria. E esta foi sua última lembrança antes de desmaiar.
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Capítulo 11
Domínio conteceu tudo muito rápido. A morte de seu povo. A descoberta do seu passado. A chegada à Terdállia. A aparição de Lutiel. Não era o que Aurora costumava chamar de dias normais. A morte de Amur a impressionou muito, afinal que ousadia haveria de ter uma velha curandeira? Bom, ousadia além da que Aurora tinha certamente. Aurora não estava preparada para seu desfecho. Não ainda. Naquele momento lembrou-se da última coisa que Amur lhe disse: “Não morra ainda”. Aquilo apenas lhe deu mais vontade de viver e descobrir ao certo quem estava por trás dos ataques. Até então Circê era a principal mentora de tudo isso, mas ela precisava de certezas e não palpites. E quanto a seu irmão? Não falava diretamente com Lunno desde que Amur contou toda a verdade. Nem mesmo ela sabia se confiava nele da mesma maneira que antes, mas era seu irmão e ela sabia que de uma maneira ou outra ele sempre a protegeria, mesmo se Aurora não pedisse. “Três anos sabendo de praticamente toda a verdade e ele não me disse uma única palavra. Ignorou e enterrou na mente dele o meu passado, o nosso passado.” - refletiu. Todavia tinha certeza de que ele tinha seus motivos, só não agiu como ela esperava. 109
A claridade do sol foi de encontro ao rosto de Aurora quando abriram as cortinas das janelas. Ela estava deitada em uma cama enorme como jamais vira e com roupas sedosas e limpas de um branco tão intenso que parecia refletir a luz do sol. Não sabia exatamente onde estava e nem como chegou ali. Só conseguia se lembrar daqueles olhos cinza e rosto marcante que apareceu diante dela na arena e depois da forte luz azul não se lembrou de mais nada. — Que lugar é esse? — perguntou à uma criada, a mesma que abriu as cortinas da janela. Seu semblante era de uma impecável beleza, não se comparava às criadas de Neodin. — Você ainda está sonolenta, durma mais um pouco. — disse a criada. — Onde está Sebastian? — por impulso perguntou. A criada abaixou a cabeça, recolheu alguns panos e saiu. Era como se ela quisesse dizer que Sebastian não havia sobrevivido ou alguma coisa do tipo, mas algo levou Aurora a acreditar que ele precisava da ajuda dela. Ignorou seu sono, pegou sua túnica preta, que surpreendentemente estava limpa ao lado da cama e vestiu-se rapidamente. No momento nem pensou como Maria e Lunno estavam. Sebastian precisava dela. Desceu as escadas e deu de encontro com um homem robusto e cheio de adornos na vestimenta. — Me perdoe senhorita. Não quis assustá-la. — disse o homem. — Mas assustou. — respondeu impaciente. — Você deve ser a menina que Lutiel trouxe há três dias de Zorá. Por sorte ele pressentiu a chegada de vocês e foi rapidamente para lá. É um prazer conhecê-la. — ele sorriu. — Três dias? — assustou-se. — Onde Sebastian está? — Primeiro seria agradável tratá-la pelo nome. — Aurora... Aurora Bellator. — disse. — E o seu? — Elin Lyw, o quinto de meu nome, Rei de Nerann. — sorriu novamente e os dentes refletiam a luz do sol de tão alvos. — Quem você procura talvez seja o rapaz que chegou aqui quase sem vida. — Como ele está? Está vivo? — Não se preocupe. Lutiel cuidou dele e pelo que vi está tudo bem agora. — respondeu Elin. 110
— Me leve até ele, vossa Majestade. — Aurora podia se comportar mal à mesa de um banquete, mas sabia como tratar um Rei. — Como a Senhorita quiser. Os cabelos de Elin se sobrepunham em seus ombros. Era de um marrom-claro e não se podia deixar de notar seu belo sorriso. Vestia uma roupa repleta de enfeites de ouro e outros adornos, mas nada disso impressionou Aurora. O palácio era gigantesco e pelas janelas era possível ver que ficava de frente para um rio de águas cristalinas. À primeira vista parecia um lugar amistoso se comparado ao banho de sangue na arena de Zorá. Chegando ao quarto onde Elin disse que Sebastian estava, Aurora tentou disfarçar o sorriso que deu ao vê-lo bem. Ele estava deitado com ataduras ao redor do peitoral e ainda dormindo. Ao perceber que alguém havia entrado no quarto seus olhos abriram lentamente. — Aurora? — foi o que ele disse ainda sonolento. Ela virou-se. — Pode nos deixar por um instante, vossa Majestade? — pediu. — Sem nomenclaturas, assim me sinto velho demais. Me chame de Elin. — disse novamente com o sorriso que estava se tornando familiar para Aurora. — Vou dizer ao resto dos seus amigos que vocês acordaram. Com licença. Afinal, era um Rei com uma educação claramente elevada, ali ela sentia estar segura, ao menos por alguns instantes. Além de seu irmão, Aurora nunca havia se preocupado com o bem estar de mais ninguém e ver aquele rapaz a quem ela chamava de estorvo, machucado por sua causa, a fez pensar: “É tudo culpa minha.” — Aurora, é você? — perguntou mais uma vez sem muita força no tom de voz. Apesar de sonolento ele reconheceria aquelas madeixas avermelhadas em qualquer lugar. — Sim Sebastian, sou eu. — finalmente respondeu, chegando mais perto da cama. — Onde está minha irmã? — Não se preocupe, ela está bem e vindo para cá com Lunno. — disse mudando seu semblante. — Sebastian não queria que machucassem você dessa forma. Eu me descuidei e deixei aquele monstro te atacar. Você 111
estava certo, estou me tornando uma covarde. Ao invés de enfrentar essas coisas sozinhas, eu envolvi todos vocês nisso. É tudo minha culpa. Nunca Aurora havia ficado daquele jeito. Sentia-se impotente e ao mesmo tempo culpada por não enfrentar seu passado de frente. Isso estava acabando com ela. — Você não precisa enfrentar isso tudo sozinha. E nem ao menos me pediu para vir. Se estou nesse estado agora, a culpa é somente minha, Aurora. Você não é nenhuma covarde, pelo contrário, nunca vi tamanha coragem em uma pessoa como vejo em você. Estamos nisso juntos agora. — tossiu de lado. — Acho que sou forte afinal. Recebi um golpe de um gigante três metros mais alto que eu e ainda estou vivo. Sou quase um imortal. — tentou dar uma risada, mas falhou quando a tosse veio primeiro. Aurora sorriu. Sentiu segurança em tudo que ele havia dito para ela. A porta se abriu mais uma vez. Era Maria correndo em direção ao irmão e Lunno veio logo em seguida. — Sebastian, você sempre querendo me matar de susto garoto. Já está melhor? — Maria agarrou-se ao ferimento do irmão e o abraçou tão forte que Sebastian sentia que a qualquer momento suas costelas iriam quebrar. — Devagar... devagar irmã, isso ainda dói. — Ah, me desculpa, você sabe como sou exagerada. — Não tem problema, o importante é que você está aqui e a salvo. Estou me recuperando e Lutiel disse que logo vou poder sair dessa cama. Lunno estava imóvel como uma estátua de pedra. Parecia que algo havia roubado suas emoções, até seus olhos encontrarem os de Aurora. Ele correu ao seu encontro e a abraçou. — Irmãzinha, eu não podia ter escondido de você tudo aquilo, mas eu queria ter contado, acredite. — sussurrou em seu ouvido. — Eu sei. — rebateu em outro sussurro. Ao fundo perto da porta, Aurora avistou mais uma vez o gracioso rosto que havia salvado todos eles. Era Lutiel com a mesma capa azul, porém agora sem o capuz tapando seu rosto. Seus fios eram de um negro ônix que chegava a brilhar e a cicatriz em seu rosto era ainda mais nítida. — Lutiel? — perguntou ainda abraçada a Lunno.
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— Eu mesmo. Vejo que Sebastian se recuperou bem. Fico feliz, porém não os trouxe aqui por mero acaso. Há mais coisas que precisam ficar sabendo o quanto antes. — Mais coisas? — Lunno questionou. Tudo que Lunno sabia era o que Amur tinha lhe contado e ele sempre desconfiou que ainda faltavam peças no quebra-cabeças do passado dele e de sua irmã. — Sim. O que vocês tiveram de passar para chegarem até aqui, em nada se compara com o que está por vir. Existem forças malignas atuando e você Aurora é a chave para abrir ou não o portão da guerra. Como vocês bem sabem, antes de ser expulsa do Olimpo, Circê, deusa da noite, roubou vocês dois de seus verdadeiros pais e praguejou uma maldição. Ninguém sabe exatamente no que esta consistia, mas ela precisava matá-los antes de suas transições de Humano para Imortal. Até então não era intenção de Circê, Lunno fazer a passagem de mortal para imortal, mas de alguma forma Lunno conseguiu quebrar parte da maldição. Havia algo sobre ele que nem mesmo Circê pôde descobrir. Uma força interior que se sobrepôs a maldição. E agora vai tentar matar Aurora a qualquer custo. Só assim nada irá atrapalhar sua volta do exílio para ser a deusa regente do reino criador, Genesis. E assim destruirá nosso reino como consequência. Nerann padecerá se você morrer Aurora. — explicou. Mais uma vez as palavras da Velha Amur apareceram como um sino badalando em sua mente. “Não morra ainda”. Ela tinha razão. Morrer agora significaria o fim de Nerann e o domínio das trevas sobre Terdállia. — E porque eu represento uma ameaça para Circê? — Aurora perguntou ainda mais confusa. — Antes de o reino criador ser destruído pelo mesmo exército que atacou seu povo, Zeus sabia que o seu poder não seria mais tão influente ali, então como forma de proteção futura, ele selou o espírito de duas entidades diferentes em você e Lunno quando ainda eram pequenos. Até hoje não sabemos ao certo do que elas são capazes, porém Circê, Zeus e seus pais sabem, por consequência da imortalidade de Lunno, acreditamos que esta adormeceu dentro dele e muito raramente se manifestará. Já em você não sabemos ainda e juramos que Circê também não, por isso que ela a teme tanto continuando viva. A essa altura seus informantes já sabem que vocês 113
estão aqui e é questão de tempo até que ela venha ao encontro de vocês. A maldição será cumprida se você não for ao encontro dela primeiro. — Não se preocupe Aurora, não vou deixar nada de ruim te acontecer. — Lunno disse segurando firme as mãos de Aurora. — E meus pais? — Aurora adiou essa pergunta o máximo que suportou, mas era fato que não conseguiria por tanto tempo. — Você é filha de nossa deusa regente, Eos. E seu pai é o temido Ares, deus da guerra. Entretanto sinto ter de dizer que é proibido o contato entre seres imortais e seus filhos ainda mortais. Eu sinto muito. — Lutiel lamentou. Era tudo que Aurora sempre quisera. Conhecer os pais. E agora não podia. Só que algo começou a intrigar seus pensamentos. Já que Lunno é imortal agora, que impediria ele de ir ao encontro dos nossos pais? “Era melhor nem pensar nisso agora.” - raciocinou, sacudindo a cabeça. — Então eu posso conhecê-los? — a voz de Lunno soou empolgada. — Já ia chegar neste ponto Lunno. Não só pode como é obrigação você se apresentar a eles. Com certeza sentem muito a sua falta. E eles precisam ter conhecimento que Aurora também vive, no entanto como mortal. Ainda deitado na cama Sebastian observava a reação de Aurora. Aquele assunto mexia extremamente com ela. Lembrou-se de suas confissões à beira da cachoeira Camel e de como Aurora ficou naquele dia. Era exatamente assim que ela estava agora. Com o olhar distante e pronta para não escutar nem mais uma palavra. Talvez o mesmo abraço que lhe dera naquele dia a confortasse um pouco. Talvez. — A questão por hora não é essa. Quando se trata do reino criador a ambição até mesmo do nosso reino é grande, já que uma vez o controlando, toda Terdállia estará sobre seu domínio. Contudo antes fosse apenas Nerann a pensar assim. Há mais três reinos poderosos: Cordonne, Zorá e Gallia. Cordonne não é nossa aliada, mas também não é nossa inimiga, porém Zorá e Gallia são um risco inevitável de uma guerra futura. — Uma guerra? — Lunno disse — Sim. E segundo uma antiga lenda de nosso povo, um dia surgiria alguém que portaria uma pulseira com a runa Dagáz. Este traria paz nos 114
tempos sangrentos de guerra. Esta guerra é inevitável, por isso precisamos nos preparar. — Lutiel era dono de uma voz marcante e grossa. Seu poder de persuasão era devastador e Lunno acanhadamente começou a confiar em suas palavras. Quando a fala de Lutiel cessou, Aurora olhou para o braço direito e estava lá a pulseira da qual ele havia falado. Seu legado parecia ainda maior do que ela imaginava. Além de condenada à morte por outra deusa, também era emancipadora de uma guerra que nem ao menos tinha começado. Realmente aquilo já estava se tornando coisa demais para a mente dela. — Se uma guerra está próxima, preciso me preparar. — anunciou Sebastian tentando se levantar da cama. Sebastian era afoito quando o assunto era esse e parecia bem infantil, já que sabia que não poderia fazer esforço por um bom tempo. — Sebastian, sem esforços, meu caro. No tempo certo você poderá ajudar também. Paciência. — pediu a voz serena de Lutiel. — Onde estão nossas armas? — Aurora exigiu saber. — Receio que na guerra vindoura suas armas serão um tanto inúteis. Os habitantes do outro reino que vocês viram em Zorá são diferentes de nós. Alguns deles possuem magias e poderes que os derrubariam facilmente brandindo apenas uma espada. — Afinal, o que você é? — Maria resolveu falar. — Sou o que chamam de Mago da Quarta Casta de Nerann. Ao contrário das bruxas de Gallia, uso minha magia a favor do Reino. Porém não sou o único, há mais alguns poucos espalhados por Nerann. — Então por isso que conseguiu nos tirar daquela arena, aliás, obrigada. Não sei o que seria de nós se você não estivesse lá. — Maria estendeu a mão, cumprimentando Lutiel por tê-los salvo. — Só fiz meu dever senhorita. — disse. — Mas não sou o único a ter dons neste quarto. Filhos de deuses possuem habilidades, digamos que especiais. — sorriu. — Fala de mim e Aurora? — sugeriu obviamente Lunno. — Certamente. Habilidades que ambos possuem desde sempre, porém não foram desenvolvidas ainda. Como a audácia que Aurora tinha ao carregar mais sacas de especiarias do que qualquer homem forte em Neodin
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ou sua habilidade em ter presságios de eventos que estão para acontecer. Estou certo? — disse olhando para Aurora. — Acho que está. — Ou habilidades como a de Lunno que em momentos de perigo manipula emoções, principalmente de dor. Seus olhos mudam de cor ao passo que a manipulação se torna mais forte, porém seu poder é mais abrangente que isso e você, assim como Aurora, precisam saber como controlá-los ao invés deles controlarem vocês. — Como você sabe de tudo isso? — Aurora quis saber. — A vida de vocês é minha especialidade. — novamente sorriu. — Agora vamos à floresta das corujas treinar, não há tempo a perder. Se a notícia da chegada de vocês se espalharem, nesse momento, temo não haver tempo para treinos. — ressaltou. — Então quer dizer que os surtos de visão que eu tenho, irei poder controlar? — Aurora estava curiosa com tudo aquilo. — Bom, descobriremos com o tempo. — E quanto a Maria e Sebastian? — indagou ela. — Resolveremos isso assim que Sebastian estiver melhor. — Lutiel disse. — Maria cuide de seu irmão, voltaremos ao anoitecer. — Pode deixar. — ela disse. — Aurora, tome cuidado. — Sebastian pediu olhando seus olhos azuis-celestes. — Sei me cuidar. — retrucou, saindo pela porta junto com seu irmão e Lutiel. Mesmo que fosse um tanto difícil, Sebastian estava tentando compreender como tudo isso aconteceu na vida deles tão rápido e como isso estava afetando as suas emoções. Construiu um muro de proteção em torno da sua mente, mas Aurora sempre conseguia destruí-lo e ele não sabia ao menos como. Chegando à floresta ao redor do Reino, todos sentiram um ar ligeiramente puro. As árvores eram de estatura médias, não muito altas e embelezavam ainda mais o lugar. Lembraram da Floresta Izo, onde brincavam quando eram apenas crianças. Das aventuras que inventavam, dos choros quando se machucavam. A infância dos irmãos Bellator foi feliz e apenas agora eles percebiam isso. 116
— Não terão dificuldades em se adaptarem à rotina de treinos, não irá diferir tanto da que tinham no acampamento dondariano. Chega de rodeios e vamos ao que interessa. Aurora vê aquela pedra enorme à direita daquela árvore? Quero que a carregue. — mandou. — Mas, Lutiel, ela deve pesar toneladas. — retrucou. — Confie em mim. — Tudo bem. — disse partindo em direção à pedra gigante. Na sua primeira tentativa falhou. Seguida ainda por falhas na segunda e terceira tentativas. Para ela nunca conseguiria fazer aquilo. — Canalize sua raiva nas mãos, ela será o motor de sua força. Pense em Circê. Até no gigante que golpeou Sebastian e você pela primeira vez se sentiu impotente. Não importa, apenas controle sua raiva e jogue-a para as mãos. Aurora só conseguia odiar Circê pelo que ela havia feito com todos, inclusive ela. Não soube exatamente controlar a raiva que se espalhou por todo seu corpo. “Canalize sua raiva nas mãos” Foi o que Lutiel disse. Mas só de pensar que ela e seu irmão poderiam ter o carinho de um pai e uma mãe, e isso lhes foi arrancado cruelmente, só fez o ódio corroer todo seu corpo. Não estava apenas nas mãos, ela sabia disso e não queria controlar. Precisava descontar toda aquela fúria em alguma coisa, ou então explodiria. Seus punhos se fecharam e com um soco fulminante, Aurora rachou a gigantesca pedra ao meio. Nem mesmo Lutiel acreditou no que viu. — Nossa, seu poder de destruição é mais incrível que do que eu imaginava. — Lutiel disse ainda surpreso com tamanha força. — Incrível irmãzinha. — salientou o grito de Lunno. — Cumprida com êxito além do normal a tarefa de Aurora, resta saber como você se sairá, Lunno Bellator. — o desafiou. — Tente manipular minhas emoções rapaz. Apenas pense que sou um inimigo e estou tentando ferir sua irmã. Pronto? — Sim. Lutiel surpreendentemente sacou um punhal de seu casaco. — Me desculpe Aurora. — disse. E num rápido movimento fez um corte superficial no braço de Aurora. O suficiente para produzir dor. — Aaargh. — ela gritou. — Seu desgraçado! — anunciou furioso Lunno. 117
Os olhos dele se fecharam e quando rapidamente abriram estavam negros, totalmente negros. Ele ficou no mesmo lugar, mas Lutiel começara a sentir uma dor insuportável que o fez cair no chão. Era notório, Lunno não controlava mais. O rosto de Lutiel estava começando a ficar sem vida e as veias já estavam à amostra, enquanto seu nariz sangrava, Aurora percebeu que aquilo não acabaria bem. — Lunno, pare! Você vai matá-lo. — pediu, mas ele não a escutava. Precisava tomar alguma atitude ou Lutiel morreria. Foi então que pegou o punhal que estava caído no chão e feriu Lunno no mesmo braço em que ela havia recebido o corte. Só assim os olhos dele voltaram a ser azuis e subitamente desmaiou. Mais a frente Lutiel também havia desmaiado. “Lunno pode se tornar uma ameaça se não souber controlar seus poderes.” — foi a única coisa que passou pela cabeça de Aurora naquele estranho episódio na floresta.
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Capítulo 12
Do Amor ao Caos epois de um longo momento de hesitação, Aurora apanhou a mão de Lunno em sinal de afeto. Apesar de situações como essas, ela sabia que precisava estar junto dele. Não seria honroso de sua parte sair por aí acusando Lunno de tentar matar Lutiel. Ela tinha certeza que não era a intenção dele ou pelo menos achava que não. Logo depois que acordou, Lunno se distanciou de Aurora num canto da floresta perto de uma árvore e lá passou um bom tempo pensando. Parte dele queria controlar o nível de dor sobre Lutiel. Mas a outra queria um festival de sangue. E somente ele sabia disso. Sentiu um estranho prazer em estar destruindo aquele mago infeliz lentamente, porém, ele não tinha a menor ideia do porquê. O lado que prevaleceu só pensava que Lutiel feriu Aurora e ele não queria aceitar. Quando a raiva passou a controlá-lo e seus olhos ficaram negros rubros, ele saiu de si. Não se lembrou de mais nada depois de ouvir sua irmã gritando e logo em seguida ver que seu braço sangrava. Naquele momento seu único desejo era ver Lutiel morrendo, mas ao mesmo tempo questionava-se mais uma vez sobre seu caráter. “Você é 119
mais forte que isso. Controle-se.” - Lunno dizia a si mesmo. “Proteja sua irmã, aconteça o que acontecer.” - lembrou-se das palavras de Velha Amur. Na floresta o sol começava a se pôr e a claridade ia se dissipando pouco a pouco. Aurora tentava reanimar Lutiel de todas as formas, porém sem sucesso algum. Seu rosto continuava pálido, parecia que não fluía mais sangue dentro dele. Aurora não conseguiu disfarçar seu olhar de reprovação para com tal atitude de Lunno. “O poder dele não é como o meu. Não posso julgá-lo por tentar.” - ouviu seu pensamento. Depois de alguns instantes de total silêncio na floresta, Lutiel finalmente deu sinais de que estava vivo afinal. — Graças aos deuses, Lutiel. Como você está? — disse Aurora, aliviada. — Estou um pouco tonto ainda, mas acho que logo passa. Onde seu irmão está? — perguntou com uma nota de preocupação em sua voz. — Ali, sentado há tempos. — disse apontando para Lunno. Ainda não tinha certeza de como Lutiel estava, mas à primeira vista parecia estar bem se considerar que sua pele novamente ficou corada. — Irei lá com ele. Já era noite e a floresta onde estavam era iluminada por uma lua como Aurora jamais vira antes. Uma lua mais viva e maior. Os ventos eram calmos e suaves, as árvores estavam iluminadas também, com poucas penumbras. As folhas desprendiam-se da copa em uma fileira dignamente magnifica. O solo estava puramente atraente para deitar e contemplar as estrelas. Na cabeça de Lunno, o horror que ele causou a Lutiel não se comparava ao resto do poder que ele sabia que tinha. “Lutiel foi salvo por Aurora, pois pelo contrário...” - sussurrou fortemente o pensamento dele, que foi interrompido com a chegada de surpresa de Lutiel. — Lunno. Sei que deve estar se sentindo culpado pelo que fez comigo, mas a culpa foi minha por tê-lo provocado daquela forma. Fui inconsequente. Havia outras maneiras de incitar seus poderes. Me desculpe. — disse Lutiel calmamente. Ao contrário do que ele achava que sabia, Lunno não se sentia culpado. Se ele sabia provocar tão bem, Lunno daria o troco duas vezes
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mais. Mesmo que ele não compreendesse esta bipolaridade de emoções, ele começara a gostar de se sentir poderoso. Mais poderoso que um mago. — Eu que lhe devo minhas desculpas Lutiel, não sei onde estava com a cabeça. — disse, abraçando-o como pedido de desculpas. Estava com um sorriso que se estendia pelos extremos de seu rosto. — Vamos voltar para o castelo. Seus amigos e nosso Rei esperam por vocês. — anunciou. — E quanto a esse incidente, não comentem nada com ninguém. As más línguas daqui adoram espalhar boatos sem fundamentos concretos. — disse, com Aurora já ao seu lado. — Sem problemas. — disse ela. A volta para o castelo foi tomada pelo silêncio. Lunno ainda tentava entender a fonte de seu poder. “A raiva não é a única emoção em mim e Lutiel disse que meu poder é abrangente.” - disse a si mesmo. Ao passo que pensava mais nisso, Lunno compreendia que não era apenas um ser imortal. Sua ousadia o faria grande ainda. A rotina não só dos irmãos Bellator, como dos Addae, mudaria bastante em Nerann, conhecida como a terra iluminada. Ali era o lar deles agora e fosse como fosse, fora dos enormes portões e depois dos rios, eles não sabiam exatamente o que lhes aguardavam. Seria preciso viver dia seguido de dia para descobrir. *** Uma temporada de seis longos meses se passou. Nerann se tornou o lar definitivo do grupo. Eles já haviam pegado o jeito de “sobreviver” ali. Lutiel e o Rei Elin tornavam as coisas mais fáceis, porém, a bondade extrema incomodava Lunno. Houve incontáveis vezes em que se sentiu uma espécie de cobaia para algum plano que ele desconhecia por enquanto. A jornada de seis meses ali foi árdua. Os dias de treinamento com Lutiel então nem se fala. Entretanto Aurora já conseguia canalizar sua força em um único ponto de seu corpo, mesmo que já não restassem mais pedras gigantes espalhadas pela floresta. Seus surtos de visão haviam parado e ela não sabia quando teria uma visão novamente. Já Lunno observou e filtrou os conselhos de Lutiel para tentar controlar seus poderes, uma vez ou duas
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ele matava pequenos animais por falhas no controle, pelo menos era o que ele dizia. Os irmão Addae também treinavam, mas em lugares diferentes. Ali havia apenas um punhado de habitantes que sabiam manusear um arco e flecha, mas nenhum era tão astuto e sagaz quanto Sebastian. Em um dos treinamentos, Sebastian apanhou uma flecha e colocou-a na corda do arco. Houve um disparo. E mais uma vez a flecha acertava perfeitamente o ponto auge do alvo. Disparos certeiros eram a especialidade de Sebastian. Ele de longe era um aprendiz ali, pelo contrário, os outros o viam como um mestre que podia ensinar muito do que havia aprendido em Dondarium. Certa vez Sebastian, tirando da aljava sua flecha negra, calçou-a no arco e retesou a corda, mirando o centro de uma árvore há léguas de distância, lugar que deveria ser atingido pela flecha de madeira. Ele mantinha sempre seu corpo ereto apesar do balanço do vento, apesar dos olhares duvidosos que enchiam sua visão. Enquanto mirava seu alvo, o arco revestido por uma corda retesada e precisamente forte parecia mais uma vela que se enchia sob o impulso das lufadas de vento, a flecha queria balançar para a esquerda e para a direita. As condições eram na maioria das vezes adversas as que ele pretendia, justamente quando estava sendo observado e ele não precisava disparar naquelas condições, mas queria. Ele somente precisava acertar seu alvo, não importava que para isso tivesse de chegar até o ponto mais alto de Nerann, a terra iluminada. Maria vagava pelos pátios de Nerann. Ela carregava um enorme martelo de ferro nas costas, uma arma que aparentava pesar toneladas. Mas isso nunca importou a ela, já que desde sua infância já amassava o tronco das árvores com martelos menores que este. Seu treinamento era solitário, a não ser pela companhia do próprio martelo de ferro que ultimamente era seu único confidente. Em Nerann, apenas ela tinha uma arma daquele tipo. Nenhum outro homem era capaz de ter tanta audácia de manusear aquela arma como Maria tinha. Porém, não era algo que ela se orgulhasse demasiadamente, já que sua solidão ao lado do mesmo foi rotineira nos últimos meses. Durante esse tempo em Nerann, houve uma trégua entre Lunno e Sebastian, ambos amadureceram com tudo que acontecia e não viam mais motivos para entrarem em conflitos a cada segundo. Aurora estava bastante 122
aliviada pela decisão gloriosa de ambos, pois odiava ter de presenciar as brigas infantis deles. Em Nerann, o dia era de festa pelo aniversário da Princesa Sophitia e do seu irmão gêmeo, o Príncipe Alphas. Era seu décimo sexto aniversário e já era uma moça quase pronta para o casamento, assim como Alphas, que estava quase apto a assumir o trono do Reino. Sempre em seus aniversários o povo de Nerann fazia uma grande festa com bebidas, comidas variadas e muita dança. Era um povo sem tantas preocupações aparente e principalmente alegre. Estava quase na hora do pronunciamento do Rei Elin aos seus filhos como sempre fazia. — Peço a atenção de todos os presentes neste salão. — pediu. — Há dezesseis anos, quando a rainha Ágatha vivia, ela dava à luz a um casal de irmãos que hoje são fortes e saudáveis e com certeza meu maior orgulho como Rei. Minha esposa não resistiu à dor do parto, como vocês bem sabem, mas me deixou a missão de educar Alphas e Sophitia. Tarefa que nesse tempo, creio que cumpri com excelência. — sua expressão era de alegria e emoção ao mesmo tempo. Continuou o rei: — Os anos logo se passaram. Foram lentos, mas passaram. E arrisco dizer que meus filhos hoje, atingem um estágio importante em seu amadurecimento e estou profundamente orgulhoso, por isso resolvi dar a eles presentes especiais este ano. — disse, cochichando algo para um dos guardas que estava ao seu lado. — Para você meu filho Alphas, eu dou a espada Órgus, que era de meu avô, depois passou para meu pai, que em seguida me pertenceu e seguindo a tradição, passo-a a você, meu filho. — declarou estendendo a espada para Alphas. Os olhos azul mar dele refletiam o brilho que a espada Órgus tinha. — Muito obrigado Pai. Não irei desonrar a tradição e cuidarei dela assim como meus ancestrais cuidaram. — Alphas, por fim disse. A multidão aplaudiu o ato do Rei para com seu filho. Enquanto Lunno sentia náuseas de tudo aquilo, afinal, essas coisas de tradição e mimos reais não fazia o gênero dele. Lunno decidiu sair pela floresta para caçar. Com seus poderes quase controlados, não hesitou em usar espada. Fazia um certo tempo que ele não a usava como antes. Quando se aproximava da entrada da floresta ele encontrou a sua irmã. 123
— Onde está indo? — Aurora perguntou. Ela vestia uma roupa simples. Apenas uma blusa acinzentada, calças de couro marrom e botas negras. — Caçar. Ver esse festival de presentes me deixa entusiasmado a matar algumas presas. — respondeu, arrumando seu cinto e a bolsa em que traria suas pequenas presas. — Tudo bem, mas não se meta em nenhuma confusão. — advertiu dando um tapinha nas costas do irmão e seguindo para o salão, onde Maria e Sebastian estavam esperando por ela. Ainda dentro do enorme salão de festas de Nerann, o festival de presentes continuou. Um dos guardas trazia em seus braços um filhote de Elcatraz, uma criatura gerada em Terdállia que possuía corpo de lobo, asas e garras dianteiras de águia. Quando adulto se tornava um animal gigante e magnífico, comparado a Pegasus. — Sua mãe adorava observar o voo dos Elcatrazes. Dizia que era a forma física da nossa deusa regente do amanhecer, Eos, pois todas as manhãs os via brincando de voar no céu. Este filhote será seu guia quando não puder cuidar de você. Será sua luz quando não puder lhe iluminar. Seu guardião. — retirou o filhote dos braços do guarda e estendeu para que Sophitia o tocasse pela primeira vez. — Ele é lindo papai, obrigada. — Sophitia agradeceu com um enorme sorriso no rosto que era visto por todos no salão. — Porque não dá um nome a ele? — Rei Elin sugeriu. — Em memória de minha mãe, ele se chamará Alvorada, o que iluminará meus dias. — disse, erguendo Alvorada para que todos vissem aquela enorme bola de pelos que cresceria junto com ela. Mais uma vez a multidão aplaudiu, só que dessa vez ainda mais forte. A memória da rainha Ágatha ainda estava fortemente presente em todo reino, mesmo depois de tanto tempo. Era um exemplo de mulher forte e determinada a dar sua vida por Nerann se preciso fosse. No fundo do salão estavam sentados, Aurora, Sebastian e Maria, contemplando a linda festa. No longo tempo de convivência, Maria e Aurora se tornaram amigas. Maria já não via Aurora como causadora de tudo que havia acontecido com seus pais há seis meses. E Aurora se divertia bastante com a presença de Maria. Já com Sebastian era sempre tudo mais 124
complicado, vez ou outra Aurora se sentia culpada pela enorme cicatriz que permaneceu em seu peitoral, porém antes fosse apenas isso. Ela sabia e sentia ele diferente, só não queria admitir para si mesma. Fazia algum tempo que eles só se viam depois dos treinamentos e apenas de vista. De forma quase inesperada Lutiel se junto a eles na mesa com seu deslumbrante e rotineiro sorriso marcante. — Quase não os acho em meio a toda essa gente. — respirou fundo. — Nerann fica realmente agitada com festas. — deu uma risada. — E como fica. — Maria completou sorrindo. Ela era esperta, sabia que precisava arrumar qualquer desculpa para deixar Aurora e Sebastian sozinhos, só assim eles se resolveriam. — Estou com um pouco de dor de barriga. Acho que de tanto comer. Lutiel me leve até sua sala para me dar aquele remédio? — disse, piscando de canto para Lutiel perceber seu plano engenhoso. — Eu vou com você. — Sebastian disse já levantando-se. — Não precisa irmão, não é nada grave. Volto logo. A saída de Lutiel e Maria foi triunfal pelo portão do salão. Enquanto Sebastian trocava olhares distantes com Aurora, mexendo no prato com a comida que mal havia tocado. Na realidade ele estava sentindo como se fosse finalmente a hora de esclarecer seus sentimentos e dúvidas por Aurora. — Por que Lunno não apareceu? — tentou iniciar uma conversa. — Foi caçar. — foi rápida e direta. — Ah sim. Bom, eu preciso conversar com você. — as palavras por impulso saíram e Sebastian agradeceu aos deuses por isso. — Pode falar. — Não aqui. Vamos dar uma volta às margens do rio? — Me parece uma boa ideia. Vamos. — deu de ombros. Aurora não fazia ideia de qual era o assunto, mas queria saber. Os dois saíram pelo portão principal do salão lotado e foram em direção ao rio que ficava de frente para o castelo. Os olhos de Aurora faiscavam. Seus compridos cabelos vermelhos, caídos nas costas, brilhavam como o cetro de Lutiel. E ao passo que andava, Sebastian a contemplava ainda mais. O cenário a fez lembrar-se das suas primeiras conversas com Sebastian. A raiva que se transformou em carinho. O repúdio que se tornou admiração pela coragem que ele possuía. As gotas da cascata que fluía do 125
centro do castelo respingavam novamente no esbranquiçado rosto de Aurora, assim como fazia a cachoeira Camel na floresta Izo. Por um momento se transportou para lá e quis ficar, até que a mão de Sebastian tentou chamar sua atenção. — Ei, você está ai? — balançou sua mão para cima e para baixo esperando a atenção de Aurora. — Estou sim. É que me veio à mente como você me irritava antigamente, como naquela conversa na Camel. — sorriu. Aurora havia criado mais emoções no tempo que passara em Nerann. Emoções e expressões como sorrir. — E então? — as gotas refrescavam ainda mais seu rosto. A lua estava deslumbrante no céu e fazia um pouco de frio fazendo os pelos dos dois, vez ou outra se eriçarem. — Me desculpe por te tirar da festa. Só não achei prudente te dizer isso lá. — Me dizer o quê? Sebastian tomou a coragem que lhe faltava há tempos. — Desde a primeira vez que te vi, soube que havia algo diferente em você e não conseguia descobrir o que exatamente era, aliás, até agora não sei. — disse. Houve uma pausa e Sebastian soltou uma respiração longa. Seu coração estava contraditório, batia forte outrora pensava que não escutava mais o som dele. Aurora apenas esperou ele começar a falar novamente. — Olha, às vezes você pega um jangada, se aventura no mar aberto, o vento sopra do sul e as velas se inflam. E... o barco ganha vida abaixo de você. E parece ser muito mais do que apenas o vento, a água e o barco. Parece ter algo a mais acontecendo. Algo que te empurra e ao mesmo tempo o deixa inerte. — sorriu de canto. — Isso faz algum sentido? — Faz todo sentido. — respondeu, respirando fundo. — É só que... está falando isso para a garota errada, Sebastian. — abaixou por alguns instantes sua cabeça. — Parece imbecil se considerar que nunca cogitei a ideia de fazer nada desse tipo. Mas eu sinto essa coisa. Só acontece uma ou duas vezes na vida, se tiver sorte. — ele falou, enquanto Aurora aguardava sua vez de falar. A expressão de surpresa dela o fez querer hesitar várias vezes, porém quis continuar independente do que acontecesse em seguida. — Diga-me 126
que estou sozinho nisso. Diga-me que estou sozinho e não voltarei a te incomodar. — Parecia que a qualquer momento seus olhos se encheriam de lágrimas. As sobrancelhas de Aurora franziram, indicando que queria corresponder, mas não podia. Ainda era muito para ela. — E-eu sinto muito, Sebastian. — balançou negativamente a cabeça com um ar de tristeza. Sebastian nunca soube o que esperar quando o assunto era ela. Não se preparou nem para uma aceitação e muito menos para uma negação. Sentiu uma dor aparentemente maior do que sofrera em seu peito. Agora doía o dobro. Naquela hora só queria encontrar algum mercador com uma placa dizendo: “Vendo cola para corações quebrados”. — Não, está... tudo bem. Eu só pensei... — tentou continuar. — Me deixa te levar de volta à festa. — Não precisa fazer isso. — ela interrompeu segurando o braço dele. — Sebastian... — Não fale. Não ache que tenha que dizer algo. — afirmou, gesticulando a cabeça em desaprovação. — Não foi minha intenção forçar você a sentir o mesmo. Eu não deveria expor você a isso Aurie... digo, posso chamá-la assim? — timidamente propôs. — É claro. — Eu sinto muito. — ele virou-se para voltar ao seu quarto. O silêncio de Aurie seria o único argumento irrebatível naquela hora. “Como a vida, o sentimento pode ser algo fatalmente confuso. E com certeza ambos seriam muito mais fáceis se a nossa mente conseguisse entender qual trilha nosso coração deseja seguir. Mas ele tem seus motivos. Motivos que não sei ao certo.” - seu pensamento ardeu como fogo em sua mente, enquanto as gotas escorriam pelo rosto, misturando-se a uma lágrima que teimou em cair. Um grito estridente se sobrepôs ao pacato som de água caindo. — SEBASTIAN! — Maria gritou, correndo desesperada. Rapidamente a lágrima esvaiu-se do rosto de Aurie e um início de pânico se espalhou com o grito enlouquecido de Maria. — Calma, Maria. — disse seu irmão a abraçando fortemente. — Conte o que aconteceu para ficar assim. — Levaram o Lutiel. — choramingou alto. 127
— Como assim levaram ele? — Aurie indagou assustada. — Quando estávamos indo em direção à sala dele, vimos um clarão enorme na parte escura da floresta ao lado, foi quando um homem de capuz e manto cinza apareceu e encarou a gente, até que Lutiel de repente caiu no chão e sem forças me mandou fugir para buscar ajuda, mas apenas me escondi do homem encapuzado. Estava com medo. E por detrás de uma árvore vi o homem encapuzado arrastando Lutiel para dentro da floresta escura. — disse ainda choramingando. — Precisamos fazer alguma coisa. — sua voz saia em meio aos soluços do choro. — Vamos voltar lá, talvez esse homem tenha deixado alguma pista que nos leve para onde levaram Lutiel. — disse Aurie, arrumando sua roupa e seus fios vermelhos. — Vamos. Maria nos guie até onde você viu Lutiel pela última vez. — Sebastian pediu. — Certo. Foram correndo até o local indicado por Maria. Aquela parte da floresta era realmente muito escura, mas a luz da lua ajudou a acharem o lugar finalmente. — Fiquei atrás desta árvore, enquanto o homem arrastava Lutiel pelos pés. — apontou para a tal árvore. Chegando mais perto Aurie notou que havia um papel grudado junto ao tronco marrom-escuro. Ela, prontamente pegou o tal papel e percebeu que se tratava de um bilhete, provavelmente do homem que sequestrou Lutiel. Dizia: “Lutiel Albus está sob nosso domínio. Venha sozinha até Gallia. Se vier acompanhada saberemos e ele morrerá.” Sim, o bilhete tinha como destinatário único, Aurie. Se ela se recusasse a ir, Lutiel morreria, mas não temia ter de ir. Se arriscaria, afinal querendo ou não na sua história envolveu mais uma pessoa querida e este estava pagando por ela. Sem contar que alguém queria algo dela e ela queria saber o que era. “Caos, por sua própria natureza não há como ser detido. Quando se ele mostra, toda a ordem e desejo tornam-se fúteis. O resultado dele, jamais pode ser previsto. Existe uma única certeza que ele traz: é a devastação que deixa em seu pequeno rastro na forma de um bilhete anônimo.” - furiosamente pensou, rasgando o papel em mil pedaços.
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Capítulo 13
Princípios pesar do silêncio, o som da acanhada canção de pássaros ecoou despercebido pelas trilhas da floresta escura. Já era madrugada e todos estavam ali, no meio de onde tudo aconteceu. Anestesiados e enfurecidos ao mesmo tempo. Todos, menos um. Após ler seu nome naquele bilhete, Aurie ficou pensativa, mas Sebastian conseguia ver que em seus olhos azulados, um brado de fúria retumbava. A ira pelo rapto de Lutiel. Gallia era uma parte desconhecida para eles até então, entretanto Sebastian não tinha dúvidas de que Aurie não seria covarde de deixá-lo ali. — O que pretende fazer? — Sebastian arriscou-se a perguntar. — Vou até lá. — respondeu, não escondendo a raiva que estava sentindo. Os pedaços do papel rasgado ainda estavam em sua mão e ela olhava firmemente para eles sem ostentar outra reação além de ira. — Eu vou com você. — afirmou com um brado de comando. — O bilhete foi bem claro, Sebastian. Irei sozinha. 129
— Aurora, você não pode ir sozinha a um lugar que ao menos conhece. É perigoso. — a voz de Maria propagou. Ela não estava mais em prantos, havia se contido vendo a real gravidade da situação. — Não importa Maria, eu vou. Não posso deixar Lutiel sozinho. Não agora, depois de tudo que ele fez por mim. — disse amassando as tiras de papel que em seguida jogou no chão. Foi uma emoção involuntária, mas Sebastian sentiu ciúmes da forma como Aurie falou de Lutiel naquela hora. Tão preocupada e determinada a ir salvá-lo, assim como fazia com ele próprio. E depois do que Aurie disse a ele, ficou confuso sobre seus próprios sentimentos. “Será que...” - tentou continuar a pensar, porém, rapidamente se desfez desse pensamento e focou sua atenção para o que Aurie iria fazer. Ou tentar fazer. — Eu sei que não vai adiantar tentar convencer você do contrário, mas você precisa ao menos conhecer com que reino está lidando. Não acha? — disse, segurando seu braço suavemente. — Preciso tomar essa decisão! — pressionou Aurie. — Agora! — Certo, aqui está uma decisão. Falaremos com o rei e então resolvemos o que iremos fazer. — disse Maria. — Se agir por impulso vai acabar morta, não entende? — a essa altura o ciúme se misturou com a preocupação e nem mesmo Sebastian entendia o que estava sentindo. — A coragem sem estratégia nos torna burros. — Por fim, disse. — Ele está certo, Aurora. É melhor dizermos antes tudo que aconteceu para o rei. — Maria apressou-se em dizer. — Vocês acham mesmo que vou ficar de braços cruzados sem fazer nada? Lutiel precisa de mim e não vão ser vocês que irão me impedir de ir. — disse Aurie arqueando as sobrancelhas. — Tá certo, faça como quiser então. Você já é bem grandinha e sabe se virar. Vá atrás de Lutiel sozinha. — Sebastian deu de ombros e voltou para onde nem deveria ter saído aquela noite, seu quarto. O sangue Addae pulsava em seu corpo. Ele estava com raiva pelo descaso que Aurie estava mostrando com sua preocupação depois de tudo que ele havia lhe dito. Sebastian queria que o “nunca senti isso por ninguém” de Aurie fosse para ele, mas pelo que ele havia entendido era melhor entregar logo os pontos e esquecer. Mesmo se estivesse disposto, 130
não conseguiria fazer isso Aurie estava sendo seu alicerce ali, só ela não enxergava isso. O pensamento de que um dia ele seria “nós” com Aurie, fervia em sua mente. E ele continuaria, afinal, a “chuva” não cai apenas sobre ele. Uma hora ela o enxergaria. — Aurora, não adianta você ficar nesse estado. Olha, pensa comigo. Se falarmos com o rei Elin tudo se torna mais fácil. Ele vai dizer a você onde fica Gallia, o que você pode ou não encontrar lá. — Maria ia acalmando Aurora aos poucos com suas palavras. — Eu sei que Lutiel corre perigo, eu também temo pela vida dele, mas se ficarmos desesperadas fazendo o que vier à cabeça a situação só vai piorar. — disse estendendo seus braços a fim de conseguir um abraço de Aurora. — Vem aqui. Aurora sentiu-se renovada com aquele abraço. Maria estava disposta a ajudar diferente da reação do irmão. Não entendeu o que ele pretendia agindo daquela forma, pois todos estavam preocupados com Lutiel, inclusive ela. — Obrigada. — agradeceu em meio a um sorriso sincero. — Mas não vou ficar sossegada enquanto não falar com o rei logo. Eu preciso partir o quanto antes. — disse demonstrando coragem em sua fala. O coração de Aurie estava costurado por aflição. Lutiel se tornou mais uma vítima indireta sua e não pôde deixar de se acusar por isso. O bilhete foi claro, era Aurie quem deveria ir. Ninguém além dela. — Ele deve estar ocupado na festa dos filhos essa hora. Aurora, por favor, vamos esperar até que amanheça, fica mais fácil para todos. — serenamente Maria propôs. — Todos, menos Lutiel. — abaixou sua cabeça. Levantando-a em seguida. — Você está certa. Vou seguir seu conselho e esperar até que amanheça. Mas ouça o que eu digo, esse é o último prazo. — alertou Aurora. Não se importou com Sebastian desde que saiu da conversa tensa que estavam tendo. Porém, questionou-se por que desistiu tão rápido de tentar convencê-la a ir junto. Ele era inteligente, enfim. Sabia que nada iria tirar a ideia de ir até Gallia resgatar Lutiel. Mas por que aquela reação? Deixá-la falando praticamente sozinha não era do gênero Addae. No momento em que se viu na cena, lembrou-se que queria ter ido atrás dele para perguntar o que havia acontecido para tê-lo deixado daquele jeito, 131
porém, as preocupações acerta de seu mago eram maiores e preferiu deixar Sebastian com seus pensamentos, fossem quais fossem. A atenção de seu pensamento voltou para o mago da quarta casa. Ele era esperto, saberia se virar em qualquer lugar, mas não por muito tempo. Em vista disso Aurora precisava correr contra o tempo e de quebra descobrir o que queriam justamente com ela. *** A manhã logo chegou e como era de se esperar Aurora não conseguiu dormir nem por um instante. Estava preocupada, não sabia o que lhe aguardava naquele lugar, não sabiam quem eram seus habitantes e muito menos sua índole. E Lutiel, seu mago protetor, corria perigo por sua causa. Aurora já esperava Maria do lado de fora da torre real onde os primeiros raios de sol já incidiam sobre as janelas opacas. O que ela não esperava era que no lugar de Maria, quem apareceria era Sebastian. E isso a deixou bastante intrigada. — O que está fazendo aqui? Achei que havia me dito para fazer o que quiser. E é isso que estou fazendo agora. — olhou para ele como se fosse engoli-lo com a fala. — Maria me mandou. Estamos esperando o que para entrar? — perguntou olhando para cima, onde se podia ver pássaros fazendo ninhos nas janelas da torre. — Seremos anunciados devidamente ao rei. — Aurie disse. — Você pode dizer ao rei Elin que estamos aqui? — pediu a um dos guardas que vigiava a entrada da torre. — Espere um instante. — ele respondeu. Aqueles minutos de espera seriam torturantes e Aurie sabia disso. Não iria falar com Sebastian, mesmo que lá no fundo quisesse. Mesmo que seu coração quisesse. Ao ver de Aurie não havia motivo para ele ficar tão nervoso com ela ao ponto de deixá-la falando praticamente sozinha. Aurie questionou-se se ele não estava triste ainda pela resposta direta que ela lhe dera. “Juro que não queria que fosse assim. Mas a situação é essa.” - raciocinou. Os olhos de Sebastian estavam mais vivos naquele início de manhã. Pareciam translúcidos de tão claros que estavam. Ele trajava um colete de 132
couro cor de ferrugem e por debaixo uma malha de algodão de comprimento um pouco largo e uma tonalidade esverdeada. As calças eram aparentemente confortáveis e tinha uma textura menor, mas semelhante ao colete. Usava botas negras. E como não podia deixar de faltar, sua aljava com suas pequenas e afiadas flechas-filhas se sobrepunha em suas costas. O silêncio que se formou entre os dois se tornou impaciente à medida que o tempo passava. Os passos sem pressa do guarda finalmente se fizeram presentes. — O rei Elin espera por vocês na sala primordial. Eu os acompanho até lá. — disse o guarda. As escadas até a sala primordial, onde os conselheiros do rei se reuniam, pareciam intermináveis e ao passo que subiam já estavam cansados e perguntando-se quando aqueles degraus iriam acabar. Quando finalmente chegaram àquela sala grande, o rei Elin os aguardava com aquele inconfundível sorriso que estava estampado em seu rosto. Notavelmente havia acabado de acordar e seu corpo certamente ainda estava exausto da festa na noite passada. Ele era dono de uma beleza digna de um jovem príncipe. Adornava um sol de ouro bordado na camisa de algodão cor-demel oleado e por cima, um manto dos ombros verdoso escuro com renda de ouro e os botões em forma de sol eram de um metal amarelo mais escuro. Foi a primeira roupa que achou, visto que era certo que uma visita de Aurora àquela hora da manhã não seria algo superficial. — Façam o favor de entrar, meus caros. — convocou com tamanha gentileza o rei. Sentando-se logo em seguida em seu assento vermelho. Aurie e Sebastian entraram e com eles também entrou a incerteza do que o rei acharia de tudo que havia acontecido. Aurie ainda estava nervosa e não conseguia esconder claramente isso. — Aconteceu alguma coisa para estarem a esta hora da manhã aqui? — Elin, perguntou num tom de apreensão. — Na verdade aconteceu. Lutiel foi raptado na noite passada. Majestade, precisamos fazer alguma coisa. — Aurie falou. — Me conte como exatamente isso aconteceu. — pediu Elin. — Minha irmã estava indo junto com ele ao seu aposento pegar alguma coisa e então no meio do caminho, na floresta ao lado, uma pessoa
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de capuz apareceu em meio a um clarão e fez com que Lutiel caísse instantaneamente no chão e o levou. — contou Sebastian ao rei. — Mas havia uma pista. Um bilhete foi deixado com destinatário direto a mim. — declarou Aurie. — E o bilhete dizia que alguém estava com Lutiel e essa mesma pessoa quer que eu vá até Gallia ou ele morre. — explicou por fim. — Gallia? Não é possível. Achei que havíamos tido uma trégua há anos. — A expressão do rei era de muita surpresa. Algo o deixou ainda mais amedrontado do que apenas o rapto de Lutiel. — Minha jovem, você não pode ir sozinha até lá de jeito algum, morreria antes de adentrar aquela fortaleza. Gallia é um reino muito distante daqui, fica no norte de Terdállia. — Ele parecia não acreditar em tudo que ouviu de Aurie e Sebastian. — Preciso chamar os magos das outras casas. Existia em Nerann uma casta, chamada Mantra a qual quatro magos poderosos pertenciam. Cada um com seu devido poder, denominado “casa”. Eram magos que detinham o poder sobre muitas coisas. Coisas que até Elin desconhecia. Entretanto, no tempo em que Aurie e os outros passaram em Nerann, só haviam conhecido Lutiel dentre todos os outros. Ainda restavam três. E talvez eles fossem a salvação do mago da quarta casa, Lutiel. — Quem são eles? — Aurie quis imediatamente saber. — São os mestres de Lutiel. Os guardiões que protegem Nerann aqui embaixo. Lutiel Albus estava prestes a ascender de grau e se tornar um mago adulto. Por hora ele é apenas um mago protetor. O seu mago protetor. — As mãos do rei agitavam-se velozmente sobre a mesa. Aquelas palavras não soaram bem aos ouvidos de Sebastian, que mais uma vez sentiu uma extrema insegurança com tudo aquilo. Mas sabia que não adiantaria mais um surto como o que teve na noite passada, agora era o momento de sentar e criar uma estratégia para tirar Lutiel do lugar onde estivesse. — E por que precisava chamá-los? — Aurie, perguntou confusa. — A mensagem foi clara, se eu não for sozinha irão mata-lo. — Quando se trata de um dos seus, quem resolve isso são os outros magos. Eu estou de mãos atadas. — disse. — Sor Okar, chame os magos. — gritou ao comandante Okar que estava de vigia na porta. 134
— Sim, vossa Majestade. — respondeu em um tom grave na fala. Aurie ficou ali, sentada. Sem poder fazer muita coisa a não ser esperar por respostas. Vestia uma jaqueta negra com duas fivelas de metal prendendo na altura do peitoral. Por baixo trajava uma blusa de algodão cinza, e usava mitenes, luvas que cobriam apenas metade de sua mão, deixando os dedos livres. Em suas costas carregava a bainha de sua espada que há algum tempo não utilizava. De repente, lembrou-se que não via o irmão desde que o encontrou quando estava indo caçar e que ele não havia voltado ainda. Curioso, pois Lunno não costumava passar a noite caçando, por mais que adorasse isso. Mas, não preocupou-se tanto em continuar esse pensamento, já que à medida que o tempo passava Lutiel corria ainda mais perigo naquele lugar. Já era duvidosa tanta preocupação com Lutiel. E até ela mesma compreendia isso. Seus conflitos foram bruscamente interrompidos com a chegada triunfal de um dos magos de Nerann. Ele não era dono de uma beleza como a de Lutiel, mas ostentava grande poder vindo de seus olhos cinza. Seus cabelos pareciam negros, mas ainda não se via completamente por causa do capuz branco que o encobria e tinha uma vestimenta que mais parecia um dos guardas com armadura reluzente, se preparando para uma luta a cavalo do que um mago guardião. Em seu ombro estava uma coruja branca que parecia ser seu guia, aliás, praticamente todos em Nerann acreditavam em guias. Seres ou coisas que os guiava além de seus princípios. — Mago Sábio, da primeira casa. É uma honra você poder atender a meu apelo de extrema urgência. — continuou, fitando-o com gentileza. — Mas onde estão os outros? — Estão em missão. — respondeu com uma voz doce e ao mesmo tempo impetuosa. Só então Aurie e Sebastian perceberam que não se tratava de um mago, e sim uma maege. Aquele relevo no seu peitoral só podiam ser os seios, mas estavam tão concentrados em inventar alguma tática para resgatar Lutiel que nem se atrelaram a esse fato. — E então, o que me traz aqui? — sua fala soava cada vez mais impetuosa e a essa altura já havia se desfeito do capuz que cobria quase todo seu rosto. Seus cabelos eram negros rubros e lhe caiam nas costas de tão grandes. Logo após perguntar sobre o que a trazia ali, posou sua coruja branca em um feixe de madeira próximo a porta de entrada da sala primordial. 135
— Primeiro quero que conheça duas pessoas. Estes são Aurora e Sebastian. — Apontou para os dois. — E esta é a Maege da Sabedoria Opherine Elrond. . — É um prazer. — disse ambos, cumprimentando-a. — O que aconteceu a Lutiel? Ao meu Lutiel? — preocupou-se em perguntar. — Ele foi raptado. E tememos pela vida dele. — Aurie disse. — Rei Elin deixe-nos a sós por uns minutos? — pediu Opherine. — É claro. Qualquer coisa é só pedir minha ajuda. Deem-me licença. — o rei disse. O Rei Elin saiu da sala primordial. A casta dos magos sempre foi muito respeitada em Nerann, afinal, eles eram seus guardiões desde sempre e nunca haviam falhado em demonstrar lealdade para com o povo. — Não precisam me contar. Eu já sei de tudo. Posso interpretar o pensamento de cada um de vocês. — disse Opherine num espasmo na fala. — Aurora, você não irá sozinha até Gallia. Se for, morrerá. — friamente falou. — E então o que você sugere? — Sebastian entrou na conversa. Estava preocupado com o andamento dos fatos e até onde Aurie chegaria por esse resgate. — Eu irei com ela. — anunciou. — Esteja pronta até a meia hora do dia. Leve suas roupas mais pesadas. O norte de Terdállia possui um frio tenebroso que assusta até os mais astutos. E vejo que você é uma. — disse olhando fixamente para os olhos de Aurie. — Eu irei também. — Sebastian se prontificou em dizer. Não queria sentir a angustia de ter Aurie longe de sua vista e correndo perigo. Ele iria mesmo que ela não quisesse. — Sebastian... — Aurie arriscou continuar quando foi interrompida por Opherine. — Ele pode ser útil, deixo-o ir também. Encontro os dois na entrada principal de Nerann ao meio-dia. E estejam prontos para ver coisas que jamais viram em toda sua curta vida. — disse a maege saindo da sala primordial, levando sua coruja branca nos ombros de sua armadura reluzente.
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Sebastian só pensou em proteger Aurie, mesmo que ela não pensasse o mesmo, ele estava disposto a provar que não era um estorvo qualquer. Mas o seu estorvo. Aurie estava parada ainda como se esperasse que Sebastian falasse algo e ele não fazia ideia do que se passava na cabeça dela naquele momento. — Vá arrumar suas coisas. Ao meio-dia na entrada principal de Nerann. — foi tudo que Aurie disse antes de sair pela porta da sala. Sebastian consentiu com a cabeça. Enquanto descia as escadas, Aurie sentiu certa segurança por não ir sozinha até aquele reino que ela mal conhecia. Não apenas pelo fato de uma sábia Maege de primeira casa ir junto, mas porque, apesar de tudo, Sebastian ainda se preocupava com ela. E sabia que ele estando ali, poderia compensar tudo de ruim que já havia causado a ele. E além de tudo isso, seu mago protetor sofria nas mãos de criaturas que ela ainda não conhecia. A jornada já estava próxima e o destino a guiou até ali. “Quem teme a luta jamais conhecerá o fruto de sua força. Não vou temer, não vou recuar. Lutiel precisa de mim, mesmo que para isso eu tenha de ferir meus próprios princípios. A vida dele está ligada a minha desde que nasci. Ele é meu mago protetor.” ela refletiu, arrumando seus pertences para a jornada que lhe aguardava a caminho de Gallia, o horizonte negro.
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Capítulo 14
O Norte Gelado ocorro! Meu corpo queima. Ajudem-me! — pedia desesperadamente Lutiel aceso em chamas que envolviam todo seu corpo. Sua demonstração de agonia fazia Aurie se desesperar, mas algo a impedia de chegar perto. Uma força estranha da qual ela não conseguia se livrar. — Lutiel! — Ela podia sentir as chamas percorrendo todo corpo dele e isso de alguma forma refletia nela mesma. Era praticamente a mesma aflição que Lutiel passava. E no fundo da cena uma pessoa encapuzada observava o festim das chamas em torno de Lutiel sem fazer absolutamente nada. *** — Não! — Aurie despertou suando e ofegante, percebendo que tudo foi um pesadelo apenas. Aquele cochilo que tirou antes de ir ao encontro de Opherine e Sebastian não foi uma boa ideia. Depois do 138
esquisito e agoniante pesadelo, a consciência de Aurie pesou ainda mais, porém não agiria sem estratégias. Chegaria até Gallia viva e tiraria Lutiel das mãos de seja lá quem fosse. Arrumou o resto de seus mantimentos, algumas roupas a mais e apanhou um casaco de lã negra. Depois de um longo tempo, finalmente pegou sua espada nas mãos novamente. Aquela lâmina sempre a impressionava. O cintilar do aço azulado e sua ponta amolada. Pegou a espada pelo punho e a colocou no encaixe da bainha que era de um macio couro avermelhado, tão maleável como a crueldade. Logo em seguida pôs nas costas, envolto de uma tira de couro preto. A meia hora do dia finalmente chegou. E com ela as inseguranças da futura jornada, alarmavam os pensamentos mais profundos de Aurie. Seriam longos dias. E apenas Opherine era conhecedora dos perigos que enfrentariam até chegar a Gallia. Aurie nem imaginava o que a aguardava durante a viagem e estava preocupada com a demora do irmão. Certamente ficaria irritado quando soubesse que ela havia partido sem o conhecimento dele, mas não podia esperar nem mais um segundo. Seus cabelos estavam impecáveis, mesmo sem tê-los penteado devidamente. A beleza que Aurie possuía era motivo de inveja de muitas mulheres em Nerann que sempre cochichavam uma coisa aqui e ali quando ela passava pelas ruelas do reino. Quando saiu da torre onde seu quarto ficava, se deparou com Sebastian aguardando apoiado em uma coluna que ficava próxima a torre. — Está ai há muito tempo? — perguntou contendo seus nervos e tentando esboçar um rosto amistoso. — Não, acabei de chegar. Vamos? — disse, pegando seus pertences e posteriormente os de Aurie. Ele havia trocado de vestimenta, agora usava apenas uma malha de linho por baixo de um gibão de couro fervido e botas acinzentadas também de couro. Ao passo que caminhavam até a entrada principal de Nerann, já podiam perceber ao fundo os rostos daqueles que o aguardavam. Era de se esperar que não fosse apenas Opherine a estar ali. Rei Elin e seus filhos, juntamente com Maria, também os aguardavam. — Aurora e Sebastian. Finalmente chegaram, achei que tivessem tomado a sábia decisão de não ir, mas vejo que são destemidos e insanos na 139
mesma intensidade. — Opherine ostentava um olhar penetrante ao encontro dos dois, enquanto manipulava um sorriso malicioso em seu rosto. — Estão prontos? — perguntou, arrumando a cela em seu corcel com uma barda, armadura feita para caber em seu corpo. Era um cavalo branco, robusto e tinha o corpo arredondado, coxas e ancas fortes, pernas longas e ossos densos. — Estamos. — anunciou Sebastian, atentando seu olhar para Aurie, que não disse nada, além de gesticular um “sim” com a cabeça. — Então, façam suas devidas despedidas, pois a jornada será longa e o que nos aguarda passa longe de suas imaginações férteis e juvenis. — disse, escalando com destreza o corpo do corcel branco e montando-o afastou-se em galope. O príncipe Alphas com seus belos fios dourados, estava com uma malha de cetim vermelha que abusava de brocados em fio de ouro, por cima usava um manto de veludo marrom-acobreado. Já a princesa Sophitia segurando seu Elcatraz, Alvorada nos braços, trajava um vestido de seda, englobando um azul turquesa em sua base que remetia aos olhos dela, tão bem desenhados. Seus olhos transmitiam uma pureza ao ver de Aurie, assim como a voz de Alphas que mostrava um início de bravura. Alphas não era de falar muito, apenas cumprimentou Aurie e os outros e logo ficou ao lado de seu pai novamente. Diferente de Sophitia que sorria para todos e os cumprimentava e lhe dava seu voto de sorte. Aurie nunca os havia conhecido de fato. Mas se fossem como o pai, tinham seu respeito e admiração total. E pareciam que afinal eram, já que estavam ali para se despedir de recentes habitantes do povo de Nerann. E a sorte que lhes desejaram na jornada foi uma confirmação de caráter que provinha de seu pai. — Se eu pudesse mudar o rumo das coisas, eu as faria diferentes e vocês não precisariam se arriscar tanto. Porém, eu confio a vida de vocês à Sábia da primeira casa de Mantra e sei que ela os ajudará no que for necessário. Vocês tem minha benção para partir. — declarou firmemente rei Elin. — Obrigado, vossa Majestade. Logo estaremos de volta. — disse Aurie cumprimentando o rei. — E avise ao meu irmão o porquê da viagem repentina, não quero deixa-lo mais preocupado. 140
— Cuide de Maria por mim. — disse Sebastian logo atrás, também cumprimentando com gentileza o rei. — Ela ficará segura aqui, pode ir em paz, arqueiro. — Eu sei que você vai voltar, assim como os outros. Mas por favor, tome cuidado. — O semblante de Maria parecia um tanto calmo para a situação imposta ao seu irmão. — Se cuide. — disse seu irmão, abraçando-a. Repentinamente Alvorada produziu um som, como se estivesse chamando por alguém. — Acho que ele também quer se despedir. — Sophitia sorriu. — Vamos toque nele. — sugeriu a Aurie. Ela prontamente tocou a pelagem branca da criatura e a mesma a olhava com olhos flamejantes. Parecia que a cada toque que Aurie dava em Alvorada ele queria dizer algo com os olhos. E ela ficou deslumbrada com aquilo. — Posso segurar ele? — pediu. — É claro. — disse Sophitia colocando Alvorada nos braços da Aurie. — Ele é magnífico. — e mais uma vez Alvorada emitiu sons de sua boca em direção a Aurie que ficava cada vez mais impressionada e ligada à criaturinha de pelos brancos e macios. — Agora, precisamos ir. — ela disse colocando Alvorada de volta nos braços da princesa. — Cuide bem dela, mocinho. — suas palavras saíram ao encontro do Elcatraz que parecia entender cada gesto de Aurie. — Que nossos deuses os protejam. — disse por fim, o rei Elin, vendo Aurie e Sebastian montando em seus respectivos corcéis marrons e indo em direção ao lugar onde Opherine estava os aguardando. — Estarei esperando por você! — gritou Maria de longe. Suas mentes entraram em ansiedade pelo desconhecido que estava no futuro não tão distante deles. Opherine praguejou algumas palavras ao seu corcel que partiu em um galope alucinado em direção ao norte tenebroso e quase inexplorado de Terdállia. Sendo seguida por Aurie e Sebastian que vinham logo atrás.
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— Tomem cuidado onde fazem seus garanhões pisarem. A estrada de terra molhada que iremos percorrer costuma ter armadilhas de ladrões. — alertou a Sábia, sendo seguida ao lado por sua coruja branca. Os galopes eram os únicos sons em toda a estrada que Opherine chamava de Estrada Tortuosa, que segundo ela, era um dos caminhos mais rápidos até as montanhas geladas do Norte. A jornada seria longa, muito longa. *** O caminho para o norte parecia não ter fim. Opherine Elrond conhecia aquela região tão bem quanto ninguém. E sabia dos perigos e de como escapar de prováveis armadilhas. Aquela quinzena na Vereda Acidentada, região em que estavam, colocou algumas dúvidas na mente da maege. Por conhecer praticamente todas as realidades de jornadas pelas quais passou, ela imaginava que essa viagem seria tranquila, enquanto que, na verdade, se mostrava muito mais enfadonha e de certo modo perigosa. Tinham partido de Nerann havia três longas quinzenas, no dia seguinte à festa pelo aniversário do príncipe e da princesa. Saíram antes dos gritos dos homens arrumando os estandartes e da algazarra organizada que havia após os dias festivos no reino. Quando os galopes dos seus cavalos tomaram lugar naquela manhã, aquele tumulto todo ficou para trás. E Aurie junto aos outros partiram em direção ao norte da dimensão de Terdállia. Os vilarejos e pastos eram cada vez mais escassos e menores à medida que avançavam para o norte, penetrando mais profundamente em florestas escuras e desconhecidas pelos viajantes. E a cada quinzena que passavam em Feudslan, região tropical antes da Vereda Acidentada, descobriam novos povos e culturas. Em seguida passando por Aorchan, cidadezinha mercante entre essas duas regiões, puderam comer algo realmente decente, mesmo com aqueles olhares acusadores que geralmente os forasteiros recebiam. Eles percebiam que ao passo que avançavam, estavam cada vez mais jogados a própria sorte e sem um teto para se abrigar. Depois de passar por Aorchan tudo ficou mais frio e mais silencioso.
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A oeste de Aorchan estendia-se uma estrada que dava acesso às Colinas de Orvalho, onde nascia o rio Tsica. As Colinas de Orvalho eram uma cadeia de montanhas, aproximadamente no meio de Edoin, que os separavam do objetivo final do grupo, o reino de Gallia. Dalí para frente, as coisas se tornariam bem mais complicadas. Ao partir de Nerann, trouxeram consigo suas roupas quentes, e logo descobriram que nem de longe eram suficientes. Àquela altura, o frio já consumia suas couraças duras e estava prestes a invadir por completo seus corpos. Pelo meio da segunda semana cavalgando pelas trilhas das colinas de orvalho, a exaustão era tamanha que suas pálpebras e sentidos mal conseguiam ser equilibrados. As pernas já ardiam de cãibras e seus ossos estavam praticamente congelados. Aurie e Sebastian não se queixavam, mas precisavam de um descanso. O mínimo que fosse. — Soltem as rédeas. — anunciou em voz alta Opherine. — Iremos parar. A neve vai aumentar ainda mais à medida que continuemos. É melhor termos um merecido descanso. Aurora estava mais exausta do que pretendia ficar. Sabia que a jornada seria cansativa, só que não imaginava que seria o triplo da sua imaginação fértil. Suas costas doíam e as pernas não recebiam mais comandos, pois estavam adormecidas há tempos. E seu semblante, por mais que não quisesse, demonstrava que não estava tão bem para continuar. Já entardecia e Opherine elegeu um lugar ideal para passarem a noite. Se tratava da entrada de uma floresta amistosa que ficava a leste do caminho que eles seguiam. E ali o frio era um pouco retido pelas árvores e troncos gigantes. Sebastian desceu de seu cavalo rapidamente. Suas pernas também estavam doloridas, mas não tanto como as de Aurie. Um descanso era tudo que eles precisavam, a não ser Opherine, que não esboçava expressões de cansaço algum. Era uma mulher extremamente resistente e misteriosa. De relance Sebastian olhou para Aurie e a viu com a cabeça baixa, ainda em cima do garanhão. E foi ver o que estava acontecendo. Porque ela não havia descido ainda estando tão cansada? — Aurie, você está bem? Quer que eu ajude você a descer? — sugeriu Sebastian, preocupado com o semblante cansado dela. 143
— Não precisa. — disse num tom abatido. — Eu estou bem. Apenas cansada. — Preciso de vocês aqui. Não demorem. — disse Opherine, arrumando a coruja branca em seu ombro. — Estamos indo. — Sebastian respondeu. Aurie desceu sozinha do garanhão e foi amparada por Sebastian, quando quase tropeçou na descida. Houve uma troca de olhares profundos, mas logo se esvaiu. Ambos foram em direção ao posto em que passariam a noite. O frio da acanhada noite que surgia seria muito mais forte do que o que já fazia. Nem as jaquetas de couro fervido e pele de lobo estavam aquecendo-os por completo. — Sebastian, vá até o fundo da floresta e encontre galhos secos para fazermos uma fogueira ou morreremos de frio. — pediu Aurora com uma gentileza que o assustou. — Certo. — respondeu, pegando a aljava de flechas e seu arco no dorso do garanhão. Partindo em seguida para o fundo da floresta. — Não vou demorar. — afirmou olhando firmemente para Aurie. Ele queria passar certeza e segurança de que ela podia confiar nele, fosse como fosse. — Cuidado. — Aurie pediu. Opherine precisava testar as atribuições que a emancipadora da guerra vindoura tinha. Não parecia uma menininha indefesa que recusa aceitar o seu dever. Pelo contrário, até agora ela buscou saber de exatamente tudo sobre o que deve ou não fazer. Entretanto a sábia desconhecia as profundezas do caráter dela. Ela podia usar essa destreza tanto para ajudar quanto para atrapalhar. — Aurora Bellator. Certo? — a sua voz era como um trovão de tão grave. — Ouvi falar a seu respeito quando chegou em Nerann, vindo de Zorá. Que má sorte a fenda ter levado vocês logo para lá. — ressaltou. — Um azar dos bons. — completou Aurora. — Admiro sua coragem em vir resgatar Lutiel, mesmo sabendo dos riscos. Ele é o nosso pupilo ainda, digamos, e eu fiquei muito preocupada também. — seu rosto já não parecia de tão grande mistério. A maege da
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sabedoria branca tinha sentimentos assim como Aurora tinha, só os preferia esconder a se tornar vulnerável por causa deles. — Temos uma ligação muito forte. Nem mesmo eu consigo explicar ao certo. É como se eu sentisse as vibrações dos sentimentos dele. As pontadas dos pensamentos e ouvisse o lamento de socorro dele. É angustiante demais. — explicou. Apesar do cansaço da longa viagem, Aurie necessitava expor o que sentia para alguém. E esse alguém não seria Sebastian, não havia condições para isso acontecer ainda. Opherine era quem restava, e ela conhecia muito mais sobre Lutiel do que Aurora. Nada mais justo. — Eu me recordo de minha protegida quando eu era mais nova. Era destemida como você. Se metia em muita confusão e eu sempre estava lá, ajudando e guiando seus pensamentos. Até que ela descobriu a existência de outros como eu e traiu minha confiança ao contar para todos que conhecia em seu mundo. Desde então, passei a desacreditar na raça falha dos humanos. — disse assumindo autoridade em sua voz. — Ouça o que eu digo. Apanhe galhos pequenos todos os dias e farás uma árvore, só assim sua sobrevivência terá alguma valia. — E os outros? Estão em que missão? — Aurora perguntou sem ter certeza de que ela responderia. — Dionísio Bargor e Orfeu Sord. Os magos da honra e transformação respectivamente. Sim, eles estão em uma missão. Sempre estamos, aliás, raramente ficamos em Nerann. Há coisas a serem descobertas Terdállia a fora. E ninguém além de nós se arrisca — respondeu. — Que tipo de coisas? — Coisas que ainda não cabe a você saber. — declarou, trocando de assunto. — Certa vez a castra Mantra estava em missão na planície Balteza, região perto do reino de Cordonne, que estava sendo invadida por selvagens que desconhecíamos até então. A missão consistia em tomar o controle da planície novamente e expulsar esses tais selvagens que estavam assustando quem por ali passasse. — começou a história. Estava munida de um olhar ameaçador e ao mesmo tempo calmo. — Éramos quatro. Cinco com Roya que perdeu uma mão com uma mordida feroz daqueles selvagens. Não podia mais lutar como quando o 145
conheci. Ele era jovem e corajoso, mas um bastardo da casta e não possuía nem metade do nosso poder. Ficaria ali para ser devorado por aqueles selvagens que clamavam por carne. — Sua coruja branca piava em seu ombro. — A colina que estávamos estava encharcada pela chuva que caía e tínhamos que descer até a estrada, onde outros selvagens aguardavam nosso massacre. Nosso alvo era aniquilar esse grupo para atrasá-los. — E você teve medo? — Aurie perguntou já interessada na história. — De quê? — De a matarem. — Nunca lutará bem se tiver medo de morrer. Você tem? — a indagou. — Eu diria que passei a ter. — positivamente respondeu. — Isso aconteceu a todos os homens e aos seguintes acontecerá. Não é uma exclusividade sua. — Eu sei. Opherine queria jogar com as emoções de Aurora para testar até onde seu caráter como guerreira iria. — Já lutou com uma espada realmente notável? — perguntou, mudando novamente o rumo da conversa. — Minha espada é notável para mim. — bruscamente anunciou. — E quando a empunha, sente uma faísca se ascendendo dentro de si a ponto de se tornar uma chama. E nesses momentos perde o medo da morte? — Não. — A chama de um guerreiro verdadeiro cria escudos contra a morte. Um covarde não guerreia, ou se guerreia não tem honra. Quando o guerreiro é destemido e corajoso, encara a morte de frente, como um caçador de harpias que conheço, Haza Golês, vejo a essência da coragem nele. Como caça com paixão, a morte já não paira em sua mente. Até que um dia ela retorna para cumprir seu plano, como acontece a todas as criaturas. E chega a hora de voltar a empunhar a espada de verdade. A espada que você empunha. O inimigo dentro de você se abrigará no último lugar que você procuraria. Pense nisso. — E então se calou. Aurora precisava ouvir aquilo. Cada palavra que saiu da boca da maege seria crucial para o que viria em seu futuro. Um futuro incerto e 146
repleto de ameaças que conhecia superficialmente. Entretanto, a pausa da maege foi rompida pela curiosidade de Aurora. — Como você se tornou uma Maege? Digo, sempre foi forte assim? — perguntou quebrando o silêncio que havia tomado conta. — Sou descendente das únicas Maeges que existiram. Não escolhi essa vida, mas tenho que cumpri-la. Sou a Mestra da Casta Mantra, da primeira casa. Maege da Sabedoria Nobre. No entanto confesso que um dia já fui uma maege ordinária! — disse sem arrependimento algum. — Não passava de uma criança desesperada para aprender a controlar os próprios dons. Mas conforme examinei, aprendi cada vez mais magias novas e desconhecidas, e quando entrei no silêncio de mim mesma, comecei a entender a imensidão oculta do meu poder. Poder esse que você achará em seu próprio silêncio. — Eu gosto do silêncio. Me acalma. — disse, respirando um ar que havia se tornado pesado. O frio estava começando a ficar mais feroz. — O silêncio é o pai dos sábios. — Surgiu a voz marcante de Sebastian que trazia em suas mãos, galhos secos. — Seu namorado tem razão. — Opherine disse com uma fixa certeza na fala. — Ele não é meu namorado. — falou um tanto irritada pela sugestão. Sebastian apenas sorriu. Estavam no limiar da densa floresta. E sentiram como se alguma coisa os atraísse para as sombras; a mão de Sebastian estava em riste, segurando com força o jargão que disparava. Então, um vulto precipitou-se entre as árvores. Não houve tempo. Sebastian puxou de sua aljava uma flecha e a colocou no arco. O primeiro disparo encontrou a corpulenta coisa em cheio, deixando uma mancha borrada de sangue nas folhas. Outra flecha foi o suficiente para acuá-lo, fazendo descer pelos cascalhos de um penhasco ao lado e se ocultar na escuridão enervante. — Mas que diabos era aquilo? — Sebastian, um pouco nervoso perguntou. — Filtrantes. — Opherine rispidamente respondeu. — São monstros dominados pelas criaturas Gallenses. Certamente já sabem que 147
estamos perto. Não há como ficar aqui, é um aperitivo para eles. Vamos embora. — Nem ao menos quis saber a opinião de Aurora e Sebastian, apenas escalou o corpulento corpo do corcel e praguejou: — Subam logo. Contudo, não lhes restou tempo. Outro filtrante apareceu diante deles. As palavras que tentaram sair da boca da Maege foram destruídas quando o filtrante corpulento caiu sobre ela com aquela mão enorme e Opherine desacordou. Aurie desembainhou sua espada e depressa correu em direção à ele. A essa altura Sebastian tentava a todo custo gritar para que ela não fosse até aquela criatura, mas não teve sucesso. Estava um pouco longe dela e suas flechas não afetariam seu inimigo demasiadamente ao ponto de recuar. O filtrante queria sangue e seus olhos cinzentos diziam isso. No fundo, Sebastian via Aurie se debatendo em golpes que tentava dar na criatura que mal sentia a espada adentrar no corpo. Sebastian precisava tirá-la dali a qualquer custo. Correu disparando duas flechas que velozmente acertaram em cheio os olhos do filtrante que ficou cego instantaneamente. Aurie olhou para trás procurando Sebastian e o fitou ofegante, enquanto a criatura se agitava procurando os dois. — Está louca? Como se arrisca desse jeito, você quer morrer? — Sebastian a indagou com a maior preocupação que Aurie já vira. — Não tive... — arriscou continuar. — Sebastian, abaixa. — gritou pulando sobre ele, quando um tronco gigante passou sobre suas cabeças. — Vou empurrar essa coisa para o penhasco. — anunciou bravamente Aurie. E foi o que fez. O filtrante tracejava uma agonia por ter os olhos perfurados por flechas. Correndo freneticamente com a cintilante espada desembainhada, Aurie cravou-a na barriga da criatura, empurrando-a com os pés ferozmente. Até que se ouviu o estrondo daquele corpulento ser, caindo sobre os pedregulhos penhasco abaixo. — Você está bem? — Aurie perguntou a Sebastian, voltando seu olhar para ele que estava caído a poucos metros dela. Ela não queria transparecer uma preocupação gigantesca, mas naquela hora foi quase impossível, visto o olhar de medo e alívio que Sebastian emitia dos olhos. Seu coração teve uma disparada inusitada e um movimento involuntário
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tomou conta das coordenações dos membros inferiores dela. Aurie andou até ele e abaixou-se examinando se nada tinha acontecido a Sebastian. — Você me salvou, assim como fiz com você. — falou num tom de surpresa. Depois de tudo que disseram e pensaram um do outro, por fim ele tinha certeza absoluta de que Aurie era sua amada. Aquela por quem esperou a vida toda e agora estava ali, demonstrando mais uma vez aquela preocupação que deixou Sebastian tão emocionado a ponto de ter uma ação determinada. Com rapidez e delicadeza, ele se inclinou sobre Aurie acariciando seu rosto frio e a beijou. Aurie rapidamente afastou-se, não querendo dar chance para uma nova investida dele, mas Sebastian estava determinado a mostrar mais uma vez o que sentia por ela. Seus narizes roçavam-se um no outro em meio a troca de olhares mínimas quando abriam os olhos. E Sebastian escutava um calmo e baixo sussurro dela, dizendo: “Não...”. Entretanto já era tarde, Aurie conseguia sentir a mão dele em sua nuca e suas respirações ofegantes. No tocar de seus lábios pela segunda vez, ambos sentiram como se uma corrente elétrica passasse sobre seus corpos, impulsionando a continuar. Suas línguas se entrelaçavam. Eles sentiam que era algo que fizeram no tempo certo. Foi o primeiro e mais perfeito beijo apaixonado que Aurie haveria de ter durante toda a vida, assim como Sebastian. Mas o eterno tempo do beijo se acabou quando Aurie segurou os braços de Sebastian e os afastou dela. Ele abriu os olhos e viu a expressão de susto de Aurie. — Sebastian! Por que você fez isso? — a essa altura Aurie não conseguia entender por que fez aquilo, se sentiu uma total ordinária. Entregou-se sem ao menos ter a plena certeza de que era isso que queria, ou pelo menos achava isso. — Aurie... — não conseguiu continuar. Uma nota de tristeza saiu em sua voz. Não sabia o que Aurie estava achando de tudo aquilo, mas queria pedir desculpas por tê-la beijado daquele jeito. Nunca fora chamada por ninguém por aquele apelido. Apenas Sebastian detinha a autorização de pronunciar seu nome assim. E sempre que ele a chamava daquela forma, ela sentia algo estranho dentro de si. Uma coisa boa, que a fazia se sentir bem de alguma forma. Era uma das poucas coisas que ele fazia que não a irritava. Aurie olhou para Sebastian 149
novamente e se sentiu envergonhada. Mas jamais arrependida. Então se aproximou dele. — Não fale nada. — colocou seu dedo indicador nos lábios dele ressaltando seu pedido. — Eu acho que também quis isso. Aurie livrou Sebastian de sua presença sem lhe dar a chance de falar algo. Ela precisava ver como Opherine estava. Seus sentimentos estavam praticamente concretos em sua mente em relação à Sebastian, entretanto, não era o momento de prolongar aquilo. Mas de uma coisa ela tinha certeza. A coragem do ato dele de fazer aquilo, a impressionou. Aurie chegou onde Opherine estava caída e tentou reanima-la, colocando a espada de volta em sua bainha. Ela abriu seus olhos em meio ao clamor da jovem e franzindo a testa disse o que Aurie esperava ouvir. — Vamos embora daqui agora! — disse. Opherine era dura na queda e já estava pronta para mais uma pequena jornada. Então, mais uma vez os galopes enfurecidos dos garanhões se tornaram a única coisa que ouviriam até passar das Colinas de Orvalho ao encontro do temido reino de Gallia. Depois de cavalgarem quase um dia inteiro e tendo em vista o findar de uma longa jornada, Aurie vislumbrou aquele glorioso castelo suspenso no ar, e abaixo dele um redemoinho de águas negras como o céu da noite. A neve era intensa acima do grupo e no horizonte aves negras voavam sem se preocupar com a neve que caía. Gallia era definitivamente um lugar hostil e quase impenetrável. Contudo, Lutiel Albus estava condenado à morte se Aurie não fosse até lá. E ali estava ela agora, de frente com mais uma parte de seu destino. Uma parte que não permitiria a ela recuar. Naquele momento avistando de baixo o reino, uma voz que ela nunca havia escutado antes soou em seu ouvido. “Confie em seu dom, mesmo que as ondas se destruam no mar. Lute por quem você ama, mesmo que haja sacrifício.” Balançou a cabeça se desfazendo daqueles pensamentos que não compreendeu completamente. E continuando a olhar para a neve assoberbada acima deles, respirou fundo e desceu do garanhão acobreado. “A guerra terá seu provável início aqui.” - disse a si mesma, tomando as mãos de Sebastian nas suas.
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Capítulo 15
O Poder do Sacrifício orrentes envolviam os braços e pernas de Lutiel. A agonia dele era perceptível. Trancado numa maldita cela, sozinho, ferido. O sangue em seu corpo estava seco e borrava as paredes já sujas de um lugar fétido. — Não, tirem ele daqui, levem-no para cima e verifiquem se ele está bem. — mandou uma das criaturas com rosto de mulher e corpo de ave. Aos tropeços Lutiel foi levado por essas criaturas para outra sala que ficava subindo as escadas. Ele mal conseguia se manter de pé, seus braços estavam cortados superficialmente e no mesmo lugar do ferimento as criaturas apertavam fortemente, enquanto o levavam para alguma sala que ele não conhecia. E a sala chegou. O medo reacendeu em Lutiel a partir do momento que não havia mais luz. E quando não há luz, os magos temem pelo pior. O pior escondido por entre as trevas. E não foi diferente com Lutiel. Ele estava ferido, sujo e com trapos em seu corpo. Aquela sala cheirava mal, e à medida que as criaturas o seguravam mais forte, ele podia sentir que o seu fim estava à espreita. 151
Quando entraram mais profundamente na escuridão medonha, aquelas criaturas jogaram Lutiel contra a parede, colocando-o com os braços para cima, em seguida amarrando-os com correntes fortes e grossas, feitas do mesmo material que o prendia na cela onde estava anteriormente. A escuridão não deixava Lutiel ver, mas aquela sala estava infestada por sangue borrado por todas as partes e restos de crânios e ossadas de criaturas que por ali passaram. Frente a este desespero, ele adquiriu rapidamente a convicção de que não estava na frente de um reino qualquer, muito menos primitivo. Elas o matariam sem piedade alguma. E o cheiro que exalava o enojava de tal forma que nem ao menos pensou em pedir misericórdia. E certamente não pediria. — Parem! O alvo não é ele. Deixem de ser inúteis. — praguejou a dona de uma voz alta e marcante, entrando na escuridão daquela sala. Naquele exato momento a visão ficou turva. O rosto da pessoa parecia estar em desfoque na mente de Aurie. E tudo se bagunçou e desordenou os pensamentos distantes dela, até que se viu mais uma vez olhando para o assoberbado cair da neve acima deles e o grandioso reino de gelo, o lugar onde as forças das trevas residiam e planejavam seus esquemas nefastos. Ainda segurava a mão de Sebastian e como tantas outras vezes depois de uma visão, seu nariz sangrava. Opherine por fim desceu de seu corcel, e rogou uma magia em torno deles. Um tipo de redoma numa tonalidade azulada, quase translúcida, que os envolvia. E então, quando seu cetro branco tocou o chão e Opherine, juntamente a Sebastian ficaram invisíveis, um chamamento se fez presente. A coruja branca levantou um voo rápido para longe dali e lá no alto as Harpias que rondavam a atmosfera acima de suas cabeças se desprenderam do céu nevado e vieram em direção a eles em um rasante voo frenético. Foi uma recepção brusca para Aurora que ainda imóvel, avistou a rainha imponente parada na sacada da torre real. Ela trajava uma coroa recente e um brilhante colar negro que contrastava com os cabelos cor de petróleo. Logo as harpias indagaram quem ela era e o que pretendia ali. — Aurora Bellator. — anunciou bravamente, sem temer mais nada que a aguardava ali dentro. 152
— Siga em frente e não olhe mais para trás, estaremos junto com você. Não se preocupe. — sussurrou Opherine. — Mantenha a calma. Eu também estou aqui. — Sebastian completou o sussurro, agora mais baixo no pé do ouvido dela. À medida que aquelas criaturas horrendas levavam Aurora até o portão de ouro da entrada, o frio se tornava cada vez pior e os ossos dela estavam a ponto de congelar. A imensa porta de ouro maciço abriu-se rapidamente, tempo de três piscadelas rápidas. Já dentro, Aurora pôde perceber que o lugar parecia inóspito e não havia vida alguma em suas paredes e ruelas. Apenas densas camadas de gelo que serviam como tapete para seus pés pisarem. O reino estava fantasma por algum motivo. Os passos dela eram guiados a todo o momento pelo silêncio das duas aves com rosto e seios de mulher que não ostentavam semblante algum a não ser de maldade no olhar. Não havia roupa de cima, elas usavam apenas um curto pano envolta de sua cintura e seus seios ficavam à amostra. Os tapetes de gelo expostos no chão acabaram quando chegaram a uma torre que parecia a mesma de onde Aurora avistou a rainha de Gallia. Certamente a torre principal, a maior e mais bem construída. Logo após a entrada havia uma espécie de sala onde comportava alguns assentos de couro vermelho e paredes ornamentadas com espadas de guerra como a que Aurora carregava em suas costas. As escadas eram feitas de pedra. Um tipo pedra cinzenta que mais parecia uma prata pronta para a venda de tão brilhante que era. Pareciam degraus exaustivos olhando de baixo para cima, mas quando menos perceberam já se encontravam num corredor amplo com acesso direto a uma porta enorme de mogno trancada ao fundo. O corredor sim parecia infindável, já que a torre era formada por um conjunto de outras torres e esta parecia ser a maior dentre todas por abrigar a sala real. Ao lado do corredor não existiam portas, apenas as grandes paredes de pedra cinza. A única coisa que tornou a caminhada amistosa até o suposto salão principal era a certeza de saber que Opherine e Sebastian estavam ao lado dela, e independente do que acontecesse eles a protegeriam assim como Aurora também. A gigante porta de mogno foi aberta pelas criaturas que escoltavam Aurora até ali. — Espere aqui. — disse uma das criaturas, gesticulando algum sinal com a cabeça para a outra, que em seguida saiu junto com ela. 153
O salão possuía um piso diferente do resto de seu trajeto. Era feito de gelo, um gelo translúcido como o vidro. E olhando para baixo podia ver claramente seu reflexo de impaciência por ter de esperar ali. — A rainha Nefti não costuma ser cordial com quem visita seu reino, então seja direta e pergunte o que ela quer de você. — falou baixo Opherine que estava ao lado de Aurora neste momento. Todo cuidado era pouco, afinal, a qualquer momento a rainha poderia chegar e Aurora deveria estar “sozinha”. — Eu sei como fazer. — Aurora disse. — Sebastian, não saia dessa proteção, é tudo que eu lhe peço. — sussurrou, evitando olhá-los. Certamente sabia que se algo acontecesse a ela o primeiro a tomar uma iniciativa heroica seria ele e consequentemente mais uma vez o fardo de seu legado cairia injustamente sobre Sebastian, e ela estava farta disso acontecer. Sebastian sabia que precisavam ser discretos, então apenas retrucou com os olhos em direção a Aurora. Se algo acontecesse, ele a salvaria, ele se arriscaria. Não importava se ela dissesse sempre o contrário. O breve diálogo foi interrompido pela indevida chegada de uma das harpias com uma armadura dourada e asas enormes. — Se curve diante da rainha Nefti. — ordenou a criatura. Aurora esboçou um rosto de surpresa, olhou de canto para Opherine e Sebastian que fizeram que sim com a cabeça. Naquele momento ela deveria se sentir sozinha para conseguir enfrentar seu próprio destino. E então se curvou em reverência. Ajoelhada ouviu as portas se abrindo num estrondo que ressoou corredores adentro e, no mesmo instante, ergueu a cabeça para a escuridão que emanava da porta. E uma penumbra começou a se formar na escuridão, vindo em direção à Aurora. Ao passo que se aproximava, tomava mais forma. A forma de uma pessoa. E antes que, não só Aurora como os outros, pudessem imaginar a rainha saindo por entre as sombras, algo maligno exalou sua presença, deixando Aurora surpresa. Houve uma sombria pausa silenciosa. Então, a figura saiu da escuridão e se revelou. — Finalmente nos encontramos, Aurora. — disse Circê, a deusa da noite, batendo palmas em deboche. A deusa trajava um vestido longo negro carvão, com o busto à amostra. Nele ainda continham ornamentos brancos de asas no limiar de seu busto com o vestido. O cabelo dourado trançado 154
contrastava com a cor de sua vestimenta negra, e ressaltava ainda mais a intensidade de seus fios. Os olhos eram negros, tão negros quanto seu vestido que cobria seus braços. E deles emanava uma crueldade que em apenas um único olhar era perceptível. — Circê. — deduziu sem dúvidas. Sua condenadora estava bem à sua frente. Um ódio começou a consumir cada parte do corpo de Aurora. Não houve tempo para mais nada, quando subitamente um jato de luz escura, emanado de Circê, fez um arco e atingiu diretamente o feitiço de proteção, feito por Opherine. Quando se tocaram pela primeira vez, o choque resultou num cintilante lampião de luz que cobriu tudo no mesmo instante, deixando a visão de Circê rapidamente turva. Ela não esperava que existisse um feitiço de proteção envolta de Aurora. Circê esfregou seus olhos e com uma fúria latente em seu rosto lançou a mesma luz de suas mãos, formando dois arcos ainda maiores que o primeiro. Novamente eles atingiram a parede de proteção que estava sobre Aurora, mas provocaram apenas um estrondo e um clarão azulado. Vendo que era necessário algo maior para deter aquilo, Circê pronunciou algumas palavras em uma língua incomum e repentinamente suas mãos estavam munidas de uma fumaça negra que com um grito da deusa, foi de encontro certeiro a Aurora, fazendo a redoma se romper e Aurora, Opherine e Sebastian serem arremessados para longe. Sebastian foi jogado para junto de uma coluna de pedra, batendo a cabeça e desmaiando instantaneamente. — Maege desgraçada. — praguejou Circê, ainda lacrimejando. Aurora levantou-se rapidamente e viu Sebastian caído no chão ao lado da coluna de pedra. Mesmo sem planejamentos voluntários, ele estava novamente ferido por sua causa, mas dessa vez isso não ia ficar assim. Ela tinha uma exata certeza que descobriu a verdadeira essência do amor, no beijo que ele lhe dera a momentos atrás e nada tiraria aquela lembrança de sua mente. Porém, ela mais do que ninguém tinha que descarregar seu ódio em Circê, e não hesitaria nem por um segundo fazer o contrário. — Aurora, atrás de mim. — pronunciou em voz alta Opherine, erguendo seu cetro branco e apontando em direção à Circê. — Você, uma deusa inútil que não passa de uma tola ameaça. Ponha-se no seu lugar e lute como uma feiticeira de verdade. — a desafiou. Opherine sabia exatamente o que estava dizendo e em suas palavras não continha medo algum. 155
— Controle-se Maege, meu jogo não se trata de você, como um peão de xadrez, me afrontar. Aurora é a dama e eu sou o rei que irá destinála a um xeque-mate. — gargalhou, exibindo seu anel garra afiado. — Juro que se paciência estivesse emanando de mim, eu mataria as duas, porém, tenho muito mais coisas a fazer. E essas coisas não envolvem a Maege que se acha superior a mim. — disse em tom de ironia em todas as palavras. Aurie sentia que o grito de ódio por Circê, congelou em sua garganta naquele instante. Sentiu-se impotente como nunca havia se sentido antes. Circê era diferente, uma força maligna tomava conta de cada gesto que ia em direção à Aurie. — A sua prepotência não me assusta, muito menos a magia poderosa que tem orgulho em dizer que tem. — Opherine estava em posição de ataque, qualquer movimento suspeito e seu cetro brilharia intensamente em Circê. — Diga o que quer dela e liberte Lutiel! — ordenou. — Oph, Oph, Oph. — falou num tom de deboche. — Já disse que meu assunto não é com você, maege ordinária. — balançou suas mãos, que num súbito movimento produziram uma grande névoa negra. A névoa partiu rapidamente em destino a Oph que tentou rebater o feitiço com o poder de seu cetro. Nada que fez deu certo. Aquela coisa negra envolveu Oph e das trevas surgiram seres disformes que apanharamna pelos braços e pernas e a transportaram para dentro deles mesmos como uma areia movediça. Ela havia sumido e seu cetro estava caído no chão ao lado de Aurie que só conseguia olhar a cena desacreditada. Oph era a pessoa mais poderosa que já conhecera em toda sua estadia em Nerann, não podia ter acabado tudo assim tão fácil. Até que a névoa finalmente se desfez e a maege estava ali pálida e com os olhos brancos sem semblante. Caindo em seguida de joelhos e batendo a cabeça no piso de gelo translúcido. — Opherine! — Aurie deixou sua voz trêmula escapar. Pela primeira vez em muito tempo ela estava com medo. Tomou Opherine nos braços e tentou reanimá-la enquanto ao mesmo tempo olhava para Sebastian também desacordado. — Desgraçada! Porque tantas mortes? Pessoas raptadas e feridas? Só para poder me ter como troféu de sua imortalidade fracassada? — Aurora estava de volta. Não ia aguentar ver aquilo tudo e não fazer nada. 156
— Não quero discutir. Sua beleza é rica demais para se perder em meio a insultos desnecessários, minha cara. Apenas venha comigo e libertarei seu mago como prometi. — numa gentileza macabra pediu, estendendo uma de suas mãos. — Eu não vou, está louca? Lutiel está sofrendo e eu sei disso, posso sentir. Solte-o já! — se esforçou para manter a voz firme. — Preciso repetir? — Só não consigo entender o porquê de tudo isso. — explicou. — Eis o que precisa entender: meu exército está a sua procura há muito tempo. Estava exilada em uma ilha medíocre. Longe da minha casa, do meu conforto e do meu poder. Então estou de mau humor. — esboçou um sorriso falso. — Tenho certeza que consegue entender. Então facilite meu trabalho, ou terei de torturar seu amigo mago até ele não se lembrar do próprio nome. — seus olhos estavam em fúria. — O que você quer de mim? Conte-me de uma vez. — ela adiou essa pergunta para o momento certo, precisava saber exatamente o que a fez fazer tudo que fez. — Sua morte! — Circê praguejou. — E por que minha morte é assim tão importante para você? — Vou lhe contar um segredinho, que tenho certeza que nenhum de seus ditos amigos contou a você. — as palavras soavam cada vez mais convictas de Circê. — Seus pais, os ditos deuses perfeitos um para o outro, não passavam de errantes. Deuses falhos e mesquinhos que queriam o poder da regência dos reinos de Terdállia apenas para saciar seu ego. Em determinada época sua mãe, Eos, seduziu o deus que estava prometido a mim, Ares. Ela o cegou tanto, a ponto de ele não ver nenhum palmo a sua frente. E você deve imaginar como isso soou a mim quando chegou aos meus ouvidos. — houve uma pausa, enquanto ela rodeava Aurora e o chão refletia um brilho que saia de seu anel garra. E continuou. — Fiquei furiosa. Não importaria o que viesse acontecer comigo, aquele romance não podia acontecer, afinal eu sou uma deusa a altura de Ares, coisa que Eos nunca foi. Eu precisava fazer algo e como eu tinha conhecimento sobre o que Zeus fez quando as duas crianças nasceram da barriga de Eos, aproveitei a oportunidade. Uma oportunidade recheada de recompensas futuras, aliás.
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— seu vestido era nítido diante de toda a imensidão daquela sala clara. As palavras continuaram a sair de Circê. — O poderoso Zeus, selou no corpo de duas crianças o espírito de duas entidades cósmicas, esquecidas há anos e que só ele detinha o conhecimento de seus respectivos paradeiros. Essas crianças são você e seu querido irmão. — a verdade estava sendo relevada e a chuva de dúvidas rondou a mente de Aurora mais uma vez depois de meses. — Nunca soube de fato do que elas são capazes quando se manifestam, mas minha maldição...A maldição que eu roguei em torno de vocês dois, iria me confirmar no tempo certo com o que estou lidando, entretanto preferi não esperar até você e seu irmãozinho completarem a idade de 21 anos. — mentiu. Circê não queria revelar que Aurora sempre foi resistente a sua maldição — Decidi matá-los antes disso, talvez assim pudesse instigar a tal entidade a se manifestar em vocês. Porém seu irmão escapou, tornou-se imortal e provavelmente a entidade adormecerá nele, entretanto você é mortal, quem sabe o que esse espírito fará dentro de você quando chegar a hora. Para me prevenir, sua morte será meu prêmio de volta ao meu antigo estado de deusa no Olimpo e ainda por cima como ajudadora do extermínio de uma praga. A morte que trará a luz do infinito. A morte de uma maldita Hospedeira. — o seu caminhar tinha se tornado mais rápido e quando menos Aurora esperava, Circê estava à sua frente, empunhando seu anel garra em seu rosto indo em direção ao pescoço. De repente, Aurora avistou num movimento rápido, Circê apanhando uma flecha que ia em direção a sua cabeça. Foi um reflexo tão veloz que não houve tempo para uma piscadela sequer. Era Sebastian que havia acordado e numa distância de três metros, apontava uma flecha em Circê. Ele nunca ficaria olhando sem fazer nada, ainda mais se tratando de Aurora. — Deixe-a em paz, ou eu terei de matá-la. — bradou, continuando a ameaçar Circê com uma flecha bem no meio da cabeça. — O que faz você lutar por ela? Um amor? — Circê gargalhou, voltando seu olhar para Sebastian e quebrando a flecha que apanhou no primeiro disparo dele. — Ela é uma alma perdida e destinada a morrer. — disse.
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— Ela está destinada a viver um futuro comigo. Saia de perto dela, já disse. — Como desejar, nobre cavaleiro. Terá um fim digno, ao menos. — praguejando algumas palavras desconexas, Circê criou novamente uma névoa negra que afastou Aurora do que viria a seguir. Agilmente, Sebastian alongou a corda do arco nos membros superiores e atirou. A flecha foi detida por uma redoma negra que Circê criou ao redor de si, e Sebastian mal podia ver onde ela estava. Todo o salão começou a ficar negro, e logo ele não via mais onde estava. — Sebastian! — Aurora gritou esperando por uma resposta de onde ele poderia estar. — Aurora! — quase não se ouvia a voz dele. Houve um silêncio atormentador. E se ouviu um som metálico acompanhado de um grito abafado pela escuridão que pairava sobre todo o salão. Quando a névoa finalmente se desfez, Aurora viu uma cena que a deixou em choque completo. Circê havia pegado sua espada e cravado no peito de Sebastian. Ela não podia acreditar no que estava diante de seus olhos. — Nunca se sacrifique por algo que não valha a pena. — Circê disse, retirando a espada de seu peito. — Ela vale. — o som de sua voz saiu quase cortado, mas Aurora pôde ouvir. Seriam as últimas palavras daquele que a salvou inúmeras vezes e por quem estava apaixonada? Quando menos percebeu, Circê estava rodopiando pelo ar com o poderoso soco que Aurora lhe deu bem no estômago. Certamente Circê ficaria desacordada por algum tempo. Antes de Aurora poder colocá-lo em seus braços, a voz de Sebastian ecoou. — Eu tentei. — Você não vai morrer. Não depois de tudo que passamos. Vamos, estorvo, diga alguma coisa. Qualquer coisa que me faça ficar irritada com você. Por favor! — Aurora disse lacrimejando, segurando Sebastian nos braços. A roupa dele de couro fervido já estava manchada de sangue. — Eu devia proteger você. — ele tossiu. — Eu sinto muito.
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— Não, não. Me escute, eu vou fazer alguma coisa. Essa coisa de ser filha de deuses tem que ajudar de algum jeito — Aurora certamente estava em pânico por ver Sebastian naquele estado, agonizando de dor nos braços dela que já estavam com cãibras. À medida que os minutos se passavam, Sebastian começava a cuspir sangue da boca. Aurora não sabia o que fazer. Colocou Sebastian no chão e procurou por algo que pudesse ajudar de alguma forma. Então avistou o cetro branco de Opherine caído a poucos passos dela. Correu até ele e o apanhou. Aproximou-se novamente de Sebastian e tentou dizer algumas palavras parecidas com que Oph pronunciava quando invocava alguma magia do cetro. — Não está funcionando. Que droga! — praguejou. As lágrimas de desespero caíam do rosto dela. — Aurie... — Sebastian sussurrou, enquanto lentamente segurava o rosto choroso de Aurie. — Eu vou para algum lugar melhor. — Não! Você não vai a lugar algum. — Eu vou sim... — ele olhava profundamente nos olhos de Aurie e sentia que sua hora finalmente tinha chegado. — Eu estava morto antes de conhecer você, mas quando ouvi sua voz pela primeira vez eu acordei. Aurie não conseguia falar mais nada, ela também sabia que não podia mais fazer muita coisa. Ou pelo menos achava isso. Seus olhos fixavam-se nos de Sebastian como se fosse a última vez que o visse olhando para ela, com aquele rosto e jeito irritantes que aos poucos conquistou Aurie. — E você está linda com esse cabelo penteado. — em meio a tosse de sangue, conseguiu sorrir para ela. — Você só pode estar delirando... — Aurie não teve outra resposta diante daquilo. Até no meio da morte dele, Sebastian conseguia irritá-la. — Não... Eu não estou não. — sussurrou. Houve uma longa troca de olhares como se ambos quisessem guardar os últimos momentos em sua memória. — Às vezes você pega uma jangada, se aventura no mar aberto, o vento sopra do sul e as velas se inflam. E o barco ganha vida abaixo de você. E parece ser muito mais do que apenas o vento, a água e o barco. Parece ter algo a mais acontecendo. Algo que te empurra e ao mesmo 160
tempo o deixa inerte. — recitou o que Sebastian disse a ela na noite do rapto de Lutiel. — Lembra quando você me perguntou se isso fazia sentido para mim? Eu menti quando disse que você falou aquilo para a garota errada. Eu sinto exatamente o mesmo. — por fim disse. Ele apenas sorriu e cada vez mais sua respiração ficava mais lenta, até que seus olhos não encontraram mais um destino para olhar e se perderam em um completo vazio e a cabeça dele inclinou-se para o lado. — Sebastian! Não! — Aurie entrou em desespero. Ele estava morto em seus braços. O homem que ela amava. Em meio aos soluços no peito de Sebastian ela continuava a gritar “não” repetidas vezes. Certamente se culparia pelo resto de sua vida. “É culpa minha, culpa minha!” - admitia para si mesma. Um último e sofrido grito de Aurie ecoou por toda sala. Depois de o eco se esvair, o teto de pedra da sala quebrou-se em uma dezena de pedaços no ar e juntamente com o estrondo, via-se raios relampejando no céu. Foi então que Zeus apareceu em uma carruagem de raios e trovões. Emitia de si uma luz divina que se espalhava por todo o salão e até além dele. Zeus desceu de sua carruagem. Olhou para Aurie e para seus olhos que estavam cheios de lágrimas, e com uma calma no olhar falou: — Querida filha de Eos, a deusa do amanhecer, e Ares, o deus da guerra. Seu clamor foi diretamente ouvido por mim. A sua pessoa amada foi morta pela desonra de uma deusa exilada e condenada ao fracasso eterno. A sua dor se tornou a dor de seus pais que olham para você neste momento. — a voz dele soava como seus trovões. — Eles não podem conhecê-la porque ainda é um ser mortal, por isso vim em meu nome, oferecer-lhe uma proposta. — Diga, farei o que for possível. — disse Aurie. — A morte é praticamente um acontecimento irreversível, porém, há meios de detê-la. Meios esses que se justificam por sacrifícios. O ressuscitarei e o imortalizarei por misericórdia, porém há um preço. — Que preço? — Sua imortalidade. — Zeus fortemente respondeu. — Como assim? — Tornando-se imortal aos 21 anos, você, estando ao lado desta criatura... — apontou para Sebastian ainda morto. — Perderá por completo 161
sua imortalidade, e assim como ele estará fadada a morte, pois com a maldição de Circê, a entidade cósmica que selei em você se manifestará e não sabemos se para o bem ou para o mal. Aliás, ela se manifestaria com ou sem sua imortalidade, você é o que chamamos de Hospedeira Primum. Uma criatura que hospeda outra, e você possui uma força que somente um Primum possui, ou, pelo contrário, a entidade já teria se manifestado em você. — os lábios de Zeus se mexiam compulsivamente de tão rápido que falava. — Então você tem uma escolha. Deixá-lo morrer e tudo continua como está ou sacrificar essa certeza, dar a ele uma imortalidade, mas em contrapartida ter de viver longe dele para sempre, para mantê-lo a salvo, assim como você, ou seja, ficando juntos vocês morrem e separados vivem. — foi tudo que disse. E aquilo foi um tremendo golpe na mente de Aurie. Uma sensação de hesitação misturada com confiança. Seria uma oportunidade única para fazer o certo. — Que ele volte à vida como um imortal. — Aurie trilhou um novo caminho a partir daquela frase.
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Capítulo 16
Tempos de Paz sopro de uma vida transcende a certeza de uma morte prematura. Não cabia a ninguém pensar que acabaria simplesmente como começou. Que tudo que passaram seria destroçado daquele jeito. Os olhos voltaram a ter cor e o sangue tornou a fluir livremente dentro de inúmeros vasos sanguíneos. As mãos passaram a ter a mesma temperatura de antes e o toque era sentido em cada parte dos dedos. Não mais fluía morte de dentro do corpo de Sebastian. Ele havia voltado à vida. Voltado a ser de Aurora novamente. Uma única tosse fez reavivar uma certeza que, há poucos momentos, não seria possível na mente de Aurora. E quebrou um silêncio que ficou depois da ida de Zeus de volta ao Olimpo. — Sebastian? — Um sorriso em meio a uma lágrima surgiu no rosto de Aurora. — Não posso acreditar que você está vivo. — O que aconteceu? — ele quis saber. Estava tudo confuso. Os pensamentos e memórias se confundiam numa dança desgovernada dentro da mente dele, até finalmente encontrar seu lugar de origem. 163
— Isso não importa agora. Seu inútil, como você me deixa assim sem mais nem menos? — Aurora estava feliz por vê-lo bem novamente. Sabia o que tinha de cumprir daqui a algum tempo, mas isso não era importante agora. — Acho que já me tornei especialista em fazer isso com você. — Sebastian falou, colocando suas mãos no rosto de Aurora. — Eu me lembro apenas da última coisa que ouvi. “Eu sinto exatamente o mesmo” repetiu as palavras de Aurora. — Lá no fundo eu nunca duvidei disso. — afirmou, levantando-se e pondo suas mãos novamente no rosto de Aurora. — Olha bem nos meus olhos. Tudo que eu fiz até aqui, foi em razão de um bem maior. Para ver você sorrindo vale a pena chorar. Para ver você vivendo vale a pena ter de morrer. — dizia, fitando aqueles olhos azuis. — Aurie... minha Aurie, seja lá o que tiver acontecido, o que me trouxe de volta foi você. — a beijou lentamente, envolvendo-se cada vez mais no balance daquele início de paixão. Aurie não tinha mais dúvidas quanto ao que sentia por Sebastian, aquilo foi a confirmação de tudo. Uma prova. As suas cabeças juntaram-se uma na outra e ambos se olharam. Sebastian beijou a testa de Aurie e em seguida apanhou sua aljava do chão. — Para onde foi a tal deusa da noite? — Sebastian perguntou, vislumbrando toda a imensidão daquele salão. — Deve ter recuado. Não a vi mais e há algum tempo não ouço mais barulhos de criaturas se aproximando. — disse Aurora, limpando suas mãos do sangue de Sebastian. — Me deixe ajudar você. — pediu, já estendendo um pano marrom que estava no bolso de sua calça. — Você fica bonita toda manchada com meu sangue. — gargalhou. — Não me faça ter de bater em você, estorvo. — Aurie sorriu. Estava feliz com o rumo que as coisas tinham tomado, entretanto a maege estava caída desacordada e Lutiel em algum beco acorrentado. Estavam há muito tempo longe de casa. Aproximadamente dois meses. Precisavam voltar a Nerann. — Vem, vamos reanimar a maege e encontrar Lutiel. — segurou a mão de Sebastian e o levou até onde Opherine estava caída de bruços. A reanimaram com alguns tapinhas no rosto, e então a maege acordou. 164
— Vocês estão bem? Onde está aquela feiticeira ordinária? — perguntou, olhando para trás deles em busca de Circê que havia desaparecido. — Ela fugiu. — declarou Aurora. — Precisamos achar Lutiel agora, acho que sei onde ele pode estar. O grupo saiu da gigantesca sala e se encontraram novamente naquele corredor e ao fundo estavam as escadas por onde subiram. Aurora ia tocando alguns pedregulhos na parede, parecia estar procurando algo. Oph e Sebastian apenas olhavam sem entender o porquê de sua atitude. — Eu sei o que estou fazendo. Apenas me ajudem a encontrar uma pedra solta desse lado da parede. — disse, continuando a tocar aquelas pedras acinzentadas. Até que tocou em uma que parecia solta e a arrancou rapidamente. Abrindo em seguida, uma passagem que dava acesso a uma escadaria acima deles. — Como você sabia... — Sebastian tentou perguntar, um pouco surpreso. — Você viu? — tinha esquecido das habilidades de Aurie. Certamente ela havia tido uma visão. — Vi. — foi tudo que Aurie disse, subindo as escadas. — Vocês não vêm? — questionou, quando viu a demora em subirem. — Estamos logo atrás de você. — A maege anunciou, subindo logo em seguida. Era uma escadaria quase totalmente escura se não fosse por um ponto distante de uma rachadura mais acima que deixava o sol escapar e iluminava um pouco o lugar. Não se tratava de um longo percurso, tanto que quando menos perceberam já estavam diante de uma câmara ainda mais escura e ali era extinta a presença de luz. Ao que tudo indicava todas aquelas criaturas, chamadas de harpias, fugiram assim como Circê. Não havia ninguém vigiando aquele lugar. — Lutiel? — Aurie chamou pelo mago protetor. — Lutiel, você está aqui? — Quem está ai? — uma voz baixa e abatida surgiu em meio àquela escuridão. — Sou eu, Aurora. Onde você está Lutiel? — Aqui, só siga minha voz. — Lutiel pediu.
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— Deixem isso comigo. — Opherine acendeu uma luz branca forte de seu cetro. O que fez Aurie pensar, por que ela não fez isso antes? Talvez ainda quisesse jogar com o que Aurie podia fazer e deixar o trabalho de raciocínio nas mãos dela. A luz do cetro acendeu toda a câmara, levando em consideração que a mesma não era assim tão grande. O rosto de Lutiel estava com feridas e o sangue seco em seu rosto arranhado. Ele havia sido torturado cruelmente, e estava cansado depois de tanto tempo ali, preso por correntes maciças nos pulsos e nos tornozelos. — Pelos deuses de Terdállia, o que fizeram a você meu Lutiel? — Oph estava trêmula. Um dos seus quase havia morrido. — Só me tirem daqui. — Lutiel clamou por isso. Aurie apanhou as correntes em suas mãos e as arrancou com toda força que podia despejar ali. Lutiel foi aparado por Sebastian. Estava fraco e mal conseguia manter-se de pé. — Olhe para mim. Você vai ficar bem. — Aurie disse, segurando com cuidado seu rosto ferido. — Vamos sair daqui e voltar imediatamente para Nerann. — declarou Oph, já saindo da câmara. — Mas como vamos viajar de novo com Lutiel nesse estado? — Sebastian não entendia o porquê desse desprezo repentino com a saúde do mago. — Não se assuste com meu modo de tratamento. Magos de primeira casa possuem habilidades extras. — a maege colocou suas mãos no rosto de Lutiel e delas emanou uma luz branca que revestiu primeiramente o rosto dele e em seguida o corpo todo dela estava envolto dessa mesma luz branca que cintilava. E quando a luz extinguiu-se, Lutiel estava renovado, como se nenhuma tortura tivesse ocorrido a ele. Um novo mago, uma cura instantânea. — Habilidades como essa. — explicou a maege. — Que impressionante. — Sebastian deslumbrou-se e Lutiel deu um abraço apertado nele. O velho Lutiel estava de volta com aquele sorriso inconfundível e mais vivo do que nunca. — Meu amigo! Eu sabia que você ficaria bem, eu o senti todos os dias. — Aurie disse, sorrindo para ele.
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— Eu também a senti. E não perdi as esperanças de que me encontrassem vivo, nem sequer um dia. — abraçou Aurie, com um beijo no rosto depois. Era hora de ir. A jornada de volta seria bem mais tranquila. Não restava mais nada que pudessem fazer ainda naquele reino gelado. Precisavam do calor de Nerann, aquele clima agradável que os faziam se sentir vivos todos os dias. E partiram ao entardecer daquele dia. *** A jornada de volta à Nerann findou completando dois meses decorridos. Estavam mais do que exaustos, quando por fim conseguiram avistar a entrada daquele reino gigantesco e o rio que estava à sua frente em volta do castelo principal. Finalmente estavam em casa novamente. Os galopes ressoaram de longe. Os portões foram abertos e alguns moradores do reino vieram saber quem estava chegando tão apressadamente. Quando chegaram à entrada de Nerann, todos desceram dos cavalos. E Aurie correu seus olhos no meio da multidão para tentar achar os cabelos ruivos de Lunno, até que os encontrou, vindo rapidamente em sua direção com um semblante estranho, porém ela abriu um sorriso e estendeu os braços pedindo por um abraço acalentador de seu irmão. — Sua ordinária! — Lunno bufou, dando um tapa forte no rosto de Aurora que quase caiu no chão, não fosse por Sebastian que a aparou. — Como você sai e fica fora todo esse tempo? — sua respiração ficava ofegante de raiva. — Você pensa que é quem para bater nela assim? — Sebastian intrometeu-se. Não podia deixar aquilo barato. — Enlouqueceu? — Eu sou irmão dela. Cale sua boca, inútil. Ela vai me ouvir. — berrou. — Eu sou seu irmão mais velho, eu preciso cuidar de você e você vai e se arrisca numa aventura miserável em busca de um mago que mal conhece. E eu? Você não pensou em nenhum momento em como eu ficaria, sabendo que a minha irmãzinha poderia estar com frio, com sede, com fome e correndo perigo. Responde Aurora! — pronunciou ainda mais alto, para que todos vissem a vergonha na face dela. 167
Aurora levantou-se. — Eu... — Sebastian tentou se pronunciar, mas Aurora falou primeiro. — É problema meu. — disse, afastando-o e indo em direção ao seu irmão. Apanhou o pulso de Lunno e o torceu até que o irmão pedisse para parar. —Nunca mais ouse levantar a mão para mim. — ajeitou sua roupa e os cabelos e se perdeu em meio à multidão. Lunno apenas virou-se ignorando todos os olhares acusadores que havia recebido e foi atrás de Aurora. Sebastian não teve tempo de ir atrás, pois logo Maria estava ali, o enchendo de abraços apertados, afinal, há tempos não se viam. e o medo de nunca mais poder ver seu irmão, assombrou Maria todos os dias. — Sabia que você ia voltar, Sebastian. Não me deixe mais tão preocupada assim, você é tudo que eu tenho agora. — Maria disse, abraçando-o mais uma vez, agora ainda mais forte. — Cuidaram bem de você? — quis saber. Ela apenas confirmou com a cabeça. Estava contente por vê-lo novamente e jamais tentaria esconder isso, entretanto, Sebastian estava preocupado depois da cena de vergonha que Lunno causou a Aurie. Enquanto isso, Lunno corria atrás de sua irmã que tinha ido em direção ao aposento dela. Ele estava arrependido, sabia que havia deixado a raiva o dominar no momento que a viu e a saudade ficou em segundo plano. Aurie estava perto da sua cama arrumando alguns pertences e roupas que havia levado para a jornada que tinha feito. — Lunno eu... — Aurora começou a falar, quando viu seu irmão entrar no quarto. — Aurora, por favor, antes que você diga qualquer coisa eu peço que você me escute. — ele falou, gesticulando suas mãos e arqueando as sobrancelhas. — Eu não conseguiria nem ir dormir hoje sem vir aqui para falar com você. Mesmo correndo o risco de ser enxotado por você daqui, como eu sei que mereço depois da cena ridícula que fiz na frente de todos agora pouco. Aquela covardia que fiz com você. — sua expressão era de um arrependimento profundo. Ele amava Aurora e ela sabia que ele faria qualquer coisa por ela, assim como também poderia prever uma reação daquele tipo depois de ficar tanto tempo sem dar notícias. — Agredindo 168
você como um animal no meio daquela multidão. Será que a minha irmãzinha é capaz de me perdoar? — estendeu suas duas mãos. Aurora sabia que parte de tudo aquilo foi culpa dela. Não avisar para o irmão onde ia foi um grande erro, segundo os pensamentos dela. Ela olhou-o e alternou seu olhar nele e no chão, enquanto examinava exatamente o que poderia fazer diante daquele pedido. Então, Aurora estendeu suas mãos também e colocou-as sobre as do irmão. Olhando-o sem sorrir. — Vou entender esse gesto como um sim. — ele sorriu. — Eu estou perdoado mesmo? — Mas é claro que sim, meu irmão. — Aurora o deu um abraço de perdão e Lunno pôde sentir isso na temperatura de seu corpo. — Irmãzinha, você é muito melhor do que eu sabia? Por que eu vou demorar muito para me desculpar pela vergonha que te fiz passar. — disse, mudando seu semblante para uma seriedade. — Achar que você merecia uma lição na frente de todos, logo você a minha única família, meu único laço de amor verdadeiro. Só podia estar delirando. Você não merecia isso. — mais uma vez tentou se explicar em um tom que passasse segurança aos ouvidos da irmã. — Que bom. Que bom Lunno que você está pensando assim. — por mais unidos que fossem essa aliança estava um pouco abalada, mas nada que a fizesse desacreditar no amor e honra do irmão. — Ótimo! — Lunno disse. — Me conta como foi essa tal viagem de resgate do mago Lutiel? Foram até Gallia, certo? — Sim. Foram longos e exaustivos dias. Tive encontros e provações ali que me botaram em cheque sobre quem realmente sou e o que devo fazer. — disse, sentando-se na cama junto as coisas da viagem. — Mas já passou e estou aqui de volta. Lunno começou a rir. — O que foi? — Aurora perguntou. Seu cérebro poupava os entendimentos com a risada dele. — Eu estava aqui lembrando da época que a gente inventava de fazer exploração na floresta Izo entre as represas e árvores sentinela, para caçar raposas. — Eram coiotes. — Aurora corrigiu Lunno, sorrindo. 169
— Isso, coiotes. A gente quase virou um belo jantar para eles, anoiteceu tão rápido que nem nos demos conta e logo começou a chover. E caímos naquela represa. E você escolheu o pior momento para dizer que não sabia nadar. Olha, irmãzinha eu não sei como é que meu braço conseguiu segurar você por tanto tempo, até aquele bendito morador de Neodin chegar. — olhava-a a todo o momento sorrindo ao lembrar-se desses momentos. — Sim, foi uma aventura e tanto. — também conseguiu trazer à memória aqueles momentos. — Nossa, eu tinha esquecido por completo essa história. — É, irmãzinha, eu já salvei a sua vida. Está me devendo uma, hein? — riu, acariciando as mãos da irmã. — E eu devo minhas desculpas por não ter dito a você que iria para Gallia... — tentou continuar. — Esqueça. Já passou. — a lembrou. — Mas vamos, o rei Elin também esperava ansioso pela volta de vocês. Ele com certeza dará uma grande festa. — Mal posso esperar. — ironizou. Nenhum dos dois gostava muito de festas, mas ali era uma tradição muito forte quando um evento importante ocorria. E sendo habitantes daquele lugar agora, não poderia fazer tal desfeita. *** O dia foi longo. E o povo de Nerann havia organizado uma enorme festa para receber de volta seus novos habitantes e os magos da casta Mantra, que haviam passado quatro meses longe. A festa estava linda como sempre e os anúncios do rei não mudaram em quase nada, quando falou em honra, condecorou cada um dos que foram à Gallia, pela coragem em ter saído de Nerann para resgatar um dos deles. A comida, músicas e danças eram fartas ali. Havia um cantor de sinfonias que cantava sobre as várias cidades pela qual passou, até chegar à Nerann, por onde ficou. Cantou uma canção sobre uma folha que se perdeu de suas irmãs quando se desprendeu da copa de uma árvore sentinela que ficava perto do reino de Cordonne. Ele tinha cabelos negros e olhos cinza. 170
Um verdadeiro artista de Nerann, como nunca ninguém viu. As canções que ele entoava ao som de sua harpa embalavam o som ambiente do salão, enquanto o povo se deliciava com o farto banquete que fora servido. Maria conversava com Lunno, enquanto Aurora estava admirando a festa em honra deles, por mais que não gostasse, foi um gesto gentil da parte de todos. — Será que eu posso roubar você de mais uma festa? — Sebastian chegou por trás, dando um beijo no rosto de Aurora. — Cachoeira? — sugeriu. Claro que seria o primeiro lugar aonde iriam, afinal, às beiras de cachoeiras eram onde ela mais lembrava dele. — Você sabe que sim. — disse Sebastian, pegando-a suavemente pelas mãos, levando-a para a cachoeira. Ainda não havia anoitecido. O céu estava alaranjado com o sol prestes a se pôr, e a cachoeira estava lá do mesmo jeito que eles viram da última vez. Deslumbrante e com a água tão translúcida que podiam ver seus rostos refletidos nela. Quando chegaram, Aurora soltou suas mãos de Sebastian e sentou-se na grama, arrumando seus cabelos avermelhados que caiam em suas costas. — Acho que estar aqui, não traz lembranças agradáveis a você. — afirmou Aurora, sorrindo um pouco acanhada por lembrar-se da rejeição que deu em Sebastian. — Isso não importa agora. Só sei da existência de um monstro do sorriso que anda ameaçando essas bandas. — ameaçou, dando um ar de mistério na voz. — Monstro do sorriso? Sebastian confirmou com a cabeça. — Esse monstro. — disse, fazendo cócegas na barriga de Aurora, que não se aguentou de rir e gritava para ele parar. Ele se sentia feliz, vendoa sorrir daquele jeito espontâneo. Ainda mais ao lado dele. — Seu louco. — Aurora, inclinou-se para o lado, e deu um soco de leve no braço de Sebastian. — Sabe Aurie, é compreensível como todos os homens daqui querem tê-la por perto. Você tem uma força incrível. — sorriu, arqueando as sobrancelhas e alisando seu braço dolorido. — Além dos olhos mais
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belos que já vi Senhorita. É muito interessante. Suas roupas enfeitam seu corpo e puxam meus olhos. — falava com ironia ao tratá-la por “senhorita”. — Você também é interessante com seu jeito confuso. — estendeu suavemente seu dedo indicador no nariz de Sebastian. — Confuso? Bem, acho que fico confuso quando meus olhos permanecem fixos nos seus. — ele afirmou, olhando diretamente para o azul dos olhos de Aurie, em seguida tomando seu rosto em uma de suas mãos. — Me conte mais sobre sua habilidade como arqueiro, belo moço. — sorriu, retirando com uma delicadeza de assustar, a mão de Sebastian de seu rosto. — Minha habilidade é uma espécie de... quer saber? Nesse fim de tarde o que eu faço não tem importância. Quero só aproveitar esses raros momentos de paz que temos. — entrelaçou suas mãos nas dela e colocou-a em seu colo. — Sempre esqueço que essa paz existe. — Aurie disse, olhando para o sol que estava se esvaindo aos poucos e perdendo seu brilho no horizonte. — Nunca consegui me decidir se Nerann é mais bela de dia ou de noite com todas essas festas. — Não podemos escolher. Há uma impressão a cada instante. Às vezes penso se alguém poderia criar um livro, pintura, sinfonia ou escultura que possa rivalizar com este reino. — se havia um lugar que tinha conquistado Sebastian, esse lugar era Nerann. — Gallia, talvez. — Aurie sugeriu, sendo abraçada ainda por trás, enquanto estavam sentados. — Ah, não é possível. Olhe em volta, cada viela, escultura, rio, possui uma forma de amor peculiar que a deusa regente tem. Que a sua mãe tem. — lembrou-a. No exato momento Aurie pegou-se pensando em como seria se pudesse conhecer a mãe e imaginou como seria sua feição, como se vestia, do que gostava de fazer. Grande parte das belezas de Nerann provinha de Eos, a deusa regente. A mãe que Circê nunca deixou Aurie conhecer. E Sebastian continuou falando. — E pensar que nesta dimensão cheia de mistérios, guerras e criaturas más, existe Nerann. E todas essas luzes. Não sei quanto a júpiter 172
ou netuno, mas desde que chegamos aqui, exatamente aqui, vemos estas luzes, as cachoeiras, gente bebendo, dançando. Talvez Nerann seja a parte boa do que sobrou de Terdállia. — Você é um completo poeta, estorvo. — nunca ouviu tantas palavras bonitas sobre um reino como ouvira de Sebastian, e aquilo só fez Aurie se apaixonar cada vez mais pelos pequenos gestos que emanavam dele. Virou-se para ele e continuou olhando para seu rosto. — Gentileza sua, mas não chamaria minha tagarelice de poesia. Se eu paro de falar é provável que o azul dos seus olhos me transporte ao paraíso, de tão fixo que os meus ficarão nele. Você está linda. — sorriu em meio a uma coçada bem canalha na cabeça. Era nítido que estava morrendo de vergonha. — Obrigada. — de repente, seus olhos ficaram vazios e se não fosse pelo azul natural, estariam brancos de nada. — Seus olhos estão tristes. Seus lábios mais rosados e maiores. É uma lágrima. E nela, na sua lágrima, um outro rosto. Um rosto de amargura. O que houve? — ele era esperto, e quando se tratava de perceber as emoções de Aurie, ele ganhava sempre o primeiro lugar. — É... realmente estou triste, mas é que depois de tudo que passamos, sentir paz virou sinônimo de lembrar nossos povos massacrados pelo exército de Circê e eu... — certamente ia se culpar novamente, e Sebastian estava cansado disso. — Não! — ele disse, colocando seu dedo indicador sobre os lábios de Aurie. — Xiu, não fale nada. Só ouça o som da noite que já caiu. — voltou seus olhos para os dela. — Sua voz é tão forte e você é tão determinada. Não seja derrotista. — Estou tentando. — ela afirmou, franzindo a testa em sinal de tristeza. — Eu sei que está. — ele disse, levantando-se num espasmo de segundo. — Me concede a honra desta dança? — estendeu sua mão para Aurie. — Sem música? — perguntou, tentando conter o riso. Sebastian era mais maluco do que ela imaginava. Da cachoeira onde estavam, não se podia ouvir quase nenhum som que vinha do salão principal onde a festa estava acontecendo. 173
— Me concede ou não? — sorriu, e os olhos deles brilhavam ao encontro da face de Aurie. — Tudo bem. — sorriu de volta, pegando as mãos dele. A trilha da dança era o som noturno. Grunhidos ao fundo, vento soprando do sul ao encontro dos galhos das árvores que passavam a ficar inquietas lá no alto. E o som de água caindo do ponto mais alto da torre real de Nerann. Enquanto os corpos de Aurie e Sebastian, dançavam embalados pelo amor que fluía deles. — Não é incrível? Na primeira vez que você falou do que sentia por mim, estávamos aqui neste mesmo lugar. Naquele dia eu não sabia o que sentia por você e aqui estamos. — Aurie nunca havia sentido seu coração bater daquela maneira. Sempre se considerou forte o bastante para nunca se deixar levar por esse tipo de emoção, mas com Sebastian sempre foi diferente, desde o princípio. — Cachoeiras nos perseguem. — ela sorriu, continuando a olhar para azul dos olhos de Sebastian, envolvendo seus braços no pescoço dele. — Perseguição boa, esta. — ele rebateu no melhor dos sorrisos, beijando Aurie e sentindo cada faísca de amor que saía de ambos os corpos. — A-amo você... — Sebastian sussurrou entre o sorriso e o beijo. — Eu não sei por que me sinto assim. — ela respirou profundamente depois do longo beijo. — Como se não pudesse acreditar na minha própria sorte em ter você aqui. — Aurie falou baixinho, quase em tom de sussurro também, entrelaçando suas mãos nas dele. — No momento sei exatamente o que pensar. — houve uma pequena pausa. — Em você. — ele completou, inclinando-se sobre ela e a beijando novamente. Certamente estavam todos comemorando dentro do salão. Exceto uma pessoa. — Aurora, eu... — Lunno surgiu e visualizou nitidamente a cena que estava acontecendo a sua frente. E tossiu para que pudessem notá-lo. — Irmão... — provavelmente Aurie sabia que ele ficaria surpreso com aquilo. — Estão esperando por você e o seu “amiguinho” na festa. — declarou, dando as costas para eles. — Volta aqui, me deixa explicar. — pediu Aurie. 174
— Irmãzinha, cada escolha que fazemos, decepcionamos alguém. Só tome cuidado para não decepcionar a pessoa errada. — Lunno finalizou sua fala e foi embora. Logo um clima ruim instaurou-se no momento perfeito do casal. — O que acha que ele quis dizer com isso? — Sebastian perguntou. — Ele ficou nervoso. Não se preocupe vou falar com ele agora. — seriamente olhou para seu estorvo. — Você fica bem sem mim? — Sem um último beijo da noite, talvez eu fique bem triste. — sorriu acanhado. Aurie o segurou na nuca e beijo-o num tempo razoável. O suficiente para ele se lembrar a noite toda. E rapidamente caminhou por onde o irmão tinha saído a poucos minutos. Ele estava andando bem lentamente como se estivesse pensativo e buscasse respostas na noite, olhando para o céu. E então Aurie conseguiu alcança-lo. — Espera! — ela pediu, segurando o braço de seu irmão. — Eu já falei o que tinha de ser falado, Aurora. — ele rebateu. — Lembra-se de quando éramos crianças? Que você sempre me defendia dos idiotas de Neodin? E sempre me dizia que eu era a única pessoa que você amava e que não conseguiria sentir isso por ninguém? — indagou, fazendo-o lembrar de suas promessas e atitudes ainda criança para com ela. — Lembro. — Eu nunca disse o mesmo que você. Ao menos acreditava que só quem eu podia amar nesse mundo era meu irmão que sempre cuidou de mim. Mas hoje eu vejo que não consiste apenas nisso. Eu amo Sebastian de um jeito diferente... Será que você é capaz de entender? — Porque logo ele? — questionou. — Ele que sempre me vencia nas competições em Dondarium. Sempre me fez parecer um completo inútil perto dos outros guerreiros. Me roubava tudo. Prêmios, espadas, honra. E agora, ele também me roubou você. — Lunno sempre deixou claro que tinha ciúmes de sua irmã. E ver aquilo tudo acontecendo o deixou perplexo. — Você não quer a minha felicidade? — É claro que quero.
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— Ele me faz sentir feliz. Isso é o que importa, Lunno. — Aurie tentava acalmar os pensamentos dele com suas palavras. — Tudo bem, eu confio em você. — respirou fundo, mordiscando os lábios inferiores. — Se ele faz você feliz, eu não tenho porque ficar assim. Vem cá me dá um abraço. — estendeu seus braços, enquanto o rosto de Aurie se cobria de surpresa. — Agora vamos, serão longos dias daqui em diante. Lembre-se que Circê ainda está à solta e não podemos baixar a guarda. — Vamos. — agarrou-se na nuca de Lunno e foram para os seus respectivos aposentos. Algumas poucas semanas se passaram. O esplendor de Nerann continuava o mesmo. E alguns poucos Elcatrazes voavam pelo céu, anunciando uma nova alvorada todos os dias. Aurie se perdia em meio a visões turvas, onde via seres disformes e cobertos de sangue ao redor da boca. Seus dentes cerravam-se e ela podia sentir um cheiro fétido do hálito deles. Criaturas negras curvadas que não possuíam orelhas e andavam como sapos a procura de insetos para sobreviver. Aurie não sabia, mas estas visões começariam a perseguir seus pensamentos por longos anos que estavam por vir.
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Capítulo 17
A Marca da Inveja uando uma encruzilhada for sua última opção, siga sua intuição e instintos. Eles sempre camuflam as melhores intenções. Se transformam em vozes que gemem em nossas cabeças e podem nos dizer quem é amigo e quem é inimigo. Quem segurar pela mão e quem manter uma distância considerável. Entretanto, seguidamente nos distraímos pelo elevado medo, dúvidas atormentadoras e a nossa própria tolice que negamos a ouvir. Caímos na desgraça e descemos ainda mais profundo até chocarmos contra o chão.” *** O sol destacava-se sobre o céu azulado daquela manhã limpa em Nerann. O reino estava normal. Pessoas circulando pelos pátios e trocando suas mercadorias, sons de galopes e relinche dentro dos estábulos e um emaranhado de crianças correndo descalças pelas ruas de pedras cinza. No lado norte interno do reino estendiam-se três torres medianas, duas delas destinadas apenas às acomodações dos Bellator e dos Addae. A outra era vazia, e sempre foi assim desde que se lembravam. Na torre cinzenta 177
localizada no meio, moravam Aurora e Lunno. E a mesma luz do sol que cobria boa parte do reino, avançou, invadindo as frestas de uma janela de madeira marrom. Era o quarto de Lunno. Um lugar cercado por livros que conseguia no acervo de uma biblioteca perto da torre real. Poucas pessoas sabiam, mas Lunno detinha uma virtude que poucos possuíam: erudição. Sua sede por querer saber as coisas nos seus mínimos detalhes era grande, porém, ele tinha certeza de que se isso fosse claramente exposto, estaria ameaçado. Não sabia como, mas estaria. — Hoje o dia vai ser ótimo! — afirmou, espreguiçando-se e rapidamente banhando-se. Em seguida apanhou um casaco de couro fervido marrom-escuro e vestiu por cima de uma camiseta amarrotada cinza. Seus olhos ficaram ainda mais azuis quando abriu a janela e se deparou com aquele sol espetacular. Lunno parecia estar certo de que o dia seria ótimo. Ele desceu e ajuntou-se aos outros no café da manhã, no salão comum. Este era bem menor se comparado ao salão principal. Sua arquitetura cheirava a nova, afinal, havia sido construído há dois anos pelos próprios moradores de Nerann e as colunas robustas davam um toque ainda mais deslumbrante ao lugar. Haviam mesas espalhadas por todo salão. Gente comendo e conversando sobre seus afazeres e de como era bom se sentir seguro em Nerann. Aurora, Maria e Sebastian já estavam sentados em uma das mesas. Seus lábios ostentavam um sorriso tão largo que quase não lhes cabia na boca. Pareciam felizes, mas ao contrário de como normalmente estava, Lunno acordou feliz e de muito bom humor. Lunno foi até o balcão onde serviam a comida e pegou dois pedaços de pão fresco e leite de Elcatraz por sinal o leite mais cobiçado e delicioso de Terdállia - e em seguida sentou-se ao lado de Maria e ficou de frente para Sebastian. — Bom dia amigos! — Lunno disse, pedindo com a cabeça para Maria ceder um pouco mais de espaço. — Bom dia! — todos responderam. Certamente surpresos, pois isso não era normal. Não, vindo do humor instável de Lunno. — Quando eu acordo disposto e feliz, o que eu faço? — sua pergunta claramente foi direcionada para a irmã. 178
— Caçar? — Aurora sugeriu. — Isso mesmo. Mas ultimamente caçar sozinho tem me divertido menos. Ai eu pensei que, talvez, pudesse convidar algumas pessoas. Enquanto vinha para cá, esbarrei com o príncipe Alphas e o convidei para ir e ele se mostrou bem animado para seguirmos viagem até a floresta que chamam de Sete. — explicou Lunno, não tocando em nenhum pedaço de pão que havia pegado. — Sete? — Aurora quis saber, afinal nunca tinha ouvido falar de tal floresta e nem sabia onde ficava. — Sim, é uma floresta que fica ao sul, entrando pelo Caminho dos Cravos e seguindo em frente, irão encontrar uma trilha que dará acesso a essa floresta. Dizem que há criaturas enormes por lá e que é uma floresta da costa. Fica perto do Mar Cinza. Sim, era muita informação para a cabeça de todos ali. E como Lunno sabia de tudo isso? Não sabiam, apenas continuavam a ouvir o que ele estava tão animado em falar. — E caminhando até vocês, tive uma ideia. — disse sorridente. — Sebastian, por que não vem junto comigo e o príncipe? — sugeriu, olhando para Sebastian, que assustou-se com o convite. Houve uma troca de olhares entre Aurora e Sebastian e então ele falou: — Não vejo problema algum. — Que ótimo! Preciso conhecer mais meu cunhado. — gargalhou, dando uma tapinha no braço de Sebastian e pegando o pedaço de pão para, enfim, comer. — Daqui há duas horas partiremos, arrume as suas coisas. — anunciou. — Tudo bem. — Sebastian consentiu. Lunno saiu da mesa e despediu-se de todos dizendo que ia arrumar as suas coisas para a caçada de sabe lá o quê. — Tudo bem para você? — Aurora quis saber, afinal, eles raramente se davam bem. Ainda mais depois que Lunno soube do namoro deles dois. — Não se preocupe. Ele me deu uma oportunidade e eu vou aproveitar. Já está mais do que na hora de consertarmos nossos erros. — Sebastian afirmou. 179
— Só tome cuidado, faz tempo que você não caça. — surgiu a voz de Maria advertindo-o. — Pode estar enferrujado, aliás, muito enferrujado. — caçoou do irmão. — Concordo com ela. — Aurora completou a gargalhada. — Se acham engraçadas, não é? Pois veremos quando trouxer a maior criatura que este reino já viu. Tão grande que servirá de banquete para todo o povo. — encheu seu ego e sorriu. Logo depois do alimento matutino, Sebastian e Aurora foram caminhar um pouco no lugar onde se encontravam com mais frequência. A cachoeira. Lá sentaram, gargalharam, beijaram-se e trocavam carícias apaixonados. — Você ficou um pouco apreensiva quando falei que aceitava ir caçar com ele. Algum problema que não quis me contar? — novamente Sebastian deduziu os sentimentos de Aurora. — Eu estou com um pressentimento ruim. Não sei o que é, mas não queria que você fosse. — houve uma nota de tristeza na voz dela. — Quantos dias vou ficar sem ver você? — São só três dias, Lunno me contou uma vez sobre essa floresta. Ela não fica tão longe daqui. — Você bem que podia recusar, dizendo que está com uma dor de barriga ou algo do tipo. — sua apreensão falava mais alto do que qualquer outra coisa agora. — Calma, daqui a três dias eu estou de volta e a gente não se desgruda mais. Prometo — Sebastian sorriu. — Só acho desnecessário, logo agora que temos tanto para ajudar por aqui. — tentou continuar dando desculpas. — Que bonitinho ela com ciúme. Está com ciúme é? — ele disse, começando a fazer cócegas na barriga de Aurora. — Para, para. Não estou com ciúme de nada. — disse, ainda gargalhando em uma frequência menor do que a segundos atrás. — Vem cá. Você tem alguma noção de como você fica linda brava? — Sebastian falou segurando o queixo de Aurora, e em seguida completando com dois beijos pouco demorados. — É simples, eu vou caçar com seu irmão e o príncipe e de quebra vou conhecer Lunno um pouco
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mais e acabar com o clima ruim que existe entre nós. E depois eu volto para ser só seu. Houve uma pausa bem longa e uma troca de olhares intensa entre os dois. Então Aurora sorriu e disse: — Fica assim parado. Deixe-me olhar para você. — sorriu mais uma vez. — Você está tão lindo. Está parecendo uma miragem. — pausou sua fala por alguns segundos e mordiscou os lábios inferiores. — Quero guardar você assim na memória. — Não precisa me guardar na memória. Você vai me ver todos os dias da sua vida. Eu vou e volto logo. — segurou o rosto de Aurora e acariciou bem suavemente. — E eu vou esperar por você aqui, no lugar onde a gente construiu um laço indestrutível. O nosso refúgio. — seu jeito de durona, se desfazia na presença dele e dava espaço para um lado de Aurora delicado que nem mesmo ela sabia que tinha. — Onde a gente conseguiu se amar e soubemos pela primeira vez o que sentíamos um pelo outro. — Sebastian disse beijando-a em seguida. — Eu chego e venho direto para cá. Aurora ficou um bom tempo olhando para a água caindo do alto da torre de encontro com o rio cristalino. Não conseguia esconder que algo estava errado. Não era somente apreensão. Ela não queria ficar longe de Sebastian, pois sabia que no seu vigésimo primeiro aniversário, esse amor precisaria seguir rumos opostos e somente ela tinha conhecimento disso por enquanto. No tempo certo ela diria toda a verdade para Sebastian. E seu semblante continuava desgostoso. — O que você tem Aurie? — a voz de Sebastian era calma e por um momento dissipava a tensão de Aurie. — Poxa, já ficamos tanto tempo juntos. Serão apenas três dias. — Acho que meu coração chegou ao seu limite. Não quero sentir medo de perder as pessoas que amo. Vão ser três dias difíceis. — subitamente Aurie começou a chorar. Era a primeira vez que Sebastian a via daquele jeito. — Calma, meu amor. — disse, pegando-a pelo rosto com as duas mãos e beijando-a. — Está tudo bem. — tentou acalmá-la. — Vamos fazer o seguinte. Assim que eu voltar dessa caçada e eu finalmente me entender 181
com o seu irmão, eu nunca mais vou sair de perto de você, nunca mais. — afirmou, enquanto via uma lágrima caindo do rosto de Aurie. Aurie não conseguiu falar nada. — Você é quem me mantém aqui ainda. Me espere. — pediu Sebastian. Aurie consentiu com a cabeça, ainda com os olhos lacrimejantes. — Eu esperei por você a vida toda. E mesmo você sendo um completo estorvo, eu vou esperar você para sempre. — Amo tanto você. — Sebastian sussurrou, inclinando-se para mais um beijo. Foram beijos chorosos e eles tinham certeza disso. E ao final abraçaram-se, e foi nesse momento que Aurie sentiu-se protegida mais uma vez. — Então, está marcado. Eu chego e venho direto para cá e nós nunca mais nos separamos. — ele sorriu e os dentes brilharam na luz do sol. — Combinado, arqueiro Sebastian. — Aurie sorriu de volta, gesticulando com as mãos um disparo com um arco e uma flecha imaginários. — Tudo bem. Vamos então senhorita Aurie, que uma caminhada longa me espera agora. Saíram da beira do seu refúgio particular e foram para o lado leste do reino, onde se encontrava o portão de entrada e saída de Nerann. O reino não tinha muitas normas quanto à saída de seus habitantes, contanto que avisassem com antecedência. Já no arco de entrada do reino, Lunno e Maria esperavam junto ao príncipe Alphas a chegada de Sebastian. — O casal já se despediu? — Lunno perguntou, passando sua mão na lâmina afiada que portava em uma das mãos. — Já. — Aurie disse. — Tomem cuidado. — alertou abraçando Lunno e em seguida beijando sua testa. Maria estava com a cara fechada e quase soltando fogo pelas ventas. — Tudo bem, tudo bem. Não é uma jornada, é só uma caçada e eu volto logo, minha irmã. — Sebastian afirmava, tentando passar segurança para ela. 182
— Meu aniversário de dezoito anos é daqui a três dias. Você nunca deixou de estar em nenhum deles. — ela o lembrou. — E nunca vou quebrar isso. Vou estar aqui. — também beijou a testa da irmã e apanhou seus pertences que ela havia trazido. — Não temos o dia todo, vamos antes que anoiteça. — pela primeira vez ouviam príncipe Alphas falando normalmente. Sua voz era grave para a idade dele. Logo após as despedidas, os rapazes corajosos subiram em seus garanhões marrons e em galopes foram em busca de uma aventura sadia na floresta Sete. A partir dali o destino seria incerto para alguns deles. *** Seguiram para o sul, onde o sol era mais vivo e cintilava uma luz que lhes dava vida. Em galopes ainda, seguiram para o Caminho dos Cravos, uma parte da estrada cercada por grandes dunas de gramas e com um verde intenso. E logo podiam ver a tal floresta Sete. À primeira vista não era uma floresta muito amistosa. Galhos tortuosos se estendiam pelas árvores sentinelas, não haviam folhas, apenas um vento que colidia com estes galhos e os balançavam até que se quebrassem e caíssem no chão de terra escura. Já estava próximo de anoitecer e uma névoa branca invadia o espaço aos poucos, vinda pelos lados da floresta. O caminho não era totalmente livre, existiam raízes imensas e finas que boqueavam a passagem. — Eu vou na frente para ir liberando o caminho. — Lunno afirmou, olhando para trás e virando-se em seguida. “Hoje o dia vai ser ótimo!” - ele lembrou-se do que havia dito logo ao acordar. E de fato para ele seria. Ao virar-se seus olhos escureceram totalmente. Uma treva macabra envolveu os olhos de Lunno por completo como das outras vezes, enquanto ele prosseguia esboçando um sorriso labial, se afastando ainda mais de Sebastian e de Alphas. — Então você é Sebastian? — o príncipe perguntou, enquanto caminhavam. A essa altura Lunno já havia sumido da vista deles. — Sim, príncipe. — respondeu.
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— O arqueiro que já arriscou sua própria vida em defesa de uma bela donzela. Você deve amar bastante essa garota não é? — Alphas questionava Sebastian com um semblante de felicidade. — Amo e me arriscaria quantas vezes fossem necessárias. — afirmou Sebastian. — Não me arriscaria por uma moça da qual todos os homens de Nerann já usufruíram. A carne nova dela já serviu para salvar muitos casamentos fadados ao fracasso no nosso reino. — gargalhou. — Quero me tornar homem com ela, já que dizem que ela é tão boa assim. Tenho certa pena de você, já que você é motivo de chacota por todos ali, acho que só você não percebeu que aqueles olhos azuis... — ousou continuar aquelas blasfêmias sem sentido. — Cale a boca moleque infeliz, você não sabe o que fala. — gritou, empurrando ele contra um tronco de árvore e colocando seu braço contra a garganta do príncipe. — Estavam todos certos. Você é um tolo por acreditar que aquela prostituta só tem olhos para você. — mais uma vez soltou uma gargalhada maléfica que levou Sebastian a um estado imenso de fúria. “O que esse garoto pensa que está falando?” - Sebastian questionava-se. — Cale a boca, já disse! — ele praguejou, dando um soco forte em seu rosto, arrancando sangue da boca de Alphas. O príncipe continuava sorrindo, encarando e zombando de Sebastian. E então, num movimento rápido ele conseguiu se soltar dos braços dele e desembainhou sua espada. — Lute pela honra daquela mulher da vida. — o príncipe sorriu e seus dentes estavam sujos por sangue. Alphas avançou sobre Sebastian e uma luta começou. Sebastian tentava esquivar-se pelos lados e abaixando-se. Ele tinha um ótimo reflexo e o príncipe não sabia manejar tão bem aquela espada. Sebastian estava desarmado e a única chance de ele escapar seria pegar a espada do príncipe. E os golpes eram contínuos. Vez ou outra Sebastian conseguia dar socos e pontapés em Alphas, mas isso não o parava completamente. Foi quando em súbito movimento dos corpos de ambos, seus olhos encontraram-se e um som de aço rasgando o peito predominou na floresta.
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Aves voaram dos galhos sombrios e um silêncio tomou conta do lugar onde estavam. Ali seria o fim de um deles. — Mas que diabos está acontecendo aqui? — Lunno indagou, quase gritando depois de ser atraído de volta pelos berros. Sebastian olhou para trás e tirou a espada de dentro do peito do príncipe. Alphas, abriu a boca e gesticulou-a querendo falar algo, porém, não conseguiu. Caindo no chão logo em seguida. Alphas estava morto, atingido pela sua própria espada, caído no chão da desgraça que ele mesmo causou e Sebastian ficou parado, alternando seu olhar para o corpo, suas mãos e a reação de Lunno. — Eu... — Sebastian quase não conseguia falar. Suas mãos estavam ensanguentadas e trêmulas e seus olhos não pararam de fitar o sangue manchando suas mãos e roupas. — Sebastian, pelos deuses, me diz o que aconteceu? — Lunno fingia estar desacreditado com o que ele mesmo causou desde o início. “Hoje o dia vai ser ótimo!”. — Ele começou a desrespeitar Aurie e eu perdi a cabeça. Foi um acidente, eu juro! — ele afirmava, tremendo e um tanto desesperado. — Se você elimina uma ameaça não há vergonha alguma em gostar disso. O cheiro de sangue escorrendo e um corpo caído no chão. Sabe o que isso significa? — ele continuou um discurso. — Que você está vivo. Que você venceu. Ou você matava ou morria. — E agora, o que eu vou fazer? — Sebastian dizia trêmulo ainda, manchando até seu cabelo de sangue. — Calma. Se você voltar agora comigo, irão mandar matar você na hora. Se esconda em algum lugar seguro, eu vou na frente e tento explicar tudo o que aconteceu. Eles verão a verdade. — Lunno disse, chegando perto de Sebastian e o abraçando forte. — Vai ficar tudo bem. Vê esse caminho? — apontou para o lado esquerdo. — Ele leva para a praia do mar Cinza, lá sempre há um barco velho abandonado. Use-o para fugir até uma ilha que há bem na sua frente. Nunca o procurarão lá. Quando tudo estiver resolvido eu volto para te buscar. Agora vá! E não olhe para trás. — Mas... e Aurie, e minha irmã? — Sebastian perguntou aflito.
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— Eu cuido de tudo, confie em mim. Apenas vá, a essa altura a maege já deve saber o que aconteceu e é questão de tempo até a guarda real de Nerann vir até aqui. Sebastian estava em uma encruzilhada. Envolto de um elevado medo e dúvidas que atormentaram sua cabeça. Decidiu confiar em Lunno, arrumou sua aljava e correu até o caminho que ele indicou. Uma tolice que custou mais do que ele imaginava. O barco estava na praia assim como Lunno havia dito. Feito de uma madeira praticamente podre e caindo aos pedaços, mas, era a única chance de fugir. A ilha estava na sua frente, e tudo que precisava era chegar lá. Entrou no barco velho e começou a remar. Remar para sua tola salvação, se perdendo na névoa do mar Cinza. Naquele momento ele trocou seu orgulho por desgraça. Seu amor por ódio. E ainda sim, fugiu estampando um sorriso acanhado no rosto. Como Lunno havia dito, em pouco tempo todos já saberiam o que havia acontecido. Voltando para o reino, ele explicou em sua versão o que levou Sebastian a cometer tal ato. — Eu não sei o que aconteceu. Ele estava tomado pelo ciúme e atacou. — era tudo que ele afirmava aos ouvidos da corte. — Assassino, assassino! — berravam as pessoas que estavam ao redor, dentro do salão principal. Aurora não podia acreditar no que estava ouvindo. O homem que ela amava, matou o príncipe de Nerann por sua causa. Isso não podia estar acontecendo. Maria entrava em prantos quando as acusações sobre o irmão aumentavam. — Parem! Meu irmão não é um assassino. — ela praguejava. — Silêncio! — ordenou o rei Elin. — Lunno para onde esse desgraçado foi? — Eu o vi partindo rumo à Ilha dos Filhos da Terra. — A essa altura já deve estar morto. — Elin falou com uma fúria latente em sua voz. — Espero que os filhos da terra deem o que ele merece por ter matado meu filho. E assim, enquanto as acusações e gritos de “assassino” continuavam, o legado de bom moço de Sebastian era triturado em mil pedaços. Por mais
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que Aurie tentasse defendê-lo em sua mente, as provas eram concretas e os fatos incontestáveis. “Meu irmão nunca mentiria” - ela pensava. O mais simples erro poderia, como uma faísca para o braseiro, explodir e a verdade por trás da ilusão, revelada. Aurie nunca o perdoaria por ter feito isso. O amor teria seu fim antes mesmo de Aurie conseguir imaginar. O senhor do tempo a ensinaria a não se desprender do amor que sentia, mas, não depositar confiança demais nele. São astutos, cruéis e sem compaixão. E agora não só o povo de Nerann o acusava, mas em sua mente latejava involuntariamente a palavra: “ASSASSINO”.
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Capítulo 18
O Senhor do Tempo os meus sonhos, eu desejava matar Sebastian todas as noites e assim o fazia... Cem mortes é menos, muito menos do que ele merece depois de ter feito o que fez. O senhor do tempo foi cruel e sob o comando dele se passaram três longos anos. Anos em que eu tentava livrar-me de todas as lembranças que envolviam o traidor de Nerann: Sebastian. Meu rosto esquentava sempre quando faíscas de seus atos falsos de coragem e zelo pelo reino, eram falados para comparar com o assassinato que ninguém nunca esqueceu. Por que ele fez isso? Ainda por cima, por mim? Eram perguntas que me atormentaram por esses longos anos. Esse tempo foi de trégua. Ninguém mais ouvia rumores de possíveis guerras com Gallia ou Zorá e muito menos sobre Circê. Ela nunca se apagou completamente de meus pensamentos, mas, fixar minha mente nela me dava náuseas e eu sentia ainda mais vontade de poder matá-la com as minhas próprias mãos.
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Muita coisa mudou desde que tudo aconteceu. Quando afirmo isso para mim, não consigo acreditar totalmente, porém, era a minha realidade agora e eu não podia fugir dela. E não fugiria. Acordo cedo todas as manhãs para tomar meu lugar no assento do conselho e discutir sobre a política do reino, assim como outros assuntos que são de interesse comum. Um assento especial me foi cedido e desde então, por mais que eu finja, meu sorriso não é completamente verdadeiro. Falta um pedaço. Um pedaço de vida que foi arrancado com a traição de Sebastian. — Bom dia, Majestade! — um menino que vendia frutas frescas me cumprimentava todas as manhãs da mesma forma, acenando e me oferecendo uma maçã tão vermelha quanto os meus cabelos. Sim. Há dois anos me tornei esposa de Elin, o rei de Nerann e por consequência rainha do reino. Nunca cheguei a amá-lo como pensei um dia ter amado Sebastian, mas, me esforçava para que o fizesse feliz de alguma forma. O seu sorriso me motivava e a alegria no rosto de Sophitia me dava ânimo para enfrentar essa nova vida. Ela, juntamente com Maria haviam se tornado irmãs para mim. Amigas das quais eu me orgulhava. Ambas, mulheres fortes e destemidas. E Sophitia sempre me dizia que tudo o que ela se tornou devia a mim e ao seu Elcatraz que agora já corria junto com ela pelos pátios, mas nunca voou junto com os outros do bando. Suas asas estavam rígidas e seu corpo estava coberto por uma camada grossa de pelos brancos. Alvorada havia crescido mais do que eu conseguia acompanhar. Ao longo desse tempo, minha feição mudou. Meu modo de agir também. Não era mais uma garota inconsequente que se irritava com qualquer bobagem. Eu havia crescido e a responsabilidade de um reino também caia sobre mim. Não podia me dar ao luxo de ser como era antes, mas, assuntos que deveriam estar enterrados na minha mente acendiam-se todos os dias como uma chama com vontade própria. Era Sebastian torturando os meus pensamentos e manipulando minhas emoções; eu as queria controlar, mas era mais forte, sempre foi mais forte. A cachoeira que ficava ao leste da parte central do reino foi meu refúgio todos esses anos. E por incrível que pareça ali era o único lugar onde as lembranças de Sebastian não vinham com essa ferocidade toda. Lá, eu ouvia o vago sussurro da floresta e da água despencando do alto. “Eu 192
chego e venho direto para cá.” “Calma, meu amor. São só três dias”. Eu não conseguia me desfazer desses pensamentos. Já tentei, mas não consegui de forma alguma. Os meus dedos roçam minha pele sempre quando penso nesse assunto e meus pelos se eriçam. Lembro-me dos seus olhos azuis perfeitamente e afasto esse pensamento. Ele é um assassino! Todos o davam como morto, afinal, a ilha dos Filhos da Terra, era o lugar para onde os selvagens disformes iam e quem entrasse lá nunca mais conseguiria sair. Todos pensavam assim, todos o viam como um homem morto. Menos eu. A lembrança daquele maldito sacrifício em Gallia me trazia à tona uma realidade que eu detestava ter de conviver. Eu o salvei. Salvei o homem errado. Que tola eu fui. E somente eu sabia que ele não estava morto. A imortalidade dele seria a consequência do preço que eu tive que pagar. E ele me agradece matando o príncipe de Nerann? Enganei-me drasticamente com seu caráter. Porém, havia algo no fundo que remexia as minhas emoções e quando estava na cachoeira isso era mais evidente. Não me dei conta de que todos os dias eu ia para lá no mesmo horário que me despedi e o vi pela última vez. Ele me prometeu que voltaria e isso nunca aconteceu. Agora prefiro que fique como está. No primeiro ano após o desaparecimento e “morte” de Sebastian, Maria vagava pelos túneis vazios e sombrios de Nerann com seu martelo. “Eu busco na escuridão, algo para me dar forças” - ela sempre dizia quando a questionavam sobre o que ela fazia por lá. O tempo se passou e a aceitação dentro dela foi aumentando ao passo que meu irmão, Lunno, a fazia se sentir mulher e acima de tudo amada. Eles estavam namorando há pouco mais de um ano e a feição de ambos era de felicidade sempre que eu os via de mãos dadas caminhando pelos pátios trocando caricias e beijos demorados. Nunca entendi de fato o que aconteceu naquele fim de tarde na floresta Sete. Eu sempre acreditei no caráter do meu irmão e nunca botei isso em xeque, mas havia uma dúvida que rondava meu pensamento; por mais que Sebastian tivesse matado Alphas ele nunca fugiria, pelo contrário, ele poderia ser o que fosse, mas sua honra nessas horas falaria mais alto que qualquer outro ato. Precisava me afastar desses pensamentos. Ele precisa estar morto dentro de mim e nada mais. Os fatos e provas, todos eram
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contra ele. Ele era um assassino covarde! Matou uma criança. E isso era imperdoável. Só de ser atordoada por esses pensamentos, minhas mãos se fechavam em fúria por ter me entregado como uma ordinária para aquele infeliz. Ele não merecia uma faísca de qualquer sentimento a não ser ódio de mim e disso eu estava certa. Pedia aos deuses para que a penitência de seu erro fosse ali naquela ilha, mesmo sabendo que ele estava vivo, queria que ele apodrecesse com a sua imortalidade inútil naquele inferno. Consegui, pela primeira vez, amar alguém de fato e fui apunhalada no centro de meu peito sem a menor piedade. E fui fraca. Fui. Nunca mais me permitirei ser tão ingênua como fui no passado. Agora sou uma rainha. Rainha de Nerann, a terra iluminada. E preciso controlar essas lembranças ou isso vai me arruinar. Meu aniversário é daqui a dois dias e um frio corta meu estômago. Tornar-me imortal? Isso soaria bem aos ouvidos de qualquer pessoa, mas não aos meus. A trégua de três anos iria se romper e eu finalmente saberia, na prática, do que se tratava a maldição de Circê. Mas isso não ocupava um espaço tão grande em minha mente, só quando Elin enchia minha cabeça com falatórios sobre a grande festa que Nerann ia ter daqui a dois dias. O aniversário da rainha Aurora. Como afirmei, isso não era o meu pensamento mais frequente. Por mais que eu não quisesse, um pensamento que sobrepunha a todos os outros e deixava minha mente confusa. Eu podia escutar as batidas do coração de Sebastian. As mesmas quando encostei meu rosto em seu peito pela última vez. Elas eram tão vivas, tão fortes e continuam assim em minha memória e eu não as conseguia espantar. Se a esperança nascia do sofrimento eu preferia nunca sofrer. Ao longo do tempo cometi ações com intenções, boas e más que requereram o perdão das pessoas. Eu tinha o coração bom, precisava perdoá-lo e assim esquecer-me de tudo que estava destroçando meu presente. Meu corpo todo começava a esquentar quando isso tudo vinha à tona. Só preciso me concentrar e tentar esquecer-me disso por mais essa noite e então tudo ficará bem ao amanhecer. “Não!” - eu repetia a mim mesma. Não é isso que um Bellator faria. Ele não merece meu perdão.
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Capítulo 19
Vigésimo Primeiro Ano em tudo era festa em Nerann. O reino era justo e essa justiça valia para todos os habitantes que infringissem as leis, quaisquer que fossem. Cada uma tinha sua devida punição se houvesse condenação do acusado. — Ernest Haid é acusado do assassinato de Pielder Strod. Como você se declara? — Sor Maleidon Gotrós anunciava, dirigindo a sessão, enquanto traziam o acusado até o centro do salão de frente para os assentos do rei e de toda a realeza. E a multidão estava logo atrás, separada por guardas que impediam que alguém pudesse passar. — Não foi um assassinato Majestade. Eu o matei em legítima defesa. — Ernest se defendia. “Mentiroso”, “assassino” - gritava a multidão em julgamento. — Se não foi um assassinato, por que não se dirigiu a corte como nos obriga a lei? — Sor Maleidon Gotrós debochava da expressão de Ernest. — Pelo contrário, você vagou por caminhos incertos e por fim foi capturado pela guarda real. — Você matou meu marido a sangue frio! — a mulher de Pielder gritava no fundo sendo contida pelos guardas quando tentou furar o bloqueio. 195
— Isso não é verdade. Discutimos por lotes de terra fértil. Ele sacou um punhal e quis me matar. — Ernest estava certo de que a culpa não era totalmente dele. — Você sempre quis aquelas terras para si. Você é um mentiroso e covarde! — rugia como um leão a esposa de Pielder. — Não sou um covarde! Então os murmúrios começaram a ficar mais altos e ensurdecedores. — Silêncio! — ordenou o rei Elin. — Como os procedimentos normais não foram seguidos, esse homicídio não pode ser reparado. Assassinato é uma ação desonrosa em Nerann. Realizada em segredo e inconfessada, certamente poderá originar uma série de homicídios por vingança. — Majestade o senhor sabia daquela terra. Era o preço por não falar sobre... — Ernest tentou continuar e foi interrompido rapidamente pelo rei. E seus olhos foram de encontro aos de Aurora que estava ao lado de Elin. Aurora estranhou aquele homem e seu gesto de olhá-la logo quando ia dizer alguma coisa. — Basta! — praguejou Elin. — Peço a todos vocês que olhem o acusado. Se acham que ele é culpado levantem um de seus braços. O rei correu seus olhos em meio à multidão, todos estavam com um dos braços levantados. Porém, quando se virou viu apenas a princesa Sophitia com o braço erguido. Aurora o encarou e não hesitou em não levantar a mão. — A decisão tem de ser unânime. — Elin afirmou com a voz mais grave ainda encarando Aurora. — Não vou compactuar com isso até que se tenham provas concretas de que esse homem não agiu em legítima defesa. — levantou-se, apanhando a bainha de um longo vestido azulado, saindo do salão em seguida. Elin tentou conter sua raiva naquele momento, mas não podia ir atrás dela e deixar o povo sem o decreto final do julgamento. — Ernest Haid, foi considerado culpado pelo assassinado de Pielder Strod. — o rei continuava a falar enquanto o povo gritava “justiça!”. — Como deseja que seja sua morte? — Por decapitação, Majestade. — Ernest Haid decretou. 196
— Seu desejo está consumado. Você será executado dentro de um dia, ao alvorecer. — Elin disse, levantando-se do assento e gesticulando para que Sophitia viesse junto. Os gritos de “justiça” ficaram ainda maiores quando os guardas acorrentaram as mãos e os pés de Ernest. Justiça era uma palavra chave em Nerann e todos sabiam disso. Ninguém enfrentava o poder do rei. Ninguém enfrentava o poder da lei. E a punição daquele homem em praça pública seria mais um exemplo, uma prova de que as leis de Nerann eram rígidas e cumpridas com êxito. Durante o longo tempo em que habitaram em Nerann, Aurora, Lunno e Maria precisaram se adaptar a essas leis e a todas as regras que lhes eram impostas. Uma delas era o uso contínuo de uma espécie de bracelete marrom, que todos os habitantes do reino usavam em forma de lealdade ao rei e ao reino. Aurora e os outros também usavam. E todo início do período de trinta e nove dias, os habitantes se reuniam no pátio principal para fazer o juramento à corte. Era obrigatório. Uma forma de lembra-los de quem estava no poder. Todo e qualquer juramento feito, deveria ser honrado e mantido segundo as leis. “A noite já se foi. Eis que chega a alvorada. Sou a luz que dissipa a escuridão. Sou a luz que conduz o reino. Fui resgatado, fui limpo e feito humano novamente pela misericórdia de um rei. Sou o escudo contra o mau. Sou a espada que cintila fogo em meio ao frio. E por este reino enfrentarei os açoites de inimigos, lutarei até o findar de minhas forças, derramarei meu sangue em favor do reino. De agora e para sempre dou o resto de minha vida e meus dons à Nerann e prometo honrá-la até o fim de meus dias e em cada alvorecer me tornar um com ela.” Aurora já havia se retirado para seus aposentos e algumas dúvidas rondavam sua mente. Já havia participado de diversas sessões de julgamento como as dessa manhã, mas essa teve um tom diferente. Na verdade um olhar diferente. O de Ernest. E aquilo a incomodou tanto a ponto de votar contra a punição dele. — Majestade? — a voz de Sor Maleidon Gotrós soava, enquanto batia na porta. Aurora já havia retirado o vestido que era obrigada a usar. Ela não suportava o fato de ter de usá-lo, mas, as suas roupas normais não caberiam para tal sessão. Ela levantou-se da cama e abriu a porta. 197
— Desculpe o incomodo, mas o rei quer vê-la. — Onde ele está? — Sala Primordial. Eu a acompanho até lá. Não ia adiantar muito dizer o contrário para ele. Sor Maleidon Gotrós era a sombra de Elin, afinal, era o capitão da guarda real e o guarda pessoal do rei. Chegando à sala Primordial, Elin estava à espera de sua esposa no assento de couro vermelho. — Aurora Bellator. — o rei disse, enquanto a porta se fechava atrás deles e Sor Maleidon Gotrós ficava do lado de fora. — Sente-se. — ele pediu, mexendo os anéis de ouro nos dedos. Aurora sentou-se. — Você quer se fartar de minha vergonha? Caminhar e atirar pedras em mim para que todos vejam minha humilhação? Quer mais alguma coisa de mim? — Elin... — Aurora tentou pronunciar. — O que foi aquilo agora pouco? — indagou. — Você simplesmente me afrontou perante todo o povo e deu as costas para mim como se eu fosse um lixo. — Já participei de várias dessas sessões e em nenhuma delas as provas foram tão inconclusivas. Não podia aceitar isso como todos aceitaram simplesmente por um motivo. O que Ernest quis dizer com preço da terra? Ele precisou esconder o quê para tê-la como recompensa? — finalmente Aurora questionou o rei. Ela estava confusa com aquele olhar acanhado e pesado que Ernest havia dado ao seu encontro antes de ser interrompido e precisava saber o que era. — Nem ao menos lembro. Certamente coisa pequena. — Acredito que... — novamente foi interrompida. — Não ligo para o que acredita. Você me insultou lá fora e certamente não é a primeira vez. Mas acredite no que eu digo, será a última. — a voz dele era de um desdém que incomodou tanto Aurora, a ponto de irritá-la. — E continuarei insultando se as palavras do juramento que nós fizemos ao reino forem quebradas e ridicularizadas como foram hoje! — Aurora praguejou em um tom grave e potente em sua voz. 198
Ela levantou-se da cadeira de couro e foi em direção à porta para ir embora. — Quem lhe disse que podia sair? — Elin não ia permitir uma afronta dessas, ainda mais vinda de sua rainha. Aurora voltou com uma fúria latente em seus olhos e obedeceu a ordem, controlando-se para não fazer o que estava em sua mente. Há tempos ela havia notado que Elin a tratava diferente, com desprezo. Bem diferente do início quando tudo o que fazia era em favor de seu bem-estar. Quando Aurora sentou-se novamente, apenas encarou o rei bem nos olhos e não esboçou nenhum semblante além de dureza. — Você é uma rainha. Deveria estar contente com seu destino. Entre tantas mulheres escolhi você, por ser inteligente e forte. E ainda há muitas mulheres aqui que estariam dispostas a fazer qualquer coisa para possuir o seu lugar. — seus dedos ainda se contorciam junto com o anel de ouro. — Você entende o que eu digo? — Entendo. — Então nunca mais me afronte. — o rei ordenou. Aurora não disse nada, apenas continuou olhando para Elin da mesma forma de antes e saiu da sala, enquanto via Sor Maleidon Gotrós entrando logo em seguida. Então, de súbito quis espiar pela fresta da porta o que o rei falaria depois de sua saída e obteve suas prévias respostas. — Não confio nela! Vigie-a. — foi tudo que Aurora conseguiu escutar quando sentiu uma mão cobrindo rapidamente sua boca. Colocou o pé atrás para tentar dar uma rasteira, em seja lá quem fosse, e quando conseguiu se livrar, apanhou o braço da pessoa e o puxou para frente tentando quebra-lo, mas quando viu que era Lutiel, logo parou. Ele gesticulou com as mãos para ela fazer silêncio e a conduziu para uma parte escura entre duas colunas de pedra, onde, na penumbra ninguém poderia vê-los. Há algum tempo Lutiel já havia alertado Aurora sobre coisas que aconteciam no reino que ela não sabia. Coisas essas que eram guardadas a sete chaves e as pessoas que por um acaso descobriram eram compradas com algum bem para ficarem caladas. Aurora passou a desconfiar de tudo e se tornou ainda mais observadora e escutar aquela última frase do rei após
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sua saída da sala primordial, confirmou que realmente algo muito errado estava acontecendo. — Ao menos você foi prudente em não enfrenta-lo agora. Mas o que fez na sessão foi um alarme para ele, agora os homens dele vão vigiá-la dia e noite. — Lutiel afirmava olhando para Aurora firmemente. — Lutiel, já está mais do que na hora de eu saber essa parte da verdade. Você me prometeu. — lembrou-o. — Tudo bem. Você tem razão. Mas vou ser breve. — sua voz era baixa. — Há outros como você e seu irmão. — O quê? — ela achou não ter ouvido direito, mas era exatamente o que ela estava pensando. — Sim. Hospedeiros de entidades cósmicas. Você e Lunno não foram as únicas pessoas a terem espíritos selados em vocês. Há mais três jovens. E juntos vocês podem controlar a manifestação delas. Juntos vocês têm um poder incrível, mas separados são destrutíveis. — Lutiel revelou a outra parte da verdade a Aurora. O tempo era curto. Elin já sabia de tudo isso e seja lá qual fosse o jogo dele, com certeza não era preservar a vida de hospedeiros, como ela e Lunno. — E onde eles estão? — Aurora perguntou. — Só vocês podem sentir uns aos outros. Mas algo me diz que o Véo vai responder suas perguntas este ano. O Véo se tratava de um tipo de culto a Zeus e este havia sido criado a cerca de cinquenta anos atrás como uma mera lembrança aos habitantes daquela que fora chamada Era Nefasta, onde o reino criador, Genesis, havia sido destruído, ocorrendo em seguida a divisão entre os habitantes que deram origem aos reinos. Uma ordem de Zeus, para que a descendência de cada ser possuísse a certeza de que ele era o deus mais forte e ninguém ousava ir contra isso. Seguindo as ordens do deus do Trovão, esta cerimônia necessitava ter a presença dos seres mais fortes de cada reino, não consistia em um ato de adoração qualquer, onde seres fracos e dominados pelo medo não poderiam ousar praticar este ritual. Contudo, após um acordo com Zeus, o reino Cordonne não tomava partido de quaisquer que fossem as decisões referentes a este ato, sendo assim, seus habitantes eram os ilustres poupados. Seriam apresentadas as criatuas mais fortes de cada reino, sendo 200
essa uma escolha de seu respectivo rei, então, apenas os corajosos possuiam a honra necessária para homenagear o rei dos deuses. Não se tratava de uma competição, tampouco algo qualquer em que houvesse desistência. Se alguém fora escolhido, este era obrigado a ir não importando as consequências. Algumas pessoas diziam que não era apenas uma consagração. A verdade consistia-se simples e aterradora: Zeus brincava de ser deus. — O Véo acontece depois do meu aniversário. — Aurora disse. — Como acha que será? — Eu ainda não sei, mas fique atenta e esteja preparada para sair daqui quando mandarmos. A casta Mantra nunca confiou em Nerann e já fomos longe demais nisso. — Eu entendo. Preciso avisar meu irmão. — Faça isso. — Lutiel pediu. — Mantenha o rosto levantado e a postura reta até seu aniversário, depois aviso o que teremos de fazer. — foi tudo o que disse, dando um beijo fraterno em sua testa. E então se virou e deixou Aurora na penumbra das colunas. Na mente dela surgiam mais dúvidas, mas não queria pensar nelas agora. Precisava manter-se firme e fingir que estava bem até seu aniversário que aconteceria a menos de dois dias. A imortalidade, a maldição, o Véo, os outros hospedeiros. Isso tudo aconteceria dali a poucos dias e ela mal sabia se estava preparada para tanta coisa ao mesmo tempo. Só restava a Aurora projetar sua perfeição de rainha do reino e esbanjar falsas simpatias. *** O sol tremeluzia uma luz forte e amena naquela manhã. Era chegada a hora do vigésimo primeiro aniversário de Aurora. O momento em que a maldição de Circê cairia sobre ela. Mas essa era a menor de suas preocupações. Havia muito mais coisas em jogo. Segredos que jamais vieram à tona e ela se sentia responsável em desvendá-los de alguma forma. Aurora levantou bem cedo, enquanto o som da bagunça pela arrumação de seu aniversário ressoava lá em baixo. Quando entrou na banheira, tirou todas as suas vestimentas e colocou seu corpo branco e nu na água fervida. A forma de seu corpo era escultural. Suas costas em carne 201
branca, mais pareciam ondas de um mar suave. Ela sempre alertava as criadas que colocassem a água o mais quente possível. Aurora não se importava com o calor, pelo contrário, ele a fazia bem e quando a água quente entrava em contato com sua pele esbranquiçada, ela se sentia totalmente renovada. Enquanto limpava seu corpo, não podia deixar de pensar no que Lutiel disse. Ela precisava ficar atenta, qualquer deslize e poderia acabar presa em algum lugar onde sua força não seria capaz de destruir. Ela sabia demais e agora Lunno também. Saiu da banheira e enxugou-se com uma toalha de algodão cru e em seguida apanhou um vestido branco que era feito com a pura seda macia e brilhante de bordas douradas - cores que simbolizavam o reino - que estava sobre sua cama para vestir em razão do seu aniversário. Odiava ter de usar vestidos, mas era o fingimento mínimo de agradecimento depois do acolhimento que Nerann deu aos Bellator e a Maria. Quando se olhou no espelho, viu outra Aurora. Uma Aurora que não fazia parte dela e nem nunca fez durante aqueles três anos. Por mais feliz que parecesse, Aurora nunca se dava ao luxo de ser ela mesma. De usar calças e casacos pesados e empunhar sua espada. E como sentia falta de sua lâmina. Dentro do salão de festas todos estavam elegantes e à espera da aniversariante que já estava demorando mais do que o normal. — Rainha Aurora? — batiam na porta. Era a voz doce de Sophitia chamando-a. — Entre. — Aurora mandou. A princesa Sophitia estava deslumbrante em seu vestido vermelho escarlate com as mesmas bordas douradas do vestido da rainha. E ao lado dela estava ele, Alvorada, o Elcatraz com aquelas asas quase não cabendo mais no quarto onde estavam, de tão grande que havia ficado. — Uma multidão está à sua espera no salão. — Sophitia delicadamente informou. — Eu sei, só estou um pouco nervosa, mas já estou indo. — Aurora tentou fingir sua aflição, mas ficou notável demais em seu tom de voz. — O que houve? Está se sentindo mal? — Sophitia inclinou-se sobre ela para ver se estava com febre ou algo parecido.
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— Não. Estou bem, é só que... me tornar imortal é uma responsabilidade muito grande. — Aurora respondeu. — Eu devo imaginar, mas pense bem, seu cabelo nunca ficará branco e rugas nunca vão sobrepor a sua beleza. Aurora apenas sorriu, acariciando o pelo de Alvorada. — Como ele está grandinho. — continuou acariciando-o e em seguida mirou seus olhos na princesa. — Sabe Sophitia, você vai ser uma ótima rainha para este reino, um dia. Pelo que todos dizem, você lembra muito sua mãe e se manter o seu caráter como está, eu não tenho dúvidas que suas ações serão ainda maiores do que as dela. — Obrigada! — ela disse arqueando as sobrancelhas. — Mas ainda sim a carruagem está à sua espera para leva-la até a sua grande festa. — Então vamos. — Aurora arrumou mais um pouco o penteado que uma das criadas havia feito e desceu para sua carruagem. Em questão de instantes elas já chegavam ao salão principal de Nerann. Quando Aurora desceu da carruagem os olhares fascinados focaram-se na amada rainha. Elin podia ser um grande rei, mas Aurora era a que mais possuía a simpatia de seu povo. Se um dia Elin e Aurora discordassem em alguma decisão, o rei facilmente se renderia à opinião da esposa, pois ele sabia que o povo seguiria Aurora em qualquer decisão por ela tomada. O povo a idolatrava, faziam-na uma deusa, principalmente por ser filha de quem era, a deusa regente, Eos. — Oh, é a rainha! — É a rainha Aurora! — Por Eos, a rainha finalmente chegou! — Aurora escutava o contentamento que sua presença trazia àquele povo e logo reuniram-se ao redor dela, para cumprimentá-la e felicita-la por mais um ano de vida. Com um sorriso estampado no rosto, Aurora parava e beijava as mãos dos moradores mais velhos, os que haviam vivido mais tempo, os mais dignos de respeito. Aurora prosseguiu seu caminho acompanhada pela princesa. Alvorada, por sua vez, havia ficado fora do salão. A rainha posicionou-se em seu assento e à sua frente havia uma mesa abarrotada de todo o tipo de comida que ela podia imaginar, comeu algumas amoras e tomou um bom vinho. Mas logo o discurso de Elin se fez presente. Um discurso que ela fazia questão de ouvir. 203
— Povo de Nerann, durante três anos comemoramos o dia de nossa rainha, nesta mesma data, neste mesmo salão, com a intenção de celebrar junto ao meu reino o dia mais feliz da vida dela. E este ano é um ano especial, pois sua majestade alcança, enfim, a idade adulta, tornando-se mais confiante do cargo que lhe cabe. Nos falta apenas a felicidade de um herdeiro, para que no próximo ano comemore conosco a ascensão definitiva da rainha. — Elin exibia uma taça feita de ouro cheia de vinho para todas as pessoas. — Uma salva de palmas em favor de nossa amada rainha, Aurora Bellator! Uma chuva de aplausos soou no salão principal com pessoas de todas as idades, gritando “viva!”. Aurora apanhou uma taça idêntica à do rei e quis pronunciar algumas palavras também. Eles não tinham culpa do jogo que eram obrigados a jogar e Aurora tinha consciência disso. — Todos esses três anos eu venho aqui e faço um discurso deslumbrante a todos vocês e não posso mentir quando digo que é um discurso meramente planejado. Porém, este ano fiz diferente, não planejei o que falar. Vim pronta para agradecer e pronta para me desculpar, hoje vim aqui para falar de coração ao meu reino e mostrar que sou sincera em minhas palavras quando digo: muito obrigada! Vejo aqui muitos rostos conhecidos, rostos que estão aqui há vários anos, alguns são novos, mas na sua maioria são conhecidos e eu lhes agradeço meu povo por me dotar deste privilégio. O privilégio de ser tão respeitada por todos e de ter a honra de poder gozar de sua atenção, sendo ouvida por vocês. Mais uma vez, muito obrigada! — Aurora declarava olhando fixamente para Lunno e Lutiel que estavam em meio à multidão e ambos acenavam positivamente como se estivesse se saindo muito bem. — Quero que recitem comigo o juramento de Nerann para que sempre lembrem de que pertenço a este lugar tanto quanto vocês. E então como um coro todos ergueram suas vozes e mãos e recitaram o juramento de Nerann.
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— “A noite já se foi. Eis que chega a alvorada. Sou a luz que dissipa a escuridão. Sou a luz que conduz o reino. Fui resgatado, fui limpo e feito humano novamente pela misericórdia de um rei. Sou o escudo contra o mau. Sou a espada que cintila fogo em meio ao frio. E por este reino enfrentarei os açoites de inimigos, lutarei até o findar de minhas forças, derramarei meu sangue em favor dos fracos. De agora e para sempre dou o resto de minha vida e meus dons à Nerann e prometo honrá-la até o fim de meus dias e em cada alvorecer me tornar um com ela”. Depois que todos abaixaram suas mãos, Aurora abaixou sua cabeça. Uma voz trêmula surgia em sua mente. Uma voz grave e ao mesmo tempo doce. Será que a entidade finalmente dava sinais de manifestação em Aurora? Ou seria apenas nervosismo como o que estava sentindo quando estava se vestindo? Certamente a primeira pergunta, afinal, a voz já dizia claramente: “Saia daqui ou eu matarei a todos”. — O quê? Quem está falando? — Aurora sussurrou a ponto de somente ela ouvir. E quando, finalmente, Aurora deu-se conta do que poderia acontecer, levantou a cabeça, encarou novamente a multidão que gritava seu nome e esmagou a taça quebrando-a em uma dezena de pedaços fazendo o vinho derramar e manchar completamente seu vestido branco. E a voz continuava a mandar. “Saia!” “Saia daqui!”.
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Capítulo 20
“Lute e você saberá...” s cabelos ondulados e avermelhados de Lunno caiam em seus ombros, enquanto ele e Lutiel iam ao encontro de Aurora para saber o que a fez estourar a taça daquele jeito. Algo muito errado estava acontecendo. Ela se encontrava sentada no corredor que dava acesso ao salão pela parte de trás. Curvada e trêmula. — Aurora, o que aconteceu? — Lutiel perguntou, pousando sua mão nos ombros trêmulos dela. Ela continuou na mesma posição, até que depois de algum tempo levantou sua cabeça e o que Lutiel já havia previsto, aconteceu. Os olhos dela estavam vermelhos e só podia significar uma coisa: a entidade estava começando a se manifestar. A única coisa que Lutiel realmente temia. — O que é isso, Lutiel? — Lunno perguntou assustado por ver os olhos da irmã daquele jeito. — Os olhos dela... — A entidade... — disse Lutiel, balbuciando. — Aurora consegue me ouvir? Aurora fechou seus olhos por dois segundos e quando os abriu estavam azuis novamente.
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— Eu... — Aurora gaguejava ao falar. — Eu não sei o que houve direito, só ouvi uma voz que gritava para eu sair dali. — Uma voz? — Lunno perguntou. — A voz da entidade. — Lutiel respondeu por Aurora. — Ela pode falar conosco? — novamente Lunno quis saber. — Se ela quiser, sim. — afirmou Lutiel. — Como você está agora Aurora? — Estou bem, mas preciso voltar para lá. — Não, você não está em condições. Vou dizer que você se sentiu mal e precisou se ausentar por alguns momentos. — Lunno disse, beijando a testa da irmã e correndo até a entrada dos fundos do salão para avisar a Sor Maleidon Gotrós que a rainha havia passado mal e precisava de repouso imediato. E ele seria encarregado de anunciar a notícia a todo povo. — Preste bem atenção. — Lutiel pediu agachando na altura dos olhos de Aurora. — Não comente isso com ninguém. Você corre perigo, agora o rei com certeza vai armar um plano para destruí-la de alguma forma. Esteja preparada para o que vier, os magos de Mantra estão ao seu lado, não se preocupe. Eu estou aqui. — Eu sempre soube, Lutiel. Obrigada. — Aurora apanhou as mãos do mago em agradecimento. Lutiel cresceu fisicamente e em maturidade durante o longo tempo de convivência que tiveram e isto era visível aos olhos de Aurora. Ela estava orgulhosa pelo caráter que Lutiel mostrava todos os dias. Embora Elin jamais tivesse aprovado a amizade de ambos, Aurora não abria mão de estar com ele. Nem se sua própria vida estivesse correndo risco. — Agora vamos, vou leva-la até seu quarto, enquanto os rumores sobre seu mal-estar vão estar rolando no salão principal. — ele falou, apoiando o corpo de Aurora no seu. Ela parecia fraca e mal podia equilibrar-se. Enquanto isso no salão principal o rei assim como todos os presentes recebiam a notícia que Lunno havia dado a Sor Maleidon Gotrós. — Povo de Nerann, a rainha está bem. Apenas precisou se ausentar por motivos de saúde, mas logo estará em pé e forte novamente. — ele anunciou sob a vista rígida do rei. — Sirvam-se. E a festa continuou. 207
— O que aconteceu? — o rei sussurrou para o Sor enquanto ele tomava posto ao lado de seu assento. — Segundo o irmão dela foi isso o que eu acabei de dizer. — Continue vigiando-a. Creio que não foi apenas isto. — Sim, Majestade. No quarto de Aurora, Lutiel tentava fazê-la dormir um pouco, alegando que o dia seguinte seria ainda mais cansativo. Era o Líbero, dia no qual seriam escolhidos os ousados, destemidos de qualquer medo, de cada reino. A eles era dado o nome de Honrados. A honra era o requisito mínimo para se obter o passe de adoração especial a Zeus. Contudo, poucos a tinham. Lunno chegou um tempo depois no quarto. — Você está melhor? — ele perguntou à irmã. — Acho que s... — uma voz interrompeu sua fala e começou a ranger em sua mente. Era a voz da entidade. “Lute e você saberá...saberá.” - a voz da entidade dizia em sua mente, onde só ela podia ouvir. — Não! Quem está falando? Me responda! — Aurora exigia saber. “Cinzas”, o sussurro da voz parou de falar depois de dizer seu provável nome. O olhar de Aurora se atentou novamente aos rostos de Lutiel e Lunno que estavam fazendo perguntas que ela não conseguia ouvir com clareza. A visão tornara-se turva e seus pensamentos estavam embaralhados, até que finalmente voltou a seu estado normal. — Ela falou comigo. — Nós percebemos, o que ela disse? — Lutiel perguntou. — Não consegui ouvir. — mentiu. — Mas acho que ela me disse seu nome: Cinzas. — Cinzas? — Lunno a indagou surpreso. — Então você ouviu. — Apenas esse nome e nada além disso. — Acalmem seus ânimos. Lunno, sua irmã precisa descansar. Amanhã será um longo dia e lembre-se: você também precisa estar atento. — Tudo bem, irei descansar também. Aurora, descanse bastante, o dia foi difícil para você, irmãzinha. Nada de ruim vai acontecer com você, eu prometo. — ele disse beijando-a na testa e saindo em seguida. 208
Lutiel voltou seus olhos para Aurora e mais uma vez lhe passou instruções, mas dessa vez para que cuidasse de sua saúde mental. — Cinzas é o nome dela certo? Pois bem, cuide para que ela não domine suas emoções e seus atos. Amanhã esteja preparada para qualquer coisa. Não vá me quebrar mais nenhuma taça, hein? — sorriu. — Serei prudente, prometo. — sorriu de volta. — Estou apenas me adaptando a ouvi-la tão perto assim, mas serei mais forte que ela. — Durma bem. — ele beijou suas mãos e saiu deixando Aurora sozinha. “Lute e você saberá... saberá”, foi o que Cinzas disse e era a única coisa que estava atormentando os pensamentos de Aurora. Lutar exatamente contra o quê? E saber o quê? Não havia respostas, mas Aurora lembrou-se do que Lutiel tinha lhe dito sobre suas perguntas serem respondidas no ritual a Zeus. E fosse como fosse, poderia ser bem verdade, só restava a ela dormir e esperar pelo raiar do sol no próximo Líbero. *** O Líbero enfim chegou. Era um dia de honra para o Culto ao deus do trovão, o maldito culto que queria cravar na mente de todos, que a destruição do reino criador foi uma afronta a Zeus e ele precisava alertá-los sobre quem deveriam servir. E não era diferente com Nerann. Havia um rumor de que o lugar escolhido por Zeus este ano seria a floresta Sete, a mesma onde o príncipe Alphas fora assassinado por Sebastian. Eram apenas boatos, mas podiam ser verdadeiros, afinal. — Já começaram a arrumar os preparativos para o Líbero? — Lunno sussurrava a Maria, enquanto esperavam como todos os outros no pátio central a chegada da realeza. — Infelizmente já. — ela respondeu. — Parece uma punição doentia, acho um absurdo. — Não podemos ir contra, você sabe. — disse ele, dando um beijo em Maria. — Não se preocupe, vai dar tudo certo. Maria entrelaçou as mãos nas dele, enquanto finalmente escutavam o som de cinco trombetas que anunciavam a chegada da realeza.
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— Povo de Nerann. Bem-vindos ao Líbero, o maior ato de coragem de nosso reino para com Zeus. Alegrai-vos na valentia. — o rei anunciava. A multidão que se reunia aos montes no pátio principal gritava freneticamente. Lutiel avistou Aurora, que estava agora sem vestidos, com uma roupa bem típica dela. Calças marrons e um casaco preto grosso. Notou um olhar vigilante e constante emanando dela. — Zeus está alegre e nos presenteia mais uma vez, dando-nos a chance de cultuá-lo, prestando nossas devidas homenagens, entretanto, como vocês sabem, apenas os corajosos estão destinados a executar a cerimônia mais intensa ao rei dos deuses. E acredito que Nerann tem candidatos de sobra. — mentiu. — Nossa honra ao reino extinto de Genesis... — e o rei continuou o discurso automático que seria repetido naquela mesma manhã em mais outros três reinos, até então. Mentiras que seriam camufladas. — Quando essa conversa toda vai acabar? — Lunno perguntava a Maria já impaciente enquanto os cachos ruivos caiam sobre seus olhos, obrigando-o a afastá-los. — Acho que ele vai anunciar agora. — ela respondeu. O rei tossiu de lado e continuou a falar: — Eis agora o momento de conhecermos quem serão os honrados de nosso reino. O primeiro será... — Elin começou. Houve uma pausa e um silêncio sepulcral. — Lunno Bellator honrará Nerann no Véo. — a voz de Elin ecoou no silêncio. Maria ficou chocada com o que havia acabado de ouvir, mas logo lembrou-se de que Lunno era um ser imortal e que ele não temia nenhum perigo. Ainda sim preocupava-se com ele. Estavam juntos há quase três anos, mas era como se não estivessem. E isto não soava positivo à mente dela, embora ela não quisesse admitir isto. — Venha até aqui para que todos possam vê-lo. — o rei ordenou. Lunno seguiu em direção ao rei, enquanto a multidão silenciosa o observava cuidadosamente, sabendo dentro de si, que aquele jovem não fazia mais do que se entregar aos braços da morte. Zeus ditaria regras
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rígidas naquele ritual e ninguém sabia quais seriam estas regras. Então o rei continuou a falar. — Aurora Bellator terá a honra de homenagear Zeus em sua forma mais extrema. Novamente uma pausa, porém, essa durou um pouco mais do que a anterior. Todos ficaram atônicos com a revelação fria de Elin para com sua própria esposa. “Lute e você saberá... saberá.” As palavras ecoavam na mente de Aurora, que sentia o sangue dentro dela ferver copiosamente, até que o silêncio tornou-se tão deprimente que aos seus ouvidos pareceu ensurdecedor. — Venha até aqui. — o rei pediu a Aurora. Não podia sucumbir ao desejo de Cinzas. Porque ela deveria realizar esta tal cerimônia a Zeus? Porque se fazia necessário todo aquele discurso? Aurora não queria participar daquilo. Queria empunhar sua espada em outro lugar. Brilhar em guerras como capitã e deixar o sangue de seus inimigos manchar seu rosto cansado de guerrilhas intermináveis. Era isso que ela queria. — Agora! — O poder da voz de Elin foi como um estalo na mente da rainha, cujas palavras que se seguiram nada mais foi que um sussurro, desencadeando uma vasta nuvem de suspiros dos poucos que estavam ao seu redor. — Estou aqui — ela disse. O coração de Aurora realizava batidas inacreditáveis para um humano e a mente ia a milhões de lugares por segundo. Mal pôde acreditar o que dizia, quando a certeza invadiu seu peito. — Que assim seja. — bradou a voz da garota de cabelos ruivos e olhar penetrante, Aurora Bellator, e rapidamente lembrou-se da voz de Cinzas, que naquele instante, era tudo o que vinha à sua cabeça. Todos ficaram muito surpresos. A própria rainha de Nerann iria cultuar Zeus. Havia claramente desejado a própria morte, por ser considerada tão forte assim. Ou... estava claramente se dispondo a proteger seu irmão. — Aurora? — Lunno questionou sem entender o que estava acontecendo. — Eles sabem o que estão fazendo. 211
O rei continuou com a mesma expressão. Um frio contido. Olhar regulado e sorrisos escassos. — Então a partir de agora, nossos honrados mostrarão sua coragem ante os outros reinos e perante Zeus. Alegrai-vos na Valentia. Apresento a todo o reino de Nerann os honrados a realizar o Véo. Aurora e Lunno Bellator! O mar de pessoas gritava ainda mais alto por terem representantes indiscutivelmente conhecidos e queridos como os irmãos Bellator. — Vocês terão um dia para se prepararem. Amanhã pela manhã, seu destino será... a floresta de Sete. — e o que Aurora pensou serem apenas suspeitas acabava por se confirmar pela boca do rei. Ambos foram levados para dentro do castelo, onde foram servidos das melhores roupas e alimentos, tendo um último dia antes de serem jogados na floresta Sete, fadados às vontades de Zeus. Aurora então sussurrou aos ouvidos de Lunno, sem saber que Sor Maleidon Gotrós ouvia-a silenciosamente. — Precisamos conversar. Chame Maria. Ao passo que recebia um aceno de cabeça do irmão, seu coração acelerava mais uma vez, pois sabia que aquela poderia ser uma despedida. O encontro foi rápido e furtivo, no jardim oeste do castelo, conhecido pelo pseudônimo de Jardim das Pedras, pois era um lugar de terra difícil, e ainda assim, as flores brotavam teimosas e deslumbrantes. O assunto era complicado, mas se fazia necessário. Ela sabia que não poderia ser sincera ao ponto de citar Cinzas, uma vez que Maria não sabia do que se tratava, mas ela precisava despedir-se de sua amiga. Afinal de contas, ela era o que havia sobrado de Sebastian em sua vida. “Sebastian”, Aurora ignorou o pensamento, secretamente adorando o fato de poder ver a doce Maria matando Lunno de espancamento. — Como pôde? — O tapa que se seguiu o atingiu em cheio nas têmporas. — Eu não tive escolha, Maria— Lunno se desculpava, segurando a vontade mórbida de rir da reação de sua ‘namorada’. Não entendia o quanto a loira falava sério.
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— Vocês me odeiam. Querem que eu morra junto de vocês. São egoístas e só pensam em si mesmos! — a doce e rosada Maria transformouse em uma mulher perigosa e altamente deslumbrante. — Será que em algum momento imaginaram que eu nunca poderia escolher um de vocês? Já não me basta perder meu irmão, agora terei de suportar perder tudo o que tenho? — As últimas palavras proferidas pela irmã do valente Sebastian ecoavam na mente dos irmãos Bellator, que viram-na dar-lhes as costas com o pior dos olhares, o rubor beirando-lhes a face. O Véo não era uma simples celebração e por isso agiam assim.
*** Amanheceu rapidamente, e depois do café, os irmãos foram escoltados a galopes para a floresta Sete por Sor Maleidon Gotrós e Lutiel. Essa era uma das regras, a partir do instante da escolha, as mordomias eram zero. Sem carruagens, sem comida farta. Apenas a roupa do corpo e uma arma. Entretanto, Aurora e Lunno não temiam. Eram imortais e eles bem sabiam que naquele tempo, o culto seria diferente, com adoradores diferentes e regras diferentes. No caminho, a natureza clamava por atenção. Árvores dispostas e vivas. Pássaros tomando seu lugar de prelúdio e as folhas lambendo o vento com seus voos. Por um período curto de tempo, aquilo envolveu os pensamentos dos Bellator em um casulo impenetrável. Quisera eles ficar sempre ali. Quando chegaram à entrada da floresta, só havia eles e mais dois guardas reais de Nerann fazendo a segurança de um homem bizarro, com cabelos brancos e com um rosto risonho. De fato era o primeiro gnomo que os Bellator haviam visto em toda sua curta vida. — Os primeiros honrados. Sejam muito bem-vindos. — a voz daquela coisa esquisita era como o tinir agudo de um sino. — Me chamo Guppy T’orf e serei o responsável por dar as instruções diretas de nosso amado Zeus, muito prazer. — ele estendeu a mão, mas nenhum dos irmãos o fez de volta. O rosto dele corou e rapidamente recolheu sua mão.
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— Onde estão os outros honrados? — Lunno perguntou, arrumando a espada na bainha. — Estão prestes a chegar. — Guppy ria sem ter motivo algum. — Óh... Mal posso acreditar... ali... estão eles... mais honrados. — o homem esquisito apontava para o lado esquerdo de onde Aurora e os outros vieram, aplaudindo de forma meio débil. Era um casal que vinha em galope assim como os irmãos. Quando os galopes cessaram e o som de galhos estalando rompeuse, desceram dos garanhões, duas pessoas, até então aparentemente como Lunno e Aurora, mas certamente não podiam confiar nas aparências. Não ali. Guppy partiu ao encontro dos outros dois para cumprimenta-los, mas os Bellator não podiam ouvir de que reino eram da distância que estavam. Provavelmente só saberiam na hora da apresentação de cada honrado de um reino. E assim se sucedeu o resto da tarde, com a chegada de todos os honrados dos reinos. Todos com suas armas e olhares desafiadores, já que estar ali era questão de força e compaixão não existia. E como Aurora havia desconfiado, esse ano seria diferente, havia mais um reino participante, um reino menor que não tinha tanta importância, já que ficavam nas mais altas planícies do lado leste de Terdállia. O reino Alimera, que era composto em sua maioria por caçadores, estes por sinal, vendiam a comida que conseguiam ao resto dos reinos. E dentre os corajosos desse reino menor havia uma garotinha de, aparentemente, no máximo, doze anos e o outro honrado que estava com ela aparentava ter a idade de LuBnno. Ela era baixa, porém corpulenta, com fios platinados e uma pele esbranquiçada. Com certeza fora uma escolhada errada. Nem de longe aquele ser pequeno seria forte. E a surpresa ainda não havia se apresentado. Quando Aurora e Lunno estavam preparados para seguir adiante, ouviu-se o tinir de galopes vindo pelo lado direito. Mais honrados? Esperava-se que fossem apenas seis honrados e neste ano chegariam aos dez? Esse fato apenas confirmou para Aurora que aquela cerimônia realmente seria diferente. Não só pela quantidade a mais criaturas, mas pelo objetivo final.
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Quando os garanhões aproximaram-se, Aurora e Lunno perceberam a gravidade da situação. O reino que nunca deveria participar do torneio pelo acordo feito com Zeus, mandara dois corajosos de sua fortaleza. Cordonne. Isso seria no mínimo estranho. Por qual motivo o reino dos elfos participaria disto? Não se saberia até então. O que se sabia é que nenhum deles tinha sua vida revelada. Mistérios que poderiam ser revelados no Véo. Enfim, era chegada a hora da apresentação. Guppy, com aquela roupa escandalosa e jeito acolhedor, dirigiu-se ao centro de uma clareira onde todos estavam e pediu silêncio absoluto. — Sejam todos muito bem-vindos ao ritual de celebração a Zeus, o Véo. — sorriu para todos. Mas apenas a garotinha de Alimera sorriu de volta, os outros ficaram estáticos como se estivessem criando os últimos detalhes de suas estratégias. Como se realmente precisassem daquilo. — Vamos agora para a apresentação dos honrados que representam a coragem de seu reino. Conheçam os honrados do reino de Zorá: Agim Trisk e Orddes Dahre. — Aurora e Lunno iriam reviver sua chegada a Terdállia com aquela dupla de gigantes cinzentos e horrendos. Uma dúvida pairou sobre suas mentes: será que eles sabiam ao menos falar? Guppy limpou a garganta e continuou as apresentações: — Os honrados do reino caçador Alimera: Emma Purin e Rucker Poerd. — então Aurora soube finalmente o nome da garotinha. Emma. — Os honrados do reino de Nerann: os irmãos Aurora e Lunno Bellator. — o olhar do casal que chegou logo depois deles foi certeiro ao encontro dos dois. Pareciam procurar uma fraqueza em cada movimento que os Bellator faziam. Os devoraram apenas com o olhar e sem motivo algum que os Bellator soubessem. E chegou a vez da apresentação deste casal com o olhar acusador. — Os honrados de Gallia... — Gallia? Aurora pensou não ter ouvido direito. Eles eram muito normais para serem daquele reino. “Sem asas e seios para fora?”, Aurora pensou. — Greta Volk e Ragnar Prae. — Guppy anunciou. E logo continuou: — E por fim e não menos importante os honrados do reino estreante, Cordonne: Brave Wester e Drýada Ahava. — um calafrio percorreu a espinha de Aurora, mas ela não soube identificar a razão 215
daquele espasmo. Aqueles seres... nunca viu iguais na vida. Com orelhas pontudas e cabelos longos, macios e lisos, rostos pálidos e olhares ainda mais ameaçadores do que os de Greta e Ragnar. Guppy olhou para todos e esboçou um enorme sorriso e, assim, recitou as regras do culto: —Desta vez o Véo não se estenderá em um dia apenas. E sim noites e mais noites, então sugiro que procurem alimentos e se mantenham acordados o máximo que puderem. Zeus não gosta de adoradores preguiçosos estando nestas condições. A cerimônia consiste em horas de recitações de juras e promessas de adoração eterna ao deus supremo, mas este irá testar os limites da capacidade de vocês para serem verdadeiros discípulos dele. Então sugiro que fiquem atentos. Todos vocês possuem armas, mas aconselho que não as use com tanta ferocidade, pelo menos não desnecessaremente. Alegrai-vos na valentia, meus caros. — Guppy afirmou, sorrindo. Ali, o tempo parecia injusto e os ponteiros do relógio corriam desesperadamente. O céu estava sujo por nuvens negras e a noite já estava prestes a cair. Alguns pássaros ainda entoavam suas canções de entardecer e preparavam-se para dormir em seus ninhos, enquanto todos ali encaravamse sem piscar. A primeira jura de adoração de alguém daria início ao culto. Havia uma antiga lenda sobre o Véo, de que todas as pessoas que eram escolhidas para glorificar a Zeus e tidas como fortes, em seu último suspiro de vida, ouviam resoar do cântico divino. Algo que somente Zeus podia causar. Por isso todos exibiam a melhor e mais ousada forma de homenagem e adoração para que pudessem ser ouvidos pelo rei dos deuses. Como consequência, todos desejavam serem os mais fortes, porque em suas concepções havia um anseio por almejar ter a chance de quando se encontrassem com a morte, renascessem próximo a Zeus. Contudo, nunca ninguém ouviu de fato um cântico divino ser proclamado, até aquele instante. No tempo de cinco piscadelas rápidas, Aurora viu o machado de Ragnar decepar a cabeça de Agim do reino de Zorá. Era o primeiro ato. O primeiro morto. E sem pensar duas vezes, Aurora correu agilmente junto com Lunno para o leste da floresta. Porque aquilo aconteceu? O Véo não deveria ser uma cerimônia de homenagem a Zeus?
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Os cabelos avermelhados dos irm찾os Bellator caiam em seus rostos, enquanto pisavam fortemente nos galhos que produziam um eco enorme no meio da floresta e ao fundo ouviu-se cinco vezes o soar de uma trombeta. O c창ntico divino.
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Capítulo 21
O Culto é feito pelo mais forte s grilos conduziam sua orquestra em toda a extensão da floresta Sete. Já era quase madrugada e a corrida para longe da clareira da morte foi bastante exaustiva para os irmãos Bellator. Agora eles tinham certeza que Greta e Ragnar não estavam ali para exercer nenhum tipo de adoração e sim cometer uma chacina. Lunno não fazia ideia de onde estava apenas seguiu Aurora na jornada para longe dali. Ela havia gritado no meio da corrida que eles precisavam ir para o sudoeste onde ficavam as partes mais baixas da floresta. — Por que viemos para cá? — Lunno perguntou, parando seus passos e encostando-se no tronco de uma árvore sentinela. Eles estavam no sudoeste da Sete, a parte da floresta que descia até a boca de Ades como alguns falavam, de tão profunda que esta parecia ser. E era verdade, pois para eles pisarem em terra firme novamente, enfrentaram um longo tombo e queda de um declive como se estivessem descendo para o centro de Terdállia. Ao menos se afastaram do restante do grupo e desapareceram entre as sombras.
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— Parte baixa. Significa que provavelmente há algum rio afluente ou lago por aqui. Somos imortais, mas ficando em terra firme precisamos de nutrientes provenientes daqui e que eu saiba o mais importante deles é a água. — Aurora disse. — Irmãzinha... — respirou fundo, arqueando as sobrancelhas. — É muito improvável acharmos um rio aqui, é uma floresta costeira. Eu conheço aqui e só há uma solução. Ele já rangia os dentes e cobria-se com seu grosso casaco de couro fervido preto. Estava ficando frio, sinal de que a madrugada havia chegado de fato. — Qual? — perguntou Aurora. — Chover. — ele respondeu, olhando para o céu sem lua. Apenas tomado por estrelas. O lugar em que estavam era inóspito para eles e sem uma possível chuva, seria insuportável continuar ali. — Enquanto isso vamos nos virar para ficar longe da vista deles. — Lunno declarou, pegando uma das folhas da árvore baixa do lado esquerdo e bebendo a água que ficara empoçada ali. — Vem, bebe um pouco também. É pouco, mas na situação que nós estamos é nosso bem mais valioso. — convidou ele. E ambos tentavam sugar o máximo de água que conseguiam de todas as folhas grandes que estavam ao seu redor. Pareciam as últimas gotas de água que entrariam em sua garganta. Há pouco tempo havia chovido ali e aquilo significava uma coisa: chover novamente seria raro. *** Quando o primeiro cântico soou, o Véo teve seu início e por consequência um preço: a morte de Agim, um dos gigantes de Zorá. Ragnar foi ainda mais frio do que o inverno de dois anos atrás, quando Nerann ficou coberta por um tapete de neve e quase não se conseguia andar. Uma morte fora necessária para que as lendas se confirmassem. Agora todo cuidado era pouco. A clareira na qual todos iniciaram, encarando-se e tentando intimidar com suas armas e olhares ameaçadores, estava vazia e o sussurro da noite colidia nas folhas das árvores. Era primavera e as folhas estavam mais vivas do que nunca. Tudo foi tão rápido que não houve tempo de impedir o impacto estrondoso que o corpo robusto do gigante produziu ao se chocar contra o 219
chão de terra. O alvoroço foi tremendo depois disso. Gritos de horror e respirações ofegantes entrando floresta adentro. O corpo de Agim estava estendido no chão com sangue por toda a parte. Podia-se ver o rosto ensanguentado. O brutamonte de madeixas negras era muito horrendo em vida e agora seu rosto estava dilacerado e muito mais decadente do que antes. No exato momento da morte de Agim, todos tomaram rumos opostos, certamente para traçarem seus planos e irem atrás de comida o quanto antes. A morte seria consequência de tolice para alguns, para outros apenas falta de sorte. E a coragem agora era um fio apto a partir-se em milhares de partes. A garotinha Emma e seu companheiro Rucker correram para o oeste da clareira, afinal, estavam mais perto desse caminho do que os outros e não cometeriam a insanidade de correr para outra direção e ir de encontro à morte com Ragnar. Emma vestia um casaco de couro normal marrom e uma blusa de algodão cinza por baixo. A cor de sua calça era praticamente a mesma das folhagens ao redor deles e em suas costas portava uma aljava cheia de flechas afiadas e prontas para serem usadas, caso precisasse. Rucker usava roupas praticamente idênticas as de Emma e manejava uma adaga prateada. Ambos correram para onde chamavam de Trilha das Sete Flores, um caminho recheado por flores das mais diversas cores e formas que brotavam somente nesta época do ano. Rucker já havia caçado uma vez nessa floresta e era a única parte que conseguia se lembrar bem. — Minhas pernas são curtas, me espere! — Emma pedia ofegante. — Não podemos ficar muito tempo assim, tão expostos. Vem, eu ajudo você. — Rucker se ofereceu para carregá-la nos braços e assim o fez. Enquanto caminhavam pela tal trilha, algumas aves agitavam-se acanhadamente na copa das árvores e a visão ficava cada vez mais turva. Mal podia-se ver o caminho da trilha com exatidão. De repente, Rucker pisou em falso e na escuridão escorregou e saiu deslizando junto com Emma por um declive e ambos rolaram encosta abaixo. Quando Rucker parou de deslizar, deu-se conta de que parou dentro de uma espécie de caverna, que permitia alguns fleches de luz e ele teve tempo suficiente de ajudar Emma que vinha logo atrás se debatendo por entre a terra e algumas raízes. 220
— Está tudo bem! Eu consegui pegá-la. — Rucker disse. — Ai! — Emma deu um gritinho e fez com que Rucker arregalasse os olhos e desse um meio sorriso. — Machucou? — perguntou. — Não. E você, está bem? — a garotinha perguntou, olhando o ambiente em que se encontravam agora. — Estamos presos? — Provavelmente. — Rucker respondeu. — Maldição, acho que caí de mau jeito. — Deixa eu v... — Emma foi interrompida. — Não, eu estou bem. Acho que vamos ter de passar a noite aqui e ao amanhecer tentaremos sair. Emma concordou e como o local era aparentemente seguro, não viram problema em acender uma fogueira, uma vez que, o frio da madrugada já congelava seus ossos e seus agasalhos não eram nem de longe suficientes. Pegaram alguns galhos espalhados pela caverna e acenderam o fogaréu para aquecerem-se durante a curta madrugada de sono que teriam pela frente. *** O sudeste da floresta Sete constituía-se de formações de montanhas que se encontravam aglomeradas em uma única região. Cadeias montanhosas imensas para onde os elfos Brave e Drýada correram. Eles estavam determinados agir como merecedores, afinal, era o primeiro Véo que Cordonne enviara seus habitantes e queriam mostrar todo o seu potencial. Drýada vestia apenas um casaco marrom e por baixo um tecido verde até a metade da barriga, estava com alguns adornos pelo corpo e uma calça marrom com um tom menor que o casaco. A elfa era volumosa e esbelta, com fios castanhos claros e um olhar tão ameaçador quanto os dos outros. Brave possuía um corpo escultural como o de Drýada. A pele clara e bastante pálida quase refletia qualquer luz, acompanhado de seus longos fios platinados que chegavam até a sua cintura. Os olhos profundos faziam sua beleza diferente crescer ainda mais. Carregava consigo uma balestra, uma arma com um arco de flechas acoplado no lado oposto da coronha, acionada por um gatilho, que projetava dardos similares a flechas, porém, 221
um pouco mais curtos. Seu casaco era do mesmo marrom do que o de Drýada e suas calças pretas. Eram montanhas enormes que estavam bem à sua frente, nem se quisessem poderiam desbravar aquela imensidão toda que era iluminada acanhadamente pelo brilho das estrelas. — Como vamos achar os outros? — Drýada perguntava com uma voz um tanto irritante. — Mortos de fome não vamos achar ninguém. — Brave respondeu. — Cale-se, preciso escutar a natureza. Brave encostou seu rosto no solo e ouviu o que a mãe natureza tinha a falar para ele. Os elfos de Cordonne eram seres muito ligados a natureza, faziam-na uma deusa, sua guardiã de qualquer mal que pudesse assolar seus corpos. E quase sempre era da natureza que tiravam suas perguntas e suas possíveis respostas, além de sua própria força vital. — Aqui. — Brave declarou levantando-se. — Ficaremos aqui esta noite, certo? — Certo. — Drýada concordou. — A madrugada vai ser curta, deite-se e durma, eu vou vigiar. — Tudo bem, amanhã eu faço isso. — Brave disse. — Fique atenta, você não é uma tola e sabe disso. Qualquer barulho me acorde. Drýada franziu o cenho e acenou positivamente com a cabeça. Ela estava determinada e escutar o vento soprando das montanhas revigorava suas forças dando-lhe ainda mais coragem para enfrentar o que Zeus provavelmente estava planejando. Ela adquiriu a certeza de que, quem cruzasse seu caminho teria seu último lamento de dor. *** A luz do sol já insidia sobre as folhas das árvores e os pássaros saiam de seus ninhos em busca de comida. Orddes Dahre, o outro gigante de Zorá, correu em passos largos para o norte da clareira, onde ficava a praia do mar Cinza. Orddes estava ofegante e um pouco abalado pela crueldade da morte de Agim que nem ao menos pôde se defender, mas agora isso não importava a ele. Se morresse como ele seria apenas mais um habitante de Zorá que envergonhou o reino, entretanto, se demonstrasse a 222
coragem suficiente para ser um seguidor extremo de Zeus, sua passagem por Terdállia não teria sido em vão. O gigante não falava a língua comum. A língua que falavam em Zorá era Esterin, um idioma que só eles tinham domínio, o que se tornava em uma grande vantagem para eles. — Vanduo, vanduo. — era só o que Orddes gritava. Significava “água” em Esterin. Certamente estava com muita sede depois de correr tanto. Quando Orddes chegou à praia, deparou-se com aquela fonte de água inesgotável e sua boca salivou. Logo correu o mais rápido que pôde para beber aquela preciosidade que estava bem à sua frente. — Vanduo... — ele continuava a falar em seu dialeto. Suas mãos grandes pegavam o máximo de água que conseguia. Seguidamente cuspiu toda a água de sua boca. Água salgada era tudo que ele menos precisava agora. — Šūdas! — praguejou em seu idioma. Orddes fixou seu olhar nas ondas do mar e sentiu como se estivesse sendo observado. Como se olhos esfomeados procurassem seu corpo robusto para devorar com brutalidade, mas não ligou muito. Em uma distração de olhar, Orddes viu Ragnar do reino Gallia, golpeá-lo com a ponta extrema de seu machado, entretanto, Orddes foi mais rápido e em reflexo pegou o machado da mão de Ragnar jogando-o para longe e em seguida acertou um golpe fulminante em seu rosto, fazendo Ragnar cair metros mais longe. Greta estava logo atrás e vendo seu companheiro sangrando e desacordado a fez ficar ainda mais furiosa. Greta correu em direção ao gigante sem medo algum em seu rosto. Ela queria apenas mata-lo e assim o faria. Em um grito ensurdecedor, ela tentou ferir Orddes duas vezes com o seu punhal, porém, ele desviou dos dois golpes. O gigante percebendo a fragilidade do oponente limitou sua força e apanhou Greta pelos cabelos, fazendo-a soltar seu punhal sem que percebesse. Greta gritava, mas não mandava soltar e nem pedia clemência. Era uma espécie de tortura que ela deixava que a causasse momentaneamente, enquanto traçava algum plano de escapar das mãos daquele monstro. Orddes também gritava alguma coisa em Esterin e arrastou Greta pelos cabelos até a beira da praia para tentar afoga-la. Greta estava ensopada e seus cabelos caiam em seu rosto. Ela não podia aceitar que este seria seu 223
fim, não com um ordinário daqueles que ela julgava ser mais tolo do que qualquer outra criatura primitiva. Ela tentava levantar-se, mas o gigante não deixava de puxar seus cabelos nem por um segundo. Então, Orddes a fez ficar de joelhos e produziu um tapa extremamente forte com o outro lado de sua mão, no rosto dela. Greta caiu de costas no raso da água do mar e se debatia gritando para tentar afugentar Orddes que estava sedento por matála. O gigante era bem lento se comparado a Greta e ela não estava tão machucada ainda a ponto de não conseguir andar. O céu estava iluminado pelo sol e a luz que insidia sobre seus corpos era quente e o suor fazia-se consequente com toda aquela luta pela sobrevivência. Por fim, Greta percebeu que na luta havia perdido seu punhal, então, ela reuniu forças e aos tropeços tentou correr pela praia, caindo e tentando levantar a cada cinco segundos. Quando Orddes conseguiu alcançá-la, pegou-a outra vez pelos cabelos e esmurrou seu rosto com tanta força que quase Greta desmaiou, porém, apenas caiu na areia com um impacto violento. Greta não se entregava de maneira alguma, seu rosto estava sangrando com o violento golpe e mesmo assim tentou fugir pela areia engatinhando, mas Orddes queria matá-la a qualquer preço. O gigante, então, jogou parte do corpo sobre Greta fazendo-a cair novamente com força, encostando seu rosto todo na areia, acontece que Greta era mais sagaz e juntando ainda mais força, acertou uma cabeçada em cheio no rosto de Orddes. Isso deu tempo para Greta virar-se ainda deitada para tentar golpear o gigante, afinal, não havia conseguido isso ainda e estava sentindo-se uma total inútil perante aquilo tudo. Ela se debatia, mas Orddes era muito mais forte que ela e o peso dele sobre seu corpo fazia com que fosse obrigada a usar apenas os membros superiores para tentar lutar. O gigante tentava de todas as maneiras calar a boca de Greta, então, socou seu rosto mais uma vez e aparentemente Greta ficou zonza, mas não desmaiou. Vendo que ela estava mais indefesa naquele momento, Orddes deslizou suas mãos enormes sobre os seios de Greta, apertando-os com brutalidade e em seguida deslizando ainda mais para as suas partes, à força. Greta passou a gritar ainda mais forte e se debatia com mais agressividade para tentar escapar do assédio daquele monstro. 224
— Patraukli mergina. — o gigante sorria ao falar isso, segurando o rosto de Greta. Subitamente Greta conseguiu dar um soco potente em seu rosto. Entretanto a dor não afastou-o dela, pelo contrário, apenas aumentou a fúria dele, que passou a tentar enforcá-la com aquelas mãos grossas e gigantes. Enquanto os gritos, somados à aflição dos dois honrados, só crescia, Greta tateava a areia desesperadamente atrás de alguma coisa para poder se defender daquele monstro tarado e sanguinário. Ela sabia que se não agisse rápido, as cinco trombetas soariam para a morte dela e só de pensar nisso ela ficava louca de fúria também. — Vai desejar não ter saído do saco escrotal de seu pai. — Greta gritou, dando um chute entre as pernas de Orddes que em instantes bufava de dor. A honrada de Gallia estava parcialmente ferida, mas a luta pela sua vida fazia com que ficasse ainda mais feroz do que costumava ser. O soco do gigante de momentos atrás havia estourado o beiço de Greta e era notório que seu rosto não estava mais tão belo quanto antes. Durante a agonia dos gritos de Orddes, Greta conseguiu alcançar um emaranhado de raízes que iam até a praia, e usando uma força que se sobrepunha a sua própria dor, arrancou um dos galhos das raízes aos gritos. Orddes ainda urrava de dor e isso deu a ela o tempo necessário para enfiar o galho na cabeça dele. Rapidamente Greta se levantou com um semblante furioso e chutou mais uma vez o membro viril de Orddes com toda a força que havia lhe restado cuspindo nele em seguida. Porém, percebeu que ele ainda respirava, então, por associação, ainda estava sentindo algo. Andou um pouco pela praia para achar seu punhal, até que o encontrou boiando na água rasa onde as ondas não estavam alcançando e pegou-o, voltando para onde Orddes ainda estava agonizando de dor. — Você nunca mais vai ter com quem usar isso. — Greta tirou a calça do gigante e num único movimento cortou seu membro viril completamente. — Talvez os peixes façam bom uso dele, desgraçado. — disse, atirando o membro para o mar. O olhar dela parecia ter mudado extremamente. Estava muito mais maléfica e fria agora, nada mais importava, depois daquilo não podia 225
subestimar seus adversários, eles eram o tipo de caça que sabia lutar. Orddes havia tocado nela e o que ela fez foi o mínimo que ele mereceu. Perto de onde as ondas terminavam, Ragnar levantou ainda tonto e sangrando, fazendo um trejeito de dor até então. — O que aconteceu? — ele perguntou com uma das mãos no rosto para estancar o pouco sangramento que tivera. E vendo a cena daquele monstro corpulento jogado na areia rodeado por sangue. — Se eu dependesse da sua estupidez já estaria morta há tempos. Vamos, com esse, Zorá caiu. — disse, apontando para Orddes, já morto e chutando-o mais uma vez na altura da barriga. — Acho que a garotinha e o bonitão esquisito foram por ali. — Greta anunciou e ambos seguiram sua nova rota: o oeste, a Trilha das Sete Flores. À medida que saiam da praia, podia-se ouvir o som de cinco trombetas soando um acorde de lamentação. O segundo cântico. A segunda morte.
*** Já passava bastante do meio-dia e a fome de Brave e Drýada havia passado um pouco, depois de conseguirem colher algumas frutas que acharam nos lugares indicados pela mãe-natureza. Em vez de andar à toa, eles sentaram-se e tentaram descansar o máximo que puderam pelo dia concentrando suas atenções em como procurar água potável e achar os outros honrados, além de esperar algum sinal de Zeus. O que era realmente estranho não estar acontecendo. — Não aguento mais ficar aqui sentada apenas esperando. — Drýada falou já incomodada com a situação em que estavam. Ela não queria ficar estática ali, isso não era uma atitude que ela teria estando sozinha. — Vamos atrás daqueles irmãos ruivos. — afirmou ela. — Já está perto de escurecer, se vamos mesmo nos aventurar na mata a noite atrás deles, você precisa dormir. — Brave declarou, novamente convencendo-a de ser mais prudente em suas atitudes. O sudeste da floresta era infestado por pedras e as montanhas cobriam boa parte de toda paisagem do que quer que fosse que havia do 226
outro lado. O vento começava a apontar o fim daquele dia que para alguns estava sendo calmo. Calmo até demais. Drýada queria ação, enquanto Brave queria seguir seus instintos. Apesar de seus planos serem praticamente opostos, ambos queriam ir atrás dos Bellator e eram honrados do mesmo reino e precisavam ajudar-se. — Estamos no sudeste, se formos em direção à praia e seguir pelo oeste será mais fácil achar onde eles estão. — Brave esboçava com uma pedra um pequeno desenho de mapa na terra, indicando o caminho para Drýada, que não prestou muita atenção no que ele dizia. Ela delineava um cinismo que irritava Brave, mas ele não demonstrava nada. O elfo estava começando a achar que ter Drýada ao seu lado seria um atrasado dos grandes, pois o que ele queria com os irmãos Bellator era muito mais importante do que morte e sangue. Tinha haver com destino. Um destino que estava interligado a tudo aquilo e ele sentia isso. Por isso, enquanto Drýada se encontrava em um sono enraizado, Brave pegou sua balestra e partiu sozinho ao encontro dos irmãos Bellator. Alguma coisa nos olhos dos dois, principalmente de Aurora, o chamou a atenção e ele queria experimentar isso mais de perto. Drýada ficara para trás, a partir de agora Cordonne perdia qualquer chance de obter êxito com Zeus. E Nerann ganhava chances de perder. E no futuro, a ação de Brave seria honrada. “Ela sabe se cuidar, é uma elfa sagaz.”, Brave afirmava a si mesmo, enquanto caminhava para longe das montanhas onde deixou Drýada. Ninguém ali era mais ligado com a natureza do que eles, pela lógica teriam mais chance de sobreviver juntos, porém, Brave não queria assim, se ficasse com Drýada, seria uma presa mais fácil para seus adversários e ele não queria mais um motivo de preocupação. A celebração tornou-se um palco de sangue e nem mesmo ele sabia exatamente o porquê. Entretanto, sabia que se ousasse encarar a situação como qualquer coisa, acabaria morto ou por Zeus ou pelos honrados de Gallai. À medida que caminhava ainda para mais longe, ele sentia o vento sibilando suavemente e adocicando sua jornada. Quando menos esperou um som invadiu seus ouvidos. O som da morte.
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Brave ouviu mais cinco trombetas silvando por toda a extensão da floresta, fora a segunda vez que escutava somente naquele dia. Era o terceiro cântico. A terceira morte. “Quem havia sido os outros dois?” Ele se perguntava, continuando a andar pela floresta. Agora restavam apenas Sete, o número que nomeava a floresta.
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Capítulo 22
Máscaras silvar das trombetas foi tão alto que Drýada acordou assustada e se deu conta de que estava sozinha quando gritou por Brave duas vezes e não obteve nenhuma resposta. Estava agora diante de uma questão: qual direção deveria seguir? Ela não fazia ideia do esboço que Brave havia feito momentos atrás e como já estava escuro não podia ver na terra, pois certamente o vento já teria apagado. Precisava usar seus instintos, por mais que achasse isso uma perda de tempo, ela pertencia a um povo que acreditava que clamando aos deuses da floresta, a ajuda viria imediatamente através de sinais. — Que os deuses me ajudem. — sussurrou, enquanto apoiava-se no tronco forte de uma árvore bastante grande. Mas não conseguia escutar como Brave escutava. — Vamos deuses, cooperem vocês também. — pedia impacientemente por respostas. E não tendo-as, logo desistiu, sentando-se ao lado da árvore. “Pense como esta árvore de tronco grosso, mesmo após tantas tempestades, ela continua firme, forte e esbanjando paciência", Drýada podia ouvir claramente uma 229
voz emanando de todas as partes da floresta e além dela. Agora ela já sabia o que tinha de fazer e que caminho seguiria. A elfa obtinha a certeza de que Brave possuía seus motivos e que ficaria bem, agora era a vez dela de se virar sozinha. A voz levou-a a deduzir que teria que partir dali em linha reta para a esquerda, mais ou menos o caminho que tomou para chegar onde estava. Em suas mãos trazia uma espada média de aço Cordoniano, um aço puro e proveniente de terras distantes. Tomou a coragem que precisava e seguiu na rota que lhe foi imposta. Seu destino estaria naquela trilha, fosse como fosse. No limiar da floresta com as montanhas, Drýada já podia sentir que sua jornada seria rodeada pelo frio. Terdállia era conhecida pelos seus picos de temperaturas e este possivelmente era um deles. O frio atravessava a espinha de Drýada e calafrios percorriam todo seu corpo, enquanto caminhava atenta a qualquer coisa. Algo dizia a ela que estava no caminho certo, bastava apenas ter cuidado. Drýada precisou parar entre uma árvore média e uma pedra cinzenta, quando um ruído estranho e abafado começou a perseguir seus ouvidos. Aquilo, facilmente, poderia ser o vento. O vento não tinha dentes e tampouco duas cabeças, pois foi isso que seus olhos vislumbraram saindo da penumbra de uma árvore. Os caninos da criatura eram enormes e já salivavam a ponto de cair no chão. Certamente não comia há dias e Drýada, volumosa e corpulenta do jeito que era, seria um ótimo jantar para a fera. Os pelos eram cinzentos e seus olhos brilhavam em um vermelho escarlate intenso. Se não fugisse, sem dúvida alguma, morreria. A fera tinha o triplo de sua altura e a força então, nem se fala. Ficar e lutar seria tolice, pelo menos na situação em que estava. Drýada encarou a fera nos olhos e num movimento rápido correu o mais rápido que pôde. — Obrigada pela ajuda, deuses. — gritava em ironia. A angustia estava delineada em seu rosto empalidecido. Ela tinha bons reflexos e sabia desviar das árvores em seu caminho, enquanto corria desesperadamente para tentar despistar a criatura. Isso não adiantou muito, já que ao passo que Drýada corria mais rápido, a fera aumentava sua velocidade para abochanhá-la. A honrada de Cordonne nunca havia visto uma criatura daquelas, ainda mais com duas 230
cabeças, seu corpo lembrava o de um lobo, mas era tudo maior e mais tenebroso à sua vista. Ela podia sentir a fúria da criatura vindo em sua direção para cravar aqueles caninos gigantes em seu corpo e fartar-se de seu sangue, mas Drýada não iria se entregar assim tão fácil. Ela era esperta e já havia traçado um plano na corrida. Quando avistou à sua frente duas árvores quase juntas formando um espaço entre elas, percebeu que em uma delas havia dois galhos grossos e consequentemente grossos onde podia apoiar-se caso conseguisse subir depressa. A fera estava próxima, cerca de quatro metros de distância de Drýada e ela precisava aumentar o ritmo de seus passos ou seria seu fim. Foi então que em desespero passou pelo meio das duas árvores e espinhos dos troncos grudaram em seu braço e pescoço. Drýada não percebeu e logo tentou subir na árvore para alcançar o galho que ela havia avistado pouco antes. Ela não sabia, mas aqueles espinhos pertenciam a uma árvore pouco conhecida. A ênbo, um tipo de árvore que produzia espinhos camuflados em seus troncos e estes possuíam um veneno mortal. Drýada pouco ligou para os conselhos da mãe-natureza. Subiu na ênbo e alcançou o galho grosso e forte. Ele era tão grosso que Drýada conseguiu sentar-se nele totalmente. Ela estava um pouco ofegante e com alguns arranhões pelo rosto e pernas, nada de muito grave. Suspirava aliviada, enquanto a fera passava pelo mesmo espaço entre as ênbos que Drýada passou. Rosnando e tentando subir, sem sucesso, já que a árvore era bem maior do que ela. — Tente subir agora, criatura imprestável! — ela gargalhava, debochando das falhas da fera em subir. — Use essas duas cabeças para pensar em alguma coisa. — continuava a rir. Entretanto, começou a perceber que a criatura havia parado e estava contorcendo-se no chão, fazendo barulhos semelhantes a de um choro. Logo pensou que podia ser algum dos honrados que havia matado a criatura, porém Drýada também viu as pontas dos espinhos fincados na pele do animal. Sua visão ficou estática olhando para aquilo, como se quisesse deduzir algo bem lentamente a ter de encarar sua real situação. Os mesmos espinhos estavam nela e só agora ela havia percebido.
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— Maldição! — ela praguejava alto, tirando os espinhos curtos e maciços. — Ah, não... não... — lamentava por ter sido tão ingênua a esse ponto. Depois de retirar os espinhos de sua pele um a um, um pouco de sangue escorria pelos buracos deixados por eles. Aqueles buracos seriam a menor de suas dores seguintes. Drýada tocou em sua pele e percebeu que já estava ardendo em febre e isso foi praticamente instantâneo. Ao que tudo indicava, o veneno agiu mais rapidamente na fera e a matou em questão de minutos, entretanto, com Drýada estava sendo ao contrário, o efeito retardou o tempo. Seu sofrimento poderia ser maior e mais demorado do que o choro de agonia daquela criatura de duas cabeças. E assim se sucedeu. Passado um momento, a elfa começou a sentir como se seu corpo estivesse queimando por dentro. Um fogo intenso indo da ponta de seus pés até o último fio de cabelo. Drýada começou a sentir que seu fim estava próximo e o medo tomava conta de suas atitudes. Houve um momento de desequilíbrio que quase caiu do galho onde estava sentada. A dor parecia não ter fim e seus olhos lacrimejavam a todo momento enquanto ainda escorria um pouco de sangue dos orifícios abertos pelos espinhos da ênbo. Passados alguns minutos de eterna agonia para Drýada, sua garganta começou a fechar-se e o ar foi ficando cada vez mais escasso. Ela não conseguia mais nem gritar e a dor apenas aumentava à medida que sua garganta fechava-se ainda mais. Suas mãos estavam em seu pescoço, como se estivesse enforcando a si mesma, na verdade, ela estava desesperada. Não podia gritar e o ar estava esvaindo-se de seus pulmões. A morte era iminente e sem compaixão. Drýada já estava sem muito ar, e então, em um ato de desespero tirou uma das mãos do pescoço para tentar tatear algo no galho grosso. Suas mãos alcançaram outro conjunto de galhos menores e curtos. Drýada arrancou um deles. Ela era esperta e sabia que só havia uma solução para isso: abrir um furo na laringe fazendo, assim, uma nova entrada de ar. Juntou ainda mais coragem e introduziu o galho pontiagudo no que ela achava ser a laringe. Entretanto um erro tolo custou sua honra e o resultado seria sua morte. Uma adiada morte, afinal. Num azar extremo, o galho perfurou uma artéria importante chamada carótida, e começou a 232
jorrar sangue para mais de um metro de distância. Drýada colocava as mãos no pescoço para tentar estancar a enorme quantidade de sangue que jorrava e seus dedos manchavam-se de sangue, um cheio metálico espalhava-se pelo ar, enquanto ela se debatia tentando salvar-se. Tarde demais. A inconsciência veio em menos de vinte segundos e seu corpo inclinou-se levemente para o lado. O sangue ainda jorrava bastante de seu pescoço e já saia pela sua boca. Seus olhos continuaram abertos, só que sem vida alguma dentro deles. O corpo ficou estendido a céu aberto e o cheiro metálico apenas aumentava. Drýada foi traída pela própria natureza a qual ela nunca acreditou ser sua casa verdadeira. Traída por sua tolice. Morta pela sua própria estupidez. E assim, o cântico fora triunfante para avisar que mais um honrado juntava-se a Zeus. Era o quarto cântico. A quarta morte. *** Sete estava envolta de uma neblina pouco densa, mas que embaçava a visão de Emma. A garotinha do arco e flecha mancava para o sudoeste da floresta, nitidamente exausta e caminhando com muita dificuldade. Seu joelho esquerdo estava quebrado e ela não via a hora de poder parar para descansar, entretanto, sabia que se ficasse muito tempo de repouso, Ragnar e Greta poderiam acha-la e estando naquela situação, seria o seu fim. Emma estava imunda e em seu rosto tinha sangue seco. Seus cabelos na testa estavam ensopados de suor e ela já não aguentava mais mancar para as partes baixas. Só tinha certeza que havia algo no olhar da garota de cabelos vermelhos que a fazia sentir-se segura novamente. Precisava acha-la e certamente ela e seu irmão estavam no sudoeste já que Emma os viu correndo para lá antes de todos se dispersarem. Estava sozinha, suja, com fome e frio. Qualquer descuido e as trombetas soariam para ela. Para a sua morte prematura. “Não, não podem me achar a garotinha que não tem chances de provar que é forte.”, ela afirmava a si mesma. A noite se sobrepunha a todos que estavam na floresta e a neblina ia se dissipando aos poucos, dando lugar à paisagem sombria de Sete. Há metros dali Lunno havia conseguido apanhar algumas frutas e juntamente com Aurora fartaram-se como puderam. Estavam sentados e 233
sedentos por água em uma parte onde a penumbra das árvores era maior, o que dava a eles mais visibilidade de um todo do local, caso algum estranho ameaçasse atacar. — Não acha que já ficamos tempo demais aqui? — Lunno indagava a irmã. Ele queria ir atrás dos outros honrados para matá-los, afinal, depois da morte de Agim era matar ou morrer. Não havia escolhas além dessas. Zeus quis brincar com isto. — Algo me diz que é melhor esperamos por eles aqui. Isso vai nos dar um tempo a mais para aperfeiçoarmos nossa estratégia, lembra? — Aurora respondeu em um tom sério. — Você está certa. — Lunno afirmou, contudo, de repente, ambos ouviram um vago som que vinha por detrás de um arbusto ao lado deles. O ruído estranho e logo ficaram em alerta, desembainhando suas espadas. Aurora não avisou, apenas foi até o arbusto ver o que podia ser e fez um sinal para Lunno a cobrir caso algo acontecesse. Quando ela chegou um pouco mais próximo notou que havia alguém chorando e então abriu o arbusto com a espada e para sua surpresa encontrou a garotinha dos fios dourados que cobriam sua testa, debulhando-se em lágrimas. — Está tudo bem ai? — Lunno perguntava de uma certa distância. Aurora acenou em positivo com a cabeça e voltou seus olhos para a garotinha em prantos. Mesmo vendo Aurora, ela não parava de chorar a todo instante. — O que aconteceu? — Aurora perguntou, mas, Emma não respondia de maneira alguma. — Fale comigo. — pedia com uma nota de preocupação na fala. Emma continuava a chorar, pareciam lágrimas infindáveis e um sofrimento eterno, algo de muito grave havia acontecido para deixá-la naquele estado. — O que está acontecendo? — Aurora insistia em saber. — Mataram ele! Mataram ele a sangue frio! — Emma gritava em meio aos soluços. — Seu amigo? Quem o matou? — perguntou Aurora, com um semblante de preocupação por ver a garotinha naquele estado. — Os honrados de Gallia. — ela respondeu. — Quero matar eles. Ajudem-me a destruí-los, vocês são fortes e eu sei atirar. — só então Aurora 234
notou que a garotinha dos fios dourados e olhar triste possuía uma aljava cheia de flechas e um arco de madeira forte em uma das mãos. Involuntariamente a imagem de Sebastian se fez presente em sua mente. A imagem do homem que ela precisava esquecer. Balançou a cabeça levemente para expulsar as lembranças de seus pensamentos e atentou para as afirmações desconexas da honrada de Alimera. — Não está falando coisa com coisa garotinha. — Lunno intrometeu-se, lançando um olhar hostil em direção à ela. — Mataram ele feito um bicho. Fizeram-no sangrar pelos olhos, eu vi tudo! — a criança esforçava-se copiosamente para falar com clareza. E era evidente que estava desesperada com aquilo tudo. — Me ajudem a matar-los, me ajudem! — a garota pegava Aurora pelo colarinho de sua blusa desesperadamente. — Vamos ajudar você a ficar viva! — Aurora declarou com uma voz potente. —Procure se controlar, Emma... Emma certo? — Aurora fingia um acerto aleatório de seu nome. — Vamos, levante-se. — pediu. — Não consigo. Quebraram meu joelho, vim aos tropeços até aqui. — a essa altura suas palavras já saiam um pouco mais claras, sem tanto choro. A madrugada correu sem tantos fatos importantes. O meio dia já estava sobre eles, quando Aurora acordou e viu Lunno ainda de guarda, aparentemente com os olhos atentos e vigilantes. “Dormi demais.” - ela pensou. Mas estava um pouco exausta, precisava daquele renovo. Já era o terceiro dia deles ali e o máximo que ocorreu foi o aparecimento da garotinha Emma aos prantos na noite anterior. A tarde também correu sem tantos acontecimentos. Aurora via nos olhos de Emma uma pureza sem fim que a lembrava muito o jeito de ser de Sophitia. A ternura que emanava de seus gestos e seu olhar que exalava paz. Tudo isso era idêntico em Emma. Aurora sabia que ela morreria ainda mais fácil estando sozinha e não podia deixa-la como estava. Emma sorria para todas as ações de Aurora para com ela. O cuidado que Aurora estava tendo, a preocupação com a sua saúde. Isso estava fortificando o psicológico da garotinha que havia perdido seu companheiro momentos atrás.
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— Você parece minha mãe. — Emma afirmou, enquanto Aurora cuidava de seus arranhões nos braços e limpava o sangue seco no rosto de Emma com a ponta de sua blusa. Aurora sorriu e lembrou-se de que Sophitia dizia exatamente o mesmo quando levava algum tombo correndo com Alvorada pelos pátios de Nerann e Aurora tinha de cuidar de cada ferimento com o maior cuidado possível, pois Sophitia era muito sensível a qualquer tipo de dor. Aquela sensação de estar ajudando, invadiu Aurora por dentro e consequentemente externou em suas ações para com Emma. — E o joelho? — Aurora perguntou, querendo ver o estrago que os honrados de Gallia haviam feito. — Está feio isso. — afirmou, franzindo as sobrancelhas. — Não consigo andar, nem lutar. Sou um peso morto agora. — a garota se lamentava. Aurora procurou algo em que Emma pudesse apoiar-se para tentar andar um pouco, e achou um cajado de madeira que muito lembrou o cetro de Opherine, a maege. Ela estendeu o cajado para Emma que sorriu em seguida com a atitude dela. Enquanto tudo isso acontecia, Lunno apenas percebia em cada nota da voz da garotinha que algo estranho estava acontecendo. Algo muito errado na concepção dele, mas nada disse até então, já que estava encostado em uma árvore amolando sua espada em uma pedra média que encontrou. Estava prestes a anoitecer. E a noite geralmente trazia consigo seus azares e todos deveriam estar preparados para qualquer coisa. Empunhar espadas e atirar flechas eram meios de sobrevivência. Outro meio seria usar a mente para derrubar os oponentes sem ao menos tocá-los. — Está com fome? — perguntou Aurora à Emma, percebendo que o dia já estava quase acabando e eles não haviam comido nada, muito menos saciado sua sede. A garganta começara a ficar seca e seus lábios estavam rachados, porém, todos permaneciam de pé como resistentes que eram. — Sim. — ela respondeu, sorrindo de canto. — Lunno, fique de olho nela. Vou colher alguns frutos e volto já. — declarou, arrumando seus cabelos e indo em direção à parte da floresta onde acharam alguns frutos frescos e prontos para serem comidos. 236
Lunno fez que sim com a cabeça, ainda com a espada nas mãos amolando o aço na pedra cinzenta. Seus olhos iam dissimulados até Emma que estava arrumando as flechas de sua aljava. Ele deixou de afiar sua lâmina e foi em direção à garotinha que estava a poucos metros de distância. Lunno era esperto o suficiente para perceber que muita perfeição em um ser o torna um mentiroso em série, capaz de cometer qualquer ato, afinal, um demônio se veste das mais finas roupas para ocultar seus reais objetivos. O caminho foi curto. Lunno colocou os cabelos para trás da orelha e agachou-se na altura dos olhos de Emma, que logo parou de arrumar suas flechas na aljava e prestou atenção na aparição sobressaltada de Lunno bem à sua frente. — Qual o seu jogo? — Lunno por fim perguntou. — Vamos, seja honesta comigo! — mostrava um sorriso impaciente. — Meu jogo? Como assim? — Emma parecia não entender o porquê das afirmações. — Você apenas deduz que é mais esperta do que eu. Minha irmã pode não ter notado, mas eu sou diferente dela. O que você quer? — Eu quero viver. Rucker morreu nas mãos daquele grandalhão de Gallia, a moça morena quebrou meu joelho e você me diz que estou jogando? — Não acredito em você. Sinto cheiro de mentira a quilômetros de distância e ele vem de você, garotinha que se acha esperta. Diga-me o que realmente aconteceu e porque você veio para cá. — Lunno afirmava com uma voz grave e imponente. Emma abaixou a cabeça por alguns instantes e logo após levantou-a traçando um sorriso calculista na face. — Quer mesmo saber? — a garotinha riu de repente. — Pois imagine a cena monumental que eu criei. — novamente delineou um sorriso macabro. E começou a contar o que realmente havia acontecido. *** A caverna onde Rucker e Emma estavam era embalada pelas chamas quentes da fogueira que haviam acendido para espantar o frio. Seria uma madrugada curta. Curta e dolorosa. Emma estendia suas mãos no fogo para 237
receber o máximo de calor que conseguia filtrar e, assim, assustar o frio que já era grande ali, enquanto Rucker amolava sua adaga em uma pedra. — O que você espera que mude depois daqui? — Rucker perguntou, a fim de saber um pouco mais sobre Emma. — Melhorar a situação da minha família. Caçamos há anos e nunca obtivemos o real lucro de nossas caças. Não vi outra alternativa senão chamar a atenção do próprio rei dos deuses. — ela respondeu. Rucker olhou para ela e abaixou um pouco a cabeça. — Sabia que vamos morrer? — ele disse. — Eu luto até o fim. — Emma afirmou sem medo algum. — Aqui é o fim, vê se acorda garotinha. Rucker contraiu o rosto em sinal de dor, algo o estava incomodando. — Você está bem? — Emma perguntou. — Quando deslizamos para cá, cai de mal jeito. — Rucker se queixou. — E que tal isso aqui? — Emma se aproximou e começou a fazer uma massagem em seus ombros, que estavam bastante tensos depois da queda. — Isso que eu chamo de melhorar as coisas. — Rucker sorriu aliviado com a massagem de Emma. — Me conte, e você, porque o que espera disto aqui? Que eu saiba você é filho de um dos maiores mercadores de lá. Pobreza certamente não o motivou a ser corajoso. — sua voz doce de criança soava e fazia alguns poucos ecos na caverna. — Meu pai nunca notava o que eu fazia. Eu sempre me esforçava ao máximo para conseguir os melhores clientes, as melhores vendas eram feitas por mim e as pessoas sempre ficavam satisfeitas e felizes com o meu serviço, menos ele. O senhor Tumlan sempre deixava claro que nunca estava bom, que eu sempre fazia bobagem. — Rucker falava olhando para a fogueira acesa, enquanto Emma continuava suas fricções manuais nos ombros dele. — Então comecei a sair com uma garota, ela era linda, charmosa e todos os homens do reino a queriam. Um paraíso. Eu me envolvi demais e um dia ela acabou sendo pega roubando um dos maiores mercados a céu aberto da corte e ela me entregou, dizendo que eu havia 238
roubado também. Quando os guardas chegaram à minha casa, encontraram o dinheiro e algumas caças da corte no meu quarto. Sabe o que isso significa em Alimera. Prisão. E antes de ir para lá, surgiu este torneio, então me voluntariei. Você entendeu? Sentiu a carga dramática? — Rucker perguntava sem obter respostas. Quando menos esperou sentiu uma pontada em seu peito e olhando para baixo viu a ponta de uma flecha atravessada em seu peitoral. Rucker tocou a ponta da flecha sem acreditar no que estava vendo, enquanto Emma dava a volta e agachava-se perto do rosto dele. Dando pulinhos e bancando a infantil, sempre com um sorriso no rosto. — Por que você fez isso? — Rucker perguntou descrente no que estava presenciando naquele momento. — Aqui todos são caçadores. Você foi apenas minha presa mais fácil. — debochou de sua tolice e cravou uma outra flecha em um dos olhos de Rucker e a tirou em seguida. — Menos um. — dizia cantarolando, enquanto o corpo de Rucker caia no chão e o sangue escorria pelo seu olho direito. Emma conseguiu sair da caverna escalando o declive pelo qual deslizaram. Mas precisava de uma prova de que fugiu de um suposto ataque de outros honrados. Então depois de subir todo o declive, ela decidiu quebrar o próprio joelho e assim o fez, batendo-o violentamente contra o tronco de uma árvore, várias e várias vezes, apertando os dentes para não gritar tanto. E trilhou, mancando, em seguida para procurar os irmãos ruivos. *** Até Lunno assustou-se com tamanha frieza de Emma ao contar aquilo tudo com detalhes. Seu rosto fora tomado por um semblante de suspense e a princípio não sabia exatamente o que faria depois dessa revelação. Ela estava ali para mata-los e seu tamanho não impediria isso. — Vocês Bellator, tem um coração de maricas. — Emma iniciou uma gargalhada em sinal de deboche. Lunno enfureceu-se rapidamente. “Quem essa garotinha pensa que é para debochar de mim?”, seu pensamento indagava. Os olhos dele começaram a 239
ficar negros e isso só significava uma coisa: a morte de Emma. Lunno não teria piedade, não depois de ouvir com detalhes como Rucker havia morrido nas mãos dela. O globo ocular dele estava envolto pelas trevas de seu dom. Um poder que ele podia usar para qualquer fim, dependia apenas dele. Seu dom consistia em causar um dor torturante em níveis baixos ou altos. A potência ia ser definida pelo tamanho da fúria que estava tomando conta de seu corpo no momento. E naquela hora essa fúria era gigante. Cada ato de Emma – respirar ou piscar – tornava-se mais excruciante e cruelmente definido por Lunno. O ato da morte dela havia começado e Lunno manipulou cada partícula dos sentimentos de Emma para que ela sofresse o máximo possível assim como Rucker sofreu. A dor era alucinante no corpo de Emma e as influências do dom de Lunno sobre ela não permitiam que gritos saíssem de sua boca e muito menos fechar os olhos. Ele queria que ela visse tudo. As veias perto dos olhos de Lunno incharam-se com o enorme esforço que fazia. Então, quando Lunno percebeu que a tortura estava piorando cada segundo que passava, ele influenciou Emma a pegar uma de suas flechas. E assim ela fez, com as mãos trêmulas e com uma dor insuportavelmente forte. A quantidade de dor que Lunno infligia sobre Emma já estava em seu nível quase máximo e o fim cruel dela estava à espreita. Nenhuma influência era tão poderosa quanto a dele. A ponta da flecha perfurou a barriga de Emma e com suas próprias mãos – a mando de Lunno – ela desceu a flecha em sua barriga rasgando-a aos poucos. O sangue começou a jorrar quase sem parar e Emma não podia gritar de jeito algum. Seus olhos estavam esbugalhados e traçando um sinal claro de que queria desesperadamente gritar de dor e parar de fazer aquilo consigo mesma, porém não podia. Fora tola em menosprezar a inteligência de Lunno, pensou que ele tinha compaixão para com uma garotinha, entretanto, ele também já havia sido um garoto e um garoto mais esperto e cruel como ela nunca chegaria a ser depois daquele ato. Emma estava de pé, tendo de suportar além da dor mental que Lunno provocara, a dor de ter seu tórax rasgado com sua própria flecha e ainda por cima suportando todo o seu peso no joelho que ela mesma quebrara. A flecha continuava a rasgar sua barriga e do seu tronco, que agora só estava praticamente em ossos, escorria um pouco de tripas e uma 240
parte de seu coração estava prestes a pular para fora. Emma começou a lançar sangue pela boca com tosse e Lunno sentiu que o coração dela ainda estava pulsando, então em um último ato a manipulou. Emma introduziu com toda força a flecha no coração e instantaneamente seus olhos fecharam-se e o corpo não obedecia mais os sentidos. Lunno deixou de transmitir dor ao corpo ensanguentado de Emma e seus olhos voltaram a cor normal. Agachou-se perto da poça de sangue e mostrou seus dentes em forma de sorriso. — Aqui todos são caçadores. Você foi apenas minha presa mais tola. — debochou, pegando a flecha que a matou e escondendo-a em alguma parte menos visada da floresta. E logo saiu dali. Os pássaros agitavam-se ao ouvir um som que já havia ficado famoso para algo que era apenas uma lenda. Era o quinto cântico. A quinta morte. Aurora vinha com o máximo de cuidado e silêncio que podia, esgueirando-se de raízes mais altas e finas que bloqueavam algumas passagens. As frutas frescas estavam em suas mãos e ela caminhava um tanto despreocupada. A chegada de Emma lembrou-a do seu lado benigno de querer ajudar. A pureza nos olhos dela, certamente sobreviveria ficando aos cuidados deles e Sophitia ia adorar conhecê-la. Possuíam a mesma coloração dos cabelos, o mesmo brilho no olhar e a mesma doçura nas palavras ditas e gestos compartilhados. Quando ouviu o som das trombetas saiu em disparada. Entretanto, ao chegar onde deixou Emma e Lunno, Aurora se deparou com uma cena que a lembrou do primeiro massacre em Neodin e Dondarium antes de chegar à Terdállia. O primeiro caos havia se instaurado desde que o torneio havia começado. Emma estava jogada no chão de terra escura rodeada por uma grossa poça de sangue, deitada de bruços. Apressadamente, Aurora correu para ver o que era aquilo e deixou as frutas caírem no chão. Quando chegou perto, deslizou na terra, virou o corpo de Emma e viu o corte profundo e cruel que haviam feito no tronco dela e entrou em desespero. Suas mãos ficaram trêmulas e percebendo que Lunno não estava ali, sua aflição apenas piorou. — Lunno! — um rugido pareceu sair das cordas vocais de Aurora. — Lunno! Por favor!
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Em instantes Lunno sai de um arbusto correndo às pressas para saber porque a irmã gritava tanto e daquele jeito. Quando chegou, fingiu estar chocado com o que estava presenciando. Aurora com Emma nos braços, totalmente ensanguentada. — Pelos deuses... — titubeou sua voz, a fim de passar ainda mais surpresa. — O-o que aconteceu? — Onde você estava? — Aurora quis saber. — Eu fui verificar um barulho estranho que estava vindo da direita... — apontou para um dos lados. — E não tem nem cinco minutos. Eu vi os honrados de Gallia. — afirmou. O corte na barriga de Emma era muito semelhante a de uma arma de pequeno porte. Algo como um... Punhal. Logo Aurora percebeu que entre os dois honrados de Gallia, apenas Greta tinha aquela lâmina pouco comprida e perfurante. — Vou matar aquela desgraçada! — Aurora bufou de raiva. — Ela era só uma criança. — não conseguiu conter as lágrimas que saiam. Para ela Emma não merecia ter morrido assim. Não merecia estar aqui, mas certamente teve seus motivos. Motivos que Aurora nunca saberia ao certo. Aurora lacrimejava e lembrava-se a todo momento da morte de Sebastian em Gallia. Da dor que sentiu ao ver ele partindo em seus braços. Da sensação de ver a vida esvaindo-se de seu corpo e no lugar instaurandose a morte. Uma morte desconexa e imerecida. Assim fora com Emma na mente de Aurora. Ela estava ali, em seus braços, não sofria mais, não tinha mais lágrimas para derramar em seu leito de morte e seus olhos não brilhavam mais como antes. Sua pureza estava manchada de sangue. Manchada com o próprio sangue. Lunno apenas observava. Sabia que não podia interromper aquele momento. Era melhor Aurora acreditar na Emma “boa” que ela via e não no demônio em forma de garota. Porém, ver Aurora naquele estado o destruía por dentro. Os olhos dela estavam vermelhos de lágrimas e a contração de seu rosto dava sinais de que ela estava abalada emocionalmente por ver Emma naquele estado. Nos seus pensamentos, Aurora podia salvar Emma. Podia ser a esperança que ela teria depois de ficar sozinha e ter presenciado a morte de Rucker. “Você falhou.” - a mente de Aurora acusava. O choro estava se 242
tornando o único som que se podia ouvir no local. As folhas nas copas das árvores balançavam ao toque do vento e os primeiros indícios de uma neblina começaram a se formar. Estava escurecendo rapidamente e a floresta ficara num tom azulado como o céu estava. A Bellator fria e sem compaixão havia adormecido há tempos em Aurora. Porém, este ato despertou nela o desejo de vingar-se. Uma vingança sofrida e acompanhada pela desonra se preciso fosse. “MATE-A!” - gritava uma voz na cabeça de Aurora. Era a voz da entidade. A voz de Cinzas. Aurora tentava expulsar a voz de Cinzas da cabeça, mas a raiva estava praticamente incontrolável. Uma súbita fúria consumia cada parte do corpo dela e Cinzas apenas fazia com que isso fosse mais incontrolável. A força da entidade estava mostrando-se aos poucos. Uma força que Aurora precisava controlar. E controlaria não fosse pelos fatos que se sucederiam. — Ora, ora, ora. Que cena mais comovente. A donzela chorando por uma criancinha, que meigo! — a voz de Greta surgiu por entre uma penumbra da parte esquerda de onde estavam. Estava com Ragnar e foram atraídos até ali com o grito de Aurora. — Maldita! — Aurora gritou, limpando suas lagrimas, arrumando seus cabelos e desembainhando sua espada. Rapidamente avançando sobre Greta para matá-la. Explorar a fraqueza do inimigo. Esta seria a chave para a vingança, perder a compaixão. Acordar a Aurora de três anos atrás e deixar que Cinzas a ajudasse, eram seus únicos desejos agora. Sentir o cheiro de sangue em sua espada novamente e vingar a morte de Emma. E nada impediria que ela fizesse isso, nem mesmo Cinzas. Então, naquele exato instante Aurora perdeu sua compaixão e deixou-se dominar por alguns momentos, pela fúria da entidade. Uma fúria que Cinzas esperou muito tempo para mostrar.
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Capítulo 23
Certezas Abaladas s olhos de Aurora logo adquiriram uma tonalidade vermelho escarlate. Cinzas estava concedendo parte de sua fúria para ela e assistiria ao espetáculo com um prazer imenso. Ver aquela criatura de Gallia estraçalhada era o mínimo que Cinzas queria. “Não tenha compaixão dela!” - a voz de Cinzas afirmava como um estrondo na mente de Aurora, mas ela não queria importar-se com aquilo agora. Sua fúria já tinha destino e Greta conheceria a lâmina da espada de Aurora sobre seu peito. Aurora avançou velozmente na direção de Greta, desembainhando sua espada e tentou retalhar em duas partes o corpo dela, porém, Greta tinha um ótimo reflexo e pulou para trás na primeira investida de Aurora. O rosto da hospedeira estava tomado pelo ódio e ela não dava-se ao trabalho de controlar aquilo. Greta precisava tirar a espada das mãos dela para um combate corpo a corpo, senão suas chances não seriam lá essas coisas. Enquanto isso, Ragnar avançava sobre Lunno com o mesmo tom de fúria de Aurora e ambos logo se atracaram no chão e rolaram declive abaixo do lado esquerdo de onde Aurora e Greta brigavam. E os gritos de dor e 244
raiva se misturavam ao deslizamento dos dois. Após isso não se ouviu mais som algum além das duas honradas digladiando entre si. Outra investida da espada e Greta abaixou-se dando um forte chute nas costas de Aurora que cambaleou para frente. Aurora virou-se novamente sem hesitar e tentou golpeá-la mais uma vez e repetidas vezes, Greta conseguia desviar dos ataques. A Bellator estava desidratada, o que tornava tudo mais fácil para Greta que possuía o dom de beber o néctar das flores e com isso não estava com tanta sede assim. E então Greta passou a atacar com seu punhal e usando uma força incrível, conseguia vez ou outra acertar a barriga de Aurora com um soco. Para evitar o desgaste dos braços de Aurora, ela não bloqueava seus ataques, pelo contrário tratava de desviar, tarefa que não era nada fácil. Greta aumentou seu ritmo de ataques e já conseguia arrancar sangue da boca de Aurora com fortes murros e decidiu golpeá-la com seu punhal. Aurora saltou para trás, evitando que o punhal de Greta perfurasse seu abdômen, e parou a alguns metros de distância. Fazia bastante tempo que ela não lutava com tanta seriedade e audácia, já estava suando e com a respiração acelerada. Greta em contra partida estava em perfeito estado e com um sorriso de deboche em seu rosto. Aurora decidiu usar toda a sua agilidade e avançou como a velocidade da luz. Seus cabelos estavam emaranhados e o suor já lhe descia o pescoço. Greta a princípio surpreendeu-se, porém, infelizmente ela conseguia bloquear todos seus golpes com aquele pequeno punhal. Com toda a rapidez que possuía, Aurora conseguiu ir para trás dela e desceu sua lâmina em sua direção, mas, antes que o aço a atingisse, Greta deu um chute de costas e Aurora voou a três metros de distância e colidiu no solo de terra escura. Era o que Greta estava esperando. A espada caíra para muito mais longe do corpo de Aurora, e agora o combate seria bem mais interessante. Com um sorriso macabro Greta caminhou sem preocupações para onde Aurora havia caído e levantou-a pelos cabelos, dando um forte soco em sua barriga. Aurora sentiu uma dor insuportável no estômago que a fez perder o ar, entretanto, não ia se entregar dessa forma patética para aquela assassina. Emma morrera por causa dela e mesmo sem espada Aurora sabia que podia
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lutar. Em outra investida de Greta, Aurora parou seu soco com apenas uma mão e torceu o braço de Greta até ela gritar de dor. — Assassina! Porque você matou aquela garotinha? — Aurora perguntava gritando, enquanto esmurrava o rosto de Greta que cambaleava para trás à medida que os golpes se estendiam. — Do que você está... — outro soco interrompeu a fala de Greta e estourou novamente seu beiço. Sangue escorreu no rosto dela e um ferimento que já estava cicatrizando na testa dela, abriu no mesmo lugar com o impacto violento do soco de Aurora. Greta não esperou outro ataque de Aurora e logo bloqueou com o antebraço esquerdo e rasgou a pele da barriga de Aurora superficialmente com seu punhal. Aurora percebendo que poderia levar outro golpe pior, empurrou Greta para frente e escalou o tronco de uma árvore - com um pouco de dor com o ferimento - perdendo o contato com o solo, e ficando a uns três metros de altura do chão até dar uma cambalhota no ar e chutar as costas de Greta, que rapidamente virou-se e tentou fazer um corte transversal a toda potência e ferocidade. Foi em vão. Aurora conseguiu interceptar e jogou o punhal dela para um pouco longe e em seguida pulou sobre ela. “Acabe com isso de uma vez!” - mandava a voz dentro de Aurora. “Acabe, ou eu mesma farei isso!” Aurora não podia deixar que Cinzas fosse mais forte que ela. E ela mesma mostraria isso. As duas rolaram no chão, trocando socos e pontapés. Greta gritava de uma forma agressiva e não de medo, seu rosto já estava bastante ferido. Aurora estava em cima dela, enquanto Greta se debatia para tentar virar a Bellator para baixo, e então Greta colocou seus dedos na boca de Aurora para tentar abrir a mandíbula dela só que Aurora mordeu-os rapidamente. A força foi tamanha que a boca de Aurora encheu-se de sangue. Greta parecia não sentir dor, mas era claro que aquilo a incomodou e estava se tornando insuportável. Usando sua força, Greta conseguiu se livrar de Aurora empurrando-a para o lado e rastejando, alcançou seu punhal, mas, Aurora veio furiosamente atrás, apanhando a mão com que Greta tinha pegado a sua arma. Novamente elas rolaram pelo chão, tentando acertar uma a outra. Greta permitiu que sua força extra entrasse em acordo com ela. Foi o suficiente para ficar em cima de Aurora e levantar seu punhal para matá246
la, entretanto, Aurora parou com as duas mãos. Greta fazia força e a ponta da arma estava prestes a perfurar o pescoço de Aurora, e quanto mais força ela fazia para cima, mais agressividade emanava de Greta para baixo. A agonia estava no rosto de Aurora, ela não conseguia fazer uma força além da que estava produzindo, Greta certamente não era um ser comum, já que por mais que soubesse que sua força estava reduzida pelo seu cansaço, uma faísca dela em um ser qualquer seria o bastante para matá-lo. Aurora por fim conseguiu jogar Greta para o lado e viu a arma dela indo em outra direção. Novamente ficou sobre ela e com o rosto cheio de hematomas, deu um soco com a força que tinha, e foram golpes repetidos e cada um mais violento do que o outro. — Anda, me diga, porque matou Emma, desgraçada? — Aurora perguntava, colidindo sua mão com tanta força no rosto de Greta que o sangue espirrava em seu próprio rosto. — Só pode estar delirando Bellator. — ela delineava um sorriso com os dentes manchados de sangue. Greta teve os olhos envoltos por um cinza no mínimo estranho e deu uma joelhada violenta na barriga de Aurora, no lugar de seu ferimento superficial. Isso a deixou sem ar por alguns instantes fazendo-a cambalear para trás aos tropeços, enquanto Greta se levantava e recuperava suas forças. Logo, ela avançou sobre Aurora em uma tentativa de acertar mais alguns golpes. No primeiro soco, Aurora incrivelmente parou a mão de Greta, que em instantes tentou golpear com a outra mão, mas foi novamente parada. Não havendo outra alternativa, Greta presenteou Aurora com uma cabeçada monstruosamente agressiva e ela andou cerca de três passos para trás com a cabeça baixa. Quando finalmente levantou-a, sangue escorria de seu nariz e seus olhos estavam tomados por um vermelho muito mais intenso do que antes. Suas mãos fecharam-se em fúria e Aurora gritou tão alto que até os deuses puderam escutar. A noite já pairava sobre elas e apenas um azulado escuro do céu iluminava seus rostos. As nuvens estavam negras e pela primeira vez desde que chegaram ali, começou a cair o líquido vital. Chuva. As gotas vieram fortíssimas como há tempos Aurora não via e logo se misturaram-se à terra da parte baixa da floresta, formando uma espécie de lama. Aurora percebeu 247
que seu casaco começara a pesar com a água da chuva e o tirou para lutar melhor. Por baixo estava usando uma blusa preta que logo aderiu à sua pele com a água da chuva. E finalmente, correu para aniquilar de vez Greta. — Ela está zangada. — Greta zombou. — Eu vou acabar com a sua raça, vadia ordinária. — Aurora, dizia ainda correndo e em rápidas piscadelas estava distribuindo pontapés na barriga de Greta. E consequentemente encurralando-a em um tronco grosso. Apanhou seu pescoço dolorido e tentou enforcá-lo com toda força que lhe restava. Aurora estava realmente exausta, lutar estava sendo um sacrifício por Emma. Não sabia se iria ganhar, mas que Greta iria sair acabada dali, disso ela tinha certeza. Cinzas não estava mais gritando em seu ouvido, certamente a deixou exercer a própria força por achar mais divertido, pois se ela se manifestasse ao menos um pouco, Greta já estaria morta há tempos. A honrada de Gallia conseguiu dar um chute violento na barriga de Aurora e quebrou um galho perto de sua cabeça e com a parte pontiaguda feriu Aurora na barriga profundamente. Ela bufava de dor, quando um soco vindo da mão esquerda de Greta atingiu em cheio seu rosto. Aurora colidiu contra o chão, sentindo a dor do impacto nas suas costas. Seu nariz e boca sangravam e o ódio dentro dela apenas se agigantou. E não tardou em levantar-se. Greta avançou contra ela. As costas de Aurora doíam um pouco e isso fora o suficiente para fazê-la ficar lenta e como consequência recebeu cortes pelo corpo com aquele galho pontudo que Greta possuía agora. A chuva não parava de cair e Aurora perdeu velocidade e como resultado tinha vários cortes em seu braço direito, alguns no peito e outros nas cochas, mas o mais grave estava em seu abdômen. A blusa de Aurora estava coberta de lama misturada a sangue e rasgada. A manga esquerda já havia sido praticamente arrancada e as faixas da manga que ainda cobria o braço dela estavam igualmente imundas. Ela bloqueou alguns socos de Greta e usou a mesma cabeçada que a honrada havia lhe dado a momentos atrás, fazendo-a urrar de dor. Greta lançou um olhar de pura fúria e avançou contra Aurora mais uma vez. Ambas estavam
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exaustas e imundas de lama, porém por mais ridícula que fosse a “arma”, Greta estava em vantagem. Mas Greta não confiava na praticidade daquele objeto e logo o jogou fora. Nesse momento o ferimento no abdômen de Aurora estava sangrando bastante e fazendo-a ficar mais lenta. Sem piedade alguma Greta, arrumou forças e esmurrou o rosto de Aurora e em seguida seu abdômen. Ela tentou ficar de pé, mas suas mãos amoleceram e suas pernas não obedeciam. Não pôde se conter e caiu de joelhos no chão. Fechou os olhos, não podia se permitir ser derrotada e desistir, não podia. “LEVANTE-SE INÚTIL!” - Cinzas reapareceu na mente de Aurora como um estalo. “Nunca desisto, preciso lutar até o final!” - Aurora pensou. Concentrou-se e fez um reconhecimento do local em que encontrava-se, estudando cada parte, visível ou não. — Você já desistiu? Mas tão rápido, eu mal comecei a me aquecer. — Greta dizia com um tom irônico na fala. Aurora abriu os olhos e focou-os em Greta, sua vontade agora seria executada por Cinzas e naquele mesmo instante sentiu uma forte pulsação em suas mãos, uma sensação de peso como se elas tivessem aumentado de tamanho. Então começou seu contra ataque. O soco em direção ao rosto de Greta foi tão forte que em segundos ela já estava se debatendo dentro de uma enorme poça de lama que havia se formado na frente delas. Os olhos de Aurora continuaram vermelhos e ela não dizia uma única palavra e nem esboçava nenhum semblante além de frieza, enquanto caminhava lentamente para atacar Greta novamente, percebendo a situação rapidamente levantou-se aos tropeços e armou-se manualmente. — Pode vir! — Aurora mandou sorrindo. — Aaaahrg! — Greta gritou indo à Aurora, distribuindo uma chuva de socos. Todos bloqueados sem nenhum esforço por Aurora. A luta se fez mais dura, nada conseguia pará-las. O ódio tomava conta de cada partícula de seus corpos e a lama inundava as suas roupas. Aurora continuava bloqueando os golpes de Greta, até conseguir dar uma rasteira potente na sua adversária. Por algum motivo Aurora se via no controle de suas atitudes em relação à entidade e ela estava gostando disso, 249
entretanto havia algo em Greta que a estava intrigando bastante, desde que a viu e até agora, sente como se algo as ligasse, pois se fosse apenas um ser qualquer já estaria morta. O destino certamente era o pai dos piores erros naquele momento, mas de alguma forma ele poderia mostrar do que cada uma delas era capaz, principalmente Aurora. Nunca viu-se no controle. E ousar sentir esse poder emanando dela, era atrativo aos seus olhos. Aurora caiu sobre Greta e a arrastou para a poça de lama grudenta. As duas estavam debilitadas e os socos que davam eram sofridos e quase sem nenhuma força, porém, Aurora engrenhou um soco tão poderoso que quase Greta desmaiou. A luta estava praticamente ganha. Tudo conspirava para a vitória de Aurora. Entretanto o destino prega peças. Peças essas que são difíceis de juntar quando são trituradas em milhões de pedaços minúsculos. Aurora viu os olhos de Greta mudarem para um acinzentado forte e com suas duas mãos levantou Aurora pelo tronco e a jogou para longe e seu corpo colidiu com violência na lama. Greta lançou olhares de fúria com aqueles olhos esquisitos e quando Aurora menos esperou o punhal dela estava em sua mão novamente. Apenas sentiu quando este perfurou um pouco mais seu abdômen no mesmo lugar de antes. Os olhos de Aurora voltaram ao azul normal. Aurora ainda tentou bloquear alguns ataques de Greta, tudo em vão. A imortalidade dela não estava servindo para praticamente nada por sinal. E então o último empunhar da arma de Greta se fez presente juntamente com um grito ensurdecedor dela, porém, algo a fez parar. Aurora viu-a afastando-se lentamente e logo depois sentiu um forte chute no abdômen e sangue saiu de sua boca. A visão dela ficou turva, mas jurou ter visto asas translúcidas saindo das costas de Greta, porém tudo ficou escuro e em instantes desmaiou.
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As gotas da chuva se desprendiam violentamente das nuvens avermelhadas que cobriam o céu agora. O furacão que havia passado ali arrastou até a dignidade de Aurora. Ela estava desacordada e rodeada por uma poça de lama até a altura do quadril. A chuva não dava trégua e à medida que ela caía a poça de lama aumentava e se Aurora não acordasse logo, poderia ser sufocada. Não morreria certamente, mas seria um susto e tanto. Não havia mais iluminação e o único som que se escutava era de água colidindo com o solo. O rosto de Aurora estava bastante machucado e a ferida aberta pelo punhal de Greta em seu abdômen incomodou-a tanto que lentamente seus olhos abriram, examinando o local em que estava. Não tinha forças para sair dali, o jeito seria ficar até a chuva passar, então encostou suas costas em um tronco perto e também deitou sua cabeça nele. Estava escuro. Na verdade, muito escuro. Aurora sempre aparentou não ter medo de coisa alguma e que nada a faria recuar, mas o que ela não conseguia esconder de si mesma era o medo de ficar no escuro e ainda mais sozinha. Ela sentia como se as trevas quisessem devorá-la viva e estando sozinha estava ainda mais vulnerável. O escuro era o calcanhar de Aquiles de Aurora. Ela sabia que deveria impedir as lágrimas, afinal, estava consciente e era forte, só que estando naquela situação, sozinha, machucada, encharcada de água, imunda e ainda por cima no escuro, a influenciaram a misturar suas lágrimas salgadas com as gotas da chuva em seu rosto. “Por favor, não me deixe sozinha no escuro outra vez! Por favor!” - um pensamento agudo se fez presente naquele momento. Aurora estava com medo e pela primeira vez conseguia admitir isso para si mesma com certeza absoluta. Os olhos da tempestade tornavam-se cada vez mais sombrios e escuros. Aurora ainda bufava de dor com o ferimento no abdômen feito pela maldita Greta. O sangue manchava toda sua pele, mas esta era sua menor preocupação ali. À medida que seus olhos não enxergavam mais nada além do céu, Aurora ficava ainda mais apavorada. Cinzas começou a soar uma voz estranha em sua mente afirmando que ela tinha medo, que não era capaz, que a noite era assustadora e o
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escuro atacava a cada segundo e por mais que negasse, Aurora era uma covarde contra ele. Aurora balançava a cabeça negativamente. — Cale a boca agora! — Aurora gritou, expulsando a voz de Cinzas de sua mente. “Ela não vai conseguir me derrubar, ela depende de mim” - Aurora pensou. “Tolo engano. Você depende de mim!” — Cinzas voltou a falar. — Saia daqui! — Aurora gritava com mais força ainda. — Saia! Sentia seu corpo tremer e não tinha forças para se mover além do quadril. Encostou sua cabeça com mais força sobre o tronco e grunhiu de dor. Não apenas física, estava doendo o dobro por dentro agora. Odiava sentir-se fraca, impotente e era assim que estava agora. Sem uma alma para acalmar seu coração. De repente, seus olhos embranqueceram e sua visão logo ficou turva transportando-a para outro tempo. Um tempo em que sua pequena vida mostrava-se mais feliz. Ela estava em um quarto, ainda recém-nascida e uma mulher de longos cabelos avermelhados beijava a testa de seu irmão e em passos rápidos rumou ao outro lado para a entrada de uma porta, certamente a de saída, todavia, Aurora começou a chorar. Um choro estridente que apressou os passos da mulher que em instantes voltou ao berço onde Aurora estava pegando-a nos braços. O quarto era úmido, sem muita cor e completamente limpo. Logo, o choro foi abafado com um canto em sussurros de uma antiga canção de ninar que a mulher de longos cabelos vermelhos e olhos penetrantes cantava para que Aurora não ficasse com medo do escuro. Era sua mãe, Eos. Sem ao menos notar, sua visão voltou para o escuro e o frio rigoroso daquela madrugada congelava seus nervos e seu hálito quente ganhava uma forma diferente quando entrava em contato com o ar gelado do ambiente. E com a chuva tudo piorava. Um filete de sangue escorreu de sua testa ferida. E encarando a escuridão, sentindo um forte vento passar por ela, começou a entoar a canção de sua mãe. — “Vem dormir meu bem, vem dormir neném Feche os olhos nada vai lhe machucar Amanhã já vem e o sol também Para minha pequena Aurora brilhar.” 252
Cantava a última frase com os olhos marejados, e contraindo os músculos da garganta, tentando em tentativas falhas engolir as lágrimas, enquanto o rosto esquentava em meio ao choro iminente. Finalmente, conseguiu engolir as lágrimas e continuou: — “Vem dormir meu bem, vem dormir neném Eu sempre estarei aqui a lhe guardar Quando o sol nascer e o dia chegar Minha vermelhinha vai acordar...” Aurora não entendia porque teve uma visão do passado e justo naquele momento. Mas não queria entender, isso a acalmou e de alguma forma a fez querer encarar o medo e não se curvar perante ele. Em meio aos soluços que a canção provocou nela, apoiou sua cabeça de uma forma confortável no tronco e tentou dormir. Agora ela sabia que de uma forma ou de outra aquela fora uma forma de ela ter certeza de uma coisa: Eos esteve sempre com ela e estava naquela hora. Fechou os olhos e em meio a torrente de água que caía, adormeceu. *** No meio do declive onde Ragnar rolou juntamente com Lunno, a chuva havia encharcado a terra e esta adquiriu um tom lamacento e Lunno estava ali, tentando recuperar-se dos fortes socos e arranhões que Ragnar e seu machado fizeram nele. Algo fez com que ambos se afastassem e Lunno preferiu assim, precisava subir para ver como Aurora estava. Chovia muito e estava bastante escuro e ele tinha noção do que isso significava para ela. Não era apenas chuva ou possíveis ferimentos, se tratava do escuro em si. Já estava próximo de chegar e suas mãos não aguentavam mais escalar aquele maldito declive cheio de lama. Assim como a lama ele estava imundo, cheirando a sangue e com vários hematomas pelo corpo, porém, pouco se importava com isso. Aurora precisava dele e ele sentia isso latejar em seu peito. “Já estou chegando irmãzinha” - ele afirmava para si mesmo, dando-lhe forças. Quando conseguiu desbravar todo o declive, já podia ver a poça de lama pela metade do corpo de Aurora e ela parecia desacordada. Correu, 253
necessitava ver como ela estava. Porém no meio do caminho uma voz pujante destruiu o sonar da chuva e parou os passos de Lunno instantaneamente. — Lunno! — bradou a voz. Quando Lunno virou-se, seus olhos avistaram um rosto que jurou estar debaixo da terra há anos. Um rosto que podia botar tudo que construiu a perder. O rosto do homem que ele traiu. O rosto de Sebastian. Ele estava vivo, sobrevivera três anos na Ilha dos Filhos da Terra e seu semblante era de fúria. Ele estava diferente, usava um capuz preto e uma roupa negra também, sua aljava estava nas costas e portava um arco brilhante com as extremidades pontiagudas, na mão direita. Possuía duas cicatrizes disformes. Uma na bochecha média e outra maior na parte de baixo do olho direito até a orelha. Tinha uma barba saliente e os olhos brilhando para aniquilar Lunno. — Sebastian? — Lunno não podia acreditar. O homem que ele mandou para a morte anos atrás estava vivo. O que deu errado? Por que os filhos da terra não acabaram com a raça dele? Eram perguntas que Lunno se fazia, enquanto esboçava um olhar de surpreso em ver Sebastian depois de tanto tempo. — Você não sabe o quanto esperei por esse dia meu amigo, vem cá, me dá um abraço. — Lunno fingia um sorriso amistoso e alegre pela volta dele, enquanto caminhava até ele para abraçá-lo. — Eu esperei muito por esse dia! — Sebastian berrou e esmurrou o rosto de Lunno com uma fúria além do comum. — Desgraçado! — O que é isso amigo? — Lunno resmungava, enquanto via Sebastian caindo sobre ele, soqueando seu rosto e abrindo um ferimento que rapidamente começou a sangrar. — Isso é o meu presente para você, seu canalha! — Sebastian bradava em alta voz descontando toda a sua raiva em sua mão que como resultado ia ao encontro do rosto de Lunno com tamanha violência que ele nem de longe pensava em controlar. — Você acabou com a minha vida, desgraçado! Lunno precisava reagir e foi isso que fez dando um soco no estômago de Sebastian. Ele levantou e tentou esmurrá-lo mais uma vez, mas Sebastian abaixou-se e esquivou de sua investida, apanhando Lunno pelas roupas e jogando-o no chão novamente depois de um soco bem no nariz. 254
Os dois rolavam no chão, cada um esmurrando o rosto do outro. Lunno estava com o beiço estourado e Sebastian com um ferimento perto da sobrancelha sangrando. Sebastian ficou em cima de Lunno e começou a tentar enforcá-lo com uma mão e Lunno fazia o mesmo com a mão direita no pescoço de Sebastian. O breve sono de Aurora foi interrompido com os gritos de ambos e quando avistou que era seu irmão, percebeu que já estava recuperada o suficiente para levantar e ajudá-lo. Saiu correndo com lama por todas as partes de seu corpo e chegando até onde o irmão lutava, num vislumbre viu o capuz do inimigo que estava soqueando seu irmão, cair e não podia crer no que estava diante de seus olhos. Ele havia voltado. — SEBASTIAN! — ela gritou atordoada com o que estava vendo e com lágrimas teimosas saindo de seus olhos. — O que está acontecendo? — sua voz trêmula saia. Sebastian largou o pescoço de Lunno e encarou os olhos de Aurora que só conseguiu colocar as mãos sobre a boca com os olhos esbugalhados de surpresa. E ambos se encararam por alguns segundos, olhos nos olhos. Como na última vez que se viram, no último toque que sentiram. Em sua mente, pôde relembrar o sorriso gracioso de Sebastian, quando se despediram há três anos. E Aurora podia ouvir as batidas do coração no peito de Sebastian, eram mais do que apenas lembranças, agora ela podia senti-las. Suas certezas foram abaladas drasticamente naquele encontro de olhares.
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Capítulo 24
Lótus nome da ilha para onde o traidor me mandou era Filhos da Terra. Seres bastardos e nascidos com problemas eram jogados à própria sorte lá. Com a convivência e o extinto grupal, adquiriram dons. Dons inimagináveis capazes de destruir qualquer civilização. Fiquei preso nessa maldita ilha por três anos. Uma prisão que significou minha casa, meu novo relento depois do que pensei ter feito em Sete. Todas as noites eu sonhava com aquela espada cravada no peito de Alphas, uma culpa que me perseguiu todos esses anos até eu descobrir a verdade. Nesses três anos eu possuía apenas uma sede, um objetivo: sobreviver. E para isso se concretizar precisei me adaptar, precisei desonrar meus princípios. Precisei me tornar vingativo. Não voltei como o arqueiro honrado que daria seu sangue por inocentes. Mas como o arqueiro que dará seu sangue em favor da justiça e se vingará daquele que destruiu a sua vida. Sebastian Addae, do sangue Dondariano voltou e o traidor vai desejar que eu tivesse morrido naquela ilha.” *** 256
— Não pode ser. O-o que está acontecendo? — a voz de Aurora saia em cortes. Ver a imagem de Sebastian na sua frente todo machucado no rosto, com aquelas cicatrizes, era demais para a mente dela. Seu cabelo havia crescido e já lhe caía sobre os ombros. — Ele me traiu Aurora, me traiu! — Sebastian apontava para Lunno sem tirar os olhos de Aurora. — Ele traiu você? — ela aguentou-se para não chorar, o máximo que pôde, porém quando se tratava de algo que envolvesse Sebastian, de longe podia controlar. — Mas o que está acontecendo aqui? — novamente perguntou notoriamente transtornada. — Você... você desaparece, fica três anos fora e volta dizendo que meu irmão traiu você? — Esse aqui é a pior víbora que poderia ter entrado na minha vida. Na minha vida e na sua! — Sebastian berrava, com algumas lágrimas manchando seu rosto e o deixando vermelho. — Você sumiu! — Aurora avançou sobre Sebastian, dando tapas no seu peito. — Você não sabe de nada, de nada! — Você que não sabe de nada! — Sebastian gritou, segurou-a pelos braços. — Você não sabe, Aurora! Presta atenção, eu tenho muita coisa para falar. Está me ouvindo? — O que você tem para me dizer? — Aurora indagou furiosa e mostrando os dentes feito um animal selvagem. — Dos três dias que você ia ficar fora e demorou três anos. Do encontro na cachoeira que você nunca apareceu. — o lembrou tristemente. — Eu estou aqui! — Sebastian continuava a segurar os braços dela. — Me ouça! Aurora não continha o choro desesperado. — Você sabia que eu estava vivo. Sabia que eu podia voltar a qualquer momento por causa do sacrifício que você fez por mim em Gallia, lembra? — remexeu a ferida que estava cicatrizada em Aurora. — Ah, Lunno como tenho certeza que você não sabe, eu sou imortal agora tanto quanto você! — desdenhou fitando-o por poucos segundos. — Isso é verdade, Aurora? — Lunno questionou surpreso. — Sim, é verdade, só eu sabia disso. — Aurora falava, limpando com agressividade as lágrimas em seu rosto. 257
— Aurora, me ouça! — Sebastian pediu com aquela gentileza que sempre teve para com ela. — Eu sei que é tarde para dizer isso, mas eu sinto muito. — seus olhos brilhavam e ele franzia o cenho. — Eu também sinto muito. — Aurora limpou a garganta e continuou. — Esperava que apodrecesse com sua maldita imortalidade naquela ilha por muito mais tempo. Vai embora! — gritou bastante alto empurrando Sebastian para longe. — Vai embora daqui! Você é um fantasma, um fantasma. Você está morto. Você está morto. — repetia com as mãos nos cabelos totalmente alternada. — Você está morto! — praguejou. — Vai embora daqui, já disse! Sebastian virou-se e encarou com extrema raiva a face de Lunno, que estava se fingindo de coitado e ofegante. — A nossa conversa não acabou ainda, Lunno Bellator. — disse Sebastian. Em seguida virou-se e caminhou em passos lentos até Aurora, encarando-a com lágrimas quentes nos olhos. — E a nossa conversa ainda nem começou, Aurora. Eu vou voltar. — VAI EMBORA! — pela última vez Aurora gritou, vendo Sebastian sumir na escuridão da floresta. Aurora ficou um tempo tremendo com aquilo tudo, até que percebeu o ferimento do irmão. — Eu vou cuidado disso. — ela disse. — Aurora, eu estou bem. Eu só não quero ver você assim. — Preciso de um tempo sozinha. — Aurora pediu sem dar atenção para qualquer resposta que poderia vir de Lunno. Caminhou a passos lentos e desajeitados pela floresta. Por que ele haveria de voltar logo agora? Em meio a tudo isso? Era o que Aurora se perguntava. Depois de tanto tempo, tantas reviravoltas e surpresas. Nenhuma fora tão destrutiva quanto a que acabara de passar com a volta de Sebastian. Uma poça de água da chuva um pouco límpida por não ter se misturado totalmente a terra, estava à frente do próximo passo que Aurora daria, quando viu sua imagem refletida nela, parou. Seu rosto estava inchado de tanto chorar e seus olhos estavam cobertos por um vermelho. Os cabelos emaranhados e sujos escondiam a beleza jovial dela e davam lugar a uma moça sofrida e sem esperança de dias melhores. 258
Aurora agachou-se em frente à poça e abaixou a cabeça. Quando por fim levantou, num espasmo seus olhos viram o reflexo de Sebastian sorrindo para ela. Aurora o encarou com o mesmo semblante por um longo momento. “Isso não pode estar acontecendo, só pode ser um pesadelo!” - pensou. “Temo alertá-la de que é tudo real” - teimosamente a voz irritante da entidade intrometeu-se em seus pensamentos individuais e manifestou-se dentro da mente de Aurora mais uma vez. Aurora ignorou e virou-se para ver se Sebastian estava mesmo ali, porém fora tudo ilusão de sua cabeça. Ela examinou o local sem pretensões e caiu de joelhos no chão, chorando e gritando. Martirizando a si mesma. Ela se sentia culpada, tudo na mente de Aurora a levava a crer que desde o início a culpa era dela. E pensando dessa forma, os gritos apenas soavam mais fortes e estridentes. Ela rastejava pelo chão, sujando-se ainda mais e isso pouco importava para ela. Os berros do choro não paravam enquanto engatinhava e quando parou apenas abraçou seu próprio joelho e começou a gritar mais alto ainda, como um clamor impossível para que os deuses matassem novamente Sebastian, entretanto, o que ela realmente queria era que tudo voltasse a ser como os dias na cachoeira, as festas em Nerann, os treinamentos dos primeiros meses, onde tudo era mais fácil. O que poderia acontecer a partir dali era incerto para Aurora. Uma incerteza que custaria noites sem dormir e pensamentos fixados praticamente apenas nisso. Ver aqueles olhos azuis novamente, sentir o seu cheiro, a temperatura de sua pele. Aquele era Sebastian, a outra parte de Aurora que estava esquecida e largada em algum lugar de sua mente. E com a volta dele esta acordou de um sono enraizado. Passado algum tempo depois da volta de Aurora até onde Lunno estava cuidando de seu machucado, ela ainda em estado de choque foi até seu irmão. Traidor? Aurora só podia deduzir que todos esses anos que Sebastian passou na ilha o tornou louco, era a única explicação. — Todos esses anos longe... o recebi da melhor maneira e Sebastian faz uma coisa dessas. — Lunno dizia, enquanto tentava estancar o pouco sangue que saia de sua boca.
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— A não ser que ele tenha enlouquecido esses últimos anos. — Aurora fitou Lunno nos olhos encarando-o com um ar de dúvida. — Você fez alguma coisa para ele agredir você daquele jeito, Lunno? — Como é que você pode duvidar de mim, Aurora? Por acaso fui eu que me fingi de morto para fugir da culpa da morte do príncipe ou fui eu que fiquei e aguentei passar por tudo com você? — Lunno disse. — Desculpa, desculpa. Eu não sei por que disse isso. — Aurora lamentou. — Eu... eu vou buscar alguma coisa para comermos. — disse, saindo rapidamente dali. Quando Nerann dormia a noite, Aurora era invadida pelas lembranças de Sebastian e pensava nele não como um assassino de uma criança, mas como o homem que ela amou de verdade. Que salvou sua vida inúmeras vezes sem ao menos conhecê-la direito. Esse era o Sebastian que ela conhecia, por mais que a realidade o colocasse como um assassino fugitivo, ela nunca conseguiu vê-lo verdadeiramente dessa forma. Estava perto de amanhecer, mas a chuva não cessara. Aurora caminhava para o lado esquerdo, onde havia árvores frutíferas e vastas flores pelo chão. Antes de colher os frutos para levá-los ao irmão, notou uma flor diferente em meio a tantas da mesma cor avermelhada. Esta era branca e mais linda que as outras, apanhou a flor redonda, com as pétalas macias, notando como o caule ainda estava com pequenas gotículas de água. Sorriu em silêncio, ouvindo o sussurro da chuva que ainda caía. — A lótus é uma flor aquática, encontrada apenas em situações especiais para nos lembrar de seu simbolismo, é uma flor rara e simboliza proteção. – uma voz grave surgiu. E antes de Aurora olhar mais uma vez para a flor, ela virou-se e vislumbrou o rosto de Sebastian. Era real, ele estava ali. — E eu sempre vou lhe proteger, não importa os riscos que eu tenha que correr, não importa se você acredite ou não em mim. Sempre vou estar aqui para você. Novamente os olhos dela encheram-se de lágrimas que não caíram. Os olhos de Aurora ainda estavam nos dele, imóveis. — Como você conhece tanto de flores? — Aurora propôs um assunto que não fosse a volta dele.
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— Naquela ilha há milhares e dos mais diversos tipos. — os olhos dele claramente indicavam que lágrimas queriam sair também. — Eu voltei Aurora. — franziu o cenho. — Três anos Sebastian... três anos, você acha que eu queria acreditar nisso? Na sua volta? — Durante três anos eu lutei naquela ilha para sobreviver, até descobrir por meio deles que eu era imortal e de tudo que você fez por mim. Eu voltei por isso... você sabe que neste momento somos mortais novamente, não sabe? — Sebastian a lembrou. — O preço do meu sacrifício foi esse. Para mim você estava morto! — Mortos não voltam. — Você era um assassino! Foi isso que Lunno disse. — Aurora alterou seu tom de voz. — Ah, “o que Lunno disse”. E depois disso... das coisas que você ouviu, resolveu aceitar, simples assim? — Não fala do que você não sabe. Você não faz ideia do quanto sofri por você, do quanto suas lembranças vagavam em minha cabeça. — Você se casou com Elin! — Sebastian praguejou sentindo nojo daquilo. — Eu sofri por você! — ela gritou. — Me casei com ele para me proteger e se você sabe de tudo, deveria saber disso também. Eu procurei por respostas, fui até Sete, eu vi o sangue de Alphas e Lunno disse para todos que você o matou por ciúmes de mim e fugiu com medo. — Fuga? Ciúmes? Foi tudo uma armação. — Armação? — Aurora o indagou. — Eu vi o corpo de Alphas e você não estava lá. Eu fui até a cachoeira todos os dias e você não estava lá. Você tem noção de como eu me sentia? — continuava segurando a lótus em suas mãos. — E é disso que eu sei e foi com essa história que eu vivi durante meus três anos. — Eu não sei como Lunno conseguiu isso, mas você precisa acreditar em mim Aurora. Que durante esses três anos eu fiquei isolado, acreditando em uma morte que eu não provoquei. Culpando-me por abandonar você e minha irmã. E a única coisa que eu lembrava dentro daquele inferno era você. Do nosso encontro marcado naquela cachoeira. Por várias vezes eu estive a beira do que pensava ser minha morte antes de 261
saber do seu sacrifício, mas algo dentro de mim me dizia que não podia temer. Eu precisava sobreviver. Foram várias fugas frustradas, porém, eu não podia desistir. Até que ganhei a confiança dos filhos da terra e passei a saber dos mistérios que rondavam aquele lugar. E a força para enfrentar tudo isso vinha de você, de tudo que tínhamos vivido e aprendido juntos. — limpou a garganta e continuou. — E tudo valeu a pena. Perigos, doenças, fome, frio. E estou vendo você agora. Eu nunca deixei de amar você um dia sequer. E eu achei sim, que você não acreditaria que matei o príncipe por que quis. Mas quando eu volto, o que eu encontro? Você casada com outro homem e acreditando em todas as mentiras que seu irmão contou, não dá para acreditar nisso. — pegou delicadamente a flor das mãos de Aurora e a jogou agressivamente na terra. — Como eu podia imaginar? — Aurora disse. — Isso tudo que você falou, foi uma armação do seu irmão para acabar comigo. — Lunno nunca falou mal de você depois que isso tudo aconteceu. Tudo que eu soube de assassinato, ciúmes, tudo isso foi através dos fatos. — Aurora, acredite em mim. Foi Lunno que usou aquele maldito poder que ele tem para manipular a mente de Alphas para me fazer ficar descontrolado. Foi tudo um plano dele, metricamente armado por ele. — Sebastian implorava para Aurora acreditar no que realmente era verdade. — Lunno mentiu sobre tudo o que aconteceu naquele dia na floresta? Forjou o sangue que escorria do peito de Alphas, forjou sua fuga? É isso? — ironizou. — Que provas você tem contra ele? — Você está duvidando de mim, Aurora. — Por que ele faria isso? Ele é meu irmão! — Para me ver longe de você. — Sebastian bufou. — Vocês verteram lágrimas, enquanto eu vertia SANGUE! — Pelos deuses, Sebastian. Ele nunca faria isso por ciúme. — Aurora falou confusa, passando a mão destrambelhada nos cabelos. — Quando se ama, se é capaz de fazer qualquer coisa Aurora. — Sebastian segurou delicadamente os braços de Aurora. — Uns jogam baixo como ele jogou e uns fazem qualquer sacrifício como eu e você fizemos um pelo outro. — ele via as lágrimas teimosas saindo aos poucos do rosto de
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Aurora. — Olha para mim. — pediu. — Olhe dentro dos meus olhos. Você acha que estou mentindo? Houve uma pequena pausa. Sebastian a via bela. Bela como apenas ela era aos olhos dele, afastou levemente alguns fios de cabelo que caíam pelo rosto dela, carinhosamente, não se conteve e beijou-a num espasmo. Foram beijos demorados e Aurora não fez questão de afastar Sebastian de seu peito. Ela também queria aquilo tanto quanto ele. — Para. — ela sussurrava em meio ao beijo. — Para! — mandou, afastando Sebastian com as mãos. — Por quê? — ele perguntou. — Eu não tenho culpa, você não tem culpa. Vamos começar nossa vida daqui, vamos esquecer o que passou e começar nossa vida daqui, agora. — sussurrou perto do rosto de Aurora. — As coisas não são tão simples assim. — balançou a cabeça em negativa. — Eu não passei por tudo que passei para voltar e ver você acreditando nas mentiras do seu irmão. Um irmão que se dizia meu amigo e acabou com três anos da minha vida. Eu voltei para você, para continuar nossa vida de onde ela parou. — ele tentou beijá-la novamente. — Você não entende. — afastou-o. — As coisas mudaram, Sebastian. Eu tenho marido, uma missão. Não posso simplesmente esquecer que estou no meio de um torneio. — Esse torneio já acabou! — ele praguejou. — E nós dois? O nosso amor? — Não me peça isso agora. Eu preciso ir. — estava notoriamente transtornada. — Aurora, espere! — Sebastian pedia correndo atrás dela. — Se você ainda sente alguma coisa por mim, me espere. Vamos conversar. — Não posso, há outros como eu e meu irmão que estão me esperando. Eu não posso! — Isso não é desculpa. É o Lunno? — a indagou com um tom grave. — Você prefere acreditar nas mentiras dele do que em mim, é isso? — Sebastian, por favor! — Aurora pedia com lágrima nos olhos. — Você está dizendo que a nossa história acaba aqui, Aurora? — ele perguntou.
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Houve outra pausa de olhares chorosos e sinceros. Enquanto a chuva ainda caía acanhadamente sobre seus rostos. — Não acredite que estarei com você o tempo todo, pois até sua própria sombra a abandona na escuridão, mas estamos cravados um ao outro. — Eu preciso ir. — Aurora virou-se para ir embora. — Pode ir, Aurora. Estou vendo que a nossa história realmente terminou. Três anos atrás. — ele dizia para si mesmo, enquanto via Aurora indo embora. De repente, viu uma espécie de agulha perfurando a nuca de Aurora. E em seguida ela virou-se para ele e com o olhar mais triste que ele pôde sentir, caiu no chão. — O que diabos é isso? — Sebastian gritou, correndo para Aurora. Quando avistou duas criaturas com asas enormes e seios para fora, atirando agulhas sobre ele. Sebastian esquivou-se, porém, eram muitas e logo uma delas acertou seu pescoço. Ainda conseguiu acertar a perna de uma das criaturas com uma flecha, entretanto, não adiantou muito. Sebastian caiu no chão, e com os olhos entreabertos pôde ver as duas criaturas bizarras, chamadas de harpias, levarem Aurora nas costas. Foi levada sem ao menos ele saber o porquê. Os cabelos dela balançavam ao ar e seus olhos estavam fechados, e a lágrima que teimava não cair enquanto estavam conversando, agora despencava de seus olhos. E esta foi sua última lembrança, antes da vertigem e desmaio.
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Capítulo 25
Estopim urora abria seus olhos lentamente, contraindo as sobrancelhas e sentindo uma agonia insuportável no peito. As mãos trêmulas buscaram apoio nos joelhos, porém não conseguia alcançar. Foi quando percebeu que seus pulsos estavam presos por uma corrente fortíssima e por mais força que ela tentasse fazer, era inútil. O lugar em que ela estava tinha um cheiro fétido e era iluminado por alguns feixes de luz que transpassavam pelos orifícios das fechaduras de uma porta de aço. O corpo de Aurora estava imundo, seus cabelos ainda mais emaranhados e sem a cor viva de antes por causa do sujo que se instalou neles. “Que droga de lugar é esse?” - Aurora questionava-se. Os ratos ainda mais imundos que ela corriam por entre seus dedos no chão, entretanto ela não sentia nojo, não fazia ideia de onde estava e eles seriam o menor de seus problemas vindouros.
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“Juro que tentei ajudar você, mas você não me dá ouvidos. Só quer agir conforme a sua tola vontade.” - a voz de Cinzas ressoou em sua mente na hora em que Aurora menos queria. — Então me diga como sair daqui já que você é tão esperta assim. — Aurora exigiu. “Só peço que seja cautelosa a partir de agora, não aja por impulso ou você colocará tudo a perder novamente”. — Do que exatamente está falando? — aumentou o tom de voz com a entidade dentro dela. “Aproveite as chances que os deuses lhe darão”. Foi tudo que conseguiu escutar, até ouvir um som estridente de chave girando dentro da fechadura daquela imensa porta de aço. Quem haveria de ser desta vez? Uma daquelas harpias nojentas talvez, mandando Aurora se ajoelhar para receber açoites de chicotes como fizeram com Lutiel. Entretanto, quando a porta por fim se abriu, outro ser munido de uma fisionomia um tanto estranha para Aurora. A criatura tinha uma pele dourada e uma coroa de folhas por onde surgiam chifres amarronzados que se enroscavam por seus cabelos castanhos escuros e ondulados. Da cintura para cima parecia perfeitamente um homem – não levando em consideração aqueles chifres enormes - o mais estranho para Aurora era que ele possuía pernas de bode que eram da mesma coloração que seus cabelos, eram pelos brilhantes e sedosos. Seu rosto tinha um formato oval, seus lábios eram bastante carnudos e seu nariz animalesco. Os olhos eram de um vermelho escarlate num tom mais escuro. Também tinha uma barbicha pontiaguda e seu esbelto peitoral robusto estava à amostra. Sua expressão parecia calma e sorridente. Logo Aurora, percebeu que ele não era como as criaturas que a levaram. Trazia nas mãos um prato feito de madeira marrom-claro com algo que parecia ser uma sopa de legumes. Seu olhar transmitiu paz para Aurora, mesmo ela estando nervosa com o que poderia acontecer dali para frente. A esbelta criatura estendeu o prato em direção à Aurora e tirou do bolso uma colher de ferro que em seguida também deu para ela. Aurora pegou ambos e pôs-se a comer. — Você estava com fome, não é? — a criatura sorriu para Aurora. Aurora levantou a cabeça e passou a encará-lo. 266
— O que você é? — ela perguntou. — Sou um fauno. Proveniente das terras mortas de Rhalmenezer. — disse ele. — Me chamo Feerick. — estendeu sua mão para cumprimentá-la. — Aurora Bellator. — disse sem estender a mão de volta. Feerick ficou um tanto constrangido com aquela situação, mas logo tentou arrumar um jeito de não ser tratado como mais um servo de Circê. — Quer mais? — Feerick perguntou sorrindo. — Não, obrigada. — Aurora respondeu. — O que querem de mim? — Só quem pode responder isso é a deusa Circê, eu apenas cumpro ordens. — ele respondeu com uma expressão tristonha. — E se eu dissesse que tenho poder suficiente para mata-lo agora e sair daqui? — Aurora questionou Feerick. — Eu diria que você não faria isso. — franziu o cenho. Feerick de fato não estava com medo, algo dizia que Aurora não faria nada com ele. — Tem certeza? — em um rápido movimento Aurora avançou sobre Feerick pegando seu punhal do cinto e colocando em seu pescoço. — Qualquer movimento seu e eu corto sua garganta. — Calma. — Feerick pedia desesperadamente. — Eu não queria tomar parte de tudo isso, mas fui obrigado, se não o fizesse minha família seria morta. Aurora via nos olhos de Feerick que estava dizendo a verdade. Ele não queria estar ali, ele não queria o mal dela. Ela viu uma lágrima cair de seu olho esquerdo e lembrou-se das lágrimas de Sebastian quando se reencontraram. Eram lágrimas sinceras que diziam muito mais do que as próprias palavras e ações. Aurora atirou o punhal no chão e soltou Feerick. Ele estava ofegante e respirava com dificuldade. — Me desculpe — Aurora pedia. — Não se preocupe você não sabia, não é culpa sua. — Feerick dizia tentando tomar ar. — Quando a trouxeram para cá disseram que o mal está encarnado em você e que Circê traria a paz sacrificando-a e aprisionando o mal que está no seu corpo, em outro lugar. — o olhar dele era de espanto. — Isso é verdade?
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— Não acredite em uma palavra que essa desgraçada proferir. É tudo mentira, mas não posso explicar com detalhes agora, você precisa me ajudar a fugir daqui. — Eu não posso. Se descobrirem, sou um fauno morto. — ele dizia. — Você sabe que eu não sou o que ela disse. Olhe nos meus olhos. — Aurora pedia segurando fortemente os braços de Feerick. — Ela vai me matar se eu não sair daqui, aliás onde estamos? — Rhalmenezer, a terra morta. Onde antigos seres poderosos habitavam. — um ar sombrio tomou conta de sua voz. — Eu sinto que você não é uma ameaça, Aurora. — Então me ajude! — exclamou. — Você não entende. — Não entendo o que? — O que Circê diz não pode simplesmente ser quebrado. O ritual está próximo e somente a morte trará a luz do infinito. — aquelas palavras produziram uma sensação estranha em Aurora, embora não sabesse exatamente o que significava. Feerick pegou o prato das mãos de Aurora e saiu às pressas sem dizer uma única palavra. “Somente a morte trará a luz do infinito”. Para Aurora isso não estava fazendo sentido algum e que ritual seria esse? Só restava a ela esperar para que o destino a pusesse novamente frente a frente com um futuro que ela não se dava conta do que poderia ser. Os olhos de Feerick deram-lhe esperança e a última coisa que Cinzas havia dito era: “Aproveite as chances que os deuses lhe darão”, e certamente esta era uma dessas chances. *** A noite já havia tomado conta do céu na floresta Sete, onde a lua brilhava como uma rainha majestosa. Brave fora o mais esperto de todos os honrados do torneio, ele já sabia o que estava acontecendo desde o momento que pisou naquela floresta. Quando encontrou Greta, ela estava quase morta perto de uma árvore e Brave a convenceu de que só podiam sobreviver se ajudassem uns aos outros e foi assim quando achou Ragnar também. O mais difícil de convencer foi Lunno, porém, de algum modo ele aceitou e todos foram procurar por Aurora e Sebastian. 268
Quando chegaram ao lugar onde a flor Lótus brotava teimosamente, viram Sebastian desacordado no chão e boa parte da terra da floresta cobria seus cabelos e seu manto escuro. Algo havia acontecido ali. Lunno começou a procurar e gritar por Aurora desesperadamente e só então percebeu que ela não estava em parte alguma daquele raio da floresta. — Acorde seu desgraçado! — Lunno gritava, enquanto sacodia Sebastian pelos braços. Logo ele acordou e quando vislumbrou a figura de Lunno em sua frente, fechou os punhos e acertou um golpe certeiro no queixo dele, que cambaleou para trás. — Aurora! — Sebastian exclamou. — O que você fez com a minha irmã, maldito? — Lunno avançou mais uma vez, não contendo a fúria que partia de si. Uma briga começou. Lunno cerrou a mão e deu um soco no rosto de Sebastian. Os próximos golpes foram bloqueados por ele que não hesitava em aumentar a potência de seus socos. — Eu não quero brigar com você! — Sebastian gritava. — Tem medo de me enfrentar? — Lunno questionou limpando o sangue que escorria de seu nariz. Em outro rápido movimento, tentou acertou um chute certeiro na cabeça de Sebastian, mas uma mão o parou. — Não! Vocês não vão brigar! — Brave declarou fortemente, apartando a briga dos dois. — Não sejam tolos, a essa altura não há motivos para brigas sem nexo. Uma vez um velho sábio me disse: “Quando tudo for pedra atire a primeira rosa.” Sebastian, meu nome é Brave, sou um dos cinco hospedeiros selados. Onde está Aurora? — Levaram-na. — ele disse abaixando a cabeça em sinal de frustração. — Como assim levaram-na? — Lunno alterou-se novamente. — Para onde? — Bem estressadinho esse ruivo, não? — Greta cutucou o braço de Ragnar, rindo. — Calma Lunno. — Brave pediu. — Sebastian conte-nos o que houve. — Estávamos conversando e ela virou-se para ir embora na direção de onde vocês vieram e algo atingiu sua nuca, não sei bem o que era, mas 269
parecia uma espécie de agulha. E rapidamente ela apagou e caiu no chão, eu tentei lutar com aqueles seres medonhos que apareceram em seguida apanhando ela pelos braços e pernas, porém fui atingido pela mesma agulha e desmaiei. Só vi quando as asas das criaturas bateram e levantaram voo levando Aurora nas costas. — Só podem ser as harpias. — Greta afirmou. — Gallia está metida nisso? — Isso não podia ter acontecido. — Brave falou baixinho. — Escutem. Eu sei que somos todos diferentes, que temos histórias e personalidades distintas, mas, temos algo em comum e eu sei que vocês conseguem sentir isso quando estamos perto uns dos outros. As entidades dentro de nós, é por isso que estamos ligados de alguma forma. — E você por acaso é o chefe? — Greta questionou, desdenhando. — Não vou seguir ordens de um cara esquisito com orelhas pontudas. — Ele deve estar certo. — a voz grave de Ragnar se fez presente. — Desde que nos juntamos não sinto mais aquela coisa dentro de mim, querendo sair desesperadamente. — afirmou. — É disso que eu falo, juntos podemos controlar. Juntos somos mais fortes. — Brave anunciava. — Entretanto, sem os cinco juntos podemos ser facilmente controlados pelas entidades. Precisamos de Aurora. — Eu faço o que for preciso para resgatá-la. — Lunno disse. — Quando partimos para Gallia? — Não é tão simples assim. Se realmente foram essas harpias que a raptaram, o cativeiro pode não ser no lugar mais óbvio. Precisamos recorrer a uma ajuda que não estava em meus planos. — Brave delineou um semblante de preocupação. — Façam o que quiserem. Eu não vou tomar parte disso. Olhem como ela deixou meu rosto. — Greta disse, virando-se para ir embora. — Greta espera! — Ragnar a segurou pelo braço. — Lembra-se de quando éramos crianças e você chorava por ter algo incomodando você ai dentro. — apontou para seu peito. — É a sua chance de fazer algo digno por si mesma. Não quero que você viva uma vida vazia para sempre. Greta nunca havia escutado aquele tipo de coisa do grandalhão Ragnar. Ele sempre fez tudo por ela, desde pequenos. E apenas ele sabia 270
que Greta nunca conseguiu ser feliz, depois de ser expulsa do seu reino original. Eram apenas eles dois e foi assim por muito tempo, Ragnar entendia seu medo de ter pessoas que podia ou não confiar. Porém era uma escolha dela. — Tudo bem. Mas que fique claro que não vou me encher de amores por aquela maluca quando a encontrarmos. — ela afirmou, segurando a mão de Ragnar e a apertando forte. — Que tipo de ajuda nós precisamos? — Lunno ergueu sua voz para Brave. — O exército real de Nerann, a terra iluminada. — Sebastian anunciou, deduzindo tudo que Brave iria dizer. — Em uma masmorra bem no fundo de uma torre, há um filho da terra. Ele nos dirá onde Aurora pode estar. — Partiremos imediatamente para Nerann. Vocês estão comigo? — Brave perguntou. — Sim! — um a um formaram um pequeno coro em torno dessa palavra. E sem perda de tempo, todos partiram em direção à Nerann. Eles sabiam que não seria algo fácil, todos precisavam estar em posição de ataque caso algo acontecesse. Mas a força que provinha deles os faziam seguir em frente. Seguir para um caminho praticamente incerto que os levariam a uma possível salvação. *** Boatos de que a rainha e seu irmão haviam abandonado o torneio já corriam pelos pátios de Nerann. Esta era uma atitude desonrosa aos olhos da corte e quaisquer que fossem quem as cometesse, seria condenado a pagar um preço alto. Sua própria vida. O Rei Elin estava furioso por saber de tal fato, seu objetivo fora quebrado fatalmente com as atitudes insanas de sua rainha e ele não perdoaria isso. Numa manhã fria e assoberbada por uma neblina, a guarda real do rei invadiu os aposentos de Maria. Ela estava deitada de bruços e foi acordada com um forte grito de Sor Maleidon Gotrós. — ACORDE MALDITA! Vamos levá-la. 271
— Mas por... — Maria tentou falar ainda sonolenta, já que não entendia nada do que estava acontecendo, porém, Sor Maleidon a pegou fortemente pelos pulsos e braços e a levou com as roupas de dormir mesmo. O escolte foi duro e Maria era alertada a não gritar e nem tentar fugir, caso contrário seria pior. O sol incidia sobre as cabeças dos habitantes do reino e Maria podia ver entre os cílios semifechados que algo de muito importante estava prestes a acontecer. “Onde está Aurora e Lunno?” - ela perguntava-se a todo momento. Estava exposta à própria vergonha com aqueles trajes e sendo arrastada aos tropeços pelo piso quente do pátio. Foi quando avistou Lutiel e gritou por ele, pegando seus pulsos. — O que está acontecendo? Diga para me soltarem. — Maria pedia. — Maria, eu não sei exatamente o que houve, mas vou salvar você, eu prometo. — Lutiel falou, tirando as mãos de Maria de seus pulsos, enquanto a via ela debatendo-se nos braços de Sor Maleidon. Uma pira estava montada no centro do pátio principal, rodeada por galhos e pequenos troncos secos. No meio da pira havia um mastro de mais ou menos dois metros e foi para lá que Maria foi levada. — Desgraçado! — Maria cuspiu no rosto do capitão da guarda real, enquanto ele amarrava com cordas grossas as mãos e pernas de Maria no mastro em cima da pira. Maria não estava entendendo porque aquilo estava acontecendo e rodeava seus olhos na multidão de pessoas que havia se formado para vê-la, para ver se achava Lutiel ou Opherine e logo foi surpreendida por um forte tapa com o lado contrário da mãos de Sor Maleidon. — Traidora inútil. — ele dizia. No alto de uma torre média, O Rei Elin surgiu junto com sua filha, a princesa Sophitia. Estavam providos de vestimentas muito bem desenhadas pelos melhores alfaiates do reino e esbanjavam poder em seus ornamentos e pedras preciosas na coroa. E então o rei começou a dizer: — Como muitos de vocês sabem, o abandono do Torneio Genesis é visto como uma forma de traição ao reino e nesta manhã estou aqui para fazer valer a lei. — anunciava em um tom grave. — Sor Maleidon Gotrós prossiga. O capitão pegou um grande pergaminho e começou a falar: 272
— “Maria Addae, irmã do traidor de Nerann, você foi condenada a fogueira por causa de sua traição física e política ao reino por aliar-se a outros dois traidores: Aurora e Lunno Bellator. Será escoltada para o pátio principal do reino e será queimada viva para servir de exemplo para quem ousar pensar em fazer algo semelhante ao que fez. Severamente, Elin, rei de Nerann. Vida longa ao rei.”. A multidão começou a proferir ofensas contra Maria, que fora considerada mais uma traidora do reino por ser vista como aliada dos irmãos Bellator. A mente de Maria estava dando voltas e voltas sem saber para onde exatamente poderia se esconder o mínimo que fosse da sua nova realidade. Ela seria queimada viva pela atitude covarde de Aurora e Lunno? Por hora era sua única alternativa de dedução. A chama de uma tocha foi acesa por um soldado e ele estava prestes a atear fogo em Maria. Naquele momento ouviu-se apenas um som que cortou o vento, aquele som fora produzido por uma flecha que acertou o centro da testa do soldado que caiu no chão. A multidão ficou imóvel, até um grito soar de longe: — Soltem minha irmã ou eu acerto a cabeça do seu rei. — Sebastian anunciou apontando sua flecha em direção ao rei Elin, que não podia acreditar no que estava vendo, o assassino de seu filho estava vivo, assim como Lunno estava junto com o bando de invasores. — Matem esses miseráveis! — Elin praguejou, abaixando-se para não ser pego pelas flechas de Sebastian e entrou para dentro da torre junto com Sophitia. Os guardas logo avançaram contra o grupo. — Nós damos cobertura e você pega a sua irmã. — Brave gritou para Sebastian, enquanto atirava flechas com sua balestra na cabeça dos guardas. Completamente descontroladas, as pessoas começaram correr desesperadamente para suas casas. A linha de batalha estava formada. Os guardas de um lado e os hospedeiros junto com Sebastian do outro. Os hospedeiros avançaram com suas armas contra os guardas e iniciaram um festim de sangue no pátio do reino. Enquanto isso Sebastian correu para a pira onde sua irmã estava e começou a desamarrar as cordas que prendiam seus pulsos e pernas. Maria estava perplexa ao ver seu irmão novamente. Pensava que ele estava morto. 273
Preferia que ele estivesse morto, entretanto ele estava ali, salvando sua vida como sempre fazia. — Você está bem? — Sebastian perguntava tirando os cabelos sobre o rosto da irmã. — S-sebastian? — Maria gaguejou. — Eu... — ela não conseguia falar. Sua respiração começou a ficar ofegante e em seguida seus olhos se encheram de fúria. — Por que você me abandonou? — ela gritou, batendo no peito de Sebastian com uma força relativamente grande. — Minha irmã, eu não posso explicar nada com detalhes agora. Só confie em mim, eu estou aqui. — Você me prometeu que estaria no meu aniversário de dezoito anos e nunca voltou. — Maria choramingava. — Por que voltou logo agora? Por que? — Para salvar você. — Sebastian aumentou um pouco o tom da voz. — Venha comigo, precisamos encontrar alguém. — ele a apanhou pelo braço e a cobriu com seu manto negro em seguida. Maria notou as várias cicatrizes pelo corpo do irmão e em seu rosto, onde era mais nítido. Começou a perguntar-se o que havia acontecido com ele naquela ilha, certamente ele estava diferente, mas tinha o mesmo olhar puro de antes e ela nunca duvidou totalmente disso. — Que marcas são essas no seu corpo e no seu rosto? — Maria perguntou. — Cicatrizes enobrecem um homem. — foi tudo ele que disse. Correram para o lado onde ficavam as torres menores. Os aposentos onde os Addae e os Bellator ficavam nos primeiros meses de sua chegada a Nerann. Estando diante daquele cenário, perceberam o quanto eram felizes naquela época e Sebastian questionava-se o porquê de Lunno ter feito tudo o que fez e destruído a vida de todos eles diretamente ou indiretamente. Eram três torres, todas com o mesmo tamanho e diâmetro com distância de cinco metros uma da outra. — Vamos. — Sebastian afastou as lembranças de seus pensamentos e focou no que deveria fazer no momento. Entraram justamente na torre onde não havia ninguém. A torre do meio onde, na mente de todos, só habitavam as teias de aranha e os corvos que faziam ninhos horrendos no topo. Enquanto Sebastian tateava alguma 274
coisa no chão, Maria não parava de olhar para ele. Sua expressão, seu corpo, tudo havia mudado de alguma maneira, ela só não sabia se para pior ou para melhor, entretanto, por mais agonia que ambos estivessem no momento, ela não podia deixar de fazer uma pergunta. — Sebastian... — Maria começou. — Há três anos, naquela floresta...você matou mesmo Alphas? Sebastian parou de tatear o chão e levantou-se para olhar nos olhos da irmã. — Se eu realmente tivesse feito tudo que me acusaram de fazer, eu nunca teria fugido. — foi tudo que disse. E voltou a procurar algum tipo de passagem secreta para o subsolo da torre esquecida. Maria sabia disso, só precisava ouvir da boca dele depois de todo esse tempo. As acusações que vinham aos montes sobre o irmão a forçaram a acreditar cegamente que isso era verdade e ela nunca pensou claramente sobre o assunto. Nunca quis ver uma versão oposta da que diziam. Se Sebastian tivesse matado Alphas, a primeira coisa que faria era se entregar para ser preso e como consequência, morto. A sua honra obrigava-o a isso. — Achei! — Sebastian disse. Um emaranhado de pedras foi se formando abaixo deles até se tornar uma escada que daria em uma masmorra fétida e sem iluminação alguma. — Vamos. — E então ambos desceram. Maria descia sem questionar o que estavam fazendo ali, apenas confiou no irmão como ele havia pedido momentos atrás. Maria percebeu que essa masmorra fazia parte de um dos túneis do reino e ela conhecia esses túneis melhor do que ninguém. — Acho que já estive aqui antes. — Maria disse. — Aqui? — Uma longa história. Esse cheiro é familiar. Por aqui. — Maria apontou para o lado esquerdo. O lugar estava um completo breu e eles sentiam o chão recheado por pedras, grandes ou pequenas, dificultavam o andar deles e ao passo que caminhavam o cheiro ficava mais insuportável e Sebastian sabia por quê. — A grade, toquei nela. Chegamos onde eu queria. — Sebastian declarou. E rapidamente começou a assobiar um canto estranho para Maria. Parecia um assobio de chamamento proveniente de uma raça específica.
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— Sebastian? — uma voz quebrou o silêncio. Era uma voz cansada e bem grave. — É você? — Sim, irmão, sou eu. Apareça, preciso lhe ver Atzlam. — Sebastian pediu para ele. — Atzlam está a sua disposição. — disse ele. Enquanto ele dizia isso, uma forte luz emanou de seus olhos e se podia ver que era um ser disforme, negro e sem orelhas. Maria logo deduziu que esse era um legítimo filho da terra. A raça mais selvagem e destrutiva de que se ouvia falar. — Irmã, deixe-me a sós com ele. — Sebastian pediu. — Tem certeza? — Sim, vá. — docemente mandou e Maria se afastou a uma distância considerável. — O equilíbrio das entidades está abalado com o rapto de Aurora. Para onde a levaram e o que querem dela? — Sebastian indagou Atzlam. — O mundo nunca foi justo, nem para os portadores de grandes poderes. Esses são os que mais sofrem por carregarem o grande peso de uma responsabilidade maior do que qualquer uma. O dom de hospedar uma entidade poderosa é incalculável e apenas juntos eles podem deter o avanço de suas manifestações, entretanto, a entidade que habita em Aurora é a irmã maior entre todas as outras e consequentemente a detentora do maior poder. — ele tossia em meio as palavras cortadas que saiam de sua voz grave. — A deusa Circê a fez prisioneira no reino antigo de Rhalmenezer e está prestes a cumprir um ritual. Um ritual que será a ruína de toda Terdállia. Somente a morte trará a luz do infinito. Vocês precisam resgatá-la. — Atzlam terminou sua fala. — Somente a morte trará a luz do infinito? — questionou. Aquela frase estava marcada em Sebastian desde o dia em que se lembrou dela no momento do sacrifício de Velha Amur. Essa frase tinha um poder imenso na mente de Sebastian e até o momento ele não sabia deduzir o porquê desse impacto tão profundo. Porém, sabia onde Aurora estava e sabia que precisava partir logo, antes que fosse tarde. — Eu volto para tirar você daqui. — Sebastian disse. — Meu destino já está traçado, vá e não tema o perigo que o rondará dia após dia. Esteja pronto para decisões que colocarão seus 276
princípios em jogo. — Atzlam falou, escondendo-se na escuridão que assoberbava o local inteiro. O cheiro havia aderido ao nariz de Sebastian e ele não sentia nada além de um cheiro normal. Sebastian se afastou da cela de Atzlam e já tinha em mente tudo o que havia de ser feito dali em diante. — Vamos sair daqui, já sei o que precisava saber. — disse ele à irmã, segurando as mãos dela e entrelaçando-as. Maria sentiu com aquele gesto que aquele era o irmão dela. O irmão que ela não via há três anos e que sempre cuidou dela. Subiram as escadas por onde vieram e Sebastian ajudou Maria a subir, já que ela estava um pouco fraca e sonolenta ainda. A torre esquecida era simples, havia uma escada em espiral até o topo que ligava os quartos que existiam lá no alto e, fora isso, só as pedras cinzentas “enfeitavam” o lugar. Os primeiros passos para fora da torre começaram a ser dados pelos irmãos. De repente, uma sombra emergiu atrás deles e anunciou: — Onde você pensa que vai assassino? — era a voz forte de Elin. Ele estava empunhando uma espada, a espada Órgus que Alphas usou contra Sebastian no dia de sua morte em Sete. Sebastian e Maria viraram-se para encarar a fúria de Elin. — Atrás de mim. — Sebastian sussurrou para Maria. — Eu vou desfazer a tolice que você fez. — praguejou em direção a Elin. — Daqui você não sai com vida. — Elin disse. — Vida? — Sebastian riu. — Como você acha que sobrevivi na ilha? Caçando? — mais uma vez riu. — Me admiro da sua estupidez. Eu sou imortal agora. Maria espantou-se com tal afirmação do irmão. “Imortal? Como?” ela questionava-se. Agora as coisas começavam a fazer sentido para ela. A única explicação de sua sobrevivência naquela ilha só poderia ser essa e nenhuma outra. — Imortal? Poupe-me de suas mentiras. Você matou meu filho e irei cortar sua cabeça e colocar como tributo a ele na frente do castelo. — Elin disse, avançando sobre Sebastian, cravando a espada em seu abdômen. — SEBASTIAN! — Maria gritou.
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O arqueiro olhou dentro dos olhos do rei e não ostentou nenhuma compaixão. Apenas sorriu acanhadamente, enquanto tirava a espada ensanguentada de seu abdômen. — Eu não matei seu filho! Lunno matou. Ele era o lobo disfarçado de cordeiro e só vocês não enxergaram isso até agora. Preferiram me culpar, preferiram acreditar nas mentiras dele, porque era mais fácil, enquanto eu apodrecia naquela ilha. — Sebastian cuspia sangue e já empunhava a espada que havia acabado de tirar de seu estômago. — E quanto a você, nobre rei de Nerann, você enganou a todos. Você queria usurpar o reino criador e tomar posse dele e para isso passou por cima de todo mundo. Manipulou aquele torneio para fazer todos os hospedeiros se matarem entre si e não sujar suas preciosas mãos. Você só subestimou que eles foram os únicos que sobraram e que uniriam-se em seguida. Você se deitou com sua própria filha, porco imundo! — Não fale do que não sabe. — Elin avançou sobre Sebastian transtornado com a sua última afirmação. Sebastian não precisou fazer nada. Órgus penetrou o abdômen de Elin que caiu no chão junto com a sua espada. Foi morto pela sua prepotência, vencido pelo próprio ódio. Sebastian nunca foi um assassino e agora ele estava provando isso e desmascarando tudo o que havia acontecido. A formosura da ilusão era imensa dentro da mente de Elin e isso o cegou tanto a ponto de provocar sua própria ruína. Maria estava completamente confusa. A chegada inesperada de seu irmão, dado como morto, as revelações sobre Elin e principalmente o que Sebastian havia dito sobre Lunno. — Isso tudo é verdade? — ela perguntou com lágrimas nos olhos. — Eu nunca menti para você. Lunno traiu todos nós. Maria não conseguiu prender a tristeza em seu peito e as transferiu para suas lágrimas que começaram a escorrer de seus olhos, lentamente abaixou-se sobre o chão frio de pedra e abraçou seus joelhos. — O que houve minha irmã? — Sebastian perguntou agachando-se e acariciando os cabelos de sua irmã. — Eu trai você também. — ela disse. — Como assim? — Me deitei com ele. — ela soluçava. — Me deitei com ele. 278
Sebastian precisava conter a fúria que estava sentindo ali. Ela não tinha culpa, como poderia saber de tudo aquilo sendo que Lunno era um mentiroso nato? Maria sempre sonhou em se tornar mulher com um homem de bem, um homem como Hélio, mas sua inocência foi tanta que chegou a esse ponto. Ao ponto de entregar-se a alguém como Lunno. Sebastian fechou os olhos contendo seu choro de raiva e logo voltou seus olhos para a irmã, engolindo em seco. — Me perdoe, é tudo que eu peço. — ela repetiu a frase por três vezes aproximadamente. — Não tenho o que perdoar, Maria, você não sabia. Esquece isso, temos coisas mais sérias para tratar agora. Uma guerra se aproxima e você vai precisar lutar também. Maria limpou as lágrimas que julgava serem imundas por ter sido tão ingênua e cair nas mãos de Lunno. Mas agora ela tinha a chance de reverter isso, a chance de fazer valer o sangue Addae. — Lunno está aqui, nós, recusando ou não, precisamos da ajuda dele. Ele também é um hospedeiro, mas não podemos confiar nele e agora você sabe exatamente o porquê. Prometa-me que vai tentar se controlar quando o vir? — Eu vou tentar. — prometeu. — Agora vamos. A batalha espalhava-se pelo pátio principal de Nerann. Brave havia alertado aos outros que não fizessem vítimas fatais, portanto, não havia nenhum morto ainda, além do soldado que iria atear fogo na pira onde Maria estava presa e o próprio rei Elin. Sebastian e Maria correram até a torre onde ficava o quarto de Sophitia para busca-la. Chegando lá ela estava empunhando uma espada, um pouco mais fina do que as normais utilizadas pela guarda real. — O que vocês querem? — Sophitia tremia empunhando a espada desengonçada. — Não queremos machucar você, Sophitia. Lembra quando a alertamos sobre seu pai? — Maria falava docemente. — O que tem? — Alguém precisava dar um basta nos planos malignos dele ou todos iriam perecer, inclusive você. Eu prometi a Aurora que cuidaria de você. — Maria aproximava-se. — Dê-me isso. 279
Sophitia hesitou em entregar e logo fez um súbito movimento com a pequena espada. — O que aconteceu com o meu pai? Andem, falem! — gritava. — Ele morreu. — Sebastian disse. — Sophitia, ele não era um homem bom. Você mais do que todos neste reino sabia disso. Não sabia? — Maria lembrou-a. — Mas ele era meu pai. A única família que eu tinha. Onde Aurora está? — tremia a todo o momento e a espada, por fim, caiu no chão e junto com ela Sophitia também caiu de joelhos chorando. — Nós precisamos sair daqui e você é a única que eles ouvirão. Você é a princesa de Nerann, está na hora de agir como tal. — Maria pediu sutilmente para ela, enquanto ajudava-a a levantar-se. Deu um forte abraço nela e arrumou seus cabelos. — Vai ficar tudo bem, pode confiar em nós. — Em você eu confio, nele não. — disse ela apontando para Sebastian. — Maria, estamos ficando sem tempo, vamos logo com isso. — Sebastian praguejava, vigiando a porta. A corrida para o pátio central foi frenética e acompanhada por medo e incertezas, porém, todos estavam determinados a fazer de tudo para resgatar Aurora. O pátio ainda estava tomado por lutas quando chegaram até lá e só havia um jeito de parar com aquilo. Maria acenou com a cabeça para Sophitia. — PAREM! — Sophitia gritou como um trovão, pela primeira vez. Os guardas logo pararam de atacar os hospedeiros, que estavam suados e imundos. E escutaram o que Sophitia tinha a dizer. — Escutem as palavras dele. É uma ordem da princesa de Nerann. — Sophitia anunciou. — Não seguiremos ordens suas, só as do rei. — um dos guardas gritou. — O rei está morto! — Sophitia retrucou num tom mais grave ainda. — Eu estou no poder agora. — e assim ela tomava a coragem que lhe faltava há tempos. E então Sebastian tomou sua posição, tossindo de lado e engolindo em seco antes de falar para todos ali que o olhavam com um ar de acusação.
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— Povo de Nerann, eu sei que estão surpresos por me verem aqui. Depois que fui acusado da morte de Alphas, estive fora por todo esse tempo, mas, algo me trouxe de volta até aqui. O rei de vocês estava o tempo todo querendo usar e manipular a todos para que seguissem suas ordens e dessem-lhe o poder necessário para que tomasse posse do reino criador, sozinho. Ele juntamente com seu fiel escudeiro Sor Maleidon Gotrós... — apontou para o Sor. Ele tentou rapidamente fugir, mas foi apanhado por dois guardas. — Articularam um plano dentro do Torneio Genesis para que todos os hospedeiros se matassem e assim o caminho estaria livre para ele, entretanto, eles aliaram-se, como podem ver. Juntos eles detém o controle da entidade aprisionada neles, porém eles são cinco e está faltando uma: Aurora Bellator. Ela foi raptada e pelo que ousei saber há um ritual que alguém está preparando para ela e se não a resgatarmos, toda Terdállia poderá padecer no sofrimento eterno. Meus irmãos, eu um dia também fiz o juramento de Nerann e nunca o desonrei de fato, e uma pessoa está precisando de vocês. A única coisa que preciso saber é: vocês estão do lado da rainha de Nerann? — ele bradou sem saber exatamente qual resposta viria, mas confiou que nenhum deles tinha culpa e que ajudariam. O breve silêncio que se formou foi quebrado subitamente por um coral de vozes que diziam: “A noite já se foi. Eis que chega a alvorada. Sou a luz que dissipa a escuridão. Sou a luz que conduz o reino. Fui resgatado, fui limpo e feito humano novamente pela misericórdia de um rei. Sou o escudo contra o mau. Sou a espada que cintila fogo em meio ao frio. E por este reino enfrentarei os açoites de inimigos, lutarei até o findar de minhas forças, derramarei meu sangue em favor do reino. De agora e para sempre dou o resto de minha vida e meus dons à Nerann e prometo honrá-la até o fim de meus dias e em cada alvorecer me tornar um com ela.” Com isso uma chuva de gritos varreu o pátio e tornou-se a orquestra principal. E no empunhar das espadas, no levantar dos escudos e nos olhares furiosos, Sebastian e os outros ganhavam novos aliados. Era o que a guerra produzia aos homens. Não havia nada de bom ou honroso em morrer na lama, a menos que morresse com dignidade e no caso deles não era apenas honra, mas coragem.
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Capítulo 26
Um Brado de Guerra noite estava invadindo o céu de Nerann e uma névoa medonha vinha junto com ela. Não havia como partir naquelas condições, sem visibilidade a viagem se tornaria ainda mais perigosa e certamente perderiam tempo. Então, Brave sugeriu que montassem um pequeno acampamento para passarem a noite e logo pela manhã partiriam para Rhalmenezer, seja lá onde isso ficasse. As barracas de pano avermelhado foram erguidas rapidamente pelos guardas que estavam dispostos a salvar a rainha deles, uma vez que nunca houvera rainha tão popular e bondosa como Aurora. Fogueiras foram acesas pela extensão do pátio central onde montaram as barracas para aquecerem-se do frio que já estava à espreita. Sebastian estava sentado perto de uma dessas fogueiras amolando a ponta de suas flechas em uma pedra especial, com mais relevos e mais escura. Ele estava pensativo até demais, não aceitou o fato de ter de esperar até o amanhecer, afinal, ele não havia contado tudo que escutou de Atzlam 282
na masmorra. Sua mente entrava em declínio ao pensar que poderia ter feito algo por Aurora, que poderia tê-la salvo, mas preferiu arriscar-se e acabou colocando tudo a perder. Ele retirou-se mentalmente daquele lugar e por um momento tentou não pensar em coisa alguma, não ouvir nada, não falar nada. Greta possuía um forte dom de perceber as mínimas coisas e quando mirou os olhos de Sebastian viu que seu olhar estava perdido, um silêncio cortava seus pensamentos e ela sabia que precisava fazer algo. Deixou-o sozinho por mais algum tempo, até que viu Sebastian entrar em sua barraca. Era sua chance. Ela adentrou na barraca no momento em que Sebastian estava despido da cintura para cima, e ele espantou-se. — O que está fazendo aqui? — ele perguntou meio assustado. — Não fomos devidamente apresentados, então eu achei que poderia fazer isso. Me chamo Greta Volk. — estendeu sua mão. — Sebastian Addae. — ele estendeu de volta e cumprimentou-a. — Addae, muito ouvi falar desse sobrenome quando o príncipe de Nerann foi morto, mas isso não vem ao caso. Percebi que você estava com o pensamento distante. — ela aproximava-se dele um pouco mais. — E que está tenso demais para quem vai travar uma guerra daqui a poucos dias. — ela o rodeou até ficar atrás dele. — Talvez precise de uma massagem, quem sabe. — começou a tatear sutilmente os ombros de Sebastian. Rapidamente Sebastian virou-se. — Não preciso de nada, obrigado pela gentileza. — ele retrucou. — Eu sei que você não sabe o que é uma mulher há muito tempo. Preso em uma ilha, acho que lá não devia ter muitos atrativos, estou certa? — Greta estava vestindo apenas um manto negro com bordas azuladas, seu rosto ainda estava com algumas marcas dos socos de Aurora e a sua recuperação estava perfeitamente rápida. — Esse será um segredo só nosso. — ela afirmava, enquanto tirava seu manto. Ela estava completamente despida à sua frente. Uma tentação carnal era tudo que Sebastian menos precisava na situação em que estava. Era uma tentação oriunda de uma mente manipuladora e com sede de vingança, das mínimas que fosse. Greta poderia estar do lado deles agora, mas nunca
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esqueceria da surra que levou de Aurora, e este seria seu primeiro passo para atacá-la sem armas. — Não gosta do que vê Sebastian? — Cubra-se, por favor! — Sebastian pediu, ainda perplexo com tal atitude de Greta. — Não acha meu corpo bonito? — ela questionou sem entender a recusa dele. — Você é muito bonita. Não se trata disso. — Sebastian afirmou, balançando a cabeça em negativa. — Então porque não? Há outra mulher em sua vida? — Greta o fitou e começou a entender seus motivos. — O seu antigo amor está de volta aos seus pensamentos? É por causa de Aurora que está me rejeitando? — Não tem nada a ver com Aurora, meu compromisso é proteger vocês. — Sebastian mentiu. Não poderia colocar seu amor por Aurora acima de tudo agora, precisava ocultar isso dentro de si por mais impossível que pudesse parecer. — Pare de falar como se fossemos fracos. Estamos pagando um tremendo preço por algo que não pedimos para ter, agora temos a chance de reverter a situação. E reverteremos. Vem cá, me beije, desde que lhe vi não consigo parar de pensar em nós dois juntos. — Greta avançou sobre Sebastian e tentou beijá-lo. — Greta, por favor, pare com isso. — Sebastian disse, tirando as mãos de Greta de sua nuca. — Como eu poderia pensar em coisas assim, enquanto estamos vivendo uma guerra como essa? — Eu estou doente de desejo. — Greta gemeu. — Pois trate de se curar. — ele retrucou. — Você vai se arrepender arqueiro, eu sei que vai. — disse Greta furiosa, cobrindo-se e virando-se para ir embora. — Greta... — Sebastian a chamou. — Chega de tanta humilhação! — praguejou. — Fique com seus doces pensamentos e faça bom proveito deles. — e depois de falar isso saiu da barraca às pressas. Por mais forte que fosse aquela tentação, ainda restava esperança em uma reconciliação com Aurora, depois que ele provasse tudo que Lunno havia feito. Sebastian vestiu uma camisa limpa e colocou um casaco negro 284
pouco grosso feito de couro fervido. Por um momento permitiu-se sentar para analisar a situação. Se esperasse até o amanhecer Aurora poderia correr mais riscos vindouros e não queria ter de ir a viagem toda na presença de Lunno. Ele desonraria seus antigos princípios partindo sozinho. Era a sua escolha agora. Os Elcatrazes estavam enfileirados perto da entrada do reino, prontos para transportarem alguns deles pelos ares e um deles seria a sua passagem para resgatar Aurora sozinho. Sebastian estava decidido. Quando percebeu que todos já haviam dormido em suas barracas e o fogo estalando era o único som da noite, apanhou sua aljava e seu arco-espada, colocou o capuz sobre a cabeça e partiu em direção aos Elcatrazes, sem fazer qualquer barulho. — Aonde você vai? — uma voz perguntou bem baixo atrás dele. “Maldição! Me descobriram.” – foi logo ele pensou. Quando virou-se para ver quem o chamava, percebeu que era um antigo amigo. Uma pessoa que curou seus ferimentos e que sempre ajudou a ele e aos outros no que lhe era possível e impossível fazer. Sebastian via muito mais que honra naquele homem, ele via vida. Era Lutiel Albus, o mago protetor de Aurora. — Lutiel... eu... — Sebastian coçou a cabeça tentando achar uma justificativa convincente. — Não precisa me dizer, eu sei o que está querendo fazer. — disse Lutiel. — Sabe? E não vai tentar me impedir? — Sebastian quis saber. — Não precisarei, pois vou com você. — Lutiel disse, colocando o capuz azulado em sua cabeça. — Mas... — Sebastian balbuciou. — Eu sei que você consegue senti-la, assim como eu. Então a acharemos mais facilmente e a minha magia pode ajudar um pouco. Não contou a eles tudo que Atzlam disse, não é? Fez bem, você é prudente em não confiar em todos, mas, em mim você pode confiar e sabe muito bem disso. Aurora sempre acreditou em você, agora vamos sair daqui, estamos perdendo tempo. O arqueiro viu-se obrigado a aceitar a ajuda de Lutiel, juntos eles podiam ser mais produtivos na busca por Aurora do que apenas um. Os 285
Elcatrazes estavam praticamente imóveis, produziam apenas poucos movimentos, mas não pareciam estar cansados. Eram todos adultos, seus pelos e asas eram firmes e a envergadura que as asas deles faziam era enorme. Criaturas dignas de contemplação pela sua beleza e astúcia. Celas de couro fervido muito mais grossas do que Sebastian já havia visto, estavam sobre as criaturas gigantes. — Você já montou em uma coisa dessas? — Sebastian perguntou. — Nas missões da casta utilizamos eles como meio de transporte, não se preocupe eu sei lidar com eles. Agora suba! — mandou, apontando para um dos Elcatrazes. Sebastian assentiu e escalou o corpo do animal. Logo estava montado em cima dele, o pelo era morno e aquecia sua pele do frio. Os ossos paravam de ranger e os pelos de suas peles não se eriçavam mais com tanta frequência. Em seguida Lutiel apenas levitou com a força de seu pensamento e assentou-se junto com Sebastian. — Azkar! Azkar! — Lutiel proferiu essas palavras pousando seu cetro no corpo da criatura e o cajado cintilou uma forte luz azulada. — Acho melhor segurar-se. — Lutiel disse sorrindo para Sebastian. A criatura se mexeu e em um espasmo levantou voo. Quando já estavam no ar, Sebastian pensou: “Vamos chegar mais rápido do que pensei”, devido a tamanha velocidade em que a criatura batia suas asas que pareciam ser parte do vento. Podiam ver a imensidão do chão abaixo deles, as terras acesas do sul e suas incontáveis florestas, o mar cinza e seu infinito volume de água que infestada todo o derredor da Ilha dos Filhos da Terra. Seus ouvidos taparam sob a pressão exercida sobre seus corpos. Depois de um certo tempo a sensação cessou e só conseguiam sentir frio. Quando abriram os olhos viram uma névoa densa que cobria as florestas e tudo que antes se podia ver abaixo deles. Sebastian sentiu uma mão quente pousando em seu ombro e virouse para olhar. Fitou Lutiel confortando-o, seus olhos diziam “vai dar tudo certo, meu amigo”. Sebastian delineou um meio sorriso rápido. E os dois continuaram em silêncio, seguindo apenas seus instintos que os guiariam até o covil do possível inimigo. ***
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O sol aparecia no horizonte de Nerann e Brave já estava de pé, sua armadura arrumada, pronta para ser utilizada na batalha que estava por vir. Suas coisas empacotadas e sua balestra carregada. Greta e Ragnar ainda dormiam devido a um chá de ervas que haviam tomado por causa das dores de seus ferimentos, então, Brave sutilmente caminhou até eles e primeiramente pousou uma mão no ombro de Ragnar. — Ragnar, hora de acordar. — disse Brave suavemente. O grandalhão murmurou de olhos fechados, mas logo levantou-se. Brave caminhou mais um pouco e fez o mesmo com Greta. — Por Ares! Que dor de cabeça maldita. — Greta reclamou colocando suas mãos sobre a cabeça. — Aq uele chá que deram a vocês parece bem forte. Pode demorar uns minutos para você estar completamente disposta. Enquanto a dor não passa tome seu café — Brave delicadamente disse, apontando para ovos fritos em cima de uma mesa de madeira. — Eu já comi e estou pronto, vou à barraca de Lunno ver se ele já está pronto. Arrumem-se e rezem aos deuses para que nos protejam. — disse, saindo da barraca. Os preparativos para a partida já estavam a quase todo vapor. Soldados empunhando suas espadas e preparando os estandartes com o brasão do reino. Feito de fios de ouro em um tecido cor de vinho. Brave já estava próximo da barraca de Lunno, quando ouviu um berro. — Aquele desgraçado só quis uma chance para fugir novamente. COVARDE! — Lunno gritava no meio dos soldados desesperadamente. — O que houve Lunno? — Brave perguntou. — Sebastian desapareceu. Os guardas foram acordá-lo em sua barraca esta manhã e ele não estava mais lá, nem ele nem sua aljava com seu arco. Ele fugiu! — declarou Lunno furioso. — Como puderam ser tão imbecis a ponto de confiar nele novamente? Ele traiu Nerann. Maria estava perto quando ouviu aquilo. Sua vontade era arrancar cada pedaço da língua de Lunno para ele nunca mais ousar proferir palavras caluniosas contra o seu irmão, mas Sebastian a havia alertado para manterse sã e não entrar em conflito com ele. E foi o que fez. — Calma, Lunno. Certamente ele teve seus motivos. — Brave disse compassadamente. — Vá pegar sua espada e se vista para a batalha, não temos tempo para pensar nisso agora. 287
— Não sigo ordens suas. — Lunno bufou, saindo do local. — Lutiel também desapareceu. — Opherine surgiu das sombras de sua barraca. Estava munida de um manto dourado, diferente de todos os que usara anteriormente. Seus cabelos negros estavam trançados e seu olhar era devastador. — Seguramente eles sabem o que fazem. — Você sugere que eles partiram juntos? — Brave interrogou. — Não sugiro, eles estão muito mais próximos do que nós de Rhalmenezer. Aconselho nossa partida imediatamente aos domínios da terra morta. Brave consentiu com a cabeça. Ela estava certa, eles precisavam partir o quanto antes. Só agora ele havia percebido que estava no controle praticamente, mas a detentora do poder ainda era Sophitia e a guarda real de Nerann só seguiria as ordens dela. — Devemos cavalgar como um turbilhão com o estandarte do reino de Nerann, e honrá-lo com nossas próprias vidas se preciso for! — Sophitia levantou sua voz, fazendo todas olharem-na. Ela estava com sua armadura reluzente e com tranças nos cabelos um escudo não muito grande e sua fina espada. — Possuímos a luz. E eu sei que essa luz arde em todos vocês. As brasas precisam inflamar-se. Seremos a espada de Terdállia contra o mal, forjada pelo fogo que eu sei que existe no coração de cada um de vocês. O sol estava quase a pino quando todos estavam prontos. Armaduras colocadas. Armas empunhadas. Garanhões posicionados. E o coração acelerando cada vez mais rápido para a maior batalha de suas vidas. Graves consequências estavam prestes a cair sobre todos, porém, a sede de justiça e lealdade ao reino faziam-nos mais do que simples guerreiros, tornavam-nos imortais. Imortalizando suas atitudes, suas coragens e até seus próprios medos. Apenas alguns iriam pelo ar com os Elcatrazes, o restante iria a galope pela terra. Carregando o estandarte de Nerann e empunhando suas armaduras e escudos tão fortes quanto suas coragens. A primeira criatura gigante a se posicionar para voar pelo céu de Nerann trazia em suas costas Greta e Ragnar. A segunda Opherine e Brave. As outras, os oficiais da guarda real. E por fim a última criatura a tomar seu lugar foi Alvorada, o Elcatraz de Sophitia. E a princesa sentia que ele estava pronto, assim como ela. Era seu primeiro voo, sua primeira batalha. 288
Sophitia e Maria montaram-no. Sophitia ergueu sua fina espada que cintilou a luz forte do sol. — POR EOS! — Sophitia bradou como um trovão. Os homens gritaram. A terra estremeceu, o céu silvou e os Elcatrazes levantaram o voo mais belo que Terdállia já havia visto.
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Capítulo 27
Cura Brutal or séculos exilada em uma ilha chamada Eana, Circê se viu designada a uma vida inglória, de isolamento e ódio depois de usar seu imenso poder sobre a alquimia, para elaborar uma maldição e afastar as crianças da deusa Eos e do deus Ares de seus braços. Desde então, apodreceu com sua imortalidade nessa ilha e sem sua varinha Argan seu poder era reduzido a pó. Esta varinha mágica feita das costelas de Zeus possuía uma mágica incrível. A lenda dizia que ela podia movimentar seu detentor, propor seu alvo e criava vida ao proteger seu mestre até mesmo quando estivesse beirando a morte. Contudo, Zeus a tirou de suas mãos e jamais o poder de Circê voltou a ser o que era, mesmo depois de seu retorno do exílio, onde Zeus achou erroneamente que ela estava curada. Circê nunca esqueceu por um dia sequer da humilhação que sofreu diante de todos os deuses naquele dia no Olimpo. Foi chamada dos piores nomes possíveis e acusada de coisas que nem mesmo ousou fazer, entretanto, escutou e foi punida sem proferir 290
uma única palavra de negação. A não ser seu juramento de retorno. Um juramento que estava destinada a cumprir fosse como fosse. Ela tinha uma meia-irmã da qual se envergonhava em ter. Opherine era uma semideusa que possuía um grande poder sobre a magia, porém, ao contrário de sua meia-irmã Circê, ela escolheu permitir que os seres reencontrassem a bondade através da magia branca, a que libertava os homens da condição de escravos da mente. Circê escolheu o lado da magia negra, a magia egoísta que escravizava e tornava qualquer ser cativo de seu poder. Nunca houve tanto contado com as duas irmãs, mas isso estava perto do fim. Circê era conhecida por sua mente inteligente capaz de se metamorfosear em grandes falcões negros que possuíam um poder destrutivo que ia além da capacidade de entendimento superficial de qualquer ser. Suas criaturas preferidas eram essas, ela adorava comparar-se aos falcões negros com seus voos mortais, pois, assim como estes, ela cercava suas vítimas e produzia um terror psicológico nela, para só assim enfeitiçá-las e por fim mata-las. A canção mágica de Circê era “circ-circ”, dizem que seu nome originou-se a partir deste canto fúnebre de caça. Ela era detentora tanto da criação quanto da dissolução. Sua identidade com os famosos falcões negros era de suma importância, pois estes têm a aptidão de viajar com liberdade por entre os reinos da terra e dos céus. Todos os deuses conheciam as antigas histórias das entidades cósmicas que existiam antes deles mesmos, que foram banidas para o corpo de seres distintos entre si. A estes deram o nome de hospedeiros. E Aurora era um deles, uma, senão a mais poderosa de todos. Se Circê conseguisse dominar a entidade de Aurora, dominaria todas as dimensões existentes. E para isso precisaria executar o chamado Ritual da Lua Negra, que consistia na transposição da entidade de um ser para o outro, tendo como consequência a morte iminente de seu antigo hospedeiro, no caso, Aurora Bellator. — Preparem minha banheira de sangue. Preciso me renovar com o sangue puro das moças virgens que matei. — Circê ordenou para uma das harpias.
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O ritual exigia algumas coisas de seu executor. Uma delas era banhar-se pelos dois dias que antecedessem o ritual, com o sangue puro de dez moças virgens. E esse era o primeiro banho de Circê, o banho da renovação do sangue. O banho que a deixava mais perto de obter sua glória com o controle da entidade. — A banheira já está pronta, Vossa Majestade. — disse uma das suas serviçais. — Ótimo. — Circê disse, dirigindo-se ao centro da grande banheira assoberbada de sangue puro. O cheiro metálico já invadia as narinas dela e Circê começava a sentir a essência da renovação oriundo do sangue. — FEERICK! — vociferou dentro do grande salão em que estava. — Sim, vossa Majestade. O que deseja? — o fauno surgiu rapidamente. Jamais poderia deixá-la esperando o mínimo que fosse. Esperar insultava a deusa e seu nível de paciência estava instinto. — Como a prisioneira está? — Circê perguntou, ainda encantada com aquele líquido em tom de rubi à sua frente. — Ela está recebendo o tratamento que Vossa Majestade ordenou. — Feerick falou rapidamente. — E que assim continue. Mande alguns de sua espécie para dar uma animada naquela cela imunda que ela está. — Circê mandou. — Mas faça isso depois, agora venha até aqui e tire meu manto para que eu possa banhar-me. Feerick não hesitou e correu com suas pernas de bode até a pequena escada que ligava o chão à banheira. O fauno tirou a fina seda dourada que Circê usava e ela ficou completamente despida. Seu corpo estava pronto para purificar-se com o banho sagrado. — Agora vá! — Circê berrou e não se deu ao trabalho de ver se Feerick havia saído dali. Ela precisava sentir o sangue moldando seu corpo. Cada membro inferior já estava em contato com aquele líquido sagrado e ela podia apreciar cada parte dele juntando-se e tornando-se apenas um. O sangue envolvia Circê na altura dos seios e cada vez mais ela adentrava no mais profundo do banho. Era como se o sangue que antes corria em suas veias, estivesse se esvaído por completo e o novo sangue puro entrasse por todos os orifícios existentes em seu corpo. A renovação estava
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concretizando-se, a sua dita purificação estava tendo seu grande início para o ritual que estava por vir. Finalmente mergulhou sua cabeça o mais profundo, no sangue. Agora sua mente entrava em contato com o avermelhado. Seus pensamentos estavam voltados para a iniciação da pureza errônea do sangue de pessoas inocentes. Circê estava adorando aquela sensação, era melhor do que beber o sangue de suas vítimas, aliás, muito melhor. A junção daqueles dez tipos sanguíneos enfeitiçou o olhar e o corpo de Circê e ela sentia que estava cada vez mais próxima de ser tornar mais poderosa do que uma deusa. *** A noite anterior foi marcada por um silêncio enlouquecedor dentro da cela, Aurora não escutava absolutamente nada além da própria respiração. Não havia alguém para conversar, não havia saída, não havia luz. E quando não existia luz, o medo começava a tomar conta de Aurora. O medo de nunca mais ver uma luz, de ficar sozinha na completa imensidão do breu. Lembrou-se da noite que passou na floresta Sete depois da briga com Greta. Era exatamente a mesma sensação que sentiu naquela noite dentro da cela. Uma aflição cognitiva do medo do escuro que possuía. Não precisou de visão alguma para lembrar de sua mãe, Eos. Quando pensou nela naquele momento, sentiu a necessidade instantânea de cantar a canção de ninar. — “Vem dormir meu bem, vem dormir neném Feche os olhos nada vai lhe machucar Amanhã já vem e o sol também Para minha pequena Aurora brilhar.” Enquanto tentava lembrar-se da última parte da canção, um forte som do portão de aço abrindo-se ecoou em toda a extensão da cela. “Deve ser Feerick me trazendo o café.” - pensou. Aurora poderia estar certa não fosse pelo surgimento de outros seres como Feerick, só que com olhares mais assoladores. Se existe no mundo alguém que conhecesse aquele tipo de
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olhar aborrecido, esse alguém era Aurora e seguramente aqueles faunos não estavam ali para dar-lhe de comer. — O que querem? — Aurora perguntou bastante atenta a qualquer movimento. — Nos divertir com você, ordinária! — um dos faunos falou cuspindo no rosto de Aurora e soltando uma gargalhada horrenda. Aurora não teve forças para uma reação, estava fraca e desidratada. O mais velho deles chegou perto e segurou Aurora pelo braço, empurrando-a para perto de seu peito e proferiu algumas palavras grosseiras. — Hoje você será nosso brinquedo. — o fauno dizia. O restante chegou perto. Iriam violentá-la. Aurora precisava pensar agilmente. Levantou sua mão livre para o peito de seu algoz e disparou uma redoma de energia contra ele – que nem ao menos sabia que podia fazer – afastando-o bruscamente de perto dela. Os outros apenas observaram o algoz soltar o pulso de Aurora e tropeçar para trás. Eram quatro deles contando com o que ela havia acabado de atacar. Os violentadores avançaram sobre Aurora. Ela esmurrou o próprio chão com o punho cerrado, o que produziu um tremor rápido, mas o suficiente para atrasá-los. Um deles levantou-se rapidamente e a agarrou pelos cabeços. Fez Aurora ficar de pé com a força que produziu sobre o couro cabeludo dela. Aurora começou a lutar para que a soltassem. Viu os outros dois cercando-a pela frente e em uma tentativa frustrada tentaram abaixar as calças dela, mas, Aurora acertou um chute certeiro no meio das pernas de um deles, se eles tinham saco escrotal deveria estar ali, foi o que pensou. Aurora ficou irada, mas sabia que eles queriam isso e não importava o quanto ela lutasse, eles iam fazê-lo. Ela não podia fazer muita coisa, então, colocou sua mão sobre a cabeça do agressor que segurava-a pelos cabelos e usou a força que usara anteriormente. Ouviu-se um barulho de osso do crânio quebrando-se, Aurora caiu no chão, junto com o violentador já morto. O grupo ficou irado e correram em direção à Aurora, que não teve outra reação senão gritar por socorro. E fez isso repetidas vezes, pois não conseguia mais usar aquele novo dom que havia adquirido repentinamente. O maior deles, já estava sobre ela arrancando com brutalidade a blusa de 294
tecido que envolvia o peito de Aurora. E com os olhos marejados e completamente enfraquecida, tentava berrar o mais alto possível, mas sabia que ali uma ajuda seria praticamente impossível. Os outros dois, rasgaram a calça marrom de Aurora e ela ficou completamente despida. Entregue à sua vergonha. E tapas subsequentes invadiram o rosto de Aurora. A crueldade estava exposta em seus olhos. “Que eles façam o que vieram para fazer” - Aurora pensou, já cansada de tudo aquilo. “Você vai se entregar assim? Como um ratinho que se esconde em meio a sujeira? Se você não lutar por qualquer coisa, será vencida por qualquer coisa.” - soou a voz forte de Cinzas. Quando expulsou os sons de sua mente, Aurora viu alguém adentrando a cela, porém, não pôde ver com clareza quem era, já que seus olhos estavam embaçados com o tapa forte que havia levado. — Soltem-na seus desgraçados! — a voz mandava. A criatura também tinha as mesmas pernas que os outros agressores. “Só pode ser ele.” Aurora disse a si mesma. Os dois faunos que rasgaram sua calça foram atacados em cheio na barriga pelo outro que entrou momentos atrás e rapidamente desmaiaram. Só restava o que estava sobre Aurora. A criatura pegou-o pelos chifres e o jogou contra a parede de pedra, fazendo sangue jorrar de um ferimento enorme provocado pela quebra de um dos chifres, o maior deles caiu brutalmente no chão e Aurora já podia ver quem estava fazendo isso por ela. Era Feerick. Feerick libertou-a das correntes e sentiu o corpo pesado e fraco de Aurora, sucumbindo e apoiando-se sobre ele. Era triste para Feerick vê-la naquele estado lastimável. Mas ainda assim, sentia o cheiro da astúcia dela que envolvia-o intensamente fazendo-o querer aproximar-se mais e mais dela. Aurora sentia seu corpo pesado e aquilo estava obrigando-a a permanecer no chão, respirando com certa dificuldade, suja pela terra e borrada pelo próprio sangue. Tentava esconder seu corpo nu de Feerick, esconder sua vergonha. “Esta foi a chance que os deuses lhe deram” - lá no fundo entoou a voz solene de Cinzas.
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— Pelos deuses, o que fizeram com você? — Feerick perguntava preocupado demasiadamente por ver Aurora naquele estado. — Deixe-me ajudá-la. — disse ele, colocando Aurora sentada. Em seguida retirou o casaco de suas costas e cobriu o corpo despido dela. — Feerick? — Aurora disse. Sua voz trazia uma lástima plangente depois do que havia ocorrido. — Você está bem? Não se preocupe, vou buscar água quente e um pano úmido para limpar seu ferimento. — Feerick dizia atropelando todas as palavras. — Feerick... eu estou bem. Obrigada pelo que fez. — agradeceu, tossindo de lado. — Não precisa se preocupar, se você fizer algo além do que já fez, Circê pode descobrir e matar você. Vê-la daquele jeito foi um choque tremendo para Feerick. Como os seus, da própria espécie foram capazes de tal ato de covardia? Nem mesmo Feerick podia explicar. Nunca agiram assim em Rhalmenezer em todos os séculos. — Não posso trazer-lhe roupas novas, então fique com meu casaco. É tudo o que peço. — Feerick olhava para Aurora com um semblante tristonho. Aurora queria ir até ele para lhe dar um abraço, mas suas pernas não obedeciam. — Cuide de sua família. É o que peço em troca. — Aurora disse, enrolando-se mais no casaco quente de Feerick e caindo em um sono profundo. Feerick entendeu bem as palavras de Aurora, por mais que quisesse ajudá-la, era obrigado a pensar primeiramente em sua família, afinal, ele estava ali apenas por causa disso. Entretanto, algo o prendia nos olhos de Aurora, uma força além de seu entendimento. Dos olhos dela emanava vida e ele conseguia sentir isso todas as vezes que a olhou. Feerick arrastou os dois corpos dos faunos mortos e em seguida os outros dois com graves ferimentos e selou a porta de aço mais uma vez. ***
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O castelo de Rhalmenezer era digno de contemplação. Uma fortaleza impenetrável que o tempo e o calor vigoroso transformou em um alvo praticamente impossível de ser alcançado. O sol começava a elevar-se ainda mais em um céu fulgente, fazendo a abundante camada clara, cintilar como se fosse formada de milhares de encurtados cristais de vidro. Um novo dia estava formando-se, o dia do ritual. Muito acima do castelo, uma ave cruzava os céus, certamente almejando encontrar uma presa faminta e tola o bastante para deixar a garantia de segurança de sua toca. Contudo, a ave voou diretamente para a janela do castelo. A que dava acesso para onde Circê estava a pouco desfrutando de seu segundo banho de sangue. Circê observou a ave com os olhos cingidos pelo efeito do reflexo da luz solar sobre a janela. Quando menos percebeu, a ave sobrevoou o teto e pousou sobre o pálido busto de Palas que havia logo atrás do trono da deusa. Era seu falcão ônix. Há tempos não o via com tamanha elegância e glória. Dirigiu-se até ele e acariciou-o, provavelmente teria notícias sobre algo importante que viu. Inclinou seus ouvidos sobre ele e uma curta conversa teve início. — Então, quer dizer que há dois tolos voando para cá? — Circê desdenhou. — Adorarei me fartar do sangue deles, deixe que venham. Aqui encontrarão seu fim. Circê não previu isso, mas poderia haver certo divertimento na morte desses dois. — Doce sacrifício. — gargalhou. — Ninguém haverá de ter mais poder do que eu depois que o ritual da Lua Negra estiver completo. O dia já reside sobre Rhalmenezer, a terra morta e o ritual se aproxima. Rhalmenezer, a terra dos dragões extintos, onde o fogo é a fonte de toda a existência e o calor é a expressão da glória. Aqui o ritual deve ser consagrado aos deuses antigos da morte. Agradeceu ao falcão com uma carícia e agilmente ele levantou voo, deixando o lugar. O ônix trouxe à tona toda uma sorte de coisas novas que flutuavam pelo ar. E Circê adorou saber disso. Naquela manhã estava com seu mais belo vestido. Feito de um tecido nunca visto em Terdállia, as bordas do busto que iam do abdômen ao pescoço eram feitas das penas de falcões negros. E pelos braços usava cota de malha negra. 297
— Lanuria! — Circê gritou. Rapidamente Lanuria estava ao seu dispor. Era uma harpia experiente e comandava o resto das outras. Possuía olhos de um castanho fulgente e diferente das outras de sua espécie, vestia uma armadura dourada que escondia seus seios. — Sim, vossa Majestade. — ela respondeu, ajoelhando-se. — Minha oferenda já está preparada para o ritual desta noite? Lembre-se de que ela deve permanecer à beira do Lago dos Ossos o dia inteiro. — Ela já está devidamente vestida com a túnica de cor vermelhosangue como manda o ritual e está sendo levada neste momento para o topo do vulcão, Majestade. — Lanuria respondeu ainda ajoelhada. — Suponho que vocês não são completas inúteis. Logo estarei lá. Agora vá! — mandou Circê. Lanuria saiu do salão e mais uma vez Circê se pôs a falar consigo mesma. — O ritual que consiste em três pilares: Renovação, Cura e Sacrifício. Respectivamente, o banho de sangue puro, em seguida a tortura para purificar e curar o corpo da hospedeira e por fim o seu sacrifício. — ela dizia, arrumando as tranças enormes que embelezavam-na. Um feixe de luz que provinha do teto incidiu sobre a cabeça de Circê. E de repente, vários falcões começaram a cercá-la aplainando como se ela fosse sua principal presa. O crocito dos falcões rompia a barreira do silêncio e aquele parecia ser o tipo de renovação própria de Circê, uma forma de religamento com eles. O canto de todos eles juntos produzia uma sensação indescritível em Circê, parecia que ela rejuvenescia duzentos anos toda vez que fazia isso. — Chegou a hora de cumprir o segundo pilar. — disse Circê abrindo seus braços no meio do salão e posteriormente fechando-os junto com seu enorme manto negro transformando seu próprio ser em um enxame de falcões que se espalharam e ajuntaram-se aos outros. *** Enquanto isso no vulcão, que era chamado de Lago dos Ossos, Aurora trajava uma túnica garbosa vermelho-escarlate. E de alguma forma a 298
túnica era seu invólucro de proteção contra tudo que sentia naquele momento. Cinzas havia parado de falar desde o momento em que Feerick a salvou das mãos daqueles faunos asquerosos e Aurora não podia contar com mais nada além da própria sorte, ou azar no caso. Já passava da meia hora do dia e o sol recaía com toda ferocidade sobre ela e toda Rhalmenezer. Porém, parecia que quanto mais quente mais viva Aurora se sentia, por mais que não conseguisse libertar-se daquelas correntes especiais. O lago possuía uma tonalidade laranja avermelhado. Parecia ser muito quente e ele estava sempre em constante erupção, mas, de certa forma controlada. Aurora foi escoltada por uma escada até o topo onde seria feito o ritual e foi posta no meio de duas colunas de pedras disformes de costas para o Lago dos Ossos. A sensação não era incômoda para ela, de alguma forma ela sentia um certo prazer estando tão perto do calor, tão perto de sentir o fogo queimando a própria pele, embora, ela não entendia o significado de tal sensação. Uma multidão de outros faunos, harpias, bruxas e outras criaturas desconhecidas já infestavam o lugar e com os olhos furiosos gritavam e debatiam-se entre si. Tochas foram acesas e parecia que o tempo ali em cima passava muito mais depressa do que abaixo deles. Gritos de fúria eram dados aos montes, até que falcões surgiram à frente de Aurora rodopiando no ar e formando a sombra de um ser vivo: Circê. Um olhar penetrante e cínico emanava dela e seus passos foram guiados pelos seus amados falcões. Chegando perto de Aurora, a fraqueza que algum feitiço de Circê produzia nela a fez não ter reação alguma. Circê por sua vez, encostou seu anel garra em seu rosto, arranhando-o com maciez, mas o suficiente para escorrer um pouco de sangue com o corte. Em seguida introduziu o sangue em sua língua e se deliciou com aquele líquido estupendo. Virou-se para a multidão frenética e todos pararam de falar por um momento. — Observem a grande Hospedeira. — Circê anunciou. Todos começaram a berrar novamente. Lanuria estava posicionada bem ao lado de Aurora e sabia o que tinha de fazer. — Irá arrepender-se de ter cruzado o caminho de nossa deusa. — Lanuria disse, cuspindo no rosto de Aurora e posteriormente esmurrando-a 299
brutalmente no abdômen. Aurora ficou sem ar por um tempo e tudo que queria era sair dali e poder matar Circê com as próprias mãos. Circê aproximou-se de seu rosto e sussurrou em seu ouvido: — Sabe Aurora, me decepcionei muito com você. Achou mesmo que conseguiria fugir de mim? Você queria salvar a todos, mas ninguém será salvo. — disse, afastando-se dela. — Deem-na a cura! — ordenou à Lanuria e à outra harpia que estava junto dela. Lanuria e a outra harpia voltaram cada uma com uma espada nas mãos e começaram a proferir vários golpes superficiais em Aurora. Ela gritava de dor, aquilo estava insuportável, por mais superficiais que fossem, ter golpes subsequentes daquele tipo não era a coisa mais normal e aceitável que se podia ter. Enquanto Aurora era “curada”, a multidão enlouquecida começou a bater com as tochas no chão em sinal de reverência. O sol estava escaldante, o que tornavam as coisas bem piores do que já estavam para Aurora. Seu rosto já estava coberto por sangue pelos cortes que as afiadas espadas produziam. Sua visão turvou-se rapidamente, por não haver se recuperado inteiramente da agressão dos faunos. “Não acredite que estarei com você a todo o momento, pois até sua própria sombra a abandona na escuridão, porém estamos cravados um ao outro.” As palavras de Sebastian ainda queimavam no peito de Aurora, quando no limiar de uma nuvem e à luz do sol, duas sombras de uma espécie de pássaro surgiram. E depois da visão de Aurora voltar ao normal, ela pôde ver claramente que o que Sebastian havia dito, estava cumprindo-se. Eles estavam cravados um ao outro. Eram dois Elcatrazes, Sebastian estava montado em um e no outro seu mago protetor Lutiel, que conseguia sentir de longe, pedindo a ela para que acalmasse-se. — SEBASTIAN! — Aurora conseguiu gritar. Circê percebendo que seus aperitivos estavam prestes a chegar, não ousou mandar ninguém para abatê-los. Ela mesma cuidou para que fossem tragos sem ferimentos e com vida. Proferiu algumas palavras desconexas e uma névoa negra a encobriu por inteiro. E em um rápido movimento a névoa densa e enorme partiu como um meteoro em direção à Sebastian e Lutiel. Um festival de faíscas e movimentos giratórios e confusos formouse no céu. Mas ninguém podia ver com clareza, as imagens estavam muito distorcidas e as nuvens dificultavam bastante o campo de visão. Se eles 300
estavam bem ou não, era difícil de presumir. Até que um raio partiu o céu e viu-se apenas a névoa negra de Circê pairando no ar. Então aquela escuridão começou a dissipar à medida que aproximava-se do solo, onde o ritual começaria logo menos. Circê tomou sua forma original e carregava em uma mão Lutiel e na outra Sebastian. Aurora presumiu que o poder de Circê estava aumentando e este fora apenas uma demonstração pequena do que ela seria capaz de fazer dali em diante. Os dois foram jogados ao chão e Circê espreguiçou-se como se tivesse acabado de pegar dois pequenos gravetos no ar. Lanuria e uma outra harpia levaram aos pontapés Sebastian e Lutiel até onde Aurora estava. Chegando perto, o olhar de Aurora e Sebastian cruzou-se mais uma vez. Lançaram um olhar infeliz e enquanto estavam sendo acorrentados da mesma maneira que Aurora – Lutiel do lado esquerdo e Sebastian do direito - Aurora voltou seus olhos para Sebastian e a chama da esperança começou a dissipar-se dentro dela enquanto abaixava sua cabeça lentamente, até ouvir uma voz cortada e desgastada que a fez erguer novamente seus olhos para o lado direito. — Eu tentei. — Era a voz de Sebastian.
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Capítulo 28
Aniquilação ebastian e Lutiel haviam pavimentado a estrada para suas próprias mortes. A atitude heroica dos dois poderia custar um preço ainda mais elevado para Aurora, pois agora Circê teria ainda mais motivos para tortura-la e a “cura” seria ainda mais deslumbrante aos olhos dela. O entardecer ainda estava longe. O festim da cura seria a diversão de todos ali e um cumprimento de um pilar do ritual da Lua Negra. — Libertem a oferenda. Quero mostrá-la uma coisa. — Circê ordenou a Lanuria. Lanuria berrou e ergueu a espada que empunhava, quebrando em pedaços as correntes que prendiam Aurora, agressivamente. Aurora caiu de joelhos no chão morno de pedra e Lanuria pegou-a pelos cabelos, prendendo-a contra seus braços. — Testemunhem a cura! — Circê bradou, apontando para onde Lutiel estava preso. Não era um tipo de “prisão” comum. Esta consistia em uma corrente que ligava Lutiel a um balde cheio de lava através de uma roldana. 302
Se ele ousasse mexer-se para frente, abaixar-se, qualquer que fosse o movimento, o balde viraria e toda a lava quente cairia sobre sua cabeça. Os cabelos louros de Lutiel emaranhavam-se em seu rosto e ele pensava: “Não posso mexer-me, apenas isso.” Tolo engano, pois quando menos esperou, a espada de outra harpia foi de encontro as costas de seu joelho. Lutiel gritou de dor e vencido pela dor abaixou-se um pouco e pingos de lava caíram sobre sua cabeça, fazendo-o gritar ainda mais. — Não! — Aurora berrou. — Não! Não! — gritava ainda mais alto soltando-se de Lanuria e segurando a outra parte da corrente. — Parem com isso! Alguns outros teimosos pingos caíram sobre Lutiel, mas ele não estava mais gritando. Aurora colocava toda a força que conseguia na corrente para puxar Lutiel até ele ficar em pé novamente. — Pior do que a morte não é Aurora? Ver seu amigo morrer por você. — Circê dizia autoritária, enquanto ouvia os gemidos de dor de Aurora por causa das finas gotas de lava que escorriam pelas correntes, queimando suas mãos. — Por que ele a ama. — concluiu, afastando-se dos dois e voltando sua atenção para a multidão. — O céu logo tardará e cairá aos pedaços. Uma nova era está prestes a surgir. — declarou Circê ao povo. — A era onde serei coroada a única deusa de Terdállia e o trono de Genesis será meu. O enxame enfurecido de criaturas que cercavam o Lago dos Ossos era gigantesco e Circê embebedava-se da submissão deles. Alimentava-se da devoção que eles tinham por ela e jamais se fartava disso. O desespero de Aurora estava latente em seu rosto, ela alternava seu olhar em Lutiel e Sebastian e os olhos do Addae diziam para ela acalmar-se, ele já não tinha forças para falar, mas ela sentia isso. As correntes que o prendiam pareciam sugar a vitalidade de seu corpo aos poucos e logo Aurora teria as mesmas correntes, porém antes, tinha uma escolha. Escolha esta que ultrapassava seus princípios e se não as quebrasse, poderia ser o fim de todos. As gotículas estavam ficando cada vez mais intensas e desciam com mais frequência pela corrente que Aurora segurava. Ela gritava, mas não queria soltá-la de maneira alguma. “Lutiel não podia estar novamente em perigo por minha causa.” - acusou seu pensamento.
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— Aurora, não pode me salvar. —Lutiel tentava dizer calmamente. Os magos podiam prever seu fim e assim acalmar-se com ele. Nunca eram pegos de surpresa quando o assunto era a morte. As mãos de Aurora queimavam ainda mais e a dor era insuportável. Seus dentes rangiam e ela tentava não gritar tanto. — Largue a corrente, Aurora. — Não tenho medo de morrer! — Aurora rebateu, continuando sua autopunição. Outro pingo caiu violentamente no rosto de Aurora fazendo-a bufar de dor. Sua respiração ficava cada vez mais rápida e o olhar permanecia sobre Lutiel. Seu melhor amigo, o companheiro que sempre esteve com ela nos bons e maus momentos. Que a salvou na arena de Zorá quando tudo parecia perdido. Que a ensinou a dominar a própria fúria. Que a deu uma chance de permanecer viva em Nerann. E que veio resgatá-la. Esse era o Lutiel que ela conhecera. De sorriso fácil e um olhar cativante, que fazia das festas em Nerann as mais alegres possíveis e não pedia absolutamente nada em troca por ser assim. — Eu também não. — ele dizia tão suavemente que Aurora não conseguir sentir pavor em suas palavras, como se já tivesse aceitado seu fim. — Eu amo você, Aurora. — quando disse isso, olhou para cima. — Não, não! — Aurora pedia em desespero. Lutiel mirou seus olhos nos de Aurora novamente que cintilaram um último brilho, um último meio sorriso delineou em seus lábios e com pesar puxou com toda a força seu corpo para baixo fazendo com que o balde de lava desabasse sobre sua cabeça. Lutiel não berrou o agudo e destorcido grito de covardia perante a morte, apenas deixou que a lava corroesse toda sua cabeça. Grossos glóbulos de lava pingaram sobre sua roupa, pondo o tecido rubro em chamas, entretanto, sangue algum caíra no chão de pedra. O fogo que acalmava todas as partes do corpo de Aurora não possuía o mesmo efeito em Lutiel, ele não era como ela, ele não era um hospedeiro. A tensão muscular da face de Aurora estendeu-se por todo seu rosto ao ponto de cair lágrimas de seus olhos. Os lábios caídos indicavam uma tristeza sem fim e o lábio inferior contraído demonstrava seu choque em não poder salvá-lo. Quando as correntes soltaram-se de suas mãos, ela pôde ver que a palma delas estava em carne viva. 304
— Maldita! — Aurora disse mirando Circê. Seus olhos estavam marejados e cobertos por fúria. Apenas Aurora percebeu uma marca formando-se em seu ombro esquerdo como uma brasa, queimando sua pele. Uma espécie de dragão munido de asas e que mordia a própria cauda e bem no centro estava a runa Dagáz, a mesma que usava em sua pulseira. Seria essa a marca de Cinzas? Ela se questionou. — Eu morro por eles, mas também mato! — Admiro sua coragem em querer viver, mesmo ela sendo tola. Esse é só o começo do fim. Prendam-na com as correntes vitais. — ordenou Circê. Novamente Aurora foi levada até o meio das duas colunas de pedra e fora presa com estas correntes que Circê chamara de vitais. Elas sugavam toda a força vital de sua vítima fazendo-a envelhecer em questão de horas. Circê sabia que essas correntes nunca funcionariam nela, já que Aurora era um ser imortal como ela, porém algo a intrigou. Em questão de minutos presa a essas correntes, os primeiros fios de cabelo branco começaram a surgir na cabeça de Aurora. Havia algo abalando a imortalidade de Aurora e este estava por perto. — Muito interessante, sua imortalidade fez... puft? — Circê gargalhou. — Vamos, seja honesta comigo, por que ists está acontecendo? Aurora fechou a face em sinal de protesto. Não diria uma única palavra. Percebendo isso, Circê balançou a cabeça em positiva e fora cravando aos poucos seu anel garra no rosto de Aurora, fazendo-a rugir de dor. — Não, Aurora! — Sebastian olhou para ela. Ele estava pálido e branco feito cera. Aurora inclinou seu rosto para o lado para olhar nos olhos de Sebastian. E ele fez um sinal negativo com a cabeça. Um tolo sinal de desespero. Circê percebeu a tentativa. — O que pode ser mais belo que a morte? Você? — Circê disse tocando o rosto de aurora que começou a envelhecer. Rugas surgiram em seu rosto e seu cabelo ficou parcialmente esbranquiçado. — Assim que a veria quando chegasse o tempo. — anunciou Circê, virando o rosto envelhecido de Aurora ao encontro de Sebastian. — Você estando ao lado dela a faz ficar vulnerável como uma mortal novamente. Só pode ser um 305
presente dos deuses. Sua ressurreição não foi tão ruim, afinal. Está olhando para ela? É isso que o tal amor faz. Degenera você por completo e o destrói tanto por dentro quanto por fora. “Quando você sente sede. É sede por sangue. Quando sente seus ossos rangerem de frio. É da sua lâmina de aço. Você não teme a morte, mas não corre de maneira tola até ela. Para ser um verdadeiro hospedeiro, é necessário astúcia e equilíbrio, ou eu me manifestarei completamente em você e a destruição é iminente.” - finalmente Cinzas disse. — A menos que você ame, sua vida eterna passará rapidamente e não terá nenhuma utilidade. — Aurora afirmou retendo o poder de Circê sobre sua juventude. Logo o avermelhado dos cabelos de Aurora voltou com todo vigor de antes e seu rosto estava limpo e tão branco quanto a neve. Seus olhos estavam vermelhos. Aquele tom de vermelho escarlate que adquiria toda vez que a força de Cinzas começava a se manifestar acanhadamente. Entretanto, Aurora podia sentir que ela não faria isso. — Uma vitória apoiada na vingança é passageira e muito, muito amarga. — Você é um parasita que só sabe alimentar-se de desgraça. — Aurora delineou um sorriso macabro em direção à Circê que afastou-se logo após. — Discurso de covardes. — Circê desdenhou enfurecida com a ofensa e deferiu um tapa no rosto de Aurora que a fez cair de joelhos diante dela. —Hospedeira, não há vergonha em se ajoelhar diante de mim. — disse Circê. — Vê esses ossos, todos são de guerreiros puros que se curvaram diante de mim. Eles fizeram isso porque sabiam que um dia eu tomaria o controle de tudo. — Um dia os outros hospedeiros serão tão fortes que você sendo uma deusa ou não, irá cair. — Aurora ergueu sua cabeça. — Você sabe porque está aqui. Não seja tola, aceite sua morte, sua entidade já me pertence. — NÃO SOU PERTENCENTE A NENHUM SER! — Aurora bradou com a voz notória de Cinzas. Uma voz grave e forte como um trovão. Seus olhos voltaram a ficar escarlates. — Finalmente a entidade silvou seu canto. — Circê comemorou. — Diga-me seu nome. 306
— Não direi nada a ninguém! — a entidade berrou dentro do corpo de Aurora. Circê sacou um punhal de dentro de seu vestido e avançou sobre o pescoço de Aurora. — Diga seu nome antes que minha adaga rasgue a garganta da sua hospedeira miserável. — Cinzas. — a entidade respondeu firmemente deixando os olhos de Aurora azuis novamente. “Tola” - Aurora logo pensou. — Enfim tomei conhecimento do nome do meu tributo ao poder eterno. Cinzas. — Circê disse. — Ela é indomável e você nunca mudará isso. — Aurora cuspiu-lhe as palavras furiosamente. — Sua penitência já está traçada, Aurora, destruição e sacrifício, essa é a minha vontade. Você morrerá em favor da salvação de todos e meu exército varrerá Terdállia inteira. Uma pena o desperdício de sua imortalidade como deusa. — Circê caçoava e torturava Aurora tanto física, quanto psicologicamente. — Eu prefiro morrer como uma humana a ser eterna como uma deusa. A eternidade com um coração mal é a perenidade da desgraça. Você conquistará o que deseja, mas isso nem sempre irá satisfazê-la. — QUE TOLICE! Toda existência deste e de outros mundos, é dádiva da graça dos deuses. — Haverá um dia que as criaturas deixarão de rezar a eles pedindo ou agradecendo. E neste dia vocês cairão. — Aurora estava notoriamente atenta e sabia o que estava falando. Entretanto, não eram palavras que emanavam diretamente dela, algo a estava induzindo a prever um possível futuro. — Desista desse sonho venenoso e volte para onde nunca deveria ter saído! — BASTA! Que você sofra o suficiente para que Sebastian sofra o dobro observando. — Cinzas me instiga e desafia-me a lutar! — Aurora disse, com um semblante sério. Um alaranjado envolveu o horizonte. O dia estava tardando e o ritual estava prestes a ter seu início. O terceiro pilar era o sacrifício de
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Aurora e para isso Circê teria de começar a traçar os primeiros mandamentos do ritual para que ele tivesse seu início. A fase lunar denominada de lua negra acontecia nos meses férteis, nos três dias que antecedessem a lua nova. Durante este período, o fino disco da lua minguante diminuía até sucumbir-se ao breu da noite. Tendo em vista que a luz da lua é na verdade, a luz solar refletida pelo disco lunar, diziam que a lua negra mostrava a verdadeira face ocultada lua. O ritual da lua negra tinha o poder de criar e destruir, de curar e regenerar e de transformar-se com o compasso das modificações e dos ciclos naturais, isso iria depender de como seu executor acharia a forma perfeita de interligar-se com sua sombra. Ao finalmente entrar na fase deslumbrante da lua negra, presencia-se a transição entre o aniquilamento do velho e a criação do novo. O processo de transposição que ocorreria ali iria destruir tudo o que não tivesse mais serventia e que fosse ilimitado em Aurora. A entidade passaria por uma corrente de força cósmica até o corpo de Circê e estaria aprisionada em um novo e mais forte Hospedeiro. E como consequência os deuses antigos da morte levariam a vida de Aurora como preço irrefutável. Se por um acaso o ritual fosse interrompido, os deuses prometiam, em uma profecia, que uma vasta nuvem negra iria formar-se no céu e que de lá cairiam gotas vermelhas, ou seja, choveria sangue naquele local. Diziam que cairia o sangue de todas as pessoas mortas em guerra, sangues impuros ou não, misturariam-se e jorrariam pelo chão. A iluminação das tochas conferia a Circê uma aparência macabra, escurecendo as órbitas de seus olhos e criando sombras sob as maçãs de seu rosto. Seu olhar destilava ódio e vingança. — A infinidade da destruição está dentro dela. O sofrimento acaba, quando o ritual for concretizado. O caos nos levará ou levará AURORA? — Circê bradou para todas as criaturas. O chão estremeceu com o rugido medonho de um coro das trevas, que partia daquela multidão que gritava: AURORA! AURORA! Aurora já estava certa de seu fim. Ao menos se veria livre do tormento de Cinzas em sua mente e dos perigos que corria por hospedá-la em seu corpo sem que ao menos quisesse. Talvez a frase que Feerick havia
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dito a ela na primeira vez que viram-se, estivesse fazendo sentido agora: “Somente a morte trará a luz do infinito.” A névoa da noite tinha seu estopim, exalando um aroma adocicado como o do mar e trazendo à tona o conhecimento do início do fim para Aurora e o começo da glória para Circê. As correntes sugavam a vitalidade do casal e entre duas colunas de pedra as mesmas seguravam Aurora fortemente ao ponto de seus braços ficarem estirados para os lados. — Meu povo, estamos perto de vislumbrar a verdadeira face oculta da lua. Eis que chegou a hora em que todos verão a glória de meu poder sendo manifesto em Terdállia inteira. Renovei-me com sangue puro. Curei o corpo da oferenda. Agora, resta-me sacrificá-la para que o ritual da paz esteja concluído. “Que os deuses me protejam”. - Aurora pensou. Ela não estava com medo, queria que aquilo acabasse logo. Queria que tudo não passasse de um enorme pesadelo e que quando acordasse estaria em Neodin novamente, com todas as humilhações, o desamor e mistério. Assim, ela preferia, pois desde que toda sua jornada começou, Aurora culpou-se por todos que morreram por sua causa. Por causa dessa maldita entidade aprisionada nela, amigos seus foram destruídos, seu antigo povo foi extinto e agora sua morte seria o prêmio final da deusa da noite, Circê. Ela sentia a morte em meus ossos. Mirou seus olhos em Sebastian. — Quando você está na beira de uma cachoeira e vê a água despencando do alto. Você pensa que é tudo em razão do destino, mas há algo mais além dele. Algo que lhe empurra e ao mesmo tempo o desafia. Algo que lhe impulsiona a contemplar a beleza daquilo tudo. Isso faz algum sentido para você? — ela perguntou. As palavras de Aurora entraram como veludo no coração de Sebastian e trouxeram paz a ele. — Faz todo o sentido. — Sebastian respondeu, sorrindo para ela. Houve uma pausa. — Se ao menos houvesse inteligência em sua cabeça, você teria aliado-se a mim. — Circê disse a Aurora. — Eu prefiro morrer hoje, do que viver nesta morte por mais um dia! — Aurora retrucou em um tom agressivo. 309
— Pois que seja feita sua vontade. Consciente disso, desespere-se. — disse Circê. — Sacrificarei Aurora em nome dos deuses antigos da morte. Esta hospedeira morrerá nas colunas de pedra ao findar do ritual e a entidade aprisionada será minha. A lua já está deslumbrante, observem! — mandou. — Que o ritual comece! De repente, escutou-se um forte som explosivo. O estrondo vinha do castelo de Rhalmenezer. Um exército estava chegando e o estandarte que esses soldados seguravam montados nos Elcatrazes era de Nerann, a terra iluminada. Circê enfureceu-se com a interrupção, nada podia ser mais importante naquele momento do que o cumprimento do ritual da Lua Negra. — Onde eles estão? — Circê exigiu saber. — Estão vindo pela praia do Mar Freucalisco, Majestade. — um fauno chamado Kidas respondeu. — Lanuria, prepare sua tropa para a batalha. — ordenou bruscamente. — Por mais curta que ela venha a ser. Deixem que venham, deixem que batam suas cabeças nos muros e que observem meu triunfo! Me certificarei da morte de todos eles. — Circê disse, virando-se e mirando seu olhar em Aurora. — E quanto a você, assista a destruição do povo novamente. Espero que tenha consciência de que você é a causadora do massacre que está por vir. Feerick e Kidas, vigie-os. Não tardo a voltar. — ordenou por fim aos faunos que estavam entre os outros de sua espécie. O manto ônix de Circê, coberto por penas maciças de falcões, transformou-se em um enxame de falcões que aplainaram e envolveram toda a multidão que ali estava e partiram em direção ao estandarte de Nerann erguido sobre garanhões furiosos. Colossais penumbras se formavam com o subir da Lua naquele início de noite. *** Depois das dificuldades da longa e implacável viagem até mais para lá do sul, a ideia de aniquilar seus inimigos animava a todos os Neranianos e hospedeiros. Os galopes que retumbavam pela praia do mar Freucalisco estabeleciam um ritmo frenético e pouco desgastante, visto a sede que os soldados possuíam em resgatar a rainha de Nerann. Poderia haver homens 310
feridos na batalha, que estava prestes a começar, mas estes nunca haveriam de ser esquecidos. Uma sentinela estava montada no alto da fortaleza impenetrável e uma esfera de fogo fora lançada por uma das catapultas do exército de Circê em direção aos Neranianos. À medida que as grandes pedras de fogo se chocavam contra a areia, deixavam alguns homens à beira do mar caídos pelo caminho, mortos. Porém os estandartes continuavam erguidos e a tropa avançava para o portão do castelo. Simultaneamente a arqueira comandante berrou de cima da sentinela. — Preparar artilharia; atirem! — ela ordenou. O pelotão de arqueiras puxou a corda de seus arcos e dispararam todas juntos suas flechas afiadas. E uma chuva de flechas rasgou os céus, acertando e derrubando vários dos soldados de Nerann. Homens que caíram nas sombras de suas próprias mortes, respingando a água do mar. Os Elcatrazes eram ágeis e desviavam-se de todas as flechas, dessa forma os que estavam neles tinham muito mais chances de invadir o castelo primeiro. — Vamos para lá! — Lunno gritou para Brave, fazendo sinal para que ele vislumbrasse o vulcão enorme que havia no topo de uma montanha. Opherine havia dito que estava sentindo a energia de Aurora emanando de lá. O grupo dividiu-se para ganhar tempo. Brave, Ragnar e Greta trataram de liderar o embate que aconteceria no castelo, enquanto que Lunno, Opherine, Sophitia, Maria e Quinar (capitão da nova guarda), conduziram o voo dos Elcatrazes para o topo do Lago dos Ossos, onde Aurora estava. Lunno precisava fazer algo, ficar apenas observando nunca fora de sua índole. Era sua irmã mais nova, a única família de verdade que teve por toda a sua vida. Ele se sentia responsável por ela e se não a protegesse estaria descumprindo a promessa que fez a ela quando eram apenas crianças. “Irei protegê-la até o fim dos meus dias.” Fora sua promessa. Estava na hora de cumpri-la. Nesse meio tempo as tropas de Nerann, recebendo os comandos do elfo Brave a pedido de Sophitia, avançaram em galope ainda apressado para o portão principal do castelo.
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— Vamos enfrentar um exército de fadas caídas? Estão de brincadeira. — Greta dizia chacoalhando sobre seu garanhão acobreado. — Você sabe como enfrentá-las, fique com elas. — Ragnar disse. — Será divertido. — concluiu sorrindo. — Preparar artilharia: atirem! — novamente a capitã das arqueiras mandava lá do alto. No entanto Brave não podia deixar mais nenhum dos homens morrerem, então clareou a órbita de seus olhos e parou todas as flechas que desciam como uma chuva mortal sobre eles. Brave arqueou as sobrancelhas e todas as flechas quebraram-se diante de todos que continuaram a galopar. De súbito já estavam diante do portão enorme e maciço feito de um aço certamente mais forte do que qualquer outro que já viram. — Ragnar, faça as honras da casa. — Greta pediu, estendendo suas mãos em direção ao portão. — Com todo o prazer. — disse Ragnar, descendo do garanhão. — Preparados? Com um urrar todos responderam. Ele posicionou-se de frente para o portão. Juntou as duas mãos e as colidiu uma na outra, produzindo uma espécie de força que se estendia além de seus braços e com o impacto que atingiu o portão, este partiu-se ao meio. — ATACAR! — Brave bradou erguendo sua balestra para o alto. E uma parte desceu de seus garanhões e avançou em direção ao massacre daquele começo de noite em Rhalmenezer. O exército de Circê era composto por Harpias que desenhavam um voo mortal pelo ar. Faunos que com seus chifres e machados derrubavam tudo a sua frente. Bruxas que recitavam seus feitiços e Fadas Caídas que conjuravam ilusões para confundir seus adversários. Não possuíam um estandarte, apenas pedaços de tecido vermelho retalhados sobre as suas armas. O primeiro a atacar fora Brave, atirando uma flecha certeira com sua balestra na cabeça de uma harpia que voava em sua direção. Imediatamente uma barreira de escudos foi formada no centro e pelas laterais os outros soldados galopavam para atacar o restante do exército de Circê.
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Greta, Ragnar e Brave espremiam-se entre os escudos, mas assim que foi desfeito, o ataque real começou. Brave saía em disparada, atirando suas flechas nos corpos maciços dos faunos furiosos que encontrava pelo caminho. Greta por sua vez, foi direto ao lugar onde as fadas caídas estavam, passando por faunos e harpias que tentaram arrancar sua cabeça, porém suas duas adagas douradas eram mais potentes e ágeis do que qualquer outra arma deles. Ragnar não se esforçava tanto para derrubar seus inimigos. Ele nunca havia usado tanta força assim, era como se estar junto de pessoas como ele o desse mais vigor e fúria ao mesmo tempo. Sua força estava indescritível, a ponto de arrancar a cabeça dos faunos pelos chifres sem precisar da lâmina afiada de seu machado cinzento. Greta subiu até o arco onde montaram a sentinela das arqueiras. Estava bufando de raiva e com uma sede tremenda por ver sangue novamente em suas adagas. Aquilo sim era diversão aos olhos de Greta. Sutilmente escalou a última parede onde as arqueiras estavam e pulou para dentro. — Sentiram saudades, irmãs? — Greta falou inesperadamente. Há muito tempo atrás Greta possuía um alto título no palácio do reino de Cordonne. Era a princesa do reino, uma fada criada para ser a futura rainha do reino. Entretanto seu desejo nunca fora esse. Ao completar seus quatorze anos, aventurou-se na costa de Salemarin com um elfo plebeu e deitou-se com ele. Todos ficaram sabendo e Greta foi banida para as terras geladas do norte como uma fada impura, uma fada CAÍDA. — Greta Volk, a fada caída que se acha mais pura do que qualquer uma de nós. — Erta, a capitã das arqueiras gargalhou ao dizer isso. — Olhe de que lado está. O lado perdedor, a qual sempre chamou mais atenção, não é isso? — Não fale do que não sabe. Você não conhece uma gotícula de meu poder. — Greta disse. — Criar ilusões como as nossas? Exclusivíssimo seu dom, não é meninas? — ironicamente Erta disse. — Vou fazer com que você anseie por algo doce como a dor. — Greta articulou as palavras.
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— Do que você tem medo, Greta? — Erta perguntou cercando-a. Notoriamente era um assunto pessoal entre as duas, já que o tal elfo com quem Greta deitou-se era noivo de Erta. — Eu conto do que eu tenho medo se você contar do que tem medo. — Greta sorriu maliciosamente. — Eu tenho medo de não ver seu sangue escorrendo na ponta de minha flecha. E você, do que tem medo? — Erta proferiu cuidadosamente um tom desafiador. — Tenho medo de mim. — imprevistamente, Greta respondeu. Erta viu o delinear da guerra, das mortes sangrentas que aconteciam abaixo dela, de suas companheiras a olhando e a face de Greta sumirem a sua vista. Um breu tomou conta de seus olhos, era como se tivessem apagado todas as luzes e não houvesse forma alguma de iluminação. Grunhidos esquisitos iniciaram e Erta gritava pedindo ajuda. Imediatamente deduziu que estava completamente cega, e tão mal sabia usar os outros sentidos. Rodopiava de um lado para o outro em busca de golpear qualquer coisa que estivesse produzindo este barulho, mas não conseguia acertar nada. Os grunhidos ficavam cada vez mais fortes e aquilo já estava se tornando insuportável para Erta. Quando suas mãos tocaram seu rosto, percebeu que seus globos oculares estavam completamente vazios, como se algo tivesse arrancado brutalmente seus olhos. — Aaaaagrh! — Erta gritava, contorcendo-se no chão, arranhando os próprios olhos que em sua ilusão estavam perdidos. Porém, na realidade da situação isso era bem diferente. Ela os arranhou tanto que de fato os arrancou a sangue frio por não aguentar mais não poder fazer nada e sentir-se uma completa inútil estando cega. Suas companheiras espantaram-se com o que Erta fizera, o sangue escorria de onde antes era o lugar de seus olhos e Erta rendia-se à própria morte. — Uma fada caída que nada vê não tem necessidade de olhos. — declarou Greta. — Ela fez um bem a si mesma arrancando-os. — Greta dizia olhando para o corpo de Erta estendido no chão de pedra. Antes que as outras fadas disparassem desvairadamente suas flechas, Greta criou uma outra ilusão ainda mais destrutiva. Onde elas estavam em 314
um barco prestes a naufragar e precisavam pular na água. E Greta via uma por uma pulando no que pensavam ser água para se salvarem, o que na verdade consistia em uma queda livre de oito metros até colidirem violentamente contra o solo. — Até que foi divertido. — Greta disse, saindo da sentinela onde estava para ajudar o exército de Nerann. *** Os soldados empunhavam suas espadas e desferiam golpes devastadores sobre alguns faunos e algumas harpias, porém, a força desse exército das trevas equivalia-se em muitos aspectos ao de Nerann. As harpias, com suas espadas desenhavam um voo rasante apunhalando os soldados no crânio, enquanto que a força dos faunos era gigantesca e se potencializava com os coices que dava com seus cifres enormes e pontiagudos. — Eu cuido dos faunos e dessas harpias. — Ragnar berrou a Brave. — Você, cuide dessas malditas bruxas, esses feitiços delas já estão me irritando. Vários soldados transformados em ratazanas. Chega a ser ridículo lutar com seres assim. Naquele momento não era o ódio que se fazia importante, era o desejo de aniquilar. Ragnar nem sempre fora tão carrasco como agora. Vivia em Cordonne desde que nascera e sempre ajudou sua mãe com os afazeres domésticos e a cuidar de seus rebanhos de ovelhas. Entretanto, a pacata vida que levava fora destruída com a condenação de sua mãe a fogueira por ser acusada de alta bruxaria. Em Cordonne isso era imensamente proibido, existiam poucos humanos ali e estes poucos foram envergonhados pelo dito ato da mãe de Ragnar. Ele também fora banido para as terras geladas do norte como uma lição que os deuses lhe deram. Nunca perdoou Cordonne por ter feito o que fizeram com sua mãe. Ela era inocente e ele sabia disso. O rugido de fúria de Ragnar comparava-se ao mais forte trovão em uma tempestade violenta. Os faunos avançavam sobre ele, portando machados parecidos com o seu, porém um pouco menores e certamente mais fracos. Ragnar posicionou novamente suas mãos e chocou-as uma na
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outra, produzindo a mesma onda de força que varreu todos os faunos e harpias que estavam no ar. Nesse ínterim, correu sobre todos eles, esmagando suas cabeças no chão de pedra cinzenta e fria. Sua altura o favorecia tanto que no levantar de seus braços apanhava harpias pelas asas e trazendo-as para o chão, arrancava-lhes com uma força sobre humana, fazendo-as gemer de dor e pedir clemência perante ele. — Esses já estão mortos. — bradou Ragnar para que Brave ouvisse do outro lado. Inesperadamente uma névoa negra formou-se e dela surgiram ainda mais criaturas bizarras. Eram das mesmas espécies que Ragnar havia acabado de matar. Sem demora, estes investiram furiosamente sobre o exército de Nerann. E logo Ragnar percebeu que a luta estava muito longe do seu fim. A magia das bruxas não era de grande valia em uma guerra sangrenta daquele tipo. Não havia honra alguma em seus feitiços, porém Brave pouco se importava com esse fato. Munido de sua fiel balestra e suas filhas flechas, atirava-as sem nenhuma piedade ao encontro do meio dos crânios daquelas malditas. — Morram! — Brave dizia em tom agressivo, fazendo disparos subsequentes. O passado de Brave era um mistério. A única coisa que se sabia era de seu aparecimento em uma vila pacata de Cordonne quando tinha seus dezesseis anos, sem memória alguma. Fora criado por um casal de elfos agricultores e nunca ousou pisar no chão da fortaleza dourada de Cordonne. Por algum motivo, odiava aquele lugar, contudo nem mesmo ele sabia o porquê. As malditas bruxas conseguiam parar as flechas ágeis de Brave com o toque de suas varinhas de madeira. Elas podiam usar qualquer coisa como condutor de poder, desde que tivesse a forma de uma varinha original. De súbito uma delas investiu fortemente contra Brave e ambos caíram no chão. — Seu rosto é tão bonito. — a bruxa falava, passando suas unhas no rosto de Brave que estava desarmado agora. — Uma pena que terei de mata-lo, elfo ordinário! — ela praguejou algumas palavras e de sua varinha apodrecida cintilou uma forte luz lilás. 316
— Não conseguiria me matar nem se tentasse por cem anos. — Brave disse. Brave fechou seus olhos e em uma deslocação simultânea entrou na mente da bruxa. E quis fazer uma pequena brincadeira com seus pensamentos. A bruxa podia sentir seu cérebro explodindo dentro de sua cabeça. Ela abria a boca, mas não saía nenhum som dela, nem gemidos de dor, nem um “implorar” pela vida. A bruxa saiu de cima do corpo de Brave e colocou as mãos sobre a cabeça, não suportando a enorme dor que estava sentindo. Então, mais uma vez abriu a boca e desta vez soltou um último grunhido, entretanto, esse devia ser de alívio, após ouvir-se o barulho do estouro do crânio da bruxa e milhões de pedaços do seu cérebro voando pelos ares. Brave ficou com respingos no rosto do sangue dela. Brave lambeu o sangue em seu rosto e ficou anestesiado com seu rico sabor. — Meu rosto fica ainda mais bonito com seu sangue borrado nele. — ele disse sorrindo e logo após cuspiu no corpo jazido da bruxa.
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Capítulo 29
“Não somos iguais” fino disco da lua minguante já estava prestes a diminuir até sucumbir-se à escuridão daquela noite quente. O sol estava refletindo seus pequenos raios sobre o lado amostra da lua. O lado em que Circê jurou cumprir seu precioso ritual, porém coisas estavam dando errado e certamente ela estava furiosa com isso. Ninguém podia subestimar seu poder, não era uma deusa qualquer. Seu poder aumentava na escuridão da noite e no nascer do breu celeste. Ela se alimentava de trevas e não havia meio termo quanto a isso. Encurtadas brasas incandescentes flutuavam perto das colunas onde Aurora estava presa por aquelas correntes vitais. Essas correntes aderiam aos braços de Aurora e já se notava que se tratava de apenas um membro. Correntes e braços agora eram um só. Aurora já não aguentava ficar ali sem poder fazer nada, enquanto lá embaixo seu povo lutava e brandia suas espadas em seu nome.
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— Preciso sair daqui. Empreste-me a sua força, Cinzas. — Aurora sussurrou com uma nota de desespero na voz. “A força não é algo que se empreste ou se dê.” - Cinzas agressivamente respondeu. — É... você tem razão. A força não é o tipo de coisa que se pode emprestar ou se dar. A força faz a união. — Aurora respondeu sutilmente, entendendo que não podiam lutar separadamente. Cinzas faria parte dela, se não ajudassem uma a outra, qualquer esforço seria inútil. — Vou tirá-los daqui. — de repente Feerick disse, já tentando cortar as correntes com seu machado. — Feerick? — Aurora surpreendeu-se. — Você sabe as consequências que isso trará para você e sua família. — Você foi destinada a ser a emancipadora da guerra e não a ficar presa como uma maldição. — ele respondeu. As correntes não sediam aos fortes golpes que Feerick dava. — Tente nas de Sebastian. — Aurora mandou. — Serei eternamente grato a você, fauno. — Sebastian disse, contorcendo-se para se soltar à medida que Feerick acertava golpes mais fortes nas correntes. Uma das pancadas foi tão forte que um lado da corrente cedeu completamente e o braço direito de Sebastian foi liberto. — Isso, estamos perto. Rápido. — Sebastian pediu. No momento em que Feerick ergueu outra vez a lâmina afiada de seu machado, Sebastian o viu caindo de joelhos no chão, pedindo socorro. Aurora percebendo a gravidade da agonia de Feerick desesperou-se ainda mais presa àquelas correntes. Inesperadamente, Aurora pôde ver a figura de seu irmão caminhando até eles. Seus olhos estavam tomados por uma treva indescritível como nunca Aurora havia visto. Parecia que o ódio estava transformando o poder dele em algo ainda mais destrutivo do que já era. Lunno estava matando Feerick, e ao lado dele estavam Opherine, a maege da sabedoria. Sophitia, Maria e o capitão da nova guarda de Nerann, Quinar, um homem alto e robusto já experiente em batalha com cabelos negros que lhe caiam nos ombros e barba grossa, estavam lá também. Lunno tinha atração pelo proibido. Parecia que tudo que envolvesse o dito errado, atraía-o de uma forma indescritivelmente forte. 319
— PARE! — Aurora gritou para Lunno. — PARE! Ele é nosso amigo. Imediatamente Lunno parou percebendo a suplica da irmã. Sophitia correu para ajudar Feerick, uma atitude esperada, visto o grande coração que ela tinha desde muito pequena. Cuidava dos pássaros que quebravam suas asas em voos fracassados, dava de comer ao seu pai quando este estava triste por não ter Ágatha por perto e sempre ensinava como amarrar as calças do irmão Alphas. E não seria diferente agora, mesmo sendo um completo desconhecido para ela. Sophitia sabia que estavam em tempos de guerras e toda ajuda ao próximo era bem-vinda. — Você está bem? — Sophitia perguntou ao ver Feerick acordando em seus braços. Ele tossiu um pouco, engoliu em seco e tocou levemente o rosto de Sophitia. — Obrigado, menina mágica. — ele deu-lhe um sorriso. O que deu ainda mais esperança para Sophitia de dias melhores. Poderiam tardar a chegar, mas chegariam. — Não precisa agradecer. — Sophitia respondeu dando apoio para ele levantar-se. — Desculpe-me... eu... eu não sabia que... — Lunno balbuciou. — Sempre tentando camuflar um arrependimento vão. Você é um péssimo mentiroso. — Sebastian declarou. — Do que pensa que está falando? Quem matou Alphas não fui eu. Quem deixou a mulher amada e sua própria irmã para fugir não fui eu. Só pode estar tendo alucinações. — Lunno retrucou agressivamente. — Alucinação tem você toda vez que morde a língua. É muito fácil para você falar do que não sabe. Assim como é fácil distorcer a verdade, tendo um poder vasto e manipulador como o seu. Explique para eles como você manipulou todas as palavras e ações de Alphas naquele dia em Sete. De como você o fez insultar sua própria irmã a tratando por uma prostituta qualquer. Você é o causador de tudo isso... você... — tentou continuar, mas foi interrompido. — PAREM! — Aurora gritou. — Não estão vendo a situação em que estamos? E ficam disparando acusações sem sentido como se
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estivessem em uma simples festa se divertindo. Sebastian tudo que você fala é impossível de acreditar. — Aurora, é verdade. — surgiu a voz calma de Maria, aprumando seu martelo no chão. — Quando coisas assim acontecem sempre imaginamos alguém sem rosto ou munido de uma máscara, mas o mundo não é mais como antes. Ele sempre mentiu para você. — Lunno nunca mentiria para mim. Nunca! — Aurora esperneou e seus olhos marejaram-se. — Não só mentiu como a manipulou todo esse tempo. Fazendo-a acreditar que eu abandonei você por ser um assassino covarde. — Sebastian dizia lacrimejando. — Eu nunca a abandonei, acredite em mim, por favor. — ele pedia com um tom triste na fala. — É um discurso muito belo realmente, se não passassem de mentiras absurdas para esconder seus próprios erros, Sebastian. E depois eu que passo por mentiroso. Poupe-me de tudo isso. — Lunno disse. — Você não é nada preso a estas correntes, espero que apodreça ai. — Eu vou matar você, desgraçado! — Sebastian gritou. A honra havia desprendido-de das atitudes de Sebastian. O tempo que passou na Ilha dos Filhos da Terra o fez querer vingança e esta feriu e matou cruelmente seus princípios. Aceitar seria uma atitude covarde. Uma flecha certeira no crânio seria o suficiente para matar Lunno. — Controle seu gênio, é tolice alimentar o ódio que sente por ele. — Opherine disse aproximando-se de Sebastian para tentar acalmá-lo. — Lunno, contenha-se, vá ajudar sua irmã. — Pelos deuses, o que fizeram a você, irmãzinha? — Lunno perguntou assustado por ver Aurora tão abatida. — É verdade mesmo, Lunno? Eu quero muito acreditar em você, mas está tão difícil. — Aurora articulava as palavras para não parecerem ofensivas para o irmão. — Mas será possível que todos aqui irão me acusar de algo que eu não fiz, até mesmo você Aurora? Eu nunca seria capaz de cometer atos tão hostis como esses que Sebastian disse. Nunca seria capaz de passar por cima de alguém simplesmente por sentir inveja ou rancor. — Será que não? — um vozear grave surgiu em meio a uma névoa sombria grandiosa. Era a voz de Circê ressurgida da escuridão para 321
completar seu precioso ritual. — Diga-me Lunno, como você conseguiu esconder sua verdadeira natureza deles por tanto tempo? Você é um aprendiz valoroso e instruir-se com a maege certa, afinal. Ele curvou a cabeça por alguns instantes e seus punhos fecharam-se em sinal de ira. — Por que está fazendo isso com ela? Nosso acordo nunca foi esse. — Lunno surpreendentemente disse. — Pobre jovem, sempre acreditando que suas vontades serão satisfeitas ao estalar de seus dedos. Sou especialista em descumprir acordos tolos quando estes não trarão benefício algum para mim. — Circê proferia suas palavras irônicas, enquanto Aurora observava aquilo tudo escandalizada. — Você não tinha esse direito. — Lunno disse, virando-se para encarar Circê. — Vou soltá-la agora. — Agindo assim me faz pensar onde fica sua lealdade, Lunno. — Circê aproximou-se dele, incidindo seu anel garra no rosto dele. Ninguém ousava atacar por enquanto, precisavam de uma nova estratégia o quanto antes para só assim avançar. — Aqui! — Lunno friamente respondeu. — Acho incrível que você não precisou ter passado por aquele ditado, como é que é mesmo? “Dentro de um ninho de víboras, você tem que ser uma víbora também”. Sua natureza já é de uma víbora com sede de poder e vingança. Eu só fiz isso desenvolver-se mais rapidamente em você. Quando você foi achado pelos Neodianos, eu não mandei você para matar e sim para morrer. Entretanto sua natureza falou mais alto e você com seus três lindos aninhos dizimou uma caravana inteira de viajantes. Desde seus quatorze anos, quando me conheceu em sonhos, eu o guio para que seja não um mero aprendiz, mas um aliado, um filho que eu nunca tive. — Cale a boca! — Lunno praguejou. — Agora que a história começa a ficar interessante. Você claramente lembra-se de quando sequestrou aquele mago insuportável, não é? O tal Lutiel Albus. Como foi fácil usar seus poderes em benefício próprio, você odiava-o tanto quanto eu e fez o serviço muito bem feito, sem levantar nenhuma suspeita. E nossa... o que foi aquela cartada que você tramou sozinho contra o seu cunhado Sebastian. — Circê gargalhou. — 322
Uma jogada digna de um deus. Manipulou o príncipe Alphas a insinuar que sua irmã, Aurora, era uma prostituta que deitava-se com todos os homens de Nerann e logo depois fez ambos lutarem. Golpe monumental, meu caro. — novamente pôs-se a soltar o riso curto. — Não precisou sujar suas mãos para ter o que queria, como eu havia lhe ensinado. Alertou-o a fugir para uma ilha onde certamente encontraria a morte e assim o fez. Precisou distorcer a verdade um pouco para Nerann. Porém, você subestimou o amor entre Aurora e Sebastian, nunca passou pela sua cabeça que eu o havia matado em Gallia e Aurora sacrificado sua própria imortalidade para tê-lo novamente como um imortal. Tola injustiça com você não é, meu filho? — Como eu poderia saber? — Lunno questionou sobressaltado. — Veja como fala com sua maege protetora. — Circê anunciou. — Porém, a melhor morte de longe foi a daquela garotinha, Emma. Quanta crueldade fazendo-a sofrer, manipulando-a para provocar a própria morte. Até eu me arrepiei quando soube. — Circê riu. Todos ficaram abismados com todas as afirmações proferidas com clareza por Circê. Lunno era uma víbora que enganou a todos. Lágrimas comparadas ao ácido, caíam dos olhos de Aurora. O próprio irmão não apenas mentiu, como fez tudo parecer obra apenas de Circê desde o início. — Talvez eu não mate o resto de vocês, se me derem licença para concluir meu ritual. — Circê disse. — Você vai fraquejar agora Circê? – Lunno retrucou hostil. — Sua fraqueza é a inveja cega que sente da sua irmã, Lunno. Você não sabe quando parar de lutar, já vencemos, não vê? — DESGRAÇADO! — Aurora bufou de raiva ao finalmente entender tudo. — Como você pôde fazer isso, Lunno? Somos irmãos. — Somos irmãos, mas não somos iguais. Você sempre teve as maiores atenções de tudo. Eos cantava para você, sua entidade é a mais poderosa de todos os outros hospedeiros, incluindo a mim. E... você achou alguém que ama-a de verdade e que fez sacrifícios incríveis em seu favor desde que se conheceram. Eu tenho inveja de você. — Lunno lacrimejava. — Eu sei exatamente o que sinto por você agora: desprezo. — por fim, Aurora disse. — Pois que sinta, esse é o preço, não é? Pois eu pago. Eu protegi você, nunca descumpri essa promessa. 323
— Que você morra com ela. Agora a distância entre o amor e o ódio era quase imperceptível. A ira estava instalada na hospedeira. A entidade não dizia uma única palavra dentro de Aurora, mas ela já podia sentir os primeiros sinais de sua força provindo de Cinzas. Os olhos mudaram sua tonalidade para escarlate e uma fina camada de energia alaranjada correu por toda extensão de seu corpo. O chão começou a tremer e as colunas que suportavam as correntes que a prendiam cederam e com as rachaduras não foi uma tarefa difícil para Aurora quebrá-las. Seguidamente houve uma explosão. As correntes que prendiam seus braços ficaram em milhões de micro pedaços espalhados pelo rochoso solo. — Vocês se tornarão pó sobre o chão. — o brado de Cinzas repeliu a voz de Aurora e foi tão intensa que penetrou nas cordas vocais da hospedeira, fazendo a frase sair como se fosse Aurora dizendo. — A manifestação. — Opherine deslumbrou-se e ao mesmo tempo preocupou-se com o que estaria por vir com aquele início de transformação. — Você não irá me controlar! — Aurora gritava, enquanto seu corpo era envolvido por uma energia semelhante ao fogo, porém mais intensa. “Não resista!” - Cinzas ordenou. — NÃO! — Aurora proferiu como um rugido, pondo as mãos na cabeça. Não aguentando a pressão que Cinzas estava exercendo sobre ela, caiu violentamente contra o chão, desmaiada. Um som agudo de lâmina fez-se presente. Era o machado de Feerick cortando a última corrente que prendia o braço esquerdo de Sebastian, assim que a cortou, Sebastian correu para onde Aurora estava caída. A respiração dela estava cortada, quase parando. Sebastian tentava escutar o som de seu coração, mas praticamente não se ouvia nada. — Aurie, por favor, acorde! — Sebastian pedia enlouquecidamente. Vê-la naquele estado só fazia lembrar-se de quando era ele que estava no lugar dela. A dor de quem está vendo parecia ser o dobro. — Eu vou acabar com isso já! — Circê bradou. — Só passando por cima de mim, irmã. — Opherine a bloqueou com seu cetro esbranquiçado.
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— Há muito tempo minha querida meia-irmã não me chamava assim. — Circê sorriu. Certamente fora outra revelação inquietante e surpreendente naquele momento. Ninguém podia imaginar que Opherine e Circê eram irmãs. Opherine era fruto da traição da deusa Hécate com um humano proveniente do reino Alimera. Um mero caçador por quem Hécate encantou-se e gerou Opherine. Por consequência Opherine tornou-se uma semideusa com os poderes de um deus, mas a mortalidade de um ser humano. Circê cresceu alimentando um ódio por ter uma irmã que ousava ter mais poderes do que ela mesma. Vez ou outra enfrentavam-se em encontros ocasionais em Terdállia e Circê tinha consciência do poder devastador que Opherine possuía. — Tome posse de sua varinha apodrecida e lute como uma maege de verdade. — Opherine pronunciou em voz alta, apontando seu cetro contra Circê. — É sempre engraçado ver uma maege com um cetro. — Circê disse. — O que vai fazer, me atingir com seu feitiço de amor? — ironizou. Opherine gritou e atingiu em cheio a primeira magia de fogo lançada na direção de Circê. Sem perder tempo Circê protegeu-se criando uma esfera negra de ar em sua frente a disparando em seguida sobre Opherine. A maege branca pronunciou algumas palavras e uma grande esfera de luz translúcida formou-se de seu cajado e simultaneamente seus olhos ficaram brancos. Agilmente deferiu a bola de luz destrutiva para acabar com Circê, porém, quando a esfera entrou no campo de visão da deusa, despedaçou-se em dezenas de minúsculos pedaços. — Talvez fique um pouco mais divertido se eu envolver a princesa de Nerann na luta. — Circê delineou um sorriso maléfico, lançando de seu manto um enxame de falcões negros prontos para ter Sophitia como jantar naquela noite. — Não! — Opherine lançou seu olhar para trás a fim de tentar conter a fúria dos falcões malditos de Circê. Gesto honroso, não fosse pela rapidez de Circê que em segundos estava atrás de Opherine. Quando a maege virou-se deu de frente com a imagem calma e cínica de Circê.
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— Adeus, querida irmã. — Circê disse erguendo a varinha apodrecida e tocando o rosto da irmã, que subitamente transformou-se em pedra. — NÃO! — Sophitia gritou, querendo correr para ajudá-la, porém Feerick não a deixou ir e segurou-a pela barriga. Circê ficou admirando doentiamente o rosto da irmã transformado em pedra. As mesmas pedras em que estavam pisando agora. Notou como os seres ficavam ainda mais bonitos emoldurados por grandes camadas de pedras, e não foi diferente com sua meia-irmã Opherine. De repente, ergueu sua varinha mais uma vez e golpeou com toda força o tronco de pedra do que antes fora Opherine. Logo o corpo partiu-se em vários pedaços e as pedras voaram pelo ar como se fossem vidros, após segundos caíram violentamente sobre o chão rochoso e quente do Lago dos Ossos. Rhalmenezer ganhava mais pedras em seu glorioso solo, pedras que jamais sairiam dali e que a partir de agora seriam relíquias e lembranças de um triunfo que seria lembrado por gerações depois daquela. O triunfo de uma deusa que fora exilada e esquecida como uma qualquer. — É isso que o amor faz, cara irmã. Nos trai. — Circê agachou-se admirando uma pedra em especial. A pedra que emoldurou o coração de Opherine.
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Capítulo 30
Fogo Revolto céu estava nublado e fortes trovões que cortavam o horizonte, podiam ser ouvidos de longe. Era um aviso de que o fim estava próximo. O clima permanecia muito quente, e tudo que Circê pensava era em seu ritual. Quinar, o capitão da guarda, partiu para o ataque, avançando tolamente sobre Circê. Ela desviou de alguns golpes, mas logo matou-o com sua própria espada. Não havia tempo, Circê avançou sobre Sophitia e Feerick e prendeu-os em uma parede sólida com um tipo de feitiço comum. Sophitia e o fauno ficaram totalmente imóveis, não conseguiam se mexer de forma alguma. — Eu vou matar você, traidora! — Lunno praguejou em direção a Circê. — Maria, ajude-o. — Sebastian pediu para a irmã, segurando Aurora com lágrimas nos olhos. — Ele é um traiçoeiro, não posso... — balbuciou com medo.
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— Maria, VÁ! — Sebastian mandou com raiva na voz, abaixando sua cabeça no peito de Aurora, chorando. — Que fique bem claro que não somos mais namorados. — Maria alertou Lunno, arrastando seu pesado martelo no chão. — Até que enfim você percebeu. — Lunno disse, deixando seus olhos fixos em Circê. — Agora vamos! — gritou, avançando junto com Maria em destino a Circê. — ORDINÁRIOS! — Circê praguejou assim que sentiu os passos apressados dos dois namoradinhos vindo em sua direção. — Não tenho tempo para isso! — ergueu sua mão e afastou-os mentalmente com uma força violenta para uma outra parede de pedra quente e lá os fixou. Aproximou-se de onde Sebastian estava com Aurora. Ele segurava-a firmemente, sabia que não possuía chance alguma contra o poder devastador de Circê, mas por Aurie faria qualquer sacrifício. — DEIXE-A EM PAZ! — Sebastian implorou com lágrimas nos olhos. — Paz não significa ausência de sofrimento. — anunciou Circê, conjurando o mesmo feitiço simples que afastou-o bruscamente de Aurora. O vento que colidia sobre os cabelos trançados de Circê a deixava com mais sede de deter o controle de um poder imensamente maior do que já tinha. Olhou para o alto e lá estava a lua negra deslumbrante como o próprio sol. — Chegou a hora. A Lua Negra está completa, a grande hospedeira das cinzas irá morrer! Seu corpo será cinzas sobre o chão. — Circê declarou. Repentinamente uma névoa negra como as de antes, formou-se novamente no centro do solo e dela surgiu parte do exército destruidor de Circê que veio prestar suas devidas reverências ao ritual. — Assim que o terceiro pilar for concretizado e ela for sacrificada, o céu sangrará outra vez e a abominação dos dias nefastos voltará. — Circê passou a urrar suas juras. E em silêncio esperou que a Lua Negra estivesse na posição exata para dar início ao ritual. Aurora estava desacordada ainda e seus pensamentos estavam desligados por completo, a mente dela se encontrava em estado de vácuo absoluto e não havia certeza de que poderia acordar. 328
Quando Circê percebeu a exatidão da lua, o ritual finalmente começou. Com sua varinha apodrecida, traçou um círculo de poder em volta dela e de Aurora. Em seguida, deu início a invocação dos quadrantes e elementos, acendendo duas velas: a vela branca que simbolizava a nova era que Terdállia teria e a vela vermelha que simbolizava o sangue do terceiro pilar, o sacrifício. As chamas das respectivas velas agitavam-se com o vento que colidia com elas. O calor estava cada vez mais forte ali. Logo após, Circê tocou o chão três vezes com sua varinha e disse: — “Nesta noite de sacrifício e poder, No limiar entre os tempos, Com o poder dos deuses ancestrais e A proteção da Grande Perséfone - rainha do Submundo, Dou início a este Ritual da Lua Negra.” Ninguém ousava proferir nenhuma palavra. O ritual precisava de silêncio absoluto e a única voz que se podia ouvir era a de Circê. Ela acendeu outras três velas negras que simbolizavam a morte anunciada e começou a dizer palavras desconexas, invocando agora a deusa Negra: — “Oh Grande Lua Negra, Eu lhe invoco, Venha até mim, É sua filha que a chama. Venha sob suas inúmeras facetas. Venham me purificar, me proteger, me ensinar. Venha transpor este grande poder para mim.” A deusa negra das passagens, que sempre traz mudanças em vidas alheias. A deusa das reviravoltas. Circê já podia senti-la, podia vê-la se aproximando, sentia a respiração dela cada vez mais próxima de seu rosto. Quando percebeu sua presença, confidenciou-lhe seus sentimentos, seus medos, seus desejos. E logo pediu a ela que levasse os males daquela terra e que deixasse Terdállia totalmente pura de qualquer mal. E que para isso precisaria sacrificar a grande hospedeira para livrar aquele povo de um grande mal que ela não podia controlar. O ritual estaria completo quando Circê desfizesse o círculo do poder.
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A lua era insana a ponto de ficar suspensa no céu sem cair, de modo que subitamente, Aurora se levantava com marcas negras que lembravam tatuagens em seu rosto e rapidamente lançou um olhar debochado antes de começar a falar. — Achou mesmo que teria poder de me deter? — Aurora disse sorrindo, endurecendo-se e subitamente parando de respirar. O sorriso fora explicitamente falso, mas Circê podia ver seus olhos faiscarem de ódio. Não era ela. “Se você não luta, não tem utilidade. E eu não possuo paciência para inúteis. Sua luta pela sobrevivência vai começar agora. Não quer ser morta? Não será. Não acha que é corajosa o bastante? Você é. Está com medo? Não fique. Está com sede? Pois beba o sangue deles. Você tem as armas de que necessita. Agora lute!” - Zangada, a voz de Cinzas cutucou na cabeça de Aurora. — Sacrificar-se a si mesma em favor de meros mortais. Que patético. — Circê murmurou. Aurora fechou seu punho e com muita força esmurrou o rosto de Circê. Ela por sua vez, não saiu do lugar. O soco podia ter sido indescritivelmente forte, porém, Circê possuía poder para combater Aurora fosse como fosse. — Vocês deuses tem muito a zelar pelo seu poder não é mesmo? Mas ao menos já perguntaram-se de onde veio tanto poder? Quem deu origem a todos vocês? RAÇA IMUNDA! — o olhar escarlate de Aurora alertava que não era ela falando naquele momento. Era Cinzas, e esta estava disposta a destruir Circê. — O que importa é o poder que possuímos... — a deusa tentou falar, mas fora interrompida. — Poder? Se você julga ter tanto poder, então porque precisa de mim? — indagou Cinzas possuindo mentalmente Aurora. — Com a sua força, serei ainda mais forte que os outros deuses do Olimpo. O ritual precisa ser finalizado, coopere ou Aurora morrerá. — Neste corpo eu senti a vibração do que é possuir um poder imensurável. Agora eu anseio por mais e você nunca terá força para mudar isso e me afastar deste corpo. Por novas emoções, pelo prazer da destruição, pela força do infinito e a imortal alegria do mal. Aurora já se foi, eu detenho o controle. Eu sou a chama do fogo que se acendeu dentro dela. — Cinzas urrava suas palavras. 330
— Você não vai me impedir de tê-la em meu corpo. — Circê declarou. Após isso ergueu suas mãos e lançou um feitiço destrutivo em direção a Aurora. Cinzas a fez desviar instantaneamente do golpe e lançou um olhar furtivo. Subitamente, Aurora tomou novamente o controle de sua mente, com um olhar distante, parecia não saber o que estava acontecendo e o que estava fazendo ali. Viu seus amigos presos em paredões de pedra por algum tipo de força e Sebastian estirado no chão a uns dez metros de onde ela se encontrava com Circê. — Posso morrer por eles, mas também posso matar. — disse Aurora furiosa, partindo em direção à Circê, dando um enorme murro em seu abdômen. Circê logo ficou praticamente sem ar devido ao forte golpe, mas retomou suas forças em seguida e conjurou um feitiço que jogou Aurora para bem longe, porém esta não caiu. Enquanto o feitiço partia em sua direção, Aurora o parou com as próprias mãos que esquentaram e produziram enormes queimaduras nas costas de suas mãos. Lanuria bateu suas asas e voou com sua espada para atacar Aurora. — Nem ao menos ouse chegar perto. — Aurora disse, erguendo uma das mãos e parando o bater de asas de Lanuria no ar. Em seguida movimentando a mesma mão trazendo-a para perto de si. — Como nos velhos tempos. — disse ela, apanhando a espada das mãos da harpia e logo após a atirando para a multidão do exército de Circê. A espada fazia parte de Aurora, como o ferrão de uma vespa. Sentir uma lâmina em suas mãos renovava a esperança e a fúria de Aurora, com aquela espada em suas mãos sua força triplicava e Circê veria na pratica a raiva estabelecida na ponta do aço. Retalhos de emoções invadiam o peito de Aurora. Essa seria a sua verdadeira chance de aniquilar aquela que destruiu sua vida desde o começo. Não podia permitir que ela fosse a causadora de seu desfecho, por mais maldição que pudesse ser, Cinzas era parte dela agora, não seria um ritual qualquer que a tiraria de dentro dela. Um golpe certeiro provindo da varinha putrefata de Circê acertou Aurora no rosto e o ferimento a fez sangrar da testa aos olhos. Seu sangue
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borrifava seu rosto. Nos ataques seguintes da deusa, Aurora conseguia bloquear gloriosamente com sua nova espada. O momento havia finalmente chegado. O momento de matar a causadora do caos. Aurora empunhou a espada e ergueu-a por cima de sua cabeça, gritando com toda força um brado de batalha. O ataque foi tão forte que fez o corpo inteiro de Circê tremer, com o ataque físico veio o ataque mental, uma força intensa vindo dos pensamentos destrutivos que Aurora passara a ter. “Como ela pode ser tão forte?” - Circê perguntava a si mesma. Aurora sentiu outras mentes juntar-se à sua, não era Cinzas dessa vez. Sebastian, Maria, Sophitia, Feerick, Alvorada, os outros hospedeiros e até seu próprio irmão traidor. Com a força deles conseguiu fazer um muro impenetrável ao redor de si que nem mesmo Circê obtinha sucesso ao tentar invadir. A deusa a olhava sem acreditar que ela estava controlando a força superior que Cinzas tinha. Logo Aurora usou isso contra ela, com um movimento alto a hospedeira a atacou várias vezes. Circê por sua vez tentava bloquear, afastando-se dela, mas a fúria nos olhos de Aurora era tão grande que tornou-se impossível saber se sairia dali detentora da vitória ou conhecedora da derrota. Novamente Circê começou a atacar Aurora conjurando feitiços ainda mais poderosos e que roubavam bastante a força vital da deusa. Aurora boqueava seus ataques com o poder que há pouco descobriu que emanava dela. O poder mental, mais devastador e controlador do que qualquer outro que possuía. Circê tentava desviar da lamina e da mente da hospedeira ao mesmo tempo, isso não era nada fácil pra ela, Aurora forçou ainda mais seus ataques, tanto com o aço quanto com a sua mente, colocando todas as suas forças neles. A hospedeira sentia sua visão ficar mais escura aos poucos, tinha de ser agora, estava próximo ao seu limite de controle mental sobre Cinzas, se não matasse Circê naquele momento, a própria entidade teria esse prazer que Aurora buscou ter por tanto tempo. E a Bellator não permitiria isso. Deu mais um grito e atacou Circê pelo lado esquerdo de cima pra baixo. Uma língua de neblina negra se formou no ar e voou em direção a Aurora, acertando-a bem no meio, ela caiu pra traz.
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Circê não tinha tempo de confiar que aquela ofensiva havia matado Aurora, então a deusa transformou sua varinha em um punhal dourado e pulou no ar, caindo em cima da hospedeira com a ponta de seu punhal na direção do coração dela. Estaria feito, ela estaria morta, não fosse pelo abrir explosivo de seus olhos, os olhos escarlate que Cinzas possuía, a mente de Aurora estava de volta ao seu estado inconsciente. Apanhando com ambas as mãos os punhos na qual Circê segurava fortemente um punhal dourado ao encontro do crânio de Aurora. — Quanto meus sentimentos unem-se com os de Aurora é formada uma força que supera até mesmo os deuses mais poderosos. — Cinzas pronunciou, enquanto fazia força para tirar Circê de cima dela com aquele punhal. — Não importa quanto poder vocês tenham, é inútil. — disse Circê, aumentando a potência de força que destilava pelo metal dourado. Precisava matá-la, a lua negra não ficaria para sempre exposta no céu. — Isso não é verdade. Nós vamos alcançar o futuro com nosso poder. O futuro em que você não faz parte, cara netinha, filha impura de Hades. Você jamais verá o triunfo das entidades sobre este e outros mundos, pois estará fadada a um exílio eterno, desta vez ao lado de seu pai no Submundo das Trevas, onde ele é o senhor de tudo. — Cinzas produzia uma aflição cada vez maior em Circê. Uma agonia da qual ela nunca havia experimentado desde a traição de Ares. Cinzas deslocou o corpo de Aurora e virou-se ficando por cima de Circê com o seu próprio punhal apontado contra sua garganta. Pelo frenesi da luta, Circê não percebeu que estava muito perto do Lago dos Ossos de Rhalmenezer. As lavas explodiam abaixo dela e o calor, com o passar do tempo, estava ficando mais insuportável. Aurora tomada pelo poder furioso de Cinzas arrastou Circê até o limiar entre o solo rochoso e o lago flamejante. — Você será banida para o submundo que meu filho Zeus gerou, para nunca mais ousar ver a luz do dia novamente. A superfície será governada por mim e minhas irmãs no tempo eu estabelecerei, tempo em que meu poder se avassalará neste corpo e não terei limites. Todas as terras se curvarão perante mim e estarão sujeitas ao meu comando brutal. E mais uma vez repito, VOCÊ não se encaixa no futuro! — Cinzas fez Circê 333
perceber onde estava agora. A boca do inferno. O início do lago enfeitado por inúmeros ossos percorrendo os rochedos em que a lava não conseguia alcançar. — O quê? — Circê estava notoriamente com medo. Cinzas pegou-a pelo pescoço, fazendo-a tossir por falta de ar e inesperadamente a jogou nas covas vulcânicas escuras de Rhalmenezer, muito abaixo da superfície. Lá, ela era esperada para a morte, sofreria de fome, enfrentaria monstros horrendos ou se fartaria de doses demasiadas de desespero. — MALDITA! Eu voltarei... — a voz de Circê perdia-se aos poucos, enquanto seu abominável corpo caía no fogo das oferendas. Aquele certamente era o aviso aos deuses de que as entidades estavam indomáveis agora, ao menos uma. — Adeus. — Cinzas disse, vendo o corpo de Circê adentrando como uma pequena fagulha naquele gigante fogaréu alaranjado. Ao que tudo indicava, ela não havia de ter morrido no impacto, porém, estava condenada a mais um exílio, desta vez em um mundo onde precisaria alimentar-se de ainda mais dor e sofrimento alheios, ao lado de seu pai caído, Hades. Cinzas levantou-se de mais um triunfo. Sua sede por morte era incontrolável, precisava de mais vítimas, de mais sangue para fartar-se e de mais sofrimento para contemplar. — Sua deusa, está MORTA! — Cinzas bradou para parte do exército com a voz autoritária de Aurora. A hospedeira lutava dentro dela para tomar o controle total, mas uma parede de vidro impenetrável separava suas mentes agora. Eles gritavam freneticamente. Não eram tolos de não seguir o ser mais forte e superior e naquele momento este ser era Cinzas. Com a queda de Circê, o feitiço que prendia o outro grupo foi desfeito e estes ficaram livres novamente. Lançados a própria sorte no chão quente daquele lugar. — Preciso detê-la. — anunciou Lunno, empunhando novamente sua espada. — Não seja tolo. — Maria retrucou ao seu lado. — Ela está fora de controle, não está vendo? — Se eu não a impedir, quem o fará? 334
— Os deuses. — Maria respondeu friamente. — Os deuses que causaram tudo isso. Se não fosse pelo egoísmo de todos eles não teríamos de passar por tudo isso, não teria de ver minha irmã assim. — Lunno praguejava suas palavras, lacrimejando como jamais Maria viu. — Calma, vamos dar um jeito de salvá-la. — o consolou, abraçando-o. — Precisamos dos outros. — Eles ainda estão em batalha. — Então mande a eles um sinal, qualquer coisa. — Lunno gritou. — Nós juntos podemos domá-la. — Certo. Sophitia! — berrou Maria, chamando a princesa. — Corra até aqui! Sophitia estava a cerca de doze metros de distância de Lunno e Maria. Com seus olhos tremeluzindo um azul céu, olhou para Feerick e este acenou positivamente com a cabeça. Feerick a carregou nos braços fortes que possuía e a levou para Maria. — Chegou a hora. — Maria a lembrou. — Não queria que tivesse chego a isso. — Sophitia disse. — Mas é pelo bem de todos. — virou-se e assobiou para seu fiel amigo, Alvorada. O Elcatraz saltou em voo e chegou até onde o grupo estava. Seus pelos estavam sujos, mas sua jovialidade intocável. Não haviam sinais de exaustão nele e Sophitia sabia que seu legado iniciaria agora, afinal, nunca fora criado para ser apenas um Elcatraz entre tantos. Sophitia aproximou-se dele e delicadamente acariciou sua cabeça, a beijando em seguida. — Você sabe o que tem de fazer. — Sophitia disse. — Agora VÁ! Alvorada levantou um esplêndido voo sobre suas cabeças. Desta vez não para anunciar um novo amanhecer, mas para reascender a esperança daquela noite quente e sangrenta em Rhalmenezer.
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Capítulo 31
Testemunhem a Vida sangue dos Neranianos borrifava o chão do pátio do castelo a ponto de ficar tão vermelho quanto os cabelos sedosos de Aurora. A guerra que havia se instalado no castelo principal de Rhalmenezer levou consigo dezenas de soldados honrados do reino de Nerann, soldados que desprenderam-s de seus afazeres cotidianos para lutar em favor do resgate e salvação da rainha Aurora Bellator. O sangue de vários deles foi derramado, porém, esses também fizeram sua devida função, cravando suas espadas, lanças e flechas nos corações de cada ser nefasto e abominável do exército da deusa Circê. Greta odiava ter de usar suas ilusões em batalhas corpo a corpo, preferia arrancar sangue de seus inimigos usando suas duas adagas que parecem que foram feitas para ser uma extensão das mãos habilidosas que possuía. Boa parte do exército inimigo já havia sido derrotada, em contra partida a legião do exército de Nerann reduziu-se, houve muitas baixas. Greta estava com pressentimentos ruins acerca do futuro daquela guerra, não a que estava 336
acontecendo diante de seus olhos, mas a do Lago dos Ossos. Aurora e Lunno estavam lá, fosse como fosse, todos eles eram ligados agora e aquela sensação de que eles precisavam de ajuda, fora muito estranha para Greta. Ela assobiou para Brave e Ragnar que estavam com ainda mais sede de matança do que ela própria. Será que as suas respectivas entidades estavam manifestando-se? Do jeito que as coisas estavam ultimamente, qualquer hipótese não poderia ser meramente descartada. Ragnar foi o primeiro a ouvir, logo em seguida Brave também a escutou e ambos viraram-se para olhá-la e ver o que se passava. — É nosso dever. — Greta afirmou, apontando com sua cabeça para onde a outra batalha e ainda mais perigosa estendia-se. O Lago dos Ossos. E simultaneamente algo no céu produzia uma pequena agitação nas poucas nuvens que haviam. Era Alvorada, o Elcatraz da princesa Sophitia. Ele aplainava sobre eles demonstrando exatidão em seu voo. — Ele é a nossa passagem para o vulcão. — Brave disse, gesticulando com as mãos para que Ragnar e Greta subissem o quanto antes em Alvorada. Ragnar subiu primeiro sem muito esforço para ajudar Greta a subir logo após. No momento em que Greta dava seus primeiros passos no corpo da criatura uma fada caída que havia sobrevivido a queda que Greta provocou, atirou uma flecha para aniquila-la de uma vez por todas, porém Brave possuía seus instintos muito bem aguçados e ouviu o zumbido da flecha que partia para matar Greta e subitamente a pegou antes que a atingisse em cheio. Quando percebeu que a fada caída atiraria mais uma vez, Brave disparou com sua besta três flechas velozes que acertaram seu olho esquerdo, o abdômen e a cabeça. — Acho que você não é muito amada por elas. — Brave ironizou, ajudando Greta a escalar o corpo de Alvorada. Quando os três hospedeiros estavam em cima de Alvorada, Greta berrou para que ele partisse e assim ele o fez. E Alvorada ergueu seu voo mais alto e rápido que fez em toda sua vida. Ali estavam eles, apesar de suas histórias dolorosas e seus traumas individuais, adquiriram o conhecimento de que detinham um dever que não se tratava de viver passivamente ou em torrentes de alegrias. Começaram a viver a verdadeira vida a partir dali, seguiram seus verdadeiros legados e jamais podiam deixar Aurora e Lunno 337
sozinhos. A partir daquela guerra eles se tornariam a devastação contra o poder maligno que planejava tomar o poder do reino criador, Genesis. *** A Lua Negra estava prestes a se desfazer por completo, mas por hora permanecia ali intacta e virgem sem lençóis de nuvens a cobrindo. Estava complemente nua e exposta aos desígnios dos acontecimentos vindouros. — Matarei um por um e você será a primeira, reservei uma morte bem dolorosa para você. — Cinzas completamente segura de suas palavras dizia caminhando até a princesa Sophitia. A princesa aprendeu não sentir um medo estrondoso no tempo em que passou com Aurora. Tudo que Sophitia sabia sobre táticas de batalha e espadas, aprendera com ela, era uma ótima madrasta afinal, porém Sophitia a via como uma verdadeira irmã, alguém que nos seus choros mais sombrios, acalmava seu coração e limpava suas lágrimas sem pedir uma única coisa em troca. E agora, tomada por um poder nefasto, estava marcada para morrer. De súbito, no horizonte surgiu a figura corpulenta de Alvorada trazendo em suas costas os hospedeiros. Antes mesmo de Alvorada pousar, eles pularam de suas costas e logo anunciaram-se. — Não toque em nenhum fio de cabelo da princesa. — Brave esbravejou, apontando sua balestra para Aurora. — Suas armas nunca serão suficientes para deter a manifestação da entidade. — Cinzas declarou, erguendo suas mãos destroçando a balestra de Brave como se fosse um pequeno brinquedo. O mesmo aconteceu com o machado de Ragnar e as adagas de Greta que evaporaram como uma fumaça. — Agora que estão sem armas o que irão fazer para salvar seus amigos? — Ragnar, é com você. — Greta gesticulou com a cabeça em sinal de aprovação. — Deixa comigo, vou adorar esmurrar ao menos um pouco este lindo rosto. — ele sorriu socando a costa da mão esquerda com o punho fechado da direita. O hospedeiro grandalhão que detinha a força de sua entidade colocou-se 338
em posição de ataque e, colidindo uma mão na outra gerou um enorme impacto que evoluía à medida que avançava contra Aurora. A força que Ragnar conseguia produzir era enorme e muito superior a dos gigantes de Zorá. Com um movimento sucinto e preciso, Cinzas no controle de Aurora, repeliu toda a força que caía sobre ela, a conduzindo em uma potência ainda maior em direção do seu primeiro atacante: Ragnar. — Mas que droga! — Ragnar bufou, sendo atirado violentamente para trás e consequentemente desmaiando. — RAGNAR! — Greta berrava. — Goste ou não, você sentirá a fúria novamente em minhas mãos, agora de outra forma. Lunno estava desesperado com tudo que estava acontecendo. “O que foi que eu fiz?” - Ele indagava-se por tantos erros que havia cometido contra a própria irmã. — Eu vou evitar isso. — Lunno inesperadamente anunciou. — Não vai! — Maria retrucou em um tom agressivo. — Você já me impediu uma vez, não ache que fará isso novamente. É a vida da minha irmã que está em jogo. — Sua dor está cegando seus pensamentos. — alertava Maria preocupada. Apesar de tudo, não podia simplesmente ignorá-lo ali depois de tudo que passaram juntos. — Minha dor está me fazendo enxergar tudo com clareza. — A morte a favorecerá. — Maria disse. — A morte não favorece ninguém. — berrou Lunno. — Eles estão com mais cabeça para luta, um rompante seu só ia dificultar ainda mais as coisas. Por favor, fique. — delicadamente Maria pousou uma de suas mãos na mão direita de Lunno para pleitear sua permanência ali. Lunno hesitou, porém sem pronunciar uma única resolveu ficar. Enquanto isso Greta assumia a sua outra forma de poder. — Do que tem medo? — ela perguntou a Cinzas. — Tente descobrir nas profundezas das trevas se você for realmente capaz de algo. — Cinzas cruzou os braços, a desafiando e em seguida fechando os olhos. — Você tem medo do que poderá acontecer? — Não. — Greta retrucou. — Deveria ter dito sim. — Circê desdenhou. Greta despertou a ilusão do provável medo de Aurora dentro de sua mente. 339
Ela sabia que não era Aurora, porém descobrir sua fraqueza do corpo hospedeiro seria mais fácil do que encontrar a fragilidade da entidade. Quando Cinzas abriu os olhos de Aurora, se viu rodeada um cenário obscuro e sem presença de luz. A treva era tudo que se podia sentir, cheirar e ver. O medo do escuro, medo de ficar completamente sozinha em meio a um total vácuo. Este medo pertencia a Aurora, e agora Greta sabia disso. Ela queria causar uma distração para que Brave conseguisse adentrar na mente de Aurora para tentar expulsar a entidade. E conquistaria este triunfo não fosse o poder sobre humano que provinha de Cinzas, a infinidade da destruição. De repente, Greta viu o lugar onde estava desaparecer, sabia que só poderia ser algo da entidade de Aurora, por isso forçou seus olhos para que a potência de sua ilusão fosse maior e mais duradoura. Ao abri-los novamente suas pupilas dilataram-se diante do lugar onde estava. Uma prisão. Alguma coisa sólida colidiu violentamente contra as costas de Greta. Paredes começaram a surgir a sua esquerda e a sua direita. O espaço fora ficando cada vez mais apertado e Greta precisava dobrar os braços e abraçar os joelhos para poder caber naquele cubículo. Um estrondo podia ser ouvido. Era o teto de pedra caindo sobre Greta e apoiando-se contra as paredes grossas que a prendiam. Greta curvou-se para frente, soltando um murmúrio de aflição. O espaço ficou grande o bastante apenas para acomodá-la e nada além disto. Até o ar disputava espaço. — Aprisionamento. SOCORRO! TIREM-ME DAQUI POR FAVOR! — Greta berrava desesperadamente. Seu medo: ficar presa ao redor de obstáculos, sem meios para sobressair. Cinzas facilmente manipulou as ilusões de Greta para que estas retornassem para a própria criadora. Greta tentava manter sua respiração estável, mas o tempo corria ainda mais rápido nestas situações e o pânico começava a alastrar suas emoções. “É só uma ilusão.” Greta lembrava. A princípio Greta pensou que poderia conter aquela ilusão, mas os minutos aceleravam dentro desta e seus sentidos começavam a esvair-se como areia nas mãos. O uivo do vento se fazia latente e era o único som que Greta podia ouvir claramente dentro daquela maldita ilusão provocada por Cinzas. Uma forte taquicardia invadiu o peito de Greta. Seu rosto empalideceu e ela 340
começou a suar frio e o suor escorria sobre o tecido marrom de sua vestimenta. Seu pulso estava fraco e não conseguia respirar regularmente. Não suportando mais a agonia do enclausuramento, perdeu os sentidos e desmaiou absolutamente. Mais um hospedeiro havia caído. Brave e Lunno eram os únicos com os olhos abertos ainda. E o elfo sabia o que havia de ser feito. — A criatura que trouxe a primeira faísca de caos à Terdállia, que interessante saber que uma irmã minha habita seu corpo, ainda mais a mais sábia de nós. — Cinzas proferiu em um tom irônico. — Não darei ouvidos a você. — Brave disse, concentrando-se em invadir a parte da mente de Aurora em que Cinzas estava habitando. — Você pode ter um infinito poder aqui, mas no mundo subconsciente eu tenho o domínio. Brave adentrou a face escura da mente de Aurora. Um fogaréu intenso rodeava a parte de seus pensamentos que Cinzas regia. Parecia mais um submundo negro gerado por uma grande força negra que certamente não pretendia deixar o corpo de Aurora em paz jamais. Brave fez com seu dom, uma parede de pedra maciça separar-se das rochas e a atirou contra as costas de Cinzas, porém em um reflexo incrivelmente admirável, Cinzas fez com que Aurora usasse sua força para quebrar a grande parede rochosa com apenas um soco. — Tolo! Acha que preciso de olhos para ver e ouvidos para ouvir? — Cinzas disse. — Seu poder mental é decorrente da vasta mente que minha irmã dentro de você possui, não faça glória de si por isso. — Esse seu discurso já me cansou a paciência. — disse Brave furioso. — Vamos ver se você me encara depois que eu invadir e roubar toda essa sua força podre. — Brave praguejou, concentrando-se ainda mais. Finalmente adentrou na toca de onde Cinzas dava as ordens. Uma luz intensa queimava os olhos de Brave e ele não podia enxergar absolutamente nada a sua frente. Cinzas por fim, cansou do que chamou de aperitivo de guerra, e entrou na mente de Brave, estraçalhando todos seus pensamentos e provocando um enorme curto em seus nervos. Brave ficou em estado de choque total, e naquele momento não conseguia pensar, falar nada. Sua mente estava devastada temporariamente, o suficiente para que caísse agressivamente 341
contra o chão, desacordado. A força de Cinzas derrubara mais um forte hospedeiro. — Tendo me divertido derrotando os frágeis hospedeiros, irei para meu primeiro banho de sangue verdadeiro, com a princesa de Nerann. — disse Cinzas voltando seu olhar para onde Sophitia estava. — Você, bela moça dos cabelos dourados, servirá como exemplo de meu grandioso poder. O corpo de Aurora acendeu como uma chama viva e uma luz alaranjada invadia e percorria por todo seu exterior. Cinzas concentrou seu cosmo ao máximo e o chão começou a tremer, e podia se ver o manto vermelho de Aurora rasgando-se levemente, porém não totalmente, revelando em seu ombro uma marca feita a fogo. A marca da entidade. Cinzas passou a levitar com o corpo de Aurora, ambas suspensas no ar. Simultaneamente Sophitia levitou junto com ela. A princesa já estava certa de seu fim. Feerick gritava e tentava pular para alcançá-la, porém, sem sucesso algum. O olhar de Sophitia era alegre, o que era estranho por estar em uma situação daquelas. É que em seu coração ela sabia que ainda havia esperança, ainda havia alguma solução para que Aurora retornasse. Esperança que ela certamente não veria, mas algo dava esta certeza a ela. Uma máscara de frieza tomou conta do rosto de Aurora. Sophitia não conseguia mexer-se, não sabia como uma entidade poderia ter um poder daqueles, entretanto tinha a certeza de que Aurora estava ali dentro não importava a ela o que lhe aconteceria. Precisava dizer a Aurora uma última coisa. — Cuide bem de Alvorada. Adeus. — foram as últimas palavras de Sophitia, a princesa de Nerann. Até que ela sentiu cada parte do seu corpo desintegrando-de e virando puro pó levado pelo vento, como se jamais houvesse existido. Sophitia não era nada mais que uma alma pura que nunca mais voltaria para o mundo real ou surreal. As cinzas de Sophitia espalhavam-se pelo ar e abaixo delas Maria e Feerick choravam sua morte prematura. Ao fundo podia ouvir –se um uivo lamentoso. Era Alvorada prestando sua última homenagem a sua melhor e mais fiel amiga. Agora sua alma juntavase as mais belas almas puras que já passaram por Terdállia. O olhar e gentileza da princesa Sophitia nunca haveria de ser esquecido e Alvorada seria o fruto de seu doce encanto até a eternidade. 342
— Que o meu poder seja infinito! — Cinzas bradou apanhando o pó do corpo daquela que antes fora a princesa mais bela que Nerann já havia tido. Seu novo exército urrou em festa por mais vida ceifada. E este certamente seria apenas o início do desfecho. Cinzas havia dominado completamente, pois Aurora não controlava mais suas emoções e atos. Lunno olhava a cena desacreditado, porém não podia fazer muita coisa, enganando-se ou não sobre o amor, ele sentia algo diferente por Maria. Precisava protege-la e domar sua própria natureza para que esta não rompesse seu estado momentâneo de prudência, tarefa praticamente impossível. “É minha irmã que está lá.” - Ele gritava em seus próprios pensamentos. Jurou que sempre protegeria Aurora, e agora? O que ele estava realmente fazendo? Ficando sentado assistindo sua irmã ser dominada por uma entidade nefasta ou permitir-se uma chance de mudar tudo? Entretanto, quando menos se podia imaginar, vislumbrou-se no horizonte escuro criaturas das quais todos pensavam que estavam extintas. Exiladas na morte eterna de suas vidas destrutivas e enclausuradas em suas próprias covas. E do alto de duas montanhas esplendorosas, surgiram pares de asas que lambiam o vento. Saltitando pelo ar como se o atrito não existisse. A pele era de uma cor beirando um ouro envelhecido e baforadas quentes eram produzidas por suas gargantas. E naquele momento, vislumbrando o firmamento celestial, Aurora viu os primeiros dragões de sua vida. Dionísio Bargor e Orfeu Sord, os outros dois magos de Nerann, os que sempre estavam em alguma dita missão, estavam nas costas de dois dragões gigantescos. Com a pele escamada e chifres imensos. Eram deslumbrantes as luzes formadas pelas brilhantes escamas dos dragões que pairavam por sobre Rhalmenezer, Cinzas ficou contemplando-os por um longo tempo. No chão, os reflexos cardinalados, arroxeados e escarlates encobriam o cenário denso e melancólico em que estavam. Cinzas olhou em direção ao limiar do horizonte e então pôde confirmar com os próprios olhos o que as lendas tão vastas lhe diziam acerca dos lagartos gigantes com asas deslumbrantes. Eles estavam vivos. Primeiro um, depois outro, permitiram-se um mergulho rasante, incinerando as partes do castelo onde ainda havia um restante de guerra, com seus hálitos flamejantes e conjurando uma neblina densa e escura. Tornava-se impossível desde sempre guerrear contra estas feras, os soldados 343
tanto de Nerann, quanto da exilada Circê, não enxergavam o suficiente para mirar seus dardos ou atingi-los com suas lanças. Os exércitos de ambos os lados foram dizimados com as labaredas de fogo expelidas pelas gargantas das duas feras comandadas pelos magos. Queimados vivos, sem probabilidade alguma de sobrevivência, pois o fogo chegava a atingir uma temperatura semelhante a do sol de tão massacrantes que estes podiam ser. “Essas feras alimentam-se de morte, não tem meio termo. Eles não a tomarão por tola, eles armarão o bote. Você tem poder para dizimá-los, use-o.” Cinzas passava a dar o controle para Aurora. Queria testar se sua hospedeira era realmente forte. — Eu não farei nada do que disser. — Aurora retrucou caindo da levitação no ar. “É melhor não contar com isso, olhe o que está a sua espreita.” Cinzas a alertou. As duas feras que haviam acabado de destruir tudo abaixo deles e logo já estavam sobre o Lago dos Ossos, sedentos por carnificina. Os olhos âmbar furiosos, faziam Aurora ter uma única certeza: a morte voava ao seu destino mais uma vez. “O peito deles só fica exposto alguns segundos antes de cuspir o fogo, o seu poder só alcança apenas um limite de distância agora, quando estiver diante de algum deles, vai estar de frente para o fogaréu, é só não hesitar, se o fizer você morre.” Cinzas parecia querer testar o corpo e mente de Aurora a qualquer custo, mesmo que este preço custasse uma possível morte. Porém, ao mesmo tempo ela sabia que Aurora não hesitaria em matar, não naquela situação. Os dragões pousaram no chão de pedra do Lago dos Ossos e caminharam lentamente em direção a hospedeira. Orfeu Sord era o mago da honra. O único dentre os quatro magos que utilizava o livro Catalan e seu cetro para conjurar suas magias. Podia-se ver que seus olhos estavam tomados por uma luz arroxeada, a mesma que seu cetro produzia, enquanto o apontava para Aurora. Usava um manto aveludado e acinzentado com um capuz que lhe cobria a cabeça. Toda a extensão das bordas de sua vestimenta era composta por um tipo de escritura em outro idioma desconhecido até então. Seu dragão parecia ser o macho por ser o menor, porém suas escamas eram tão densas que podiam produzir pequenos 344
ferimentos se encostadas em algo orgânico. O olhar por si só já destruía qualquer ponta solta de coragem que pudesse haver. Ao lado dele estava Dionísio, o mago celeste da mente. O diferencial deste para com os outros, era sua habilidade de não utilizar cetro e nem ao menos livro para conjurar suas magias. Elas emanavam de si mesmo apenas com o pronunciar de algumas palavras. Seus fios eram lisos e mais brancos que a neve e lhe caiam nos ombros de tão grandes. Vestia um conjunto de tecidos totalmente escuros e feitos de couro fervido. Pelo visto era o único dentre todos que gostava mais de ser visto face a face, sem capuz, sem máscaras. Seu dragão era uma fêmea dois metros a mais que o primeiro de Orfeu, e com uma aparência muito mais ameaçadora, pois possuía dois chifres curvados para trás e estes tinham um grande poder de destruição. Suas asas cintilavam como chamas alaranjadas sob a lua negra. As criaturas corpulentas ficaram de frente para Aurora. O coração da hospedeira acelerava conforme o olhar sobre elas se fixava. Então as duas criaturas silvaram bruscamente abrindo suas enormes bocas mostrando suas afiadas presas em direção a Aurora. Ela percebeu que o dragão macho ia atacar primeiro lançando seu hálito de fogo sobre ela, e então quanto ele ergueu a cabeça e deixou o peito amostra, Aurora fechou os olhos e dimensionou uma força tão devastadora que fez o dragão macho urrar de dor, cambaleando para trás. — Precisamos pará-la! — Dionísio praguejou, mandando sua fera que saíra de seu covil escuro, atacar. — Vocês não podem me derrotar. Eu tenho poderes que vão além da compreensão limitada de vocês. Eu nunca irei parar, nunca! — Cinzas assumiu novamente o corpo de Aurora, já estava farta de tantos empecilhos grotescos. — Vou dar a esta dimensão miserável a entidade que merecem. Cinzas fez com que o corpo de Aurora levitasse novamente. Os olhos mudaram de cor e assumiram o mesmo tom escarlate de antes, porém, este estava envolto de uma brasa de fogo que à medida que suspendia Aurora no ar, aumentava seu grau de ferocidade. Ela ergueu suas mãos, colocando uma força incalculável que fez Aurora sangrar pelo nariz e olhos, e levitou a fera que havia acabado de atacar. O dragão debateu-se no ar junto com Orfeu. Definitivamente Cinzas se tornava a pior das ameaças de Terdállia. 345
“Não posso continuar com isso!” - Aurora dizia para Cinzas dentro de seu próprio corpo. “Cale-se, você não tem mais o controle, todas suas chances acabaram-se, agora é chegada a minha hora de usufruir do sabor da glória.” - Cinzas retrucou. Precisava ser mais forte que Aurora ou ela acabaria desistindo de lutar. A corrente de força no ar se tornou tão destrutiva que arrancou o braço esquerdo de Orfeu e ouviu-se um gemido indescritível de dor vindo dele. Cinzas olhou para a parte do braço que foi arrancado com sua infinita força, o braço se desintegrava, o sangue pairava no ar, caindo no chão de rochas e estas adotavam uma cor avermelhada como os cabelos de Aurora. Novamente fitou o mago de braço decepado, que delineava um rosto de dor e viu que o lugar do antigo braço estava tomado por sangue e sentiu prazer vendo aquela cena. Ele a olhava com nojo, enquanto era consumido pelo cosmo da força da entidade. Ela estava fazendo algo que nenhum deles esperava ver. Com um olhar sombrio e ao mesmo tempo autoritário Orfeu dizia para Dionísio: — Não permita que isso continue! — seu corpo inteiro contorcia-se junto com o do dragão no ar. — TESTEMUNHEM A VIDA! — Cinzas gesticulou suas mãos e as afastou bruscamente. A vida seria mesmo testemunhada a partir daquele ato? Para a entidade sim. E, em seguida, o corpo do dragão e o do mago desintegraram-se em milhares de partículas cósmicas que mal se podiam ver no ar. O impacto do círculo majestoso de poder foi tão grande que o mesmo aconteceu com o exército que assistia a tudo desde o seu início. Milhares de corpos sendo reduzidos ao pó de suas vidas medíocres e sem serventia alguma para Terdállia. Almas impuras que agora vagariam pela escuridão do submundo esperando uma faísca de luz para voltarem a habitar seus corpos podres na superfície. Ninguém podia imaginar o grau de poder que provinha de Cinzas. Até os extintos e mais poderosos seres de Terdállia não tinham efeito algum sobre ela. Dionísio nada podia fazer, deveria ser prudente ou a guerra estaria ganha facilmente, ele sabia o que devia fazer. Atacar naquele momento seria tolice, o mais sensato seria fugir com o dragão fêmea e levar com ele aqueles que haviam sobrevivido. A fumaça produzida pela energia da entidade já estava fazendo todos engasgarem e ardiam nos olhos, as lágrimas passaram 346
a cegá-los, enquanto lá embaixo eles lutavam para conter-se seu pânico que ameaçava destruir completamente suas mentes e seu poder de raciocínio. — Da covardia não beberei, da prudência me fartarei. — Dionísio praguejou as palavras, arqueando as sobrancelhas fitando os corpos desacordados no chão dos hospedeiros: Greta, Ragnar e seu antigo conhecido Brave. Os envolveu em uma esfera de energia arroxeada e os trouxe para a segurança das costas do dragão em que estava. Seus olhos miraram instantes depois, outro grupo: Maria, Feerick e Lunno. A mesma esfera de energia os envolveu, porém quando Lunno percebeu que estava sendo levado para longe de Aurora, enlouqueceu-se de fúria. Seus olhos tornaram-se negros e destilou uma dor aguda com seu dom em direção a Dionísio que não aguentou tão insuportável agonia e acabou deixando-o cair novamente nas rochas escuras. — Não! — Maria gritou vendo Lunno fora da esfera de proteção. Estava tudo desmoronando-se e podia vislumbrar-se com exatidão agora o vasto poder de Cinzas. As lavas incandescentes do Lago dos Ossos tornaram-se o plano de fundo de Cinzas suspensa no ar erguendo suas mãos. Elas formavam um paredão gigantesco e não restavam dúvidas de que Aurora havia sucumbido ao poder da entidade. — Eu vou voltar! — Lunno gritou, já bastante longe, porém Maria pôde escutar, antes que sua imagem se perdesse em meio as neblinas escuras que haviam se formado. Quando o último grupo pousou sobre as escamas da criatura pseudo extinta, Dionísio pôde ver o tamanho do estrago e devastação que a entidade estava causando e com seus amigos mortos, ele era o único que podia ajuda-los a partir de agora. — Vou leva-los a um lugar seguro. — Dionísio prometeu. Em seguida o dragão traçou um círculo no céu e voou sobre ele como o vapor de seu hálito flamejante. A partir dali, nenhum deles sabia o que estaria por acontecer. *** A Lua Negra sumia no horizonte. O ritual que antes estava perto do fim e fora interrompido, agora resultaria em consequências já ditas. 347
Consequências que eram chamadas de profecias. E então uma destas cumpriu-se, quando gotas vermelhas desprenderam-se das nuvens negras do céu e iniciaram uma queda livre sobre Rhalmenezer. Gotas com cheiro metálico invadiam o solo quente do Lago dos Ossos fazendo uma nova tonalidade tomar conta destes a partir de então. Não se podia afirmar que se tratava de uma coisa comum qualquer. Entretanto, a devastação estava tão alarmante que podia se esperar tudo daquela entidade. Um ser que nem os mais sábios de todos os reinos tinham um conhecimento aprofundado do que realmente era e de onde veio. As milhares de gotículas avermelhadas resultaram em um fenômeno que Terdállia nunca presenciou em todos seus séculos: uma chuva de sangue.
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Capítulo 32
Areias do Tempo á um momento na vida em que o controle que mantém os guardiões de seus corpos sãos, escapa furtivamente de suas mãos. A maioria dos guardiões luta para ter este domínio de volta. Causam dores alheias ou a própria dor para tomar de volta o controle que acha que sempre o pertenceu. A melhor forma de combater a destruição é destruindo.” *** As gotas de sangue assoberbavam o solo rochoso de Rhalmenezer. Os 349
pingos de sangue enchiam os olhos de Aurora e estes ficavam marejados de sangue ao passo que aquela maldita chuva caía. A chuva fazia com que os olhos dela ficassem ainda mais escarlates, à medida que fixavam-se no líquido proveniente das nuvens caindo sobre seu rosto. Só restavam três seres ali. Sebastian caído de um lado, Lunno tentando alcançar Aurora e Cinzas controlando o corpo de sua hospedeira. Lunno nunca havia vislumbrado algo tão destrutivo quanto o que estava vendo naquele momento. Pedras gigantescas desprendiam-se do solo como se fosse feitas de papel e quebravam-se em mil pedaços no ar com a força da entidade manifestando-se em Aurora. Ele se perguntava a todo momento o porquê de ter feito tudo o que fez desde o início. Será mesmo que deixou ser manipulado totalmente pela fracassada deusa da noite? Jamais saberia ao certo. Mas tinha certeza de seus próprios motivos. O ódio havia apodrecido boa parte do seu coração, porém ainda restava uma parte, ainda que pequena, que relutava bravamente dentro de si, gritando para que ele salvasse a irmã por mais impossível que pudesse ser. Empunhou sua espada com lágrimas nos olhos, as primeiras depois de muito tempo, e correu para onde Aurora estava destruindo tudo. No meio do caminho as pedras que conduziam seus passos, racharam e formaram uma enorme cratera em que se podia ver o liquido incandescente e certamente mais quente do que se podia imaginar, porém os longos anos de treinamento no acampamento Dondariano tiveram por fim, uma serventia além da esperada. Os reflexos de Lunno eram minuciosamente calculados e a cada salto que dava parecia flutuar no ar como se fizesse parte dele. Nenhum dos obstáculos impostos por Cinzas, para impedi-lo de chegar até ela, funcionou. Lunno permanecia firme de proteger sua irmã. De proteger Aurora e dar sua própria vida para salvá-la se fosse necessário. Depois de um longo tempo sem sentir, o medo estava latente em suas ações. Mãos trêmulas, cabeça duvidosa, olhos marejados de culpa. Chegando onde Aurora estava, a força que emanava dela colidia com a força do próprio universo e fazia com que caminhar fosse praticamente impossível, entretanto Lunno ousou continuar, percebendo partes de seu corpo desintegrarem à medida que ficava mais perto de Aurora e sentia o pulsar de seu coração de longe. Sim, ainda era o coração da irmã e ele a salvaria custasse o que custasse. Os olhos não eram mais dela e sim de 350
Cinzas, a entidade ordinária que queria se apossar do corpo de sua irmã. — Aurora, eu sei que você ainda está ai em algum lugar. Eu posso sentir você. Lute contra ela, por favor! — Lunno implorava, enquanto suportava a dor física e emocional de estar ali. — Aurora não está mais neste corpo. Eu sou o domínio permanente deste ser vivo. — Cinzas disse. — Agora, ajoelhe-se diante de mim. Lunno recusou-se, bufando cautelosamente enquanto abaixava a cabeça. — AJOELHE-SE AGORA! — Cinzas gritou com uma nota aguda de raiva na voz e em seguida movimentou as mãos e sem tocar em um fio de cabelo de Lunno, o fez abaixar ajoelhar-se, porém Lunno também possuía a força de um deus e não deixaria ser humilhado daquela forma. — Hoje não! — Lunno gritou, enquanto levantava a cabeça e Cinzas via seus olhos em um ônix deslumbrante. A entidade só teve tempo de desviarse de um golpe quase certeiro da espada afiada de Lunno que ia em direção ao seu braço. Uma dor intolerável invadiu o corpo de Aurora. Por mais poder que Lunno colocava em seu dom, ele havia esquecido o quanto seu poder não era nocivo para com a irmã, então consequentemente não chegaria nem perto de atingir a entidade em sua totalidade. A audácia de Lunno só fez com que Cinzas ficasse ainda mais furiosa dentro de Aurora. — Eu vou consertar isso. Vou tirar isso de você, irmãzinha. — Lunno afirmou, limpando com ferocidade lágrimas que insistiam em cair. Aquela não era Aurora, aquele olhar, aquela força, nada disso fazia parte dela. Mas ele sabia que em algum lugar lá dentro, Aurora ainda lutava como sempre lutou. Era uma Bellator, vencendo ou perdendo, jamais se entregaria. — Vocês deuses, sempre querendo consertar o que não precisa de conserto. Importam-se apenas consigo mesmo, acham que podem adiar e atrasar a morte. Vocês iludem-se com essa frívola paz. Quando mata-se alguém, você assina sua própria sentença de morte. O ódio é a corrente que liga todos os hospedeiros, inclusive você. — Cinzas dizia agressivamente, segurando o pescoço de Lunno, enforcando-o. O rosto de Lunno corou e o ar mal entrava pelas suas narinas. Cinzas possuía uma força ainda mais devastadora do que Aurora. Ou seria a própria Aurora movida pelo ódio de ter um irmão traidor, querendo matá-lo a todo custo por ter causado indiretamente a morte de Lutiel. 351
— Você cumpriu direitinho seu papel de capacho de Circê, parabéns. — o som que saia das cordas vocais de Aurora não era mais o mesmo que momentos antes. Agora esta possuía aquele timbre único da voz da deslumbrante Bellator. Aurora havia tomado o controle novamente, enquanto segurava o irmão pelo pescoço o fazendo sair do contato com o chão. — Aurora? — Lunno disse, percebendo que sua irmã havia voltado. — Eu... eu não... — tentou se defender. — Só não me diga que é inocente, porque isso insulta minha inteligência e me deixa furiosa. — Aurora afirmou, tirando suas mãos do pescoço de Lunno, que já agonizava de dor no peito. Lunno caiu no chão, tossindo bastante e tentando recobrar o fôlego perdido. — Tudo que eu fiz foi para afastar você de ter de ver essa destruição toda, mas acho que não consegui. — disse ele, arqueando as sobrancelhas. — Acha? Se ao menos eu soubesse de uma faísca de tudo que você sempre soube, eu nunca teria causado tudo isso. — Não é você, é a entidade. Por favor, entenda isso. — Estamos em um corpo só, logo tudo que ela faz é responsabilidade minha também. Irmão, você se agarrou a algo que vai mata-lo por dentro dia após dia. — Engraçado logo você questionar isso agora, você matou praticamente todos aqui. Sempre era com você. Até as piores atenções era você que detinha. Nunca sequer olharam para minha existência em Neodin. Você teve melhores amigos, você teve um grande amor, você possui um grande poder. O que mais você quer me fazer ter inveja por ter? — Lunno finalmente revelou a razão por ter feito o que fez. — Você pensa errado há tanto tempo que não se dá conta dos absurdos que diz. Eu tenho pena de você. — Nem mesmo nessa situação você não deixa de ser prepotente. Eu deveria mesmo ter ido com os outros e ter deixado você destruir-se a si mesma. — o ruivo escureceu novamente a órbita de seus olhos e lançou uma torrente de dor em direção a Aurora, que seguidamente caiu de bruços no chão. A dor havia atingido em cheio as terminações nervosas de seu 352
cérebro. Era uma sensação de desconforto que penetrava cada vez mais fundo e Aurora só conseguia espernear de dor. — Pare com isso! — Aurora praguejou, segurando a cabeça tentando expulsar de qualquer maneira a dor que estava sentindo. — Não posso, vai ser melhor para todos nós. — Lunno havia percebido que Aurora estava enfraquecida com relação ao seu poder de manipular a dor, ele precisava aproveitar esta oportunidade o quanto antes ou seu fim estaria mais próximo do que ele imaginava. Aurora deu um grito extremamente agudo e revirou os olhos de dor. Sua cabeça rodou e ela olhou tão fixamente para o irmão que ele não pôde acreditar no que estava vendo. Os olhos dela estavam da mesma cor que os dele agora, negros como a noite que se fazia presente. — Eu sou tudo que você não é! — Aurora disse cuspindo sangue da boca e em seguida avançando sobre o irmão. Enquanto Aurora avançava sem medo algum sobre Lunno, que estava indefeso agora, uma pontada de dor imensamente maior do que a anterior invadiu sua mente a fazendo cair de joelhos sobre o chão rochoso. Agora, a indefesa da vez era Aurora e Lunno não perderia a chance de acabar logo com aquilo, não sabia se Aurora sobreviveria, mas certamente acabaria com um mal que assolaria Terdállia por séculos se ele não intervisse. Lunno levantou-se com os olhos negros e pôs-se de frente para sua irmã, caída no chão, debatendo-se com alguma coisa que ele ainda não sabia e não fazia questão de ter conhecimento. Ele faria o que tinha de ser feito. — Não faça isso! — Aurora gritou. Porém a voz já não era a mesma. O grave fez com que ficasse notório que Cinzas havia assumido novamente o controle da mente nada sã de Aurora. — Nenhum bem virá disso. Se a matar nunca saberá de fato o que carrega dentro de você. Por favor, não faça isso. — Cinzas clamava. Parecia que seu poder estava no limiar da mente de Aurora, o que estava fazendo com que ela enfraquecesse drasticamente. Lunno lançou por fim seu olhar massacrante, controlando o nível de dor para que apenas causasse um desmaio potente na irmã. Ele havia feito outra escolha. Uma escolha que mudaria os destinos, alteraria as razões e romperia as barreiras da honra. 353
— Não faça mais nada com ela, eu imploro a você. — Sebastian surgiu, mancando e aparentemente desgastado e com vários ferimentos pelo corpo. — Eu farei com que tudo isso acabe. Não sei o que vai acontecer daqui para frente, mas saiba que eu o admiro como homem honrado que você sempre foi e peço perdão por tudo que fiz contra você. Não sei também se este é o momento, porém não tenho muito tempo, não sei se Aurora vai sobreviver. Não sei se nós iremos sobreviver. — Faça o que tiver de fazer. — Sebastian disse. Lunno acenou positivamente com a cabeça e olhou para o alto. Com o desmaio as lavas incandescentes haviam caído violentamente de volta ao Lago dos Ossos e alguns resquícios ainda estavam espalhados pelo solo rachado. E um brado cortou o som do vento daquela noite quente. — Eos, deusa do amanhecer. Ares, deus da guerra. — Lunno pronunciou. — Meus pais! Ajudem-nos. Somos teus filhos e o mundo cairá em desgraça sem a intervenção de vocês. — abaixou sua cabeça no peito de Aurora, lacrimejando. — Por favor. — sussurrou em meio ao choro. No mesmo instante um forte estrondo invadiu os céus e de um feixe enorme de luz, vislumbrou-se uma espécie de carruagem que não era puxado por cavalos, mas por uma legião de Pegasus. A carruagem brilhante era feita de um metal maciço e dourado e a silhueta de três seres também faziam parte do que Lunno e Sebastian estavam vendo. Eram deuses. — Finalmente. Poderei abraçar meus filhos depois de tanto tempo. — a deusa Eos dizia, enquanto descia rapidamente da carruagem e corria ao encontro dos filhos. Os cabelos eram da mesma cor que os de Lunno e Aurora e sua vestimenta era formada por finas sedas de quermim, uma espécie de pano celeste. Munida de asas angelicais alvas, tinha os olhos levemente azuis e possuía um olhar calmo e tranquilizador. — Temo que seja chegada a hora. — Ares surgiu com uma voz abafada que só Zeus pôde escutar ao seu lado. Este deus por sua vez estava sempre com roupas de guerra para receber as rezas de seus guerreiros mais leais. Barba grossa e sobrancelhas sempre arqueadas para baixo, mostrava uma completa satisfação por ali estar, junto de seus filhos novamente. — Não se preocupe meu filho. Agirei conforme a situação ordenar a partir de agora. Não temos escolha alguma senão esta. — Zeus disse, 354
deixando a carruagem em seguida. Lunno e Sebastian estavam com os olhos petrificados. Jamais alguém havia visto de perto os deuses. Eles se transmutaram em corpos humanos e passaram a caminhar entre eles e isso jamais podia ser imaginado naquele tempo. A última aparição de Zeus que se tinha conhecimento fora a de entrega de posse do reino Genesis a Eferus Acco e depois disso nunca mais houve aparições significativas do patriarca do Olimpo. — Meus filhos, o que houve aqui hoje é o resultado da falta de suas rezas a nós. Nunca deixaríamos que chegasse a este ponto se não clamassem a nossa ajuda. Entretanto, sei do risco destas entidades presas nos irmãos Bellator e nos demais hospedeiros dos quais me encarreguei de cuidar e é por isso que vim em meu nome e em nome do Olimpo junto com os pais de dois de vocês para cumprir um ato que nunca fora feito antes de vocês. — Zeus rugia como um leão raivoso. Sua voz era gigantescamente grave e estava munido de seu poderoso raio. Aproximou-se de Aurora e Lunno e pediu para que ele se afastasse da irmã. — Mas... — Lunno tentou falar. — Confie em nós, filho. — Ares o acalmou. Lunno fez que sim e caminhou até Sebastian para ajudá-lo a ficar de pé com segurança. Apesar de tudo que aconteceu entre os dois, aquele não era o momento de se negar a ajudar e ser ajudado e Sebastian tinha plena consciência disso. Ele não parava de olhar para o rosto pálido de sua amada, parecia que o sangue não fluía mais dentro do corpo esbelto dela e o ar de vida havia se esvaído por completo de seus pulmões, porém havia esperança em uma atitude. — A ameaça do infinito destruir tudo, estará condenada a partir de agora a adormecer eternamente dentro de sua hospedeira. — Zeus declarou retirando um selo de seu raio e colocando-o sobre o ombro de Aurora. — Este selo só poderá ser retirado por alguém com muito poder mais do que todos imaginam. Esperemos que isso nunca se torne possível. No mesmo momento a marca da entidade reascendeu como uma brasa, queimando bruscamente o ombro de Aurora. O mesmo dragão mordendo a própria cauda e o símbolo da runa Dagáz no centro. Aquele agora era também o selo que guardaria adormecida para sempre, a 355
destruição que havia tornado-se um parasita do corpo de Aurora. — Está consumado. — foi tudo o que Zeus disse depois de introduzir o selo na hospedeira. — E o que vai acontecer a partir de agora? — Lunno perguntou um tanto confuso com tantas informações novas em sua mente. — Não há porque vocês continuarem aqui, meus filhos. — Eos delicadamente disse. — Vocês virão conosco tomar o lugar que os pertence no Olimpo. — Vamos deixar de viver em Terdállia? — Lunno questionou surpreso. — Deuses nasceram para governar do Olimpo. A estádia de vocês em Terdállia termina aqui. — Ares disse ao seu filho. — E quanto ao Sebastian? — Lunno novamente indagou. — O humano que eu salvei é de minha responsabilidade. É como se fosse um filho para mim. — Zeus disse. — Ele virá conosco. — Eu faço qualquer coisa para ficar junto de Aurie. — Sebastian disse com a voz um pouco distante, mirando seus olhos em Aurora a todo o momento. — Receio dizer que não será tão fácil assim. Assim que entrarmos no Olimpo, vocês esquecerão suas vidas passadas. Nascerão novamente para falar a verdade. Jamais se lembraram o que foram ou deixaram de ser estando em vida e passarão e viver uma nova eternidade longe de todas as lembranças ruins e boas que tiverem. Este é o preço. — Ares os alertou. Lunno lançou um olhar preocupado para Sebastian e logo os direcionou a seu pai, Ares. — Eu irei. — Lunno afirmou convicto. — Também irei. — em seguida Sebastian completou o preço. No Olimpo não haveriam mais lembranças de traições, mortes e culpa, porém, em contra partida não existiriam recordações dos atos de amor, amizades compartilhadas e guerras vencidas com louvor. A eternidade deles agora seria construindo um novo pilar para suas vidas. Um pilar que poderia ou não ser benéfico. O chamamento de Zeus foi passivo e Aurora foi carregada pelos pais até a grandiosa carruagem brilhante, em seguida Lunno os acompanhou e adentrou também. Inicialmente Sebastian ficou relutante em entrar dentro 356
daquele Coche, mas vendo a naturalidade de Lunno ao entrar, se deu conta de que certamente seria melhor para todos, até para ele. Quando pisou no chão da carruagem, ele deu adeus a tudo que vivera por todo este tempo, mas sabia que teria a eternidade para reconstruir o que se perderia nas areias do tempo e tinha certeza de que o amor que sentia por Aurora iria além de todo esquecimento e assim que seus olhos encontrassem os dela, ele sentiria algo diferente fluindo de seu próprio corpo. Não sabia quando e nem onde, mas aconteceria. A carruagem levantou um deslumbrante voo. Todos os Pegasus relincharam em um coro celestial magnífico. Os olhos dos pais de Aurora estavam fixados na filha. “Ela passou por tudo isso por causa de mim.” Eos e Ares pensavam. “Nunca vou deixa-la, por mais dor que eu sinta, não me permitirei abandonala. E será assim até o fim.” Sebastian encontrou forças em seus pensamentos. Se ele afirmasse que Aurie trazia paz a ele, estaria mentindo. Eles dois juntos era sinônimo de bagunça, sempre foi e Sebastian achava ótimo que fosse assim. De repente vislumbraram uma luz de um azul celeste intenso e foi então que todas as imagens visuais esvaíram-se e suas mentes caíram no vácuo do esquecimento. *** Cerca de três séculos passaram-se. A era no Olimpo estava sendo bastante próspera. As criaturas voltaram a rezar aos deuses. Não houve mais guerra alguma depois de Rhalmenezer e finalmente Aurora e seu irmão Lunno estavam em um lugar de onde jamais deveriam ter saído. Muitos anos viveram e os deuses haviam crido na esperança de haver o tempo, entorpecido suas memórias mais felizes e dolorosas. Lunno Bellator havia se tornado o deus da manipulação e das ordens, persuadindo então os outros para que estes obedecessem a suas petições. Aurora Bellator por sua vez, tornou-se a deusa da força vital. Não a usava apenas para benefício próprio, pelo contrário, ajudava até contra a vontade de alguns deuses, as criaturas de Terdállia. E por fim, Sebastian 357
transformou-se em um dos filhos preferidos de Zeus. O deus do trovão detinha um carinho imenso por Sebastian e o tratava como um filho legítimo, pela sua dignidade e honra. Os dias, anos e décadas foram perfeitamente dentro dos conformes no Olimpo e estes três não lembravam-se de absolutamente nada da vida anterior que tiveram. Para eles a realidade sempre foi a de deuses legítimos e nada os tirava esta certeza, pelo menos nada por enquanto. Aurora levantou a cabeça e logo percebeu que estava em um lugar diferente. Costumava acordar em sua cama exageradamente extensa, rodeada das mais belas frutas e lençóis tão alvos quanto sua pele. À medida que Aurora abria seus olhos, a luz do sol incidia por entre galhos. Sentou-se, colocando as mãos sobre a cabeça sentindo uma pontada leve de dor e imediatamente compreendeu em que lugar estava. Tratava-se de um pomar, cujo terreno era cheio de árvores frutíferas. — Mamãe, mamãe! — uma voz doce cortou os pensamentos confusos de Aurora. — Mamãe, venha ver o tamanho da uva que o papai colheu. — Annita com seus cabelos grandes louros esbanjava um sorriso revigorante à sua mãe. — O que ainda faz deitada, querida? — disse Sebastian com rosto alegre e belo, seus olhos eram azuis tempestuosos, estava com uma roupa típica dos deuses. — Olhe a uva gigante que apanhei para Annita. — O que estamos fazendo aqui? — Aurora perguntou um tanto confusa. Parecia que sua mente havia dado um estalo gigante ao ponto de não se lembrar de muita coisa do dia anterior. — Não se lembra? — Sebastian a indagou com um sorriso no rosto, típico seu. Os cabelos louros caiam sobre seus ombros e uma barba aparada cobria-lhe o rosto. — Sempre dormimos sobre o céu estrelado a cada lua negra, neste mesmo pomar, pois a iluminação que incide sobre os galhos faz com que nos sintamos em outra atmosfera. Uma atmosfera além do Olimpo. — ele falava, selando os lábios dele nos de Aurora. — Onde está Lótus? — Aurora perguntou. Nestes longos séculos, Aurora e Sebastian reencontraram o amor que sentiam um pelo outro. E frutos nasceram de sua paixão: Annita e Lótus. Annita puxou praticamente todos os traços do pai e tinha a força da mãe. Já Lótus, crescera um menino de cabelos avermelhados lisos como os 358
de sua mãe, que lhe caiam os ombros e cobria-lhe parte de sua testa. — Está brincando com Athenas e Lunno. — Sebastian respondeu. — Lunno está aqui? — Aurora questionou. — Sim, ele havia prometido a Lótus que brincaria com ele esta manhã. Você está diferente hoje, teve algum sonho? — Não sei exatamente. Deixa isso para lá. — ela disse, levantandose e apanhando Annita nos braços. — A brisa calma está ainda mais linda a cada dia que passa. Não é papai? — Aurora delineava um sorriso enquanto falava como se fosse Annita. — Não tenho dúvida alguma disso, minha brisa calma. — Sebastian colocou suas mãos sobre o rosto de sua filha e apertou suavemente as bochechas rosadas de Annita. — Hoje é dia de passearmos. Mostraremos a você uma cachoeira incrivelmente linda que existe aqui. — Sebastian falou para Annita. — Eba! — Annita comemorou. — Então vamos. — disse, descendo dos braços de Aurora e pegando em sua mão. Os pés calçados de Aurora afundavam-se no solo de adubo marrom-claro e, sobre suas cabeças, os galhos se emaranhavam, formando um tipo de túnel infindável. Havia árvores frutíferas com seus frutos frescos pendurados em meio às folhas, prontos para o amadurecimento. O aroma lancinante e doce de uvas entrando em estado de putrefação misturava-se ao cheiro de terra ensopada. O labirinto de cores e odores era atrativo aos olhos da pequena Annita, que à medida que andava sentia aromas e tocava frutas que jamais vira na vida. Entretanto, o melhor lugar ainda estaria para chegar. A cachoeira da qual Sebastian havia falado momentos antes da caminhada. — Papai, já está perto? — Annita suavemente perguntou. Estava um tanto exausta, mas não queria nem por um segundo demonstrar isso. Teve a quem puxar, afinal. Sebastian a olhou com um sorriso no rosto e abriu um espaço em um emaranhado de galhos que estavam a sua frente. E uma forte luz irradiou do lugar. — Na verdade, já chegamos. — Sebastian respondeu pacientemente, observando cada gotícula de reação de sua filha. 359
— Que incrível. — Annita disse, deslumbrando-se com a beleza daquela cascata gigantesca. A água despencando agilmente do alto e o barulho de correnteza. Jamais ouvira nada parecido antes. — E então minha brisa calma, gostou? — Aurora perguntou. — É a coisa mais linda que já vi na vida, mamãe. — Annita respondeu com um sorriso que mal lhe cabia no rosto, soltando a mão de Aurora e correndo para mais perto da cachoeira. Annita correu livremente para mais próximo da cachoeira e passou a contempla-la como um quadro artístico. A mais bela paisagem necessitava de um olhar mais demorado e foi isso Annita fez. Tirou os sapatos e sentando-se na grama, colocou-os dentro da água. Sentiu cada gotícula daquela água pura invadir seu corpo, e a temperatura estava a mais agradável possível, beirando a mornidão. Os pelos se eriçavam e ao passo que a pele de Annita acostumava-se com a temperatura nova, ela balançava freneticamente os pés para movimentar a água ainda mais. De longe este estava sendo o melhor dia da vida dela, já que nunca havia visto água tão de perto, ainda por cima podendo senti-la. — Eu amo você. — Sebastian sussurrou ao pé do ouvido de Aurora, enquanto a abraçava suavemente por trás. — Ela é linda não é? Se parece tanto com você. — E tem todo o seu jeito. — Sebastian sorriu. — Como será que ela ficará no futuro? Você já imaginou? — Linda como a mãe certamente. — disse, segurando seu rosto e beijando-a delicadamente. A felicidade consistia em momentos de bem-aventurança, entretanto a vida sempre foi uma faca de dois gumes. Dois gumes, duas razões. Uma dúvida, uma certeza. Uma era clara e calorosa como o dia, a outra era escura e fria como a noite. — SOCORRO! SOCORRO! — Annita gritou, sendo levada pela correnteza fortíssima até a beira de um precipício infinito. — Ann... — Aurora tentou gritar, mas uma forte dor invadiu sua cabeça e vozes macabras começaram a envenenar seus pensamentos. Suas mãos foram levadas involuntariamente até a cabeça, como uma forma leviana de expulsar a dor, porém não adiantava. Enquanto isso ela podia ver Annita debatendo-se na água e Sebastian correndo para salvá-la e ela nada 360
podia fazer com aquela maldita dor. Quando as pontadas doloridas ficaram cada vez mais frequentes, seu corpo e mente não aguentaram e tudo se apagou e seu corpo caiu violentamente contra o chão.
*** Durante algum tempo, tentaram convencer-me de que feras não existem, que tudo no universo cósmico possuía, ou logo viria a possuir, uma explicação lógica aos olhos de todos. Entretanto agora sei da verdade. Reatei minhas relações com a fera dentro de mim. Repudio suas atitudes, mas entendo que ficar presa dentro de mim não é lá tão aceitável. Aprendi seu verdadeiro nome. Exatamente agora, compreendo a extensão de sua eternidade e sua infinidade inimaginável. A estrutura caótica do Olimpo e a insignificância de minha própria existência para com o mundo. Agora, eu hospedeira da entidade, Cinzas, admito a grandeza das dificuldades que enfrentei e a minha latente incapacidade de provocar mutações na galga indispensável para salvar a todos do caos. Tive um vislumbre de um futuro e enxerguei a verdade por trás do véu, se Cinzas adormecesse definitivamente em meu corpo. Camuflei meus pensamentos e redescobri a entidade aprisionada em meu peito. Recuperei minha convicção de que este fardo pertence a mim e assim será para todo o sempre. Achava que o que estava dentro de mim poderia ser controlado, porém não havia possibilidades, não havia maneiras sucintas para realizar tal proeza quando algo dentro de mim já havia explodido milhares e milhares de vezes. Concedi tantos nomes a ela e no fim de tudo, apenas um a definiria e é deste que a nomeio: Cinzas, o odor pungente de morte e destruição. A fonte de meu próprio terror mortal. Descobri meu verdadeiro inimigo e este era eu mesma. Se eu quisesse viver em um mundo de ilusões confortantes, podia me permitir ser enganada por falsas realidades ou podia usá-las para proteger-me das reais intenções de Cinzas. Meus olhos acenderam-se novamente e do céu uma chuva de sangue 361
caía sobre meu rosto o manchando e misturando-se as minhas lágrimas salgadas e quentes. Agora haviam mais pontas soltas para eu amarrar e neste momento destruir-me é o crucial, pelo contrário Terdállia sofrerá o castigo da traição dos deuses.
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EpĂlogo
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“Quando o caos torna-se um mal necessário para se gerar a vida, o resultado pode ser tão violento quanto imprevisível.” (pensamento da rainha de Cordonne, Valquíria IV, em 1110, chamada de Era do Julgo).
*** Cinzas concedeu um vislumbre de um futuro muito distante. Aurora, tomada pela exaustão de tentativas de controles falhas, tolamente se permitiu acreditar, e apenas por alguns momentos certamente achou que sua realidade estava rodeada por belos prazeres e repleta de uma felicidade colossal. Nada daquilo fora real. As gotas de sangue assoberbavam o solo rochoso de Rhalmenezer. Os pingos de sangue enchiam os olhos de Aurora e estes ficavam marejados de sangue ao passo que aquela chuva maldita caía. A chuva fazia com que os olhos dela ficassem ainda mais escarlates, à medida que fixavam-se no líquido proveniente das nuvens caindo sobre seu rosto. Só restavam três seres ali. Sebastian caído de um lado, Lunno tentando alcançar Aurora e Cinzas controlando o corpo de sua hospedeira. Lunno nunca havia vislumbrado algo tão destrutivo quanto o que estava vendo naquele momento. Pedras gigantescas desprendiam-se do solo como se fosse feitas de papel e quebravam-se em mil pedaços no ar com a força da entidade manifestando-se em Aurora. Ele se perguntava a todo momento o porquê de ter feito tudo o que fez desde o início. Será mesmo que deixou ser manipulado totalmente pela fracassada deusa da noite? Jamais saberia ao certo. Mas tinha certeza de seus próprios motivos. — AURORA! — Lunno gritava ao desembainhar sua espada. — Eu estou indo! — correu agilmente em destino a sua irmã. As cinzas das brasas caíam como uma delicada nevasca cinzenta. Correu pelo solo rachado e tortuoso da forma mais habilidosa, até o limiar de um paredão que se formou a sua frente como forma de Cinzas impedir sua tola atitude de chegar até ela. Ele via as grandes pilhas de pedra que 365
tinham formatos disformes e estavam cobertas pela lava quente do Lago dos Ossos. O vento soprava ardente e abarrotado pelo odor de sangue e fumaça, tão forte que começou a lacrimejar. A fumaça e as brasas abrumaram seus olhos, e depois de desviar do paredão de pedra marrom, vislumbrou por trás de Aurora, grandes lençóis de lava que comiam o escuro da noite. No trepidar de seus longos passos velozes, saltou com a espada nas mãos olhando firmemente nos olhos de Cinzas. Não estava disposto a matar a própria irmã, só queria descobrir um jeito de deter Cinzas de dentro para fora e para que isso ocorresse ele precisava atrasá-la. Em um golpe falho, Cinzas parou o ataque de Lunno e o afastou, porém Lunno não deixou abater-se e continuou a encará-la mesmo depois de golpe que não havia vingado. Os olhos escarlates e as luzes envolta de Aurora, como chamas ardentes, ficavam cada vez mais intensos e as sobrancelhas ainda mais arqueadas. Aurora estava fora de si, travando uma batalha em seu próprio interior, ao menos era o que Lunno pensava. — Os crimes por você cometidos jamais ficarão impunes. Apenas encobertos pelo mar do tempo, porém não infinitamente. Por que a minha justiça e poder que ficaram para trás hão de voltar. Como um anjo vingador, eles removerão as águas do passado revelando ao universo toda podridão de tua alma. Meu poder e justiça hão de voltar e pelas mãos deles você pagará por todo mal que disseminou na terra. A inveja de tua alma colocou o sangue de tua irmã em tuas mãos. — com uma voz grave, Cinzas profetizava. — Você não sabe de nem um terço da verdade, desgraçada! Volte para o inferno da onde veio e deixe minha irmãzinha em paz. — Lunno praguejou violentamente, tentando usar seu poder contra Cinzas. O ônix de seu olhar se acendeu novamente, fazendo com que uma carga gigantesca de dor atingisse o peito de Aurora. Cinzas driblou o ataque, porém não o rebateu. Tomou o mesmo olhar ônix de Lunno para si e os olhos que antes eram escarlates, agora se tornavam uma treva sem precedentes. — Com estes olhos o que você pode realmente ver? — Cinzas perguntou, impressionada com o grau de cosmo que emanava daquele dom. — Você pergunta o que posso ver? Bem, no momento eu aprecio 366
apenas uma coisa em meu olhar: você, morrendo pelas minhas próprias mãos, Cinzas. — Lunno parecia determinado a acabar de vez aquilo. Sabia que lá dentro sua irmãzinha estava sofrendo e estava sendo incapaz de reverter isso. A única solução seria destruí-la. — Minha morte? — inesperadamente, Cinzas chegou perto de Lunno, desprendendo-se da paralisação de seu poder. — Então vá em frente e faça-a acontecer. — sussurrou ao ouvido dele. Lunno fechou seus punhos e usou toda sua força para golpear o rosto de Aurora, acertando-o em cheio. Sangue escorria pelos lábios estourados da irmã a qual jurou proteger. Estava cumprindo isso a seu duvidoso modo e sempre fora assim. Ao passo que os golpes ficavam mais agressivos e os murros já não eram tão eficazes para ambos os lados, Cinzas sacou um punhal afiadíssimo do casaco escarlate de Aurora para cravar em Lunno sem piedade alguma, porém ele havia previsto que uma hospedeira não andaria desarmada jamais. Consciente disso tomou a espada de algum lugar que Cinzas não soube desconfiar em que estava e bloqueou gloriosamente o ataque de seu punhal. Dentro de seu campo de visão, Cinzas vislumbrou uma espada lustrosa que Lunno empunhava, o punho desta era envolto em couro cintilante e o aço era feito de um bronze celestial que faiscou quando entrou em contato com o punhal ônix. Lunno esticou as mãos e junto com a espada girou seu corpo, erguendo-a com toda sua fúria e destreza. E então, o som metálico do aço da espada cintilante ressonou, fazendo com que a lâmina ficasse semi enterrada no peito de Aurora. Os olhos dela esbugalharam-se e involuntariamente sua boca ficou entre aberta. Inalava o ar com bastante embaraço, as paredes de seu corpo começaram a arder e sentia o salivar metálico do sangue lavar sua boca. O som do sangue caindo e tocando o solo afundava-se em seus tímpanos, e isso causava um mal estar horrendo a Aurora. Era uma agonia que não simplesmente incomodava, mas que fadigava. Um pulsar vivo que fazia as suas entranhas se agitarem invariavelmente. Ela sentia o superior de seu crânio latejar, como se um dragão estivesse batendo suas asas no alto de sua cabeça. — Antes de sua morte, quero que me responda uma última coisa. — Lunno disse, penetrando a espada com mais vigor em Aurora. 367
— Diga o que quer saber. — Cinzas afirmou, descontente. — A dor em seu peito não vai passar até que você me diga o que eu quero saber, sua ordinária. — Você errou o ponto vital do corpo dela de propósito. Desgraçado! — Cinzas indignou-se, afinal se fosse para morrer que fosse logo e não torturante ainda mais para salvar uma deusa. — Eu lembro de uma vez que Lutiel nos contou que havia mais entidades como você. Cada uma com sua peculiaridade e seu instinto. Porém, apenas Aurora conseguiu falar com você, o resto dos hospedeiros nem ao menos sabe de fato o que carrega dentro de si exatamente. Diga-me, a que entidade eu hospedo? — Lunno exigiu saber a verdade. — É disso que se trata, afinal? Poder? É disso que você se alimenta? Certamente é o que vejo. Mas não entendo por qual motivo você quer saber disso logo agora. — Por que vou matar isso dentro de mim assim que acabar com você. Este é o motivo. — Acabar? Tolo jovem. — Cinzas riu. — Isso está bastante fora de seu limitado alcance. — No momento em que pesquisei mais afundo nas bibliotecas do reino de Nerann, descobri que se tratava de cinco entidades irmãs. Uma delas detinha um poder gigantesco e era chamada de A irmã maior. Porém, havia outra que ousou enfrenta-la por várias vezes, pois tinha a certeza de que se poder era muito superior ao dela. E eu sinto algo diferente em mim. Não importa o que você diz, só quero saber o nome do que hospedo. Como é o nome desta entidade? Houve uma breve pausa. E na aflição, Lunno penetrou ainda mais fundo a espada que atravessava o peito de sua irmã. — Responda! — ele ordenou. — MORTE. — respondeu Cinzas, delineando um sorriso maléfico com os lábios de Aurora. — Morte? C-como assim? — surpreso ele disse. Não entendia o que era isso, mas ouvir esta palavra o animava de alguma forma e ele nunca soube o porquê. — O nome de minha irmã da qual você hospeda dentro de si. Nunca percebeu o quanto a morte é prazerosa para você? Ou como um 368
sorriso involuntário se abre cada vez que faz vítimas com seu poder nefasto? Ou até mesmo quando ficava triste com suas vinganças cumpridas com êxito e sem ao menos uma morte? Ela está desenvolvendo isso em você e à medida que o tempo passa essa vontade se tornará a única coisa pela qual sua existência terá algum sentido. Matar. Ao terminar de falar isso, Cinzas retirou violentamente a espada do peito de sua hospedeira e lançou uma muralha transparente de força, que prendeu Lunno em um paredão, suspenso com a energia da própria mente da entidade. — Este mundo está podre. E os que já apodreceram com ele devem morrer. — praguejou Cinzas fixando ferozmente seu olhar em Lunno. — Aurora se você estiver me ouvindo, por favor, preste atenção no que falarei. — disse Lunno com os olhos quase marejados. — Esta parece ser uma realidade de uma errônea ilusão fiz você viver, eu sei. Todas as criaturas vivem suas tolas vidas com suposições erradas. Eu precisei fazer minhas escolhas. Decisões que colocaram em jogo meus próprios sentimentos, não sou este monstro que você pensa que sou. — Ela não ouvirá você. Ela não ouvirá você. — Cinzas dizia atordoada levando as mãos a cabeça, emaranhando os fios avermelhados de Aurora. — Eu possuo o controle, eu possuo o controle. — repetidamente gritava. — CALE A BOCA! — Lunno gritou valentemente como um brado de repudio. —Você não sabe o verdadeiro sentido da paz. — Então deixe de tentar salvar sua irmã. A morte dela nos levará a esta paz. — Eu já disse para calar a boca! — novamente Lunno gritou aumentando a potência da paralisação que estava causando no corpo Aurora com seu poder. — Eu enganei a todos. Desonrei o nome de nossa família por mais pequeno que este aparentasse ser, ao me aliar a causadora de todo o caos em nossa vida, e fiz isso apenas para protegê-la. Mas está tudo bem, viver uma vida inteira sendo repudiado, esta será minha jornada daqui para frente. — engolia em seco e tomava fôlego para contar-lhe tudo que acontecera. — Porém, todos os povos terão a certeza de que entre os irmãos Bellator, sempre ficarei a frente. Como o paredão rochoso de um precipício que você precisa escalar, mesmo que isso signifique desonrar os 369
seus princípios. Eu passaria por cima de qualquer um que ousasse transgredir suas crenças e atitudes. Combateria gigantes por sua causa e defenderia minha irmãzinha, não importando as consequências para mim. Por que é isso... — tremeu sua fala. —... que os irmãos mais velhos fazem. Lunno debatia-se naquela imensa parede de pedra. “Se você tem poder, também tem dever”, acusou seu pensamento. Ele via Cinzas aproximar-se dele sem pressa alguma em seus passos. A energia que emanava dela iluminava seus olhos e quase não era possível avistar as expressões do rosto de Aurora. Cinzas passou as unhas de Aurora no rosto de Lunno, delineando cada movimento. — Eu amo você, irmãzinha. Me perdoe por ter fracassado com você, me perdoe. – Lunno chorava. De repente os olhos de Aurora tornaram-se azuis novamente e estes ficaram distantes e sem foco algum. — Aurora? — Lunno perguntou, enquanto caia de pé no chão. — Lunno? — Aurora disse com sua voz própria, domando por alguns instantes Cinzas. — Onde estou? — Você está em Rhalmenezer. Não se lembra do que aconteceu? Novamente o olhar de Aurora se perdeu no horizonte do firmamento de Rhalmenezer. — Não se lembra? — Lunno tentou dizer o de antes. Logo lembrou-se de tudo que havia feito. A morte de Sophitia, daquele enorme dragão e de um exército inteiro. Ficou pasma com tanto mal que causou e perplexa com sua incapacidade de não saber administrar a fúria que explodiu dentro de si mesma. — Pelos deuses. — sussurrou Aurora espantada. De súbito o chão começou a tremer e as lavas do Lago dos Ossos misturavam-se com pedras flutuantes, formando uma espécie de chuva de meteoros que passaram a cair sobre Rhalmenezer. — Olhe para mim. — Lunno segurou firmemente o rosto de sua irmã. Os estrondos ficavam ainda mais fortes e o abalo na terra fazia com que o solo se partisse ao meio. — Concentre-se em mim. — mandava Lunno. — Não, não, não. Olhe para mim. Se concentra em mim, se concentra, irmãzinha. — Me mate. — Aurora implorava franzindo o cenho, com os olhos 370
levemente marejados por lágrimas salgadas. —O que? — Me mate, antes que eu mate mais alguém. — ela pedia com os olhos lacrimejando. — Não diga isso. Pare de falar assim! — Lunno mandava. — ME MATE! — Aurora enfureceu-se ao gritar. — Não fale isso. Olhe para mim, olhe para mim! — disse Lunno, segurando com firmeza o rosto de Aurora para que ela se acalmasse ou o solo em que pisavam racharia e abriria uma cratera certamente. — Aurora! Vai ficar tudo bem, posso ajudar você. Aurora abaixou a cabeça por alguns instantes e em seguida a ergueu novamente. — Só que eu não quero! — Cinzas assumiu o corpo de Aurora pela milésima vez, jogando Lunno contra a parede que estava o prendendo antes. No impacto, Lunno percebeu que havia fraturado o braço esquerdo e a dor começava a se tornar insuportável, pois a mente de Cinzas estava tomada por um ódio mortal e a pressão que seu poder exercia sobre Lunno fazia com que ele não conseguisse se mexer de maneira alguma. Estava imobilizado. Caído na desgraça de tentar redimir-se de seus atos errôneos e inconstantes. Agora ninguém além dele mesmo podia ver o que ele via. Não sentiam o que ele sentia. Ninguém via, ninguém sentia. Obtinha a visão da chuva de sangue torrencial que cobria praticamente todo seu corpo juntamente com o vislumbre de um sorriso de júbilo adotando forma na face de Aurora. Sabia que fizera sua parte, por mais fracasso que tivesse em seu cumprimento, não havia mais como lutar, então seu corpo estava entregue as areias de um futuro incerto. Porém sentia o prazer de estar à beira da morte. Para alguém que jaz inteiramente debilitado, Lunno deveria estar se perguntando “Por quê? Por quê? Por que eu? Por que, deuses?” Entretanto tomou o lado oposto ao que qualquer ser faria. Ele sorriu, e o fazia de forma singular. Admitia que os ferimentos sangrassem, deixava o calor se alastrar por todo seu corpo. No murchar de sua tola vida, tudo foi apenas uma escolha. Não uma simples escolha atribuída por terceiros, ou meramente proveniente dos deuses. Não, foi a escolha dele, e por isso 371
orgulhava-se tanto. Quando uma escolha é consciente, nenhuma repercussão traz devaneios de retrocedência. Porém quando não se trata de uma destas, quaisquer lembranças abalam as estruturas e põe tudo abaixo. Agora, Lunno já não tinha mais nada a perder. A ruína de sua imortalidade o havia alcançado. “Não era este o meu fiel destino traçado? Já não estava tudo meramente planejado?” Pensava. Certamente naquele momento, os deuses o observavam do alto, possivelmente rindo de seus tropeços e zombando de suas fraquezas. Todos eles escrevendo uma nova história para este mundo apodrecido, sem final feliz algum. Ao menos sua passagem por este mundo fora de alguma valia? Ou foi como o vento que cerca sem deixar cicatrizes de seu abraço, sem deixar testemunhas de seus feitos, sejam eles bons ou ruins? Porém, ao que tudo estava indicando, a passagem de Lunno Bellator neste mundo fora como a luz que cruza uma viela sem se ter conhecimento do motivo. Vazia. — Você é realmente forte. Nunca me pressionaram até este ponto. Mas já é o suficiente. — Cinzas disse esmurrando o estômago de Lunno. — Irei acabar com isso de uma vez. De repente Cinzas ouviu o som sinistro de algo cortando o ar em sua direção e o vento pareceu correr ainda mais forte. Cinzas ficou em posição de ataque, quando uma flecha raspou o braço de Aurora e atingiu o paredão atrás dela. Era Sebastian, empunhando o arco curvado de pontas afiadas como a de uma espada, com a mão esquerda e ameaçando puxar a corda com a direita, apontando uma flecha em direção a cabeça de Aurora. Sebastian atirou algumas flechas errantes de propósito para afugentar Cinzas de perto de Lunno e então aproximou-se dele, ficando a sua frente. — Porque está aqui? — Lunno perguntou sem entender. — Fuja rápido, você não é o alvo dela. — Eu sei. Estou apenas sendo...egoísta. — os olhos dele faiscavam ao encontro dos de Aurora, ou Cinzas, já era difícil tentar distinguir diferenças. — Sebastian, não seja tolo. Não se exponha a um perigo destes. — Eu estou aqui porque quero estar. Sei que há uma chance. Não desonrarei meus princípios desta vez, Lunno. Vou salvá-lo. — Não é mais Aurora quem está ali. Não sei exatamente o que é 372
isso. — Isso está reagindo ao ódio de Aurora por você. Não posso deixar terminar assim. Mesmo que haja a menor chance. Sebastian fez com que Lunno se calasse. Ele não podia fazer mais nada. A salvação de todos agora, dependia do arqueiro. — Neste corpo eu senti a vibração terrena do mal. Agora eu anseio por mais. — Cinzas disse. — Vocês não vão me impedir. — Aurora? — Sebastian perguntava melancólico. — Aurora não existe mais. Eu sou uma chama de fogo. O poder encarnado. — a entidade respondia com um ódio latente naqueles olhos escarlates. — Eu sei que está ai dentro, Aurora. Eu posso senti-la. Não pode matar tudo que você ama. — Sebastian? — Aurora tomou o controle, mas a energia em volta de si continuou a mesma. — Por favor, me ajude. — Já chega! É melhor não apostar nisso, arqueiro. — disse Cinzas em um tom intimidador, assumindo sua forma mortal novamente. Certamente através dos sentidos humanos de Aurora, a entidade vinha experimentando magníficas sensações e emoções. Por esta certeza, deduzia-se que provavelmente Cinzas não abriria mão disso tudo. — Eu a amo, Aurie. E por mais errante que seu irmão tenha sido, você também o ama. — Sebastian se aproximava com cautela até onde Aurie estava, mais ou menos três metros de distância. Olhou bem fundo nos olhos de Cinzas e inesperadamente tocou seu rosto delicadamente. — E eu sei que ama a mim, e nada pode fazer isso se tornar pó. — ele segurava sutilmente o rosto de Aurora. Já havia tentado o máximo que podia. Já estava além de suas forças, mas necessitava continuar persistindo, Aurora devia dominar a entidade. — Sebastian? — Aurie deu sinais de que estava no controle. — Sebastian... eu... — de súbito foi interrompida, quando uma forte rajada de dor a atingiu em cheio e Aurora caiu nos braços de Sebastian. Lunno estava pela retaguarda de ambos e vendo a fúria da entidade na irmã, não deixou com que isso prosseguisse e tomasse proporções maiores e mais devastadoras do que já estava. Seus olhos tornaram-se negros e ele dominava o nível de dor que Aurora viria a sentir. Cada vez 373
mais previu que precisava aumentar a dosagem de seu poder para com ela, ou então ela mesmo o mataria. — Seu maldito, por que fez isso? — Sebastian indagou furioso para Lunno, segurando Aurora nos braços. — Não tive escolha. Precisei ataca-la enquanto estava distraída. — ele respondeu. — Desde que não a tenha matado. —É a minha irmã que está ai dentro. Só ganhei tempo, a criatura dentro dela precisa ser destruída agora e acho que sei como filtrar meu poder para atingir a parte do cérebro onde ela está alojada. – Lunno afirmou. — Não... — disse Sebastian, alternando seu olhar entre Aurora e Lunno. — É preciso, antes que ela... — Lunno tentou continuar. — Acorde? Tarde demais! — Cinzas fez Aurora abrir os olhos e sem o menor esforço jogou Sebastian para longe. — E quanto a você. — apontou para Lunno. — Certa vez você humilhou minha hospedeira com um tapa violento na frente de um povo inteiro a tratando como uma prostituta ordinária que merecia apanhar em praça pública por uma noite de serviço mal feito. Você se recorda disso? Pois um tapa não será nem uma faísca do que acontecerá com você. Você quer que eu volte para o espaço frio e sem nenhum atrativo que habitava antes? Minha maldita irmã está aprisionada em você e por certa sorte ela não se manifesta, pelo menos não ainda. O seu ego e seu desejo por morte a alimentará dia após dia. Fique ciente disso, guerreiro. Aurora, controlada ainda pela fúria de Cinzas, voou no pescoço de Lunno e começou a sorrir, enquanto segurava-o pelo pescoço e o enforcava. Não demorou muito para que Lunno sentisse a agonia do sufocamento, afinal o ar já não estava entrando normalmente em seus pulmões e a força da entidade dentro de Aurora era incrivelmente ilimitada. — Nem ao menos para a própria morte você tem alguma valia. — Cinzas apertava ainda mais o pescoço de Lunno. “Não voltarei atrás com a minha palavra. Não voltarei atrás com a minha palavra.” Lunno pensava. Voltar atrás na promessa de proteger sua irmã 374
mesmo que para isso tivesse de sacrificar a si mesmo, seria uma afronta para ele. — Possuir a força, não é tudo que importa. Se você constrói muito poder, acaba por ficar presunçoso e arrogante para com seus próprios companheiros. Mesmo que você seja firme e aliado à honra desde o princípio. Mas eu só tenho a você como irmã. A única que possui o mesmo sangue que eu. — Não queria que você se tornasse isso. — Aurora conseguia falar, lutando para que Cinzas não ousasse domina-la. — Mas eu também errei com você. Eu via o lado de todos, menos o seu. — Eu sempre estarei em algum lugar para você, mesmo que seja só uma barreira para você ultrapassar. Mesmo que você me odeie, é para isso que eu nasci como seu irmão mais velho, é para isso que carreguei este fardo de culpa por todo esse tempo. — Eu não entendia... — Aurora dizia, chorando. — Nunca cobrei algo em troca de sua parte. Eu só queria vê-la viva e saudável sem ter de enfrentar tudo isso. Mas eu fracassei. Eu fracassei com você, irmãzinha. Até em seu último ato honroso, até em sua última faísca de razão, Lunno preocupou-se com sua irmã. Preocupou-se com Aurora. Ainda pequeno, ousou matar um clã inteiro de mercenários para defender a irmãzinha recém-nascida e depois de fazê-lo, a deixou para ser achada por um grupo de mercadores que ele havia avistado não muito longe de onde estava. Matou para protegê-la, deixou-a para que vivesse. Por mais culpa que caísse sobre suas costas, ele amava sua irmãzinha mais do que qualquer coisa que possuía. Abandonou toda uma vida de verdades e passou a manipular mentiras e destruir quaisquer que fossem os obstáculos impostos à frente deles. E ainda sim, não ousou deixar que o ódio por ele mesmo atingisse totalmente Aurora. Morreria por ela se assim fosse preciso, afinal ele estava cego, porém agora seus olhos enxergavam com clareza o mal que fez a ela, mesmo agindo como se fosse o certo. De todas as escolhas que fez, protegê-la foi a que o fez mais feliz. Cinzas, dominando Aurora, partiu em direção a Lunno, e sacando seu punhal o cravou no peito dele, fazendo Lunno urrar de dor. O punhal atingiu em cheio o coração de Lunno, aquele mesmo coração apodrecido 375
pelo ódio, mas renascido com o amor que sentia pela irmã. O destemido Lunno, ousado, caiu sobre as rochas mornas e tomou prazer pelo próprio leito de morte. Uma alma em conflito alimenta-se de medo e dúvidas. A alma de Lunno fez com que motivos, escolhas e atos dele fossem questionados. Quando no futuro, tudo que ele via era escuridão e fogo, apenas a luta e o sacrifício podiam ser as asas para se escapar do abismo. Na escuridão de suas horas mais desesperadas, sua promessa o deu forças para fazer o que devia ser feito. Ele escolheu o sacrifício. — NÃO! — Sebastian gritou disparando descontroladamente as flechas que lhe restavam, porém nenhuma delas atingiu Cinzas. Quando percebeu que todas as flechas haviam acabado, pousou sua mão no centro do arco e o transformou em uma espécie de espada de dois gumes, avançando sobre Cinzas. — Já chega! Agora iremos até o fim disso. — bradou Sebastian apontando o arco espada e caindo sobre o corpo de Aurora. — Sebastian...- a voz quase sem força de Aurora surgiu. — Aurora? . — Vamos rápido, enquanto ainda tenho o controle. Acabe com isso. — Aurora suplicou. — Eu... eu... não posso. — balbuciou Sebastian, erguendo o arco espada hesitantemente. — Por favor! Se realmente me ama, não permita que... — a voz de Aurora foi interrompida pela manifestação súbita de Cinzas outra vez. — Deveria ter me destruído quando teve chance. — Cinzas disse, assumindo a fala de Aurora, enquanto jogava Sebastian para longe sem sequer movimentar as mãos. — Agora vamos lutar! — Cinzas bradou tão alto que os corvos amontoavam-se no céu para fugir daquele trovão em forma de voz. O corpo de Aurora passou a levitar e ficar totalmente suspenso no ar, até alcançar o topo do Lago dos Ossos. Farrapos de fumaça que não vinha do vulcão e sim de dentro de Aurora, se ergueram no céu avermelhado de Rhalmenezer. O corpo de Aurora começava a esquentar-se extremamente, fazendo com que seu manto, sua pele e seu rosto queimassem como brasa viva. Manchas de fuligem começaram a sujar seu 376
rosto. O topo do vulcão estava rodeado pela lava que já transbordava dele, e no centro de toda esta destruição estava Aurora. Sebastian voltou seus olhos para o rosto dela e viu que ela estava corada com uma expressão indecifrável em seu no rosto e com seus cabelos vermelhos arrepiados sendo esvoaçados pelo vento. — AURIE! Eu sei que você ainda pode me ouvir! — Sebastian gritava. Subitamente uma rajada de força o atingiu, rasgando toda a extensão da parte de cima de sua vestimenta o deixando com o peitoral amostra. Isso não o afastou, ele continuou andando até o elevado para alcançar o topo. — Não deixe que a controle. Lute! Lute pelo que você sente por mim. Sua fraqueza é a fantasia dela. — Sebastian dizia, enquanto escalava o breve elevado aos tropeços. A carga de força estava tentando desintegrar o corpo de Sebastian, mas era em vão. Ele continuava, mesmo com todas as dificuldades em seu caminho. Nisso, a força cósmica de Aurie voltava a queimar intensamente. Era o cosmo da entidade, mais forte que qualquer outro no Universo. Sebastian continuava tentando, mas ao passo que subia aquele relevo a força cósmica de Cinzas parecia triplicar sua devastação. O corpo imortal de Sebastian estava suportando o máximo que podia, porém quanto mais perto ele ficava de Aurora, mas vulnerável ele se tornava. Porém, ele sabia que o mesmo acontecia para com ela. O sacrifício em Gallia o lembrou de que havia uma chance. Uma única chance. Quando ele chegou ao topo e ficou de frente para Aurora, a entidade projetou uma força ainda mais erosiva, que arrancou pedaços da pele do braço dele. Sebastian abriu a boca para um grito, mas o nó em sua garganta afogou seus gemidos. “Por que o corpo resiste quando eu tento destruí-lo?” - Cinzas se perguntava percebendo que atacar Sebastian estava sendo uma tarefa praticamente impossível. — Você se sacrificaria por todos os que morreram aqui hoje. — Cinzas dizia. — Não. Por todos não. — Sebastian titubeava ao falar. — Por você... por você. Subitamente, Aurora retomou o controle e Sebastian o percebeu quando os olhos dela mudaram de cor e seu semblante ficara infeliz. 377
— Me salve. — Aurora suplicou pela última vez. — Eu amo você. — Sebastian chorou, cravando a lâmina de uma das pontas de seu arco espada no peito de Aurie. Aurora abriu a boca para gritar, porém som algum saiu de sua garganta. O olhar dela havia ficado sem vida e com um sorriso acanhado no rosto, disse: — Obrigada, meu estorvo. — agradeceu ao homem que a fez feliz desde sempre. Aurora desmoronou caindo entre o magma negro e as cinzas do vulcão. Uma saliva ácida encobriu todo o corpo de Aurora e seu belo rosto. Vendo sua outra metade cair entre o magma negro e as cinzas do vulcão, Sebastian gritou um lamento de dor tão alto que certamente até os deuses escutaram. Seu rugido encheu Terdállia. Jamais se perdoaria, porém não lhe restava escolha. Ele fez o que devia fazer. Quando Aurora por fim mergulhou completamente na profundidade das lavas incandescentes, labaredas quentes ejetaram-se em altas quantidades para cima. As fagulhas e lavas juntavam-se ao cintilar do céu e pareciam luzes divinas, pulsando a energia sublime daquela que fora a hospedeira das cinzas.
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“Morte é uma angústia avassaladora. Você pode tentar dar as costas para ela, mas é quando ela brota atrás de você e a devora vivo. Algumas pessoas digladiam para entender sua própria morte. Relutantes ou impossibilitados de justificar seus atos passados. Outros simplesmente fogem de seu final. Desprendendo-se de seu passado até que não haja mais nenhuma lembrança. Mas eu fui em direção a minha morte, eu me alimentei dela. Eu precisava. Para mim, morte é um dos fardos que ainda iluminarão meu tortuoso caminho. A minha morte trouxe a luz do infinito, um infinito que ressurgirá e removerá as areias do tempo”.
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