REVISTA LABORATÓRIO REVISTA LABORATÓRIO ED. 05|JUN 2017 ED. 04|JUN 2017
CONSELHEIRO NÉBIAS HISTÓRIAS QUE DÃO VIDA À AVENIDA
JotaErre: criador da Batalha de rimas da Conselheiro
#VIRALIZOU
EDITORIAL
R Para saber mais sobre esta edição acesse nosso blog viralunisanta.blogspot.com
EXPEDIENTE REvIsTA lAbORATORIAl DO 4º AnO DE COmunICAçãO sOCIAl COm ênFAsE Em jORnAlIsmO DA unIvERsIDADE sAnTA CECílIA (unisanta) - JuLHO 2017 DIRETOR DA FAAC Prof. Humberto Iafullo CHalloub COORDEnADOR DE jORnAlIsmO Prof. robson bastos PROFEssOREs REsPOnsávEIs Helder marques, nara assunção e raquel alves PROjETO EDITORIAl amanda olIveIra, estHer ZanCan, Jane freItas, larIssa frança, leandro PereIra, luna olIva e raquel vasConCelos PROjETO gRáFICO ORIgInAl luCas rodrIgues e marCelo Hermsdorf
PROjETO gRáFICO ADAPTADO alexIa farIa, benny CoquIto, felIPe CInCInato, gabrIela rIbeIro, KarIna blaCK, vIníCIus tognettI e vítor HenrIque PROjETO míDIAs sOCIAIs allIne CalandrInI, alessandra olIveIra, bruna Pavanato, danIelle loPes, JéssICa souZa, larIssa martIns, letíCIa ferrI Paula freItas e bruna Pavanato sITE ana CláudIa, bruna CaPella, gIlson JúnIor, JaquelIne souZa, matHeus donCev, mICHely arasHIro, Paolo PerIllo e vICtórIa sIlva
As matérias e artigos contidos nesta publicação são de responsabilidade de seus autores. Não representam, portanto, a opinião da instituição mantenedora - UNISANTA - Universidade Santa Cecília.
2 Viral.com
icardo Kotscho eternizou no título de seu livro a máxima “Lugar de repórter é na rua”. No nosso caso, a rua é uma avenida, uma das mais importantes da cidade de Santos, a Conselheiro Nébias. A experiência de sair sem destino, atrás de bons personagens, exigiu dos repórteres da Viral muita sensibilidade e paciência. Também nos colocou diante do exercício de descrever cenários, aromas e pessoas. Fez lembrar de um jornalismo romântico, quando os repórteres sujavam os sapatos para encontrar a notícia e as histórias que realmente valem a pena. Nosso desafio era descobrir, ao longo da Avenida, gente comum – ou não – que transita, vive, trabalha ou reside em um dos logradouros mais antigos da cidade. As páginas a seguir mostram o resultado dessa fascinante experiência jornalística. Os personagens perfilados nesta edição têm uma ligação íntima com a Conselheiro Nébias, que completou 130 anos em fevereiro deste ano. Quando se caminha pelo local, a partir da praia, percebe-se que a Avenida tem um ar praieiro, começa totalmente iluminada, com pistas largas, cercadas por comércios e um incessante vaivém. Conforme vamos chegando ao meio, com as muitas escolas, academias, clínicas e hospitais, a agitação é ainda maior. Quando a numeração começa a baixar, lá pela altura do número 200, o cenário muda: cortiços, terrenos abandonados, prostituição e tráfico de drogas. A Conselheiro é feita de contrastes. Esperamos que as histórias desta 4ª. edição da Viral façam com que você, leitor, adentre na realidade de pessoas que movimentam e dão vida à Conselheiro. E quando colocadas lado a lado refletem os contrastes de um ambiente plural dentro da nossa cidade. Boa leitura!
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Jota Erre
Descubra, em cada página, histórias dos personagens anônimos que dão vida à Avenida Conselheiro Nébias
Carlos 14 Silvio de Brito
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Joel Moraes
22 Samuel Mello Carolina 32 Ana Rasteiro
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Claudia Chelotti
34 José Ricardo 40 Homero Abílio 44 Euclides de Lima 52 #viralna conselheiro
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Antonio Augusto
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Perfil da Avenida
Sumário 3
procure conhecer se o rap virou o ritmo da conselheiro nébias, o mérito é todo dele.
com vocês,
jotaerre Texto: ALEXIA FARIA, GABRIEL SOARES, MAYRA RODRIGUES, PAOLO PERILLO Foto: GABRIEL SOARES Edição: ALEXIA FARIA
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Jota repassa avisos e regras antes da 83ª edição. O bom humor é marca registrada do criador da Batalha mais concorrida da cidade
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reciso falar meu nome? É que eu sou agente secreto, mano!”. Foi dessa maneira descontraída que o Mestre de Cerimônias (MC) deu o tom da conversa. Apesar de seu 1,99 metro de altura intimidar qualquer um, bastou abrir um sorriso junto com a primeira resposta para deixar claro que sim, ele estava brincando. Pronto, deixou todos à vontade e curiosos para saber mais de sua história. Em uma noite fria de quarta-feira, sentindo a brisa do mar da praia de Santos, momentos antes da 83ª edição da “Batalha da Conselheiro”, conversamos com o artista que está virando referência do bairro do Boqueirão. O nome dele? Paulo Sérgio Dias Júnior. Mas esse dado está apenas em seu documento de registro: “Meu nome é Jota Erre!”, resume com o mesmo sorriso e uma certa ginga no corpo esbelto. O rapper herdou o nome de seu genitor, mas nunca o chamaram de Paulo, ou de Júnior. Desde que nasceu é chamado de Jota Erre. A escrita é estranha, mas também foi algo natural e criado por seu pai, que sempre o chamou assim e escreveu o apelido dessa forma. “Poucos aqui sabem o meu nome de verdade. Não tenho cara de Paulo Sérgio”, conta ele, observando o movimento da praça. Sem querer, o senhor Paulo Sérgio Dias criou a identidade secreta de seu filho, que carrega a denominação com orgulho e é cada vez mais reconhecido.
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A diversidade de som e rap aqui é muito alta. Jotaerre
Batalha da Conselheiro Batalhas de rima já existiam em várias cidades, mas em Santos o movimento ainda não tinha tomado corpo. Quando surgiu a chance de a cidade mandar um representante da região para uma grande competição em São Paulo, os rappers de plantão não sabiam quem indicar. Jota ficou responsável por organizar o primeiro confronto entre os rimadores para encontrar um finalista talentoso. Desde então, a batalha é uma atração fixa toda quarta-feira na Fonte Luminosa, na praia da Conselheiro Nébias. Inicialmente o nome seria “Batalha do Canal 4”. Estava tudo certo para que fosse em frente à igreja do Embaré, mas no dia marcado, uma forte chuva mudou os planos e o destino deu um toque para que os duelos acontecessem no lugar que rolam até hoje: a Fonte Luminosa, na Conselheiro. “Era o lugar coberto mais próximo e fomos para lá. Na semana seguinte, marcamos na igreja, mas choveu novamente”. Sem dúvida o lugar da Batalha de Rimas, que se encaminha para seus dois anos de existência, tinha que ser ali, em meio a uma das avenidas mais movimentadas da cidade e do lugar que traz paz para muita gente: a praia!
A convocação para a primeira batalha foi feita pelo Facebook, em 21 de outubro de 2015. Desde o início a procura pelo evento foi grande. O sucesso foi tamanho que, já no primeiro ano, a Batalha entrou para a programação oficial do verão santista, a Tenda de Verão. “O bagulho foi tomando uma proporção absurda!”, comenta o MC. Toda semana um público fiel comparece à Fonte Luminosa: os rappers, a plateia, os ambulantes. “Tem um tio aqui que vende brigadeiro de churros, tá ligado? Ele falava que o campeão ganharia um brigadeiro de churros. No dia do aniversário de um ano, eu trouxe um bolo com brigadeiro de churros, cantamos parabéns. Foi da hora!” Jota conta, todo orgulhoso, da responsabilidade de organizar o evento. Ele não confia a missão a mais ninguém. “Eu deixo de procurar emprego para estar aqui”. Ele confessa que já pensa em alguns sucessores, mas afirma que ainda vai ficar muito tempo à frente da Batalha. Além do compromisso de colocar ordem nas apresentações, chamar um a um os participantes e ainda “orquestrar” as rimas e melodias, o criador da Batalha tem a consciência de que ele é exemplo para os mais novos.
Jotaerre zela pelo respeito entre os participantes e explica como, naturalmente, conquistou o respeito e a admiração de todos. “Nas primeiras edições aconteciam alguns exageros. Com a namorada de um, com a prima de outro. Eu não veto nada. Eu só dava um toque de que desrespeito e discriminação não era legal e que aquilo ia acabar ficando chato. Tem que ter essa conexão. Tem que saber qual a mensagem você vai passar. A responsabilidade não é só minha, é de todo mundo que está aqui”. Segundo Jota Erre, essa postura fez com que os temas abordados nas Batalhas se diversificassem. Hoje os assuntos são variados e envolvem desde problemas do País, até questões do mundo. “Eles me surpreendem. Tem vezes que eu me assusto na Batalha. O que esses caras estão falando?”, afirma o MC, entre risos. Alguns dos rappers que já frequentaram a Batalha da Conselheiro ganharam destaque a nível estadual, duelaram com nomes consagrados do cenário Hip Hop, como Projota. Jota se envaidece todo ao comentar os feitos dos seus pupilos. “É orgulho pra caralho quando acontecem esses bagulhos”.
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EntEnda como funciona uma batalha dE rima A mecânica de apresentação da batalha escolhida por Jotaerre estimula o raciocínio e a criatividade dos participantes. Em lugar dos 30 segundos para cantar a frase, o candidato tem que entregar logo duas rimas, antes de passar a deixa para o oponente, sem limite de tempo. O método é um dos
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mais utilizados nos duelos da Baixada Santista. Os competidores duelam, no bom sentido, e no final da disputa o vencedor ganha uma folha de papel com seu nome, o que vale mais do que qualquer troféu ou premiação. Conquistar uma batalha é conquistar prestígio e respeito.
Quem é Jotaerre? Aos 27 anos, santista de nascimento, Jota Erre atualmente mora no Guarujá e diz que só vai lá para dormir, pois sua vida sempre foi e ainda é em Santos. “Lá moro com o meu pai, mas venho para Santos todos os dias”, diz ele, antes de contar mais histórias sobre sua família. O que Jota coloca nas rimas improvisadas de suas canções é o aprendizado de uma vida e as muitas experiências; a primeira delas foi a separação de seus pais. Ele tinha 10 anos e ficou com a mãe, mas as coisas nem sempre foram fáceis para os dois, tanto que se separaram e foram morar em casas diferentes. “Já morei com amigos e com conhecidos. Certa vez acordei com a coberta pegando fogo, pois o dono da casa em que eu morava se drogava muito”, conta com uma expressão serena e nos tranquilizando, mostrando que aquilo foi apenas uma fase que encara como uma lição. Chegou uma hora que não dava mais para ficar naquela situação e o rapper decidiu morar com seu pai e uma irmã no Guarujá. Falando em irmãos, ele tem quatro e fala com muito carinho de todos. Já a sua mãe mora em Santos na casa de um irmão, e Jota a visita com bastante frequência. Escola e amigos “Eu não estudava, ia pra escola”. É assim que Jota começa a falar de seu período
escolar, que foi todo feito em Santos e, apenas no final, teve que ser concluído em Guarujá. A escola que mais o marcou foi a Escola Estadual Marquês de São Vicente, no canal 2, pois ali ele fez amigos e conheceu muitas pessoas que leva até hoje em sua vida. Como a maioria dos jovens, o MC gostava de jogar futebol: “Naquela época eu nem pensava em rima, só queria saber de jogar futebol. Era o meu plano de vida. Joguei em escolinhas do Flamengo e da Portuguesa Santista”, relembra. Ritmo e Poesia Jota conheceu o rap com a irmã mais velha, que escutava Marcelo D2 e artistas do hip hop internacional. “Não era nada que eu me identificasse, eu só escutava”. Mas ele começou a prestar atenção no gênero musical, após um amigo de São Paulo lhe apresentar diversas músicas e artistas do estilo. A inspiração para sua primeira música, “Mudando o Brasil”, foram as manifestações em 2013. Depois disso ele lançou “Mudando o Brasil 2”, que fala sobre a Copa do Mundo e seu legado. Esse é o Jota Erre, um cara simples. Olhando em seus olhos é possível perceber sua vontade de transformar o meio em que vive e o quanto ele acredita nas pessoas, nas relações de amizade e na música. Como ele mesmo diz diversas vezes: “Procure Conhecer”, uma bandeira contra o preconceito
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Se eu fosse bandido não tava fazendo rima, tava de terno e gravata governando em Brasília. Mudando o Brasil (2013) Jotaerre
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Claudia Chelotti
Comunistinha de sapato verde ela insiste em querer o que não existe. vive em meio a livros velhos, ouve músicas que não tocam mais....
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Texto e foto: AMANDA OLIVEIRA, KARINA BLACK, LUNA OLIVA E RAQUEL VASCONCELOS Edição: AMANDA OLIVEIRA E KARINA BLACK
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S
air para comprar sapatos não era uma tarefa fácil para Cláudia Chelotti quando criança. Não porque os pés fossem grandes demais, ou pequenos demais – aliás, fica a ressalva: ela calça número 37 – mas porque, como boa leonina, ela já insistia em querer o que simplesmente não existia. Durante a infância, ainda persistia em buscar o que almejava muito, mas com a idade e “quando a vida chamou pra real”, como diz, deixou de procurar o que não estava a seu alcance. Hoje em dia é pé no chão. Se deseja alguma coisa, mas não pode tê-la, se contenta em ficar só no desejo. Fim de papo. Mas, numa época em que, segundo Cláudia, as únicas opções de cores de sapatos eram preto, branco, azul marinho e vermelho, querer um sapato verde soava insano. Só que daquela vez, decidida a encontrar o que queria, a menina convenceu a mãe a sair de loja em loja pela cidade, em busca do “impossível”. O sapato verde estava para a pequena Cláudia, como o tesouro está para o desbravador. Não era nem questão de querer, era questão de ser. E ser, no caso de Cláudia, implicava em ser impetuosa, independentemente da situação. Como da vez em que ganhou o primeiro par de brincos. Não demorou muito para que uma das minúsculas argolas vermelhas sumisse. A que restou permaneceu pendurada na orelha esquerda da menina, que não viu problemas em usar apenas um brinco, muito antes de estar na moda, é bom que se diga.
“Minha comunistinha”, era o que a mãe dizia toda vez que a menina questionava algo, inclusive o fato de usar apenas um brinco, quando o “certo” era usar dois. E com muita paciência, Cláudia questionava: “Porque tenho que usar os dois brincos iguais? Você tem esses dois dedos iguais e só usa a aliança em um”. E aos 59 anos, Cláudia permanece com apenas uma orelha furada. Hoje, os sapatos verdes deram lugar ao All Star cor-de-rosa, já a argola vermelha, a uma delicada pérola. O presente inevitável O mezanino no número 850 da Avenida Conselheiro Nébias abriga o sebo Disqueria, onde encontramos nossa personagem. O ambiente lembra um labirinto. É um misto de sebo de livros, discos, CDs, DVDs.... Um mar de relíquias. Imersa entre obras de Machado de Assis a Maria Valéria Rezende, de Chico Buarque a Raul Seixas, Cláudia parece não contrastar com o lugar, mas ser parte dele. A presença dos discos soa como uma parte permanente do que era seu marido, o DJ Wagner Parra (ele morreu em 2015, aos 52 anos), enquanto os livros indicam parte do que ela é. A leitura entrou em sua vida como quem quer preencher um espaço vago. Quando criança, a insônia parecia ser a única “companhia” nas horas infindáveis da madrugada, até que ela encontrou refúgio nos livros. E desde muito jovem, Cláudia já frequentava sebos, buscando alimentar o prazer da leitura. E antes que você, leitor, pense: “Foi daí que ela teve a ideia de ter a Disqueria!” Ledo engano. Não era exatamente um projeto de vida ter um sebo, mas a união da paixão por livros de Cláudia à paixão por discos, de Wagner, fez surgir a loja. O casal também teve um empurrãozinho da prateleira de casa. Eram tantos discos que o móvel não suportou o peso e despencou.
Da varanda de sua Disqueria, ela admira a avenida: “A Conselheiro me escolheu”
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Cláudia prefere não ser fotografada. Busca refúgio nos livros
Seguindo em frente Voltando ao sapato verde.... A mãe já até tinha desistido de entrar nas lojas com a menina. Era vergonhoso ficar insistindo. “Não tem sapato verde!”, era o que ouviam o tempo todo. Cláudia entrava então, sozinha. E foi assim a vida toda. Não precisava necessariamente de companhia para ir ao cinema, conhecer um novo restaurante, ou para viajar. Para ela, não é uma questão de preferência, estar ou não sozinha, mas de priorizar a si mesma. Quem conhece Cláudia hoje em dia, não imagina os estágios por quais passou até ser o que é. Não só as roupas, ou o jeito de falar, mas o conjunto da obra, são detalhes que compõem sua identidade e revelam uma mulher que continua a não se preocupar em atender a expectativas alheias. “Hoje, por acaso, eu não estou de havaiana, mas todos os dias eu trabalho de havaianas, shorts... Como eu bem entender. Falo com as pessoas como eu bem entender, dou minhas
opiniões e ouço coisas que num outro ambiente pode não dar certo. Aqui às vezes também não dá certo, mas não importa”. O futuro a Deus pertence A busca pelo sapato não parecia muito promissora. Mas, para quem já havia passado o dia todo ouvindo “Não”, não custava nada tentar mais uma vez. “Moço, tem sapato verde?”, perguntou a menina Cláudia, ao entrar na última loja de sua jornada. “Não tenho, mas vou procurar e ver se acho algo pra você”. Quase como um ato milagroso, o sapateiro retornou com um pedaço de couro verde e fez o tão desejado sapato verde de Cláudia. Desde então já se passaram 50 anos. Tempo em que o tempo deixou de ser uma questão na vida de Cláudia. Tempo e futuro não importam. Importam o hoje e o agora. Foi com o passar dos anos que a garotinha sonhadora se transformou em uma mulher realista. Quando percebe que o sapato verde não está a seu alcance, vai de All Star rosa e tudo bem
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Texto: lUCAS SANTOS Fotos: AlliNe CAlANdriNi e leTÍCiA Ferri diagramação: BrUNA PAVANATO
uM LuGAR PARA RECOMEçAR Quem nunca teve uma segunda chance para recomeçar? decidido, silvio carlos de brito deu a improvável volta por cima e hoje é uma inspiração para aQueles Que lutam para se livrar das drogas
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abelos alinhados, bigode bem aparado, roupas impecáveis. Silvio Carlos de Brito, de 67 anos, vive preso a uma cadeira de rodas, mas isso não lhe rouba a energia, a vontade de brigar pelo problema dos outros e nem mesmo o seu bom humor. A doença que impede sua mobilidade abaixo da linha da cintura não tem nada a ver com o drama que o acompanhou boa parte da vida: a compulsão por drogas. Na verdade trata-se de uma distrofia muscular, desencadeada por um motivo qualquer que ele não sabe precisar. Pai de dois filhos e avô de quatro netos, ex-traficante, ex-dependente químico, Brito é coordenador geral da Operação Vida, projeto de reabilitação da Igreja Evangélica Cristo é a Resposta, e usa sua própria história de vida para ajudar a construir a segunda, a terceira e até a vigésima chance de recuperação de pessoas que não conseguem largar as drogas. Sua história começa no ano de 1950 no interior de Minas Gerais. Na pequena Poços de Caldas, onde nasceu e foi criado, descobriu a maconha, com apenas 13 anos, por influência de amigos.
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O alvo do nosso trabalho não é tirar a pessoa da droga, mas dar a ela, qualidade de vida. Silvio carlos de brito
O uso contínuo da droga fez com que Brito passasse para outros entorpecentes, como a cola de sapateiro. Com 17 anos, mudou-se para São Paulo com a família, e mergulhou no vício por 15 longos anos, a ponto de traficar para custear sua dependência e pagar contas de casa.
Aos 26 anos casou-se e pensou em mudar de vida até conseguir parar totalmente com as drogas aos 28 anos. Foi neste momento que o coordenador do projeto de reabilitação recebeu o que acredita ter sido um milagre: a cura da filha, que nasceu com uma enfermidade no rosto. A doença causava em Brito um incômodo sentimento de culpa, por ter acontecido na época em que ele abusava de muitas substâncias químicas. A reviravolta ocorreu num sábado de Carnaval. “Lembro que estava fumando maconha em casa. No meu quarto havia uma Bíblia que eu nunca tinha lido. De repente, enquanto minha filha e minha mulher estavam dormindo, abri a Bíblia e comecei a ler, porque não tinha o que fazer de madrugada. Encontrei o versículo João 15:7,que dizia: ‘Se vós estiverdes em mim e as minhas palavras estiverem em vós, tudo que você pedir vai ser feito’”. Após a leitura, Brito diz que suplicou a Deus para que sua filha fosse curada. Viagem Três dias depois, acompanhado da
Brito conserva com carinho o exemplar da Bíblia que mudou a sua vida
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família, Brito fez uma viagem para negociar drogas em outra cidade. Lá encontrou uma menina, que perguntou o que sua filha tinha no rosto. Após a explicação, a garota pediu o nome da criança para poder orar por ela. Ele começou a acreditar na possibilidade de um milagre. “Naquela semana a enfermidade da minha filha sumiu. A partir daí, segui a palavra de Deus. Exatamente no dia 16 de março de 1979 entrei de vez para a igreja evangélica. Então entendi quem eu era, por que nasci e para onde seguia. Compreendi que tinha um Deus que me amava e que deu a vida por mim e por isso estou aqui”, acredita Brito. O ex-dependente químico dedicou-se ao estudo da Bíblia e trabalho em tempo integral na igreja Cristo é a Resposta. Mudou-se para Santos em 1991 para fundar, dentro da própria igreja, na avenida Conselheiro Nébias, a Operação Vida, um trabalho de reabilitação de dependentes químicos. A ideia prosperou, ganhou reconhecimento público e com o tempo tomou conta da casa toda. A Cristo é a Resposta cresceu no mesmo ritmo e hoje tem sua sede em Santos, na Avenida Washington Luís, 136. As pessoas que procuram tratamento no projeto conduzido por Silvio passam por triagem e realizam exame de sangue, raio-X do tórax, e tiram fotos, além de receberem um atestado de liberação para exercícios, para aí serem internados. Em seguida, os alunos, como são chamados, têm o período de sete meses para ficar na casa de recuperação em Itanhaém e quando saem ficam mais dois meses na sede do projeto até poderem se reintegrar à sociedade. “O alvo do nosso trabalho não é tirar a pessoa da droga, mas dar a ela qualidade de vida. A recupe-
Momento de fé na Operação Vida ração é 100%, desde que o aluno acredite. Então tiramos a droga e colocamos Deus, sendo que o paciente vai passar a alimentar-se não só do físico, mas do espiritual”, explica Brito. De acordo com o coordenador, todos que vivem nesse caminho passam por histórias semelhantes. “Somente os personagens são diferentes. Por pior que a pessoa esteja, o remédio é o mesmo”. Ele considera que não há cura para a dependência química se o usuário não mudar espiritualmente. Brito cita a Cracolândia, em São Paulo, como exemplo de um problema que depende da conversão espiritual do dependente. “Dão remédio, conselhos, mas não conse-
guem resolver o problema da Cracolândia”, opina. “A prova maior de um cara transformado sou eu. Não sou dependente, estou recuperado. Entrei na igreja como um drogado e saí curado”, confessa, sem disfarçar um certo orgulho. Feliz com a possibilidade diária de ajudar a transformar outras vida,s Brito acha que a luta vale a pena. “Me sinto como se fosse um garimpeiro, procurando ouro no meio de lixo e tenho encontrado muita gente que tem se recuperado nesse mundo vicioso das drogas. Não faço praticamente nada, somente aconselho a palavra de Deus e faço o aluno entender o porquê nasceu, vive e para onde vai. A sensação é de dever cumpri-
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Entrei na Igreja como um drogado e saí curado Silvio carlos de brito
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O SUCESSO É ÓBVIO? quando você encontra sua vocação, o sucesso é apenas uma consequência
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m meio a uma multidão de alunos ansiosos com cadernos na mão, encontramos a sala que procurávamos, a de um rapaz com sorriso largo e felicidade contagiante. Chegamos perto, enquanto ele digitava fervorosamente no seu computador, mas mesmo assim, para na hora para iniciar a nossa conversa. A história de Joel Moraes, de 36 anos, começa exatamente no lugar em que o encontramos anos depois. Aos 21 anos, se formou em Educação Física, na Universidade Santa Cecília. Com seu jeito competitivo, contou que durante o curso, conquistou diversas medalhas em campeonatos paulistas e brasileiros de natação. Foi a partir daí, que a vontade de vencer na vida surgiu.
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Texto: PAULA FREITAS Foto: BRUNA CAPELLA/ DIVULGAÇÃO Edição: ALESSANDRA OLIVEIRA, DANIELLE LOPES E RRUNA CAPELLA
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Se sabemos que vamos morrer, o que nos resta é viver. Então, eu vivi! Joel Moraes
Joel sempre buscou ir além da faculdade e iniciou sua carreira como professor na universidade aos 25 anos. Pouco depois de se formar, treinou mais de mil atletas de natação e conta, com brilho nos olhos, e muito orgulho do quanto o lugar o fez crescer. Quando decidiu empreender pela primeira vez, em um programa de TV sobre esportes com um atleta renomado, Joel teve que enfrentar uma tentativa que não deu certo. Ele não conseguiu o número suficiente de patrocinadores para iniciar o programa no prazo, e sua vida passou por uma reviravolta. Com uma dívida de 150 mil reais que ele não tinha como pagar. Ao mesmo tempo em que teve que lidar com problemas financeiros, descobriu um câncer na garganta, experiência que foi descrita com uma das frases mais tocantes desta entrevista:
No lançamento de um dos seus livros em 2015
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“Quando você sabe que vai morrer, e eu sabia que ia morrer, a sua única alternativa é viver. Então eu vivi!”. Vivendo, ele correu atrás de saldar sua dívida. Fez um empréstimo consignado, entregou seu apartamento comprado na planta, pegou dinheiro emprestado com uma amiga. Parou de se culpar pelo que tinha acontecido e assumiu o controle da sua vida. E assim, aos poucos, a dívida passou a não existir, e o câncer deixou apenas uma cicatriz no início do pescoço, local de onde o tumor foi retirado. A volta por cima veio quando Joel percebeu que o sucesso estava aliado a empreender em algo que ele realmente sabia, então, resolveu escrever seu primeiro livro voltado para atletas de natação. Como já imaginava, foi um sucesso. Na verdade, o sucesso foi tão grande que as propostas de trabalho começaram a surgir. Foi convidado para coordenar o Instituto Neymar e voltar a lecionar na UNISANTA, mas dessa vez, como professor de Gestão, ensinando seus alunos a empreenderem. Desde o primeiro livro, Joel estabeleceu a meta de escrever um por ano. Ele já vendeu mais de 5 mil exemplares de suas obras. É um coaching renomado, e com todo sua fala envolvente, viaja o Brasil dando palestras sobre empreendedorismo onde as vagas são disputadas e todos querem sua consultoria. É formado em PNL (Programação Neuro Linguistica) e afirma poder controlar a mente e desvendar as emoções de quem quiser com um estalar de dedos. Conseguiu nos cativar, conquistar e mudar nossa postura e atitudes com apenas 20 minutos de conversa. Afirmou que promove discussões em sala de
Joel Moraes conquistou diversas medalhas na natação
aula que são extremamente enriquecedoras. Com a ideia de transmitir seu conhecimento para mais pessoas, criou o movimento “3P” que significa que “Pessoas Precisam de Pessoas”, assim, todos os integrantes do grupo, que tem suas interações pelo aplicativo Whatsapp, se ajudam para um bem maior: empreender. Entre tantos projetos, deu a triste notícia de que vai deixar a UNISANTA devido a uma proposta irrecusável que ele não revelou. Entre livros, palestras, aulas, transmissões ao vivo, treinamentos e consultorias, a lição que ele nos deixou é: todos podem obter sucesso, criar suas próprias oportunidades e se reerguerem após uma implacável queda. Tudo isso aconteceu porque ele batalhou. Se ele conseguiu, porque você não?
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JOEL EM NÚMEROS
1mil
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alunos formados por ele
livros publicados
19mil
5mil
seguidores no Instagram
livros vendidos
17 vezes 34 vezes campeão brasileiro de natação
campeão Paulista de natação
Texto: JESSICA SOUZA Fotos: JESSICA SOUZA Edição: GILSON SANTOS, VITOR HENRIQUE E LARISSA MARTINS
Samuel Mello: tem dias em que o movimento é bacana mas, em outros, volto para casa com apenas 50 reais no bolso.
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ReapRendeR é o desafio Quando deficiência não é sinônimo de dependência
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rânsito, buzinas, semáforo. Eis que surge, caminhando pelo canteiro central, enquanto equilibra uma bandeja de balas, um rapaz com sorriso no rosto e uma alegria contagiante, como se não se importasse com o sol sobre sua cabeça, mas apenas em saudar os motoristas com a pergunta: “Olá, tudo bem? Gostaria de adoçar o seu dia com uma bala?”. Com o corpo curvado na altura exata da janela do condutor, ele aguarda a resposta, que muitas vezes não vem. Mas engana-se quem pensa que isso o desanima. Persistente, já corre para o próximo carro, para o outro e mais outro até conseguir vender a mercadoria antes do sinal abrir. Aproveita a pausa da luz verde para cantarolar e guardar suas poucas moedinhas, enquanto se prepara para o próximo vermelho.
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Ao chegar mais perto do ambulante, percebe-se que seu sorriso não diminui nem com os muitos ‘nãos’ e vidros fechados dos veículos. Só depois de algum tempo observando a cena é que nos damos conta da deficiência visual do rapaz. Samuel Guilherme Mello tem 31 anos, e há 13 ganha o pão de cada dia nos semáforos da Conselheiro Nébias, esquina com a rua Minas Gerais. Quando o movimento não está bom, ele segue para seu outro ponto fixo, na avenida Ana Costa com a praia, na altura da loja C&A. Samuel perdeu a visão aos 5 anos em um acidente com fogos de artificio, enquanto brincava na rua com os primos, numa festa de final de ano quando aconteceu. A adaptação foi muito difícil, lembra ele. Desde então, conta com o auxílio de uma bengala. “Ajuda, mas não muito, porque ela pode identificar um buraco, por exemplo, mas se ele for grande, ela encosta na borda e não no meio dele, assim posso acabar caindo. Outra coisa é que as calçadas são muito desiguais e isso também atrapalha”, afirma. A vida de quem não vê Segundo o IBGE de 2010, cerca de 6.5 milhões de pessoas têm alguma deficiência visual. Desse total, 528.624 pessoas são totalmente cegas. vida Quem tem visão e enxerga os rostos, detalhes dos objetos, todas as cores e caminha sem dificuldades pelas vias públicas, não consegue mensurar como é difícil a vida de um deficiente visual. Atravessar a rua, tomar banho ou até mesmo amarrar os sapatos são situações aparentemente simples para quem desfruta de visão perfeita, mas para quem perde esse precioso sentido humano, é um longo processo de reabilitação para se adequar a essas e outras atividades. Mello vende suas balas na Conselheiro Nébias e na Avenida Ana Costa
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A cegueira é uma deficiência sensorial, não é doença. Não acredite na ‘compensação da natureza’, ou seja, que a natureza compensou a pessoa cega pela falta de visão.
Mello conta com a ajuda de aplicativos para realizar tarefas diárias
Samuel ainda relatou outras dificuldades enfrentadas por ele, mas nada que tirasse o sorriso do seu rosto. “Para pegar ônibus, eu peço parada a todos e então pergunto ao motorista qual o itinerário e aviso onde quero descer. Tem sempre aquele que acha ruim, mas muitas pessoas me ajudam, avisando qual ônibus está chegando”. Nascido em Santos, o ambulante decidiu vender balas para ganhar uma renda extra e ajudar nas despesas com a família. “Eu tive a ideia de vender quando saía da reabilitação no Lar das Moças Cegas. Eu era da turma da manhã e ficava a tarde inteira em casa. Queria mudar a minha rotina e poder ajudar”. Ele comenta que não é fácil, pois fica sob sol e chuva o dia inteiro. “Tem dias em que o movimento é bacana mas, em outros, volto para casa com apenas 50 reais no bolso”. Sua mãe, Jucilene, não apoiou muito a ideia no começo. Para ela, o filho tinha que aceitar fi-
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Sempre busco estar em sintonia comigo mesmo, é algo que me proporciona estar bem com o mundo e o meu eu
car em casa por causa das suas dificuldades, mas com o passar do tempo, ela notou que ele conseguia fazer coisas que pareciam impossíveis. “Ele cresceu e vi a cada dia que ele era esperto e capaz de cuidar de si mesmo, então fui liberando aos poucos. Hoje Samuel consegue fazer tudo sozinho, às vezes eu me preocupo, claro, mas tenho a certeza que ele volta para casa tranquilo”, afirma. A mãe diz que o filho sempre teve uma vida considerada normal para uma criança com problema de visão. “O Gui estudava em uma escola para deficientes visuais e interagia com todos os colegas da sua sala. Ele é sempre animado e sabe interagir muito bem com as pessoas, se dá bem vendendo as balas nos semáforos”. Samuel afirma que ter independência é fundamental. “Não excluir as pessoas com deficiência visual das atividades normais é algo que favorece o seu crescimento. Deixar que elas decidam como podem ou querem participar é importante. Não sinta pena”
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O que vOcê cOnsegue fazer em 1 minutO? NA CONSELHEIRO NÉBIAS, O INTERVALO PODE DEfINIR MUITAS SITUAÇÕES, ATÉ O INíCIO OU fIM DE UMA VIDA Texto: VicTória SilVa Fotos: ana claudia e lariSSa França diagramação: ana claudia, lariSSa França, Michely araShiro e VicTória SilVa
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E
m um minuto cerca de 1.020 carros circulam em uma das avenidas mais antigas de Santos. O número chega a triplicar nos horários de pico e, principalmente, quando mães e pais de toda a cidade vão levar e buscar seus filhos em um dos 21 complexos educacionais espalhados pelos 4.4 quilômetros de extensão. Em um minuto, algumas pessoas ficam presas no semáforo que avermelhou bem na hora que iam passar. Outras deixam de ser atendidas na consulta médica ou de pagar uma conta no banco porque chegaram tarde demais. Na avenida, que nasceu em 1887, um minuto pode significar um nascimento, o fim de uma vida, o beijo de um casal apaixonado ou a discussão de dois estressados no trânsito. Na Conselheiro Nébias um minuto é a morada de muitas histórias. Esta é uma que precisa acontecer cronometricamente dentro do tempo, para que em algum canto da cidade, o dia termine sorridente, como o do grupo de estudantes que foi bem na prova e toma uma bebida qualquer enquanto ouve um duelo de rimas.
SAÍDA
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Nesta história o verbo salvar tem o peso de um giro do relógio e, ao mesmo tempo, carrega nas entrelinhas a leveza de ver o tempo passar. Aos 38 anos, Antônio Augusto Salles de Azevedo descobriu as duas faces do tempo: trabalhava como vigilante de um estabelecimento, em que cada segundo era uma eternidade, a vida acontecia enquanto ele estava de braços cruzados, assistindo a tudo e não colaborando em nada. O tique-taque do relógio durante as jornadas de trabalho começaram a incomodar e, com o incentivo de sua supervisora, ele decidiu que era hora de inverter os papéis, viver a agitação que durante anos assistiu. Era a hora de salvar e não ser um espectador da vida. Mesmo com medo de sangue e o peso de quase quatro décadas, o pai de uma estudante de gastronomia que tem náuseas só de pensar em
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Eu detestava sangue e hoje não me abala mais, nosso cotidiano é assim Antônio Augusto CHEGADA
sangue humano, decidiu mudar de profissão, a partir de agora dedicaria cada minuto de seus dias às vidas de outros. Tornou-se socorrista e, desde então, a Conselheiro Nébias passou a ser sua morada durante 12 horas em dias alternados. É na altura do 457, quase no meio da avenida, que a ambulância fica estacionada. Ele, médicos, enfermeiros e outros socorristas ficam de sentinela esperando o próximo chamado. Em alguns dias, não há tempo nem para um cigarrinho, vício que ainda não conseguiu largar, em outros o cigarro até perde a graça e
ele vigia os movimentos da avenida, como nos velhos tempos. Sorridente e brincalhão, Antônio passa a maior parte do tempo contando histórias, rindo de piadas e, como ele diz, tirando sarro dos colegas. Mas basta o aplicativo, instalado em seu celular, receber a ordem de atendimento para um novo homem nascer. Dentro da ambulância, ele não olha para os lados e nem sorri, tem um minuto para sair da garagem e ganhar o mundo. Em 60 segundos ele e a equipe médica devem estar na rua e, por isso, sua voz costuma soar forte e grave: “o portão, abre o portão! O portão tá fechado, ABRE O PORTÃO”. Portão aberto, os pés buscam o acelerador e assim que os pneus dianteiros entram em contato com o asfalto, a sirene é acionada, um novo som invade o trânsito. São 10 minutos para chegar ao local do atendimento, por mais distante que
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ele esteja, no trajeto que parte do 457 da Conselheiro Nébias, cada segundo é precioso. Não há tempo para medo No primeiro atendimento que fez, há cerca de sete anos, esse foi o pensamento que martelou em sua cabeça: “aqui cada segundo é precioso”. As pernas tremiam, as mãos seguravam o volante com mais força que o normal, fazendo doer as mãos, e o olhar era fixo no caminho que deveria ser feito. Era seu primeiro dia e o pedido de socorro veio de uma mulher esfaqueada pelo ex-namorado. Tão logo o enfermeiro entrou no local já estava de volta, pedindo sua ajuda. O Antônio, que até então desmaiava ao ver sangue precisou respirar fundo e encarar sua nova obrigação. Ajudou a lavar a perna, procurou outros ferimentos e estancou o sangra-
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mento. Estava anestesiado, não havia tempo para lembrar-se de seu medo, apenas a vontade de salvar aquela vida. A cada vez que assume o volante da ambulância, Antônio sabe que está ajudando a escrever o capítulo de uma história, naquele momento ele pode colaborar com o clímax ou o “fim” de um livro cujo início nunca leu e o final sem sempre saberá. Fica apenas um frame. Apesar da pequena participação, cada caso o toca de uma maneira. Os casos com final feliz fazem brilhar os olhos e embargam a voz. Quando o desfecho não é bom, o sentimento de frustração é inevitável. Entre as páginas que ajudou a rascunhar, uma se tornou notícia internacional. Era uma manhã cinza, comum no mês de agosto, e o socorrista fazia a limpeza de sua ambulância, um procedimento normal que
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Aqui cada segundo é precioso na vida de alguém Antônio Augusto
Equipamentos prontos para próxima missão: tudo é preparado na mudança de turno
acontece semanalmente. Enquanto segurava o pano com uma das mãos, sentiu o chão tremer e nem teve tempo de perguntar se era um terremoto, o aplicativo do celular alertou: um avião havia caído a poucos quilômetros dali, entre as ruas Alexandre Herculano e Vahia de Abreu. Minutos depois, seus olhos tiveram dificuldade de entender a cena à sua frente. O socorrista imaginou que o buraco feito pela aeronave tivesse cerca de 6 metros de profundidade. No momento em que iniciou a busca pelos restos mortais, nem imaginava que um dos passageiros fosse o candidato à Presidência do País, Eduardo Campos. Foram vários dias em busca de partes do corpo, e estilhaços que pudessem explicar a maior tragédia que vivenciou. Mesmo anos depois, não consegue explicar a cena. Em um suspiro, tenta se convencer que o destino da vida é a morte e que, em alguns casos, simplesmente não há tempo. E os dias seguem assim. Antônio acorda às 5 horas da manhã, toma um banho demorado para acordar e veste o uniforme, milimetricamente arrumado. Depois de beber um café forte, dirige seu carro de Praia Grande, onde mora, até o local de trabalho. O trajeto é rápido e ele poderia ter mais alguns minutos de sono, mas prefere dirigir com calma, curtir o momento e admirar a vista que encontra no caminho. Chega por volta das 6h50, bate o cartão e fica a postos esperando a primeira ocorrência. É então que uma alta dose de adrenalina faz nascer uma nova pessoa em seu lugar. Em dias alternados, ele está atrás do volante de um carros que percorrem a Conselheiro Nébias, às vezes com pressa, queimando
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A Avenida, por incrível que pareça, só é complicada nos horários de pico Antônio Augusto
Seu maior sonho é cursar Enfermagem para continuar ajudando na ambulância
semáforos e subindo em calçadas, em outras com calma, observando a pressa e as histórias que nascem a cada minuto nesse espaço da cidade
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Texto e Edição: JACKELINE AMORIM CUNHA
Um prodígio mirim A históriA dA jovem que Possui mAis medALhAs do que Anos de vidA
P
ara manter uma rotina espartana é preciso no mínimo, muita determinação. Principalmente quando estamos nos esforçando para alcançar um objetivo. Com apenas 11 anos, Ana Carolina Albuquerque Rasteiro já é um exemplo de foco e força de vontade. Ela nem parece perceber a rotina puxada que encadeia os seus dias. Ana levanta todos os dias às 6h da manhã e assim que pula da cama já se prepara mentalmente para as muitas atividades de uma jornada que nunca acaba cedo, ao contrário, pelo menos duas vezes na semana se estende até o turno da noite. Tudo funciona com horários a cumprir: vai à escola, ajuda os pais na produtora em que trabalham, faz as tarefas, estuda para as provas, vai às aulas de violino à tarde duas vezes na semana, e garante, todos os dias, o tempo para aperfeiçoar sua paixão: o judô, mais do que um esporte, sua forma de expressão. Aos 4 anos, quando estudava no Colégio Conquista, a santista chegou a fazer balé, mas se encontrou quando pisou firme no tatame, durante as aulas de educação física. Depois mudou de colégio e parou o esporte por um ano. Só foi voltar a lutar quando seu pai a matriculou no Gotas no Judô, da Assistência à Infância de Santos Gota de Leite, que fica na avenida Conselheiro Nébias. Pesquisas comportamentais tentam entender a motivação e a capacidade de entrega de grandes atletas e pessoas de perfil obstinado. Um desses estudos, conduzido pelo psicólogo sueco e pesquisador de cognição humana, K. Anders Ericsson, concluiu o seguinte: não
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importa qual é a atividade, a diferença entre um ser humano que realmente se destaca e outro, de perfil mediano, é de 10 mil horas de prática. Sem saber da pesquisa, a judoca tem se esforçado para alcançar essa meta, pois apesarda pouca idade já entendeu que quanto mais treina e estuda, mais imbatível fica. Se antes a sexta-feira era de folga, agora ela usa o dia para treinar. Se antes ia somente nas aulas de judô da Gota, onde começou a treinar de fato, agora também vai à Arena Santos, à noite. Aos finais de semana, também acorda cedo, pois participa de competições. Há quem diga que a genética deu uma forcinha, uma vez que Juliana, mãe de Ana, lutou judô até ter a filha. Parou na faixa marrom, uma antes da principal. Alessandro, o pai, não luta, mas ajuda a filha levando-a para os locais de treinos e competições e torcendo sempre. Para Ana, os pais são os maiores incentivadores que possui. Apesar de lutar com a intenção de vencer, ela lembra as palavras do pai: “Não importa perder ou ganhar, o que importa é tentar, e saber que sempre será aceita por nós”. Quem olha Ana com seu 1,45m, 32 kg e sua idade, não imagina a quantidade de vitórias que ela acumula sob a forma de troféus e medalhas. De amistosos, à faixa laranja (apenas três antes da preta) foram mais de 20. Mas foi no ano passado que a atleta passou a carregar o título de federada. Ou seja, pertencente à Federação Paulista de Judô. Ainda no mesmo ano, lutou oficialmente e ganhou o terceiro lugar da competição paulista. De riso fácil, um pouco tímida, Ana conta com empolgação
sua vida no judô. Seus maiores ídolos são Rogério Sampaio, campeão olímpico e o também santista Medeiros, como é chamado o ex-professor de sua mãe. Juliana,aliás é sua grande incentivadora e a incansável dublê de técnica que vive corrigindo seus golpes emovimentos. Apesar de pequena, Ana já parece grande. Quando crescer mais, a jovem pretende chegar no topo do esporte, disputando os embates na categoria faixa preta e, quem sabe, ensinando tudo o que aprendeu aos atletas novatos. Aninha Rasteiro, como é carinhosamente chamada pelos colegas, está mostra que tamanho e nem idade é documento. Documento mesmo é lutar por um sonho.
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Sempre ouvi que o judô te faz uma pessoa melhor. Comigo não é diferente, não penso em lutar para machucar alguém. Ana Carolina A. Rasteiro
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Texto: Felipe cincinaTo, jane FreiTas, jaqueline souza e maTheus doncev Fotos: jane FreiTas diagramação: Felipe cincinaTo
Há 21 anos o subtenente José Ricardo dos Santos dedica sua vida para salvar a de outras pessoas
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Vida entre chamas
Combatente nos inCêndios do Hospital dos estivadores e tanques da ultraCargo, José riCardo ColeCiona Histórias de risCo e Coragem
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Ele é um anjo, um exemplo de amor. Meu orgulho.
Annanda Gomes Santos, filha do subtente
A
profissão sugere uma certa dureza, talvez por causa dos altos riscos envolvidos. Curiosamente, dentro dos portões do número 184 da Conselheiro Nébias, não se nota nos semblantes, o ar sério que se poderia esperar daqueles profissionais. Logo na guarita, a rigidez é quebrada pelo sorriso receptivo, forte indicativo de que, quem ali trabalha, tem mesmo vocação para servir. No interior do quartel, os certificados de honra ao mérito e de atos de bravura espalhados pelas paredes mostram os protagonistas de histórias inesperadas. Nem todas as lembranças vitoriosas estão registradas ali. Algumas acabaram perdidas em fotos nas gavetas e em recortes de jornais. Pelo menos uma delas bem que merecia ser enquadrada. Se não ganhou destaque na parede, nunca mais vai sair da lembrança do subtenente José Ricardo dos Santos. A história do herói que estampa a abertura desta matéria começa há 27 anos, entre as cidades de Mongaguá e Itanhaém, tempo em que Ricard integrava os quadros da Polícia Militar. Naquela época, a Rodovia Padre Manuel da Nóbrega era mão única, e quando chegava a temporada, aumentava consideravelmente o trânsito na região, o que ocasionava acidentes constantes. Os policiais recebiam orientação para não mexer nas vítimas, caso não soubes-
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A preparação é diária para enfrentar os desafios da profissão, que sempre reserva surpresas
sem o que fazer, porém o Corpo de Bombeiros mais próximo ficava em São Vicente. Assim, os acidentados tinham de esperar muito tempo pelo socorro. Para ele, essa situação deveria mudar. “Pensei comigo mesmo ‘Nossa, preciso fazer alguma coisa por essas pessoas’. Não me conformava em ficar assistindo aquilo. Foi quando comecei a buscar outras alternativas e decidi ser bombeiro”. O desejo de integrar a equipe da Corporação cresceu, até que, em maio de 1996, Ricardo finalmente conseguiu ingressar no Corpo de Bombeiros. Sua transferência foi aceita e no final daquele ano começou o curso de resgate. Passado exatamente um ano após a mudança, ele enfrentou o seu primeiro grande desafio. Sua coragem foi posta em cheque. Um incêndio de grandes proporções tomou conta do Hospital dos Estivadores. Sua precisão e rapidez poderia salvar vidas - ou não - inclusive a sua. “Eu acabei internado porque a temperatura do meu corpo ficou muito maior do que a temperatura externa, então eu senti muito mal estar”, relembra. A boa notícia é que apesar das proporções graves, as chamas foram controladas e todos os pacientes puderam ser salvos. Ao longo de sua carreira na corporação, muitos
outros casos exigiram de Ricardo mais do que todo o seu treinamento poderia oferecer. O incêndio na Ultracargo, no bairro da Alemoa, em Santos, que ganhou as manchetes dos jornais no Brasil e no exterior em 2015 foi um deles. Considerado o segundo maior do gênero no mundo, levou 197 horas até ser completamente controlado. Os bombeiros trabalham em escala de 24 por 48 horas, porém em ocorrências de grandes proporções como a da Alemoa, muitos acabam se voluntariando. Foi o que aconteceu com o Ricardo. Após cumprir sua jornada de trabalho, recebeu a notícia do incêndio e rapidamente prontificou-se a ir com a próxima viatura para ajudar no combate às chamas. “Trabalhei oito dias direto. Apenas ia em casa, tomava um banho, me trocava, dava uma respirada, atualizava a família e voltava para a Alemoa, até o fogo ser completamente controlado”, relembrou. Teleférico Outro dia de tensão foi a pane no sistema do teleférico, em São Vicente, que deixou usuários parados por horas nas cadeiras penduradas sobre a o Morro do Voturuá. “Fiz um curso de salvamento em altura e tive minha prova logo em seguida”, conta.
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Meu pai é um heroi sem capa que não pode estar sempre presente, porque está salvando vidas.
Matheus Gomes Santos, filho do subtenente
O incêndio no Hospital dos Estivadores, que aconteceu em 17 de maio de 1997 foi capa do Jornal A Tribuna
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Com duas equipes, uma em cima do morro e outra na avenida Ayrton Senna da Silva, os bombeiros retiraram as pessoas presas aos poucos. Notaram que haviam grupos inalcançáveis no meio do percurso. O subtenente informou aos seus superiores que com o equipamento de que dispunha na hora, poderia fazer o resgate e pediu permissão para subir. “Fizemos uma amarração com as cordas e cintos que havia no local, e fui descendo pelo cabo onde as cadeiras ficavam penduradas”, recorda. Convencer as pessoas a descer também não foi tarefa das mais fáceis. Muito verbo foi gasto para que eles ganhassem confiança na resistência do equipamento material e acreditassem na segurança da manobra. Após muita negociação, uma mulher resolveu descer. E assim, um passageiro de cada vez foi resgatado. Quando encerrou, Ricardo virou de ponta cabeça e foi ao solo. Outra ocorrência que marcou sua vida foi o incêndio no hospital Guilherme Álvaro. No canal 4, Ricardo encontrou um pai sentado na mureta com duas crianças. Chorando, ele dizia “meu filho está lá dentro”. O bombeiro não pensou duas vezes e correu para salvar a criança. “Quando entrei no quarto, vi um corpo totalmente queimado. Reparando bem, você conseguia enxergar o branco do cotovelo dele para fora”, conta. Esse assunto, por muito tempo, foi um problema para Ricardo que se emocionava ao comentá-lo. Foi por isso que o subtenente envolveu-se com o Corpo de Bombeiros, definindo o significado dessa profissão em “tudo”. “É daqui que tiro meu pão de cada dia, tiro também muita história boa para contar, onde amizades foram feitas e ainda ganho reconhecimento da família e de pessoas que salvei”. Apesar dos momentos de ausência, Ricardo tem o apoio em casa. “É um orgulho para qualquer filho ter um pai bombeiro. Ele exerce um papel importante, colocando a própria vida em risco. Ele é um anjo, um exemplo de amor. Meu orgulho”, declara a filha, Annanda Gomes Santos. “Meu pai é um heroi sem capa que muitas vezes não pode estar sempre presente porque está salvando vidas”, reflete o filho Matheus Gomes Santos. A partir de agosto, a aposentadoria promete tirá-lo dessa rotina. Ele deixará o resgate por lei de 30 anos de bons serviços prestados
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Perto de se aposentar, Ricardo pode ser orgulhar da ficha de 30 anos de bons serviços prestados à sociedade
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Texto: BÁRBARA BARRETO Fotos: DIEGO ALVES E BÁRBARA BARRETO Diagramação: DIEGO ALVES, BÁRBARA BARETO E RAFAEL HENRIQUE
a calÇada homÉrica NA FRENTE DO PRÉDIO 215 DA CONSELHEIRO, HOMERO CLEMENTE CONTA HISTÓRIAS, FAZ DINHEIRO E AMIGOS
D
e longe, um muro grafitado, um banquinho de plástico e o intenso do vaivém dos carros, caminhões e alunos da escola da esquina. De perto, um administrador de seu pequeno negócio à espera de fregueses que talvez precisem de um carregador de celular, um liquidificador, pesinhos de ginástica, lixa de furadeira, luminárias ou apenas trocar cinquenta reais em notas miúdas. Mergulhado em suas bugigangas, seu Homero abre o sorriso com o qual leva a vida há 87 anos e rouba a cena na calçada do número 215 da Conselheiro. Nas
mãos, os dedos calejados do mecânico aposentado que nunca saiu da ativa, se movem com destreza tateando as peças pousadas sobre a toalha improvisada. Ali está a possibilidade de complementar a renda para sobrar um dinheirinho a mais no bolso. Homero escolheu aquele ponto da Conselheiro Nébias porque sabe que o fluxo de pessoas que vão no vizinho do 199, o SEAMBESP - Serviço de Ambulatório e Especialidades Médicas - é bem grande: milhares de pessoas têm consultas e exames no local de segunda a sexta-feira. Nos finais de semana, quando a avenida fica menos movimentada, ele pro-
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cura clientela nas feiras do rolo da Cidade Náutica e do Humaitá, em São Vicente. Ele não se importa em deslocar-se do Canal 1, onde mora, para trabalhar onde a oportunidade estiver. O visual despojado reflete a alma jovem que habita o velho corpo esbelto, vestido em tons de laranja, texturas, boné e tênis da moda. Homero evolui com o tempo, porque acredita que sem evolução não há vida e quem não vive não entende o novo mundo. Regra básica no exercício da mecânica, o conhecimento sobre as constantes inovações em peças e modelos de carro tornou-se filosofia no dicionário de vida do ambulante. Gente fina, gente boa, gente doida, gente doente, apressados ou desocupados olham para o cantinho do seu Homero com ar surpreso ou por pura bisbilhotice. O ‘quanto é?’ normalmente vem seguido de alguns segundos de reflexão sobre o ‘quanto vale’. Às vezes dá venda, outras não. Mas é bom pensar bem: amanhã pode não haver mais
tempo porque há sempre alguém precisando de uma cafeteira ou furadeira recauchutados em sua casa, no Canal 1. As ofertas surpreendem, já que ele não repete os itens em exposição na tentativa de não decepcionar quem passa por ali todos os dias. Seu Homero estudou pouco, mas conhece como ninguém a lei de oferta-demanda. Como ficaria a vida
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Tudo na vida muda. Quem não muda não vive”. Homero Clemencio
dos moradores do edifício 215, que gentilmente emprestam sua porta para o carismático comerciante, se ele não reinventasse velhas novas curiosidades para tirar o trajeto da rotina? De tanto topar com a figura comunicativa do seu Homero todas as manhãs, pontualmente às 8 horas, o síndico do predinho de três andares já tem uma relação de cumplicidade com ele: nos dias de chuva, o ambulante tem guarida garantida embaixo da cobertura do edifício. Um dos clientes mais antigos do cantinho do Homero, Antônio Ramos, respeita o “trabalho honesto dele para complementação familiar. Com a idade que tem, é muito gratificante ver o que ele faz. É uma pessoa que resolveu continuar trabalhando com as bugigangas dele e se distrair aqui nessa passagem obrigatória que é a Avenida Conselheiro Nébias. Ficamos sempre contentes em passar por aqui e bater um papo”. Nome de herói grego, perfil de lenda urbana. Homero Clemencio Souza Santos pensa a vida do jeito que desconstrói as peças de segunda mão que compra e revende: arruma o que tem conserto e deixa para lá o
Os produtos de seu Homero são adquiridas através de doações ou compradas em bazares beneficentes da cidade. O velho se faz novo pelas mãos do mecânico aposentado que conserta e revende bugigangas.
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Aos 87 anos, o comerciante atrai e fideliza consumidores com sua estratégia de mercado: sorriso no rosto e conversa boa.
que não convém. Como amar é fundamental, Homero ama com tamanha intensidade que um ano após a morte da companheira com quem dividiu 60 anos e seis filhos, reparou o coração e encontrou uma Maria que espantasse a descortesia da solidão. Faz quatro anos que, todas as tardes após o expediente, ele trata de celebrar a vida com a namorada dezessete anos mais jovem. Ora na casa dele, ora na dela, já que casar outra vez não parece uma opção válida. Neste caso, independência é sorte. Seu Homero não tem plano de saúde, mas quase não fica doente. O segredo? Bife de fígado preparado por ele mesmo, um pulmão limpo de nicotina e nada de álcool na boca. A segurança da casa própria, adquirida nos tempos em que era dono de oficina mecânica, é um dos mantras da vitalidade do homem que levanta às quatro da manhã, se exercita, e prepara vitamina de frutas – café de vez em nunca. Antes das oito, ele pega o ônibus para fazer dinheiro ou amigos na calçada do lado ímpar do início da Conselheiro Nébias, sentido Centro. Se simpatia é o segredo de qualquer negócio, seu Homero segue a lei à risca dando razão ao cliente, seja qual for o assunto. Melhor perder dinheiro que amigos. Tudo bem, está tudo certo. No mundo de Homero Clemencio não falta paz nem certeza de que tudo é como tem que ser. Haja disposição! Clientes e transeuntes tiram o chapéu para o carisma no olhar e gestos suaves do jovial velhinho com quase nove décadas de história. Um sorriso negro traz felicidade. “A vida é um presente maravilhoso para ser desfrutado com alegria. Até o dia que Deus me der força e disposição, estarei sempre na ativa. Eu sou o Homero Clemencio, sou feliz. É assim que sou”
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VIDAS DE UM
POLICIAL NO NÚMERO 258 DA AVENIDA CONSELHEIRO NÉBIAS, TRABALHA UM POLICIAL NADA CONVENCONAL
Texto: LETHÍCIA GABRIELA Foto: FÁBIO PRADO Edição: BENNY FILHO E VINÍCIUS TOGNETTI
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ncontrar alguém em uma situação perigosa e querer ajudar. Característica número um quando se trata de um policial. Com Euclides Abílio de Lima, na Polícia Civil há 26 anos, não poderia ser diferente. Mas o que o motivou a ser policial não foi o que nos levou até ele. Se você imaginou um investigador; discreto, calado e sério... Bem, este não é o seo Abílio. Dono de um sorriso largo e uma expressão acolhedora, o funcionário do 4° Distrito Policial de Santos recebe o público como se estivesse em uma sala de estar. Nem parece policial. Parece personagem de seriado. Poderia ser... O agente conta que se inspirou na série Columbo, lançada em 1968. A história é sobre um detetive esperto que se fingia de desleixado e com perguntas simples ia enrolando o bandido até desvendar o crime. Parecido com Abílio, que não entrega o jogo logo de cara. Como ele mesmo diz “vai de mansinho” até dobrar o sujeito e prende-lo. Aos 59 anos, deixou o lado investigador descansar um pouco para dar lugar ao escrivão. Hoje, em regime 12 por 36 horas, sem contar os fins de semana, vive uma vida tranquila. Sua casa, na Zona Noroeste, é abrigo nos dias de trabalho. Seu lar é um sítio em Itanhaém, sua terra natal. Lá, Abílio, como gosta de ser chamado, planta, colhe e faz sua terapia mexendo com a terra. O policial civil exerce sua função desde 1991 e depois de muito tempo na adrenalina resolveu investir em seu
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Mas não pense que há monotonia. Entre diversas risadas, muitas histórias são reveladas pelo esperto investigador. Com orgulho, fala de seus quatro filhos, todos moços, criados. A mais velha, Cristiane, é carcereira. De frente para a Avenida Conselheiro Nébias, em uma construção antiga de 1929, nosso personagem relembra suas
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investigações. “Eu trabalhava na rua, estava pronto para qualquer situação. Já encarei tiroteio, prendi estuprador e levei um estelionatário para cadeia no papo. Lembro que ele olhou para mim surpreso. ‘Esse cara não é polícia, não tem nada a ver com ele’. Mas eu justamente faço isso para me dar bem”, explica.
Columbo foi um personagem de uma série que começou a ser exibida em 1968. O jeito educado e, aparentemente, dispersivo de investigar inspiraram seo Abílio.
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Levei sete tiros. Tentei mexer as pernas. Tive medo de ficar paraplégico Abílio de lima Escrivão
Por essa nem Columbo esperava Em 2006, um grande susto: na Delegacia de Polícia de Cubatão, Abílio estava de plantão em uma sexta-feira fria de maio. Era fim de semana da “saidinha de Dia das Mães”. Na unidade policial quase deserta, ele escutou barulho de conversas na sala ao lado, onde estavam a carcereira e uma escrivã. De repente, ouviu vozes masculinas e pensou que eram policiais militares trazendo alguma ocorrência. Um deles perguntou pelo delegado. Na verdade, a delegacia estava sendo invadida. Um dos bandidos entrou com uma arma em cada mão, atirando em Abílio. “Estava sentado e minha primeira reação
foi ficar de pé. Nisso, as balas atingiram minha barriga. Caí no chão para fingir que tinha morrido, mas ele continuou atirando em minhas pernas. Levei sete tiros. Mexi as pernas, tive medo de ficar paraplégico”, relembra. Eram dois bandidos, segundo o investigador, e ambos foram presos. Um morreu na cadeia há alguns anos. “Não quero saber desses homens, acho que Deus me deu uma chance de viver. Alguns colegas falaram para eu me vingar, mas este não sou eu”, avalia. Na época, a notícia saiu no Estado de S. Paulo e Abílio ganhou o título de “Policial Padrão do Ano”, da Câmara de Cubatão
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TexTo: esTher Zancan e rebeca de souZa FoTo: rebeca de souZa edição: Gabriela ribeiro e leandro pereira
Quer um conselho?
Conselheiro!
Com seus mais de quatro quilômetros, uma das vias mais amadas da cidade é um verdadeiro microcosmo da alma santista 48
Ali, pertinho da praia, parece que estamos em plena década de 1950, com aquela arquitetura típica dos anos dourados. Seguindo rumo ao Centro, passamos pelo hoje hipermercado Carrefour, que outrora foi o saudoso supermercado da rede Eldorado. Mais adiante, os prédios modernos disputam espaço com edificações que exalam história, como os que abrigam o Colégio Stella Maris e o Instituto Histórico e Geográfico de Santos. Ufa! E nem chegamos na metade dela ainda. Sim, estamos falando de uma das avenidas mais queridas da Cidade, a Conselheiro Nébias. Em fevereiro deste ano, a avenida completou 130 anos de existência. No século XIX, a Santos recém-elevada à condição de cidade (1839), começava a deixar os limites do Valongo em direção à parte leste, principalmente a orla. A primeira via que dava acesso a essas paragens era por demais precária, sinuosa e com trechos alagados. A partir disto surge a ideia de uma via em linha reta. Era o surgimento da avenida Conselheiro Nébias. Todos os nomes No princípio, ela era bem diferente do que vemos hoje. Terra batida e conhecida como Novo Caminho da Barra, por ali passou algo novo para aquele 1871: o bonde puxado por tração animal, algo pioneiro no Estado de São Paulo. O historiador Sergio Willians, diretor da Fundação Arquivo e Memória de Santos, conta que, em 1873, um ano após a morte do santista Joaquim Octávio Nébias, a avenida foi rebatizada como Octaviana. É em 1887 que ela ganha o nome definitivo, por iniciativa do vereador João Manuel Alfaia Rodrigues Júnior. Foi uma maneira de tornar a homenagem a Nébias mais clara, já que era considerado uma
A arquitetura arrojada de hoje quase não guarda referências do passado. Nos antigos postais, a marca dos casarões e do verde
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das mais influentes figuras de Santos. Sempre à frente Voltando a caminhar pela maior artéria de Santos, não tem como passar despercebido o grande número de estudantes que circulam por ela. E não é à toa, ali se concentram as maiores e mais antigas universidades da Cidade, como a Universidade Santa Cecília (UNISANTA), os dois campus da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS) e a Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES). São também pontos de referência tanto para se localizar em uma avenida tão extensa como para encontrá-la no mapa da Cidade. Algo que começou a chamar a atenção este ano foi o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), que passa no cruzamento mais famoso da via, com a avenida Afonso Pena. Mas há tempos que a Conselheiro é palco de novidades. Já em 1902 foi a primeira do município a ter iluminação pública por energia elétrica. Depois disso, foi a vez dos casarões pipocarem em suas margens. Nos dias atuais alguns sobrevivem, como o que abriga a instituição Gota de Leite, o da Capitania dos Portos de São Paulo e o do 6º Grupamento de Bombeiros de Santos. Outra prova da vocação vanguardista da avenida foi o extinto cinema Caiçara, que ficava na quadra próxima à praia e foi, em 1952, considerado um dos melhores cinemas do Brasil. Números A via que começa como uma ruazinha no Porto até a Rua Bittencourt e depois ganha duas pistas e canteiro central conta, desde 2015, com faixa preferencial de
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ônibus. Nesse mesmo período, houve o remanejamento de algumas paradas dos coletivos para a racionalização das distâncias entre eles. Segundo a Prefeitura de Santos, essa medida foi implementada com o objetivo de melhorar o escoamento do trânsito para propiciar mais agilidade e fluidez dos veículos na avenida. Ela ainda se mostra uma gigante no que tange aos imóveis. São 2.380 residenciais, 1.877 comerciais e 36 terrenos. Enfim, para quem mora ou apenas visita Santos, não há melhor conselho que um bom passeio na Conselheiro
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Afinal, quem foi Conselheiro Nébias?
Na avenida por onde circulou o primeiro bonde, o símbolo hoje é o VLT. Contrates, agitação e calmaria se revelam a cada esquina
Joaquim Otávio Nébias, conhecido como Conselheiro Nébias, foi um político santista importante no cenário nacional. Iniciou sua trajetória política aos 24 anos de idade. Foi deputado provincial em 1835, reeleito em sucessivas legislaturas até alcançar o posto de presidente da Assembleia Provincial de São Paulo. Deputado à Câmara Geral em 1859-1860; juiz de Direito de Paranaguá (1841-1843); vice-presidente e presidente da Câmara Geral; juiz do Tesouro em Itu e Sorocaba; presidente da Província do Rio Grande do Sul (1852); presidente da Província de São Paulo (também em 1852); senador do Império em 1856; ministro da Justiça, em substituição a José de Alencar; juiz de Feitos da Fazenda e conselheiro imperial de D. Pedro II (daí o título pelo qual ele se tornou mais conhecido). Era solteiro e faleceu aos 61 anos de idade, no Rio de Janeiro, em 16 de julho de 1872.
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