REVISTA PZZ Nº 04

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pzz ARTE POLÍTICA E CULTURA R$ 6,00 ANO II N°4 AGOSTO 2007

EDIÇÃO ESPECIAL

TEMPOS DE RESISTÊNCIA por Paulo Roberto Ferreira

Paulo Fonteles Poesia no Cárcere

Renato Tapajós Em Nome da Segurança Nacional

Paulo Santos A Conquista da meia-passagem

Benedito Nunes O Fim da Filosofia

PP Condurú O Artista que não Existe

Pedro Vianna A Ligação




REXISTIR é o primeiro passo Edição Especial da REVISTA PZZ ARTE POLÍTICA E CULTURA Nossa poética editorial divulga personagens e passagens que merecem ser divulgados para saírem do anonimato e do obscurantismo da nossa História , independente de tempo-espaço de pessoa ou lugar, a partir de uma perspectiva artística, crítica, filosófica ao revelar uma concepção estética-poética que atravessa as barreiras geográficas e aponta para a construção de uma nova consciência política editorial em nossa Região. A PZZ vem aos poucos sendo uma referência, marcando e demarcando seus limites com relação às demais publicações existentes no mercado editorial nacional. A Revista vem suprir a carência da falta de publicações na área da Arte e da Cultura em nosso Estado e num outro âmbito, as lacunas de material para a formação de estudantes, professores e pesquisadores da nossa História. Neste momento, com a Lei Federal de Incentivo a Cultura, podemos subsidiar o processo de impressão e aumentar a tiragem atingindo um recorde na história das publicações

de revista no Pará. Trata-se de um fato que podemos dizer histórico nas lutas da inteligência e da cultura em nossa terra contra o atraso, contra a dispersão em que vivem os escritores, contra a distância em que se isolam, contra os Editais, contra a opressão econômica e política que as classes dominantes ainda exercem sobre os homens e mulheres de letra e iletrados do Pará. A dificuldade que os escritores e editores passam no Brasil é uma luta ideológica e cultural que se trava com os interesses libidinosos do mercado capitalista. A nossa chamada grande imprensa com seu noticiário tão abundante em fatos, tão ciosa do sensacionalismo e do lucro, tão ávida de minúcias em tudo o que possa causar sensação, estupor e indignação, pouco ou nada diz da nossa Cultura e da História política sob o viés dos oprimidos. Não deixa existir as manifestações do espírito coletivo. Que armas possuímos para que nossas resistências se façam infinitas?

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apoio

Revista PZZ Arte, Política e Cultura ano 2 nº 4 agosto/setembro 2007 Diretor Executivo: Carlos Pará Editor de Arte: Artur Arias Dutra Projeto Gráfico: Artur Arias Dutra Produção: Laura Santana Pesquisa: Carlos Pará Conselho Editorial: SPDDH, Paulo Roberto Ferreira, Pedro Vianna, Paulo Santos, Renato Tapajós, Vicente Cecim, PP Condurú, Ná Figueredo, Marcos Buro, Luis Arnaldo Campos, Albery Albuquerque, Berna Ribeiro, Rosa Acevedo, Benedito Nunes, Jussara Derenji, George Venturielli, Acácio Sobral, Zenito Weyl, Rilke Pinheiro, Carlos Alberto Leão, Afonso Galindo, Ramiro Quaresma, Gláucio Lima, Corredor Polonês, Novos Putrefatos, Adriano Barroso, Aílson Braga, Marcos Buro, Jaime Lisboa, Rosa Gomes,Ygor Pará, Ligia Arias Chuquén, Ingrid Neto Borborema. Distribuição - Brasil, América Latina, Europa. Editor Responsável: Carlos Pará Assinatura, números atrasados e Publicidade: 091- 9616-4992 PZZ Av. José Bonifácio, 160 - Loja 14 São Brás e-mail: revistapzz@gmail.com site: www.revistapzz.com.br


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Revista PZZ Paulo Fonteles Poesofia - 6 - 15 Renato Tapajós Cinema Político - 16- 21 Paulo Roberto Ferreira Documentário - 22- 37 Paulo Santos Ensaio Fotográfico - 38-49 Benedito Nunes Filosofia - 50- 57 PP Condurú Entrevista - 58-65 Pedro Vianna Conto - 66


Acervo: Juliana Fonteles

Poesofia

Paulo Fonteles

poeta-político, advogado de trabalhadores rurais no sul e sudeste do Pará, ex-deputado estadual, proferiu palestras sobre a guerrilha do araguaia “A luta de Paulo Fonteles contra as injustiças sociais é histórica e merece ser lembrada, para que as gerações atuais e futuras saibam da sua importância na luta pelos direitos humanos e contra a opressão no Estado”,


OS REBELDES QUEM SÃO OS REBELDES DENTRO DO PELOTÃO DE INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS? QUE DEMÔNIOS OS POSSUEM A IMPREGNÁ-LOS DA CORAGEM DOS LOUCOS FURIOSOS? QUE LANÇAS RELUZEM DENTRO DAS CELAS ESCURAS PLENAS DE SOL E FOGO E TERRA? QUE BESTAS SELVAGENS CAVALGAM NAS VERTENTES DE CADA BATALHA? QUE ESPÍRITOS OS LEVAM PARA FORA DO IMENSO MAUSOLÉU? QUE PAIXÃO OS DOMINA CANTANDO A MULHER AMADA ENTRE TEMPESTADES E MADRIGAIS? QUE ARMAS POSSUEM PARA QUE SUAS RESISTÊNCIAS SE FAÇAM INFINITAS?


Poesofia A VIAGEM O AVIÃO LEVANTA VÔO. ALGEMAS NÃO PRENDEM O PULSO DA MULHER QUE DESCANSA O BRAÇO LIVRE NO VENTRE CRESCIDO. O RÁDIO TRANSMITE A MENSAGEM: ALÔ ALÔ BOTAFOGO ALÔ ALÔ BOTAFOGO A MERCADORIA A MERCADORIA A MERCADORIA JÁ CHEGOU A MERCADORIA JÁ CHEGOU.

FOI SÓ O CORPO TREME. O DIA AINDA NÃO AMANHECEU. FINALMENTE PERCEBO QUE ESTOU PRESO. O CONVITE PARA ENTRAR NO CARRO PARA VER MINHA MULHER HOSPITALIZADA. A VOZ SECA DO DELEGADO O CANO FRIO DO REVÓLVER. AMEAÇAS DE MORTE A TORTURA BARRAS DE FERRO - AS GRADES. “FOI SÓ UMA PREPARAÇÃO!” DIZ-ME UM HOMEM FARDADO. LÁ FORA O CÉU COMEÇA A SE TINGIR DE VERMELHO E OS OPERÁRIOS VÃO PARA AS CONSTRUÇÕES.

“Durante uma semana a situação ficou inalterada. Faziam-nos as mais terríveis ameaças, desde a volta pura e simples para a tortura até o puro e simples fuzilamento. Numa ocasião nos foi mostrada uma notícia de nossas mortes, que seria levada aos jornais. Pela sua redação éramos dois terroristas atropelados ao tentarmos fugir de um ponto de encontro. Todavia, uma ameaça era mais constante, a de que seríamos levados para o Rio de Janeiro, onde um verdadeiro Centro Científico de Torturas havia sido montado. Oito dias depois (a 8 de novembro, segundo o depoimento de Hecilda), essa ameaça se consumou. Acordaram-nos cedinho e levaram-nos para o Aeroporto Militar de Brasília. Lá, um Beech da FAB estava a nossa espera. Quando subi no avião não acreditava em viagens para o Rio de Janeiro. Só me ocorriam duas hipóteses: ou era simplesmente medida para nos atemorizar, ou realmente iriam nos assassinar, jogando-nos lá de cima. Somente quando ouvi o rádio do piloto se comunicando com o Galeão é que passei a acreditar que nosso destino era, de fato, o Rio de Janeiro. No Rio, a mais trágica experiência. Um grupo de agentes nos recebeu, comunicando pelo rádio que havíamos chegado. Lembro como se fosse hoje: “alô, alô Botafogo, alô alô Botafogo, a mercadoria já chegou.” Sob forte pressão emocional - o medo de sermos assassinados aumentava cada vez mais fomos levados para a P.E. na Barão de Mesquita.”


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DISCURSO DO MÉTODO OS MÉTODOS DA GESTAPO GESTAPO GESTAPO GESTAPO ESTÃO ULTRAPASSADOS, ULTRAPASSADOS. - ESTAMOS PESQUISANDO PESQUISANDO PESQUISANDO A SANTA INQUISIÇÃO A SANTA INQUISIÇÃO

“Na Barão de Mesquita conheci o Centro Científico de Torturas de que me falara em Brasília o major Andrade Neto. Baseado num processo que visa, sobretudo, desintegrar as faculdades mentais do torturado, é o chamado tratamento psicológico. Tudo é feito de forma a desestruturar a personalidade do preso, submetendo-o a um processo de verdadeiro enlouquecimento. Depois um capitão me explicaria, cinicamente, que lá eles estavam pesquisando os métodos da Santa Inquisição, considerando os

métodos da Gestapo ultrapassados. Disse-me ele que os métodos da Gestapo eram dentro de um palco de guerra, onde os acontecimentos se alteravam muito rapidamente com necessidade, portanto, das informações serem arrancadas imediatamente. Por isso, os métodos da Gestapo seriam tão violentos fisicamente, o que provocava muitas mortes. Para eles não. Eles tinham tempo para esperar pelas informações, e dentro desse quadro os métodos da Inquisição ainda eram insuperáveis.”

- ESTAMOS PESQUISANDO A SANTA INQUISIÇÃO.

“O choque elétrico é particularmente terrível na cabeça. Na bolsa escrotal, é como se ela estivesse sendo esmagada dentro de uma prensa. O choque elétrico, além de ser, em si, terrível, provoca uma contração alucinada dos dentes, que me cortava toda a língua. A cada descarga uma golfada

de sangue tingia o capuz. Para aumentar os efeitos das descargas, obrigavam-me a comer sal. Minha boca ficou toda queimada. O afogamento era feito com a infiltração de água na minha boca e nas narinas através de mangueiras de borracha. Eu sufocava e estertorava. Tudo isso no pau-de-arara. Nesses dias revelouse particularmente perverso o sargento Ribeiro. Ele ria e cantava. No sábado de manhã eu já estava completamente exangue. Quase não mais sentia dor. Apenas uma vontade de descansar.”


FOTO: Miguel Chikaoka

Poesofia


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Passei a viver o dia a dia do PIC. O PIC não é uma penitenciária comum, em que o preso fica sob o controle da Justiça. É um pequeno campo de concentração. Ali quem manda é o comandante. Justiça é letra morta. A lei, diziam eles, é para ser cumprida, todavia era necessário deixar de cumpri-la por alguns momentos. Chamávamos a isso a vacancio legis do PIC. Ali conheci, creio, toda a crueldade que o gênero humano pode produzir. Durante dez meses fui testemunha dos mais escabrosos crimes contra mulheres, homens, velhos, rapazolas, que o aparelho de repressão tem cometido no Brasil. Dentre, talvez, mais de uma centena de presos políticos que conheci nesses meses, não houve nenhum, mas nenhum mesmo, que não houvesse sido torturado. Tortura era o método mais sistemático empregado no PIC para obter confissões. Todos eram torturados: simples suspeitos, simpatizantes da causa democrática e, principalmente, militantes das organizações clandestinas. Entre os principais torturadores do PIC estavam o tenente Burguer, o major Othon Rego Monteiro, o sargento Ribeiro, o sargento Vasconcelos, Arthur, os cabos Martins, Jamito, Edson Torrezan, Nazareno, Calegari, soldado Osmael, Admir. A princípio, eles ainda possuíam o pudor de colocar o rádio em volume altíssimo, para não

ouvirmos os gritos que vinham da salinha. Depois não. Torturavam às escâncaras, notadamente depois que foi comandar o PIC esse tenente Burguer, sob direção do major Othon Rego Monteiro, dois fascistas torturadores dos mais perversos. Mesmo os que já tinham passado pela fase do interrogatório, e estavam somente esperando julgamento, eram provocados e torturados. Esse major Othon Rego Monteiro mandou, certo dia, buscarme na cela. Disse-me que nós estávamos tendo muitas concessões. Que ele iria apertar nossas vidas, para ver quem eram os rebeldes. Essas concessões eram banho de sol, livros, um rádio, jogo de xadrez, enfim, essas coisas pequenas, e sobretudo linha, agulhas e miçangas, com as quais fazíamos artesanatos para ajudar as famílias dos operários presos que passavam dificuldades. E assim o fez. Só que para ele até escova de dente virou concessão. Tirou-nos tudo. Não poderíamos nem cantar, nem ao menos assoviar. Nem a Bíblia poderíamos ler. Fui trancafiado numa cela em penumbra, onde fiquei quase três meses isolado. Comecei a tremer. Repetiame: não vou falar...não vou falar...não vou falar..., indefinidamente, como já num processo de autosugestão. E de repente os sons. Tentava tapar os ouvidos com os dedos, mas era

inútil. Aqueles sons infernais, enlouquecedores, penetravam no meu cérebro. Caí em desespero. Parecia não haver saída. O que eles poderiam fazer comigo louco? O medo não era morrer. O medo era ficar louco. O que eles poderiam fazer comigo louco? Cheguei a aceitar a loucura. Repetia-me para mesmo no desvairio resistir, não vou falar...não vou falar...não vou falar... E de repente os sons. Terríveis. Passei a não controlar minhas reações motoras. O corpo tremia, todo. Febre. Frio. Delírios: a Hecilda me chamava, minha mãe me chamava, meu pai me chamava. De repente caía em mim. Ninguém poderia estar me chamando. Eu estava ficando louco. Os sons, o corpo tremendo, a cabeça ardendo. Perdi o controle. Comecei a bater com a cabeça nas paredes, a gritar desesperadamente. Tiremme daqui...tirem-me daqui. Foi quando me tiraram daquela câmara. Sentado numa cadeira cheia de fios elétricos, que prendiam os meus pulsos, cadeira essa que se localizava dentro de um triângulo negro, dentro de uma sala completamente branca, cheia de luzes, dentro da qual o interrogador se colocava numa espécie de púlpito. Tudo cientificamente preparado para o mais completo aniquilamento físico e mental do homem.


Poesofia GRUNINDO COMO UM PORCO NÃO HÁ BARATAS SOBRE O MEU SEXO ENEGRECIDO DESAPARECIDO. ELAS PASSEIAM NA MINHA BOCA, COSPEM NOS MEUS OLHOS, PENETRAM NO MEU NARIZ, PERFURAM-ME OS OUVIDOS E ROEM-ME O CORAÇÁO DESTROÇADO. MEU CÉREBRO É CIRCO DO MAIS ENCARNIÇADO COMBATE. NUVENS DE GAFANHOTOS ESPAVORIDOS DILACERAM-SE EM LUTA FIBROSA, NO CHOQUE DE SUAS ANTENAS E MANDÍBULAS, EM SUAS ASAS QUEBRADIÇAS. COMO TEMPESTADE, NOVAS ONDAS SEMPRE PERPASSAM, SEPULTANDO CORPOS ESMAGADOS, ESMIGALHANDO OLHOS, GRITOS DE FAILES RASGADOS, CONTRAÇÓES DE CÉLULAS NERVOSAS ENERGIZADAS RAIOS ALUCINANTES ESTILHAÇANDO CONVULSÃO CEREBRAL MEUS DENTES CRAVAM-ME A LÍNGUA, ESTACAS EM TERREMOTO, PREGOS DE CÁLCIO INCONTROLADOS, ABRINDO CRATERAS ENREDILHADAS

Escultura em concreto de Ligia Arias Chuquén

DISFORMEMENTE. CAMINHOS DESVAIRADOS NA CARNE. COMO A TEIA DE UMA ARANHA ESQUIZOFRÊNICA, POR ONDE FLUI MAR DE SANGUE, LARVA DE ÓDIO QUE O NEGRO CAPUZ JÁ CONHECE. MEUS OSSOS VERGAM-SE ATADOS NA POSTURA DE UM PORCO QUE VAI AO MERCADO. MEU CORPO SE ELETRIZA E GEME NA CARNE QUE TREPIDA ALUCINADA. MEUS PÉS, MINHAS MÃOS, POR CORDAS JUNGIDAS À MADEIRA FORTE, COMO O FERRO QUE ME AGUILHOA OS ESCROTOS, GANCHOS ENTORPECIDOS DE MIM MESMO, COMEÇAM A ENTENDER QUE SÓ DORMINDO DESCANSARÃO.


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II AGORA NADA ESCUTO. TODAS AS VOZES EMUDECERAM NO MARULHAR DOS RIACHOS ABERTOS EM MEU CRÂNIO. PASSEIO POR ESCADAS INVISÍVEIS NA URDIDURA DE VÉUS ESVOAÇANTES. TATEIO O ABISMO DA MORTE, PROFUNDÍSSIMO. SOMENTE LAGE FRIA RECEBE O GOTEJAR DE MINHA NÁUSEA.

ESQUEÇO OS GAFANHOTOS, ESQUEÇO MÃOS, PULSOS, PÉS, ESQUEÇO O PORCO GRUNINDO NO GANCHO, ESQUEÇO O CORPO PREGADO NA GÓLGOTA, ESQUEÇO A LOUCURA, A MORTE. VAGAM SOMBRAS EM MEU SONHO TRANSTORNADO, ARQUEJANDO SEU TEMOR AFADIGADO EM MINHAS PUPILAS DE PAVOR.

III NÃO HÁ LUZ, NÃO HÁ CORDAS NEM MESMO TÚNEIS, NÁO HÁ PAREDES SEQUER A GOELA QUE ME DESFAZ, DESFAZ-SE AO CONTACTO COM MEUS DEDOS NUMA PLACENTA DE VERMES INSACIÁVEIS, GELATINOSOS, MONTANHAS DE SOMBRAS EM NEGAÇA. IV OUÇO A VOZ DO FILÓSOFO GREGO, A RETÓRICA DE GALILEU, AS RAZÕES DO ENCICLOPEDISTA, DANTON, MARAT, ROBESPIERRE, O CORIFEU DA FILOSOFIA DA PRÁXIS, SEPULTADO POR TONELADAS DE HISTÓRIA.

V E O COMPANHEIRO PASSA DISTANTE PISANDO O BARRO DA ESTRADA. E A MULHER ENTRISTECIDA AMANHECE NOS LÁBIOS DA ESPERANÇA. VI FULGE FUGAZMENTE LONGINQUAMENTE A LUTA DO POVO.


Poesofia PAU DE ARARA DOIS CAVALETES UMA BARRA DE FERRO. ATAM-NO PELOS PULSOS E TORNOZELOS COMO UM PORCO QUE VAI AO MERCADO. PENDE O CORPO DISTENDEM BRAÇOS E PERNAS ATÉ A DOR INSUPORTÁVEL. TRÊS DIAS TRÊS LONGOS DIAS TERRIVELMENTE LONGOS.

O

informe de Paulo Fonteles revela o valor documentário das poesias, que ele escreveu ao longo de dez anos depois de ser colocado em liberdade no dia 6 de junho de 1973 estão no livro “Wenn der Tod sich nähert, wur ein Atemzug” organizado por Steven Ulhy e publicadas pela Editora Marthes e Seitz Berlin lançado em 2006 na Feira do Livro de Berlin e agora lançado no Brasil pelo

“Então, na primeira oportunidade que tive, ao me descerem do pau-de-arara, girei o corpo e dei com a testa no chão. Desmaiado e sangrando fui então levado para a cela, onde pude finalmente descansar. Devido a esses três dias eu ficaria com o braço direito e a perna esquerda paralisados durante quase três meses.”

Instituto Paulo Fonteles. Não somente se encontram muitos acontecimentos reais, como também muitas citações literais dos torturadores Além disso, fica claro que as poesias captam uma dimensão que não se encontra na prosa. O informe demonstra muito bem a capacidade mental de Paulo Fonteles de analisar as estratégias dos seus torturadores mesmo sob grande pressão, com o intuito de não perder a orientação e a força de resistir. Mas é nas poesias que penetramos o universo emocional da vítima. Isto se deve sobretudo à estrutura repetitiva das poesias que exercem um poder sugestivo sobre o leitor. A leitura destas poesias é desagradáv-

el, quase dolorosa, e essa é justamente sua força literária. Estamos diante de uma descida ao inferno, que recebe sua coesão interna de uma verdade poética e, ao mesmo tempo, autobiográfica. O mais extraordinário do trabalho de Fonteles é o fato de ele renunciar a todo tipo de vergonha. Não tentou colocar uma abstração poética entre seus sentimentos e suas recordações para se proteger do passado, não há qualquer encobrimento analítico ou moralista dos fatos. Fonteles conseguiu abrir sua linguagem poética ao máximo para o lado escuro da vida. A arte, isso fica muito evidente em textos desse tipo, salva através da própria dor.


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PALAVRAS DE UM TORTURADOR NÃO TENHO ESCRÚPULOS. NÃO TENHO E S C R Ú P U L O S. TUA MULHER SOFRERÁ SOFRERÁ AS CONSEQUÊNCIAS C O N S E Q U Ê N C I A S. TUA MULHER SOFRERÁ AS CONSEQUÊNCIAS; C O N S E CONSEQUENCIAS U E N C I A S

“Logo à chegada, eu e Hecilda fomos separados. Pela frente o desconhecido, que haveria de ser terrível, porque senão não nos deslocariam de Brasília para o Rio. Conhecendo a fúria da tortura em Brasília eu me interrogava: o que eles ainda poderiam me fazer, que já não tivessem feito? Pensamentos monstruosos me afligiam, eu que já havia lido o que os nazistas fizeram com mulheres judias grávidas durante a II Grande Guerra. A certeza da morte tomava cada vez mais força. Seria difícil sairmos dali vivos.”


EM NOME DA SEGURANÇA

NACIONAL

Renato Tapajós

Renato Carvalho Tapajós, nasceu em Belém do Pará, em 5 de novembro de 1943, formou-se em Ciências Sociais, pela FFCL da USP, 1968.Cineasta e escritor, dirigiu 25 filmes (película, 16 e 35 mm) de curta, média e longa metragem. Premiado em festivais internacionais (Leipzig, Oberhausen e Havana) e nacionais (Jornadas de cinema e vídeo de Salvador). Roteirista, diretor e produtor de vídeo, dirigiu mais de 120 vídeos. A PZZ destaca seu cinema político em tempos de Resistência.

E

m 1983, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo organizou, no Teatro Municipal de São Paulo, o Tribunal Tiradentes, para julgar a Lei de Segurança Nacional. Com a platéia completamente lotada, o juri simulado se transformou numa das mais significativas manifestações contra a ditadura e pelas liberdades democráticas a acontecer naquela época. O material filmado no Tribunal Tiradentes passou a constituir a base narrativa para o documentário “Em

Nome da Segurança Nacional. Outros materiais foram agregados ao projeto: cenas ficcionais criadas especialmente para o filme, materiais de arquivos, filmagens documentárias contemporâneas. A articulação desses materiais resultou num documentário que discute, mais do que a Lei de Segurança Nacional, a Doutrina da Segurança Nacional implementada pela ditadura. O filme mostra os efeitos da aplicação dessa doutrina em diversos segmentos da sociedade brasileira.

“Em Nome da Segurança Nacional” foi proibido pela censura até o final da ditadura militar e, nesse período, recebeu os prêmios de melhor filme no Festival Internacional do Documentário em Oberhausen, Alemanha, no ano de 1985 e o de melhor documentário no Festival Internacional de Havana, Cuba, no mesmo ano. No período em que o Brasil foi dominado pela ditadura militar surgida com o golpe de 1964, o mundo vivia a


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O filme de Renato Tapajós “Em Nome da Segurança Nacional” começa com uma montagem documentária de material de arquivo, associada a sons de noticiários de radio da época, que nos narra o golpe militar de 1964 e, em seguida, as circunstancias da decretação do AI5 e da Lei de Segurança Nacional.

época da Guerra Fria. Com o planeta dividido em dois blocos (de um lado o bloco ocidental, cristão e capitalista e de outro, o bloco soviético, ateu e comunista), os ideólogos do ocidente criaram a Doutrina de Segurança Nacional. Essa doutrina, partindo da constatação que os blocos eram inimigos irreconciliáveis, pregava que todas as nações deveriam seguir o país lider de cada bloco – de um lado, os Estados Unidos da América, de outro a União Soviética. O Brasil, por sua predestina-

ção geopolítica, fazia necessariamente parte do bloco liderado pelos Estados Unidos. A guerra (fria) travada entre os dois blocos não respeitava fronteiras: o “front” estava dentro de cada país. Cada cidadão era um combatente. Assim, se ele concordasse como status quo, era um combatente a favor do governo; se estivesse na oposição, era um combatente inimigo, um inimigo infiltrado, um traidor da pátria. Como o alinhamento com um dos lados da guerra fria era automático, não restava opção nenhuma

ao cidadão: ou concordava com o governo ou era inimigo da pátria. A Lei de Segurança Nacional, promulgada em 1969, transformava essa doutrina em lei aplicável na prática. Ela reintroduz a pena de morte na legislação brasileira, pela primeira vez no século XX. Seus diversos artigos transformam em crime praticamente todas as atividades da oposição. A Lei de Segurança Nacional inviabiliza a prática politica, pelo menos na legalidade. Dessa forma, a política brasileira mer-


gulha na ilegalidade, sem liberdade de imprensa, sem liberdade de reunião, sem liberdade de organização. A figura jurídica da “organização subversiva” impede o surgimento de qualquer proposta organizativa, que não sejam os partidos (Arena e MDB) propostos pelo governo. O mesmo ocorre no movimento estudantil, onde as organizações tradicionais dos estudantes são postas fora da lei e substituidas por estruturas “chapa branca”. Seguindo essa lógica, a re-

pressão encontra ampla possibilidade de utilizar métodos cada vez mais violentos. As prisões ilegais, os cativeiros clandestinos se tornam banais. A tortura passa a ser utilizada como política de estado. Os assasinatos e os desaparecimentos políticos viram norma. De todos esses métodos, a tortura é aquele que surge como central. As investigações se baseiam na tortura, a intimidação emprega a tortura, o convencimento é realizado com a tortura. Já se disse que, no Brasil, a tortura é

endemica: desde a colonia, desde o tempo dos escravos, a tortura faz parte do repertório repressivo. Os pobres, os excluídos, os negros, sempre foram alvo da tortura, empregada pelas classes dominantes como mecanismo de contenção das tensões sociais. Na ditadura de 64 aconteceram duas coisas: a primeira foi a inclusão de todas as classes sociais entre os “torturáveis” – a classe média se tornou torturável e até mesmo os filhos rebeldes das classes dominantes puderam ser torturados;


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a segunda foi a transformação da tortura em política de Estado, conhecida e sancionada pelas autoridades de todos os níveis. Não era mais o “desvio” do tira da delegacia de bairro: era uma política aceita e recomendada pelo Estado. Embora não prevista na Lei de Segurança Nacional, a tortura transformou-se em sua mais grave consequencia. Instrutores de tortura, com experiencia na Argélia e no Vietnã, foram trazidos para o Brasil, para treinar grupos especiais das Forças Armadas. A isso somaram-se a criatividade e a tradição das polícias brasileiras para criar uma rotina de tortura eficiente e implacável. Deixando de lado formas de tortura mutiladoras e mortais, como as da tradição medieval e do nazismo, a repressão brasileira conseguiu criar formas mais eficientes e que deixavam, a longo prazo, menos seqüelas fisicas. É claro que acidentes acontecem – e muitos presos políticos morreram na tortura, enquanto alguns ficaram com marcas fisicas indeléveis. A tortura foi eficiente para os objetivos da Doutrina de Segurança Nacional. As organizações armadas que se opunham ao regime foram desmanteladas, a oposição não violenta foi

destruída. No entanto, mesmo com a violencia da tortura e o controle social imposto pela Doutrina de Segurança Nacional, não foi possivel, para a ditadura, manter-se para sempre. O ascenso do movimento de massas no final dos anos 70, o desgaste do modelo econômico adotado pelo regime e a mudança no panorama internacional acabaram por dar fim à ditadura na década de 80. Mas o legado de

exceção e violência que ela deixou, as profundas marcas que até hoje continuam maculando a sociedade brasileira, não podem ser esquecidos. O filme “Em Nome da Segurança Nacional” começa com uma montagem documentária de material de arquivo, associada a sons de noticiários de rádio da época, que nos narra o golpe militar de 1964 e, em seguida, as circunstâncias da decretação do AI5 e da Lei de Segurança Nacional. A seqüencia seguinte, construída com sketches ficcionais, nos fala do conteúdo da lei. Artigos da lei são lidos por uma voz autoritária, enquanto situações (como o medo de quem bate à porta de madrugada ou uma cena de prisão na rua) são vividas por atores. Em seguida, começa o Tribunal Tiradentes, presidido pelo senador Teotonio Vilela, na época uma das vozes que se levantava pelo fim da ditadura. Testemunhas são chamadas, para contar como a Lei de Segurança Nacional atingiu as várias camadas da sociedade brasleira. Assim, testemunha um jornalista (Hélio Fernandes), uma estudante (Clara Araújo,


presidente da UNE), um operário (Luis Inácio Lula da Silva), um representante da Pastoral da Terra (Daniel Hersch), uma ex-presa politica (Rosalina Santa Cruz) e um ex-preso político (Ivan Seixas). Os depoimentos de cada um deles são comentados por sequencias em preto e branco, algumas com material documental recem filmado, outras com material de arquivo e ainda outras, ficcionais, construidas com atores. Depois, o presidente do tribunal dá a palavra à defesa: Luis Eduardo Greenhalg vai defender a Lei de Segurança Nacional. Para isso, ele conta como a Doutrina de Segurança Nacional chegou ao Brasil através dos oficiais que integraram a FEB, no fim da Segunda Guerra Mundial: esses oficiais tomaram contat com ela durante um estágio no National War College, nos Estados Unidos. Sua aplicação no

Brasil resultou na criação da Escola ra – onde se gestou Superior de Guerra olpe de 64. As imagrande parte do golpe m esse trecho são de gens que sustentam documentários de guerra americanos, com a trilha sonoraa de hits de Glenn a, passando ao terMiller. Em seguida, ritório nacional, Greenhalg conceitua rina de Segurança o inimigo da Doutrina Nacional: o cidadãoo que não concorda itar. Essa conceituacom o regime militar. ção é comentada por imagens que le militar no Brasil associam um desfile ura. com cenas de tortura. bunal Tiradentes, a Voltando ao Tribunal acusação feita por Márcio Tomás Bastos pede a revogação da Lei de Segurança Nacional. E o corpoo de jurados a condena, em paralelo a imagens que remetação popular que tem a uma manifestação imeira manifestação é, na verdade, a primeira nha das Diretas. pública da Campanha

FICHA TÉCNICA PRODUÇÃO: Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese diocese de São Paulo. REALIZAÇÃO: Tapiri Cinematográfica. DIREÇÃO: Renato Tapajós. ROTEIRO: Renato Tapajós e Roberto Gervitz. DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA: Cesar Charlonne. FOTOGRAFIA NO TRIBUNAL: Adrian Cooper e José Roberto Eliezer. MONTAGEM E EDIÇÃO DE SOM: Roberto Gervitz. tz. DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Suzana Villas Boas. PRODUÇÃO NO TRIBUNAL: Áurea Gil e Beth Ganymedes. anymedes. MIXAGEM: José Luiz Sasso.


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PRINCIPAIS TRABALHOS E PRÊMIOS • Vila da Barca - Documentário de curta metragem sobre favela construída sobre palafitas em Belém do Pará (1964-65). Prêmio de melhor documentário no Festival Internacional do Filme de Curta Metragem de Leipzig, Alemanha Oriental (1968). • Fim de Semana - Documentário de média-metragem sobre autoconstrução e construção em mutirão na periferia de São Paulo (1976). Prêmio de melhor filme na V Jornada Brasileira do curtametragem, Salvador, Bahia (1976). • Acidente de Trabalho - Documentário de curta metragem realizado para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, mostrando a questão dos acidentes de trabalho sob o ponto de vista dos operários (1977). Prêmio de Melhor Filme de Pesquisa Social, atribuído pelo Instituto Goethe na VI Jornada Brasileira de Curta Metragem, Salvador, Bahia (1977). • Greve de Março - Documentário de média-metragem sobre a greve de 1979 no ABC paulista, produzido pela ABCD Sociedade Cultural. (1979). • A Luta do Povo - Documentário sobre as diversas lutas dos movimentos populares em São Paulo, no período 1978 - 1980, produzido pela Associação Popular de Saúde. (1980). Prêmio Glauber Rocha de Melhor Filme na Jornada Brasileira de Curta Metragem, Salvador, Bahia (1980). • Linha de Montagem - Documentário de longa-metragem sobre o processo de mobilização e organização dos operários no ABC paulista que resultou nas greves de 1979 e 1980, na reorganização do Movimento Sindical e na fundação do PT. (1981-1982) (Festival de Berlim - Fórum da Juventude em 1984) • Em Nome da Segurança Nacional - Documentário de média metragem sobre os efeitos da Lei de Segurança Nacional sobre diversos estratos da população brasileira e a luta pela sua revogação, produzido para a Comissão Justiça e Paz da Cúria Arquidiocesana de São Paulo (1984). Prêmio de Melhor filme no Festival Internacional de Curta Metragem e Documentário de Oberhausen, Alemanha (1985). Prêmio Coral de Melhor Documentário no 7º Festival do Novo Cinema Latino-Americano, Havana, Cuba (1985). • Nada Será Como Antes. Nada? - Documentário sobre a participação da esquerda e dos cineastas de esquerda nos principais acontecimentos políticos do começo da década de 80, incluindo a campanha eleitoral do PT. (1984) Prêmio Glauber Rocha de Melhor Filme na XIV Jornada de Cinema da Bahia (1985). • A Humilhação e a Dor - Documentário produzido em vídeo sobre a questão da tortura aos presos comuns e da pena de morte no Brasil. para a Comissão Justiça e Paz da Cúria Arquidiocesana de São Paulo (1986). Prêmio Especial do Júri para Melhor Direção na XVI Jornada de Cinema e Vídeo da Bahia (1987). • Universidade Em Crise - documentário P/B, 25 minutos de

duração, 16 mm, sobre a repressão da ditadura militar na Universidade. Produzido pelo Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP (1966) • Um Por Cento - documentário P/B, 25 minutos, 16 mm, sobre o exame vestibular na Universidade, produzido pelo Departamento de Cursos do Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP (1967). • Trabalhadoras Metalúrgicas - documentário color, 17 minutos, 16 mm, sobre as condições de trabalho das mulheres metalúrgicas, produzido pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (1977). Co-dirigido por Olga Futemma. • Teatro Operário - documentário color, 10 minutos, 35 mm, sobre uma experiência sindical de teatro com operários metalúrgicos, produzido pela Oca Cinematográfica com a colaboração da FUNARTE (1978). • Revista Do Henfil - documentário color sobre a peça de mesmo nome, 25 minutos de duração, 16 mm, produzido pelo Teatro Ruth Escobar (1979). • A Ilha do Diabo - documentário sobre o presídio da Ilha Grande, produzido para o programa Globo Repórter, Rede Globo de Televisão (1980) • Xô! Recife 83 - documentário color, 30 minutos, 16 mm, codirigido por Roberto Gervitz, sobre a luta pela moradia em Recife, produzido pela Tapiri Cinematográfica para a Organização Irmãos dos Homens (1984). • Machu-Picchu - Na Trilha Dos Incas, documentário em vídeo, 50 minutos de duração, produzido pela Tapiri Vídeo e Climb Expedições (1990). • Sindicato Dos Metalúrgicos Do ABC - 60 Anos De Conquistas, documentário sobre a história do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, 50 minutos, produzido pela TV DOS TRABALHADORES para o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (1993). • A Produção Da Fome - documentário em vídeo sobre a origem do problema da fome no Brasil, 20 minutos, produzidos pela TV DOS TRABALHADORES para o Instituto Cajamar (1994). • Exclusão Social - documentário em vídeo sobre o problema da exclusão social no Brasil, 20 minutos, produzidos pela TV DOS TRABALHADORES para o Instituto Cajamar (1995). • Diadema, Cidade Vermelha - documentário em vídeo sobre a erradicação das favelas na cidade de Diadema, 15 minutos, produzido pela Iantra Cine Vídeo para a Secretaria de Habitação da Prefeitura Municipal de Diadema (1996). • No Olho do Furacão - documentário para televisão sobre a vida dos militantes clandestinos da luta armada em luta contra a ditadura militar no Brasil (1968 a 1974), 52 minutos, produzido pela Olhar Imaginário e co-dirigido por Toni Venturi, exibido pela TV SENAC (2003)




Documentário Tempos de Resistência

Paulo Roberto Ferreira

Paulo Roberto FERREIRA, jornalista, professor universitário de Comunicação Social, atualmente é diretor de Jornalismo da TV Cultura Belém, Pará.

Arquivo: SPDDH

E

m agosto de 1977, na igreja de Santa Terezinha, no bairro do Jurunas, em Belém, foi fundada a Sociedzade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). Lavradores, profissionais liberais, funcionários públicos, estudantes, religiosos, operários da construção civil e gráficos ousaram criar uma organização não-governamental, em pleno período governado pelo general Ernesto Geisel, com o objetivo de resistir ao autoritarismo do regime militar. E ao mesmo tempo propagar e divulgar as bandeiras de lutas pela redemocratização do País. Era o tempo das lutas pela anistia aos presos políticos, de liberdade de expressão e pensamento. Tempo de discutir as propostas de assembléia nacional constituinte. Tempo de lutar pela liberdade de organização dos trabalhadores do campo e da cidade, numa região isolada e com uma população

ferreira.pauloroberto@gmail.com

bastante dispersa. Era também o tempo em que o governo dos generais controlava a vida de tudo e de todos. O aparelho de Estado, com seus tentáculos, formado por uma rede de segurança e informação, censurava a imprensa e bisbilhotava a vida dos cidadãos. Impedia as reuniões públicas e determinava o que os músicos podiam ou não gravar em seus discos, os artistas de encenar uma peça teatral ou exibir uma película. A ditadura militar traçou uma geopolítica de ocupação da Amazônia, baseada na premissa de que era preciso ocupar “os imensos vazios demográficos”, aliada à doutrina da “segurança nacional”. E sem nenhuma preocupação ambiental, ampliou a rede de rodovias, com a abertura da Transamazônica, da Santarém-Cuiabá, que juntamente com a Belém-Brasília, construída no governo de Juscelino Kubitschek, formaram a grande rede federal no Pará, acrescida pela abertura da estrada estadual PA-

150, ligando Belém a Conceição do Araguaia, no sul do Estado. Poder das oligarquias Além dos caminhos dos rios, por onde teve início o processo de ocupação da Amazônia, a colonização dirigida pelo governo autoritário utilizou as estradas para deslocar imensas levas de trabalhadores rurais, castigados pela seca do semi-árido nordestino e também colonos do sul do Brasil, comprimidos nos minifúndios no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Além dos que foram transferidos pelo poder público, a propaganda da época induzia à migração espontânea de camponeses pobres, que sonhavam com um pedaço de terra na Amazônia. Enquanto os pequenos eram atirados à própria sorte, enfrentando todos os tipos de doenças e de conflitos com as oligarquias tradicionais, que já ocupavam uma parte das terras, das águas e da floresta, a ditadura criou os incentivos fiscais e transformou a antiga Superin-


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tendência de Valorização da Amazônia (Spevea) em Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Mudava o conceito. A periferia tinha que produzir para o centro-sul, onde estava o capital mais dinâmico. E assim criou as condições para atrair à região grandes grupos econômicos, representantes do capital financeiro, industrial e comercial. Para fugir da carga do Imposto de Renda, muitas empresas como Volkswagen, Bradesco, Bamerindus e Andrade Gutierrez implantaram projetos agropecuários e de colonização no Estado do Pará, sem nenhuma tradição nessa atividade. Substituíram árvores centenárias da floresta amazônica pelo capim, que passou a servir de pasto ao gado de corte. A madeira nobre era extraída e vendida, em tora, para o mercado do sul e sudeste brasileiro. Foi nesse cenário que também se implantaram grandes projetos, ditos de desenvolvimento para a Amazônia, como a Zona Franca de Manaus, e a construção da hidrelétrica de Tucuruí, com objetivo de abastecer de energia a planta industrial do Projeto Carajás, o qual por sua vez demandou uma ferrovia, que inicia no sudeste do Pará e vai até o porto de Itaqui, no Maranhão, onde o minério de ferro, bruto, é exportado para diversas partes do mundo. Esses novos atores contribuíram para a intensificação do processo de expulsão das populações tradicionais para a periferia das cidades. Primeiro num processo violento de grilagem, depois pela pata do boi, e posteriormente pela pistolagem de jagunços, a serviço, principalmente, de madeireiros e pecuaristas. A SDDH surge, portanto, em meio ao clamor dos que choravam a perda das terras e do ambiente de viver e produzir. Dos que foram expropriados pela barragem de Tucuruí, das lideranças de trabalhadores rurais, ameaçadas de morte, dos agentes pastorais, advogados e religiosos, que

eram considerados inimigos da ditadura e de seus aliados. Após um ano de funcionamento, tendo como seu primeiro presidente o advogado e ex-preso político Paulo Fonteles de Lima , a direção da SDDH decidiu criar um veículo de comunicação, com o objetivo de difundir as notícias que a grande imprensa, por conveniência, auto-censura e até mesmo por imposição da censura oficial, não publicava. As denúncias, sofrimentos e lutas dos que enfrentavam a nova ordem na Amazônia raramente eram publicadas. O jornal “Resistência” desponta em 1978 e funciona regularmente até 1983. No editorial da primeira edição a publicação assume que tem um lado. E se coloca a serviço de todos os oprimidos e democratas que lutam pelo estado de direito. A sua marca era a frase “Resistir é o primeiro passo”, que vinha logo abaixo do título.Vários jornalistas, estudantes e assessores dos movimentos sociais integravam o núcleo que editava o jornal. Papel da igreja Embora a sede da SDDH funcionasse numa sala da casa paroquial da igreja católica Nossa Senhora Aparecida, no bairro da Pedreira, em Belém, o jornal era diagramado na casa do editor ou de algum colaborador. O temor do empastelamento atormentava a todos os que faziam o jornal. Diagramadores que trabalhavam na grande imprensa não permitiam que seus nomes figurassem no expediente. A primeira gráfica a imprimir o jornal foi a da Escola Salesiana do Trabalho, cujo chefe da oficina era o gráfico Paulo Rocha, que depois viria a se tornar presidente do Sindicato dos gráficos e deputado federal. Durante quatro edições, os que faziam o jornal não foram incomodados. Mas os órgãos de segurança já haviam dissecado cada linha das matérias e artigos, e esquadrinhado a


identificação de autores de fotografias e charges. A primeira edição traz na capa o título “Novos conflitos na fazenda Capaz”, situada no município de Paragominas, cortado pela rodovia Belém-Brasília. O número 2 tinha como manchete “Quem decide por Alacid?”. Analisava o desempenho do tenente-coronel Alacid Nunes, governador paraense nomeado pela segunda vez, em meio às disputas ocultas no meio militar. O número 3 fazia uma acusação de corrupção ao ex-governador e senador pelo Pará Aloysio Chaves. E na quarta edição os temas eram “Corrupção no cais” e “Grilagem no Maranhão”. Antes que a quinta edição deixasse a gráfica, todos os exemplares foram apreendidos pela Polícia Federal, sem mandado judicial. Isso foi em agosto de 1978. O chefe da oficina gráfica foi detido e levado para prestar depoimento. E o jornalista Luiz Maklouf Carvalho , editor do jornal, foi chamado a depor e enquadrado na famigerada Lei de Segurança Nacional (LSN). A fúria dos censores foi a matéria de capa da edição, que tratava do depoimento de quatro ex-presos políticos, ao contarem as torturas que sofreram nas dependências dos órgãos da repressão militar. “Fomos torturados no Ministério do Exército”, era a manchete. Os quatro eram Hecilda Veiga, socióloga; Humberto Cunha, agrônomo; Paulo Fonteles, advogado; e Isabel Tavares, historiadora. Casados, Paulo e Hecilda foram presos quando estudantes, em Brasília, onde foram torturados dentro

de uma unidade do Exército Brasileiro. Humberto e Isabel também eram casados. Humberto foi vítima do famigerado Decreto 477, que legitimava a expulsão de estudantes, que figuravam na lista negra da ditadura. Os quatro atuaram como militantes de organizações clandestinas e eram membros do PC do B na época do processo contra o Resistência. Mas, estavam legalmente filiados ao MDB, o partido de oposição, consentido pelo regime. Após a apreensão do jornal e abertura de processo que tramitou na Auditoria Militar de Belém contra várias pessoas que constavam no expediente do jornal, a notícia ganhou dimensão nacional e o caso foi relatado em vários jornais da chamada imprensa alternativa e também nos diversos fóruns de discussão da luta pela redemocratização. Meses depois a denúncia contra Maklouf e seus companheiros não foi aceita pelo Ministério Público Militar e o processo foi arquivado. Edições extras O prejuízo causado pela apreensão da quinta edição abalou a saúde financeira da SDDH, que dependia basicamente da contribuição de seus associados. Nada disso, entretanto, intimidou os que faziam o Resistência. Teve início uma campanha para formar um capital de giro e bancar os custos industriais do jornal. Para não perder o contato com o público, Resistência passou a circular na forma de edições extras. As entidades populares (sindicatos, diretórios acadêmicos e ONGs) interessadas no

tema mobilizavam recursos humanos e financeiros para garantir uma edição. Foi assim que saiu um número sobre educação, onde era confrontado o ensino público e a escola privada. E o contraponto eram as escolas comunitárias, que surgiam na periferia de Belém, especialmente nas áreas de baixada, onde a presença do aparelho de Estado era mínima. As escolas nasciam da organização das comunidades em centros comunitários e contavam com o apoio de setores da Igreja Católica e também de uma entidade bastante reconhecida - a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase). Pedagogos, estudantes e lideranças da Associação dos Professores do Estado do Pará (Apepa) , da Associação dos Docentes da Universidade Federal do Pará (Adufpa) e do Diretório Central dos Estudantes (DCE) discutiam sobre a responsabilidade do governo em relação à educação infantil, numa época em que isso era privilégio da classe média-alta em diante. João Marques, o presidente do Sindicato dos Jornalistas do Pará, foi um dos fundadores do Resistência. E na condição também de advogado, defendia as lideranças comunitárias que lutavam pelo direito de morar na periferia de Belém. Raimundo José Pinto, Paulo Roberto Ferreira, Nélio Palheta, Sérgio Palmquist, João Vital, Agenor Garcia, Rosaly Brito, Regina Lima, Ana Célia Pinheiro, José Rangel, Sérgio Bastos e Pedro Estevam da Rocha Pomar (que usava o codinome Marcos Soares), entre outros jornalistas que atuavam na



Paulo Roberto Ferreira, Raimundo Pereira Editor do Jornal Movimento e

Foto: Miguel Chikaoka

Humberto Cunha

grande imprensa, escreviam regularmente ou colaboravam eventualmente com o jornal. Em São Luís, o correspondente era Walter Rodrigues. Em São Paulo, Benedito Carvalho. Lúcio Flávio Pinto escrevia artigos especiais. A circulação do veículo exigia uma logística bastante complicada. Poucas bancas de revistas aceitavam vender o jornal. Mesmo assim o Resistência circulava entre as lideranças de bairros, agentes pastorais, sindicalistas e, nos malotes da igreja católica, seguia para as regiões onde havia algum embrião de organização dos trabalhadores rurais e seus aliados. Dessa forma o jornal chegava à região da Transamazônica, onde a freira norteamericana Dorothy Stang fazia a distribuição e também colaborava, com relatos sobre a luta dos camponeses da região do Xingu. Ademir Martins e sua esposa Beta Martins eram incansáveis colaboradores no sudeste do Pará, no município de Marabá. As lutas contra os latifundiários da

castanha, a chegada dos pecuaristas mineiros e paulistas, e os capixabas, do extrativismo madeireiro, freqüentemente ocupavam o noticiário do Resistência, por conta da brutalidade contra as populações tradicionais: coletores de castanha, índios e pescadores. Leitura coletiva Distribuir o jornal era uma ação arriscada, principalmente para quem vivia nas distantes áreas do interior amazônico. E volta e meia a ditadura surpreendia. E tentava intimidar quem estava longe da região. Como foi o caso do colaborador Antônio José Ferreira, o “Cafu”, representante do Movimento de Defesa da Amazônia, em Brasília. O motivo era a venda do jornal “Resistência” entre deputados federais, senadores e outros funcionários públicos. Ele foi interrogado pela Polícia Federal durante uma hora e meia, no dia 19 de maio de 1980. Rompeu-se o silêncio dos oprimidos do Marajó, maior ilha fluvial do mundo, na foz do rio Amazonas, com seus 50 mil quilômetros quadrados e quase 300 mil habitantes. Nunca havia tido cerca na localidade Légua do Retiro Grande, em Cachoeira do Arari. Dona Joana Melo Castelo Branco da Rocha pretendia, com seus dentes de arame farpado, botar cerca em mais de mil hectares. Nunca havia tido cerca na Légua e não ia ser agora: o povo se reuniu, pensou, discutiu e decidiu. Foi aquele enorme cobreiro de gente (cerca de 200 pessoas, entre homens, mulheres e crianças) saindo pelos campos a arrancar os


Foto: Miguel Chikaoka

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conscientizar os lavradores. Relata que quando o governo paraense decidiu abrir a rodovia PA-150, enquanto os pequenos tentavam conseguir um lote de terra, os grileiros “já tinham cortado de avião”, ou seja, os fazendeiros e os corretores de terra identificavam a área de cima. E em pouco tempo, os conflitos, a violência e as mortes ocorriam embaixo, nas margens da rodovia, onde tombaram tantos mártires da luta pela reforma agrária. A situação continua tensa entre os quilômetros 50 e 60 da rodovia PA-150

Ana Júlia Carepa

Projeto da gráfica Em outubro de 1979 a SDDH conseguiu liquidar as dívidas (100 mil cruzeiros) da primeira fase do Resistência. E intensificou a campanha Foto: Jornal Resistência

piquetes de demarcação. Caminhada de seis quilômetros, arrancando da terra piquete, os dentes de arame farpado. Eita putirum! Matérias como a do trecho anterior, nunca eram publicadas nos jornais de maior circulação de Belém, como O Liberal, A Província do Pará e o Estado do Pará. Por isso mesmo as páginas do Resistência eram lidas nas reuniões de organização dos trabalhadores e movimentos comunitários e serviam de exemplo para os que trabalhavam no Movimento de Educação e Base (MEB), o programa de alfabetização de adultos, ligado à igreja católica. Os agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que atuavam em vários pontos do Estado, eram os maiores colaboradores do jornal, repassando informações sobre as perseguições aos trabalhadores rurais e suas lutas de resistência. No início de 1979 o agente pastoral Eduardo Pedroso foi seqüestrado por policiais, na rodovia PA-150, logo após a saída de uma reunião com posseiros, sofrendo vexames e violências. Ele fala do medo e da tensão que era trabalhar ajudando a

(Belém-Marabá), região de Jacundá. Nem a morte brutal do lavrador Lourival Marques da Silva, ocorrida no último mês de março, foi capaz de acalmar a ganância sem escrúpulos do grileiro Osanier Silva, que há mais de três anos vem atormentando os trabalhadores. Conforme denúncia da Diocese de Marabá, Lourival foi barbaramente assassinado por capangas de Osanier, como represália por sua resistência na luta pela terra. (...) No final do ano passado, por exemplo, Osanier mandou seus capangas acertarem o lavrador Alcebíades Alves da Silva. Alcebíades foi baleado pelas costas, dentro de sua casa, e ficou paralítico, em conseqüência do tiro.


de recursos para o capital de giro, que conseguiu arrecadar, em seis meses, 500 mil cruzeiros, resultado de promoções como leilões de livros e objetos de arte, sessões de cinema, bazar da pechincha e eventos como venda de feijoada e outros. E a partir de abril de 1980 o jornal passou a circular com suas edições normais, encerrando assim o ciclo das edições extras. Paralelo a tudo isso a direção da entidade formatou um projeto para uma instituição de ajuda ao Terceiro Mundo, a Brot Fur Die Welt (Pão Para o Mundo), solicitando apoio para montar uma gráfica e, dessa forma, reduzir as despesas com os custos industriais, além de garantir a circulação com maior precisão. Quando o projeto foi aprovado, surgiu outro problema: onde colocar as máquinas, que seriam adquiridas no Brasil? E como garantir estoque de matéria-prima (papel, tinta, fotolitos) e contratar pessoal técnico? Nova campanha foi iniciada. Desta vez no valor de 2 milhões de cruzeiros, para aquisição de um prédio. Os associados e simpatizantes se lançaram à luta. Mas antes mesmo de conseguir todo o recurso, foi alugado um prédio, adquiridas máquinas usadas e montado o parque gráfico. Começou um novo tempo para o jornal. As lutas dos operários do ABC paulista, as passeatas e mobilizações públicas dos estudantes estavam nas páginas do Resistência, que analisava a conjuntura nacional e abria espaço também para os movimentos na América Latina, como a chegada ao poder dos

sandinistas, na Nicarágua, ou a luta do povo palestino pelo direito de ter um território. A SDDH promovia grandes debates sobre temas nacionais e a solidariedade internacional e abria espaço, no Resistência, para divulgar a luta dos sindicalistas que retomavam suas entidades das mãos de pelegos. Ao mesmo tempo que estimulava a discussão sobre a formação de uma entidade geral dos movimentos comunitários. Foi assim que surgiu a Comissão dos Bairros de Belém (CBB). A luta por transporte, legalização dos terrenos e saneamento básico estava na pauta do jornal, quando focava os problemas urbanos da capital paraense. Era o início de tímidas manifestações por melhores condições de vida na periferia de Belém. A exemplo do que aconteceu no bairro do Guamá e na comunidade Saldanha Marinho, os moradores da baixada do Marco conseguiram uma grande vitória com a instalação da rede de abastecimento de água. Organizados e mobilizados, os moradores das passagens Maria Aguiar, São Pedro, José Leal Martins e outras só conseguiram o que queriam quando uma multidão, portando faixas e cartazes, fez o diretor da companhia prometer a imediata ligação da água. Caça aos comunistas Quem assinava como jornalista responsável pelo Resistência era o livreiro Raimundo Jinkings, jornalista profissional, militante e dirigente do

Partido Comunista Brasileiro (PCB). Na condição de bancário do Banco da Amazônia, Jinkings foi vítima de perseguição política, logo após o golpe militar de 1964. Demitido do banco, ele montou uma pequena livraria na cidade, que aos poucos foi crescendo e se tornou uma grande referência, uma espécie de ponto de encontro da intelectualidade paraense. Ali se encontrava o que era permitido pela censura, como também os livros que estavam na lista negra do regime. Homem calmo e de bom diálogo, Jinkings conseguia ter entre seus clientes até militares tidos como da linha dura do regime. Jinkings foi anistiado e voltou ao Banco até se aposentar, o que ocorreu poucos anos depois. Tinha também uma intensa militância no Sindicato dos Jornalistas. Jinkings foi vice-presidente da SDDH e escrevia, com freqüência, artigos para o Resistência. Foi militante ativo do núcleo pela anistia da SDDH e por isso mesmo pagou caro quando a entidade decidiu promover um debate com Miguel Arraes, ex-governador pernambucano, preso e perseguido político, que retornara do exílio poucos meses antes. Véspera da chegada de Arraes a Belém, a porta da igreja de Nossa Senhora Aparecida (onde funcionava a SDDH) amanheceu pichada com a frase CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e a vidraça da Livraria Jinkings fora alvejada por um tiro de pistola, além de também pichada com a aterrorizante inscrição. O mesmo aconteceu na casa



do presidente da SDDH, o economista Jaime Teixeira. As páginas do Resistência tratavam da luta dos oprimidos e denunciavam as falcatruas em torno do controle da terra e da violência. Um bom exemplo é o que relata o jornalista Walter Rodrigues, com a matéria “Supergrilagem no Maranhão: de uma só vez, 2,3 milhões de hectares”: No final do ano passado, o engenheiro K. Maia Neto, diretor comercial da Madebrás Brasilian Trading, de Curitiba (PR), visitou, em São Luís, o coordenador regional do Incra, Joaquim Itapary, pedindo conselhos sobre uma proposta de venda de terras no Maranhão que sua empresa havia recebido. Queria saber se podia comprar, sem susto. Itapary disse que comprar, podia, mas advertiu: - ocupar é outra coisa. Pra ocupar tem que preparar os caixões e as sepulturas. Assustado, o engenheiro pediu detalhes e só então ficou sa-

bendo que estivera em vias de se tornar “proprietário” de uma parte da gleba Iguana, a maior grilagem já realizada no Brasil, totalizando, segundo os primeiros levantamentos, pelo menos 2,3 milhões de hectares, área correspondente a 8 por cento do Estado do Maranhão, igual à da República de El Salvador e maior que o Estado de Sergipe. A preocupação em resgatar a memória sempre esteve presente na linha editorial do Resistência. O objetivo era mostrar, às novas lideranças, os crimes da ditadura militar e os sofrimentos impostos aos que divergiam do regime. Na edição nº 8 a manchete do jornal foi “Cassados”, seguida do relato das perseguições ao escritor Benedicto Monteiro, que perdeu seus direitos políticos depois de 1964. A foto, logo abaixo do título, trazia o ex-deputado pelo PTB de Getúlio Vargas, algemado e com as roupas rasgadas, depois de ter


sido caçado e perseguido nas matas da Amazônia, onde foi preso. Cresce a divergência No final de 1981 foi lançada uma campanha de assinaturas do Resistência. O objetivo era ampliar a circulação do jornal, já que, àquela altura, a conjuntura política permitia que os dirigentes da SDDH utilizassem os serviços da Empresa Brasileira de Correios, apesar de todas as estatais contarem com uma Assessoria de Informação e Segurança (ASI). As pressões da sociedade levaram os generais a repensar uma nova estratégia de dominação e de manutenção do regime. As eleições para a Presidência da República permaneciam suspensas, mas a distensão, lenta e gradual, do general Geisel, cumprira o papel de preparar a chegada ao poder do general

João Batista Figueiredo, que foi obrigado a ampliar o programa de abertura do regime, com a convocação das eleições para governador. As divergências políticas dentro da SDDH se ampliam. A tentativa de conter as vitórias do MDB leva a ditadura a decretar o fim dos dois partidos (Arena e MDB) e permite a pluralidade partidária, uma velha bandeira dos que lutavam pelas liberdades democráticas. Muitos dos que pertenciam aos partidos clandestinos, como PCB e PC do B, vão disputar espaço no agora PMDB. E alguns foram para o Partido dos Trabalhadores, que surge no rastro das lutas operárias e sindicais, que eclodem a partir de 1978. O debate ideológico começa a se travar nas páginas do Resistência. Além do inimigo principal, a discussão, às vezes, se torna azeda entre os que militavam em partidos legais difer-


Novo inquÊrito policial militar foi aberto contra os jornalistas, diretores da SDDH e colaboradores do jornal, que tambÊm foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional.


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entes. Mas o jornal prossegue dando ampla cobertura à denúncia sobre a prisão de dois padres franceses e 13 posseiros do Araguaia. Emerge também a figura de Sebastião Curió, homem do Serviço Nacional de Segurança (SNI) que montou um esquema de infiltração entre os camponeses para coletar informações sobre os guerrilheiros do PC do B, que organizaram e dirigiram a Guerrilha do Araguaia , cujo processo começou em 1966 e terminou em 1975. Núcleo de cultura Agora Curió era o organizador do garimpo de Serra Pelada, no sudeste do Pará. O garimpo era uma válvula de escape para reduzir a pressão pela terra. Chegou a usar o codinome Marcos Luceini. Depois de organizar e assentar os guias que trabalharam para o Exército, dando informações sobre os guerrilheiros, Curió articulou a abertura das estradas vicinais OP-1, OP-2 e OP- 3. Foi nesta última que ele assentou os “bate-paus”, gente que foi forçada a “dedurar” a quem antes davam abrigo. A Comissão Pastoral da Terra de Marabá elaborou um documento sobre a figura do militar e o jornal Resistência publicou, com detalhes, uma matéria com o título “Quem é o major Curió”. A partir de 1981 o jornal também vai ampliando sua cobertura e abre espaço aos produtores de arte e cultura. Foi criado um núcleo de arte e as páginas do Resistência ficam mais alegres e diversificadas, com artigos e matérias sobre música, teatro, fotografia, pinturas etc. O fotógrafo Miguel Chikaoka e

o cineasta Januário Guedes tiveram grande papel na articulação entre os artistas e os dirigentes da SDDH e do Resistência. Os núcleos jurídico e trabalhista ampliaram o papel da SDDH e serviram para arregimentar mais gente em torno do jornal. No plano político-partidário o jornal atacava abertamente as lideranças de Jarbas Passarinho, José Sarney e João Figueiredo. Batia forte na política econômica recessiva e na ausência de políticas para as áreas sociais. Faz um acompanhamento amplo da prisão dos padres Aristides Camio e Francisco Gouriou, que juntamente com 13 posseiros do Araguaia foram acusados de emboscar e matar o funcionário de uma fazenda em São Geraldo do Araguaia, que depois se descobriu era um pistoleiro. Uma verdadeira ação de guerra foi montada no interrogatório dos padres e trabalhadores rurais. A gráfica do jornal publicava panfletos encomendados pelas entidades católicas que repudiavam a prisão dos padres (a igreja progressista colocada no banco dos réus). E os sindicatos e o movimento nacional pela reforma agrária se solidarizavam com os pequenos lavradores presos e suas famílias, que exigiam justiça. Ao contrário do noticiário da grande imprensa, que destacava com ufanismo as riquezas contidas na Serra dos Carajás e o projeto do governo brasileiro para a exploração mineral, Resistência mostrava a ligação entre o regime militar e o interesse dos empresários japoneses no projeto ferro. A informação só foi publicada antes, no Relatório Reservado, do

jornalista Marcos Dantas. A pedido da estatal Vale do Rio Doce, com aval do regime militar, a Keidaren – Confederação da Indústria Japonesa – preparou todo o projeto de exploração das riquezas de Carajás, pretendendo entregá-las aos grandes trustes internacionais. As precárias e humilhantes relações de trabalho nas indústrias de beneficiamento de castanha e de juta também são acompanhadas pelo Resistência. Mas, em maio de 1982 o jornal dá uma nova parada para se reorganizar. Em junho volta com uma edição extra, anunciando a periodicidade quinzenal, o que ocorre a partir de 1º de setembro daquele ano. Prende e arrebenta Com um projeto gráfico mais bonito o jornal declara apoio explícito a Jader Barbalho, candidato ao governo do Pará, sob a justificativa de que o deputado federal do PMDB arregimentava as forças capazes de derrotar a ditadura, liderada por Jarbas Passarinho. Dois dias antes do Círio de Nazaré, a maior manifestação religiosa do Brasil, a Polícia Federal invadiu a gráfica do jornal e a sede da Comissão Pastoral da Terra, em Belém, a fim de recolher materiais que seriam distribuídos no dia da romaria, em protesto contra a prisão e condenação dos 15 presos do Araguaia (padres e posseiros). No dia 8 (de outubro de 1982) os homens de confiança do general João (Figueiredo) compareceram à Suyá (nome da gráfica) para, mais uma vez, prender e arrebentar. Espancaram, al-


gemaram, provocaram, espancaram novamente, identificaram, fotografaram, seqüestraram objetos. Ameaçaram pessoas de morte. Tudo no melhor estilo do general João. Tudo como manda o figurino do regime militar. Foram duas horas de terror na gráfica do jornal. O editor Luiz Maklouf Carvalho foi espancado e ameaçado de fuzilamento. O distribuidor do Resistência, Carlos Boução, foi algemado, junto com o repórter João Vital e o vice-presidente da SDDH, Daniel Veiga. Dois gráficos, Alberdan Batista, vice-presidente do Sindicato dos gráficos, e o impressor Arlindo Rodrigues fizeram companhia aos outros quatro. Dezenas de pessoas entre colaboradores, funcionários, clientes da gráfica e amigos foram presos aos chegar ao prédio. Eram colocados de frente para uma parede e fotografados. O jornalista Paulo Roberto Ferreira, gerente da gráfica e diretor do jornal, conseguiu perceber a movimentação, correu, avisou a imprensa e amigos, e voltou. Foi preso e levado para depor na sede da Polícia Federal. Novo inquérito policial militar foi aberto contra os jornalistas, diretores da SDDH e colaboradores do jornal, que também foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Depois de meses de apuração, o inquérito foi arquivado. Mas as perseguições continuaram. Em 1983 o jornal enfrenta sua pior crise, agravada pela falta de dinheiro e pelas profundas divergências no seio da SDDH. O resultado é que o editor se afasta, em setembro de 1983, e todos os membros do núcleo de imprensa o acompanham.

O Resistência passa por uma nova pausa. Mas, voltou aos poucos, chegando a circular em 1984, sem uma periodicidade regular. Até que, na véspera da visita de Tancredo Neves a Belém, então candidato a presidente da República, em pleito indireto, um incêndio (pela madrugada) destruiu as instalações e parte da gráfica que editava o jornal. Daí em diante a publicação foi se reduzindo até desaparecer por completo. Não chegou a ser comprovado se o incêndio foi criminoso, porém o prejuízo foi grande e abalou fortemente as finanças da SDDH. A tiragem do jornal Resistência na primeira fase oscilou entre 2 mil e 5 mil exemplares. Mais de 500 exemplares eram distribuídos gratuitamente aos movimentos sociais. Em outubro de 1979 o jornal ganhou o Prêmio Wladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos pela primeira vez. Depois ganhou mais três vezes a mesma premiação. Desaparecimento Na segunda fase, a tiragem ficou entre 5 mil e 7 mil exemplares. Na fase quinzenal chegou a vender até 3,5 mil exemplares por edição. Bernardo Kucinski considera o Resistência como “um dos mais sugestivos da última fase do ciclo alternativo”. Destaca o caráter editorial do jornal, que cobrira com “autonomia jornalística todos os campos normalmente tratados pela imprensa alternativa de base”, como também pelo trabalho das pessoas envolvidas na produção, distribuição e administração do veículo.

Na realidade foram vários os fatores que contribuíram para o desaparecimento do Resistência. O processo de redemocratização permite, lentamente, o alargamento da linha editorial dos veículos da chamada grande imprensa, que passa a dedicar mais espaço às denúncias e violações aos direitos humanos. A permanente dificuldade financeira da SDDH, o trabalho voluntário da maioria dos seus membros, o surgimento dos jornais de partidos ou movimentos como Hora do Povo (MR-8), Voz Operária (PCB), Tribuna da Luta Operária (PC do B) e Em Tempo (PT) vão subtraindo membros do Resistência e da própria SDDH, que passa a viver um esvaziamento progressivo . O grande guarda-chuva das lutas democráticas no Pará perdia espaço na medida em que os sindicatos eram reconquistados, os centros comunitários se organizavam e os partidos de esquerda, embora ainda na clandestinidade, gozavam de relativa margem de liberdade, que viria se consolidar com a Constituição de 1988. Para completar, a família Barbalho lança o jornal Diário do Pará, uma tribuna pública ao candidato e posteriormente governador Jader Barbalho. No período da eleição (1982), aquele jornal abriu espaço aos movimentos sociais. Todos esses fatores, acrescidos da brutal recessão econômica, que debilitava as finanças da SDDH, mais os prejuízos causados pela censura, contribuíram para, junto com as divergências ideológicas, encerrar a participação do Resistência, uma das mais saudáveis experiências da imprensa alternativa no Norte do Brasil.



Ensaio Fotográfico Paulo Santos - Paraense, iniciou na fotografia em 1979 trabalhando para os jornais alternativos "Nanico" e "Resistência” da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, em 1983 começa a trabalhar como freelancer para a agência Ágil fotojornalismo de Brasília. Em 1994 é contratado pelo jornal "O Liberal", trabalhou como freelance para a revista "Veja", "O Estado de São Paulo", "O Globo", Agência Estado, sendo correspondente da AP - Associated Press. Neste ensaio fotográfico da PZZ, Paulo Santos, quando atuava no movimento estudantil revela as manifestações da luta pela meia passagem, Campanha “Pula Roleta” em 1984.

Paulo Santos


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O FIM DA FILOSOFIA H

eidegger converteu a grande metáfora nietzschiana da decadência dos valores e da cultura numa outra metáfora: o ocaso (Untergang), o declínio do ser, que assinala a ascensão da vontade de potência, e, portanto, do senhorio do homem sobre a terra inteira. Nesse senhorio, como relação fecunda a estabelecer-se entre o homem e o mundo pela ação eficaz, baseada no conhecimento experimental da Natur-

eza, que Bacon anteviu em sua Instauratio magna, e que foi uma das metas pedagógicas do humanismo renascentista - nesse mando racional seguro e previsor, tanto sobre os elementos naturais quanto sobre a atividade humana, o qual alcançaria o trabalho, a vida em comum, a utilização dos bens e a criação artística, graças à onímoda providência do governo sábio e justo, com que sonharam as utopias de Morus e de Campanela -, nessa instauratio magna

de forças produtivas jamais vistas, por fim domináveis e controláveis, mediante o cálculo político da ação dirigida à libertação do homem, que o Manifesto comunista de Marx estatuiu, projeta-se a desmedida vontade de potência, como princípio genealógico de nossa época, impressa na prática social e na cultura, sob a forma de continuada carência, avesso de uma realidade pletórica, reproduzindo na “história o declínio que lhe possibilitou a


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ascensão. Sem tentar preencher os claros que Heidegger deixou na genealogia historial do presente - genealogia desenvolvida, de maneira difusa e fragmentária em diversos escritos posteriores a Da essência da verdade -, procuraremos reunir, de maneira coerente, os fastos do expansivo domínio da técnica, da razão calculadora, que determinariam, provocando o mais extremo perigo para o Dasein, o obscurecimento do mundo

(Verdüsterung der Welt): a devastação da terra, a massificação, o exílio ou o apatridismo do homem moderno e a fuga dos deuses. O primeiro risco, a devastação da terra, vem da ameaça que representa a perspectiva de total exploração da Natureza, objeto de domínio enquanto fundo de reserva e instrumento de produção e de consumo. “A Terra e a sua atmosfera convertem-se em matériasprimas. O próprio homem se torna

material humano atrelado a determinados fins” (HW, p. 267). O esquadrinhamento das reservas utensiliares no solo e no subsolo estende-se às paragens, englobadas no imenso aparato necessário para assegurar o ciclo da produção e do consumo, do que Heidegger nos apresenta em A questão da técnica uma imagem exemplar: A central elétrica é instalada no Reno. Ela demanda (stellt) o rio a liberar sua


“Pela reação em cadeia da técnica, a destruição da terra ganha as proporções de incontrolável saqueio da Natureza, que não poupa nem a vida”

pressão hidráulica, que por sua vez demanda o funcionamento das turbinas. Este movimento faz girar a máquina, cujo mecanismo produz a corrente elétrica pela qual o centro regional e a sua rede são destinados aos fins de transmissão. No domínio dessas conseqüências, que se encadeiam a partir da produção de energia elétrica, o Reno aparece como algo. cometido a certo fim (als etwas BestelItes). A central não é construída na corrente do rio como a velha ponte de madeira que durante séculos une uma margem à outra. ];: antes o rio que é emparedado na central (VA, v. 1, p. 15). A paragem correspondente, em torno do rio, torna-se um conjunto paisagístico, incluída no patrimônio local, e administrada, para consumo da vista e do lazer, no circuito da reprodutibilidade indefinida dos bens lucrativos. Pela reação em cadeia da técnica, a destruição da terra ganha as proporções de incontrolável saqueio da Natureza, que não poupa nem a vida , sobre a qual já interfere a Engenharia biológica, nem “as culturas nacionais que se desenvolveram através de um povo com sua paisagem típica”. Mas o saqueio de paragens e de paisagens, proeza do animal de presa nietzschiano, que não pode ser medido apenas em termos ecológicos, atinge a habitação nativa- a Terra, no sentido de lugar das coisas, ou seja, dos entes próximos ou distantes, a nós oferecidos na gratuidade de sua presença, no mundo circundante. “Tudo funciona. Não mais existe Terra (Es funktioniert alles. Das ist kein Erde mehr).” A abstração científica afastou-nos das coisas, desprendeu-nos da Terra 30 nos vôos interplanetários. Aliviando o corpo humano

de seu peso e o espaço de suas dimensões corporais, esses vôos riscam, uma após outra, sobre o vazio, etapas de um percurso exploratório sem caminhos nem horizontes. Enquanto, por meio do controle logístico dos computadores, os astronautas, treinados em estações de condicionamento da conduta, transferem ao etéreo, com o recordismo de suas viagens empresadas, o imperativo do progresso (der Progressionszwang) indefinido, à procura de novas fontes de reserva para investimentos a longuíssimo prazo, o homem se torna um agente da produção e do consumo, uma parcela do ser-em-comum, indiferenciado e onipresente, que recebe agora o nome de “massa”. O homem massificado, anteriormente uma forma da existência imprópria do Dasein, aparece, nessa reflexão de Heidegger, como o homem metafísico, última versão, ainda custodiada pela tradição humanística, do animal racional, que, impotente, assiste à sua


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transformação em animal de carga ou de labor, trabalhando para viver e vivendo para trabalhar. A mediania do cotidiano, descrita na Analítica do Dasein, é, agora, a inteligência instrumental média - a áurea mediocritas da aprendizagem obtida pela transmissão, nos estabelecimentos de ensino ou por meio dos veículos de comunicação de massa, das informações que uniformizam. A esses veículos transfere-se o poderio anônimo da gente. O ideal da paideía, da formação (Bildung) pedagógica, que extirpa o individual em cada homem, substituído por um ou por vários tipos de padrão comportamental suscetíveis de controle, decai para a “mediocridade mansa e mesquinha”, a que se referiu Nietzsche. Saber fazer já não significa a capacidade e

a generosidade advindas de uma elevada superabundância e do domínio das forças, mas do exercício de uma rotina, suscetível de ser aprendida por todos, com algum suor e grande dispêndio de meios (EM, p. 35). Se aqui o tom expressivo de Heidegger mimetiza o idioma filosófico de Nietzsche, a rotina apontada, que conjuga a banalidade do cotidiano ao desempenho estatístico dos grandes números, condicionado a planos, planificações e cálculos, por sua vez requeridos pelo aparato da produção e do consumo, antecipa, como agravamento da errância, a unidimensionalidade do homem . De medida das coisas, de mensurador do ser, segundo a velha sentença de Pro-

tágoras, o homem passou a ser medido pelo trabalho produtivo, sob a regência das leis do mercado, que estabelecem a necessidade do consumo geral de tudo, habilitando cada homem a ingressar na categoria de trabalhador em potencial. Os povos são “exércitos de reserva da produção”, mobilizáveis por empresários, gerentes e trustes. “A vida originária do homem atual é a auto-imposição comum no mercado sem abrigo da compra e venda” (HW, p. 290). Dir-se-ia que Heidegger transfere para uma pauta ontológica os mecanismos da economia de mercado. Assim ele nos diz que: o guarda-florestal, que mede a madeira


abatida, parecendo seguir, como os seus avós, os mesmos caminhos, está hoje, saiba-o ou não, intimado pela indústria madeireira. Ele é cometido à obtenção da celulose, e essa obtenção é, por seu turno, provocada pela necessidade do papel, que é demandado pelos jornais e revistas ilustradas. Estes últimos, por sua vez, provocam a opinião pública a absorver as coisas impressas, para que ela assim possa ser cometida à preparação da opinião de que recebe a “demanda (V A, v. 1, p. 17-8). Essa potência soberana, a economia de mercado, a que se estende a perspectiva do arrazoamento (Gestell), “não somente coloca todo ente como produto no processo de produção (Prozess der Produktion)” (HW, p. 270), não apenas faz de todo ente um objeto suscetível de produzir e de reproduzir-se, mas se objetifica como valor mercantil em todos os entes. Eis, porém, que, “passando à imanência da consciência” (HW, p. 281), a objetificação (Vergegenstãndlichung) também determinaria a concentração do poder político nos chefes carismáticos, destinados a gerir os povos como mãode-obra e as nações como empresas, de acordo com o que demanda o alto crescimento da razão calculadora, que aumenta sempre na proporção de sua usura, isto é; na proporção da premente carência que a produtividade secreta de sua própria abundância. Não haveria pletora senão a do poder necessário para manter a carência. O Estado totalitário nasceria da usura, em que a racionalidade do homem moderno se estiolou. Os condutores (Führer) e os chefes

apresentam-se, nesse quadro, como figuras de dec1ínio, encarnações abastardadas do super-homem. “Os chefes são os obreiros do aparato (Rüstungsarbeiter) que têm o poder de decisão e que supervisionam todos os setores em que a usura (Vernutzung) do ente é resguardada” (V A, v. 1, p. 86). Não seria a usura do capital, mas a usura do ente o que responde pela carência. Porém, descrevendo a usura em sua dimensão ontológica, Heidegger descreve o mundo obscurecido como sistema da economia capitalista. Apesar do seu caráter esquemático e difuso, a genealogia heideggeriana da época, que prolonga a interpretação do pensamento nietzschiano, vale por uma genealogia crítica radical da cultura do Ocidente, em que avulta o fenômeno do poder, seja do ponto de vista da natureza da ciência moderna, seja do ponto de vista propriamente político. Certo é que Heidegger verteu nessa análise, sensível ao aparecimento do Estado totalitário, além da sua experiência deceptiva com o nazismo, os seus compromissos ideológicos marcadamente nacionalistas, que o levaram a perfilhar a idéia de Ernst Jünger da interdependência do totalitarismo e do poder econômico. Mas, por outro lado, a amplitude que conferiu ao poder econômico, indistinto do caráter planetário da técnica, na fase de dec1ínio do ser, seja como exploração, seja como domínio, ao qual se transmite o empenho da razão calculadora, indica uma aproximação à doutrina de Marx, também objeto, como a Filosofia de

“Não se pode realizar a Filosofia senão superando-a, e só se pode superá-la realizando-a”


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Hegel, embora numa escala bem menor, de uma apropriação interpretativa no contexto brumoso da História do ser. A relação da genealogia heideggeriana com a Filosofia de Marx parece evidente na medida em que o desenraizamento do homem, privado da terra, do solo natal (o tema da pátria em Hölderlin), por oposição ao “deserto das regiões industriais” Öde der Industriebezirk)” (GL, p. 15), equipara-se, num paralelo do próprio Heidegger, ao conceito marxista de alienação (Entfrendung), com o qual já corresponde a objetificação da existência no envolvimento da queda 36. “Assim, o que Marx, partindo de Hegel, reconheceu num sentido essencial e de grande importância, como sendo alienação do homem, mergulha suas raízes na ausência de pátria do homem moderno” (UH, p. 98-9). Fazendo a experiência da alienação, acrescenta Heidegger, a concepção marxista “atinge uma dimensão. essencial da História” (UH, p. 98-9). Entretanto essa concordância do fil6sófo do ser com o filósofo da práxis social estabelece-se obliquamente, através das linhas sinuosas da História da Metafísica, da qual tanto Hegel quanto Marx escreveram, antes de Nietzsche, os capítulos mais relevantes, que a conduziram à uma fase epilogal na época do niilismo, o primeiro desenvolvendo o eixo que vai da certeza da consciência de si ao Saber absoluto, e o segundo a representação teórica do homem inerente à Filosofia hegeliana. Para Marx - comenta Heidegger - o ser é processo de produ ção. Tal é a idéia que ele recebe da Metafísica, a partir da interpretação hegeliana da vida como processo. A noção prática de produção não pode ter existência senão a partir de uma concepção do ser oriunda da Metafísica. Assim, depois de aproximar-se de Marx pela idéia de alienação, Heidegger o envolve na trama do ser, uma vez que, como processo de produção,

o ente é um derivado da vontade de potência, dependente da espécie de desvelamento que acontece ou que se essencializa na técnica. A consciência de si, ou melhor, a certeza da consciência de si, princípio do saber incondicionado em Regel, seria a figura precursora e preparatória da absolutização do sujeito, e, por conseqüência, do esquecimento declinante do ser. Em Hegel, porém, a vontade “ainda não aparecera como a vontade de vontade, segundo a realidade que ela própria preparou” (V A, v. 1, p. 68). Só quando isso se dá, na doutrina de Nietzsche, é que a Metafísica alcança sua extrema possibilidade, já virtual ao início fundador em Platão, pois se o primeiro nome da Metafísica é platonismo, o último é niilismo, o momento em que o apatridismo, a alienação, de que a errância constitui sinônimo, alastra-se, à sombra da maior retração, ao planeta como um todo, de onde os deuses desertaram. Por mais duvidosa que possa ser, consideradas as diferenças de concepção que os separam, a influência de Marx sobre Heidegger, o relacionamento entre eles se estreita numa completa e singular adesão daquele ao seu parceiro dialogal, através da perspectiva de redução da Filosofia à Metafísica e da Metafísica ao cerne do pensamento ocidental. Podemos constatar a procedência da observação no caso da dialética de Hegel que Marx reformulou. Heidegger não admite o caráter teórico da dialética; aceita-a, contudo, como verdade da essencialização do ser. O Saber absoluto gerado pelo espírito como querer, como vontade, é tão historicamente verdadeiro quanto a Metafísica, “que pela primeira vez, em Hegel, fez aceder à linguagem, no sistema, sua essência pensada absolutamente” (UH, p. 86’:’7). Essa essência é o processo dialético, que Heidegger não refuta, colocando-o à luz da essencialização historial, no âmbito da verdade do ser, e situando-o, por


conseguinte, em confronto com a diferença. Por outro lado, a dialética é, para Hegel, simplesmente, o método, a especulação, ou seja, “o movimento mais íntimo da subjetividade, a alma do ser, o processo de produção” (WM, p. 260), e, nesse sentido, determinada pela certeza de si do sujeito, que se volve subjectum, pensando-se ou conhecendo-se incondicionalmente como presente, como ens qua ens. Essa certeza impõe a vontade do absoluto (Wi11e des Absoluten) - o trabalho de total realização do conceito e de explicitação do saber, que é, ao mesmo tempo, a parousía, a realidade se manifestando ou se presentificando na consciência, desdobrada reflexivamente entre a consciência do objeto e o “seu saber dessa verdade” (HW, p. 114). Os diversos momentos do reinado total da verdade do espírito, com as determinações particulares que os caracterizam e que estabelecem a mediação da consciência consigo mesma, constituem os fenômenos ou aparências através dos quais a consciência faz a experiência de si, até atingir a essência que lhe é própria, “a natureza do Saber absoluto” (HW, p. 181-3). Tal processo reflexivo da consciência em devir é o movimento dialético. Para a leitura” heideggeriana do prefácio da Fenomenologia do es-

pírito, o fundamento da dialética está no “caráter dialogal da consciência ôntico-ontológica, que deixa expor-se o tético de seu representar. . .” (HW, p. 169). O traspasse da tese e da antítese funda-se no que aparece no ente de que a consciência (Bewusst-sem) é o saber manifestante (erscheinende Wissen), em seu processo de produção. “A dialética”, acrescenta Heidegger em Hegel e os gregos (Hegel und die Griechen), “é o processo de produção da subjetividade do sujeito absoluto, e como tal a sua ‘ação necessária’” (WM, p. 258). Essa “ação necessária” é, acrescente-se, reclamada pela transformação do ser na época moderna. A dialética ingressa no processo real e o perfaz, trazendo a Filosofia, tornada História mundial, para as vésperas de seu acabamento (Verendung). A interpretação heideggeriana de Hegel, portanto, faz passar a dialética ao plano da necessidade histórica, parte que ela é da História da verdade do ser, de que Nietzsche escreveria o último capítulo - último porque, ao ser escrito, já se iniciara a época de acabamento da Metafísica. E se a Metafísica é Filosofia, o acabamento da ciência primeira, cujos signos são os do niilismo, do obscurecimento do mundo, é também o fim do saber filosófico. Entretanto esse acabamento é igualmente uma realização (Vollendung), na acepção hegeliana do

termo, posto que a Filosofia está efetivada na totalidade do mundo histórico ao chegar ao seu fim. Honrando o tema terminal do idealismo germânico - o fim da Filosofia - com que o sistema de Hegel celebrou o seu triunfo sobre a realidade, enfim absorvida na razão feita história, e na História universal convertida na vida do espírito - celebração que preludiava, entretanto, o vibrante réquiem alemão para a Filosofia que Marx entoou ao oficiar as solenes exéquias do Saber absoluto -, Heidegger uniu-se, ao mesmo tempo, a esses dois pensadores. “Não se pode realizar a Filosofia senão superando-a, e só se pode superála realizando-a”, disse Marx em sua Critica à Filosofia do Direito de Hegel. Heidegger acrescentou uma coda ao tema resolutivo da sinfonia hegeliana reorquestrada por Marx. “O fim da Filosofia significa: o começo da civilização mundial baseada sobre o pensamento ocidental europeu” (ZSD, p. 65). Mas a civilização mundial, acrescentaríamos, significa o domínio planetário da técnica - e, com esse domínio, a Filosofia consuma-se, realizada nas ciências empíricas, nos projetos interdisciplinares, na Logística, na Psicologia, na Psicanálise, na Sociologia e na Cibernética, que floresceram do e sobre o fenecido


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tronco do saber filosófico em sua derradeira primavera. “O fim da Filosofia é o lugar, é aquilo em que se reúne o todo de sua história, em sua extrema possibilidade. Fim como acabamento quer dizer esta reunião” (ZSD, p. 63). Mas que lugar seria esse senão o sistema do mundo atual? Entretanto, como o sistema do mundo apenas ensombrece a clareira onde o Dasein se encontra, sempre a derradeira primavera da Filosofia pode anunciar o verão de um novo modo de pensar, de um novo começo do pensamento, na expectativa do qual se empenha a prática meditante de Heidegger, no intervalo da viragem - de um modo de pensar que seja, ao mesmo tempo, uma transformação (Wandlung) do pensamento e da relação do homem com o ser. É à busca dessa dupla transformação que a Hermenêutica heideggeriana, a qual não quer ou não pode mais chamar-se de reflexão filosófica, e que se autodenomina topologia do ser, aproxima-se dos poetas e dos artistas tanto quanto dos pré-socráticos. As obras de arte em geral serão os lugares (tópoi) privilegiados da essencialização da verdade.

Benedito Nunes - Filósofo “Passagem para o poético” Filosofia e Poesia em Heidegger

FOTO: Márcio Monteiro


EntreVista

FOTO: Sérgio Boi

PP Condurú


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À LUZ DO SOL

30 ANOS DE PP CONDURÚ

Desenhista, pintor, designer gráfico, litografista, artista plástico, multimídia, videomaker, performacer, escultor, faz tudo o que tem vontade, o que lhe der na telha.

Esse projeto começou depois de uma Mostra que eu fiz em 2003 “Amazônia é Minha”. Naquela época eu estava trabalhando muito com artes gráficas, fazendo cinema, várias experiências no computador e eu estava meio longe de público e do alunato. Quando fiz essa exposição, professores, alunos de universidades, nem tinham ouvido falar em mim. Isso me chocou um pouco, porque eu estou na estrada um tempão. E alguns professores que me conhecem me solicitavam alguns materiais, folder, catálogo, qualquer coisa para utilizarem em aula . Então eu resolvi fazer um Projeto, dedicado para as bibliotecas e salas de aula, para o lado acadêmico mas como meu trabalho não tem academicismo nenhum é tudo autodidata e meio marginal, meio marginal é o cacete, porque a cidade não me aceita como artista, eu sou o artista que não existe. A cidade não me aceita como artista, em Belém eu sou bonito longe, distante, meu quadro é bonito lá distante, mas eu não posso estar por perto, não posso abrir a boca. Então eu não existo e agora que vai ser na Casa das 11 Janelas porque é chique, tradicional, eu começo a existir. Eu sempre expus em lugares alterrnativos, porões, cafés, bares, galerias. Então eu resolvi fazer esse apanhado mais para a sala de aula. E Eu nunca vi meu trabalho em conjunto, porque como eu vivo dele, eu fazia e vendia logo e agora quero ver o conjunto da minha obra. Como até muito tempo atrás algumas pessoas diziam que meu trabalho era muito incoerente, que


a Arte tinha que ter uma coerência, e tem que se aprofundar num único tema Eu achava isso horrível era uma prisão. Eu queria mais era dispirocar mesmo e nisso para mim tinha uma coerência principalmente contra essa engessação da arte, do artista e das artes plásticas.

Nessa garimpagem, histórica e heróica, o que é engraçado, é que a gente foi descobrir que em 80 muitas pessoas que compraram os quadros, estavam casadas e em 90 todos tinham se separado e com isso os quadros se espalharam para vários lugares.

Quando eu fiz 10 anos de trabalho, comecei a notar que tinha toda uma coerência no que eu fazia. E comecei a colocar isso bem claro, agora que eu fiz 30 anos vai aparecer mais claro. Muita gente só me conhece de algumas mostras. Então é essa troca, ver-mos juntos. E está dando um contorno legal porque o governo está assimilando, pintou a Casa das Onze janelas, a exposição vai ter quatro meses e deu uma trabalheira nesses três anos de luta.

Para pintar, eu tinha que aprender a desenhar Para pintar, eu tinha que aprender a desenhar e um pouco antes da “Amazônia é Minha” em 1997-98 eu me senti mais a vontade para pintar. Só que eu começo a pintar neste sentido, com computador, máquina de filmar, foto. Eu luto um pouco pelo trabalho de pintura-pintura, eu forço isso. Como eu trabalho com muito material. Então tu tens que

respeitar cada um. Tu não pode chegar e impor o que tu queres porque se não tu podes te dar mal. Tem que respeitar a tela, respeitar o vídeo, o papel e dessa forma a gente vai fazendo. O que eu falo é que a Arte está dentro da gente. É a expressão do homem. Expressa como tu queres! Não tem que ter mais regra. Tem que ser isso e pronto! Esse negócio de dizer, Ah! O cara não é pintor porque não está sendo coerente, porque o trabalho dele não era assim. Isso é muita chatice. Faz o que der na telha.Está com Vontade de fazer vai lá e faz! Tem muita frescura em torno disso, muito dedo. Teve uma época na década de 90 que curadoria e crítico de Arte era o que havia, artista era mero acontecimento de leve. E agora está tendo um retorno pra eles muito forte,


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porque a gente faz muito arte autoral. Quando eles entram, ficam como participante, não como dono da coisa. 1ª Exposição Nessa época era ditadura braba. O meu pai tinha falecido em 74. Eu comecei a me juntar com o Simões e com o Roberto Santos, irmão do Paulo Santos, eles estudavam na mesma escola que eu. O Roberto desenhava, o Simões pintava. A gente começou a andar juntos, a desenhar, a discutir arte, cinema. E era uma forma de agir de contra a ditadura. Quando eu comecei a pintar foi muita novela. Parei de estudar. Quando meu pai morreu. O reitor deu um emprego para meu irmão que era arrimo de família, um emprego de segurança e informação na Universidade que tinha convênio com o SNI. Eu tinha um cana dentro de casa. E todos os meus amigos eram comunistas eram todos da esquerda, do Bar do Parque, lá onde a arte em Belém se encontrava. Briguei com a família e aí, eu e o Simões fomos morar no Rio de Janeiro, só que lá era mais barra pesada a repressão. Nessa Exposição eu apostava mais no desenho, no traço e saía toda a repressão, toda a minha angústia. Eu era meio paranóico. Saía algumas

coisas e eu apostava no visual, tinha uns desenhos que tinham várias coisas pequeninhas e iam se transformando em grandes. Tinham vários elementos e vários elementos escondidos, como era ditadura, tinha que vir vários elementos camuflados. Suásticas, Frases, Tinha um caráter político. Meu trabalho sempre foi político contra as babaquices vigentes.

Litografia No Rio de Janeiro fiquei num reduto que era o famoso “Parque Lage” e lá era o QG contra a ditadura. O Rubens pegou vários artistas de várias artes, e começou a esconder ali dentro vários artistas, a dar empregos, palestras e meus professores eram vários malucos, era a Lygia Clark, Ferreira Gullar, Roberto Magalhães, Grasso, Coopermam. Nessa época do Rio de Janeiro, foi muito interessante porque eu comecei



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a fazer litografia com o pessoal que era de esquerda. Fazer litografia era um sacrifício porque eu era mais magro, comia uma vez por dia, fumava arizona, tomava muita cachaça e carregar aquelas pedronas, depois colocar na prensa, rodar alavancas, cheirar ácido, ácido para queimar as pedras, acabei adoecendo quase pegando uma tuberculose. Era uma coisa meio medieval porque era o Parque Lage, as oficinas eram no Porão e aquelas pedronas na parede, aqueles instrumentos de tortura, deixava a gente ansioso porque a gente queria estar no outro dia fazendo mais.... Trabalhar com litografia foi muito interessante pra mim e quando eu voltei pra Belém tentei reproduzir algumas técnicas de litografias com outras técnicas, desenhava com goma arábica, pintava tudo de preto igual como era com a litografia e tirava com água. Era tão importante esse lugar que o certificado era válido. Lá estava comigo o Paulo Paes, outro artista plástico, consagrado na década de 80. A gente viveu uma vida de muita arte e muita miséria depois que adoeci tive que vir embora. Quando eu vim embora eu mandei meu material para o Salão Nacional e passsou. O pessoal de Curitiba pediram meu trabalho onde só entravam convidados e achavam que eu era um velhão. mandei a sobra da exposição da “Galeria Um” em 1979, do que eu não tinha vendido e ganhei o prêmio e fui receber, nessa que eu fui receber o prêmio a minha professora de litografia do Par-

uqe Lage também tinha sido convidada e ela achava que ia ganhar prêmio e eu mandei e nem pensei que ia ganhar. Mandei mais pra currículo, quando eu voltei lá levei uns slides da exposição, passei no Parque Lage. Nossa!!!!! Mas depois não tive mais contato com eles, a não ser de passagem. Em 85 já tinha liberado a censura e Belém estava um saco. Fui morar em São Luiz, vi que as pessoas só pintavam casario, ladeira, barquinho, praia, e eu já tinha feito uma exposição aqui “Sensual” e resolvi fazer lá e foi censurado, o Jornal do Sarney me censurou, a Universidade não quis expôr, mas mesmo assim consegui expor.

dos, era tudo experimental, tudo gente louca. Eu só ando com gente assim, gente importada do submundo. Nessa fase “Pra tocar no Rádio” eu odeio essa onda de explicar a arte. Na “Amazônia é Minha” eu reafirmo esse posicionamento, eu faço a pinturapintura, para não ter explicação, olhouolhou, entendeu-entendeu, não gosto da semiótica, pra mim é um caolho, adora se explicar. Cegos para quê? Essa é uma pergunta que eu faço para os meus clientes que perguntam sobre o quê que significa isso?...

Artes Plásticas e Poesia

Vídeo Experiência

Artes Plásticas e Poesia é tudo haver. Sempre trabalhei com eles. Teve uma fase “Pra tocar no Rádio” que era letra e música, justamente pra quebrar o vínculo da arte burguesa que era só pra quem tinha grana, que em galeria só entrava rico. Nessa exposição eu tinha imagem e tinha música, brincava como se a imagem fosse a letra e o desenho, a música. Sempre nas minhas exposições a música e os músicos se fizeram presentes. Essa fase era letra e música e eu andava com muitos músicos e poetas. Já fiz parcerias com o Max Martins, Vicente Cecim, Antonio Moura, João Gomes, Age de Carvalho. Em São Paulo eu andava com um grupo Kumbainidada, dada de dadaísmo, eram 3 a 4 pessoas que utilizavam, iguais a mim, os materiais mais inusita-

Eu peguei um livro de uma fotógrafa que eu não lembro do nome dela agora. Era um livro da década de 50 sobre os Yanomamis num ritual de beberagem. Eu peguei essas fotos da aldeia e fiz um filme de animação, fazia o pessoal piscar, coloquei música, e depois fiz um remendo umas adaptações, umas interferências. Artes visuais O que mexe com o olho. O que tiver relacionado com o olhar me interessa. Eu já tentei várias vezes ministrar aulas para cego porque é uma forma de agradecer de eu enxergar, bolei alguns métodos de ensino. Eu acredito que tudo parte do Olho.


Amazônia é minha O nome dessa exposição intriga. É uma brincadeira com o trabalho do Henrique Rousseau que era um pintor primitivista. Ele era da época do Picasso, o pessoal gostava dele, do trabalho dele, mesmo ele sendo pobre, do subúrbio, iam pra casa dele e faziam muita farra. Ele fazia do Jardim de sua casa umas florestas que ele pintava e eu resolvi fazer o contrário, pegar a floresta e fazer dela o meu Jardim. E colocar o nome de Amazônia é Minha, para tirar sarro, porque todo mundo se apropria da Amazônia.



Contos

Pedro Vianna

Era uma voz inesperada. Uma voz há pouco esquecida num canto qualquer do passado aquela que vazava como sangue pelos buracos do telefone. Ainda entorpecido pelo sono, chegou a pensar que fosse sonho aquela voz agora reconhecida: era ela, cuspindo palavras como pedras. Palavras num ritmo frenético, descompassado. Palavras como pequenos pássaros esmagados pelo sono. Parecia desesperada. Na certa aprontara uma das suas e não tinha outro otário para recorrer à essa hora. As palavras se perdiam e tudo que pode anotar foi um endereço: Campos Sales esquina com General Gurjão. Tentou virar pro lado e voltar a dormir. Voltar ao mundo do sono e do esquecimento onde ela não mais existia. Não. Não havia mais espaço para ela em sua vida. Não. Não devia pensar em nada. Mas aquela ligação. Às 3 da manhã depois de 6 meses sem noticias, sem seus olhos indecifráveis rondado a sala. Seis meses desde o dia em que ela lhe deu às costas num bar fedorento e sumiu. Não. Não. Era melhor esquecer. Voltar a dormir. Ela que se fodessse com seus problemas. Ela sempre

só lhe trouxe problemas, problemas, problemas. Não. Não. Do tempo que passaram juntos quase nada restava: um livro nunca lido de Borges com uma dedicatória estranha: ”`A ti, que não compreendes a tessitura efêmera da eternidade, a lâmina impiedosa rasgando a carne do sentidos”; e uma cicatriz indelével de uma mordida nas costas. Uma cicatriz que agora voltava a pulsar como um organismo autônomo instalado em seu corpo. Voltou a ler o endereço. O que faria ali, em plena zona? teria virado puta? ou só estava novamente perdida? novamente buscando uma vida a qual pudesse se agarrar como um parasita? Vindo dela tudo podia ser. Não. Melhor esquecer. Sim, dormir, dormir. Era perda de tempo. Ela sempre fora fluída. Sempre em fuga. Jamais seria domesticada. Era essa sua natureza: viver em fuga como um bicho afugentado. Mesmo nas horas em que estavam sozinhos no quarto ela conseguia fugir. Fugia para dentro de si e nada era capaz de trazê-la de volta, como se ela pairasse acima de tudo numa realidade paralela. Numa

realidade onírica, pessoal, intransponível. Tentou de todas as formas traze-la para seu mundo. Puxa-la a força para o chão. Guarda-la para si. Tentou de tudo: apresentou-lhe os amigos, levou-lhe a lugares inusitados, deu-lhe presentes, deu-se, doou-se, danou-se. Mas era inútil. Não havia o que lhe bastasse. Era como se ela ansiasse por algo intimo e imperscrutável. Algo além das coisas e dos seres. Era como uma sede insaciável. Sede do infinito. A sede dos náufragos e dos viajantes sem destino, e nada podia aplacá-la. Somente nas horas que trepavam ela deixava que algo escapasse. Algo ínfimo. Contorcia-se de prazer e o apertava forte. Rasgava-lhe as costas como se o quisesse inteiro dentro de si. E talvez fosse esse seu único intuito: queria absorvê-lo, consumilo em seu fogo secreto. Não. Não. Ela jamais se entregaria. Ela sequer tinha um nome. Seu nome era seu corpo. Aquele corpo que o esperava na esquina da Campos Sales com General Gurjão. Aquele corpo indecifrável, que um dia carregara em desenfreada fuga uma parte de sua alma. O telefone voltou a tocar...


Galeria PZZ - Esher



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