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eu que eu que sou eu
from Revisa USO #2
by revistauso
Texto de Thiago Mostazo Ilustrado por Lidia Ganhito
I.
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Você sabe o que fez e sabe como as coisas aconteceram. Nesse jogo com requintes de crueldade você me abriu a porta e depois fechou na minha cara pra eu bater ... toc-toc... até você atender porque está a fim mas como não está só me deixa espiando pelo olho mágico digital a beleza sua e da sua vida que eu adentrei e você decidiu congelar nosso amor a médias temperaturas. Eu não quero médias temperaturas, porra! Não vou bater na porta e assistir a tua conveniência abusar do nosso amor e você poderia ter dito poderia ter falado que não tinha mais vontade que acabou o tesão que me acha um fracassado um convencido que encontrou outro pau melhor mas você não disse e preferiu o fogo baixo pra fritar eu que eu que sou eu que pode ser tudo isso mas que não espera mais de um ser humano do que a verdade a simples verdade que liberta a existência a dois e eu que eu que sou eu que posso ser tudo isso mas sou também arrebatado pela sua presença e anseio pela companhia dos teus olhos verdes e por essa voz que me arrepia e por cada vez que passa a língua em qualquer parte do meu corpo e eu só quero abraçar você e te fazer gozar de todos os jeitos possíveis e que também sou o que não sou e não sou um deslumbrado pelas ilusões do prazer para não perceber quando não sou mais desejado e que vou seguir sem você e me perder na fluidez da vida sozinho e que eu que eu que sou eu.
Você já não está. O breve resquício da tua sedução não mais sustenta o meu sofrer e eu vou tropeçar e olhar pra cima na busca por algo que não procuro e por muito tempo vou procurar em tudo que se procura o que não se está procurando pra buscar em outros lugares algo como esse breve resquício da tua sedução. A paranoia do amor é a lucidez de cada alma sofrida.
Estou eu. E cago nas esquinas da vida para ver se alguma mosca me alerta do perigo e me leva pra casa e cuida de mim e me fala que eu sou dela. E saio perguntando por onde andam os dedos que não teclam e os olhos que enxergam sem a luz branca que você tanto falava que odiava a luz branca e que a luz branca é a coisa mais detestável que o ser humano já inventou e essa luz branca também me atordoa mas esquece a luz branca que ela faz parte da busca e na busca você tem que se acostumar com muita coisa e a luz branca é uma delas mas no fundo eu prefiro mesmo os cantos escuros e eu entro porque estou na busca então eu prefiro não enxergar tudo porque se eu enxergar alguma coisa eu reconheço e eu vou tateando no escuro o que tem pela frente pra conhecer o que eu ainda não conheço porque do que eu conheço eu queria você então eu desconheço pra encontrar uma nova luz branca pra odiar junto com alguém mas enquanto isso eu odeio ela sozinho e nesses lugares escuros eu danço e eu me drogo e eu me pico e eu me cubro daquela cagada que eu dei na esquina e alimento um medo do escuro pra conseguir encontrar alguma coisa cagado e no escuro e com medo e na busca, não posso esquecer da busca.
E lá estava eu quando ela me viu cagando e me alertou do perigo mas não cuidou de mim e então eu fiquei sem cagar por um tempo mas depois eu não tinha mais como não cagar porque eu sou eu que eu que sou eu. E eu fiquei esse tempo e foi bom e eu até queria mais tempo mas não deu tempo e ela pediu um tempo e eu não tinha esse tempo e nisso eu segui pra só mais uma vez andar naqueles lugares escuros até outra vez que dessa vez vai de vez mas sem vez eu não fico porque eu entro nos lugares escuros e eu estou na busca e foi deus quem falou que na busca a gente encontra e então eu sigo deus e escuto deus e sigo na busca mas nos lugares escuros porque deus tem muita luz branca e essa luz branca não me agrada aliás me atordoa então eu sigo deus mas não sigo a luz branca dele eu só sigo a busca que deus deu pra eu que eu que sou eu.
II.
Eu me escuto. Ela mandou sentar no divã e eu queria sentar na cadeira mas eu obedeci e sentei no divã e comecei a olhar praquele quadro e praquela mancha que eu nunca entendi se é uma mancha ou um camponês colhendo o trigo e se o que ele colhe realmente é trigo mas como na arte toda mancha pode ser um camponês e toda colheita pode ser de trigo então eu vejo o camponês colhendo o trigo e me convenço que ele faz parte do cenário. Ela me pergunta como foram os dias e eu me distraio do trigo para dizer que eles foram bem e ensaiar um sorriso pra mim mesmo e voltar a refletir sobre o trigo e sobre como os dias foram uma merda mas ela engole seco bufando por cima da minha falsidade e redobra a paciência em uma demonstração de profissionalismo para perguntar dos meus problemas e eu só pensava no camponês e no trigo e na busca e nela que ela que é ela mas ainda assim eu escolhi estar ali para pedir uma trégua contra mim mesmo e por isso eu topei pensar um pouco mais sobre tudo mas não sem antes dar um gole de água e provocá-la com um pedido para encostar a janela que ela assentiu e eu regozijei por mais uma pequena batalha do cotidiano vencida.
Eu minto. E falo que ela foi embora e eu que eu que sou eu não estou lidando bem mas que estou lidando porque não deixo de sair pra cagar nas esquinas e acolher um monte de moscas que me alertam do perigo e me levam pra casa mas que não cuidam de mim e por isso eu desço a rua Augusta todo cagado, na busca, em direção aos holofotes rosachoque do delírio com os vagabundos iluminados do apocalipse mas que o copo anda meio vazio e ele não se enche de ejaculação. Eu percebo o julgamento de Têmis e invoco meus direitos de réu à mentira do arrependimento e ao argumento do desespero e consigo sentir que está restabelecido nosso contrato social perante a limitação de uma interlocução e que chegamos em um empate masnão desisto da guerra então eu volto para ela que ela que é ela e aciono o ringue de batalha da minha geração e declaro que ela me procurou no meio digital e enviou uma mensagem perguntando se eu tava bem e eu disse que tô porque é tão fácil mentir à Têmis quanto ao Hermes da globalização mas a faca corta para os dois lados e não recebi mais resposta e isso para mim foi uma afronta que encarei com o mais absoluto sofrimento do veneno que só eu tomei porque eu que eu que sou eu não queria responder e nem mesmo receber aquilo mas caí na armadilha do desgosto e finalmente ela mandou um rostinho piscando e eu vi aquele rostinho piscando e fiquei puto e saí pra cagar nas esquinas por três dias e desde então os orgulhos falaram mais alto do que os humanos bestializados pelos teclados já que é mais fácil ser orgulhoso sem a maldição do olhar diante de si e então ficaram os dois orgulhos conversando e nós não falamos mais e os nossos orgulhos saem para se enamorar em solidão só que eu não eu estou lidando bem e continuo na busca, eu já te falei da busca?
Eu aproveito a deixa saboreando a dianteira no placar dessa batalha com Têmis e volto a observar o camponês e o trigo e sinto que nem preciso falar da luz branca já que o consultório dela tem uma luz branca e isso pode favorecer o seu mando de campo e eu já imagino se ela se aproveita disso e vem me torturar e o divã se transforma numa cadeira de dentista e contra os dentistas eu sei que não tenho chance então é melhor guerrear com os psicólogos e atiçar a busca nos seus ouvidos moucos quando se fala da busca. Têmis disse que eu não devo ficar pensando nisso e que o melhor era responder a mensagem se eu ficasse pensando demais mas que se eu não pensasse demais era melhor não responder já que assim ela ia ter um tempo pra pensar e sentir saudade de eu que eu que sou eu mas que isso tinha que partir dela e que se não partisse seria uma pena mas na verdade Têmis disse isso e não estava com pena e então eu esqueci o camponês e o trigo e retomei minha posição de batalha e argumentei que o orgulho não passa de covardia contra os próprios desejos e ela disse que não se trata de orgulho mas de autopreservação diante do que ela fez comigo e que seguir na busca por ela nesse momento seria uma condenação inconsciente à autodepreciação para agradar o outro e aos meus desejos mais irracionais e eu tive que dar esse ponto para Têmis pela lucidez da observação.
Eu me defendo com minhas armas de Jorge para que ela tenha razão mas não me convença afinal são assim todos os julgamentos e eu já participei de uma dezena deles no curso de uma curta existência ao passo que não posso alegar ignorância perante os fatos de juízo e impera-se a necessidade de apelar para a busca e por isso eu olhei para o camponês e lembrei do trigo e de Van Gogh e disparei contra Têmis e seu batalhão de verdades e bom senso. A busca, eu disse, não é algo que possua significado concreto mas você sabe e eu sei que no fundo de cada orelha tem um zumbido que muita gente chama de deus e eu chamo de zumbido mas pode chamar de deus se quiser e esse zumbido é um chamado incessante para a batalha de mais um dia de mais uma refeição de mais um pouco de sentimento pra observar a senhora que anda devagar pela calçada esburacada e desfila sua independência, na busca, o paletó com alguém dentro que olha para o relógio a cada quinzeminutos para poder se atrasar a cada quinzeminutos e ele também, na busca, a garota que caminha com seu vestido florido e seu fone de ouvido e seu sorriso no rosto e seu sofrimento por dentro na epopeia de ser mulher e então ela, na busca, e o jovem com seu skate que carrega os estímulos no bolso para conseguir olhar pro céu e enxergar as nuvens como um elemento da sua insignificância e assim evitar o suicídio e seguir, na busca, e então é a busca que te faz colocar os pés na rua mas também é ela que faz o zumbido ficar mais alto a cada hora do dia e é a busca que permite que o zumbido diminua gradativamente para que você possa se distrair por algumas horas mas também é ela que retoma os ruídos e o zumbido pra te lembrar da busca, sabe, a busca.
Eu venço Têmis pelo cansaço e o altruísmo de sua preocupação com os devaneios humanos e ela carrega o assunto de volta para a desilusão amorosa e eu acato e não falo mais sobre a busca mesmo com o zumbido me estourando os tímpanos e eu tenho certeza que os tímpanos de Têmis estavam prestes a estourar também mas é assim que a gente faz quando esse zumbido fica muito alto a gente ignora
o zumbido e segue na busca que é o que o zumbido quer. Têmis me pede pra falar como eu me sinto com tudo isso e se eu não estou cagando demais pra um jovem como eu que tem uma vida de possibilidades pela frente e eu respondo que talvez esteja cagando muito mas sabe como é e que eu não sei como eu estou me sentindo eu só consigo escutar o zumbido e cagar e pensar no camponês e no trigo e na arte e então ela pergunta pelos meus pais e eu calo e ela insiste e eu me vejo obrigado a ceder e começo a falar deles e que na verdade sempre foram pessoas fáceis e que eles também estão na busca o que deixa tudo mais fácil... Têmis então se irrita e arremessa o caderno pra cima conferindo três giros perfeitos de centoeoitentagraus ao objeto que cai obediente em sua mão esquerda com cada letra em pé e surpreendentemente não-borrada enquanto a caneta na direita já recomeça a espalhar tinta pelas páginas e embora eu não tivesse visto a cena pela posição do divã eu achei aquilo bonito é claro mas não tão bonito quanto o barulho da voz que ela que ela que é ela respirava no meu ouvido calando o outro zumbido e esse zumbizar me fazia um bem que chegava até a doer e eu não ligo muito para a impaciência de Têmis a malabarista de cadernos e continuo falando dessa voz que ela zumbia no meu ouvidoe a conversa segue por mais sete minutos até que Têmis pronuncia uma provocação final como a sentença de um julgamento inconcluso e me manda embora dizendo que acabou o tempo para eu que eu que sou eu que me levanto e pisco para o camponês e para o trigo e me pergunto por que eu não briguei com o carteiro.
Eu trabalho. E chego meia hora antes porque sigo uma pessoa na rua de um jeito que incomoda até ela se incomodar e virar em uma rua e eu sigo andando reto porque não é a minha rua e a minha vontade de incomodar não é tão grande mas o passo acelerado fez com que eu chegasse em frente ao edifício antes do horário então eu encosto o cotovelo no balcão da padaria e peço um pão na chapa e um café puro e o Zenildo traz o pão com a manteiga ainda fresca e sem torrar as extremidades da canoa o que me apresenta uma prévia da insignificância de mais um dia sem um café da manhã excepcional e oZenildo começa a falar do Palmeiras e de como a mulher dele reagiu aos seus gritos após a derrota por umazero e disse que ele tinha que escolher e que era o verdão ou ela e o filho de sete meses que esganiçava o choro noite adentro e ele gargalhou ao me contar que levantou do sofá buscou a cinta e disse pra ela escolher entre os gritos ou um cemitério e se orgulhou com a preferência da freguesa e como eu não torço para o Palmeiras e o pão na chapa não estava bem feito eu mando ele tomar no cu e cuspo café quente no celular dele que leva na esportiva. Eu entro no edifício e dou bom dia para todos mas só o Arnaldo responde e eu olho para ele com um olhar de desprezo e começo a fazer o que eu tinha que fazer porque eu tenho uma porção de coisas pra fazer mas eu decidi fazer só uma porção delas então eu preciso começar cedo pra apresentar essa porção e por isso eu telefono para o presidente da câmara de comércio pra marcar uma entrevista sobre a venda de aviões para Cingapura ele atende e fala alô eu respondo e explico quem eu sou e o que eu preciso e então ele quer saber mais sobre quem eu sou e o que eu preciso e eu explico durante seis minutos e ele ouve atentamente até a última letra e em seguida me pede pra enviar tudo isso por email então eu desligo o telefone antes de mandar ele tomar no cu e envio um email com os seis minutos do que eu tinha dito e um pouco mais de coisa e ele se dá por satisfeito e confirma a entrevista no dia que eu queria e como na verdade eu também não queria nada dele nós ficamos por isso mesmo até sexta-feira às 11h no seu escritório na Faria Lima. E como eu já tinha feito um pouco da porção de coisas que eu precisava eu abro o computador e começo a ler um texto sobre a insensibilidade dos homens que mijam de pé e não percebem para onde o seu mijo respinga e que esse site instalou uma luz roxa daquelas pra mostrar exatamente para onde vão os respingos e como eles ficam expostos por toda a superfície do tampo de sentar a bunda da privada e que mesmo quando o tampo está levantando ainda assim o mijo respinga na parte que ninguém senta mas também atinge a parte onde repousamos a bunda porque ele sobe ao bater na água e descarrega todas as suas bactérias urinais que podem causar sérios desvios de comportamento antroposófico e ataques repentinos de ciúmes e de repente chega uma mensagem.
Eu perco o chão e me levanto pra dar uma mijada e ver para onde os respingos se espalham e eu até consigo ver alguns mas não todos aqueles que o texto descreveu o que me leva a conclusão de que devo colocar uma luz roxa no meu banheiro só pra ver esses respingos e sentir que ainda existe alguma verdade no mundo mas na verdade eu que eu que sou eu sei que não existe então foda-se a luz roxa porque na verdade eu vou comprar uma daquelas raquetes de matar
mosquito porque tem aparecido muitos mosquitos em casa e os mosquitos ficam zumbizando no meu ouvido e quando eu escuto o zumbido deles eu deixo de escutar o zumbido que tem no fundo do meu ouvido e que eu não chamo de deus e quanto mais mosquitos zumbizam no meu ouvido menos eu consigo me concentrar na busca e se eu não pensar nela, a busca, eu acabo pensando nela que ela que é ela e que voltou mas não voltou pra eu que eu que sou eu.
Eu retomo as estribeiras e sento na mesa do trabalho e começo a pesquisar sobre os aviões que o governo brasileiro deseja vender para Cingapura e eu estava conseguindo organizar as ideias até que o Arnaldo me chama e fala que arrumou um esquema bom para fazer no final de semana em um lugar escuro cheio de moscas onde dá pra cagar a vontade e putaquepariu como eu odeio o Arnaldo mas eu me sinto mais inteligente perto dele e gosto dos lugares escuros onde dá pra cagar então eu dou corda e pergunto mais sobre o lugar e ele fala que vai tocar música dos anos noventa e que ele adora relembrar da adolescência dele e eu que eu que sou eu não gosto tanto assim porque a minha adolescência foi um momento de cagadas e zumbidos não muito diferente do momento que eu tenho agora mas agora pelo menos eu ajusto as coisas à minha busca e rejeito deus e não sei o que eu quero e por isso eu consigo buscar então eu me levanto e o Arnaldo fica como uma criança perguntando se eu vou no tal lugar e eu disparo um sorriso malicioso e digo que sim eu vou e então me levanto para buscar alguma coisa.
IV.
Eu sei que todo fim de dia o trabalho acaba por mais que ele não queira e que eles também não queiram que você pare de trabalhar mas o fato é que o trabalho acaba pra que você possa acordar amanhã de novo pra trabalhar então depois que eu fiz a porção de coisas que eu tinha proposto pra eu que eu que sou eu decidi que era o momento de sair dali antes que o Arnaldo me puxasse para fumar um cigarro e falar das coisas que eu gosto pra me empurrar pra mais uma cagada na esquina sem moscas e eu chego em casa e tranco a porta porque é importante trancar a porta nesse mundo de hoje que anda muito perigoso como se todo mundo estivesse buscando alguma coisa.
Eu não suporto filmes de vampiro mas passava um na tevê e como eu não estava buscando nada naquele momento eu achei que talvez esse filme fosse me trazer alguma coisa que eu não estava buscando e acendo um baseado e começo a assistir o filme em que o vampiro se apaixona pela moça e ela por ele mas ela ainda não sabe que ele é um vampiro então o filme todo é baseado nesse suspense porque você sabe que ele é um vampiro e que ela é ela mas ninguém no filme sabe nada de si ainda e nem do outro e eu me identifiquei e vi até o final quando a moça descobre que o seu don juan é um vampiro e na verdade ela já sabia então eles ficam juntos mas no primeiro beijo ele transforma ela em vampiro e mesmo que soubesse ela fica puta e vai embora, buscar alguma outra coisa.
Asfalto
Texto de Iago lago Ilustrado por Mathias Vilardaga
0,5
asfalto molhado leva cheiro de aurora que atenua-se em ocorrer
hesita...
e as luzes dos postes da cidade chancelam-se chance de brilhar um pouco mais
é noite e é dia e nem noite nem dia é
e os passarinhos que inda dormem sonham com carros derrapando
e eu que inda acordado penso em passarinhos sonhando
ué queira-se viver na borda consegue-se queira-se viver dum lado (ou doutro) não se consegue
o asfalto molhado a aurora ampla são um só a fronteira que dita tudo
meu primeiro beijo foi no asfalto foi seu cheiro que me seduziu
língua no piche:
transfiz-me em deste moderno caminho (como todos aqueles a que se apresenta o prazer fácil e generoso do beijo quis namorar e virar meu namorado)
esqueci-me toda à via esqueci-me lá por querer que sei ser só trilha em mata ou no máximo estrada de terra
: não durei muito em ser asfalto passa caminhão passa ao caminho desvendam-se os buracos
e o buraco: o reencontro ao barro nobre
2
o verbo asfaltar indicativo em sua segunda pessoa presente singular faz-me lembrar duma fome que tenho e que não cessa e que é uma fome de mão-dupla
3
“a prefeitura do município por fim decidiu asfaltar aquela estradazinha antiga que leva da igreja da matriz ao bairro bom menino, bairro onde moro
desde então ninguém vem me visitar”
4
nos dias de sol um calango sonha virar asfalto
5
a cidade de são paulo tem um ronronar que inicia bem-mal a claridade desponta no horizonte
já pensei que fosse o barulho do sol vindo nascer!
mas é barulho de motores mormente motores de automóveis
que esta selva não é de concreto é selva de asfalto!
6
brinco que meu carro é um barco (brinco que o asfalto é mar um suaue mari magno e os infortúnios ali da cidade não são meus, que meu deus é-me bom!)
brinco de ouvir música boa
brinco que os pés tão pretos do moço que tem um pano sujo e quer limpar meus vidros de graça são pés de gente que escolhe
brinco que se ele encostar nos meus vidros com este pano imundo eu vou matar ele
brinco que as faixas brancas pintadas no asfalto não existem
brinco que o ciclista que passa no meu caminho não existe
brinco de ouvir música muito boa
brinco que essa cidade é minha e de mais ninguém e que o asfalto em que navego é uma pele que ela tem e que ele é lindo
meu coração é uma bomba-relógio que um dia eu engoli
Texto de Isabela Bosi Ilustrado por Julia Pinto
inventei um roteiro de filme: começo com meu corpo na cama, sozinho, o silêncio da casa e cheiro de suor e álcool que parece vir do banheiro, mas sai de dentro da minha boca.
os bilhetes da mega-sena estão amassados na bolsa de ontem.
caminho até a próxima estação. salto naquela antiga praça, onde já senti tanto frio. sem vontade alguma de voltar ou de ir. sento no banco verde. o dia está lindo. ninguém reparou. a tv da frente está ligada em alguma novela com muitos gritos. o homem sentado na cadeira de plástico parece não achar nada melhor.
vou ficar aqui pra sempre.
meus dedos se mexem à toa. minha lombar dói. pego o primeiro carro livre: fiat branco, vidro fumê, banco de couro. largo meu corpo no sofá imundo desta sala deserta.
pego os bilhetes. o primeiro número é seis. o segundo, onze. errei todos. todos.