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A ânsia de propriedade
from Revisa USO #2
by revistauso
Texto de Sendras Berloni Ilustrado por Léo Daruma
Se conto com que pés abri a cova do meu estilo, diante da qual me tenho aqui, agora e hoje, não me creem. O estilo é o fim da criatura e o início da posteridade; aquele destinado ao que é grande e soberbo vai morrer no estilo, e vai feliz. Conto apenas porque o meu estilo, o que me torna diferente dos outros, é particular; e é particular porque não é. O meu estilo, buraco na alma que visto para estar aqui, boca de terra no chão da terra de mim mesmo, é o mesmo que o de todos aqui. Todos nós possuímos o mesmo estilo, seco e áspero das almas nobres que partiram cedo. Deus quer os bons perto de si, dizia o poeta sobre o seu amigo, para consolar-se da sua morte antecipada. Mas o amigo tinha se matado! E esse deus era muito pequeno se terceirizava assim o seu desejo – queria perto os bons, mas esses que tratassem de pagar eles mesmos a passagem! Boa sorte aos que não têm dois trocados de coragem para fazer a travessia. Que seja. Eu e nós não somos desses. Nosso senso de humor é outro, e estamos bastante satisfeitos em permanecer aqui, os pés juntos, se desfazendo aos poucos, cada qual no buraco do seu próprio estilo de estar, de se deitar e aconchegar as costelas e as vértebras, dispostas ao tocador de xilofone universal, com as suas baquetinhas.
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Alguns, como esse deus de que a história dá notícia, têm a ânsia de propriedade; querem ter tudo. Isso não se vê só com o dinheiro, e além do mais a ânsia de propriedade, com relação ao dinheiro, é burra: desce do impulso das coisas imediatas um segundo e vê que o dinheiro é, por excelência, a única coisa sobre a qual não se pode estabelecer propriedade. O dinheiro, se for guardado como propriedade, não serve para nada, e só tem uso se for gasto; só se pode tê-lo não o tendo, e tendo outras coisas em seu lugar. Aqueles que têm a ânsia de propriedade sobre o dinheiro não o gastam, e assim sendo, não acumulam propriedade. Puro e simples.
Não, a mania da ânsia de propriedade diz respeito ao desejo de querer alargar as baías de si mesmo sobre tudo. Ela se percebe no olhar, e na maneira como quem sofre dessa patologia usa a língua de todo dia. Uma vez, na praia, vi um sujeito assim; nós, que estamos assim, não temos nada, mas temos memória: só posso contar o que vi. A praia, além do mais, é o local onde a ânsia de propriedade se manifesta com mais agudez, e mesmo naqueles espíritos que a trazem latente é na praia, mais que em qualquer outra parte, que ela reclama seu lugar. Nem bem eu me sentei na minha cadeira, certo dia na praia, avistei esse sujeito; era
branco, e estava ajoelhado, diante de um homem grande e negro. A esposa e a filha do segundo homem afastaram-se, incomodadas com a presença constrangedora e desinibida daquele sujeito, que se aproximara e se ajoelhara diante do pai de família. De camarote, assisti ao espetáculo da ânsia de propriedade, em primeira mão. Pude ouvir apenas alguns pedaços da conversa, entre o bater das ondas, mas foi o bastante para montá-la inteira e apreciá-la. Com efeito, vinha o sujeito pedir ao outro que o reconhecesse como sócio em uma proposta qualquer de negócios. De joelhos, com as mãos nas coxas do outro, rogava, explicava as vantagens financeiras da sociedade, dava conta de alguns detalhes e chutava de lance em lance o capital inicial necessário e as taxas de distribuição dos dividendos que a oportunidade prometia. Tudo em vão; o homem, sentado na sua cadeira de frente para o mar, desviava o olhar e desconversava, visivelmente impaciente, mas mantendo a compostura – possivelmente desconfortável, ainda, com a evidente insinuação sexual, involuntária quero crer, que a escultura de composição do par fazia ali, no meio da tarde, na praia pública.
Escutei, então, como de presente, entre os barulhos habituais da festa humana do fim de semana, o pedido de ajuda, claro, cristalino: “me ajuda”, que o homem branco ajoelhado proferiu, antes de desistir da empresa e retomar o seu lugar solitário debaixo do seu guarda-sol, cigarro na boca, desolado. A esposa e a filha retornaram, rindo do caso; o pai de família, consternado, tentava disfarçar, mas pediu a conta da barraca e tirou as duas dali, sumindo na multidão.
Era a ânsia de propriedade! O resto da tarde observei de canto de olho o sujeito que a ânsia carcomia, inconformado. Há muitos como ele, e na praia eles proliferam. O sujeito compra uma casa na praia, e logo crê que a praia é sua; caminha pela praia como se caminhasse pelo seu salão particular, divisa os outros como intrusos ou sócios em potencial. Para o sujeito acometido pela ânsia de propriedade, tudo é ou isso ou aquilo: ou um negócio, ou uma invasão. Pouco antes, ainda durante a cena deplorável, posso jurar que o escutei dizer ao outro, com os joelhos enfiados na areia: “reconheça-me como seu senhor!”; e logo um humilhante “por favor...!”.
O sujeito compra uma casa na praia como se ali desembar casse de uma caravela, e sofre da ânsia de propriedade... O canto da praia é o “meu” canto; a barraca onde ele vai beber e passar os domingos é a “minha” barraca; o mar, quando
está bom, é o “meu” mar. Até do trabalho, fruto amargo da árvore de existir – mas não será a existência o fruto amargo da árvore de trabalhar?; me perco, é tudo amargo... Até do trabalho alheio se apropriam: a cozinheira faz uma lasanha, é a “minha” lasanha”; a empregada limpa o banheiro, é a “minha” mania de limpeza. Assim, estendido, esticado, ele divisa nos limites do continente o seu limite, e sofre, sem saber.
— É verdade – disse alguém que me escutava, sem eu saber – Conheci uma mulher que tinha isso. Ela também queria os bons perto de si. Ficou profundamente abalada quando, certa vez, um funcionário seu, de conduta moral exemplar, ilibado, que ia pelo mundo com a honestidade estampada na testa, morreu, e pior – por negligência. A mulher repetia, no dia do enterro, ao qual não pôde ir por conta de outras obrigações, “o que será de mim sem o meu Eusébio?”. O rapaz se chamava Eusébio. Morreu cedo, e era bom.
Disse isso e se calou para sempre. O silêncio fez corpo, ou melhor dizendo, faz, fez e fará. Aqui tudo acontece de uma vez e tudo o que se dá num instante se dá também para sempre; além do quê, não há um “aqui” propriamente dito: toda parte é tudo e tudo é cada parte. No extremo infinito em que os opostos convergem perdi o fio da meada que vinha costurando, e também fiz do meu estar no tempo o silêncio que senti que devia ao pobre Eusébio, morto e bom.
— Conheço outra mania, muito mais interessante. Uma doença incrível, que a pessoa sente não em si, mas nas coisas, e que além do mais não é uma doença real, mas um mal-estar imaginário. – Isso foi o que disse um outro vizinho, abrindo os olhos que já não tinha e estalando os ossos que logo não teria mais, rompendo o silêncio que queria nos meter outra vez em melancolia. Assim se passa o tempo aqui, à volta da fogueira fria dos nossos anos deitados, cada um querendo vencer o outro, provar a todos que a sua cova lhe faz maior merecedor das atenções dos demais. Atenções essas que damos só por fingir, pois o que tínhamos de ouvidos também já há muito tempo a terra comeu, digeriu e regurgitou na forma de novas orelhas, penduradas nas cabeças de tudo.
— Uma doença muito mais interessante – continuou a voz que havia se antecipado, tendo escutado o nosso diálogo sobre a ânsia de propriedade – Essa doença das coisas, que nem as coisas nem as pessoas têm, realmente possui uma manifestação muito evidente, que leva por nome a hipocondria veicular: trata-se do mal que sente o sujeito quando pensa que tudo o que vai mal vai mal com o seu veículo. Em geral, os principais acometidos são os carros, também os populares, mas especialmente os carros de colecionador. Em casos extremos o sujeito tem a hipocondria veicular também em carros alugados, mas são poucos os relatos
dessa variação absurda; a hipocondria veicular é, em geral, coextensa a isso que foi chamado aqui de ânsia de propriedade – nome do qual, devo dizer, discordo; “angústia” ficaria muito melhor, visto que se trata, em verdade, de um mal-estar não nomeado, e para o qual a propriedade não é mais que uma resposta paliativa, um nome provisório. Seja como for, a hipocondria veicular pode até ser um caso, um caso muito particular, da angústia ou ânsia de propriedade, mas certamente é o seu caso mais interessante. Uma vez vi um homem que sofria silenciosamente, insuspeitadamente, da hipocondria veicular.
Eu estava em um posto de gasolina. Os postos de gasolina são os locais privilegiados de foco dessa bactéria alucinatória que é a hipocondria veicular. Esperava o frentista calibrar os meus pneus, quando ouvi um rapaz jovem, bonito e bem penteado que confessava ao outro frentista o motivo da visita apressada que fazia à estação de abastecimento: acontece que estava acostumado a rodar 500 quilômetros com o tanque cheio, e da última vez que abastecera tinha conseguido rodar apenas 300. Naturalmente, achou que o tanque estava vazando, e correu com tudo o que tinha para levar o mais rápido possível o carro à checagem. Vejam só como se manifesta a hipocondria veicular: o sujeito não levou o carro ao mecânico. Não. Levou ao posto, onde sabe-se perfeitamente que, mesmo que fosse real o vazamento no tanque, não haveria possibilidade alguma de diagnóstico, quanto menos de reparo. Mas à alma atormentada pela hipocondria veicular não importa a verossimilhança da cura – na verdade, ela tem muito medo dos mecânicos, desconfia da sua sabedoria prática e do seu conhecimento hermético, capazes de desmentir a hipocondria em duas voltas de chave. O frentista ouviu em silenciosa cumplicidade o relato apreensivo do moço, dono de uma joia de cadilaque placa-preta, cromado, blindado, feliz, e terminou por dispensá-lo de tanque cheio e consciência lavada. Comentei com o meu frentista o caso: o cara rodava 500 quilômetros com a gasolina a três reais; com a gasolina a cinco, roda 300. Pura regra de três, aritmética besta. O frentista sorriu, terminou de calibrar os pneus e foi fazer o que tinha que fazer, não sei o quê, nem o porquê. Nunca me esqueci do rapaz do cadilaque e do episódio mais evidente de hipo condria veicular que já tive o prazer de presenciar. Agora me digam, é ou não é uma variação interessantíssima, essa, disso sobre o quê vocês falavam, que já não me lembro mais o que era?
Não houve resposta, e a voz, contrariada, outra vez silenciou. De minha parte, até fui simpático à história da hipocondria, mas manda o bom senso entre ossadas experimentadas que tem mais razão o silêncio que o entusiasmo, e paguei a interrupção eu também com o pouco caso que trazia no bolso calcificado do tédio.
– Posso contar uma também? – precipitou-se o coveiro, que por ali passava. Gostamos de conversar com o coveiro, é nosso manicure de estimação. Deixamos que ele se sentasse sobre uma das lajes e torcesse um cigarro, afim de descansar um pouco da vida na companhia festiva dos mortos.
— De todos os males (e não foram poucos) – começou o amigo coveiro – que eu já encontrei nessa vida curta, sanguínea, que empreendo com firmeza desde que fui expulso do conforto de ainda não ser nada, com certeza o que mais me chamou a atenção foi um caso que vi certa vez de uma patologia rara, mas incrível, à qual um doutor amigo meu chamou, quando lhe relatei o caso, de “decoro fúnebre”.
Consiste no seguinte: não tendo morrido, mas já muito velha ou doente para reclamar propriedade sobre si mesma, a pessoa é tida por falecida, e é enterrada. No velório, constrange-se a tal ponto, vendo toda a gente que está ali para amá-la uma última vez, que não é capaz de reunir forças para erguer-se e dizer “estou aqui, estou vivo”; faz-se de morta, para não atrapalhar o dia de semana que lhes reservaram a família e os amigos, e é enterrada num alegre decoro, que se chama o decoro fúnebre. Este mal, que é querer sempre o bem de todos, acomete apenas pessoas de índole bem-comportada, pessoas que não interrompem o jantar para pedir que lhe passem o sal, para não incomodar a conversa dos outros. Uma vez enterrei uma senhora assim. Tendo fechado o caixão antes de baixá-la na cova, senti no cangote uma última piscadela que ela me lançava, em segredo. Aceitei o papel de cúmplice, um pouco por respeito à falsa defunta, migalha de compaixão com que me pedia um último filamento de autonomia, outro pouco por não querer causar mais desconforto à família já resignadamente consternada, e segui com o procedimento tal qual mandam as escrituras.
Isso foi o que disse o coveiro, e depois também ele se calou. Um farelo de monotonia caía suave, sobre as lápides.
Não acredito em alma; nem eu, nem ninguém. Pergunte a qualquer morto se ele crê em espíritos: ele dirá que não, e com veemência. Não posso, nem por isso, deixar de notar a cócega que o episódio do coveiro me provocou nas ideias, e ainda mais a mim, que sou só ideia – uma ideia pouca, e ademais pouco original, mas uma ideia. É pobre a alma do nosso coveiro, e solitária a sua existência: senta, fuma e fala sozinho nas tardes longas que lhe reservou o caminho torto das coisas, quando ninguém morre para visitá-lo.
El arte de ganar y perder A arte de ganhar e perder
Textos de Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) Tradução de João Mostazo Ilustrado por Ana Helena Pompeo
LO IMPOSIBLE
Quisiera incluir en mis poemas las pequeñas flores amarillas de la mos taza. La eternidad infinita, un rasgo apenas, como hace William Carlos Williams. Bueno, quiero decir, incluir todo. No sólo la furia y las tormentas y los rayos. Los hierros de Ogún y el sexo desenfrenado con mujeres ansiosas. La ternura que invade el mundo con tibieza. El suave rasgar de este lápiz sobre el papel, el leve rumor de la televisión que oigo a lo lejos. Preparo un té en la cocina. Escribo un poema leve que se disuelve mientras una partícula atómica viaja en una millonésima de segundo de un extremo a otro de la galaxia. Y de este modo lo imposible es el misterio. Las flores amarillas de la mostaza siguen su vida equilibrada y fructífera en el jardín.
O IMPOSSÍVEL
Queria incluir nos meus poemas as pequenas flores amarelas da mostarda. A eternidade infinita, um instante apenas, como faz William Carlos Williams. Bom, quero dizer, incluir tudo. Não só a fúria e as tempestades e os raios. Os ferros de Ogum e o sexo desenfreado com mulheres ansiosas. A ternura que invade o mundo com fragilidade. O risco suave deste lápis sobre o papel, o leve rumor da televisão que escuto ao longe. Preparo um chá na cozinha. Escrevo um poema leve que se dissolve enquanto uma partícula atômica viaja em um milésimo de segundo de um extremo a outro da galáxia. E deste modo o impossível é o mistério. As flores amarelas da mostarda seguem sua vida equilibrada e florescem no jardim.
AUNQUE NO TENGO PRISA
Miro a través de la ventana. Llueve y siento frío y humedad. El desasosiego crece mientras esta señora parlotea sobre sus vecinos enfermos. Estafilococos dorados. Su marido la dejó viuda hace poco, murió en el quirófano. Paro cardíaco. Las tres vecinas que han muerto recientemente (con todos los detalles morbosos) y el agua contaminada, los huevos, los embutidos de pésima calidad. Salmonelosis. Es una secuencia incesante de desgracias. Malicia, suciedad tropical, médicos que no saben qué hacer. La miro bien. Pienso en lo que podríamos intentar en una cama. Si se callara un poco. Abro la ventana y entra una ráfaga de aire y de lluvia. Todo se repite una y otra vez. Me voy, aunque no tengo prisa. Ya esta tarde no hay nada que hacer. Y camino bajo la lluvia mientras pienso qué trágicos. ¿Por qué? No entiendo.
AINDA QUE NÃO TENHA PRESSA
Olho pela janela. Chove e sinto frio e umidade. O desassossego cresce enquanto esta senhora tagarela sobre seus vizinhos doentes. Estafilococos dourados. Enviuvou há pouco tempo, o marido morreu na sala de cirurgia. Parada cardíaca. As três vizinhas morre ram recentemente (com todos os detalhes mórbidos) e a água contaminada, os ovos, os embutidos de péssima qualidade. Salmonela. É uma sequência incessante de desgraças. Malícia, sujeira tropical, médicos que não sabem o que fazer. Olho bem pra ela. Penso no que a gente podia fazer na cama. Se ela se calasse um pouco. Abro a janela e entra uma rajada de ar e de chuva. Tudo se repete, uma e outra vez. Vou embora, ainda que não tenha pressa. Já esta tarde não tem nada pra fazer. E caminho sob a chuva enquanto penso que trágicos. Por que? Não entendo.
ESAS EXTRAÑAS LUCES
Hacer algo inútil. Algo que no sirva para nada. Ir en sentido contrario. Perder el tiempo. Tomar una cerveza y un poco de ron. Salir por la noche a la terraza. Mirar al cielo y sacar cuentas. Sí, hace mucho que no veo esas extrañas luces que se mueven a gran velocidad y altura. Y el miedo a que de nuevo se acerquen y entren en la casa.
ESSAS ESTRANHAS LUZES
Fazer algo inútil. Algo que não sirva para nada. Ir no sentido contrário. Perder tempo. Tomar uma cerveja e um pouco de rum. Sair à noite no terraço. Olhar para o céu e acertar as contas. Sim, faz muito tempo que eu não vejo essas estranhas luzes que se movem em alta velocidade, a grandes alturas. E o medo de que elas de novo se aproximem e entrem na casa.
LA SOPRANO
Las pequeñas flores secas de las acacias caen y forman remolinos en el aire. Dentro tienen semillas minúsculas. Diseminan su historia sobre la tierra. Entro al edificio y asciendo una escalera, tres pisos. Oigo a una soprano. Un canto amortiguado tras una puerta apenas entornada. No resisto la tentación y abro con cuidado. Hay cuatro personas sentadas a una mesa, es una audición. Y la soprano, alta, corpulenta, con grandes pechos. Su voz ocupa todo el espacio. Es agradable esa mujer y canta algo hermoso aunque, claro, no sé qué es. Cierro la puerta y sigo en busca del baño. Al fondo del pasillo me han dicho. Mientras orino veo las acacias a través de una ventana y oigo muy lejos a la soprano.
A SOPRANO
As pequenas flores secas das acácias caem e formam redemoinhos no ar. Dentro têm sementes minúsculas. Disseminam sua história sobre a terra. Entro no edifício e subo uma escada, três andares. Ouço uma soprano. Um canto abafado detrás de uma porta apenas entreaberta. Não resisto à tentação e abro com cuidado. Há quatro pessoas sentadas a uma mesa, é uma audição. E a soprano, alta, corpulenta, com grandes peitos. É agradável essa mulher, e canta algo bonito que, claro, não sei o que é. Fecho a porta e sigo em busca do banheiro. No fundo do corredor me disseram. Enquanto urino vejo as acácias pelas janelas e ouço a soprano, de longe.
GENTE MIRANDO AL VACÍO
Me han regalado un libro esta tarde. Una serie de fotos que Walker Evans tomó en La Habana en 1933. Estamos en 2018. Exactamente 85 años. Y nada. Todo sigue igual. O casi. Mendigos, putas, gente mal vestida, edificios cubiertos de moho y suciedad. Gente mirando al vacío. Gente detenida. Gente que no sabe qué pasa. Gente en una esquina, arraigados en una losa de cemento. Se respira con dificultad por la humedad y el calor. Nada. No pasa el tiempo. Vamos a tomar una cerveza me dice el amigo que me regaló el libro. Tomamos una cerveza y hay silencio. Presiento que se despide.
Y así fue. Pasó un año y no supe nada más. Un día lo encontré en la calle. Sucio. Caminaba lentamente, ido del mundo. Le costó recordar mi nombre. Bueno, yo se lo dije. Después me dijeron que sufre Alzheimer y camina por las calles sin rumbo. Vive solo, y se pierde, aluci nado, como esos personajes en las fotos de Walker Evans.
GENTE OLHANDO O VAZIO
Me deram este livro esta tarde. Uma série de fotos que Walker Evans tirou em Havana em 1933. Estamos em 2018. Exatamente 85 anos. E nada. Tudo segue igual. Ou quase. Mendigos, putas, gente mal vestida, edifícios cobertos de mofo e sujeira. Gente olhando o vazio. Gente detida. Gente que não sabe o que se passa. Gente em uma esquina, enraizados num bloco de cimento. Se respira com dificuldade através da umidade e do calor. Nada. O tempo não passa. Vamos tomar uma cerveja me diz o amigo que me deu o livro. Tomamos uma cerveja e faz silêncio. Pressinto que ele se despede.
E assim foi. Passou um ano e eu não soube mais nada. Um dia o encontrei na rua. Sujo. Caminhava lentamente, fora do mundo. Custou para lembrar meu nome. Bom, eu disse a ele. Depois me disseram que está com Alzheimer e caminha pelas ruas sem rumo. Vive sozinho, e se perde, alucinado, como esses personagens nas fotos de Walker Evans.
FEROZ
Todo podría seguir en línea recta y ser aburrido y repetitivo día tras días. Pero la impermanencia es lo único constante. La ferocidad irrumpe como el vértigo y trastorna el suave olor de tu piel. Y yo feroz, como un potro joven. Feroz como si todo se destrozara en un minuto. Cristales, el fuego, una piedra, algo más que se rompe, no sé.
FEROZ
Tudo podia seguir em linha reta e ser entediante e repetitivo dia após dia. Mas a impermanência é a única constante. A ferocidade irrompe como a vertigem e perturba o cheiro suave da sua pele. E eu feroz, como um potro jovem. Feroz como se tudo se destroçasse em um minuto. Cristais, o fogo, uma pedra, algo mais que se rompe, não sei.
En la vidriera tienen una extraña máscara de plástico gris con un gesto rígido, gélido, mete miedo. Junto a ella varias pistolas y revólveres falsos, aunque parecen muy reales y peligrosos. Es un pack. Por 50 euros te lo llevas y te regalan unos guantes negros delgados y flexibles. Te lo pones todo, vas a un banco cercano y lo asaltas, me dice el empleado, sonriendo, en tono de broma. Pero no me atrae la idea. Soy un buen hombre, supongo. Me fijo en los fusiles y las pistolas verdaderas y siento un deleite retorcido de atracción / repulsión. En el ejército, cuando era muy joven, tenía muy buena puntería. Todos se asombraban. Tuve un Mauser alemán de francotirador. Tenía hasta el águila y la suástica nazi grabada en el metal. Después tuve una metralleta checa ligera y finalmente un AK-47. Era la mejor. Ligera y de alta precisión. Perfecta. Yo la adoraba. Adoraba mi AK 47, de Kalashnikov. La cuidaba, la engrasaba y tenía una puntería perfecta, sin error. Disparaba al centro de la diana sin pensar en nada más. Mi vida era como ese fusil automático. Un soldado perfecto. Siempre disparando al centro de la diana.
Ahora siento agobio y me tiemblan las manos cuando palpo estas pistolas de juguete rutilantes y perfectas. Las dejo sobre el mostrador, doy las gracias al empleado sonriente, que intenta retenerme y me recuerda que tienen rebajas este mes. Hasta el 20% en algunos productos, señor. Gracias, gracias, vengo otro día, le digo. Y me escapo rápido de la tienda. He tomado por sorpresa al empleado y no sabe que escapo de mí mismo. Ese demonio que duerme.
ARMAS – ESPORTE – CAÇA – PESCA
Na vitrine tem uma máscara estranha de plástico cinza com uma expressão rígida, gélida, dá medo. Junto a ela várias pistolas e revólveres falsos, ainda que pareçam muito reais e perigosos. É um pacote. Por 50 euros você leva e ainda te dão um par de luvas negras, longas e flexíveis. Você pega tudo, vai num banco próximo e assalta, me diz o empregado, sorrindo, tirando sarro. Mas não me atrai a ideia. Sou um homem bom, suponho. Olho para os fuzis e para as pistolas verdadeiras e sinto um prazer retorcido de atração / repulsão. No exército, quando era muito jovem, tinha uma ótima pontaria. Todo mundo se impressionava. Tive um Mauser alemão franco-atirador. Tinha até a águia e a suástica nazista gravadas no metal. Depois tive uma metralhadora tcheca semiautomática e finalmente uma AK-47. Era a melhor. Rápida e precisa. Perfeita. Eu adorava. Adorava minha AK-47, de Kalashnikov. Cuidava dela, engraxava, e tinha uma pontaria perfeita, sem erro. Disparava no alvo sem pensar em mais nada. Minha vida era como esse fuzil automático. Um soldado perfeito. Sempre disparando no alvo.
Agora estou cansado e as minhas mãos tremem quando seguro estas pistolas de brinquedo brilhantes e perfeitas. Deixo-as sobre o mostrador, agradeço ao empregado sorridente, que tenta me segurar e lembra que estão com descontos este mês. Até 20% em alguns produtos, senhor. Obrigado, obrigado, venho outro dia, eu digo. E fujo da loja. Peguei ele de surpresa, ele não sabe que eu fujo de mim mesmo. Esse demônio que dorme.
Sem título
Texto de Negro Leo Ilustrado por Eduardo Moric
Na bolha de suspeiçoes coletiva. No mundo de duvidas e pronta-acusaçoes. No ultimo estagio de transformaçao da consciencia em sonho, nem a vala de esgoto, nem o odor de fritura: na rede.
Onde o ancora do jornal deveria vomitar a cada grafico da bolsa q aparece no televisor de um miseravel, q baba com os assuntos da reuters.
Onde o poeta canta versos q singram, obliquos, fantasmas, o ceu nublado no planeta. Onde todas as noites, no vao do teatro. Onde amanha vaga uma estrela, na massa oculta no breu da noite. Onde ferem e exaltam sem justiça: na rede.
Na saudade das cruzadas e dos cruzadores. Na comida q se poe em casa com ajuda do publicitario q a condena na intimidade. Nos vazamentos inesgotaveis da puberdade do world wide web. No estreitamento violento dos codigos de comunicaçao, o indecente joinha virtual: na rede.
Que a humanidade volte a pastar contra as maquinas. Pelo comunismo catastrofico: na rede.
Manifesto automático (excertos)
Texto de Leonardo Chagas Ilustrado por Maria Rosalem
i.
Ambiente escuso e frio de que se faz o verso, a flor rótula arrota o cânone cancerígeno, não há espaço para lamentar a estupidez, enquanto o corpo aspira o corte e engole a aspirina sem questionar o encanto do acaso opaco que surge diante dos olhos da menina rosa-cruz.
ii.
Cansado do colorido, visão cansada que se apoia na quina da escada, sobe até o firmamento das somas exatas e desce ao corpo ardiloso da esperança morna, detalhada através da luz que atravessa o vidro da câmera estilhaçada pela porrada de anjos esfumaçados.
iii.
Ganesha à luz de velas, na calçada descalça fala versos aos mendigos que tentam dormir distraídos da vida mundana. Os anjos de Sodoma espancam o adolescente pelado que se comove ao ver os mictórios públicos do metrô. Sei que um dia o sonho há de curar-me do espanto há de me fazer chicotear a face do inimigo e roubar dezenas de garrafas de vinho tinto e escondê-las num casacão há de me fazer cuidar melhor dos meus cabelos há de me fazer correr à beira mar comer frutas saudáveis & me estarrecer de pranto quando triste o sonho há de impulsionar minha revolução espiritual e política construir barricadas com corpos estupendos cor de jasmim esculpidos em bronze