Revisa USO #2

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A ânsia de propriedade Texto de Sendras Berloni Ilustrado por Léo Daruma

Se conto com que pés abri a cova do meu estilo, diante da qual me tenho aqui, agora e hoje, não me creem. O estilo é o fim da criatura e o início da posteridade; aquele destinado ao que é grande e soberbo vai morrer no estilo, e vai feliz. Conto apenas porque o meu estilo, o que me torna diferente dos outros, é particular; e é particular porque não é. O meu estilo, buraco na alma que visto para estar aqui, boca de terra no chão da terra de mim mesmo, é o mesmo que o de todos aqui. Todos nós possuímos o mesmo estilo, seco e áspero das almas nobres que partiram cedo. Deus quer os bons perto de si, dizia o poeta sobre o seu amigo, para consolar-se da sua morte antecipada. Mas o amigo tinha se matado! E esse deus era muito pequeno se terceirizava assim o seu desejo – queria perto os bons, mas esses que tratassem de pagar eles mesmos a passagem! Boa sorte aos que não têm dois trocados de coragem para fazer a travessia. Que seja. Eu e nós não somos desses. Nosso senso de humor é outro, e estamos bastante satisfeitos em permanecer aqui, os pés juntos, se desfazendo aos poucos, cada qual no buraco do seu próprio estilo de estar, de se deitar e aconchegar as costelas e as vértebras, dispostas ao tocador de xilofone universal, com as suas baquetinhas. Alguns, como esse deus de que a história dá notícia, têm a ânsia de propriedade; querem ter tudo. Isso não se vê só com o dinheiro, e além do mais a ânsia de propriedade, com relação ao dinheiro, é burra: desce do impulso das coisas imediatas um segundo e vê que o dinheiro é, por excelência, a única coisa sobre a qual não se pode estabelecer propriedade. O dinheiro, se for guardado como propriedade, não serve para nada, e só tem uso se for gasto; só se pode tê-lo não o tendo, e tendo outras coisas em seu lugar. Aqueles que têm a ânsia de propriedade sobre o dinheiro não o gastam, e assim sendo, não acumulam propriedade. Puro e simples. Não, a mania da ânsia de propriedade diz respeito ao desejo de querer alargar as baías de si mesmo sobre tudo. Ela se percebe no olhar, e na maneira como quem sofre dessa patologia usa a língua de todo dia. Uma vez, na praia, vi um sujeito assim; nós, que estamos assim, não temos nada, mas temos memória: só posso contar o que vi. A praia, além do mais, é o local onde a ânsia de propriedade se manifesta com mais agudez, e mesmo naqueles espíritos que a trazem latente é na praia, mais que em qualquer outra parte, que ela reclama seu lugar. Nem bem eu me sentei na minha cadeira, certo dia na praia, avistei esse sujeito; era

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