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Três vivas

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Asfalto

Asfalto

Textos de Ines Bhs Ilustrado por Cláudia Freire

PARA INÊS DE CASTRO

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Muito muito distante havia eu, coberta de muitos tecidos vinhos e aveludados, e vários e várias beijavam minha mão, se ajoelhavam e pediam a benção e eu nunca entendi o porquê disso. Só se ajoelhavam, tentavam encontrar meu olhar, mas eu não olhava, fingia olhar minhas unhas ou o meu cachorro que estava sempre no meu colo. Nem por isso eu era uma bitch, era só que Pedro me amava mais. Chegaram com uma e falaram, Pedro, essa é pra você. Pedro diz, não quero, quero aquela ali. Ela é mais interessante, parece saber falar; com muito sol consigo ver seu contorno e seus passos, o jeito que ela se mexe. Era eu, a morta, a mulher invisível, a que ninguém via. Mas também ninguém se via. Pedro me via. Pedro foi pra guerra e nunca me esqueceu. Tenho certeza que foi só fazer política e comer outros tipos de frutos do mar, mas ainda assim nunca me esqueceu. Pedro colocou maiúsculas em todos os lugares do meu nome. E em todos os lugares da cidade em que existia o meu nome, e em todas as bebês que nasceram depois da minha morte, todas eram obrigadas a ter maiúsculas na primeira letra do nome. E Pedro nunca me esqueceu. E eu nunca esqueci Pedro. Fiquei vagando como um fantasma atrás de Pedro, o príncipe que não vi virar rei. Será que Pedro foi um belo rei, um rei correto? Não sei, porque me mataram antes de eu saber. Me mataram antes inclusive de Pedro comer meu cu. A maior sacanagem dessa história. Pedro na verdade ficou puto por causa disso. E porque me amava também, claro. Pedro, venho do reino dos mortos te dizer que, concordo, puta sacanagem, a gente tinha acabado de se casar e você viu nos meus olhos antes de partir o meu medo, você viu que eu não me sentia segura com os seus militares, que eu não queria ficar naquele palácio como uma polonesa imigrante sozinha em um navio bem grande, não queria ter só a companhia do meu cachorrinho. Quando vieram beijar a minha mão o povo chorava, se cagava, mijava, alguns até fingiam umas doenças sérias. Mas quando vieram beijar a minha mão, eu não era mais uma pessoa, quer dizer, era, mas não tinha alma, estava morta, mortinha. Me envenenaram da forma mais ordinária possível, colocaram arsênico no meu vinho, no meu champanhe, no meu cupcake, na minha goiaba matinal. Eu caí dura super rápido, avisaram Pedro e ele veio correndo e chorando, correndo e chorando, correndo e chorando, Pedro chorava tanto que até seu cavalo chorava junto, todos os soldados choravam também, sabiam que o bicho ia pegar, que todo mundo ia morrer, que ia ser da hora ver tanta matança mas que muita gente querida ia morrer também.

PENÉLOPE SIFILÍTICA

Quando você foi embora eu fiquei tão triste que parei de falar. Achei, no começo, que tinha perdido a voz. Mas aos poucos percebi que só não tinha vontade de falar mesmo. Comecei a me observar e entendi que tinha músculos na minha cara que não queriam mais se mexer, estavam paralisados, cansados, desolados, que nem eu. Um dia eu pedi a um dos pretendentes que me ajudasse com essa paralisia facial e juntos tivemos uma boa ideia. Eu falei pra ele: “Acho que o que eu preciso é que os meus músculos perto da boca se movam com mais frequência. Eles doem toda vez que eu tento abrir a boca. De repente se você de alguma forma conseguir tocar, tipo, os meus músculos,

algo pode acontecer. Fico imaginando que a minha saliva, em contato com você, pode ajudar a movi mentar a corrente sanguínea desses músculos em volta aqui da minha boca e a tensão passe e eu consiga voltar a falar pelo menos um ‘bom dia’, ‘boa noite’. Então funcionaria assim, qualquer parte do seu corpo, dentro da minha boca por um tempo, sei lá, não precisa ser nada demais, talvez a sua mão inteira, os dedos todos do pé? Ou até uma parte do seu joelho, dentro da minha boca, pode funcionar”. E aí acabou que testamos várias vezes, com várias partes, e no fim foi uma ótima ideia e com o tempo eu voltei a falar ‘bom dia’ e ‘boa noite’ pra toda aquela gente que eu via. E aí toda essa gente ficava por perto porque sabiam que eles é que poderiam ajudar quando tudo ficasse tenso. Porque às vezes isso acontecia mesmo, o meu peito se fechava, a dor da distância cavava fundo no meu peito, e ali criava uma crosta de tensão e tristeza que só aquele contato da pele do corpo com a saliva da boca podia desfazer. E essa foi a primeira parte, o primeiro ano.

JULIETA ESTÁ MELHOR

Porque todas as palavras ainda não foram colocadas juntas, é que ainda se tem vontade de viver. Te perguntei um dia, se eu morresse, você choraria? Quando, se um dia você desaparecer, um peso vai sair de cima de mim. Pensando agora, foi até bom que morremos juntos, naquele momento. Seria traumático e complicado pra mim conviver com as boas memórias que teríamos em um dia ensolarado na praia, caminhando por uma trilha de mata fechada, um silêncio e o suor na sua camiseta. Aquilo seria a morte de verdade. Morrer envenenada, sem querer, uma falta de sorte transformada em tragédia, prefiro. A dor, quando se distancia, nos parece desejável. Quando você era vivo, eu queria me jogar em cima de você, pensando que você era um buraco, e eu já apenas uma morta. Quando você era vivo, era muito difícil não pensar que se no meio da minha caminhada matinal você aparece é porque no meio da sua caminhada matinal eu apareci, e se eu apareci pra você, você pensou com força e apareceu para mim, e assim no meio da minha caminhada eu sentia meu coração bater bem no meio do meu clítoris, sem previsão de parada, sendo controlada por algo distante e inominável, a força da minha imaginação. Mas você não estava passeando e pensando em mim, estava deitado sobre meu corpo falsamente gelado, chorava, tinha apenas a idade de um adolescente, era um idiota apaixonado, e eu uma besta ingênua.

Quando acordei você tinha se matado e eu dei graças a deus.

Alucinações reais

Texto de Marina Mole Ilustrado por Beatriz Pires

o mundo não passa de uma sensação como a frequência grave da onça se nos tornássemos luminosos o amor sagrado de fêmea oferecida às águas nos atingiria chamaríamos o vento pelo nome feito Mario Mercier Peregrino do Absoluto mas no seu corpo de abandono diluí meu espírito infernal mistério feito de branco preto e vermelho paixão vulgar oferenda humana as rotações da Terra nos fizeram amantes telúricos do perpétuo devir seguimos como entidades errantes corpos astrais potência cósmica do amor mágico fluímos no derramamento de raios senhor dos abismos minha visão incendiária do desejo gênios-serpentes da água da chuva entoa o teu mantra noturno

bebendo tempestade em pequenos copos de plástico como aqueles emissários de pílulas desbaratinantes nos hospícios endossos silenciosos quando minha pele está coberta de eletricidade e a profecia se torna real ela me pisca os olhos ferruginosos [estou com você quando quebrar os portões me convide estouraremos as vitrines de notícias falsas entregaremos textos do piva na saída do metrô anhangabaú esperaremos pela hora cósmica & entoaremos

ligue-se, sintonize-se, drop out]

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