#2 ano 1 novembro de 2019 revista de literatura, do clรกssico ao vulgar.
revista uso,
ressaca de 2019
Produção Editorial Pedro Mirilli, Santiago Segundo e Thiago Mostazo Projeto Gráfico e Diagramação desenvolvido por Estúdio Pavio Bernardo Brasil e Lidia Ganhito Capa Fotografia de Matias Vilardaga Folha de rosto Pintura de Ana Helena Pompeo Literatura Avelino Alves, Drump Goo, Fabrício Corsaletti, Iago lago, Ines Bhs, Isabela Bosi, Leonardo Chagas, Marcelo Moreschi, Maria Rosalem, Mariana Pougy, Marina Mole, Negro Leo, Pedro Juan Gutiérrez, Santiago Segundo, Sendras Berloni e Thiago Mostazo Artes Visuais Ana Helena Pompeo, Beatriz Pires, Bruna Saidz, Bruno Café, Cláudia Freire, Eduardo Moric, Gabriel Roemer, Julia Pinto, Layla Cruz, Léo Daruma, Lidia Ganhito, Maria Rosalem, Mathias Vilardaga e Pedro Mirilli Conselho Editorial e Curadoria Avelino Alves, João Mostazo, Lidia Ganhito, Maria Rosalem, Pedro Mirilli, Santiago Segundo e Vinicius Fernandes Revisão João Mostazo Impressão Capa em Papel Alto Alvura 180g/m² e miolo em papel Alto Alvura 90g/m². Composto usando as tipografias TT Norms e TT Tricks da fundição russa Type Type. Impresso na gráfica Forma Certa em Novembro de 2019. Tiragem de 500 exemplares. revista uso, revistauso@gmail.com facebook.com/revistauso instagram: @revistauso
Editorial Aqui está um documento. Ilustrado por Lidia Ganhito
Há uma valorização inerente ao projeto de modernidade para tudo o que reside no valor prático. O confronto se dá por meio da demência e desrazão. Nossa existência animal emerge e resiste na linguagem. Seus USOS são o componente essencial para possibilitar a vida em sociedade. Constituição de cultura. Um novo imperativo se apresenta diante das transformações digitais e suas implicações existenciais. A USO é catarse para esse devir. O meio é a disseminação para as narrativas de uma sociedade que apresenta sinais de colapso em escala global. O conteúdo é a tentativa de dar sentido aos rumos que serão desenhados. A arte é vetor central de ressignificação e do confronto. A arte é rito. Do enterro à canibalização, do canto fúnebre ao corpo bebido, são esses os ritos de valoração da morte que representam aos valores modernos uma simples distração à sobrevivência. Um desafio às intempéries cotidianas que se manifestam entre o predador e o cansaço.
São dessas distrações que fazemos USO. Matéria-prima linguística do que esquecemos de ser. A demência como ferramenta para fecundar sentidos e valores em terras devastadas. Para confrontar a efígie da morte ou do próprio vazio. Para se assumir prole racional da desrazão. É essa característica que nos dá força catártica: do trauma à purificação. Acreditamos que foi possível percorrer longos passos no processo que resulta nesta edição que você carrega. A América Latina é o horizonte daqui em diante. Objetivo inegociável de representar uma região que tanto carrega em comum e sangra pela união como complemento exponencial das possibilidades de um novo futuro para o continente. A expansão desta terra denominada Brasil é abarcada em suas particularidades e preenche cada vez mais as páginas que você vai ler. O local é processo. O sentido é a existência. A USO é um meio aberto para todas as expressões e assim continuará sendo enquanto essas páginas fizerem sentido. Trocas, provocações e critérios permearam os meses que levaram à conclusão desse processo. Acreditamos na contribuição que este projeto carrega em oposição à interrupção violenta de ideias que observamos em todo o mundo. Em esferas virtuais e analógicas. Apresentamos algo que incomoda, que emociona e que tenta traduzir o que nos incomoda e emociona no mundo de hoje. Mais uma vez, o USO é livre.
Editorial 4 Ilustrado por Lidia Ganhito
Finais Alternativos
11
Textos de Fabrício Corsaletti Ilustrado por Maria Rosalem
Três vivas
15
Textos de Ines Bhs Ilustrado por Cláudia Freire
Alucinações reais
19
Texto de Marina Mole Ilustrado por Beatriz Pires
eu que eu que sou eu
21
Texto de Thiago Mostazo Ilustrado por Lidia Ganhito
Asfalto 29 Texto de Iago lago Ilustrado por Mathias Vilardaga
meu coração é uma bomba-relógio que um dia eu engoli
32
Texto de Isabela Bosi Ilustrado por Julia Pinto
Passos 35 Texto de Avelino Alves Ilustrado por Pedro Mirilli
A ânsia de propriedade Texto de Sendras Berloni Ilustrado por Léo Daruma
37
El arte de ganar y perder
43
Textos de Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) Ilustrado por Ana Helena Pompeo
Sem título
51
Texto de Negro Leo Ilustrado por Eduardo Moric
Manifesto automático (excertos)
53
Texto de Leonardo Chagas Ilustrado por Maria Rosalem
Lugar Comum
55
Texto de Drump Goo Ilustrado por Miri Lee
Pavio Humano
67
Texto de Mariana Pougy Ilustrado por Layla Cruz
Ponha suas mãos na minha: um loop
69
Texto de Maria Rosalem Ilustrado por Bruna Saidz
Chuveiros Telúricos Cromoterápicos Lúmen Quântico 3100
70
Texto de Santiago Segundo Ilustrado por Bruno Café
Um e-mail departamental
79
Texto de Marcelo Moreschi Ilustrado por Gabriel Roemer
autocritica 86 Manifesto Gráfico
88
revista uso, #2
Finais Alternativos Textos de Fabrício Corsaletti Ilustrado por Maria Rosalem
FINAIS ALTERNATIVOS 1 quando entendeu que era um cisne formou um exército de cisnes voltou ao lago dos patos e ordenou um massacre
2 3 quando entendeu que era um cisne entrou em depressão
quando entendeu que era um cisne
sentia-se pato entre os cisnes
passou o resto da vida dizendo
cisne entre os patos
“eu sou um cisne! eu sou um cisne!”
e assim como Noé viveu seiscentos anos
os outros cisnes achavam
depois morreu
que ele não tinha muito assunto
4 quando entendeu que era um cisne decidiu que queria ser tamanduá e se transformou no mais tamandualesco tamanduá do mundo dos cisnes então lembrou sua vida de pato então lembrou sua vida de cisne gritou baixinho “foda-se tudo” e foi encher a cara de formiga
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GOSTO DE OUVIR OS TROVÕES ANTES DA CHUVA gosto de ouvir os trovões antes da chuva é das poucas coisas do mundo que não perderam a grandeza todo o resto é banal traumas amorosos dramas de família filmes livros a injustiça mesmo os mortos na tragédia tudo cansa tudo se transforma na sua própria imagem gasta só o trovão surpreende e cumpre o que promete a chuva vertical só o trovão não envelhece mal gosto muito de trovões
PIRA
de trovões e de abelhas
em torno da pira em chamas o irmão da amiga da minha irmã me diz quando cê tivé deprimido quando cê tivé bem fudido memo compra um sofá barato e taca fogo num tem nada mió que vê um sofá queimá a espuma queima bunito ouve o que eu tô te falano compra um sofá lazarento e manda bala
revista uso, #2
TIGRES escravos encarregados de transportar os barris para transporte e despejo de matérias fecais dizem que a merda escorria por entre as frinchas das tábuas rajando o dorso dos homens à maneira dos felinos ó tu que passeias pela História comendo pipoca de óculos escuros considera a sorte dos tigres brasileiros
POEMA DE MACONHEIRO pensei que fosse o cachorro do vizinho as garras do cachorro na lajota da varanda mas era a chuva não fantasmas
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revista uso, #2
Três vivas Textos de Ines Bhs Ilustrado por Cláudia Freire
PARA INÊS DE CASTRO Muito muito distante havia eu, coberta de muitos tecidos vinhos e aveludados, e vários e várias beijavam minha mão, se ajoelhavam e pediam a benção e eu nunca entendi o porquê disso. Só se ajoelhavam, tentavam encontrar meu olhar, mas eu não olhava, fingia olhar minhas unhas ou o meu cachorro que estava sempre no meu colo. Nem por isso eu era uma bitch, era só que Pedro me amava mais. Chegaram com uma e falaram, Pedro, essa é pra você. Pedro diz, não quero, quero aquela ali. Ela é mais interessante, parece saber falar; com muito sol consigo ver seu contorno e seus passos, o jeito que ela se mexe. Era eu, a morta, a mulher invisível, a que ninguém via. Mas também ninguém se via. Pedro me via. Pedro foi pra guerra e nunca me esqueceu. Tenho certeza que foi só fazer política e comer outros tipos de frutos do mar, mas ainda assim nunca me esqueceu. Pedro colocou maiúsculas em todos os lugares do meu nome. E em todos os lugares da cidade em que existia o meu nome, e em todas as bebês que nasceram depois da minha morte, todas eram obrigadas a ter maiúsculas na primeira letra do nome. E Pedro nunca me esqueceu. E eu nunca esqueci Pedro. Fiquei vagando como um fantasma atrás de Pedro, o príncipe que não vi virar rei. Será que Pedro foi um belo rei, um rei correto? Não sei, porque me mataram antes de eu saber. Me mataram antes inclusive de Pedro comer meu cu. A maior sacanagem dessa história. Pedro na verdade ficou puto por causa disso. E porque me amava também, claro. Pedro, venho do reino dos mortos te dizer que, concordo, puta sacanagem, a gente tinha acabado de se casar e você viu nos meus olhos antes de partir o meu medo, você viu que eu não me sentia segura com os seus militares, que eu não queria ficar naquele palácio como uma polonesa imigrante sozinha em um navio bem grande, não queria ter só a companhia do meu cachorrinho. Quando vieram beijar a minha mão o povo chorava, se cagava, mijava, alguns até fingiam umas doenças sérias. Mas quando vieram beijar a minha mão, eu não era mais uma pessoa, quer dizer, era, mas não tinha alma, estava morta, mortinha. Me envenenaram da forma mais ordinária possível, colocaram arsênico no meu vinho, no meu champanhe, no meu cupcake, na minha goiaba matinal. Eu caí dura super rápido, avisaram Pedro e ele veio correndo e chorando, correndo e chorando, correndo e chorando, Pedro chorava tanto que até seu cavalo chorava junto, todos os soldados choravam também, sabiam que o bicho ia pegar, que todo mundo ia morrer, que ia ser da hora ver tanta matança mas que muita gente querida ia morrer também.
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PENÉLOPE SIFILÍTICA Quando você foi embora eu fiquei tão triste que parei de falar. Achei, no começo, que tinha perdido a voz. Mas aos poucos percebi que só não tinha vontade de falar mesmo. Comecei a me observar e entendi que tinha músculos na minha cara que não queriam mais se mexer, estavam paralisados, cansados, desolados, que nem eu. Um dia eu pedi a um dos pretendentes que me ajudasse com essa paralisia facial e juntos tivemos uma boa ideia. Eu falei pra ele: “Acho que o que eu preciso é que os meus músculos perto da boca se movam com mais frequência. Eles doem toda vez que eu tento abrir a boca. De repente se você de alguma forma conseguir tocar, tipo, os meus músculos, algo pode acontecer. Fico imaginando que a minha saliva, em contato com você, pode ajudar a movimentar a corrente sanguínea desses músculos em volta aqui da minha boca e a tensão passe e eu consiga voltar a falar pelo menos um ‘bom dia’, ‘boa noite’. Então funcionaria assim, qualquer parte do seu corpo, dentro da minha boca por um tempo, sei lá, não precisa ser nada demais, talvez a sua mão inteira, os dedos todos do pé? Ou até uma parte do seu joelho, dentro da minha boca, pode funcionar”. E aí acabou que testamos várias vezes, com várias partes, e no fim foi uma ótima ideia e com o tempo eu voltei a falar ‘bom dia’ e ‘boa noite’ pra toda aquela gente que eu via. E aí toda essa gente ficava por perto porque sabiam que eles é que poderiam ajudar quando tudo ficasse tenso. Porque às vezes isso acontecia mesmo, o meu peito se fechava, a dor da distância cavava fundo no meu peito, e ali criava uma crosta de tensão e tristeza que só aquele contato da pele do corpo com a saliva da boca podia desfazer. E essa foi a primeira parte, o primeiro ano.
revista uso, #2
JULIETA ESTÁ MELHOR Porque todas as palavras ainda não foram colocadas juntas, é que ainda se tem vontade de viver. Te perguntei um dia, se eu morresse, você choraria? Quando, se um dia você desaparecer, um peso vai sair de cima de mim. Pensando agora, foi até bom que morremos juntos, naquele momento. Seria traumático e complicado pra mim conviver com as boas memórias que teríamos em um dia ensolarado na praia, caminhando por uma trilha de mata fechada, um silêncio e o suor na sua camiseta. Aquilo seria a morte de verdade. Morrer envenenada, sem querer, uma falta de sorte transformada em tragédia, prefiro. A dor, quando se distancia, nos parece desejável. Quando você era vivo, eu queria me jogar em cima de você, pensando que você era um buraco, e eu já apenas uma morta. Quando você era vivo, era muito difícil não pensar que se no meio da minha caminhada matinal você aparece é porque no meio da sua caminhada matinal eu apareci, e se eu apareci pra você, você pensou com força e apareceu para mim, e assim no meio da minha caminhada eu sentia meu coração bater bem no meio do meu clítoris, sem previsão de parada, sendo controlada por algo distante e inominável, a força da minha imaginação. Mas você não estava passeando e pensando em mim, estava deitado sobre meu corpo falsamente gelado, chorava, tinha apenas a idade de um adolescente, era um idiota apaixonado, e eu uma besta ingênua. Quando acordei você tinha se matado e eu dei graças a deus.
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Alucinações reais Texto de Marina Mole Ilustrado por Beatriz Pires
o mundo não passa de uma sensação como a frequência grave da onça se nos tornássemos luminosos o amor sagrado de fêmea oferecida às águas nos atingiria chamaríamos o vento pelo nome feito Mario Mercier Peregrino do Absoluto mas no seu corpo de abandono diluí meu espírito infernal mistério feito de branco preto e vermelho paixão vulgar oferenda humana as rotações da Terra nos fizeram amantes telúricos do perpétuo devir seguimos como entidades errantes corpos astrais potência cósmica do amor mágico fluímos no derramamento de raios senhor dos abismos minha visão incendiária do desejo gênios-serpentes da água da chuva entoa o teu mantra noturno
*** bebendo tempestade em pequenos copos de plástico como aqueles emissários de pílulas desbaratinantes nos hospícios endossos silenciosos quando minha pele está coberta de eletricidade e a profecia se torna real ela me pisca os olhos ferruginosos [estou com você quando quebrar os portões me convide estouraremos as vitrines de notícias falsas entregaremos textos do piva na saída do metrô anhangabaú esperaremos pela hora cósmica & entoaremos ligue-se, sintonize-se, drop out]
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eu que eu que sou eu Texto de Thiago Mostazo Ilustrado por Lidia Ganhito
I. Você sabe o que fez e sabe como as coisas aconteceram. Nesse jogo com requintes de crueldade você me abriu a porta e depois fechou na minha cara pra eu bater ... toc-toc... até você atender porque está a fim mas como não está só me deixa espiando pelo olho mágico digital a beleza sua e da sua vida que eu adentrei e você decidiu congelar nosso amor a médias temperaturas. Eu não quero médias temperaturas, porra! Não vou bater na porta e assistir a tua conveniência abusar do nosso amor e você poderia ter dito poderia ter falado que não tinha mais vontade que acabou o tesão que me acha um fracassado um convencido que encontrou outro pau melhor mas você não disse e preferiu o fogo baixo pra fritar eu que eu que sou eu que pode ser tudo isso mas que não espera mais de um ser humano do que a verdade a simples verdade que liberta a existência a dois e eu que eu que sou eu que posso ser tudo isso mas sou também arrebatado pela sua presença e anseio pela companhia dos teus olhos verdes e por essa voz que me arrepia e por cada vez que passa a língua em qualquer parte do meu corpo e eu só quero abraçar você e te fazer gozar de todos os jeitos possíveis e que também sou o que não sou e não sou um deslumbrado pelas ilusões do prazer para não perceber quando não sou mais desejado e que vou seguir sem você e me perder na fluidez da vida sozinho e que eu que eu que sou eu.
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Você já não está. O breve resquício da tua sedução não mais sustenta o meu sofrer e eu vou tropeçar e olhar pra cima na busca por algo que não procuro e por muito tempo vou procurar em tudo que se procura o que não se está procurando pra buscar em outros lugares algo como esse breve resquício da tua sedução. A paranoia do amor é a lucidez de cada alma sofrida. Estou eu. E cago nas esquinas da vida para ver se alguma mosca me alerta do perigo e me leva pra casa e cuida de mim e me fala que eu sou dela. E saio perguntando por onde andam os dedos que não teclam e os olhos que enxergam sem a luz branca que você tanto falava que odiava a luz branca e que a luz branca é a coisa mais detestável que o ser humano já inventou e essa luz branca também me atordoa mas esquece a luz branca que ela faz parte da busca e na busca você tem que se acostumar com muita coisa e a luz branca é uma delas mas no fundo eu prefiro mesmo os cantos escuros e eu entro porque estou na busca então eu prefiro não enxergar tudo porque se eu enxergar alguma coisa eu reconheço e eu vou tateando no escuro o que tem pela frente pra conhecer o que eu ainda não conheço porque do que eu conheço eu queria você então eu desconheço pra encontrar uma nova luz branca pra odiar junto com alguém mas enquanto isso eu odeio ela sozinho e nesses lugares escuros eu danço e eu me drogo e eu me pico e eu me cubro daquela cagada que eu dei na esquina e alimento um medo do escuro pra conseguir encontrar alguma coisa cagado e no escuro e com medo e na busca, não posso esquecer da busca.
revista uso, #2
E lá estava eu quando ela me viu cagando e me alertou do perigo mas não cuidou de mim e então eu fiquei sem cagar por um tempo mas depois eu não tinha mais como não cagar porque eu sou eu que eu que sou eu. E eu fiquei esse tempo e foi bom e eu até queria mais tempo mas não deu tempo e ela pediu um tempo e eu não tinha esse tempo e nisso eu segui pra só mais uma vez andar naqueles lugares escuros até outra vez que dessa vez vai de vez mas sem vez eu não fico porque eu entro nos lugares escuros e eu estou na busca e foi deus quem falou que na busca a gente encontra e então eu sigo deus e escuto deus e sigo na busca mas nos lugares escuros porque deus tem muita luz branca e essa luz branca não me agrada aliás me atordoa então eu sigo deus mas não sigo a luz branca dele eu só sigo a busca que deus deu pra eu que eu que sou eu.
II. Eu me escuto. Ela mandou sentar no divã e eu queria sentar na cadeira mas eu obedeci e sentei no divã e comecei a olhar praquele quadro e praquela mancha que eu nunca entendi se é uma mancha ou um camponês colhendo o trigo e se o que ele colhe realmente é trigo mas como na arte toda mancha pode ser um camponês e toda colheita pode ser de trigo então eu vejo o camponês colhendo o trigo e me convenço que ele faz parte do cenário. Ela me pergunta como foram os dias e eu me distraio do trigo para dizer que eles foram bem e ensaiar um sorriso pra mim mesmo e voltar a refletir sobre o trigo e sobre como os dias foram uma merda mas ela engole seco bufando por cima da minha falsidade e redobra a paciência em uma demonstração de profissionalismo para perguntar dos meus problemas e eu só pensava no camponês e no trigo e na busca e nela que ela que é ela mas ainda assim eu escolhi estar ali para pedir uma trégua contra mim mesmo e por isso eu topei pensar um pouco mais sobre tudo mas não sem antes dar um gole de água e provocá-la com um pedido para encostar a janela que ela assentiu e eu regozijei por mais uma pequena batalha do cotidiano vencida. Eu minto. E falo que ela foi embora e eu que eu que sou eu não estou lidando bem mas que estou lidando porque não deixo de sair pra cagar nas esquinas e acolher um monte de moscas que me alertam do perigo e me levam pra casa mas que não cuidam de mim e por isso eu desço a rua Augusta todo cagado, na busca, em direção aos holofotes rosachoque do delírio com os vagabundos iluminados do apocalipse mas que o copo anda meio vazio e ele não se enche de ejaculação. Eu percebo o julgamento de Têmis e invoco meus direitos de réu à mentira do arrependimento e ao argumento do desespero e consigo sentir que está restabelecido nosso contrato social perante a limitação de uma interlocução e que chegamos em um empate mas não desisto da guerra então eu volto para ela que ela que é ela e aciono o ringue de batalha da minha geração e declaro que ela me procurou no meio digital e enviou uma mensagem perguntando se eu tava bem e eu disse que tô porque é tão fácil mentir à Têmis quanto ao Hermes da globalização mas a faca corta para os dois lados e não recebi mais resposta e isso para mim foi uma afronta que encarei com o mais absoluto sofrimento do veneno que só eu tomei porque eu que eu que sou eu não queria responder e nem mesmo receber aquilo mas caí na armadilha do desgosto e finalmente ela mandou um rostinho piscando e eu vi aquele rostinho piscando e fiquei puto e saí pra cagar nas esquinas por três dias e desde então os orgulhos falaram mais alto do que os humanos bestializados pelos teclados já que é mais fácil ser orgulhoso sem a maldição do olhar diante de si e então ficaram os dois orgulhos conversando e nós não falamos mais e os nossos orgulhos saem para se enamorar em solidão só que eu não eu estou lidando bem e continuo na busca, eu já te falei da busca?
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Eu aproveito a deixa saboreando a dianteira no placar dessa batalha com Têmis e volto a observar o camponês e o trigo e sinto que nem preciso falar da luz branca já que o consultório dela tem uma luz branca e isso pode favorecer o seu mando de campo e eu já imagino se ela se aproveita disso e vem me torturar e o divã se transforma numa cadeira de dentista e contra os dentistas eu sei que não tenho chance então é melhor guerrear com os psicólogos e atiçar a busca nos seus ouvidos moucos quando se fala da busca. Têmis disse que eu não devo ficar pensando nisso e que o melhor era responder a mensagem se eu ficasse pensando demais mas que se eu não pensasse demais era melhor não responder já que assim ela ia ter um tempo pra pensar e sentir saudade de eu que eu que sou eu mas que isso tinha que partir dela e que se não partisse seria uma pena mas na verdade Têmis disse isso e não estava com pena e então eu esqueci o camponês e o trigo e retomei minha posição de batalha e argumentei que o orgulho não passa de covardia contra os próprios desejos e ela disse que não se trata de orgulho mas de autopreservação diante do que ela fez comigo e que seguir na busca por ela nesse momento seria uma condenação inconsciente à autodepreciação para agradar o outro e aos meus desejos mais irracionais e eu tive que dar esse ponto para Têmis pela lucidez da observação. Eu me defendo com minhas armas de Jorge para que ela tenha razão mas não me convença afinal são assim todos os julgamentos e eu já participei de uma dezena deles no curso de uma curta existência ao passo que não posso alegar ignorância perante os fatos de juízo e impera-se a necessidade de apelar para a busca e por isso eu olhei para o camponês e lembrei do trigo e de Van Gogh e disparei contra Têmis e seu batalhão de verdades e bom senso. A busca, eu disse, não é algo que possua significado concreto mas você sabe e eu sei que no fundo de cada orelha tem um zumbido que muita gente chama de deus e eu chamo de zumbido mas pode chamar de deus se quiser e esse zumbido é um chamado incessante para a batalha de mais um dia de mais uma refeição de mais um pouco de sentimento pra observar a senhora que anda devagar pela calçada esburacada e desfila sua independência, na busca, o paletó com alguém dentro que olha para o relógio a cada quinzeminutos para poder se atrasar a cada quinzeminutos e ele também, na busca, a garota que caminha com seu vestido florido e seu fone de ouvido e seu sorriso no rosto e seu sofrimento por dentro na epopeia de ser mulher e então ela, na busca, e o jovem com seu skate que carrega os estímulos no bolso para conseguir olhar pro céu e enxergar as nuvens como um elemento da sua insignificância e assim evitar o suicídio e seguir, na busca, e então é a busca que te faz colocar os pés na rua mas também é ela que faz o zumbido ficar mais alto a cada hora do dia e é a busca que permite que o zumbido diminua gradativamente para que você possa se distrair por algumas horas mas também é ela que retoma os ruídos e o zumbido pra te lembrar da busca, sabe, a busca. Eu venço Têmis pelo cansaço e o altruísmo de sua preocupação com os devaneios humanos e ela carrega o assunto de volta para a desilusão amorosa e eu acato e não falo mais sobre a busca mesmo com o zumbido me estourando os tímpanos e eu tenho certeza que os tímpanos de Têmis estavam prestes a estourar também mas é assim que a gente faz quando esse zumbido fica muito alto a gente ignora
revista uso, #2
o zumbido e segue na busca que é o que o zumbido quer. Têmis me pede pra falar como eu me sinto com tudo isso e se eu não estou cagando demais pra um jovem como eu que tem uma vida de possibilidades pela frente e eu respondo que talvez esteja cagando muito mas sabe como é e que eu não sei como eu estou me sentindo eu só consigo escutar o zumbido e cagar e pensar no camponês e no trigo e na arte e então ela pergunta pelos meus pais e eu calo e ela insiste e eu me vejo obrigado a ceder e começo a falar deles e que na verdade sempre foram pessoas fáceis e que eles também estão na busca o que deixa tudo mais fácil... Têmis então se irrita e arremessa o caderno pra cima conferindo três giros perfeitos de centoeoitentagraus ao objeto que cai obediente em sua mão esquerda com cada letra em pé e surpreendentemente não-borrada enquanto a caneta na direita já recomeça a espalhar tinta pelas páginas e embora eu não tivesse visto a cena pela posição do divã eu achei aquilo bonito é claro mas não tão bonito quanto o barulho da voz que ela que ela que é ela respirava no meu ouvido calando o outro zumbido e esse zumbizar me fazia um bem que chegava até a doer e eu não ligo muito para a impaciência de Têmis a malabarista de cadernos e continuo falando dessa voz que ela zumbia no meu ouvido e a conversa segue por mais sete minutos até que Têmis pronuncia uma provocação final como a sentença de um julgamento inconcluso e me manda embora dizendo que acabou o tempo para eu que eu que sou eu que me levanto e pisco para o camponês e para o trigo e me pergunto por que eu não briguei com o carteiro.
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III. Eu trabalho. E chego meia hora antes porque sigo uma pessoa na rua de um jeito que incomoda até ela se incomodar e virar em uma rua e eu sigo andando reto porque não é a minha rua e a minha vontade de incomodar não é tão grande mas o passo acelerado fez com que eu chegasse em frente ao edifício antes do horário então eu encosto o cotovelo no balcão da padaria e peço um pão na chapa e um café puro e o Zenildo traz o pão com a manteiga ainda fresca e sem torrar as extremidades da canoa o que me apresenta uma prévia da insignificância de mais um dia sem um café da manhã excepcional e o Zenildo começa a falar do Palmeiras e de como a mulher dele reagiu aos seus gritos após a derrota por umazero e disse que ele tinha que escolher e que era o verdão ou ela e o filho de sete meses que esganiçava o choro noite adentro e ele gargalhou ao me contar que levantou do sofá buscou a cinta e disse pra ela escolher entre os gritos ou um cemitério e se orgulhou com a preferência da freguesa e como eu não torço para o Palmeiras e o pão na chapa não estava bem feito eu mando ele tomar no cu e cuspo café quente no celular dele que leva na esportiva. Eu entro no edifício e dou bom dia para todos mas só o Arnaldo responde e eu olho para ele com um olhar de desprezo e começo a fazer o que eu tinha que fazer porque eu tenho uma porção de coisas pra fazer mas eu decidi fazer só uma porção delas então eu preciso começar cedo pra apresentar essa porção e por isso eu telefono para o presidente da câmara de comércio pra marcar uma entrevista sobre a venda de aviões para Cingapura ele atende e fala alô eu respondo e explico quem eu sou e o que eu preciso e então ele quer saber mais sobre quem eu sou e o que eu preciso e eu explico durante seis minutos e ele ouve atentamente até a última letra e em seguida me pede pra enviar tudo isso por email então eu desligo o telefone antes de mandar ele tomar no cu e envio um email com os seis minutos do que eu tinha dito e um pouco mais de coisa e ele se dá por satisfeito e confirma a entrevista no dia que eu queria e como na verdade eu também não queria nada dele nós ficamos por isso mesmo até sexta-feira às 11h no seu escritório na Faria Lima. E como eu já tinha feito um pouco da porção de coisas que eu precisava eu abro o computador e começo a ler um texto sobre a insensibilidade dos homens que mijam de pé e não percebem para onde o seu mijo respinga e que esse site instalou uma luz roxa daquelas pra mostrar exatamente para onde vão os respingos e como eles ficam expostos por toda a superfície do tampo de sentar a bunda da privada e que mesmo quando o tampo está levantando ainda assim o mijo respinga na parte que ninguém senta mas também atinge a parte onde repousamos a bunda porque ele sobe ao bater na água e descarrega todas as suas bactérias urinais que podem causar sérios desvios de comportamento antroposófico e ataques repentinos de ciúmes e de repente chega uma mensagem. Eu perco o chão e me levanto pra dar uma mijada e ver para onde os respingos se espalham e eu até consigo ver alguns mas não todos aqueles que o texto descreveu o que me leva a conclusão de que devo colocar uma luz roxa no meu banheiro só pra ver esses respingos e sentir que ainda existe alguma verdade no mundo mas na verdade eu que eu que sou eu sei que não existe então foda-se a luz roxa porque na verdade eu vou comprar uma daquelas raquetes de matar
revista uso, #2
mosquito porque tem aparecido muitos mosquitos em casa e os mosquitos ficam zumbizando no meu ouvido e quando eu escuto o zumbido deles eu deixo de escutar o zumbido que tem no fundo do meu ouvido e que eu não chamo de deus e quanto mais mosquitos zumbizam no meu ouvido menos eu consigo me concentrar na busca e se eu não pensar nela, a busca, eu acabo pensando nela que ela que é ela e que voltou mas não voltou pra eu que eu que sou eu. Eu retomo as estribeiras e sento na mesa do trabalho e começo a pesquisar sobre os aviões que o governo brasileiro deseja vender para Cingapura e eu estava conseguindo organizar as ideias até que o Arnaldo me chama e fala que arrumou um esquema bom para fazer no final de semana em um lugar escuro cheio de moscas onde dá pra cagar a vontade e putaquepariu como eu odeio o Arnaldo mas eu me sinto mais inteligente perto dele e gosto dos lugares escuros onde dá pra cagar então eu dou corda e pergunto mais sobre o lugar e ele fala que vai tocar música dos anos noventa e que ele adora relembrar da adolescência dele e eu que eu que sou eu não gosto tanto assim porque a minha adolescência foi um momento de cagadas e zumbidos não muito diferente do momento que eu tenho agora mas agora pelo menos eu ajusto as coisas à minha busca e rejeito deus e não sei o que eu quero e por isso eu consigo buscar então eu me levanto e o Arnaldo fica como uma criança perguntando se eu vou no tal lugar e eu disparo um sorriso malicioso e digo que sim eu vou e então me levanto para buscar alguma coisa.
IV. Eu sei que todo fim de dia o trabalho acaba por mais que ele não queira e que eles também não queiram que você pare de trabalhar mas o fato é que o trabalho acaba pra que você possa acordar amanhã de novo pra trabalhar então depois que eu fiz a porção de coisas que eu tinha proposto pra eu que eu que sou eu decidi que era o momento de sair dali antes que o Arnaldo me puxasse para fumar um cigarro e falar das coisas que eu gosto pra me empurrar pra mais uma cagada na esquina sem moscas e eu chego em casa e tranco a porta porque é importante trancar a porta nesse mundo de hoje que anda muito perigoso como se todo mundo estivesse buscando alguma coisa. Eu não suporto filmes de vampiro mas passava um na tevê e como eu não estava buscando nada naquele momento eu achei que talvez esse filme fosse me trazer alguma coisa que eu não estava buscando e acendo um baseado e começo a assistir o filme em que o vampiro se apaixona pela moça e ela por ele mas ela ainda não sabe que ele é um vampiro então o filme todo é baseado nesse suspense porque você sabe que ele é um vampiro e que ela é ela mas ninguém no filme sabe nada de si ainda e nem do outro e eu me identifiquei e vi até o final quando a moça descobre que o seu don juan é um vampiro e na verdade ela já sabia então eles ficam juntos mas no primeiro beijo ele transforma ela em vampiro e mesmo que soubesse ela fica puta e vai embora, buscar alguma outra coisa.
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revista uso, #2
Asfalto Texto de Iago lago Ilustrado por Mathias Vilardaga
0,5 asfalto molhado leva cheiro de aurora que atenua-se em ocorrer hesita... e as luzes dos postes da cidade chancelam-se chance de brilhar um pouco mais é noite e é dia e nem noite nem dia é e os passarinhos que inda dormem sonham com carros derrapando e eu que inda acordado penso em passarinhos sonhando ué queira-se viver na borda consegue-se queira-se viver dum lado (ou doutro) não se consegue o asfalto molhado a aurora ampla são um só a fronteira que dita tudo
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1 meu primeiro beijo foi no asfalto foi seu cheiro que me seduziu língua no piche: transfiz-me em deste moderno caminho (como todos aqueles a que se apresenta o prazer fácil e generoso do beijo quis namorar e virar meu namorado)
3 esqueci-me toda à via esqueci-me lá por querer
“a prefeitura do município por fim
que sei ser só trilha em mata
decidiu asfaltar aquela estradazinha
ou no máximo estrada de terra
antiga que leva da igreja da matriz ao bairro bom menino, bairro onde moro
: não durei muito em ser asfalto
desde então ninguém
passa caminhão passa ao caminho
vem me visitar”
desvendam-se os buracos e o buraco: o reencontro ao barro nobre
4 nos dias de sol
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um calango sonha virar asfalto
o verbo asfaltar indicativo em sua segunda pessoa presente singular faz-me lembrar duma fome que tenho
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e que não cessa e que é uma fome de mão-dupla a cidade de são paulo tem um ronronar que inicia bem-mal a claridade desponta no horizonte já pensei que fosse o barulho do sol vindo nascer! mas é barulho de motores mormente motores de automóveis que esta selva não é de concreto é selva de asfalto!
revista uso, #2
6 brinco que meu carro é um barco (brinco que o asfalto é mar um suaue mari magno e os infortúnios ali da cidade não são meus, que meu deus é-me bom!) brinco de ouvir música boa brinco que os pés tão pretos do moço que tem um pano sujo e quer limpar meus vidros de graça são pés de gente que escolhe brinco que se ele encostar nos meus vidros com este pano imundo eu vou matar ele brinco que as faixas brancas pintadas no asfalto não existem brinco que o ciclista que passa no meu caminho não existe brinco de ouvir música muito boa brinco que essa cidade é minha e de mais ninguém e que o asfalto em que navego é uma pele que ela tem e que ele é lindo
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meu coração é uma bomba-relógio que um dia eu engoli Texto de Isabela Bosi Ilustrado por Julia Pinto
revista uso, #2
inventei um roteiro de filme: começo com meu corpo na cama, sozinho, o silêncio da casa e cheiro de suor e álcool que parece vir do banheiro, mas sai de dentro da minha boca. os bilhetes da mega-sena estão amassados na bolsa de ontem. caminho até a próxima estação. salto naquela antiga praça, onde já senti tanto frio. sem vontade alguma de voltar ou de ir. sento no banco verde. o dia está lindo. ninguém reparou. a tv da frente está ligada em alguma novela com muitos gritos. o homem sentado na cadeira de plástico parece não achar nada melhor.
vou ficar aqui pra sempre. meus dedos se mexem à toa. minha lombar dói. pego o primeiro carro livre: fiat branco, vidro fumê, banco de couro. largo meu corpo no sofá imundo desta sala deserta. pego os bilhetes. o primeiro número é seis. o segundo, onze. errei todos. todos.
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Passos Texto de Avelino Alves Ilustrado por Pedro Mirilli
Compro uma arma com numeração raspada. Quero me proteger dos cachorros sarnentos, dos gatos meliantes, dos vizinhos dementes, das crianças que crescem, dos ex que estão mortos, dos parentes que respiram, dos dias que insistem, dos carros que passam, dos pombos que cagam, dos dias que demoram a ser tardes, das tardes que hesitam em ser noites e das noites que nada trazem. Vedo as janelas e tranco as portas. A morte, se chegar, que descubra como me achar. Dono de um teto e uma arma de numeração raspada eu me preparo. Espio a rua pela fresta da cortina. O primeiro que passar tomará um tiro certeiro, apenas por existir, apenas por isso. O que já é mais que suficiente. Ninguém passa. Mas eu estou ali. Sozinho e acompanhado demais. Uma andorinha sobrevoa rapidamente o quintal. Procura seu bando. É isso. O instinto nos salvaria. Mas resolvemos pensar. E o pensamento nos separou. Não há sentido em viver. Aí eu vejo o nego Bastião: suicídio. Eu vejo o Lazo: suicídio. Eu vejo a Dagmar: suicídio. O Jaco e o Silas: suicidas. Aí eu vejo que existe em mim a possibilidade de me tornar também uma andorinha. Então eu não ouço o barulho do tiro.
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A ânsia de propriedade Texto de Sendras Berloni Ilustrado por Léo Daruma
Se conto com que pés abri a cova do meu estilo, diante da qual me tenho aqui, agora e hoje, não me creem. O estilo é o fim da criatura e o início da posteridade; aquele destinado ao que é grande e soberbo vai morrer no estilo, e vai feliz. Conto apenas porque o meu estilo, o que me torna diferente dos outros, é particular; e é particular porque não é. O meu estilo, buraco na alma que visto para estar aqui, boca de terra no chão da terra de mim mesmo, é o mesmo que o de todos aqui. Todos nós possuímos o mesmo estilo, seco e áspero das almas nobres que partiram cedo. Deus quer os bons perto de si, dizia o poeta sobre o seu amigo, para consolar-se da sua morte antecipada. Mas o amigo tinha se matado! E esse deus era muito pequeno se terceirizava assim o seu desejo – queria perto os bons, mas esses que tratassem de pagar eles mesmos a passagem! Boa sorte aos que não têm dois trocados de coragem para fazer a travessia. Que seja. Eu e nós não somos desses. Nosso senso de humor é outro, e estamos bastante satisfeitos em permanecer aqui, os pés juntos, se desfazendo aos poucos, cada qual no buraco do seu próprio estilo de estar, de se deitar e aconchegar as costelas e as vértebras, dispostas ao tocador de xilofone universal, com as suas baquetinhas. Alguns, como esse deus de que a história dá notícia, têm a ânsia de propriedade; querem ter tudo. Isso não se vê só com o dinheiro, e além do mais a ânsia de propriedade, com relação ao dinheiro, é burra: desce do impulso das coisas imediatas um segundo e vê que o dinheiro é, por excelência, a única coisa sobre a qual não se pode estabelecer propriedade. O dinheiro, se for guardado como propriedade, não serve para nada, e só tem uso se for gasto; só se pode tê-lo não o tendo, e tendo outras coisas em seu lugar. Aqueles que têm a ânsia de propriedade sobre o dinheiro não o gastam, e assim sendo, não acumulam propriedade. Puro e simples. Não, a mania da ânsia de propriedade diz respeito ao desejo de querer alargar as baías de si mesmo sobre tudo. Ela se percebe no olhar, e na maneira como quem sofre dessa patologia usa a língua de todo dia. Uma vez, na praia, vi um sujeito assim; nós, que estamos assim, não temos nada, mas temos memória: só posso contar o que vi. A praia, além do mais, é o local onde a ânsia de propriedade se manifesta com mais agudez, e mesmo naqueles espíritos que a trazem latente é na praia, mais que em qualquer outra parte, que ela reclama seu lugar. Nem bem eu me sentei na minha cadeira, certo dia na praia, avistei esse sujeito; era
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branco, e estava ajoelhado, diante de um homem grande e negro. A esposa e a filha do segundo homem afastaram-se, incomodadas com a presença constrangedora e desinibida daquele sujeito, que se aproximara e se ajoelhara diante do pai de família. De camarote, assisti ao espetáculo da ânsia de propriedade, em primeira mão. Pude ouvir apenas alguns pedaços da conversa, entre o bater das ondas, mas foi o bastante para montá-la inteira e apreciá-la. Com efeito, vinha o sujeito pedir ao outro que o reconhecesse como sócio em uma proposta qualquer de negócios. De joelhos, com as mãos nas coxas do outro, rogava, explicava as vantagens financeiras da sociedade, dava conta de alguns detalhes e chutava de lance em lance o capital inicial necessário e as taxas de distribuição dos dividendos que a oportunidade prometia. Tudo em vão; o homem, sentado na sua cadeira de frente para o mar, desviava o olhar e desconversava, visivelmente impaciente, mas mantendo a compostura – possivelmente desconfortável, ainda, com a evidente insinuação sexual, involuntária quero crer, que a escultura de composição do par fazia ali, no meio da tarde, na praia pública. Escutei, então, como de presente, entre os barulhos habituais da festa humana do fim de semana, o pedido de ajuda, claro, cristalino: “me ajuda”, que o homem branco ajoelhado proferiu, antes de desistir da empresa e retomar o seu lugar solitário debaixo do seu guarda-sol, cigarro na boca, desolado. A esposa e a filha retornaram, rindo do caso; o pai de família, consternado, tentava disfarçar, mas pediu a conta da barraca e tirou as duas dali, sumindo na multidão. Era a ânsia de propriedade! O resto da tarde observei de canto de olho o sujeito que a ânsia carcomia, inconformado. Há muitos como ele, e na praia eles proliferam. O sujeito compra uma casa na praia, e logo crê que a praia é sua; caminha pela praia como se caminhasse pelo seu salão particular, divisa os outros como intrusos ou sócios em potencial. Para o sujeito acometido pela ânsia de propriedade, tudo é ou isso ou aquilo: ou um negócio, ou uma invasão. Pouco antes, ainda durante a cena deplorável, posso jurar que o escutei dizer ao outro, com os joelhos enfiados na areia: “reconheça-me como seu senhor!”; e logo um humilhante “por favor...!”. O sujeito compra uma casa na praia como se ali desembarcasse de uma caravela, e sofre da ânsia de propriedade... O canto da praia é o “meu” canto; a barraca onde ele vai beber e passar os domingos é a “minha” barraca; o mar, quando
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está bom, é o “meu” mar. Até do trabalho, fruto amargo da árvore de existir – mas não será a existência o fruto amargo da árvore de trabalhar?; me perco, é tudo amargo... Até do trabalho alheio se apropriam: a cozinheira faz uma lasanha, é a “minha” lasanha”; a empregada limpa o banheiro, é a “minha” mania de limpeza. Assim, estendido, esticado, ele divisa nos limites do continente o seu limite, e sofre, sem saber.
— É verdade – disse alguém que me escutava, sem eu saber – Conheci uma mulher que tinha isso. Ela também queria os bons perto de si. Ficou profundamente abalada quando, certa vez, um funcionário seu, de conduta moral exemplar, ilibado, que ia pelo mundo com a honestidade estampada na testa, morreu, e pior – por negligência. A mulher repetia, no dia do enterro, ao qual não pôde ir por conta de outras obrigações, “o que será de mim sem o meu Eusébio?”. O rapaz se chamava Eusébio. Morreu cedo, e era bom. Disse isso e se calou para sempre. O silêncio fez corpo, ou melhor dizendo, faz, fez e fará. Aqui tudo acontece de uma vez e tudo o que se dá num instante se dá também para sempre; além do quê, não há um “aqui” propriamente dito: toda parte é tudo e tudo é cada parte. No extremo infinito em que os opostos convergem perdi o fio da meada que vinha costurando, e também fiz do meu estar no tempo o silêncio que senti que devia ao pobre Eusébio, morto e bom. — Conheço outra mania, muito mais interessante. Uma doença incrível, que a pessoa sente não em si, mas nas coisas, e que além do mais não é uma doença real, mas um mal-estar imaginário. – Isso foi o que disse um outro vizinho, abrindo os olhos que já não tinha e estalando os ossos que logo não teria mais, rompendo o silêncio que queria nos meter outra vez em melancolia. Assim se passa o tempo aqui, à volta da fogueira fria dos nossos anos deitados, cada um querendo vencer o outro, provar a todos que a sua cova lhe faz maior merecedor das atenções dos demais. Atenções essas que damos só por fingir, pois o que tínhamos de ouvidos também já há muito tempo a terra comeu, digeriu e regurgitou na forma de novas orelhas, penduradas nas cabeças de tudo.
— Uma doença muito mais interessante – continuou a voz que havia se antecipado, tendo escutado o nosso diálogo sobre a ânsia de propriedade – Essa doença das coisas, que nem as coisas nem as pessoas têm, realmente possui uma manifestação muito evidente, que leva por nome a hipocondria veicular: trata-se do mal que sente o sujeito quando pensa que tudo o que vai mal vai mal com o seu veículo. Em geral, os principais acometidos são os carros, também os populares, mas especialmente os carros de colecionador. Em casos extremos o sujeito tem a hipocondria veicular também em carros alugados, mas são poucos os relatos
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dessa variação absurda; a hipocondria veicular é, em geral, coextensa a isso que foi chamado aqui de ânsia de propriedade – nome do qual, devo dizer, discordo; “angústia” ficaria muito melhor, visto que se trata, em verdade, de um mal-estar não nomeado, e para o qual a propriedade não é mais que uma resposta paliativa, um nome provisório. Seja como for, a hipocondria veicular pode até ser um caso, um caso muito particular, da angústia ou ânsia de propriedade, mas certamente é o seu caso mais interessante. Uma vez vi um homem que sofria silenciosamente, insuspeitadamente, da hipocondria veicular. Eu estava em um posto de gasolina. Os postos de gasolina são os locais privilegiados de foco dessa bactéria alucinatória que é a hipocondria veicular. Esperava o frentista calibrar os meus pneus, quando ouvi um rapaz jovem, bonito e bem penteado que confessava ao outro frentista o motivo da visita apressada que fazia à estação de abastecimento: acontece que estava acostumado a rodar 500 quilômetros com o tanque cheio, e da última vez que abastecera tinha conseguido rodar apenas 300. Naturalmente, achou que o tanque estava vazando, e correu com tudo o que tinha para levar o mais rápido possível o carro à checagem. Vejam só como se manifesta a hipocondria veicular: o sujeito não levou o carro ao mecânico. Não. Levou ao posto, onde sabe-se perfeitamente que, mesmo que fosse real o vazamento no tanque, não haveria possibilidade alguma de diagnóstico, quanto menos de reparo. Mas à alma atormentada pela hipocondria veicular não importa a verossimilhança da cura – na verdade, ela tem muito medo dos mecânicos, desconfia da sua sabedoria prática e do seu conhecimento hermético, capazes de desmentir a hipocondria em duas voltas de chave. O frentista ouviu em silenciosa cumplicidade o relato apreensivo do moço, dono de uma joia de cadilaque placa-preta, cromado, blindado, feliz, e terminou por dispensá-lo de tanque cheio e consciência lavada. Comentei com o meu frentista o caso: o cara rodava 500 quilômetros com a gasolina a três reais; com a gasolina a cinco, roda 300. Pura regra de três, aritmética besta. O frentista sorriu, terminou de calibrar os pneus e foi fazer o que tinha que fazer, não sei o quê, nem o porquê. Nunca me esqueci do rapaz do cadilaque e do episódio mais evidente de hipocondria veicular que já tive o prazer de presenciar. Agora me digam, é ou não é uma variação interessantíssima, essa, disso sobre o quê vocês falavam, que já não me lembro mais o que era?
Não houve resposta, e a voz, contrariada, outra vez silenciou. De minha parte, até fui simpático à história da hipocondria, mas manda o bom senso entre ossadas experimentadas que tem mais razão o silêncio que o entusiasmo, e paguei a interrupção eu também com o pouco caso que trazia no bolso calcificado do tédio. – Posso contar uma também? – precipitou-se o coveiro, que por ali passava. Gostamos de conversar com o coveiro, é nosso manicure de estimação. Deixamos que ele se sentasse sobre uma das lajes e torcesse um cigarro, afim de descansar um pouco da vida na companhia festiva dos mortos.
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— De todos os males (e não foram poucos) – começou o amigo coveiro – que eu já encontrei nessa vida curta, sanguínea, que empreendo com firmeza desde que fui expulso do conforto de ainda não ser nada, com certeza o que mais me chamou a atenção foi um caso que vi certa vez de uma patologia rara, mas incrível, à qual um doutor amigo meu chamou, quando lhe relatei o caso, de “decoro fúnebre”. Consiste no seguinte: não tendo morrido, mas já muito velha ou doente para reclamar propriedade sobre si mesma, a pessoa é tida por falecida, e é enterrada. No velório, constrange-se a tal ponto, vendo toda a gente que está ali para amá-la uma última vez, que não é capaz de reunir forças para erguer-se e dizer “estou aqui, estou vivo”; faz-se de morta, para não atrapalhar o dia de semana que lhes reservaram a família e os amigos, e é enterrada num alegre decoro, que se chama o decoro fúnebre. Este mal, que é querer sempre o bem de todos, acomete apenas pessoas de índole bem-comportada, pessoas que não interrompem o jantar para pedir que lhe passem o sal, para não incomodar a conversa dos outros. Uma vez enterrei uma senhora assim. Tendo fechado o caixão antes de baixá-la na cova, senti no cangote uma última piscadela que ela me lançava, em segredo. Aceitei o papel de cúmplice, um pouco por respeito à falsa defunta, migalha de compaixão com que me pedia um último filamento de autonomia, outro pouco por não querer causar mais desconforto à família já resignadamente consternada, e segui com o procedimento tal qual mandam as escrituras.
Isso foi o que disse o coveiro, e depois também ele se calou. Um farelo de monotonia caía suave, sobre as lápides.
Não acredito em alma; nem eu, nem ninguém. Pergunte a qualquer morto se ele crê em espíritos: ele dirá que não, e com veemência. Não posso, nem por isso, deixar de notar a cócega que o episódio do coveiro me provocou nas ideias, e ainda mais a mim, que sou só ideia – uma ideia pouca, e ademais pouco original, mas uma ideia. É pobre a alma do nosso coveiro, e solitária a sua existência: senta, fuma e fala sozinho nas tardes longas que lhe reservou o caminho torto das coisas, quando ninguém morre para visitá-lo.
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El arte de ganar y perder A arte de ganhar e perder Textos de Pedro Juan Gutiérrez (Cuba) Tradução de João Mostazo Ilustrado por Ana Helena Pompeo
LO IMPOSIBLE Quisiera incluir en mis poemas las pequeñas flores amarillas de la mos-
O IMPOSSÍVEL
taza. La eternidad infinita, un rasgo apenas, como hace William Carlos
Queria incluir nos meus poemas as
Williams. Bueno, quiero decir, incluir
pequenas flores amarelas da mostarda.
todo. No sólo la furia y las tormentas y
A eternidade infinita, um instante ape-
los rayos. Los hierros de Ogún y el sexo
nas, como faz William Carlos Williams.
desenfrenado con mujeres ansiosas.
Bom, quero dizer, incluir tudo. Não só
La ternura que invade el mundo con
a fúria e as tempestades e os raios. Os
tibieza. El suave rasgar de este lápiz
ferros de Ogum e o sexo desenfreado
sobre el papel, el leve rumor de la
com mulheres ansiosas. A ternura que
televisión que oigo a lo lejos. Preparo
invade o mundo com fragilidade. O
un té en la cocina. Escribo un poema
risco suave deste lápis sobre o papel,
leve que se disuelve mientras una par-
o leve rumor da televisão que escuto
tícula atómica viaja en una millonésima
ao longe. Preparo um chá na cozinha.
de segundo de un extremo a otro de
Escrevo um poema leve que se dis-
la galaxia. Y de este modo lo imposible
solve enquanto uma partícula atômica
es el misterio. Las flores amarillas de la
viaja em um milésimo de segundo de
mostaza siguen su vida equilibrada y
um extremo a outro da galáxia. E deste
fructífera en el jardín.
modo o impossível é o mistério. As flores amarelas da mostarda seguem sua vida equilibrada e florescem no jardim.
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AUNQUE NO TENGO PRISA
AINDA QUE NÃO TENHA PRESSA
Miro a través de la ventana. Llueve y siento frío
Olho pela janela. Chove e sinto frio e umidade. O
y humedad. El desasosiego crece mientras esta
desassossego cresce enquanto esta senhora tagarela
señora parlotea sobre sus vecinos enfermos.
sobre seus vizinhos doentes. Estafilococos dourados.
Estafilococos dorados. Su marido la dejó viuda
Enviuvou há pouco tempo, o marido morreu na sala
hace poco, murió en el quirófano. Paro cardíaco.
de cirurgia. Parada cardíaca. As três vizinhas morre-
Las tres vecinas que han muerto recientemente
ram recentemente (com todos os detalhes mórbidos)
(con todos los detalles morbosos) y el agua con-
e a água contaminada, os ovos, os embutidos de pés-
taminada, los huevos, los embutidos de pésima
sima qualidade. Salmonela. É uma sequência inces-
calidad. Salmonelosis. Es una secuencia ince-
sante de desgraças. Malícia, sujeira tropical, médicos
sante de desgracias. Malicia, suciedad tropical,
que não sabem o que fazer. Olho bem pra ela. Penso
médicos que no saben qué hacer. La miro bien.
no que a gente podia fazer na cama. Se ela se calasse
Pienso en lo que podríamos intentar en una cama.
um pouco. Abro a janela e entra uma rajada de ar e de
Si se callara un poco. Abro la ventana y entra una
chuva. Tudo se repete, uma e outra vez. Vou embora,
ráfaga de aire y de lluvia. Todo se repite una y
ainda que não tenha pressa. Já esta tarde não tem
otra vez. Me voy, aunque no tengo prisa. Ya esta
nada pra fazer. E caminho sob a chuva enquanto
tarde no hay nada que hacer. Y camino bajo la
penso que trágicos. Por que? Não entendo.
lluvia mientras pienso qué trágicos. ¿Por qué? No entiendo.
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ESAS EXTRAÑAS LUCES Hacer algo inútil. Algo que no sirva para nada. Ir en sentido contrario. Perder el tiempo. Tomar una cerveza y un poco de ron. Salir por la noche a la terraza. Mirar al cielo y sacar cuentas. Sí, hace mucho que no veo esas extrañas luces que se mueven a gran velocidad y altura. Y el miedo a que de nuevo se acerquen y entren en la casa.
ESSAS ESTRANHAS LUZES Fazer algo inútil. Algo que não sirva para nada. Ir no sentido contrário. Perder tempo. Tomar uma cerveja e um pouco de rum. Sair à noite no terraço. Olhar para o céu e acertar as contas. Sim, faz muito tempo que eu não vejo essas estranhas luzes que se movem em alta velocidade, a grandes alturas. E o medo de que elas de novo se aproximem e entrem na casa.
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LA SOPRANO Las pequeñas flores secas de las acacias caen y forman remolinos en el aire. Dentro tienen semillas minúsculas. Diseminan su historia sobre la tierra. Entro al edificio y asciendo una escalera, tres pisos. Oigo a una soprano. Un canto amortiguado tras una puerta apenas entornada. No resisto la tentación y abro con cuidado. Hay cuatro personas sentadas a una mesa, es una audición. Y la soprano, alta, corpulenta, con grandes pechos. Su voz ocupa todo el espacio. Es agradable esa mujer y canta algo hermoso aunque, claro, no sé qué es. Cierro la puerta y sigo en busca del baño. Al fondo del pasillo me han dicho. Mientras orino veo las acacias a través de una ventana y oigo muy lejos a la soprano.
A SOPRANO As pequenas flores secas das acácias caem e formam redemoinhos no ar. Dentro têm sementes minúsculas. Disseminam sua história sobre a terra. Entro no edifício e subo uma escada, três andares. Ouço uma soprano. Um canto abafado detrás de uma porta apenas entreaberta. Não resisto à tentação e abro com cuidado. Há quatro pessoas sentadas a uma mesa, é uma audição. E a soprano, alta, corpulenta, com grandes peitos. É agradável essa mulher, e canta algo bonito que, claro, não sei o que é. Fecho a porta e sigo em busca do banheiro. No fundo do corredor me disseram. Enquanto urino vejo as acácias pelas janelas e ouço a soprano, de longe.
revista uso, #2
GENTE MIRANDO AL VACÍO Me han regalado un libro esta tarde. Una serie de fotos que Walker Evans tomó en La Habana en 1933. Estamos en 2018. Exactamente 85 años. Y nada. Todo sigue igual. O casi. Mendigos, putas, gente mal vestida, edificios cubiertos de moho y suciedad. Gente mirando al vacío. Gente detenida. Gente que no sabe qué pasa. Gente en una esquina, arraigados en una losa de cemento. Se respira con dificultad por la humedad y el calor. Nada. No pasa el tiempo. Vamos a tomar una cerveza me dice el amigo que me regaló el libro. Tomamos una cerveza y hay silencio. Presiento que se despide. Y así fue. Pasó un año y no supe nada más. Un día lo encontré en la calle. Sucio. Caminaba lentamente, ido del mundo. Le costó recordar mi nombre. Bueno, yo se lo dije. Después me dijeron que sufre Alzheimer y camina por las calles sin rumbo. Vive solo, y se pierde, alucinado, como esos personajes en las fotos de Walker Evans.
GENTE OLHANDO O VAZIO Me deram este livro esta tarde. Uma série de fotos que Walker Evans tirou em Havana em 1933. Estamos em 2018. Exatamente 85 anos. E nada. Tudo segue igual. Ou quase. Mendigos, putas, gente mal vestida, edifícios cobertos de mofo e sujeira. Gente olhando o vazio. Gente detida. Gente que não sabe o que se passa. Gente em uma esquina, enraizados num bloco de cimento. Se respira com dificuldade através da umidade e do calor. Nada. O tempo não passa. Vamos tomar uma cerveja me diz o amigo que me deu o livro. Tomamos uma cerveja e faz silêncio. Pressinto que ele se despede. E assim foi. Passou um ano e eu não soube mais nada. Um dia o encontrei na rua. Sujo. Caminhava lentamente, fora do mundo. Custou para lembrar meu nome. Bom, eu disse a ele. Depois me disseram que está com Alzheimer e caminha pelas ruas sem rumo. Vive sozinho, e se perde, alucinado, como esses personagens nas fotos de Walker Evans.
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FEROZ Todo podría seguir en línea recta y ser aburrido y repetitivo día tras días. Pero la impermanencia es lo único constante. La ferocidad irrumpe como el vértigo y trastorna el suave olor de tu piel. Y yo feroz, como un potro joven. Feroz como si todo se destrozara en un minuto. Cristales, el fuego, una piedra, algo más que se rompe, no sé.
FEROZ Tudo podia seguir em linha reta e ser entediante e repetitivo dia após dia. Mas a impermanência é a única constante. A ferocidade irrompe como a vertigem e perturba o cheiro suave da sua pele. E eu feroz, como um potro jovem. Feroz como se tudo se destroçasse em um minuto. Cristais, o fogo, uma pedra, algo mais que se rompe, não sei.
revista uso, #2
ARMAS – SPORT – CAZA – PESCA En la vidriera tienen una extraña máscara de plástico gris con un gesto rígido, gélido, mete miedo. Junto a ella varias pistolas y revólveres falsos, aunque parecen muy reales y peligrosos. Es un pack. Por 50 euros te lo llevas y te regalan unos guantes negros delgados y flexibles. Te lo pones todo, vas a un banco cercano y lo asaltas, me dice el empleado, sonriendo, en tono de broma. Pero no me atrae la idea. Soy un buen hombre, supongo. Me fijo en los fusiles y las pistolas verdaderas y siento un deleite retorcido de atracción / repulsión. En el ejército, cuando era muy joven, tenía muy buena puntería. Todos se asombraban. Tuve un Mauser alemán de francotirador. Tenía hasta el águila y la suástica nazi grabada en el metal. Después tuve una metralleta checa ligera y finalmente un AK-47. Era la mejor. Ligera y de alta precisión. Perfecta. Yo la adoraba. Adoraba mi AK 47, de Kalashnikov. La cuidaba, la engrasaba y tenía una puntería perfecta, sin error. Disparaba al centro de la diana sin pensar en nada más. Mi vida era como ese fusil automático. Un soldado perfecto. Siempre disparando al centro de la diana. Ahora siento agobio y me tiemblan las manos cuando palpo estas pistolas de juguete rutilantes y perfectas. Las dejo sobre el mostrador, doy las gracias al empleado sonriente, que intenta retenerme y me recuerda que tienen rebajas este mes. Hasta el 20% en algunos productos, señor. Gracias, gracias, vengo otro día, le digo. Y me escapo rápido de la tienda. He tomado por sorpresa al empleado y no sabe que escapo de mí mismo. Ese demonio que duerme.
ARMAS – ESPORTE – CAÇA – PESCA Na vitrine tem uma máscara estranha de plástico cinza com uma expressão rígida, gélida, dá medo. Junto a ela várias pistolas e revólveres falsos, ainda que pareçam muito reais e perigosos. É um pacote. Por 50 euros você leva e ainda te dão um par de luvas negras, longas e flexíveis. Você pega tudo, vai num banco próximo e assalta, me diz o empregado, sorrindo, tirando sarro. Mas não me atrai a ideia. Sou um homem bom, suponho. Olho para os fuzis e para as pistolas verdadeiras e sinto um prazer retorcido de atração / repulsão. No exército, quando era muito jovem, tinha uma ótima pontaria. Todo mundo se impressionava. Tive um Mauser alemão franco-atirador. Tinha até a águia e a suástica nazista gravadas no metal. Depois tive uma metralhadora tcheca semiautomática e finalmente uma AK-47. Era a melhor. Rápida e precisa. Perfeita. Eu adorava. Adorava minha AK-47, de Kalashnikov. Cuidava dela, engraxava, e tinha uma pontaria perfeita, sem erro. Disparava no alvo sem pensar em mais nada. Minha vida era como esse fuzil automático. Um soldado perfeito. Sempre disparando no alvo. Agora estou cansado e as minhas mãos tremem quando seguro estas pistolas de brinquedo brilhantes e perfeitas. Deixo-as sobre o mostrador, agradeço ao empregado sorridente, que tenta me segurar e lembra que estão com descontos este mês. Até 20% em alguns produtos, senhor. Obrigado, obrigado, venho outro dia, eu digo. E fujo da loja. Peguei ele de surpresa, ele não sabe que eu fujo de mim mesmo. Esse demônio que dorme. 48 | 49
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Sem título Texto de Negro Leo Ilustrado por Eduardo Moric
Na bolha de suspeiçoes coletiva. No mundo de duvidas e pronta-acusaçoes. No ultimo estagio de transformaçao da consciencia em sonho, nem a vala de esgoto, nem o odor de fritura: na rede. Onde o ancora do jornal deveria vomitar a cada grafico da bolsa q aparece no televisor de um miseravel, q baba com os assuntos da reuters. Onde o poeta canta versos q singram, obliquos, fantasmas, o ceu nublado no planeta. Onde todas as noites, no vao do teatro. Onde amanha vaga uma estrela, na massa oculta no breu da noite. Onde ferem e exaltam sem justiça: na rede. Na saudade das cruzadas e dos cruzadores. Na comida q se poe em casa com ajuda do publicitario q a condena na intimidade. Nos vazamentos inesgotaveis da puberdade do world wide web. No estreitamento violento dos codigos de comunicaçao, o indecente joinha virtual: na rede. Que a humanidade volte a pastar contra as maquinas. Pelo comunismo catastrofico: na rede.
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Manifesto automático (excertos) Texto de Leonardo Chagas Ilustrado por Maria Rosalem
i.
Ambiente escuso e frio de que se faz o verso, a flor rótula arrota o cânone cancerígeno, não há espaço para lamentar a estupidez, enquanto o corpo aspira o corte e engole a aspirina sem questionar o encanto do acaso opaco que surge diante dos olhos da menina rosa-cruz.
ii.
Cansado do colorido, visão cansada que se apoia na quina da escada, sobe até o firmamento das somas exatas e desce ao corpo ardiloso da esperança morna, detalhada através da luz que atravessa o vidro da câmera estilhaçada pela porrada de anjos esfumaçados.
iii.
Ganesha à luz de velas, na calçada descalça fala versos aos mendigos que tentam dormir distraídos da vida mundana. Os anjos de Sodoma espancam o adolescente pelado que se comove ao ver os mictórios públicos do metrô. Sei que um dia o sonho há de curar-me do espanto há de me fazer chicotear a face do inimigo e roubar dezenas de garrafas de vinho tinto e escondê-las num casacão há de me fazer cuidar melhor dos meus cabelos há de me fazer correr à beira mar comer frutas saudáveis & me estarrecer de pranto quando triste o sonho há de impulsionar minha revolução espiritual e política construir barricadas com corpos estupendos cor de jasmim esculpidos em bronze
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Lugar Comum Texto de Drump Goo Ilustrado por Miri Lee
1. O rapaz vestido elegante possível se limpou um pouco da poeira acumulada em seu paletó e jogou a poeira no lugar reservado para a poeira. O rapaz vestido elegante possível observou a mulher vomitar. A mulher bem gorda vomitava e eu a assistia com muito interesse. Eu observava suas tentativas fracassadas de segurar de disfarçar e de esconder seu vômito acumulado no chão. A linguagem infecta e crio uma parede de barulho para me proteger da linguagem e percebo que o barulho também é linguagem e quando ele para, sou lançado a um vazio. O lugar que queria chegar é aqui: Os pedreiros da janela acenam para mim implorando por ajuda porque foram abandonados ou se perderam no meio da construção que se arrasta até o horizonte. Que durará a vida inteira, minha e a dos pedreiros. Que atingirá o infinito e renovará a ruína quando estiver pronta e nós estivermos mortos. Serão nossos túmulos. Os pedreiros acenam para mim e imploram por comida qualquer coisa mesmo. aceno de volta sorrindo. sou gentil e delicado. não me considero melhor que os pedreiros. aceno de volta para os pedreiros e resolvo abandonar meu apartamento que tem vista para a construção e para os pedreiros-náufragos. ainda no meu apartamento sinto o cheiro de carne humana na fogueira e sinto nojo. a linguagem infecta e tento me livrar dos resquícios de linguagem e quando tento te explicar isso você finge que entende mas em seu livro você escreveu com paralavras que não diziam nada e eu disse: bem legal, mas não fui honesto de verdade. As paralavras aumentam e aumentam e aumentam e aumentam.
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2. Pós-humano, o rapaz elegante-possível se levanta e sai de seu apartamento porque alguém chama por ele. O rapaz elegante-possível tenta ser um dândi miserável. Os dândis miseráveis se reúnem para beber sempre no mesmo lugar e ficam todos sujos e inchados e um deles vomitou nos próprios pés outro dia. Os vômitos são uma constante porque todos personagens aqui estão um pouco enjoados, tanto pela escolha de palavras quanto pela velocidade quanto pela repetição quanto pela narrativa ver-ti-gi-no-sa, como foi classificada. É um enjoo ficcional, uma tentativa de se desprender do óbvio e do comum e do antigo e do dominante mas é também um enjoo de reconhecimento de se perceber igual e usando dos mesmos artifícios, só que pior. O rapaz elegante-possível está bem bêbado e começa a falar de si mesmo. O rapaz elegante-possível sempre fala de si mesmo mesmo quando fala dos outros. Ele soluça e inventa uma nova história de sua infância. Uma vez derrubou um pedaço de miojo em um disquete que continha um jogo em DOS e esta é sua primeira lembrança da infância: o miojo seco no disquete. Impossível de tirar sem destruir o disquete e impossível de usar sem tirar o pedaço seco de miojo. O rapaz elegante-possível (na época o menino elegante-possível) começou a lamber o disquete em desespero: seu primeiro sentimento: desespero. Derrubam um prédio recém-erguido porque não era exatamente como o planejado. Como toda a cidade está em reforma ou construção, todos vivemos no mesmo arranha-céu. Da minha janela assisto à construção e aos pedreiros implorando por comida e nós, condôminos, esquentamos água e atiramos nos pedreiros, que gritam em dor e satisfação. Os dândis miseráveis tentam brincar de juventude, mas já se sentem velhos demais. Outro dia eles deram uma festa. Você estava lá na festa e disse que estava se divertindo bastante e dançou uma música com aquele cara que não é nem um dândi miserável nem um pedreiro então talvez fosse da força policial e depois você me disse que isso nem significava nada. que eu não estava fazendo muito sentido. Eu disse que você entendia finalmente e me atirei da janela. Você pintou um quadro bonito sobre isso e eu não sabia que você era artista. As marteladas são altas e incessantes. A obra dura vinte duas horas por dia e sempre ao redor do prédio em que todas pessoas da cidade dormem. Portanto ninguém dorme. É uma técnica da construtora para atrair voluntários.
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Os policiais me param e me perguntam para onde estou indo e eu digo a eles e eles me perguntam se quero carona eu digo que sim, quero e eles dizem sobe aqui e eu agradeço. Um policial começa a puxar assunto. Ele pergunta que faz menino bonito aqui na rua a essa hora. Respondo que estava só pegando uma carona com os policiais bonzinhos que me ofereceram carona para chegar onde eu pretendia. Ele diz que ele é responsável pela segurança de todos na cidade e que se não fosse por ele talvez a cidade estaria um caos. Ele me diz também que policial significa alguma coisa de polis e polis significa cidade em grego. Eu fico impressionado que um policial como ele, tão cheio de obrigações e deveres, tenha tempo para estudar grego. Ele diz que os gregos acreditavam que o corpo e a mente compunham uma unidade, e que a falha em uma dessas partes comprometeria a outra. Assim eles cunharam a máxima; corpo são, mente sã. Eu digo que minha mente é bem ruim e que meu corpo é destruído de nascença. Ele pergunta por que eu mostro a ele meu terceiro mamilo e explico que é por isso que estou indo na exposição de aberrações. Os policiais choram por mim e me desejam boa sorte quando nos despedimos. A linguagem compromete. A linguagem revela. A linguagem esconde. Eu sempre escrevo contra alguém. É sempre pessoal. Um homem arrasta um outro homem entre as ruínas. Ele vai até a parte que só é iluminada por uma fogueira. A fogueira está dentro da casa e não consigo saber o que acontece lá. Ouço gritos. O ritual está completo e eu estou longe. Em um diário escrevi meus planos para o futuro. Eles consistiam em evitar de qualquer forma o futuro. Nesse diário também fiz uma lista de todos os meus defeitos. Tudo o que está escrito no meu diário é mentira. O rapazelegantepossível escreve com batom no espelho do banheiro feminino que ele é machista. Escreve também uma lista de seus crimes. Escreve também alguns de seus segredos. O rapazelegante-possível deixa o banheiro depois de ter cagado sem dar descarga. A igreja em ruínas é implodida e todos da cidade vão lá para ver a implosão e depois pegam pequenas lembranças. Um bebê chora. O museu prédio histórico queima à noite e as pessoas da cidade vão lá cantar de mãos dadas uma elegia ao passado. A prefeitura da cidade fica no 104º andar do arranha-céu em que moramos. O prefeito da cidade se masturba no terraço e sua porra fertiliza nosso chão.
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Repito as mesmas histórias. Repito as mesmas cenas. Não faz diferença porque apenas eu leio o que escrevo em segredo. Um parque é inaugurado e ele tem carrinho de bate-bate e pula-pula e roda-roda gigante. Na montanha russa um menino tem a cabeça decepada e todos começam a se preocupar com as normas de segurança. Quando vamos visitar o parque eu e você comemos algodão-doce e eu te conto como me sinto feliz no parque divertido de diversão. Você diz que é só uma ilusão provocada por certo hedonismo capitalista e eu concordo gravemente. Mas ainda assim sorrio bem largo o mais largo que posso e sinto toda a dor do mundo em meu coração. Depois me tranquilizo e me acalmo e você diz que já está bem longe que me abandonou aqui e que vai ficar lá. Completamente sozinho me sento ao lado do menino que foi decapitado. Eu acaricio o cadáver do menino decapitado e tento recolocar sua cabeça no lugar. Tudo está tranquilo. A paz impera em nossa carne quando nos divertimos. A Verdade É que não sei exatamente como vou chegar onde quero chegar quando quero chegar. Sei de algumas coisas alguns pontos alguns objetivos. Sei que está confuso tudo isso, mas é tudo parte do plano. Acredito que algumas iluminações sobre passados e outras sobre futuro se realizarão: o leitor se prepara para o futuro: O rapaz elegantepossível futuro fuma um cigarro e anota no computador o que ele viu no dia. O rapazelegantepossívelpassado viu: um homem derrubar um poste com um machado e gritar madeira quando poste caiu destruindo energia elétrica do bairro; o poste por uns segundos ficou balançando pendurado nos fios de outros postes por alguns segundos então caiu arrebentando tudo; um avião informando que ele não devia perder e não podia perder alguma coisa que ele (rapazelegantepossível) não sabia o que era; manchas surgindo no corpo todo reação alérgica da dedetização e desratização ocorrendo como projeto para diminuir os insetos e ratos do centro da construção que costumam destruir parte da construção e atrasam ainda mais a transformação em ruínas; uma lembrança que o rapaz elegante possível não conseguia descobrir de que época dele sentado com alguém em um lugar que não existe mais e uma lembrança de um momento de felicidade e de alguma esperança em alguma coisa que ele não sabe que é; o desespero pela ausência da lembrança nítida; um velho conhecido; uma pessoa que ele odeia; um menino sem braço oferecendo a ele (o rapaz) uma bituca de cigarro malfumado; Os neofascistas tentam me convencer que não são nazistas enquanto estamos sentados em círculo conversando. Os neofascistas se defendem da acusação de racistas mostrando a cor de sua pele e juram espancar qualquer um
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independente da cor e ou gênero. Os neofascistas me mostram um taco de basebol que eles usam para espancar homossexuais. Os neofascistas me explicam que eles não querem matar todos os homossexuais da cidade porque isso daria muito trabalho eles apenas desejam assustá-los para que os homossexuais da cidade pensem em se mudar. O líder dos neofascistas não tem um olho e não usa um tapa-olho e eu comento para ele que se eu não tivesse um olho eu usaria um tapa-olho porque ficaria legal e eu pareceria um pirata. Ele me explica que não usa tapa-olho porque é muito pobre e não tem dinheiro para comprar um bom tapa-olho e que tapa-olho de segunda mão pode causar doenças irrecuperáveis. Os neofascistas me mostram agora suas coleções de canivetes e um dos canivetes está cheio de sangue seco e eu pergunto de quem é o sangue seco. O líder dos neofascistas diz que não tem certeza. Os neofascistas me dizem que nunca desenharam suásticas na pele de ninguém os neofascistas me mostram seus símbolos e são símbolos que não representam nada nem para mim nem para eles. Eu cumprimento os neofascistas um por um dizendo foi um prazer, mas preciso ir embora e eles dizem foi um prazer, mas melhor você ir embora. Eles se reúnem ao redor de uma fogueira embaixo de uma ponte e fazem uma saudação à romana para mim que respondo fugindo o mais rápido que consigo. Me sento com o mendigo e ele me oferece um gole da bebida que ele está bebendo eu bebo e sinto minha garganta queimar. Digo que achei bem forte e peço mais um gole e a faço uma cara feia e ele (o mendigo) ri de mim. Começo a ficar triste porque ele riu de mim. Bebo mais um gole e faço outra cara feia e desmaio. O mendigo me abraça ternamente e nós deixamos nossas misérias ocuparem o espaço do corpo um do outro. Na minha boca habita um cheiro horrível e ele começa a tomar conta dos meus pensamentos. Minha vida tem girado ao redor do ralo ao redor do esgoto ao redor de algumas imagens. Esvaziado de sentido atravesso a festa em que as pessoas dançam e bebem e derrubam suas bebidas e se beijam e se alisam e comunicam entre si pequenos segredos existenciais. Esvaziado de sentido chego ao banheiro e no meio do meu mijo percebo um cara se masturbando no mictório. Fico olhando sem reação. Esvaziado de sentido lavo minhas mãos após o cara gozar. Esvaziado de sentido retorno à festa e sinto a música e sinto a música e sinto a música. Esvaziado ouço falarem. Eles falam. Comentam coisas que viram. Uma menina viu um parque ser demolido e um velho ser atropelado e uma explosão que tomou todo o céu então viu o homem que podia impedir isso tudo de acontecer abnegar qualquer ação. Um menino viu uma mulher voar e tomar um tiro no meio do ar e aí ela cair lentamente até conseguir recuperar seu eixo de gravidade e voar ainda para mais longe e voar ainda mais para longe. O cara que batia punheta viu um par de pernas e uma polpa de bunda. Um apresentador de tevê viu o homem que podia impedir tudo de acontecer. O cara que viu o homem que podia impedir tudo de acontecer era um apresentador de tevê famoso. Ele ficava na esquina antes do hospital no décimo nono andar e apresentava a tevê para qualquer um que passasse. Como todos ficamos doentes pelo menos três vezes
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por ano sempre víamos o apresentador de tevê. Minha última doença foi porque não coloquei a máscara a tempo de o caminhão raticida borrifar em mim quando eu passava na rua. Eles têm a seguinte teoria: qualquer um que não colocar a máscara a tempo é um rato ou merece a morte. Meu cheiro horrível na boca é sentido por todos e ninguém mais chega perto de mim não adianta explicar que o gosto é causado pela minha alma morta. Toda vez que me deparo com um registro seu começo a duvidar mais da sua existência; toda vez que você registra uma ação sua, tenho certeza da sua falsidade da sua artificialidade da sua completa e total inexistência; toda vez que você narra sua experiência reconheço sua ingenuidade seus limites; toda vez que vejo você mas você não é você e sei que demorou três horas para criar esse registro percebo sua artificialidade seu vazio; toda vez que enxergo seu sorriso sei que ele não existe; toda vez que você mostra que está em algum lugar eu sei que este lugar está deserto; toda vez que você exibe sua nova coisa favorita aprendo a odiar algo novo; toda vez que você existe você deixa de existir toda vez que você existe você não existe toda vez que você existe você tenta se esconder. Você existe apenas no curto prazo em que ninguém está olhando. De zero a vintedois segundos na solidão completa você existe e ninguém pode te confirmar isso. A menina se atira de cima do prédio e atinge o chão em um impacto terrível que causa desespero a todos. Todos se comovem com a morte da menina infeliz de oito anos. Todos choram um pouco reunidos ao redor do corpo destruído pela queda. Um homem adulto usa seu aparelho de captura de imagem audiovisual para registrar a menina morta embaixo da saia dela. Outro homem adulto imita-o. Todos em círculo começam a registrar a imagem da menina morta e se masturbar. Uma velha esfrega os peitos moles ao mesmo tempo que geme bem alto e artificiosamente. Um velho fica mostrando a língua para mim e eu não sei o que responder. Começo a me afastar. De costas. Poucos passos depois todos estão trepando um com o outro em cima do corpo espatifado da menina de oito anos infeliz. Seu sangue coagula na calçada. Na lama de sangue e porra mais um corpo cai antes que eu perca o prédio de vista. O rapaz elegante possível está há dias na rua. Semana passada ele foi confundido com uma construção e quase foi detonado na explosão que liberou o espaço para a futura-avenida. O rapaz elegante possível se desespera de leve. Só o suficiente para ficar vivo. Ele bebe um pouco, quando encontra bebida, e come um pouco, quando encontra comida. O rapaz elegantepossível passou um tempo vivendo com a gangue neofascista e com os três outros. Os três outros são lenine trotsqui e estaline. São três irmãos filhos de guerrilheiros comunistas que trabalham em parte da construção. lenin, o mais distraído, uma vez acertou a cabeça de trostsqui com o martelo enquanto pregava uma parede e trotisqui, o mais irritadiço, respondeu com um croque no cucuruto de lenin, que com o dedo em tesoura acertou os dois olhinhos de trotisqui que rapidamente correu até a parte em que deixa as tortas e atirou mas lenine agachou com velocidade e a torta pegou bem na cara de estaline que acabava
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de chegar e, mais autoritário, resolveu colocar ordem na casa, puxando os dois irmãos pelas orelhas e dando uma martelada na cabeça de cada, sem perceber que estava pisando em uma mangueira ligada, fazendo com que a água se concentrasse ao seu redor e explodisse, foi mandado para bem longe quando a mangueira não pôde mais segurar a pressão da água. Acabou com os três encharcados com partes do corpo presas em cimento recém-colocado e tristes os três outros. Os três outros não ligavam para os jovens neofascistas mas se incomodaram bastante com a presença do rapaz elegante possível. trotisqui estaline e lenine abriram uma votação para expulsá-lo de lá e graças a inação geral do resto foi possível depor o rapaz elegante possível de sua presença no lugar. OS NEOFASCISTAS ERAM TODOS FORMADOS POR GENTE DE UM BRAÇO SÓ OU GENTE DE TRÊS BRAÇOS OU GENTE DE DUAS CABEÇAS OU GENTE SUPERGORDA OU GENTE COM PELOS POR TODOS OS LADOS OU GENTE COLADA A OUTRA GENTE OU GENTE MUITO MUITO BAIXA OU GENTE MUITO MUITO ALTA O homem ordena que eu pare. Ele diz que parece poesia e isto deveria ser prosa. Um texto de prosa. Um romance. Eu digo que sim é prosa. O fio narrativo: o rapaz elegante possível é um dândi miserável que vive na ruína impotente tenta se masturbar duas vezes ao dia; a ruína cresce; os dândis miseráveis tentam sobreviver de compaixão; os outros personagens existem e falam. Os neofascistas saem por aí caçando dândis miseráveis e políticos antigos e mulheres indefesas. Os dândis miseráveis não conseguem resistir e desaparecem na ruína. Os dândis miseráveis se tornam dândis esfomeados. O paidefamília sai de dentro do corpo do dandimiserável e começa a criticá-lo: Meu pai escolheu meu nome com base no i-ching. Meu pai costumava indicar aos seus clientes investimentos de sucesso a partir do i-ching. Meu pai era o homem mais rico da região e por isso o elegeram rei. Como príncipe eu tinha vários amigos quando crescia. Nossa diversão principal durante o início da adolescência era ir ao shopping. No shopping nossa rotina iniciava na bookstore, em busca de um mangá pornô não lacrado. Ao encontrar o mangá pornô não lacrado andávamos com ele rapidamente embaixo do braço procurando um lugar vazio em que pudéssemos lê-lo. Não ler de verdade. Era escrito em japonês. Mas folheá-lo com pressa e atenção fixando as imagens na cabeça e alisando suavemente nossos paus. Isso nos colocava no espírito de dar voltas fixas por todo o shopping. Então, era hora de ir à tabacaria. Comprávamos cigarros de enrolar para enganar os seguranças que estávamos fumando maconha. O segurança batia em nós e nos liberava quando eu mostrava a ele minhas credenciais de príncipe.
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Meu pai, o rei, se aproximou de mim enquanto eu me masturbava no sofá da sala. Meu pai, o rei, perguntou se eu não pensava no futuro. Meu pai, o rei, esperava ouvir uma resposta. Meu pai, o rei, declarou que eu deveria ser negado por todos e buscar exílio dentro de mim porque não sabia o valor do trabalho. Eu deveria meditar até reconhecer o valor do trabalho.
O rapazelegantepossivel caminhava despreocupado entre os escombros do último bombardeio anotando o número exato de corpos que encontrava. Ele estava despreocupado porque não havia ninguém observando. Estava despreocupado que o bombardeio foi bem em cima da cabeça dele onde ele morava e ele sobreviveu. Era tudo vazio de sentido. A bomba destruiu o sentido e significado de tudo. A bomba explodiu o sentido. A bomba transformou a linguagem em nada. A bomba reduziu tudo a sua existência primal. A comunicação ficou impossível.
gravei um filme sobre tortura. eu colocava voluntários em diferentes tipos de tortura e perguntava-lhes sobre coisas que eles não sabiam responder. eles inventavam respostas; enfiava eles no paudarara e batia nos pés e nas bundas e nas mãos e dava socos na cara e beijava as bocas deles e depois colocava eles de quatro e enfiava coisas nas bundas deles e mijava neles e depois abraçava e dizia que vai ficar tudo bem eu juro é pelo nosso bem. eu entendia a dor e sofrimento deles mas era preciso terminar meu filme. meu filme ganhou um prêmio do júri e meu filme ganhou um prêmio do público. fui para casa carregando dois prêmios. meus pés doíam e minhas mãos latejavam. minha consciência era forte mas não um incômodo. eu sabia de tudo: todos os segredos daquelas pessoas. eu sabia de tudo que eles escondiam deles mesmos. eu sabia até o que deixei de fora do filme. eles, depois de vinte dias de tortura, aprenderam me amar pelo que sou. aprenderam a respeitar minha arte e admirar o meu caráter. alguém chegou até apontar como era bem-sucedido meu uso de humor e autoconsciência em minha obra. minha casa nunca ficava mais perto e não parava de chover. eu tinha que carregar um prêmio em cada mão e começou a ficar pesado. eu tinha vintecinco anos e tinha passado dois anos torturando pessoas. eu tinha revelado a humanidade nua para o mundo poder ver e agora era aplaudido em pé mas não conseguia lembrar o caminho de casa. encontrei uma caçamba e joguei nela o prêmio de público. mais leve comecei a correr sob a chuva que não terminava e me molhava e molhava o prêmio e o deixava pesado. tirei meus tênis. tirei minha camisa. tirei minha calça e continuei a correr. eu corria pelado e em círculos pois reconheci a caçamba e meu prêmio na caçamba. eu corria como um louco e cada vez mais e cada vez mais rápido e era um artista então tudo bem
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se me prendessem. comecei a torcer para que a polícia me prendesse. esperei por horas a punição divina. e Não era bem assim, a história. Isso é velho. Enfio a cabeça para fora da janela. Sinto a chuva na nuca e leio em voz alta um velho livro velho livro velho e nele há explicação e me torno o que leio minha consciência se volta contramim: Lembre-se que precisa ser desenvolvido. Além disso, se você nasceu, a sabedoria começa no nascimento e na morte. Por dois motivos: você precisa de um método diferente primeiro. Primeiro, sou um artista. O autor morreu em cada área. Estou montando um cavalo ou um cartão novamente. Além disso, Moisés, você e eu não estamos mortos. Mas para a CNN estamos. Matéria em si: chuva – chuva, sua constante é estável. No final do som, penso que os pensamentos não mudaram com a minha língua. Ao lado do cemitério: “Eu sei, verdade para mim”. Me diga qual é a sua essência? Eu perdi outra perda perdida em sua carta adorável. Para os homens o céu é um paraíso sombrio, nuvem azul escura e morta. Todas essas coisas são terríveis e aterrorizantes, porque a dor é sua personalidade. Completado; preço da morte. Não é isso. Ele abriu uma aldeia na aldeia. É por isso que você não está preocupado nem um pouco alto. Mas eles começaram e pararam. É atrasado e chato como o atraso atrasa. Eles virão para mim. Nove ou dez tribos, e a irmã de Sabrina e a filha da filha. Note que não é anônimo. Este é apenas o pai. Claro, nós chamamos isso. Por favor, deixe-me amar você e não deixe. Horrível horror da morte, mas não o meu próprio. O meu próprio horror é. É um segredo só nosso. NA LOJA: Escolha todas as tragédias e outros itens. Mas não seria necessário dizer que essa mulher é anônima e mulher. Abra sua boca, olhos e altura. A mulher triste tem pelo menos 50 anos.
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“Ele está morto! Ele está morto!” Ele pensou em si mesmo. Um gênio requintado parecia um viajante. E os restos – eu não consigo imaginar ser mulher. Os restos da costa africana agora... Os restos e eu mulher, eu mulher africana nos restos, nas costas me banhando no mar. Enviando ao mundo um recado: Primeiro você morre em paz. E as mulheres caem e ficam confusas. O som de uma faca é ruim. Juro pela entrada da cela da Zona da Morte. O barco perdeu minha consciência nas ondas. Lá se encontram os restos. Lá se encontra meu corpo. No oceano onde me joguei. Com Amor, corpo moral, Ele acabou de ficar sujo, pegou pneumonia e morreu. Pneumonia. Nosso negócio nos ajudará a obter ideias, ou seja, as mais altas ideias, as melhores ideias. Seremos ricos. Claro que ele não acredita, porque não tem leitura. Mas isso é verdade: eu estou lá Abra um pequeno negócio para um juiz: Seguindo as orientações do autormorto decidi me tornar homem de negócios. Não mais dândi miserável ou vagabundo de ruína. Me tornei pai de família e homem de negócios. Com muitos negócios na minha mão, o juiz me garantiu a mão de sua filha. O juiz era um exemplo de honestidade e hipocrisia. Com um casamento garantido e amor eterno como certeza, comecei a engordar e me relacionar melhor com o poder. Fiquei gordo e contente e comecei a ser respeitado como homem de bem e comprei uma arma e aprendi a atirar para me proteger e porque era divertido. Às vezes eu ficava horas na minha sacada praticando tiro ao alvo em pessoas de pouca importância. Minha esposa, apreensiva, me olhava e não dizia muito. A polícia chegou alguns minutos depois e me levou embora. O barulho incomodou a vizinhança. A inverossimilhança a falha em continuidade é intencional. Diz o crítico tentando justificar o interesse naquela obra. Você pode ver que é uma recusa do raciocínio. O absurdo e erros gramaticais formam uma linguagem pura que tem seu valor no sentido de opor ao comum ao banal. É uma literatura de inteligência média, mas com dedicação na lavratura. Lavratura. Lavratura. Lavratura. Era essa a palavra? Vomito em meus próprios pés e percebo que estou um pouco enjoado.
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3. O dândi miserável elegantepossível se levantou e vestiu suas calças de ginástica. Cortou maniacamente seu cabelo. Até esse cabelo deixar de parecer cabelo. O dândi miserável então escovou os dentes com cuidado e colocou uma jaqueta pois nevava lá fora. A neve era uma anomalia porque a cidade era tropical e costumava só chover e então nevou e continuou nevando e os rios congelaram e as pessoas começaram a se tornar esquimós. Um urso polar foi atacado dentro do prédio e sua família jurou vingança. O dândi miserável decidiu que era hora de ir embora mesmo sabendo que por conta da maldição que a cidade jogava em todos seus habitantes era impossível ir embora. O dândi miserável preparou sua mala que continha um livro de poemas uma maçã uma escova de dentes um manual de instrução para construir seu próprio computador uma minigramática uma fotografia de quando ele se sentiu feliz uma fotografia de quando ele se sentiu infeliz e uma cueca. Ele colocou fogo na mala para poder sobreviver ao frio e acabou sufocando em gás carbônico no que classificaram como uma tentativa fracassada de suicídio e foi mandado para a ala de suicidas fracassados no hospital psiquiátrico. Eu continuei na ruína por mais vinte dias e o mundo chegou com tudo.
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Pavio Humano Texto de Mariana Pougy Ilustrado por Layla Cruz
nem quatro cavalos cem metros de corda me tiram das m達os a textura tua nem quatro cavalos ou cem metros de corda me tiram das m達os a textura tua nem quatro cavalos e cem metros de corda me tiram das m達os a textura tua nem quatro cavalos com cem metros de corda me tiram das m達os a textura tua
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Ponha suas mãos na minha: um loop Texto de Maria Rosalem Ilustrado por Bruna Saidz
Na ilha do Renascimento, Tasha bota ovos cósmicos fecundados pela única serpente sobrevivente do ninho que atacou os filhos de Laocoonte, o dono da antiga Divinos Pães. Desses ovos explodem galáxias gêmeas e estrelas lésbicas, suando a nitroglicerina que preenchem devidamente seus buracos inóspitos. Tasha carrega, em pequenas garrafas pet recicladas, venenos que realçam um gosto amargo ao qual chamamos de angústia. E as deixa escondidas pela ilha para turistas estadounidenses levarem como souvenires. Uns a pingam na comida, outros a tomam para permanecerem sem dormir, e uns poucos a dissolvem naquela matéria de fumaça fibrosa dos sonhos, ou etc. As galáxias gêmeas, agora crescidas, foram apelidadas de Rafaéis e recebem alta cotação para exportação, enquanto as estrelas lésbicas posam de costas para os mímicos sem dedo mindinho que, como elas, preenchem seus buracos com algum tipo de apaziguador. A esquina dos mímicos é conhecida pela prostituição de modelos vivos e de crianças presas nos quadros de Velásquez. As ideias habitantes da ilha recebem o então convite intergaláctico de Deleuze para a celebração renascentista do ano: o lançamento da nova paleta da Pantone. Melancolia chega na festa como uma chuva cinza e atrasada, mas entrega a Tasha o que de mais precioso necessitava: as chaves da zona abissal, enroladas em um papel de seda azul. Há séculos Tasha as procurava em vão. Geralmente essas chaves eram encontradas quando se cortavam as conexões entre os lobos esquerdo e direito do cérebro, sob pedido registrado do consultório do dr. Leucipo. Enquanto Clonazepam distrai os convidados servindo raiz de flor de lótus em conserva, Tasha vai até a último andar pelágico e testa a chave. Há pouca luz por aqui, eu mesma nunca havia provado o gosto desse sargaço. O fundo oceânico é então invaginado para fora, salientando um novo ovo, imerso em uma substância prata, líquida e grossa. “Cut the circle” – escuta-se do ovo. Inúmeras massas geométricas negras escorrem do céu, e, feito um tigre faminto babando vento, fomos todos engolidos por um mundo nascente.
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Chuveiros Telúricos Cromoterápicos Lúmen Quântico 3100 Texto de Santiago Segundo Ilustrado por Bruno Café
Nós todos voltamos a olhar para o pátio da propriedade, da mesma maneira que se observa uma nuvem de fumaça distante, esperando a chama. E realmente logo vimos cavaleiros entrarem pelo portão escancarado
– Franz Kafka, A batida no portão da propriedade.
(BOLETO: 02399.67925 567700.001801 82508.001018 8 74650000010000). o amarelo e o verde intercalam em velocidade média de três piscadas de olhos, ou dezenas de olhos piscando, nas Condições Normais de Temperatura, Pressão, Genética & Bem-Estar Social. na outra metade do chuveiro retangular de alumínio enrijecido e inoxidável, configura o vermelho do fígado exposto de Prometeu, um tanto mais resplandecente – é claro –, com rápidas interrupções aleatórias de roxo, azul, magenta e cor-de-burro-quando-foge. nos céleres momentos de quase breu – pois os feixes de luz ainda assolam o interior dos infinitesimais universos das gotas de água –, as partes do todo perdem-se e trombam nas dimensões do cômodo e transpiram imersas no vapor da água quente: fossas nasais, sovaco, cantos dos lábios, pequeno triângulo de carne entre a esclera e o saco lacrimal, pele, pregas do rabo, gengiva, couro cabeludo, escroto, cotovelos, poros e o resto do pacote – que não foi listado por falta de paciência ou criatividade. as propriedades dos novos Chuveiros Telúricos Cromoterápicos Lúmen Quântico 3100 estão atentas à nulidade parcial das teorias da física clássica sobre as cores e o proveitoso estudo quântico sobre a alma. o 3100 está prestando atenção em você. o peso de uma alma mutilada é o mesmo de uma alma alegre. o peso de uma alma assassina é o mesmo de uma alma filantrópica. por isso, acreditamos que somente o equilíbrio interno do corpo é o agente definidor da singularidade, do âmago. não basta uma categoria, não basta um nome. conceba uma cadeia de eventos: basta pensar, basta uma expressão, basta um ato; um ato. o que não é o comportamento humano senão a exceção de uma ideia? a prática-cromoterápica-telúrica-do-bem-estar-quântico é o principal método conhecido de reprogramação cerebral. é o que dizem. a luz não detém todas as cores exceto no interior da alma humana. é o que me disseram ontem, na praça central, zona sudoeste (Latitude 1° 31’ 19’’ Sul & Longitude 29° 14’ 58’’ Leste). pra quem vê de fora, o banho colorido com diodos emissores de luz anda bem. em algum momento é inevitável que o rosto de Severino busque a própria nuca em um movimento penoso para qualquer mandíbula convencional. a fileira dos dentes inferiores transpassa os limites verticais, rompe em direção aos cenhos franzidos, e a feição primata é convincente. os enclaves da alma, da lama, da pele, da rele, da carne, da tarde, dos ossos e dos olhos triunfam, a imagem é um convincente estudo de um autorretrato ou de um retrato, seja ele de Jorge, de Augusto, do Papa, do Papa Augusto, de uma Cabeça Desassociada do Pescoço ou de Severino. fecha a torneira. escuro. a fresta sacana, oriunda da borracha flácida da janela velha, libera agudas correntes de vento. as solas dos pés, anexadas ao passo, batem na água do chão e produzem estalos. os azulejos reverberam os estalos. no mundo real, que passa longe de ser ideal mas passa perto de ser irreal, ou seja, claustrofóbico, estigiofóbico, teofóbico, asimmetrofóbico, monofóbico, biofóbico, microbiofóbico, fobofóbico, tiróglifo, apócrifo, petróglifo, compulsório, transitório, obrigatório, premonitório, persuasório, aleatório, notório, precatório, e como não, satisfatório, ninguém encosta em ninguém. o senso do tato se dá pela pressão exercida entre corpos. corpos não ocupam o mesmo lugar. a sensação do tato é a força de um corpo contra o outro, a repulsa entre corpos. logo, fica clara a necessidade e a responsabilidade
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de fornecer à alma os louros da existência por meio da antrosopofia – foi o que disseram anteontem, ou concordaram, aquelas oitenta bestas enjauladas menos vinte cinco. menos vinte e cinco. com os pés na água, Severino começa a sentir frio no escuro, sozinho, exilado em seu próprio banheiro pelo término da sarabanda em compasso acelerado das luzes dos novos Chuveiros Telúricos Cromoterápicos Lúmen Quântico 3100. sai do banheiro, pega seu celular (BOLETO: 03345.69925 582356.001801 34508.001048 8 75650000010000) de cima da cerâmica do vaso sanitário e vai em direção ao quarto. acende a luz. domingo, onze horas da noite. aturdido com o rumo que a vida toma e com a velocidade indiferente da mesma, Severino senta em sua cadeira de couro artificial preto, de frente à câmera de seu computador comprado há quatro anos (BOLETO: 03399.69925 587700.001801 85108.001018 8 74650000010000), e observa uma esfera escura de baixo da unha de seu dedo mindinho. uma pequena parcela de tudo o que é descartável. Severino, ainda molhado, gruda no couro artificial e as gotas escorrem pelo seu corpo até encontrarem o chão revestido por carpete violeta. mantêm-se na mesma posição por alguns minutos, absorto, olha para a parede e para as saliências das demãos malfeitas de tinta cinza, até surgir repentinamente na tela de seu computador a imagem de sua tia-avó, sorrindo em um dia de neve. Severino, Todas As Amizades São Únicas, Mas Algumas São Simplesmente Especiais. Vocês Se Tornaram Amigos Há Cinco Anos! Comemorem Juntos A Amizade Entre Vocês: Compartilhe! Jandira Lins está morta há quatro anos e oito meses, vítima de um derrame cerebral que a deixou em estado vegetal por pelo menos dois meses. Severino navega pelo perfil de sua tia morta e encontra diversos comentários, conversas e recados enviados, a maior parte nos feriados santos. ao que sugerem as diversas imagens recentemente compartilhadas, a tia Jandira está praticando esportes radicais na Cordilheira dos Andes. além da filha mais velha, Cléo Lins, que, assim como Deus, é designer, a família toda é também muito apegada a Jandira e leva em conta a imagem da pessoa querida nas redes-sociais. envolto por uma nevoenta mescla de saudade e culpa por estar vivo, Severino se levanta, pega o seu celular e caminha até a cozinha. serve-se com abundância de um copo de refrigerante de coloração laranja com uma grossa camada superior de espuma violácea. na porta da geladeira, observa o imã com a imagem de São João Nepomuceno, Padroeiro e Primeiro Mártir do Selo da Confissão. pregador na corte de Venceslau IV, foi confessor e diretor espiritual exclusivo da rainha. imbuído pela vertigem do ciúme, o rei ordenou João Nepomuceno a contar-lhe as confissões de sua esposa. em nome da privacidade, padroeira do sigilo e da propriedade da imagem pessoal, João Nepomuceno recusou a condição de dedo-duro. foi torturado e seu corpo foi jogado de cima da famigerada Ponte Carlos, em Praga. em certos meios científicos e fóruns especulativos ainda há embates calorosos para definir se o corpo torturado foi arremessado já sem vida da ponte, ou a morte efetivou-se por afogamento nas águas turvas do rio Vltava. sob forte apelo dos fiéis, em 1721, o Papa Inocêncio XIII beatificou-o. após uma análise minuciosa dos restos mortais do, agora Santo, João Nepomuceno, um médico e dois cirurgiões registraram que a sua língua, após séculos de vermes em pleno exercício, mantinha-se não somente incólume, mas rosa como o cu de uma puta virgem. o cu de uma puta virgem, sussurra Severino, seguro da solidez de suas paredes. o despertador do celular apita. onze horas e quinze minutos. Severino vai em direção ao quarto, coloca uma cueca e senta em frente ao seu computador. acessa sua conta bancária (46856680-9 / 0815) para ver se está tudo certo com o débito automático mensal (BOLETO: 02879.69925 564300.001801 85543.001018 8 72450000010000). está tudo certo, como sempre. todos os domingos por volta deste horário, Severino tem uma sala privada por uma hora com Eyline_22k. até onde a pesquisa caminhou, Eyline_22k é poliglota e vegana. cursou Direito durante dois anos, se afundou num relacionamento tóxico com um empresário do ramo da hotelaria, trabalhou por dois ou três anos em viagens de cruzeiro pela costa nordestina e alimenta uma intensa afeição imagética por Chihuahuas da Pomerânia, já que sua genética lhe consagrou com um sistema imunológico que reage anormalmente ao pelo canino. ainda quando criança, ao que tudo indica por volta dos quinze anos, classificou-se para
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a Olimpíada Nacional de Programação Intensiva. aquela mesma competição que foi cancelada por motivos escusos de corrupção passiva & ativa nunca investigados, no núcleo do mais alto escalão da VI Franquia Terceirizada de Administração Estudantil Especializada em Juventude Índigo (FTAE²JI). agora, trabalha todas as noites como camgirl enquanto procura um emprego com um bom salário e com horário maleável. seu perfil profissional diz: 29 anos, não quero ser e não sou apenas uma garota que trabalha por detrás das câmeras, sou amante, amiga e confidente. um pouco ansioso por este momento íntimo frente à câmera, como demonstra sua respiração, Severino acessa o endereço e, olhando para a pequena janela com a sua imagem ao vivo, arruma o cabelo ainda úmido. ao ser filmado pelo computador, a sua pele mostra-se homogênea, graças ao acúmulo de gordura e poeira no vidro externo da câmera, e o seu rosto torna-se um tanto mais redondo, o que lhe dá um aspecto mais saudável e agradável. Severino discorda deste último apontamento. por alguns minutos, procura o seu melhor ângulo, tenta remediar a sua imagem submetida ao pesadelo curvo e arruma a postura das mais diversas formas como um condenado faria aos olhos da multidão. Severino pode mexer o polegar opositor no escuro, no barro, sob a luz do sol, ou até sonhar em uma noite de horror, não adianta: é o tipo de criatura que não alcança nada além de uma ínfima quantidade de respostas aos estímulos mais crus. pelo menos tem algo para chamar de seu. para um olhar atento, a visão frontal da lente de uma câmera é muito semelhante à planta estrutural do Panóptico. as celas, organizadas uma ao lado da outra, formam diversos anéis equidistantes dispostos em andares. esses anéis são as lentes sobrepostas, cuja diferença entre as dimensões dos vidros, metais e plásticos formam desenho semelhante às alas, corredores e paredes. o espaço vazio no meio desse conjunto cilíndrico é por onde caminha a luz, ou a ausência dela, é por onde o indivíduo ou o objeto é formado como imagem, ou não. ridículo e parcialmente satisfeito, Severino encontra o seu melhor ângulo, onde a luz da tela ilumina um terço de sua face, e mantêm, em alguma proporção, a completude de seu rosto em segredo no programa noturno de domingo. transmissão de um anúncio obrigatório. câmera fechada em uma boca, que diz com voz feminina: não sai daí, meu namorado Basílio Coito Agridoce vai contar, logo, logo, o seu segredo. câmera aberta, som no fundo de uma mulher gemendo, casal trepando na posição Meia-prensa. close na rola de trinta e quatro centímetros de Basílio Coito Agridoce penetrando sua parceira, voz masculina ao fundo: o meu segredo é o Gel Libido, o novo produto que vai aumentar drasticamente a sua peça e triplicará a quantidade de ejaculação. fim do anúncio. Eyline_22k entra na sala privada. no limiar da tela de Severino, envolta pelo quarto cinza pouco mobiliado e com um carpete violeta, rompe um outro quarto, um quarto iluminado por uma luz azul-bebê, repleto de adesivos fosforescentes de Saturno, Netuno e Urano, animais de pelúcia rosa e garrafas vazias de bebidas alcoólicas importadas. no primeiro plano, metade de uma cama vazia. paisagem sonora: música eletrônica: batida em compasso lento com elementos de natureza permeados por um sino agudo e distante. Eyline_22k aparece, apoia o cotovelo na cama e posiciona seu corpo lateralmente. a camiseta larga amarela-desbotada, estampada com a ilustração do rosto de um apache, percorre seu corpo até o começo da polpa do traseiro redondo. as coxas nuas levemente arrepiadas formam singelo desenho de cauda. os peitos são grandes e os mamilos estão marcados por debaixo do pano. o cabelo tingido ao nível do branco, levemente bagunçado, mistura-se com seus olhos com lentes de contato roxas e aproxima-se da boca carnuda com um batom vermelho semelhante ao sangue de Holofernes, decapitado por Judite no quadro de Artemisia Gentileschi. o microfone de Severino produz um ruído contínuo, mesmo assim o diálogo começa: boa noite, minha linda, estava com saudades / eu também, uma semana é muito tempo, devíamos nos encontrar mais vezes, gosto de ficar perto de você, conversar / eu também. desde que começamos a nos encontrar os dias têm sido melhores. é bom ter uma mulher como você ao lado / então o que me diz sobre mais dias juntos, querido? / vamos pensar, tenho tido pouco tempo na semana por causa do trabalho. as demandas estão aumentando / você não tira folga nunca. você precisa relaxar mais, não acha? sentir mais prazer comigo / está tudo
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bem. temos que trabalhar duro se queremos construir algo bom. temos que ser os nossos próprios patrões, donos de si. e você, fala pra mim, como está? / estou bem, obrigada por perguntar. em meio ao silêncio das teclas, de frente para a sua tela, Severino afasta os dedos de seu teclado e procura mergulhar nas írises roxas de sua companhia noturna, que olha para a sua própria câmera numa tentativa esteticamente bem executada de sedução. morde os lábios, suspira, mescla a feição grave de uma mulher dominadora com o ar ingênuo de admiração, coça despretensiosamente os pés e vagarosamente parte para o lado interno das coxas. Severino encontra os olhos de sua companhia, olha através do outro, que em algum momento tenta olhar nos olhos de Severino, que estão abaixados, pois procuram na tela, e não em sua câmera, os olhos de Eyline_22k. diante essa assimetria, Eyline_22k retoma o diálogo: o que você quer fazer hoje? algo especial?/ tem algo em mente? / poderíamos beber algo juntos para começar? um clima romântico... Eyline_22k sai de sua posição original, fica de costas para a câmera, de quatro. está sem calcinha, a camiseta escorre até o começo do cóccix. seu ânus, rosa nas extremidades e roxo nos caminhos rugosos das terminações nervosas até o orifício, está bem visível através da câmera e dá uma leve contraída. abaixo do ânus, saem da buceta carnuda dois lábios compridos, escuros, e do meio deles, do interior do corpo, surge |_1|\/|B0: um fio de borracha de coloração salmão – com os respectivos caracteres marcados em sua extensão – que tremula no quarto azul-bebê com os adesivos de Saturno, Netuno e Urano. Eyline_22k se levanta da cama e some da imagem. Severino corre até a cozinha, enche um copo com uma vodca comprada numa promoção há dois anos atrás (BOLETO: 02477.67725 237700.001801 23108.222018 8 56770000010000) e preenche com refrigerante laranja de espuma violácea. volta para o quarto segurando com uma mão a rola e com a outra o copo. Eyline_22k já está de volta. formada na tela de Severino, segura uma taça de vinho tinto. está de cócoras, sorrindo. entre as pernas, a carne de sua buceta um tanto espremida, molhada, com o fio do |_1|\/|B0 para fora. Eyline_22k retoma a conversa: vamos brindar? / ao que você quer brindar, meu amor? / quero um brinde ao seu sucesso, quero que você alcance todos os seus objetivos no trabalho e na vida / você me faz feliz / você merece esse brinde, meu lindo, sua luta deve ser recompensada / você me excita / te excito como, meu lindo? / me excita quando você passa a língua entre os lábios / assim? Eyline_22k acaricia os lábios do sangue de Holofernes com sua língua. a luz de sua tela promove certo brilho na boca úmida, enquanto dá um gole de seu vinho. Severino, com o sangue inflando o sem-ombro, dá um gole em seu copo e retoma a conversa: exatamente assim, como um anjo / sinto tesão em saber que te dou prazer / posso te fazer uma pergunta, minha pititica? / sempre! / você gosta de frio? / como assim? / quero dizer, você já foi para algum lugar muito frio? / quanto frio? onde eu moro sempre faz um pouco de frio / estou falando de neve / nunca vi neve, meu lindo, por quê? / estava pensando numa coisa nova. você tem roupa de frio, algum agasalho que serviria na neve? / acho que sim, querido / você pode fingir que está no frio para mim? / claro, vou pegar o casaco / tire a camiseta, fique só de casaco / vou aproveitar e ir no banheiro, rapidinho. Eyline_22k sai da tela. Severino fuma um pouco do seu cigarro eletrônico (BOLETO: 04987.60245 131111.001801 29990.222018 8 56234000010000) munido com essência de baunilha tostada, e se masturba vagarosamente. provavelmente está a elucubrar imagens complexas de Eyline_22k urinando em diversas superfícies animadas e inanimadas. Severino se retorce em sua poltrona de couro preto, morde seus beiços macilentos e entrega-se à química sobrenatural de uma imaginação febril. há algum tempo que Severino pesquisa sobre urofilia, contudo, com sua rígida rotina de trabalho, nunca levou para frente a maioria de seus interesses, nem mesmo o suicídio. Severino para de se masturbar e respira. toma um gole de sua vodca com refrigerante de laranja e espuma violácea. com um casaco verde escuro, revestido por dentro com lã de carneiro, Eyline_22k volta ao seu quarto azul-bebê, joga para longe um bicho de pelúcia e volta na posição de cócoras em cima da cama. pega sua taça de vinho, dá mais um gole e mexe levemente no cabo de borracha do |_1|\/|B0. Eyline_22k fecha os olhos, geme e volta à conversa: você parece um pouco cansado. está
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bem, meu lindo? / estou. estava pensando em você. estava mexendo no meu objeto / no seu objeto? / na minha peça / ei, seu egoísta, por que não faz na minha frente? / claro que faço, você está me testando? / um pouco não faz mal. gostou do casaco? / você está linda, maravilhosa. um anjo / e agora? / você está com frio, minha gostosa? / um pouco? / finge para mim que está com frio! / estou com muito frio, está nevando lá fora! / você está na Sibéria? / estou perdida na neve! / você tá na Cordilheira dos Andes? / estou, estou onde você quiser! / está nevando por aí? / estou perdida na neve, estou com medo. preciso de alguém para me fazer companhia / você é muito gostosa, eu te amo / me ajuda está frio aqui! / minha linda, se afunda nesse casaco, quero seu corpo arrepiado na neve, seu casaco protegendo um de seus mamilos, apenas um de seus mamilos, o outro está um pouco roxo, com frio, quero ver seu corpo arrepiado na neve, quero esquentar o seu corpo e te dar prazer muito prazer! / vamos, meu amor, vamos, me dê pelo menos um pouco de você, eu preciso de você, por favor, meu amor, eu te imploro, está muito frio! / eu sou seu. Eyline_22k dá o último gole de vinho. está com as costas apoiada em seu colchão e com as pernas abertas de frente para a câmera. Severino deposita (BOLETO: 09377.60333 139021.705481 29110.222018 8 56222230019400) o valor de quarenta reais para o consolo |_1|\/|B0 de Evylin_22k vibrar durante trezentos segundos dentro dela. com a mão no pau, Severino observa a cena, memoriza cada instante o seu amor, regozija-se com o dilema em sua frente. Eyline_22k, com o |_1|\/|B0 vibrando em seu interior, geme alto, as veias de sua garganta engrossam, grita, ela treme de prazer enquanto se envolve na prodigiosa atuação termodinâmica. sua buceta respira como um imenso pulmão, toda a carne vermelha, do interior ao exterior, dilata, recua, dilata, recua, dilata, recua. suas axilas umedecem, suas pupilas dilatam, Eyline_22k aperta seu clitóris, movimenta-o em círculos, com a outra mão aperta o próprio seio escondido debaixo do casaco. um primeiro orgasmo, um esguicho curto. Severino ofega, volta a morder seus lábios macilentos. então se debruça na mesa, encurva suas costas para se aproximar à tela, para chegar perto da imagem composta pelos cheiros-líquidos-bactérias-hálito-suor-urina-flúidos-gozo-carne-corpo de Eyline_22k. ele espreme seu cacete com sua mão direita, pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo. sua pressão cai. transpira como um cavalo, como um animal exaurido e difamado por uma longa caminhada inútil na esteira. Severino esporra no chão e desaba em sua cadeira. os trezentos segundos acabam e o |_1|\/|B0 para de vibrar. Eyline_22k continua pressionando seu clitóris, e, após algum esforço, esguicha pela última vez. os dois recuperam as forças. Eyline_22k retoma o diálogo: valeu, meu lindo? / estava ótimo, como foi pra você? / mágico, devíamos fazer mais vezes com esse tipo de atuação. gostei da neve / na verdade gostaria de tentar uma coisa nova semana que vem / pode falar / você, por acaso... / sim? / você por acaso faz xixi na frente dos outros? / podemos combinar, podemos olhar juntos a tabela de preços na próxima semana / ótimo, só não conte para ninguém, por favor / como faria isso com você, querido? / foi ótimo hoje / ainda temos mais algum tempo / sim, um pouco / alguma novidade? você parece melhor do que semana passada... falando mais... algo de novo? / pra ser sincero, sim, acabei de lembrar. comprei algo que está melhorando completamente a minha vida. sou um novo homem / o que? / é uma espécie de terapia nova, ajuda a nos entendermos como gente / que interessante, um remédio, meu lindo? / não, remédio não ajuda no fundo. é um chuveiro novo, ele é cientificamente aprovado por especialistas, ajuda a equilibrar nossas energias com luzes medicinais / mesmo? / sim. ajuda a equilibrar nossas energias. estava na internet de bobeira esses dias quando apareceu o anúncio para mim, de repente. comprei para testar e desde então estou cada vez melhor, estou me sentindo melhor. Severino levanta satisfeito e enquadra a caixa do chuveiro na câmera de seu computador, escrito em fonte Magmawave Caps “Chuveiros Telúricos Cromoterápicos Lúmen Quântico 3100”. ele volta a digitar: outro dia mesmo conversei com meus amigos sobre esse novo chuveiro, mandei a foto da caixa para eles e escrevi um texto. eles se interessaram... é uma aquisição mesmo... um deles ficou até com um pouco de inveja / acho que eu vi algo semelhante outro dia, algo numa notícia / estou muito satisfeito com esse investimento / lembrei, querido. outro dia vi uma notícia que essa empresa, a empresa que
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faz esses chuveiros está sendo processada / como? / um processo ecológico, pelo o que me lembro / é sério? / sim, um processo ecológico ligado à poluição de água / puta merda / que foi? Severino se afasta da mesa. anda de um lado para o outro em seu quarto. Eyline_22k: ei, relaxa, não é nada demais. Severino fecha a tela do computador. coloca a caixa do Chuveiros Telúricos Cromoterápicos Lúmen Quântico 3100 de canto. desorientado, vai até o banheiro, coloca seu celular por perto e gira a torneira do chuveiro. senta no chão ainda úmido. o amarelo e o verde intercalam em velocidade média de três piscadas de olhos, ou dezenas de olhos piscando, nas Condições Normais de Temperatura, Pressão, Genética & Bem-Estar Social. na outra metade do chuveiro retangular de alumínio enrijecido e inoxidável, configura o vermelho do fígado exposto de Prometeu, com rápidas interrupções aleatórias de roxo, azul, magenta e cor-de-burro-quando-foge. as bestas vão reagir. o céu abre todos os dias. o que dirá o seu pequeno circuito íntimo de oitenta e tantas bestas menos vinte e cinco? menos vinte e cinco. Alfredo Tilápia, CEO do Gerador de Frases Aleatórias [Magnus Opus: “Certas pessoas são como nuvens, quando somem o dia fica sem nuvens”], provavelmente utilizará de todos os seus ardilosos meios para difamar Severino, principalmente depois do ocorrido de duas semanas atrás, quando debateram sem nenhuma possibilidade de resolução, na frente de todo o grupo da rede, sobre a evolução dos Ornitorrincos se tratar de um evento unicamente possível graças ao Efeito Borboleta. após breves argumentos já se insultavam com a soberba de Nero e um maquinário profícuo de “seu arrombado”, o que os afastou prontamente do debate. por longos dois dias, mesmo que distantes um do outro, o atrito não foi perdoado e gerou ranço, sentiram-se com uma presença infinita ao lado: o peso incorpóreo de um irmão siamês abandonado na sala cirúrgica, ou de uma perna amputada. o que dirá então Aprígio Camurça, amigo de Severino há três anos, vice coordenador do Acelerador de Pequenos Processos, amante incontrolável de oxigênio? o que dirá o pequeno rosto de Edward Mordake, logo ele, que nunca teve um nome, que pode muito bem ter sido tomado erroneamente como o mensageiro de pensamentos suicidas de seu próprio hospedeiro? a jovem professora Balsanufa Lobre, tão rigorosa com os milímetros excedidos na grafia de seus pequenos alunos, como vai relevar seu âmago pedagógico e o futuro da nação frente a tal comportamento? para além destas imagens vivas, tão vivas, o que pensará a respeito disso Silvinha Perdigoto, sua namorada imaginária na adolescência, coveira nas horas vagas, amante dos grandes feitos e encantadora de serpentes profissional? isso para não falarmos de Cléo Lins, a deusa prodígio da família, exímia arquiteta de anagramas, indústria humana de alto rigor técnico para Bancos de Imagens Gratuitos, como ela poderia agir perante tal desgraça senão com o desprezo por meio de um silêncio assassino e familiar? ainda restam todos os outros, os nomes não citados. restam os desconhecidos. uma fileira deles, uma multidão sem rosto. há sempre a esperança que um desses desconhecidos clame por piedade, mas só porque a piedade é fruto da hierarquia. nesta tempestade de merda, Severino exila-se como um imbecil em seu próprio corpo. a água quente é expelida pelo chuveiro, a fumaça está distante. uma vertigem oriunda de um ponto único, sem fim. neste ponto configura-se o vermelho de Prometeu com sua fenda aberta para todas as bestas. uma situação na qual Severino não dispõe de nada, definitivamente nada para fazer. as garantias e os direitos esvaeceram-se em prol do número exponencial de testemunhas. qualquer tentativa de explicar-se, de redimir-se, é o artifício perfeito para destrincharem seu comportamento, para avaliar cada pedaço de sua personalidade – seja a avaliação pertinente ou não. acabo este relatório com um breve parecer: não venho como protagonista, tampouco como narrador, categoria mais que antiquada. a forma mais radical de intervenção é a observação ativa. Severino está num canto, submerso em seu banheiro, e parece desconfortável. o rosto procura a própria nuca, ou algum buraco que valha, e a expressão de condenado é absoluta.
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Um e-mail departamental Texto de Marcelo Moreschi Ilustrado por Gabriel Roemer
A Espírita do Ocidente
A Espírita do Ocidente
psicografará de dentro
esclarecerá
da nossa biblioteca usando também (para provar que
galhos tropicais mirrados
as letras
iluminam sempre a
como o externo vira interno por trás e
sacroSSanta
pelos olhos e com quan†os
cruz da autognose
ésse-ésses
do nacional mesmo
se escreve
quando falta sociogloSSia luz elétrica) e se funda sua mais nova obra
uma diocese
à la mode entretanto parnasoMarxismus
A Espírita do Ocidente
Tietê, Tejo, Sena,
também demanda
Pinheiros, Ribeirão das Pedras
Luzes Cruzes
e Água-Chata:
em seus cachos
a cândida iluminação
e ajuda da
das várzeas
instituição-sede-incorporada
redux
para entender como
por meio da gravação
Dialética Negativa Europeia
tocada de cor e
e Missão Eurologocêntrica
ao contrário dos textos do philosophe favorito dos presentes e à escolha
dormem na mesma cama
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A Espírita do Ocidente teleológica e empenhadamente em busca de sua nova morada em terras incivilizadas e póstumas logrando sempre por designação superior gerar uma tradição de herdeiros eleitos e identificados pelo triângulo da SSociabilidade como pressuposto mais relevante do sentido etapista civilizatória
garantia da prática
ou então ao menos
tardo-escolástica de
um erramos nas datas
domesticação de i
em que nascemos
legibilidades
e em que publicamos e no tamanho das
será convidada
maiúsculas
com delicadeza
no uso das palavras
a participar de
um workshop individualizado
crítica
oferecido pelos
teoria
atuais futuros hospedeiros hospedaria
nas placas comemorativas
humilde humano
e nos times da firma e nos atos cívicos
quando poderá aprender
do planalto de Piratininga
a desnaturalizar os pressupostos
das suas duras raízes e secos galhos infrutados
revista uso, #2
a cena colo(N)niza†ória o que certamente tornará (todes torcem esperançoses
A Espírita do Ocidente
é preciso que se diga) mais agradável o papo
também contará
com os pares
segredinhos
d’Além-paróquia
e fofocas baixinho nos
(ie., o mundo) nos encontros das guildas
coffee breaks sonecas do demiúrgo tem aquela
além da vantagem adicional
de fora da caverna
de talvez poder fazer
de onde um Robert BOB
honra e jus a seus heróis
Robertus Erasmus Carlus Augustus
e santos e traduzi-los
(Al’Ssírius pater ad-voltir
para outros idioletos
ego sum re-natus di’Marty-martello
para além dos cacoetes
e renego é o meu sobrenome)
do aparelho sinto muito
quadrado preto
things fall apart
sim ele mesmo
the center cannot hold
viu o lugar da Ideia onde estava tricotado
e será ensinada ainda
seu verdadeiro nome Próprio
a não usar seu ranço
Local na contracapa
Adorn-eado contra todos
de uma bilaquiana autografada
os contentes de guirlanda
in anima nobile
cantantes sofistas
na sede do partido
imantados em geral
e desde então
gênios do deserto
ficou especificada
que vivem muito bem
a inespecífica teoria
longe da sua República
do descompasso recalcado
(dasletrasesprimidas
no nom de plume
e inflacionadas) mas conta outra ao longo do evento e também aquelas para o delírio dxs
todas do infra-arquivo familiar
médiuns da Ideia
infraestrutura da autoHistória
e do secretariado zeloso
que neutraliza
de corpus textual presente
opiniões em documentos
em particular
em nome do Brasil-sil
para os bravos que se
ah mas isso
deslocarem pelas ruínas
já não é mais novidade
das franjas da urbe
porque já está igual em todos
até a distante várzea virgem
os trabalhos encadernados
com galpões e frutas e temperos
embolorados no Butantã
onde o Outro no dos outros não é refresco
que Mário? sim tem aquela
mas ouro sim chatoboy
sobre a estátua de praça
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irá menosprezar a população local já a essa altura enceguecida e dentro do armário
dizimada de tantas
para a alegria dos nervos
Luzes Cruzes em volteios
das sobrinhas hoje
a mesma população
tias bem casadas
vale lembrar
sem falar claro miga
antes expulsa da cidade
dos fortões barbudões
pela dutra congestionada
vermelhos
e com capital simbólico que não paga o busão
para não mencionar
da volta
as admissões semipúblicas como aquela sobre
então e só então
o sistema literário chá das cinco trans
exatamente no entre-aulas
epocal operada
diante de Gil Vicente
acadêmico-dominical
ao pôr-do-sol e no alinhamento
dos latifúndios simbólicos
de Saturno em Virgem com
empenhados na Missão
Júpiter em Leão e em pleno
do travestimento nobre da
jantar vegano com as migas
própria Missão delirante
tocando mal violão desafinado
já quase encontrando seu telos
A Espírita do Ocidente
e a mistura certa de matéria e espírito
vai gritar em língua pós-vernacular
em discurso indireto livre mas antes dos autos dialéticos
hagiografia paráfrase parábase
da noite de autógrafos telepáticos mas ainda em sua mais
correndo em círculos por onde acredita ser sua nova picada bandeirante
nova obra multímoda interminável
e finalmente
como se nota
porque a paciência é curta ainda que a prolixidade se justifique
A Espírita do Ocidente
para encerrar a sua extravagante aparição
infelizmente relatam os livros futuros
A Espírita do Ocidente
proibidos e/ou difíceis de ler porque graças a deusa
performará seu próprio exorcismo
anti-comunitários (mas atenção que será cancelado na mesma jornada
na véspera em respeito aos velhotes mas ressurgirá em seguida como cripto-evento intervenção
revista uso, #2
demoburocrática secreta e/ou mais um embate ene autoplasticidade e conformação com vitória gloriosa da Deriva convenhamos o autor não morreu assim daquele jeito e a Deriva como se sabe sempre vence #ForaTotalitarismoCívico) certificados de presença metafísica serão disponibilizados para os presentes ou nem tanto e para os voluntariosos reencarnados bem como atestados institucionais individualizados e volitivos da participação vulgo méthexis na Ideia sem lugar subscrevendo formalmente à Causa da subordinação da História ao Causo e à Espírita como contracomunhão ritual voluntária vá de retro amém atotô vide anexos e links saudações neoletristas e votos sinceros de reorganização teórico-gestáltica (Die Listen der Evidenz®) ps.: serviremos totens às custas do Desejo-de-Estado
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autocritica Prezado leitor, Pelas janelas das unidades autônomas não entram somente brisa e luminosidade, delas também saem detritos dos mais variados. Este comportamento tem causado problemas, acidentes e prejuízos para a Revista: Tem se tornado corriqueira a coleta de pontas de cigarro no piso do andar intermediário, as quais são arremessadas pelas janelas das unidades. A princípio, é difícil entender os motivos que levam um “leitor/editor” a agir dessa forma, mas esta atitude é muito mais comum do que se pensa. Muitos fumantes utilizam as janelas da unidade como cinzeiro e sequer se preocupam com o que pode ocorrer se essas guimbas vierem a atingir locais, por exemplo, que possuam materiais inflamáveis... Pois bem, cada um tem um motivo para transformar suas janelas em lixeiras. A Revista tem ciência de que são poucos leitores que adotam este procedimento, e para aqueles que repudiam essas atitudes solicitamos desculpas, mas àqueles que são responsáveis por tais atos, solicitamos que avaliem o procedimento que estão adotando e o cesse de imediato, evitando com isso ‘contratempos ’ ‘desnecessários’. Vale lembrar que na área do andar intermediário se encontra a quadra e playground para diversão das crianças. Então, vamos por a mão na consciência: já pensaram se uma criança dessas coloca uma dessas guimbas na boca? Ou mesmo se uma ponta de cigarro acesa atingir a cabeça da garotada? Em face do exposto, alertamos que a Revista está sempre empenhada em identificar os responsáveis por tais atos de vandalismo, e quando isso ocorrer, com certeza, a unidade será penalizada com multa por infração às normas de higiene. Sendo o que tínhamos a informar (para o momento), firmamo-nos. Cordialmente
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manifesto gráfico Eis o projeto gráfico a posteriori. A cada edição, as convenções automatizadoras, bem como as estruturas formais dos textos (em linhas ou superfícies), põe à prova as decisões visuais. É nesse confronto titânico entre a entropia expressiva e a neguentropia formalista que revisitamos o vigor projetual. Sem mais delongas: eis as mudanças.
† Sumário gerado automaticamente a partir dos estilos, replicatas vivas da demografia editorial. † Entretítulos criados para uma geografia textual mais precisa. † Estilos de caractere (não confundir com caráter) para paladares léxicos exóticos. † Constante e progressiva indecisão do que virá a seguir.
revista uso, #2
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novembro de 2019