Viral 6 Limites

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REVISTA LABORATÓRIO MAIO|2018 | ANO 3 | EDIÇÃO 6

limites

“mexe a raba, mexe a rabiola” Letras ousadas de funk incomodam feministas e parte da sociedade


#VIRALIZOU

EDITORIAL

O

que são limites? O conceito da palavra é amplo e o termo engloba diferentes segmen-

tos. Existem limites matemáticos de difícil resolução, porém, precisos. Físicos, que desafiam o corpo e a mente. E morais, que podem ser definidos por um conjunto de características individuais e coletivas, como

Para conferir mais sobre esta edição acesse nosso blog viralunisanta.blogspot.com

religião, cultura e formação social e acadêmica, por exemplo. Além disso, um limite pode ser, também, uma restrição ou limitação, seja ela positiva ou negativa. Perceber a forma como a sociedade se move dentro de fronteiras tão demarcadas é entender, de certo modo, como nos colocamos no tempo, no espaço e nas nossas

EXPEDIENTE REvIsTA lAbORATORIAl DO 4º AnO DE COmunICAçãO sOCIAl COm ênFAsE Em jORnAlIsmO DA unIvERsIDADE sAnTA CECílIA (unisanta) - MaiO 2018

relações. E a pluralidade do tema, com tudo que ele emana de proibitivo e libertador, motivou a escolha da turma do quarto ano de Jornalismo da Universidade Santa Cecília para a primeira edição da revista Viral de

DIRETOR DA FAAC Prof. Humberto Iafullo CHalloub

2018. Com o objetivo de mostrar além dos

COORDEnADOR DE jORnAlIsmO Prof. robson bastos

olhares para os detalhes onde os limites são

PROFEssOREs REsPOnsávEIs Helder marques, nara assunção e raquel alves CAPA fernanda olIveIra Costa franCIsCo, fotoGrafada Por josIane rodrIGues PROjETO gRáFICO ORIgInAl bruno lestuCHI, luCas rodrIGues e marCelo Hermsdorf

limites conhecidos, os alunos voltaram seus tênues, obscuros, quase imperceptíveis. Mas existem. Definir o que são limites não cabe a nós, repórteres, a você, leitor, e nem a uma única pessoa. Como apontar qual é o limite de um baile funk; de um gosto pessoal, como os jogos eletrônicos; das tatuagens, que são um adorno corporal; da geografia; ou de uma profissão?

As matérias e artigos contidos nesta publicação são de responsabilidade de seus autores. Portanto, não representam necessariamente a opinião da instituição mantenedora - UNISANTA - Universidade Santa Cecília.

Os futuros jornalistas saíram em busca destas respostas e trouxeram uma edição recheada de textos que vão questionar os nossos limites. O resultado? Você confere nesta edição.

2

m


4 Funk

Letras causam incômodo

10 Abuso

Como identificar?

14 Tatuagem

Uma questão de atitude

20 Fãnáticos

Fãs declaram sua paixão

60

4

24 Ansiedade

Um mal da vida moderna

28 Automedicação Cuidado com a dose

28

34 Assédio

Cantada além da conta

40 Trabalho

Você é workaholic?

44 Jornalismo Notícia com ética

24 34

48 Vida em trânsito

O trabalho é uma viagem

52 O corpo no limite

Atletas de alto desempenho

56 Gamers

O outro lado da realidade

60 Redes sociais

Crianças no mundo virtual

64 Inclusão escolar

Nunca é tarde para aprender 3


“Encosta nEla E sarra”

‘QUICANDO’ ENTRE A PLENA LIbERDADE DE EXPRESSãO E APOLOGIA AO ESTUPRO, LETRAS DE FUNk DESPERTAm REAçõES DE AmOR E ÓDIO

O

relógio marca 3h da madrugada, em uma terça-feira. O salão de uma casa noturna no centro histórico de Santos está tomado por homens e mulheres que curtem o “Funk no Escuro”. O DJ sobe ao palco e brada: “quem conhece alguma puta, dá um grito aê”. Gritos, mãos para cima se misturam às primeiras batidas do pancadão. A vibração corre solta. Todas as luzes da balada são apagadas e o ambiente é então iluminado apenas pelas lanternas dos celulares. A apresentação começa com a música “É tudo puta” do MC Maneirinho que, ao longo da letra, repete a frase-título da canção 52 vezes. Próximas ao palco, duas moças vestidas com saias justas e blusas decotadas cantam em alto e bom som o trecho de “Vai, Faz a Fila” (MC Denny), enquanto gravam um vídeo e publicam em seguida na rede social. “Vou socar na tua buceta sem parar e se você pedir pra mim parar, não vou parar”, fazem coro à música do DJ, aos risos, enquanto desfilam sensualidade em frente à câmera.

Reportagem: JOSIANE RODRIGUES e VITÓRIA APARECIDA Fotografia: PEDRO VENCHIARUTTI e AXEL JÚNIOR Diagramação: VITÓRIA APARECIDA

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Atuando em clipes de funk, Fernanda não se incomoda com letras ofensivas


Com copos nas mãos e braços levantados, outras duas jovens descem os 14 degraus que dão acesso ao camarote e vão em direção à pista de dança. A música que acaba de começar é “Toma Karen, Toma”, composta por MC Fabinho da Osk, cuja letra fala de uma relação sexual. Não é de hoje que as letras ousadas e combativas do funk incomodam. Há quem veja em versos como “Tá suave, vem novinha perder tua virgindade” a expressão da mais plena liberdade. Na outra ponta há uma legião de inconformados com a incitação clara à violência, sobretudo contra a mulher. r.

É só “surubinha de leve”

O debate entre liberdade de expressão e apologia ao crime intensificou-se em janeiro deste ano, quando a música “Surubinha de leve”, do MC Diguinho, foi excluída do Youtube, Spotify, Deezer e Apple Music. Uma semana antes da polêmica, a composição ocupava o primeiro lugar entre os hits mais tocados no Spotify e já passava de 14 milhões de visualizações no Youtube desde o lançamento, em dezembro do ano passado. “Taca a bebida, depois taca a pica e abandona na rua” foi o trecho que mais repercutiu negativamente, especialmente entre feministas. MC Diguinho alterou os trechos polêmicos da música e a relançou em uma versão mais branda. Para a jornalista Fernanda Vicente, 37 anos, idealizadora e coordenadora do projeto “Mães do Enem” - que auxilia e orienta mães estudantes de comunidades de baixa renda - a misoginia do machismo sempre existiu na música. Ela é engajada com a causa feminista e lembra que

existem casos semelhantes no rap e em outros estilos musicais, como o rock. “Brown Sugar”, por exemplo, música da banda inglesa The Rolling Stones, fala do estupro de uma mulher negra. “A remoção dessas letras dos canais musicais, independentemente do estilo, é importante desde que haja um debate na sociedade sobre o motivo da retirada. Não é liberdade de expressão quando se oprime um grupo, seja ele qual for”, diz. As pesadas letras de alguns hits dos bailes calam fundo na maioria das mulheres que sofrem com a violência diária. Segundo levantamento divulgado em 2017 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 49.497 ocorrências de estupro no ano referência do estudo (2016). Houve um crescimento de 3,5% dos casos de feminicídio. De acordo com levantamento realizado pelo instituto Datafolha, mais de 12 mil mulheres foram agredidas por dia em 2016, o que representa o assassinato de uma mulher a cada duas horas. As pessoas que lotam a casa noturna parecem totalmente alheias ao debate que grupos feministas se esforçam em colocar na pauta social. No camarote ao lado do palco, um homem acende um isqueiro e queima uma nota de 100 reais. Imediatamente, três meninas se aproximam do grupo de frequentadores, conversam e são convidadas a compartilhar do espaço e das bebidas que estão disponíveis ali. Frequentadora de bailes funk, a dançarina Fernanda Oliveira não se sente incomodada com o conteúdo dessas músicas. “Às vezes eu me sinto mais constrangida quando estou na rua e

Não é liberdade de expressão quando se oprime um grupo, seja ele qual for. Fernanda Vicente jornalista

Às vezes eu me sinto mais constrangida quando estou na rua e passa um homem falando graça. Uma música escuta quem quer. Não quer, desliga. Fernanda Oliveira dançarina

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passa um homem falando graça. Uma música escuta quem quer. Não quer, desliga. Você tem a opção de escutar ou não”. O raio de luz verde da lanterna dos seguranças dá de encontro com a retina já cansada dos olhos de quem entrou a madrugada na pista de dança. Aos poucos e lentamente, as pessoas começam a esbarrar umas nas outras, buscando a porta de saída da casa noturna em meio aos que ainda curtem os últimos momentos do baile funk. Já amanheceu do lado de fora do “Funk no Escuro”. Agora só faltam seis dias para a próxima balada.

Crime ou real?

“É o bonde dos Raul 171 estelionatário, que invade sua conta, acaba com saldo bancário (...) invadindo as quebradas e comendo todas muié”. De autoria do

cantor e produtor musical Luiz Felipe Amaral Corrêa, 31 anos, conhecido pelo público como MC Amaral, o trecho citado é parte da letra de “O foco é o golpe”, que fala em clonagens de cartões bancários. No clipe intitulado “Os cara que é todo errado”, outra composição do artista, mulheres usando biquínis e shorts curtos rebolam em volta de Amaral, enquanto ele canta: “É certo que elas quer os cara que é tudo errado, que trafica, vende droga e come mulher pra caraio”. As duas músicas são exemplos do chamado funk proibidão, que volta e meia é acusado de apologia ao crime. Já Wallace Santos Ramos, o MC Bola, prefere optar por composições que enalteçam as mulheres. Ele já foi intérprete de escola de samba e desde pequeno

se interessa por música. O maior sucesso da carreira é “Ela é top”, música de 2012 que lançou o bordão: “Ela arrasa no look, tira foto no espelho pra postar no Facebook”. Os MC’s defendem que as composições do funk são baseadas no que eles veem no dia a dia em festas, favelas, bailes funk ou até mesmo no que a própria televisão transmite nos telejornais, usando temas e gírias da atualidade. “O cara que desce todo dia a escadaria e vê fuzil, vê droga, vai falar de quê? Ele não mora em frente à praia para falar do mar”, diz MC Bola. Amaral acredita que não se pode culpar a música pelos atos ilícitos que algumas pessoas praticam. “Na periferia, droga é normal, tráfico é normal e ladrão também é normal de se ver. Isso não foi o funk que implantou. Antes de existir o funk já existia o crime”, opina. Conforme o MC, o criminoso já nasce com essa doença e quem quer estuprar, vai praticar o crime, com ou sem música. Os funks que falam de sexo hoje são algumas das músicas mais executadas no Brasil e tocam tanto na rua como em casas de shows de classe média alta. O som que antes um jovem tinha que escutar escondido no quarto, hoje é partilhado pelos moradores de casa e anima festas familiares.

Mc Bola em apresentação no Café de La Musique: “não canto palavrão”


A remoção da música pelo Spotify foi um ato incorreto para Amaral, que julga a decisão como uma ação que tenta criminalizar o funk e ainda denegrir a imagem do autor da música perante a sociedade. “A ‘Surubinha’ se tornou tão comum que atingiu o topo da plataforma, consumido tanto pela alta sociedade quanto pelos menos favorecidos”, diz. Já MC Bola diz que, sinceramente, não cantaria essa música por pensar nas mulheres de sua família. “Cada um responde pelos seus atos, né. Mas escrever uma música desse naipe, eu não faria”. Por mais que cante em seus shows músicas de diferentes artistas que no momento estejam em destaque, Bola toma o cuidado de não cantar trechos com palavrões. “Chega no momento do palavrão, se o público quiser cantar, é com eles mesmos. Mas eu mesmo, não canto não”. Hemoly Talita, 26, - chamada de DJ Litta Afrontite por querer demonstrar no próprio nome a resistência e afronta ao sistema machista que expressa em seu trabalho - caracteriza a música “Surubinha de Leve” como uma aberração política, mas critica os ouvintes que são os responsáveis para que o som tenha espaço nas plataformas digitais. A DJ defende as expressões sexuais cantadas em funks de autoria feminina, como na música “Envolvimento”, da MC Loma. “Porque é ela falando que quer sentar, é ela falando que quer dançar. É diferente de alguma outra pessoa que vai falar, objetificar o seu corpo”, diz. Bola crê que as autoridades devam se preocupar com os bailes de rua e não em censurar mú-

Frequentadores parecem alheios ao debate social que as letras de funk geram. Feministas reprovam o que MC’s defendem ser a realidade

O cara que desce todo dia a escadaria vai falar de quê? Ele não mora em frente à praia para falar do mar. Mc Bola

sicas. Ele não concorda que uma senhora de idade ou um trabalhador seja obrigado a aguentar o som alto na porta de casa até às cinco da manhã e no outro dia ter garrafa de cerveja e cheiro de urina na rua. “O fluxo” Tais bailes de rua, como o descrito por Bola, são cada vez mais comuns na periferia. Porém, o funk invadiu todas as camadas da sociedade. Segundo o Spotify, só em 2017 o número de ouvintes de funk cresceu 276%. O estilo lidera as playlists nacionais e internacionais. Alguns artistas chegam a faturar meio milhão de reais por mês. A luxuosa casa Café de la Musique, no Guarujá, fica em um marina onde atracam lanchas e barcos, atraindo jovens de classe

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alta. A reportagem acompanhou o MC que se apresentou no espaço num sábado. Os ingressos custavam, em média, 80 reais. A balada começara às 15 horas, mas só às 21h o cantor subiu ao palco e abriu o show com a recém-lançada “Ela é demais” (“Até o DJ já sabe o som que ela contrai e quando toca rebola e joga pro pai”, diz um dos versos da letra). Os frequentadores já estavam visivelmente embriagados e curtiam o show como música de fundo para conversar. Em frente ao palco, as mulheres (umas de biquíni, outras bem vestidas) rebolavam até o chão com as batidas. Sete amigas comemoravam a despedida de solteira de uma delas. “Baile funk é mais animado, é mais fácil de dançar”, disse uma das moças que preferiu não

se identificar. Ao fim da apresentação, que durou cerca de 40 minutos, alguns fãs abordaram o artista para tirar fotos. Em outro fim de semana e a mais de 100 km dali, na Praça Narciso de Andrade, em Itanhaém, já é quase meia noite quando, aos poucos, adolescentes e crianças chegam com garrafas de bebidas alcóolicas e cigarros nas mãos para o encontro batizado de “O fluxo”. Marcado por meio das redes sociais, o evento reuniu cerca de 50 jovens. Em volta de uma bicicleta equipada com caixa de som, eles dançam e conversam. Meninas numa faixa entre 10 e 15 anos vestem roupas curtas e sensualizam cantando “tu pediu agora toma, não adianta tu voltar, menina. Agora vai sentar!”, sucesso dos MC’s Jhowzinho e Kadinho. A música que toca a

Na periferia, droga é normal, tráfico é normal e ladrão também é normal de se ver. Antes de existir o funk já existia o crime. Mc Amaral

Funks que falam de sexo estão entre as músicas mais executadas no país


seguir é “Fazer falta” do MC Livinho. “Se seu hobby é sentar, não vou te criticar, tá de parabéns”. Dentro da roda, um menino de aproximadamente 8 anos traga um cigarro de maconha enquanto cumprimenta os amigos. Nos arredores, outros jovens separados em “panelinhas” observam o grupo, enquanto bebem ou fumam narguilés, maconha e tabaco. Esses aparentemente são maiores de 18 anos. A impressão que se tem quando se olha o “fluxo” de longe é que se trata de uma matinê a céu aberto. Porém, uma rápida conferida no relógio descarta essa hipótese. Já são quase 2 horas da madrugada e crianças sorriem umas para as outras enquanto se drogam e dançam, agora ao som do MC Lele: “vai quicando e rebolando, batendo o bumbum no chão”. Na avenida, a dez metros do baile, policiais fazem “comando” e abordam os motoristas. A “matinê” segue sem interrupções, acompanhada de longe apenas pelos olhares de reprovação dos adultos, que bebem nos barzinhos de classe média próximos à praça. Raul Diego Campos Gomes Cassoli, 20 anos, já viu crianças inalarem lança-perfume e terem relações sexuais durante os encontros. Antes de se reunirem no coreto da praça, os adolescentes socializavam em outro ponto do Centro. A ladeira localizada na avenida João Batista Leal era o ambiente escolhido por eles. No fim de 2017, com reclamações recorrentes dos moradores, a polícia intensificou as rondas e passou a lançar bombas de efeito moral para dispersá-los. Após a ação das autoridades, o “pancadão” mudou de lugar e agora os eventos são intercalados nos finais de semana.

Mc Melody: Com 8 anos, funkeira está na mira da Justiça. “É foda ser gostosa”

Crianças no funk No ano passado, o promotor de Justiça da Infância e Juventude do Estado de São Paulo Eduardo Dias de Souza Ferreira abriu inquérito civil para apurar a exploração de menores após um vídeo postado por Thiago Abreu (MC Belinho), pai de Gabriela Abreu, de 8 anos, conhecida como MC Melody. Na gravação, que repercutiu negativamente, ela dança e canta: “Se é bonito ou se é feio, mas é foda ser gostosa. Fale bem ou fale mal, mas fale de mim”. O Ministério Público também investiga o caso e o inquérito continua em andamento. Outros cantores mirins famosos também foram citados e, após a polêmica, as composições que antes eram sobre sexo e continham pa-

lavras obscenas ficaram mais amenas. Os “funkeirinhos” mudaram a postura. Para MC Bola, é problema uma mãe ou pai colocar uma criança de 8, 9 anos para cantar palavrão, uma vez que ela nem sabe direito o que está dizendo. Antigamente, uma mãe pegava o filho para colocar em uma escolinha de futebol. Hoje, quer colocá-lo em uma produtora de funk sem se preocupar com o conteúdo da melodia. Percebe-se uma diferença entre as composições de anos atrás e as de agora, uma vez que letras como “Boquinha da Garrafa” falavam de sexo em duplo sentido e a criançada não entendia, mas agora os artistas estão escancarando suas intenções, falando diretamente sobre relações sexuais

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Reportagem: WILKER DAMASCENO Fotografia: RAQUEL PINHEIRO e RAFAEL ALMEIDA Infografia: BRUNO CALHERANI

relaÇÃO abusiva, PRESTE ATENÇÃO NO SEU RELACIONAMENTO !

F

lores, declarações de paixão eterna, passeios, os melhores momentos. À primeira vista, parece o relacionamento perfeito. Mas tudo começa a mudar. As flores murcham em meio a uma forte pressão psicológica. As juras de amor viram mensagens gigantes com desculpas e cobranças. Já os passeios e os melhores momentos muitas vezes se transformam em agressão, física ou mesmo mental. A relação que seria para a vida toda virou um relacionamento abusivo. O limite amoroso foi ultrapassado pelo rancor ou pelo simples desejo de manipular o outro. Mas como é um relacionamento nesse nível e será que você pode estar vivendo um?

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O Brasil é o quinto país no ranking de assassinato de mulheres dentre 84 países


30% das mulheres acreditam que as leis do país não são capazes de protegê-las da violência doméstica

A cada 4 minutos uma mulher é vítima de agressão no país


O manipulador faz com que a vítima se sinta culpada, jogando para ela a culpa da situação. CERIS SOARES PSICÓLOGA

preciSa De ajuDa?

180

telefone De atenDiMento à Mulher (24 horaS por Dia)

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“Relacionamento abusivo é quando uma pessoa sofre manipulação da outra de alguma forma”, explica a psicóloga Ceris Soares, que completa: “O manipulador acaba tirando da vítima o poder de perceber que ela não precisa daquilo”. Três em cada cinco mulheres sofrem ou sofrerão violência em um relacionamento afetivo. O Brasil ocupa o 5º lugar no ranking do feminicídio, de acordo com a ONU. Violências silenciosas (mental, psicológica e patrimonial) constam inclusive na Lei Maria da Penha, porém muitas das denúncias não são reconhecidas pelos tribunais de justiça espalhados pelo país. A jovem G.M é um exemplo dessa situação. Hoje com 23 anos, encarou um relacionamento abusivo logo aos 17, em um jogo de idas e vindas. O conto de fadas com o qual sempre sonhou foi, aos poucos, se desmanchando e dando espaço para uma relação abusiva e complicada. “Eu era muito bobona e ele um pouco mais velho do que eu. Fazia coisas lindas pra mim. Me deu flores, foi me buscar no trabalho, me deu uma aliança... Foi também a primeira pessoa com quem pude conversar sobre tudo que eu gostava. Com ele, tive a minha primeira conexão muito profunda e isso até hoje”. Para G.M., o abuso foi totalmente psicológico. O então namorado fazia jogos mentais que questionavam sua autoestima e amor próprio. “Nada do que eu fazia era suficiente. O outro era sempre melhor”, diz. A relação dos dois piorou quando G.M o traiu. Ao invés de terminarem, o amor resistiu e os dois continuaram juntos. A vida de G.M virou então um inferno. Em um dia, mensagens de amor.

No outro, xingamentos. Eles acabaram se separando; G.M entrou em outro relacionamento, por dois anos, mas ela manteve contato com o ex. Foi o suficiente para retomarem a relação um tempo depois. Porém, o relacionamento voltou a ficar abusivo. O ciúme excessivo da parte dele foi um dos fatores primordiais para o novo término. “Ele tinha ciúmes e não gostava que eu tivesse ciúmes dele”, afirma. No final, cada um seguiu um caminho. Hoje, G.M está muito feliz em outra relação e aquele que quase destruiu a sua vida segue vivendo normalmente. Porém, mesmo com tudo isso, os dois ainda conversam. “Eu precisei continuar a ter esse laço com ele para entender o que aconteceu comigo e para distinguir na minha cabeça que tudo que aconteceu foi errado”. O caso de G.M alerta para um dado muito comum nesses relacionamentos abusivos. O fato de, mesmo com o fim, o abusador ainda sempre estar presente na vida da pessoa abusada. “O manipulador faz com que a vítima se sinta culpada, jogando para ela a culpa da situação. Acaba o relacionamento e a pessoa ainda entende que ela precisa daquilo, que é o outro que consegue tudo”, explica a psicóloga. Quando é abusivo? A resposta está no chamado “ciclo do abuso”. Tudo começa com a famosa tensão. O lado prejudicado acaba, no final, cedendo e quebrando muitas vezes um silêncio que pode atingir elevados níveis mentais. Passada essa fase, segundo Ceris, é hora do começo dos incidentes, quando podem acontecer abusos mentais, emocionais ou


físicos. Xingamentos, por exemplo, estão entre os mais comuns. No final, tudo isso termina em reconciliação e inicia-se a calmaria no relacionamento, porém em pouco tempo a fase 1, Wa de tensão, já está de volta. O estudante de marketing Vinicius Gonçalves passou por esse ciclo no seu último relacionamento. Homossexual, ele prova que relações abusivas não são exclusividade de casais heterossexuais e normativos. “Era um negócio muito bizarro. Eu era louco, apaixonado por ele. Tínhamos ciúmes um do outro, mas no começo, tudo bem, porque eu também tinha”, conta. Com o decorrer da relação, o caos foi se instalando. O companheiro passou a implicar com ele por andar de óculos escuros, por considerar que ele estava querendo olhar para outra pessoa. Tirar a camisa na praia também era motivo de briga entre o casal. Na época do relacionamento, Vinicius conta que o tema ainda não estava em debate. E faz sentido. Embora seja uma prática presente desde sempre, relacionamentos abusivos ganharam mais evidência nos últimos tempos, atrelados a questões importantes e primordiais como a famosa “cultura do abuso”, em que uma cantada invasiva pode e deve ser apontada como uma tática intimidadora. “Na época em que namorávamos, não era febre falar sobre relacionamento abusivo, então eu não tinha como saber que estava vivendo um. Para mim, ele cuidava do que era dele”, diz. Os dois acabaram se separando e para Vinicius não foi fácil: “Sofri bastante, eu era muito apaixonado”. Hoje, a vida é outra. Vinicius está em um novo relacionamento

e está mais apaixonado do que nunca. Porém, é uma luta diária para não cometer os mesmos erros ou simplesmente não cair em tudo aquilo novamente. Amizades abusivas e tóxicas Engana-se quem pensa que apenas casais são vítimas de abuso. Relações entre familiares, colegas de trabalho ou simplesmente amigos também estão na radar de abusos. Quando falamos em amizade, é comum que pelo menos alguma vez na vida uma pessoa já tenha passado por uma situação como essa. Aquele amigo que te suga, que te exige demais ou simplesmente faz você sofrer. Nem sempre, entretanto, esses sintomas são perceptíveis. A auxiliar de departamento pessoal, Edna, hoje com 48 anos, sofreu uma grande decepção com aquela que considerava ser sua melhor amiga, no início da juventude. Aos 17 anos, ela tinha seu primeiro namorado e via na colega uma de suas melhores companheiras. “A gente morava na mesma rua, no mesmo bairro, éramos muito próximas”, conta. Embora nunca tenha deixado Edna para baixo ou prejudicado a relação, como em qualquer amizade abusiva, houve um dia em que tudo mudou com uma traição. A amiga promovia festas constantes e certa ocasião o seu namorado foi a uma delas e os dois acabaram ficando juntos. “Ela se aproveitou da minha vulnerabilidade, de não poder ir”, relembra. Edna terminou o namoro e não falou mais com a amiga. Não sofreu muito e até tentou uma reaproximação, mas a amizade não se manteve como antes. Foi um aviso, ainda na adolescência, para tomar cuidado com futuras amizades, tóxicas ou não

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Denuncie

3235-4222 Delegacia Da

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Mulher De SantoS

A gente morava na mesma rua, no mesmo bairro, éramos muito próximas. EDNA VÍTIMA DE AMIZADE ABUSIVA

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tatuagem: uma arte como

profissĂŁo prestes a completar 30 anos, kreyner mal se parece com o jovem que, no passaDo, transformou o amor pela tatuagem em profissĂŁo

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A

s tatuagens mais antigas de que se têm notícia foram encontradas na Múmia de Ötzi, um homem de 30 a 45 anos de idade que teria vivido há cerca de 5300 anos. Seu corpo, encontrado em 1991 nos Alpes, na Europa, ostentava nada menos que 61 tatuagens, feitas através de uma técnica que perfurava a pele e preenchia o espaço com cinzas de carvão vegetal. Desde então, a arte de marcar o corpo de forma permanente sofreu altos e baixos: na Antiguidade, era usada em rituais religiosos em diversas regiões do mundo, do Egito à Polinésia, dos Andes à China; nas sociedades grega e romana, foi associada a escravos, criminosos e prisioneiros de guerra; em 787 d.C, foi proibida pelo Papa Adriano I, sendo considerada uma prática demoníaca; e em 1879 foi usada pela Inglaterra como forma de identificar criminosos, o que conferiu à tatuagem um status de fora da lei no Ocidente. A partir do fim do século XIX, houve um movimento de popularização da técnica, devido à criação do aparelho elétrico de fazer tatuagens, em 1891. Durante a Segunda Guerra, foi muito utilizada por combatentes, que gravavam os nomes das pessoas amadas em seus corpos. E principalmente após a década de 1970, a arte cresceu em seguidores e expandiu sua aceitação - de tal forma que, hoje em dia, é mais comum, em algumas sociedades, encontrar pessoas com tatuagens do que sem nenhuma.

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Atual estúdio de Kreyner, o La Scala Ink fica no 17º andar de um edifício comercial (foto: Daniel Keppler) Nossa primeira parada foi no bairro da Encruzilhada, em Santos. Lá, nos encontramos com Kreyner La Scala, dono do estúdio La Scala Ink. Kreyner possui tatuagens espalhadas por todo o corpo, dos

Aos 13 anos, decidiu que queria uma. Fez um desenho, destinado somente para isso: um dragãomordendoaprópriacauda, simbolizando infinito e proteção; dentro, iniciais de membros da família,umsímbolodeamoreterno

“Eu mE EncontrEi na tatuagEm” tornozelos ao pescoço. Tal visão pode causar um choque inicial, mas alguns minutos de conversa bastam para desfazer essa primeira impressão ruim. Segundo La Scala, o gosto por desenhos existe na sua vida desde criança. Na adolescência, surgiu a preferência pelo rock, o que o aproximou mais ainda do universo das tatuagens - afinal, praticamente todos seus ídolos as possuíam.

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e outro de infinito. Mas somente aos 17 sua mãe o autorizou a “inaugurar” o corpo. Até esse ponto da vida, ser tatuador não estava nos planos. Havia um sonho de ser músico, mas sempre foi complicado, segundo Kreyner.“ComotodaartenoBrasil”, completou ele. Cursou Administração por um ano e meio, mas não se interessou. Então migrou para a Engenharia, onde se formou e trabalhou na

área por algum tempo. Nessa época, Kreyner já tinha um dos braços fechados - o que sempre foi um sonho. Ele chegou a se sentir inseguro por conta disso, masmudouamentalidade.“Apartir do momento que eu aceitei que elas não mudavam nada no que eu sou, minha postura perante os outrosmudou,eatatuagemdeixou de ser um problema”, declarou.

A crise como motivação

O interesse de Kreyner em transformar seu amor pela tatuagem em uma carreira surgiu em uma situação de crise: a falência de uma empresa da família. “Comecei a estudar e, como a gente estava vivendo uma época bem difícil na família, comprei meu primeiro material de tatuagem. Já estava tudo muito ruim, então pior do que estava não ficava”, lembrou. Sua rotina passou a ser estudar e treinar, e três meses depois, Kreyner alugou seu primeiro


estúdio. “Era uma salinha. Só tinha R$ 500 no bolso, não era nem o valor do primeiro aluguel. Peguei os armários que tinha em casa, comprei móveis usados e fui”, recordou. Segundo Kreyner, poucos o apoiaramnadecisão.“Mechamaram de maluco. Só a minha mãe sempre esteve do meu lado”, ressaltou. Mesmo assim, ele persistiu, e pouco mais de um ano depois, abriu outro estúdio, maior. Ele só não contava com outro obstáculo que teria que enfrentar: a violência. Um furto no local o fez perder quase tudo - só em equipamentos, o prejuízo foi de R$ 25 mil. “Contei com muita ajuda para me reerguer”, contou. Reabriu o estúdio em uma sala no 17º andar de um prédio comercial, onde está hoje em dia. Investiu pesado, e agora colhe os frutos, contando com a fidelidade de uma clientela que não pára de aumentar.

Escolhas pessoais

Kreyner se diz feliz com as escolhas que fez. Nunca pára de estudar, e afirma que esse é um dos segredos de um bom tatuador. “[Tatuar] Não é impossível, não precisa ‘ter o dom’ como muito pensam. É uma técnica, como qualquer outra, mas para aprendê-la é necessário vivê-la, respirar tatuagem, senão você não sai do lugar”, afirmou. Em seu próprio corpo, Kreyner admite que ultrapassou um pouco os limites convencionais. Mas ele entende - e aceita - que suas escolhas gerem reações. “Eu não posso querer que a maioria entenda a minha escolha. Escolhas trazem consequências”, diz com convicção. Para ele, basta que o respeito não falte, e está tudo bem. Para mudar a visão inicial das pessoas sobre si, La Scala tenta

quebrarospreconceitos.“Sealguém me regula na rua, eu respondo dando bom dia. Se eu vou conhecer a família de uma namorada, mostro que eu tenho meu negócio, sustento minha mãe, ajudo pessoas, faço ações de caridade, e então as primeiras impressões caem”. Alguns estereótipos ligados à tatuagem ainda incomodam, relacionando a arte à transgressão e ao crime. Mas ele acredita que isso tem diminuído, muito graças à regulamentação da profissão.

ao Longo Da carrEira, krEynEr já conQuiStou aLgumaS prEmiaçõES

Tendências do futuro

Com isso, Kreyner vê a arte deixando de ser marginalizada, o que estaria refletindo até mesmo na forma como as pessoas buscam fazer as suas. “Antes, as pessoas faziam as primeiras tatuagens nas partes internas do corpo: peito, coxa. Hoje, querem fechar o antebraço. Fazem justamente pra mostrar. Elas dizem: ‘Vou fazer escondida pra quê? Tô pagando caro pra quê? Eu quero ver, quero que os outros vejam’”, declara. Outra tendência atual, aponta Kreyner, é que as tatuagens cada vez menos são acompanhadas por um significado. Hoje, ele estima que 80% delas são feitas apenas por serem “bonitas”. Curiosamente, no entanto, todas as suas tatuagens pessoais têm significados, alguns complexos, outros mais simples. Ele dividiu o corpo, inclusive: o lado esquerdo para sua família, e o direito para sua vida. Sobre limites, Kreyner acredita que não existem, enquanto a pessoa se sentir bem consigo mesma. “Mesmo quem vem para fazer sua primeira e diz que vai parar por aí, dificilmente pára. Se elas realmente admiram a arte, não vão ter apenas uma (tatuagem) no corpo. Não sei qual a magia, mas é assim”.

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Em seguida, fomos a Santos, para o bairro do Gonzaga, nos encontrar com Claudio Cruz, que tatua no estúdio Beto Diniz.

foiparaumaempresadeengenharia. Ficou lá três anos, mas não era o que esperava. Depois disso, passou um tempo

há muito o que aprender. Afinal, trata-se de um trabalho tenso, onde não se pode errar. Ele também acredita ser fundamental o estudo constante: enquanto concedia essa entrevista, por exemplo, Claudio participava de um curso online para se especializar em uma técnica de tatuagem inspirada na aquarela. O tatuador também percebeu um aumento na procura por tatuagens. Mais: um aumento na procura por parte de jovens, que chegam ao estúdio em busca da sua primeira tatuagem. A maioria declara que vai parar por aí, no entanto não conseguem. “Sempre falamos ‘até a próxima’, e muitos realmente voltam. Eu acho que isso acontece por causa do prazer da dor... você volta para fazer outras tatuagens por sentir falta dessa sensação”, teoriza. Por conta disso, nem todas as tatuagensqueClaudiofazpossuem significados para os clientes. E esses significados, quando existem, vão perdendo em importância conforme a quantidade de artes aumenta: a primeira representa um marco, a segunda nem tanto, e assim por diante. “Isso [ter um significado] diminui

“NãO PREcISO dE TATUAgEM PRA PROVAR MEU TRAbALhO” Claudio é um tatuador que foge ao convencional, por um motivo simples: ele não possui nenhuma tatuagem no corpo. Mas isso não tem sido um problema: já são mais de seis anos de carreira, que a cada ano se consolida graças a muito estudo. “Poucas pessoas vêm ao estúdio desconfiadas. Se três pediram para ver meus trabalhos, é muito, mas eu mostro.Masparaosqueperguntam, eu respondo que ter tatuagens em mim não mostraria nada sobre a qualidadedomeutraço.Alémdeque, ninguém pede a um neurocirurgião para que faça uma cirurgia em si para mostrarqueébom,certo?”,pondera Claudio, bem humorado.

Talento veio primeiro

Claudiosempretevehabilidadepara desenhar, e por isso escolheu cursar Arquitetura. Se formou em 2009 na Unisantos e, após trabalhar na própria universidade algum tempo,

em São Paulo, mas logo voltou a Santos, buscando realizar negócios próprios. - primeiro a venda de ilustrações de arquitetura, e em seguida uma escola de artes. Foi na escola, aliás, que surgiu a ideia de tatuar. “Tinha uns alunos que, digamos,viamqueaescolanãoiapra frente (risos). Eles deram a sugestão, que ficou martelando na minha cabeça.Enquantoisso, ascontasnão paravam de chegar”, lembra ele.

O sonho

Mas o que o fez realmente se jogar na profissão foi um sonho. “Eu estava tatuando uma pessoa. Quandoacordei,penseinahora:vou aprender isso! Comecei a pesquisar como funcionava, e algum tempo depois montei meu estúdio na própria escola de artes. Fiquei lá um ano e meio, e depois vim trabalhar com o Beto”, conta. Para Claudio, saber desenhar ajuda um tatuador, mas não é tudo:

Claudio Cruz usa o estúdio para estudar

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com o tempo. Se a pessoa gostou muito de um desenho, ela vai tatuar e pronto”, afirma.

Artes incômodas

Existem certas tatuagens, no entanto, que o incomodam, como nome de esposo e esposa por exemplo.“Naminhacabeçaeuacho ridículo. Gosto de nome de filho e filha, mãe e pai”. Outra questão que o tatuador lamenta são as tatuagens por “moda”. Segundo ele, fazer um desenho só porque o outro tem, é algo “escrachado”. O motivo, para ele, reside na falta de originalidade. Isso seria menos compreensível ainda para ele, devido ao fato de o universo da tatuagem ser repleto de referências, que aumentam a cada dia, como técnicas e estilos diferenciados. Só o banco de imagens de Claudio, por exemplo, tem cerca de 700 imagens armazenadas! Aqui no Brasil, é certo que a tatuagem se popularizou enormemente. Para Claudio, isso foi causado pelo futebol, e especificamente por um jogador: o inglês David Beckham. “É minha impressão, pois ele foi um dos primeiros que escancarou suas tatuagens. Os outros jogadores seguiram e isso chamou a atenção dos jovens. Antes disso a arte era mais restrita, a quem já era tatuador e aos que realmente gostavam da arte”, considera.

Resistência

E como fica ele nesse universo? Claudio acredita que, mesmo com tantas boas referências e desenhos à disposição, não vai “abrir os trabalhos” em seu corpo tão cedo. Não que não lhe faltem ideias, mas simplesmente porque ainda não sentiu vontade. “Eu acho que ainda vou resistir bastante tempo”, declarou, convicto. Estamos de olho, Claudio!

Rodrigo Pereira (esq), posa em seu estúdio

“TATUEI PELA PRIMEIRA VEZ AOS 17 ANOS”

Também conversamos com o tatuador Rodrigo Pereira, que mora e trabalha em São Paulo, no estúdio Zero13. Para ele, a tatuagem sempre foi uma companheira de vida. “Sempre gostei da arte, mesmo quando não trabalhava com ela. Gostava de ver os desenhos, de imaginar quais faria, desde adolescente”, afirma. Toda a paixão pela tatuagem fez com que Digão, como é conhecido, tivesse sua primeira experiência “profissional” ainda menor de idade. “Eu tinha 17 anos, fiz no estúdio de um amigo e decidi ali que era o que queria para mim”, afirma.Quando tomou a decisão pela carreira de tatuador, Rodrigo teve o apoio da família, o que segundo ele foi muito importante. “Eu sempre gostei demais da arte da tatuagem, mas mesmo assim era importante não ter resistência da família. Felizmente foi isso que aconteceu, todos me apoiaram e continuam apoiando, ainda mais por verem meu trabalho ”, declarou. Com o passar dos anos, Rodrigo foi preenchendo seu corpo com as próprias tatuagens. Atualmente, ele estima que 80% já tenha sido “fechado”, como se diz. Mesmo assim, ele acredita não sofrer preconceito fora do ambiente de trabalho. “Se houver algo, provavelmente é algo disfarçado, que no final das contas se torna imperceptível; por isso, não me importo”, finaliza

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OS FÃNÁT Reportagem: BEATRIZ VIANA, MARCELO LOPES E CAMILLA ALOI Fotografia: REPRODUÇÃO / ACERVO DOS ENTREVISTADOS Diagramação: BEATRIZ VIANA E MATHEUS TEIXEIRA

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TICOS quando a emoção super a a r azão em busca de momentos inesquecíveis com seus ídolos

P

ara quem tem como principal sonho a vontade de conhecer um ídolo, não importam as dificuldades, críticas e limites: o importante é manter-se próximo de seus heróis. O amor de fã, que muitos julgam loucura, é apenas um dos casos em que a paixão dá de dez a zero na razão. Desafiando os tabus sociais sobre fanatismos, alguns fãs deixam os limites de lado e colocam seus ídolos num pedestal, definindo a trilha sonora de suas vidas. Mas afinal, existem limites na vida dos fãs? A resposta pode ser construída a partir das experiências vividas por Juliana Maglowsch Salgueiro e Matheus Catira de Lima, com seus respectivos ídolos: a banda de rock norte-americana Bon Jovi e o cantor pop canadense Justin Bieber.

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Sua coleção, formada por anos, contempla todos os discos de Bon Jovi

Fã declarada de Bon Jovi, Juliana foi em todos os shows que a banda realizou em São Paulo desde 1990

Juliana Maglowsch é tão fã que pode se considerar uma amiga distante do astro do rock Jon Bon Jovi. A aproximação entre os dois se deu por intermédio do melhor amigo, Fernando Salgueiro. Tudo começou em setembro de 1986, no auge do hard rock oitentista, quando Juliana e Fernando revezavam a compra de revistas de rock. “Estava migrando do rock nacional pro hard rock, e aí ele [Fernando] tinha me falado que eu ia gostar de um tal de Bon Jovi. Um belo dia, escutei ‘Livin’ on a Prayer’ na rádio, no carro da minha mãe. Achei legal, mas não consegui ouvir o nome”. Na época, havia programas de TV aberta que exibiam videoclipes de rock, e em um desses momentos, Fernando veio gritando da casa vizinha e convidou Juliana para o que seria

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seu primeiro momento com seu maior ídolo. “Era o vídeo de ‘You Give Love a Bad Name’. Quando ouvi a voz, o som por inteiro e o rosto, casou tudo”. O gosto musical uniu para sempre Juliana e Fernando. Eles namoraram, noivaram e se casaram com o som da banda norte-americana como trilha sonora. Foram a todos os shows em São Paulo, desde 1990 até 2017. Para cada aventura, uma história diferente. “No último show, fiquei das 2 da tarde às 2 da manhã sem comer, beber ou ir ao banheiro; Já voltei do colégio até em casa andando (por uns 50 minutos) e deixei de comprar lanche para economizar e comprar CDs”. A maior aventura rolou em 1993, quando Juliana e Fernando caíram sem querer em

frente ao hotel onde Jon estava hospedado, o Della Volpe Garden, em São Paulo. “Podíamos vê-lo do saguão da entrada; meu coração disparava”. Outro “contato imediato” aconteceu no ano passado, durante a passagem do roqueiro pelo Brasil para um dos shows mais cobiçados do Rock in Rio. Experiente, ela já se postou bem na frente do palco. Funcionou: “Fiquei tão sem reação ao vê-lo que só despertei quando o Fernando me jogou pela cintura para tentar tocar nas mãos dele. Olhar nos olhos dele e vê-lo olhando pra mim no meio da multidão vai ficar marcado para toda a vida!”, derrete-se. Juliana é professora de inglês e conta que parte da inspiração para aprender o idioma veio das canções de seu ídolo, assim


Meu marido sempre apoiou e realizou meus sonhos com música. Juliana Maglowsch Fã de Bon Jovi

como do mestre Elvis Presley, que também admira muito. “Ele assegurou o estilo que sigo até hoje com outras bandas como Europe, que é minha segunda favorita. Música é minha motivação e foi o BJ que me viciou”. Juliana e Fernando são melhores amigos desde os 5 anos de idade. Desde o início, a música participou de suas vidas, e esteve nos mais importantes, como em seu casamento. “Lá se vão 40 anos com o Jon nos unindo. Nos casamos ao som de ‘Always’! Meu marido sempre realizou meus sonhos com música. Somos parceiros em tudo”. É difícil escolher uma favorita, mas “Always” com certeza está no páreo, junto a “Livin’ on a Prayer”, que foi seu primeiro contato com a banda, e com o álbum “Runaway” inteiro, que foi uma luta para conseguir e veio importado. Nessa jornada de fortes emoções, Juliana se inspira cada vez mais em seu ídolo, desafiando todos os limites para estar próxima dele

.

Matheus (no meio)assistiu seu ídolo pela primeira vez com os amigos

SonhoS de um BoylieBer O que pode parecer loucura para alguns é apenas uma expressão de amor para outros. No caso do jornalista Matheus de Lima, fã de Justin Bieber, a relação com o artista sempre trouxe fortes emoções. “Todo o trabalho do Bieber me envolve. Me tornei boylieber na primeira música”. O nome “boylieber” é usada para descrever os meninos fãs de Bieber brincando com o título de seu terceiro álbum, “Believe” (2012). Sua primeira oportunidade de vê-lo ao vivo, na Purpose World Tour, em 2017, foi a realização de um sonho. Hoje, um ano após o evento, relembra alguns dos desafios que enfrentou para conhecer o ídolo. “Eu e meus amigos dormimos na fila pro show um dia antes. A ideia do acampamento era conseguir o melhor lugar”. Matheus fez de tudo para juntar o dinheiro necessário: gastou tudo que tinha guardado, fez vários trabalhos

como freelancer e até mesmo vendeu bens particulares. “Vendi meu celular e meu notebook, porque precisava dos melhores ingressos para conseguir ficar perto dele”. Os desafios valeram a pena: além das fotos do evento, um item ordinário acabou se tornando o mais especial. “Consegui uma garrafa d’água que ele jogou para o público. Eu nunca nem abri, deixei guardada em casa ao lado dos CDs e camisetas que tenho. Foi uma sorte enorme conseguir algo que passou nas mãos dele.” Mesmo com todas as polêmicas envolvendo o cantor e seus fãs, Matheus sempre pondera as críticas. Para ele, se o artista é temperamental, não faz diferença. “Muita coisa é boato, as pessoas inventam de tudo. O importante é o que a música dele significa para mim e como ela serve para me amparar até nos momentos mais difíceis. Não sei o que seria da minha vida sem esse apoio”.

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Texto: Thayná SoareS Foto: VicToria capaldo diagramação: andreSSa aricieri

Não, Não é só uma fase!


Pessoas com aNsIeDaDe socIaL se seNTem LImITaDas em seU DIa a DIa, PoDeNDo,maIs TarDe, DeseNVoLVer o PÂNIc0

N

o começo, as preocupações. É como mergulhar num oceano revolto sem saber nadar. A cada onda, um novo desespero. Essa sensação de agonia extrema não pode ser atribuída a eventos químicos no organismo – o coração palpita, mas não é ataque cardíaco. A boca seca, mas não é desidratação. Entre tantos sintomas que falam, esses gritam e eclodem dentro da mente. De repente, a calmaria. Em outro segundo, o vendaval. E então, eis uma época em que o “calma, é psicológico!” se torna algo digno de atenção. Estamos falando do mal do século: a ansiedade social. Antes de mais nada, vamos entender o que isso significa na sociedade atual.

Respeito à individualidade A ansiedade é um transtorno psicológico que deriva de um conjunto de todas as experiências vividas pela pessoa. Sua incidência depende de uma alteração no sistema nervoso central, deixando o indivíduo “acelerado” e com sentimento de excessiva agitação. Atualmente, é um distúrbio muito comum e que acomete muitas pessoas. Há quem diga que a ansiedade seja uma porta aberta para o pânico mais severo. O indivíduo se encontra impossibilitado de realizar tarefa demasiadamente simples, como pegar o elevador, falar com um conhecido ou até mesmo sair de casa. O estudante Nelson, 18, sofre de sintomas depressivos acarretados pela ansiedade social. Manter relacionamentos com seus colegas de classe tornou-se um desafio cujas barreiras são impossíveis de quebrar em momentos de fraqueza. “A solidão é a grande causadora dos meus problemas”, diz o estudante, cujas limitações o impedem de se divertir na presença de seus familiares. “Meus pais tentam me aju-

dar, mas hoje evito tocar no assunto para não perturbá-los novamente”. Os limites psicológicos estabelecidos pela mente do ansioso tornam-se mais proeminentes quando não tratados de forma correta. A sensação de agonia cresce a cada instante. É nesse momento que a ansiedade se transforma em pânico: o motivo de todos os limites impostos a si mesmo. Foi em uma viagem para o Chile que o engenheiro de computação, Gabriel, 23, descobriu o resultado da pressão social. A reação de desespero ao se encontrar no meio da multidão, encurralado por todos ao seu redor é muito pior do que normalmente aparenta ser. O que pode ser visto

TAXA DE IDADES AFETADAS 3-5

6-18

19-50

50+

via Google

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como cotidiano na vida de uma pessoa saudável, é encarado como uma batalha de sobrevivência por quem sofre com a síndrome do pânico.

Ansiedade social e pânico: onde agem no cérebro? Tálamo:

Tratamento clínico

Não existe tomografia que dê um diagnóstico científico sobre ansiedade, pânico ou até mesmo depressão. Muitos pais se recusam a levar os filhos aos consultórios psicológicos, já que a maioria dos casos acomete os adolescentes e as crises são vistas como a época comum do “é só uma fase”. A população em geral não se importa em tratar da mente — não enquanto epidemias se tornam prioridades na atualidade. Alguns planos de saúde nem mesmo cobrem consultas psicológicas. É então que entra o psiquiatra, profissional especializado em crises mais graves, que, por vezes, necessitam de remédios e terapias intervencionistas. O psiquiatra Décio Lourenço Reimão diz que a maioria de seus pacientes o procura logo após o terceiro ataque. Muitas vezes a própria família não faz ideia de que um de seus membros passa por esse problema. Enquanto alguns consideram crises psicossociais uma perda de tempo, outros não sabem por onde começar para auxiliar aqueles que sofrem com tais distúrbios. Segundo ele, a ansiedade social se desenvolve a partir de problemas que cada indivíduo vem a desenvolver

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É onde algumas sensações dolorosas, térmicas e táteis são identificadas.

Hipotálamo: Faz a manutenção dos estados emocionais e de mecanismos psicossomáticos

Amídala: Está relacionada com a manifestação de comportamentos sociais.

Hipocampo: É associado principalmente com a memória, em particular memória a longo prazo.

Setembro Amarelo Falar é a melhor solução em determinadas circunstâncias. “A ansiedade em si não é o mal, o mal é o excesso dela”. Lugares cheios, como festas, baladas e até mesmo o ambiente de trabalho podem vir a acarretar o pânico com o passar do tempo, caso a ansiedade não venha a ser

tratada devidamente. Esses ataques agem quimicamente no hormônio serotonina, que tem a função de neurotransmissor e é ligado diretamente à depressão e ansiedade. Em casos graves de eventos constantes, o dever do psiquiatra é receitar remédios


A ansiedade em si não é o mal, o mal é o excesso dela Dr. Décio Lourenço Reimão

específicos e sugerir acompanhamento psicológico. “Na vida, cada um tem uma fraqueza. O extremo pode causar o pânico”, diz. Hoje em dia, com a abordagem constante pelas mídias sociais e projetos como o Setembro Amarelo (conscientização da população sobre o tema suicídio), a procura por ajuda especializada vem crescendo cada vez mais. “Não é nenhuma vergonha ter esses problemas”, conclui o psiquiatra

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Ansiedade social: o peso do mundo sobre os ombros

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JÁ CHEGA, NÉ? A pArtir de que momento A AbordAgem Ao outro deixA de ser direito de exercer A sensuAlidAde e se tornA invAsão do espAço Alheio?

Texto: NATÁLIA LELLIS Foto: BEATRIZ ROSA Edição: ISABEL FRANSON Diagramação: ISABELLA CHIARADIA

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“E

u acho que na hora ela ficou receosa de revidar e resolveu só seguir e tentar abstrair... mas não deu certo. Ela estava nitidamente nervosa, começou a tremer...”. detalhou a estudante de biomedicina Ingrid Beatriz Silva Lins, de 21 anos, sobre uma experiência de assédio. Poderia ter acontecido com ela, com a mãe, uma amiga, mas aconteceu com uma mulher que ela nem ao menos sabe o nome. Ingrid recordou que certo dia, enquanto andava na calçada, viu o caminhão de lixo. Do outro lado andava tranquilamente uma moça, possivelmente a caminho do trabalho, já que Ingrid explicou que a jovem estava discretamente arrumada, com roupa social. Conforme ela andava, os lixeiros começaram a mexer com ela. Então, segundo Ingrid, eles disseram: “Nossa que morena linda”. Sem se manifestar, ela seguiu. “Quando ela virou de costas, começaram a falar da bunda dela, gritando”, contou. Ela recordou que eram muitos, praticamente rodearam-na e que eles falavam muito alto. A estudante de biomedicina disse não ter feito nada. Só presenciou. No entanto, foi tempo suficiente para deixá-la indignada a ponto de, anos depois, lembrar e desabafar numa roda de conversa com desconhecidas. Se em casa se lava a roupa suja, na mesinha de um café se fala de assuntos polêmicos. E foi numa tarde de um sábado cinzento qualquer, bem no fundo do café ‘Chocolate Gourmet’, em Santos que quatro mulheres se sentaram para conversar. Não eram amigas trocando fofocas quentes, mas sim desconhecidas, que se encontraram a fim de discutir um tema já frio, mas que ainda incendeia os jornais e passeatas: o assédio. A convite da equipe de reportagem da revista Viral, Jéssica Bitencourt, jornalista de 26 anos, Vanda Cintra, de 62 anos, também jornalista, Ingrid Beatriz Silva Lins,

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estudante e a secretária Yeda Maria Alves de Souza, de 54 anos, se reuniram para falar do limite que separa a cantada do assédio. Entre goles de água e cappuccino, opiniões distintas goela abaixo, no entanto complementares. Mulheres de diferentes gerações, profissões, estilos de vida, e o mesmo ponto em comum: todas sabem bem o que é lidar com o excesso masculino. Tema que não é novidade nos noticiários, em postagens de redes sociais, nem em gritos de ordem: “Não é não”. Não é exatamente a violência, mas também o incômodo, o constrangimento, a opressão. É o “fiu-fiu”, o “nossa, que linda, hein”, o “gostosa” em alto e bom som e daí para baixo. Segundo o tradicional dicionário Aurélio, dentre os diversos significados atribuídos à palavra ‘limite’ , ela é definida como “linha que separa superfícies”. Tratando-se do limite entre a cantada e o assédio, transcorre uma linha tênue que separa o propósito do emissor da perspectiva do receptor quanto à mensagem. Canal subjetivo à medida da interpretação. De um lado a insistência, o abuso, a falta de educação. Do outro, o jogo da sedução, a conquista e a importância do elogio que massageia o ego. “Você se arruma, fica bonita, faz cabelo, maquiagem... Pra ninguém dizer nada?” questionou Vanda sobre elogios e a falta


Mulheres desconhecidas, de diferentes gerações, profissões e estilos de vida, reunidas para discutir os limites entre cantada e assédio de abordagem masculina. E ainda estabeleceu que há, sim, um limite. “No momento em que a pessoa passa uma cantada com um teor meio provocativo e você diz “não”, aí é que está o limite: não respeitou, já passa a ser assédio”. Após o “não”, o respeito deve ser mútuo, e isso todas as mulheres na roda concordaram quase como um plebiscito. E a pergunta sobre como os relacionamentos surgem, trouxe à tona o quanto pode ser injusto classificar como algo mal intencionado a simples tentativa de um ser humano se aproximar do outro, seja por meio de um flerte, uma piscadela ou um convite. Para Yeda, a questão de aceitar a

cantada e considerá-la leve, ou já levar para o assédio é pessoal. “O que pode ser assédio pra você, pra mim ,pode ser bobeira para outros”, afirmou. “Sem cantada não existe relacionamento, início de nada”, disse Vanda e complementou em seguida: “Já sabemos quando a cantada passa a ser ofensiva. Você percebe no olhar, pelo perfil de quem tá te tocando, seja homem ou mulher”, contou. Segundo ela, depende da mulher saber até onde vai o limite dela e do outro. Vanda defendeu que a falta de bom senso é a responsável pela quebra de todos os limites. O ato de alguém dizer “não” deveria fazer com que a pessoa que está tentando

atrair a atenção se afastasse, pedisse desculpas e mudasse o tom. E tudo bem, até a segunda página do assédio popularmente debatido e visto por aí é do homem assumindo o papel de fera e a mulher de caça. Será que se fossem invertidos os papéis, teríamos o mesmo resultado? Para Yeda, não. “É uma condição que é muito aceita pela sociedade quando é o homem que faz, porque se eu parar na porta do banheiro masculino de uma balada e olhar um carinha gostoso e puxar ele pra mim, ele vai se assustar e pensar que eu sou maluca. Então, a diferença na visão do mesmo ato começa por aí. Por que é diferente?”, questionou

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DEPOIMENTOS

“Estou Aqui” Feliciana J.C. (fictício), 25 anos, Advogada “Na faculdade eu tinha um professor já com fama de ‘dar em cima’ de aluna, de olhar diferente... E eu senti isso logo no começo. Eu tinha 18 anos, e em um dia de chuva, era inverno, fui para a aula com uma bota, um pouco acima do joelho. Ele chegou do meu lado - tinha essa mania não só comigo, mas com algumas alunas, de durante a aula, parar do lado e começar a cochichar - e falou: ‘Você fica muito bem de bota, sabia?’ Eu não sabia o que falar, dei uma risada, meio sem graça, e disse: ‘Obrigada professor’. Umas três semanas depois, fui com a mesma bota para a faculdade. Quando entrei na sala e vi que era aula dele, parei e pensei ‘Caramba, vim de bota’ e foi a primeira coisa que ele olhou. Na hora pensei ‘deve estar achando que vim de bota por causa dele’. Mais uma vez, ele parou do meu lado e disse: ‘Você veio de bota por quê?’. Respondi: ‘Vim de bota porque está chovendo, não tinha outro sapato’. Ele: ‘Tá precisando de sapato? Pode falar, veio (de bota) para me provocar não é?’”

Gabriela Albino do Amparo, 30 anos, membro do Conselho Municipal de Mulheres de Santos e do Coletivo Feminista Classista Maria Vai com as Outras “Combater o assédio exige um esforço de conscientização, evidenciando claramente o quanto este comportamento é constrangedor, desagradável e humilhante, ou dependendo da intensidade e da reiteração, gerar reflexos na saúde mental e física. É necessária uma ação diária, uma inciativa que parta de mulheres para com os homens, como também entre eles. Outra ação é pressionar o Estado a implementar políticas e campanhas que explicitem a problemática de forma clara e educativa. Importante deixar claro que os comportamentos são baseados em observação e aprendizado, ou seja, esta noção de respeito deve ser discutida desde a infância. O sistema educacional deve prever conteúdo que se atente à problemática”.

Diego Contesini, 32 anos, empresário Mariana Ferreira Braga, 24 anos, Gerente de Marketing “Uma vez no elevador da empresa onde eu trabalhava entrou um cara, que eu não conhecia. Eu estava de calça social e uma camisa social branca, só que o meu sutiã era um pouco mais escuro. Naquela época, aos 17 anos, eu não tinha noção que, se usasse algo mais escuro por baixo da roupa branca, a peça apareceria tanto. Com os olhos em mim, ele disse: ‘Nossa, está crescendo o seu peitinho’. Olhei pra ele e disse: ‘Não gostei do seu comentário’. Ele ‘fechou a cara’ e saiu com o rosto que expressava: nossa que menina nojenta, chata. Deve ter pensado que eu acharia legal ele comentar que os meus seios estavam crescendo. Tentei denunciá-lo no RH, expliquei o que aconteceu, mas não deu em nada porque ele alegou que foi apenas um elogio, que eu tinha distorcido a informação. Depois de um tempo, outras meninas estagiárias também o denunciaram e ele acabou sendo despedido”.

“Como homem, não gosto de ver um outro homem mexendo com mulher, falando besteira e tal... Tentar diferenciar cantada de assédio é complicado, difícil. Mas é nítido quando você fala uma coisa e a pessoa não gosta. Às vezes eu posso virar para alguém e dizer algo que poderia ser relativamente tranquilo como ‘você está bonita hoje’. E para a pessoa aquilo não caiu muito legal. Mas, poxa, será que você não percebeu que ela não gostou? É claro que a gente sabe dos extremos... ‘Ah, gostosa’, ou ficar cercando, encurralando... Isso todo mundo sabe que é assédio. Mas o meio-termo é muito difícil, é questão de ter bom senso e interpretar a pessoa que você está abordando“.


Marcos Ferreira de Paula, Sociólogo. “O assédio sexual normalmente é mais frequente em contextos sociais e históricos em sociedades permissivas diante desse tipo de prática. À medida que certos grupos vão questionando, vão colocando em debate esse tipo de prática, com o objetivo de condená-lo, o assédio sexual vai sendo menos praticado, até por uma questão do que eu chamaria de ‘vergonha social’. Mas é principalmente uma questão de luta das mulheres contra o machismo e a dominação masculina: os assediadores se achavam no ‘direito’ de assediar a mulher, e é esse ‘direito’ que agora é posto em questão”.

Vera Leon, Psicóloga “O assediador não conhece limite e não sabe, acima de tudo, o que é respeito ao outro. O que representa assédio para uns, pode não significar absolutamente nada para outros. Ser chamada de gostosa pode ser um elogio e para outras pode ser a maior ofensa. É uma questão extremamente individual. Quem estabelece quando o outro está me invadindo, incomodando, me desrespeitando, sou eu. Por que você vê mulheres que são assediadas fisicamente, moralmente e sexualmente dentro de casa pelos seus parceiros e elas aguentam um ano, vinte anos? E por que tem mulheres que levam um tapa na cara, batem a porta, vão embora e nunca mais ela olha para esse sujeito?! Algumas mulheres têm uma fragilidade emocional, uma autoestima muito mais baixa e ficam. E outras que pegam os filhos no meio da noite, pedem abrigo e dizem: “apanhar, eu não apanho mais ”. Então é muito de cada um. O que não dá para acontecer é estabelecer um padrão coletivo para o limite, que é uma questão absolutamente individual“.

Patrícia Gorish, Advogada ”Não há uma definição legal de assédio. É um conceito aberto. É o que a mulher chama de assédio. Só que ao contrário do que a gente possa acreditar, que esse conceito aberto favorece a mulher, na verdade prejudica. Porque quanto mais aberto, mais chance também de questionarem e dissuadirem. Mais chance de dizer ‘ah, então não é (assédio)’. E como delegados, advogados e juízes são, em sua grande maioria, homens, a tendência é não se sensibilizar. Achar que a culpa é dela, é da roupa, do comportamento... Achar que ela provocou. Podemos ver por aquele caso do indivíduo que ejaculou na moça no ônibus. Ele ejaculou nela! E foi classificado apenas como ‘contravenção penal’. Por isso é tão importante a participação da mulher na vida pública, para tentar mudar essas leis que ainda não estão do nosso lado”.


TRABALHO, TRAB... “Meu corpo não é de aço tão pouco a Minha alMa daria tudo para dorMir uM Minuto a Mais “ (Andando Sobre Pedras, canção da banda PENSE)

Texto: BEATRIZ PEREIRA, ELIANA GRECO, JULIANA VILLELA E MARCEL CALDEIRA Foto: BEATRIZ PEREIRA E ELIANA GRECO Edição: MARCEL CALDEIRA E JULIANA VILLELA

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ocê acorda, mal levanta da cama e já entra no aplicativo de mensagens, e-mail e em todas as redes sociais mais de duas vezes, para conferir se há novidades do trabalho, antes de sair de casa. No meio do caminho confere tudo novamente. Podem ser pequenos sinais de que você é um workaholic (termo em inglês que define uma pessoa viciada em trabalho). Não que a culpa seja sua, afinal, vivemos numa época em que a aposentadoria parece um sonho distante. Por isso, inúmeras pessoas trabalham além do que podem, seja por ascensão social e financeira, simples vaidade, para conquistar o seu espaço no mercado profissional ou para fazer o pé de meia para o futuro. Além de prejudicar a vida social, familiar e a própria saúde, o comportamento compulsivo do workaholic começa com pequenos atos. De acordo com o psiquiatra e médico do trabalho Milton Paiva Júnior, parte da responsabilidade é dos superiores. “Chefias mal orientadas acham esse comportamento bom, o que cria os chamados ‘conflitos de relações no trabalho’, gerando insegurança e insatisfação na equipe”, explica o profissional. Uma pesquisa realizada pela International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), mostrou que 23% dos profissionais brasileiros têm tendência ao workaholismo. O mesmo estudo revela, ainda, que pessoas vi-

ciadas em trabalho têm 65% mais chances de desenvolver doenças cardíacas. Depressão Nem só o coração deve ser cuidado pelos workaholics. Transtornos psicológicos são também fatores preocupantes para os viciados. Kátia Camilo foi durante 14 anos gerente de marketing de uma empresa multinacional de bebidas, por 14 anos. Seu posto era regado a muitos eventos, trabalhos e grandes projetos. Com o tempo, a paixão pelo trabalho ultrapassou os limites considerados saudáveis, levando-a ao maior mal do século 21, a depressão. “Quando percebi, só vivia para o trabalho, era a prioridade na minha vida. Acordava de noite pensando nisso, pegava o telefone e ligava na minha mesa para deixar uma mensagem sobre algo que lembrava de fazer ou alguma ideia”, relata a executiva. Quebrar a raiz do dente dormindo, sofrer estafa e as preocupantes crises de ansiedade foram outras consequências vividas por Kátia que, devido à agitada rotina, acabou agindo compulsivamente fora do serviço também. “Tudo eu fazia de forma extremamente acelerada. Me pegava dirigindo rápido, sem necessidade.”, explica a atual gerente de uma rede de shopping centers da Baixada Santista. Um dos principais reveses de ser workaholic é perder os momentos simples da vida, pois

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a atividade remunerada sempre vem primeiro. “Quanto mais era reconhecida no trabalho, mais me aprofundava nele, com prazer. Vendi minhas férias durante anos porque não queria me distanciar dos projetos”, complementa. Só quando foi diagnosticada com depressão é que Kátia percebeu os excessos. De acordo com psiquiatra, o vício pelo trabalho pode desenvolver, além de estresse acentuado, a Síndrome de Burnout, que nada mais é do que um esgotamento profundo (30% dos profissionais brasileiros apresentam o grau máximo de pane no sistema, conforme pesquisa da filial nacional da Isma). A gerente alerta que o real problema não é a quantidade de trabalho ou o tempo e dedicação e sim, quando se cria uma necessidade de fazer cada vez mais. “A questão não é a pessoa trabalhar dez, quinze horas por dia, mas quando ela não precisa fazer aquilo e faz, simplesmente porque é o que lhe dá prazer”, afirma Kátia. Jovens workaholics Competência é algo cobrado do jovem até antes do início da vida profissional. Pressão dos pais, dos professores e do grupo de referência para ser aprovado nas melhores universidades e com boas notas geram estresse cada vez mais precoce. E a situação se agrava ao ingressar no concorrido mercado de trabalho. Cursos, faculdades, extensões, idiomas são itens básicos e não mais diferenciais. Portanto, a postura e comprometimento são levados ainda mais em conta. Em contrapartida, há aqueles que levam essas exigências a outros níveis. “Acordo às cinco da manhã todos os dias tomando, pelo menos, duas xícaras


de café antes de sair de casa. Vou à faculdade e depois trabalho, consumindo uma média de um litro de energético ao longo do dia para me manter ativo, com meu melhor desempenho’’, afirma Petrus Marques, de 21 anos, estudante de Ciências da Computação e funcionário de uma multinacional, em São Paulo. Apesar da rotina agitada, Marques ainda não se considera um workaholic incurável. “Como todo bom viciado, não acho que o trabalho seja um vício na minha vida. Atualmente eu faço o que gosto, mas acabo me envolvendo muito em vários projetos. Isso aumenta minha carga de trabalho”, relata o jovem A doença Não há um registro ou pesquisa apontando o número de brasileiros workaholics. Um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS), de 2015, entretanto, revelou que 18,6 milhões de brasileiros viviam com algum transtorno de ansiedade, um dos maiores índices mundiais. Já em 2017, a OMS estimou que 5,8% da população nacional era afetada por depressão, deixando o Brasil como o quarto país em número de casos. Outra pesquisa feita pela Previdência Social aponta o estresse como o terceiro motivo de afastamento no trabalho. Estima-se que até 2020 o fator passe a ser o primeiro no ranking. “Você entra e não percebe. Me cobrava muito para sempre fazer cada vez mais e melhor. Não existe nada de errado nisso. Para alcançarmos os nossos objetivos temos que seguir dessa forma. Só não podemos esquecer de que existem outras coisas importantes, família e amigos. Tanto que só percebi que havia exigido demais de mim durante anos quando minha saúde foi afetada”, confessa Kátia

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Fiquem atentos ao perceberem que estão trocando tudo em prol do trabalho. Kátia camilo

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Texto: JHESSICA PAIXÃO E PAOLA BOSSAN Foto: JHESSICA PAIXÃO Diagramação: GABRIELA BRINO E ISABELA RIBEIRO

“Você não vai publicar isso, né?” Ética, audiência ou verdade: o que define os limites do jornalismo?

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erdade ou pós-verdade? Ética ou audiência? Dar o furo, ou checar a informação? Questionamentos como estes pairam todos os dias nas redações. Mas, afinal, como definir o que são limites dentro do Jornalismo, uma profissão com um papel social importante que tem como propósito informar o cidadão de maneira clara e objetiva? Para o jornalista Dojival Vieira, editor do Afropress (www.afropress.com), uma Agência de Notícias online que trata de assuntos de interesse da comunidade negra, o que define os limites da ação de um profissional da área é a linha editorial do veículo. Dojival, que atuou no extinto Cidade de Santos, pertencente à Folha de São Paulo, e no Diário do Grande ABC, onde foi repórter especial, acredita que o jornalista, na condição de assalariado, trabalha para uma empresa, cujo donos têm interesses distintos dos profissionais da redação. Para ele, não existe informação neutra ou jornalismo imparcial. “Todos temos posições e opiniões e, claro, essas posições e opiniões estão

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presentes em tudo o que fazemos e escrevemos. Então, a linha editorial do veículo em que o jornalista trabalha é o que vai estabelecer o limite”, explica Dojival, que trabalhou no jornal Cidade de Santos por cinco anos, teve sua demissão assinada em janeiro de 1983, após uma exigência da direção da Folha de São Paulo e órgãos de segurança, motivada pela participação do repórter no Movimento Popular em Cubatão e na fundação do Partido dos Trabalhadores (PT). Durante o processo de Anistia, a demissão por perseguição política foi confirmada pelo editor-chefe do jornal na época, José Alberto Moraes Blandy. Segundo Dojival, é possível romper limites, até o momento em que os mesmos entrem em aberta contradição com a linha editorial da empresa. “Nestas situações, o passo seguinte é a demissão do jornalista por parte de quem detém o poder de fazê-lo, ou seja, os donos da empresa”. O professor e coordenador do curso de Jornalismo da Universidade Santa Cecília, Robson Bastos, enfatiza que a ética é um dos limites que deve reger o comportamento dos jornalistas. Para exemplificar, ele cita um caso ocorrido em sua vida profissional, quando trabalhava para um jornal local. “Um dos meus textos foi alterado sem o meu conhecimento, por uma colega que fazia a revisão das matérias. No dia seguinte, quando o jornal saiu, o meu editor me chamou para uma conversa porque queria saber o que tinha acontecido com a pauta. Mostrei para ele o meu texto original e disse que não havia escrito aquilo. A responsável foi afastada, mas não chegou a ser demitida”, relembra. A ética é um limite que está em constante discussão quando se trata de programas sensacionalistas, focados principalmente em matérias policiais e cobertura de tragédias. Robson destaca que o limite nesses casos deveria ser o bom senso. Segundo o professor, muitos usam a frase “tem gente para ver” como justificativa para a maneira com que os assuntos são abordados, mas na realidade, o lucro é o motivo para a existência deste tipo de programa. “O limite deles é a audiência, o capital. E existem pessoas que consomem esses programas, que têm um público fiel. O caso da Lady Di é um exemplo. Ela foi morta por perseguição de paparazzis, o carro bateu em uma marquise e ela foi exposta até o último minuto da vida”, comenta. A constante busca desenfreada por cliques e audiência levam o jornalista a abordar temas virais e de interesse passageiro, que em alguns casos, podem trazer riscos à segurança pessoal do profissional.

O limite deles é a audiência, o capital. E existem pessoas que consomem esses programas, que têm um público fiel Professor Robson Bastos

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O jornalista e repórter do programa Globo Esporte, Renato Cury, que trabalhou como repórter especial na cobertura da Copa do Mundo na África do Sul, percebeu o fervor popular em torno da vuvuzela, instrumento usado pelas torcidas durante os jogos, e decidiu procurar o inventor do objeto. Renato conseguiu o endereço de Freddie Maake, suposto inventor da vuvuzela, e, junto a equipe, foi até o local. Segundo o jornalista, a casa ficava em um bairro isolado e inóspito, em uma região não recomendada para turistas. “Maake foi solicito e nos atendeu muito bem, mas o local era afastado e com uma segregação ainda forte, apesar do Apartheid. Ultrapassamos o limite da segurança e tivemos que pagar um preço em dinheiro por isso. Não sabíamos que seriamos cobrados pelas informações antes de chegar ao local, mas pela matéria valeu a pena”, relata. O jornalista explica que a atitude foi anti ética e que ele e a equipe sabiam disso, mas afirma que pagaram para manter a segurança. É importante ressaltar que os limites não são os mesmos em todos os ramos da profissão. Para o fotojornalista Matheus José Maria, graduado na Universidade Santa Cecília, a ética é imprescindível no momento de retratar uma notícia por meio de uma imagem, porque as situações podem ser facilmente manipuladas. “Hoje, por exemplo, eu estou cobrindo o protesto das lideranças indígenas em Brasília. Eu vi uma menina pequena aqui que poderia facilmente simular o que eu pedisse para ela. Ela não entenderia que o que eu pedi é errado, mas, na minha opinião, criar uma imagem e vender como uma verdade não é certo”,

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explica. Além disso, Matheus ressalta ainda que a sinceridade e o respeito com quem está sendo fotografado são partes fundamentais da profissão, e, para ele, o principal limite deve ser mantido. A exposição aos limites físicos também é constante na vida de fotojornalista. Matheus relata já ter apanhado da polícia de cassetete, levado estilhaços de bomba no rosto, cabeçadas e tiros de balas de borracha. “São situações que me exponho consciente do risco, e esse tipo de limite é estabelecido para cada jornalista. Muda de acordo com o que ele está disposto a arriscar”, concluiu.

Os limites entre a ética do jornalista e a linha editorial do veículo são, para Dojival, uma tensão diária. Ele relata que o que motiva um profissional a ultrapassar esse limite é a sua fidelidade à verdade e a recusa a deturpar as informações que vê e recebe. “O jornalista está, permanentemente, cruzando esses limites, porque a matéria prima do nosso trabalho é tudo o que acontece na vida e no dia a dia, que é repleto de contradições. Os limites são muito tênues”, destaca. Dojival reforça que, o que pode acontecer com um jornalista que não se enquadra na linha editorial do veículo onde atua é a demissão.

A ( W B p

U t p c

O JORNALISMO É TEMÁTICA RECORRENTE EM PRODUÇÕES HOLLYWOODIANAS. NO PAPEL DE MOÇINHOS OU VILÕES, OS JORNALISTAS SÃO RETRATADOS FREQUENTEMENTE NAS GRANDES TELAS VIVENDO SITUAÇÕES COTIDIANAS E ESTERIOTIPADAS DA PROFISSÃO.

C g c i d


A linha editorial do veículo em que o jornalista trabalha é o que vai estabelecer o limite. Dojival Vieira

afinal, o que acontece com um jornalista que ultrapassa os limites da ética? Os desdobramentos envolvem algumas possibilidades. Caso uma fonte ou vítima envolvida em alguma notícia coberta pelo veículo sinta-se ofendida ou lesada pelo conteúdo, ela pode processar o jornalista ou a empresa. Também é comum que a vítima peça para que o responsável se retrate pelo ocorrido, ou até mesmo realize alterações no conteúdo da matéria. Ele explica que, oficialmente, não há como o Código de Ética descredenciar um jornalista, como ocorre com médicos e advogados, por exemplo. “Deixar de ser jornalista

e não poder escrever, não existe. O que pode acontecer é que, se o Sindicato dos Jornalistas souber a respeito do caso, pode advertir o profissional”, garante. Nestes casos, os veículos também se tornam um dos principais alvos de cobranças na hora de tomar medidas. Robson afirma que uma das providências mais comuns são as demissões por justa causa. “O editor pode chamar atenção, dar uma advertência ou até mesmo mudar de setor. Mas, em determinados casos, a demissão é inevitável”, alerta o professor Robson

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Após a morte do marido, Katherine Grahan (Meryl Streep) assume o cargo de editora do Washington Post. Junto com o editor Ben Brandlee (Tom Hanks), assisca sua carreira para expor a Guerra do Vietnã.

Um grupo de jornalistas investiga uma série de abusos de crianças por padres católicos acobertados pela igreja. Após a chegada de um novo editor, a equipe consegue reunir documentos e provar o crime.

Um maniaco chamado Zodíaco exige que três jornalistas publiquem as cartas enviadas por ele ao jornal. Juntas, elas formam um cógico que revela a identidade do criminoso.

Um adolescente de 15 anos tem a chance de realizar um sonho acompanhando a turnê de uma banda de rock como jornalista para a revista Rolling Stone. Porém, quanto mais se envolve com a banda, mais perde o foco do seu trabalho.

Com dificuldades para conseguir um emprego formal, Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) decide enfrentar a área do jornalismo criminal independente em Los Angeles correndo atrás de crimes para vender aos grandes jornais

Stephen Glass (Hayden Christensen) é um jovem jornalista que entra para a equipe principal do jornal The New Republic. Entretanto, mais da metade de seus textos foram inventados ou copiados. Sua farsa é descoberta por um jornalista rival.

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Rumo à cidade gRande CaIÇaRaS VIaJaM todoS oS dIaS paRa enContRaR opoRtunIdadeS

Texto: DIEGO KASSAI E KELVYN HENRIQUE Foto: GABRIEL CHICONI E KELVYN HENRIQUE Diagramação: DIEGO KASSAI, NATHALIA AFFONSO

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Baixada Santista possui cerca de 1,8 milhão de pessoas, segundo o último censo divulgado pelo IBGE em 2014. Dessas, cerca de 15% residem no Litoral Sul - Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe. Boa parte delas depende de Santos ou até de São Paulo para estudar, trabalhar ou ter acesso a serviços básicos, como um bom hospital ou até mesmo opções de lazer. Os maiores inconvenientes são o desgaste dos deslocamentos e o gasto maior com transporte. Sem contar o fato de ter que passar parte do dia –e da vida- em uma cidade que não é a sua. Viral foi às ruas para saber como pessoas se equilibram no vaivém entre duas ou mais cidades e descobriu rotinas pesadas de gente que é obrigada a cruzar várias fronteiras para ganhar melhor ou ter mais oportunidades.

Jornada árdua de trabalho O céu ainda estava escuro às 3h30 da manhã, quando Marilene de Almeida, 65 anos, se levantava e fazia seu café. Às 4h30 a van buzinava, parada na porta de sua casa, na cidade de Peruíbe, no Litoral Sul de São Paulo. O veículo seguia para o Centro e de lá, com mais passageiros, para o bairro do Jabaquara, em São Paulo, onde chegava cerca de duas horas depois. No movimentado terminal Jabaquara Dona Mari tentava acertar o passo com milhares de pessoas apressadas, indo e vindo em todas as direções. Muitas em pé, outras sentadas, algumas lendo em silêncio, outras conversando sobre coisas do cotidiano, cada uma com sua história pessoal, suas dificuldades e anseios. A viagem de metrô de Dona Mari ia até a estação Ana Rosa,

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onde ela fazia a baldeação para a estação Tamanduateí e de lá direto para a cidade de São Caetano, numa composição da CTPM. Ainda era preciso pegar mais um ônibus para chegar ao bairro de Santa Maria, mais precisamente à casa onde ela cuidava de duas crianças, uma menina de 11 anos e outra de 7. Mas o lugar de trabalho não era ainda o fim da linha. À noite, Dona Mari dormia na casa de parentes no município de Caieiras, a cerca de duas horas de transporte público de São Caetano. Tudo isso para, no dia seguinte cedinho, apresentarse de novo no bairro de Santa Maria. Às sextas-feiras, Dona Maria fazia o caminho de volta até Peruíbe. Essa rotina durou dois meses. Para quem viveu o cansaço de tantas viagens, o desgaste ainda não desapareceu da memória. “Era complicado! A parte cansativa começava no dia anterior. Eu passava o dia todo na cozinha, preparando a comida da semana inteira para meu marido e neto. E torcia pra que quando eu chegasse, ainda tivesse sobrado, assim eu não precisaria cozinhar nada”, conta a dona de casa. Essa situação é comum para muitos brasileiros, que precisam sair dos limites de seus municípios para conseguir melhores condições de trabalho. Oportunidades de emprego e estudo nem sempre estão nos limites geográficos das cidades, principalmente quando se trata da região da Baixada Santista. Milhares de pessoas se movimentam todos os dias entre a faixa do litoral e a Grande São Paulo em busca de melhores salários. Em julho de 2017, segundo o IBGE, no Litoral Sul o número de pessoas empregadas em Peruíbe era de 7.284 para uma população de mais de 65 mil. O curioso é

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143 km - 3H10 São Caetano

Peruíbe 55 km - 1h20

Caieiras

São Caetano Porcentagem de pessoas do Litoral Sul que trabalham fora 20,14%

8,5%

11,18%

que a profissão que mais contrata na cidade, é também a que mais demite, a de vendedor. Na mesma época, em Itanhaém, havia 10.090 pessoas contratadas formalmente, com uma população de quase 100 mil habitantes. Já Mongaguá contava com 6.203 empregos formais para uma população estimada em mais de 53 mil habitantes. Nas três cidades do Litoral Sul, a ocupação que mais emprega é a de vendedor, por se tratar de regiões turísticas. Como a única época em que os moradores têm mais chance de conseguir uma colocação no mercado de trabalho é na temporada de fim de ano, Dona Mari já tem planos para tentar driblar o aperto financeiro em casa, ela está desocupada desde que saiu do emprego em São Caetano, há dois anos,

População total: Mongaguá - 50 mil Peruíbe - 65 mil Itanhaém - 100 mil Fonte: IBGE/2017

sobrevivendo da coleta e venda de materiais recicláveis. “Minha filha e meu genro me deram um carrinho de cachorro-quente. Pretendo vender na temporada e tentar conseguir um dinheiro extra no fim do ano. Não tem sido fácil, mas tenho fé em Deus que vou sair desse aperto!”, diz. Educação X distância “Preciso correr para o ponto ou então vou perder o ônibus”. São 17h20. O estudante Felipe Moreira já está atrasado, quando percebe que esqueceu a carteirinha de identificação em casa. “Agora não dá mais tempo de voltar”. Ele aperta o passo. 17h30, o ônibus chega ao mesmo tempo que ele. “Hoje pode subir, mas amanhã não esquece”, alerta a coordenadora do fretado. “Essa correria todos os dias é cansativa. Estudar longe é a pior coisa que tem”, lamenta Moreira. O jovem de 21 anos mora em Mongaguá e cursa Sistemas


de Informação na Universidade Santa Cecília. O horário apertado faz com que ele sempre perca o começo e o fim das aulas. O estudante chega em casa por volta das 23h40. “Eu sempre durmo perto da uma hora da manhã, para acordar às 7h00. Mas não tem jeito, é a única forma”, explica o estudante do quarto ano, que durante o dia ajuda a sua mãe, confeiteira, a fazer entregas. As dificuldades em estudar longe de casa refletem diretamente na vida de Moreira. Não só pelos horários, mas também problemas em arranjar estágios ou realizar atividades em grupo com colegas de sala. “Já perdi duas oportunidades de estágio em Santos por morar longe. Um deles não era remunerado, eu teria que pagar um bom dinheiro para trabalhar, o outro era apenas de manhã, eu praticamente não dormiria e ainda teria que ficar de bobeira todas as tardes”, conta Moreira. Esse é um problema comum para os jovens que precisam viajar para estudar. Em especial em casos como o de Moreira, nos quais as oportunidades de emprego em Mongaguá na área em que ele quer atuar são praticamente nulas. Do Litoral Sul, cerca de 1.800 alunos estudam em universidades de Santos, segundo números da Associação dos Estudantes de Peruíbe (AEP), Departamento de Educação de Mongaguá (DEM) e Centro Municipal Tecnológico de Educação, Cultura e Esportes - Itanhaém (CMTECE). Grande parte dessas pessoas precisa ir até Santos para estagiar ou para concluir as atividades da faculdade, porém isso exige um esforço financeiro maior e que geralmente não pode ser feito pelos estudantes

Milhares de jovens de cidades pequenas dependem do fretado para poder estudar em outras cidades. Na foto: Moreira pega fretado para Santos

Não tem sido fácil, mas tenho fé em Deus que vou sair desse aperto!” Dona Mari

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Texto: MATHEUS FOGAÇA Foto: divUlGAÇãO Edição: ROBERTO MASCARO

OS DESAFIOS PARA CHEGAR AO TOPO atletas de alto rendimento buscam a perfeiÇÂo para ultrapassar seus limites

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vontade de se tornar um atleta de ponta faz com que muitos praticantes de esportes levem o corpo ao limite e apelem para substâncias perigosas como objetivo de aumentar o desempenho. Essa atitude faz com que lesões e sequelas apareçam e sejam frequentes, principalmente entre os atletas que almejam o pódio. É o caso do volante do Jabaquara Atlético Clube, Lucas Ciongoli Camargo, 20 anos, que sofreu uma séria lesão no joelho direito. Ele joga desde os 8 anos. Passou pelos times de base do Santos, Portuguesa Santista e São Vicente Atlético Clube. Lucas teve uma ruptura parcial no ligamento cruzado anterior e até hoje não pode deixar de fortalecer os mús-

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culos da perna, porque se deixar de trabalhar a musculatura, as dores voltam. O acidente ocorreu em um treino, quando o jogador tentava interceptar um contra-ataque. Na corrida, seu pe direito prendeu na grama, fazendo com que o adversário caísse sobre sua perna. ‘’Não vale a pena você se sacrificar sem pensar antes, porque ser


Lucas Camargo superou as lesões e continua as suas atividades sem sequelas

um atleta de alto rendimento, requer planejamento’’. O volante ficou quatro meses sem competir, mas hoje em dia não tem mais problemas, graças ao tratamento que faz na academia. E nem por conta disso pensou em parar, pois faz parte da vida de um atleta ter seus altos e baixos.

De braçada

Por movimentar praticamente todos os músculos e articulações do corpo, a natação é considerada um dos melhores exercícios físicos, ajudando a melhorar a coordenação motora, além de ser recomendada para pessoas com problemas respiratórios, como a asma. Mesmo com tantas vantagens também tem seus

contras, afinal, o nadador precisa estar 100% em forma, pois ele depende apenas do próprio condicionamento para ganhar uma competição. De acordo com o lugar onde se nada, o risco de lesões e ferimentos aumenta consideravelmente. Nas maratonas aquáticas, por exemplo, que levam o corpo ao extremo, em intermináveis

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quilômetros de braçadas ininterruptas, podem ocorrer lesões e sequelas. A atleta da Unisanta Catarina Cucatti Ganzeli, 24 anos, 14 anos como nadadora é dona do recorde do Campeonato Paulista de Verão na prova dos 150 metros livre júnior 1 em 2010 e júnior em 2012, foi campeã da Ultramaratona Ilha do Mel – 20km (2017), campeã da Prova Super Challenge 7km do Circuito Rei e Rainha do Mar no Rio de Janeiro (2017), campeã geral da travessia Almirante Tamandaré 7,5 km no Rio Negro – Manaus, e campeã da primeira edição do Campeonato Santista de Águas Aquáticas Abertas em 2014, vencendo todas as etapas. Ela relata que nunca teve lesões sérias porque sempre fez trabalho preventivo, desde os 8 anos de idade. ‘’Já pensei em parar por colocar meu corpo no limite, principalmente na época em que eu tive overtraining, em 2011, que é um excesso de treinamento em um período muito longo. Então fiz um programa de treinos da nadadora olímpica Anna Marcela e ela tinha uma bagagem muito maior que a minha, uma memória celular, um metabolismo diferente do meu. Então eu comecei a não render mais’’. No caso de Catarina, o overtraining mexeu com sua imunidade e com a absorção de alimento, humor, concentração, entre outras coisas fundamentais. ‘’Comecei a tirar notas baixas na faculdade e eu não queria mais sair com meus amigos. Você acaba se abandonando e saindo da rotina correta. O seu corpo não responde mais, só

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voltei a nadar bem depois de 18 meses’’.

Fases

A nadadora não parou de competir, mas nadou mal durante todo esse tempo e o seu salário foi cortado no ano seguinte. ‘’Foi uma fase muito difícil da minha carreira, me preparei pra parar, comecei a prestar concursos públicos todos os finais de semana, mas depois desse longo período eu voltei a nadar bem e então continuei e não desisti mais da carreira’’. Catarina não parou de competir e treinar, mesmo doente. Certa vez ficou três meses em tratamento por causa de uma ameba intestinal. Em outra ocasião treinou, mesmo sob uma forte crise de gastrite. Em outra ainda, enfaixou todo o ouvido para não sentir a dor de uma persistente otite. Chegou a participar de uma maratona de 10 quilômetros, sob 38 graus de febre. ‘’Com o tempo, vamos aprendendo e fazendo diferente em outras oportunidades’’. Não chegou a ficar sem competir por lesão, mas sim por doenças como dengue, gastrite etc. A fisioterapeuta Juliana Saraiva, 30 anos, diz que um treinamento adequado é decisivo para que o atleta evite riscos físicos. “Ao receber o atleta eu faço um treinamento de alongamento de mobilização das articulações que entram em força no ato da prática do esporte” Ela também afirma que outros exercícios são fundamentais para o desempenho do atleta. “Esses exercícios permitem o condicionamento da musculatura como uma simulação dos movimentos do atleta”

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Com os tempo, vamos aprendendo e fazendo diferente em outras oportunidades Catarina ganzeli


A nadadora Catarina Ganzeli superou seus limites para alcanรงar seus limites


Texto: BEATRIZ HURTADO, LARISSA PEDROSO, RENAN COSTA Edição: BEATRIZ HURTADO

O OUTRO LAD DA REALIDADE “Entro no quarto, fEcho a porta E apago a luz. Dirijo-mE até a caDEira E sEnto. sEi quE ficarEi DurantE horas nEssa posição, mãos no mousE, intErnEt onlinE, inicio o jogo E pronto”

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s

eja bem-vindo ao mundo dos games, o universo paralelo de Tales de Lucena Chung Son, de 21 anos, que já passou a barreira de 20 horas direto diante da tela do computador a bordo de uma maratona de League of Legends. Com o avanço da internet, o mundo dos jogos online cresceu absurdamente nas últimas décadas. A galáxia desse sistema povoado de cenários futuristas e mundos em construção está nos computadores, videogames e celulares. Pela internet jogadores se conectam em escala planetária. Desafiam adversários em outras cidades, estados e até países de outros continentes. Tudo acontece em tempo real, como se os jogadores estivessem um ao lado do outro. A complexidade das partidas estimula o raciocínio lógico e a coordenação motora. Apesar de todos os benefícios, esse mundo paralelo tem um lado obscuro. Tales obedece um ritual. Põe o fone de ouvido, ajeita o mouse na mão direita e se coloca a postos diante do teclado, esperando ansiosamente o início da partida. Ao seu lado há sempre uma garrafa de refrigerante ou qualquer outro líquido não alcoólico. Começa a adrenalina assim que o play é pressionado. A partir desse momento, o laço criado com o jogo transforma-

-se em sua única preocupação. Jogadores com esse perfil mergulham nessa jornada por longos períodos e são incapazes de perceber a vida passando. Geralmente utilizam computadores de alto desempenho para suprir o hardwar que os jogos necessitam. A única luz no ambiente fechado vem da tela do computador de Tales. Com menos luz, ele não sente tantas dores na cabeça e nos olhos e, mesmo optando por cadeiras confortáveis, em algum momento o desconforto se instala. Depois de horas de partidas, o ato de se movimentar ou tentar estalar os ossos torna-se frequente. É como se a mente estivesse mandando um sinal ao corpo pedindo descanso. O nível de estresse aumenta a cada segundo, quando estratégias erradas comprometem o resultado final. Irritação, inquietação, impaciência. São sentimentos capazes de dominar totalmente o personagem principal dessa cena. No quarto de Tales, que não é diferente da maioria dos jogadores compulsivos como ele, a desordem impera: roupas, garrafas e alimentos espalhados.

Reset. Voltando ao jogo

O tempo, energia e dedicação voltados ao jogo devem ser equilibrados. Deve haver limite. Com os jogos, não é diferente. Quando compromissos relacionados à vida escolar, pessoal ou pro-

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82%

dos brasileiros entre 13 e 59 anos, jogam algum tipo de game nas mais variadas plataformas

53,6%

dos jogadores brasileiros são mulheres, segundo pesquisa realizada em 2017 pela Game Lab, divisão da ESPM

fissional são deixados de lado é hora de dar pause, reequilibrar o tempo jogado e a vida real. “As 20 horas que passei jogando direto foram o auge do meu vício”, reconhece Tales Chung Son. O vício o fez até deixar de sair com os amigos e terminar os estudos. Todos ao seu redor o aconselhavam a administrar melhor o tempo, pois isso o atrapalhava claramente por conta das dores nas costas, nos olhos e estresse causados pela jogatina. Até que a ficha caiu. Ele se deu conta do quanto estava distante do mundo real. A mudança vem sendo gradativa. Ele ainda enfrenta problemas com o sono. O tempo diário dedicado aos jogos passou de 20 horas para apenas três horas. Agora, Tales busca equilíbrio entre os games, vida social, amigos e família.

Pesquisas

Os games estão entre as principais atividades dos adolescentes, jovens e adultos brasileiros. O tempo médio que os brasileiros, de uma forma geral dedicam aos games chega a 15 horas semanais, segundo pesquisa de 2015, que envolveu 20 países, feita pela NPD Group, a oitava maior empresa de pesquisas no mundo. Já os adolescentes jogam 19 horas por semana. A realidade de Tsu Setoguchi, coordenador de musculação, de 28 anos, evidencia a pesquisa

acima. Ele sente-se um gamer e dedica, no mínimo, cinco horas do seu dia aos jogos. Já chegou a 17 horas seguidas jogando Pokémon GO. Atualmente, o santista é o melhor brasileiro no ranking do jogo. “Até tento ficar longe dos jogos, mas a mão começa a tremer e volto”, Setoguchi define a felicidade de um gamer: “Saber que depois do trabalho ou dos estudos, vou poder jogar meu jogo alivia minha mente”. Para ele, jogar não é um vício e entende como o seu lazer e diversão. Muitos acreditam que o ato de jogar é somente um hobby, mas a realidade atual é totalmente diferente. Matheus Sugayama é o exemplo de que é possível ganhar dinheiro com passatempos. Sugayama, de 22 anos, é streamer (pessoa que faz transmissão ao vivo de jogos) da plataforma TwitchTv, um site de streaming de jogos onlines. Sugayama passa entre oito e dez dias trabalhando com streaming, que é o ato de realizar as transmissões. “Meu foco mesmo é na TwitchTv, onde tenho contrato e ganho o suficiente para passar o mês tranquilo”,ww comenta. Mesmo sendo profissional, o jovem já realizou uma maratona Live Stream (transmissão ao vivo) de 24 horas, mas não se vê como um fanático, pois é sua profissão. Tem dias em que opta por não ligar o computador para ter mais contato com o seu ciclo social.


Luluzinhas digitais

O mundo dos games também faz parte da realidade feminina. Bruna Pereira, estudante de Administração, de 21 anos, acredita que os jogos agregam bastante em sua vida. “Conheço pessoas novas, inclusive de outros países e, também pratico línguas novas”. Bruna encara a rotina dos jogos para tentar esquecer os problemas cotidianos e distrair a sua mente com a realidade virtual. Assim como no mundo real, o machismo também está presente no mundo virtual. Bruna conta que já foi insultada diversas vezes só por usar nick feminino. Essas situações atrapalhavam a concentração da jovem e até mexiam com a sua autoestima. Atualmente, considera importante a participação feminina para quebrar o paradigma de que é “coisa de homem”.

Profissionais

O jornalista e editor da AT Games, Stevens Standke, que acredita ser um gamer, porém, não fanático, entende que o vício nos jogos é como qualquer outro. Tudo que se perde o controle e prejudica a vida social de uma pessoa deve ser tratado”. O jornalista afirma que os games são um assunto em alta na grande mídia, devido à transmissão de eventos envolvendo os jogos. Ele entende que o ví-

cio em games está ganhando destaque nos últimos anos, mas seus benefícios também merecem a devida atenção por parte da sociedade e da mídia. “A ciência já comprovou, com estudos e testes práticos, que os jogos podem evitar até doenças cognitivas e também a demência”. A psicóloga Bruna Leoneli conta que o vício em vídeogames e jogos online passou a ser considerado transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Agora esse tipo de transtorno deixa de ser “besteira” aos olhos de muitas pessoas e começa a ser tratado por um médico. “As coisas começam devagar. Hoje você deixa de lavar a louça para jogar uma nova partida, amanhã você deixa até de ir trabalhar. Eu já atendi paciente em casa, porque o vício o tornou obeso e com sérias dificuldades para se locomover”. A profissional acrescenta que é muito importante prestar atenção na rotina de um gamer, mesmo que isso seja a sua profissão. “Tudo precisa ter um limite. No caso dos jovens, o rendimento escolar começa a cair. Entre os adultos, as complicações surgem no trabalho e isso acontece pela vontade de chegar em casa logo e jogar uma partida”

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No dia 29 de agosto é celebrado o Dia Internacional do Gamer

Não conseguir passar de uma fase e ter que recorrer a internet é considerado um grande fracasso para um gamer

Uma das piores coisas para os gamers é querer jogar e precisar esperar atualizações

Historicamente, o termo “gamer” ou “gameplayer” geralmente se referia a alguém que jogava role-playing games

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Texto: BEATRIZ MARTINS E MARIANA PATRÍCIA Fotos: MARCOS ROSA Diagramação: GABRIEL PUPO

PELÚCIA X TABLET Qual é o peso dessa escolha? 60


“P

ai, posso brincar na casa da Valentina com ela e os brinquedos dela?”, questiona Yasmin, filha do vendedor Rodrigo Iannuzzi, de 34 anos. A pergunta parece simples e de fácil resultado para a menina, de 4 anos, que quer apenas brincar. Seria uma negociação normal entre pai e filha não fosse por um detalhe: Valentina mora em Fortaleza, no Ceará, a mais de 3.100 quilômetros da casa da pequena Yasmin. E pior: elas nunca se viram frente a frente pois, na verdade, Valentina é uma youtuber mirim. Talvez você já tenha escutado falar dos influenciadores digitais: Youtuber é uma pessoa que posta vídeos diariamente ou semanalmente em seu canal na plataforma YouTube. O conteúdo é escolhido pela pessoa e aceito (ou não) por quem procura determinado assunto. Hoje eles movimentam o mercado tecnológico e até o publicitário. E o youtuber mirim nada mais é do que uma criança que faz isso. A pequena Valentina soma mais de seis milhões de inscritos, público que acompanha o canal que ela protagoniza sob supervisão e com a participação da mãe, Erlania. É praticamente o número de habitantes da cidade do Rio de Janeiro, a segunda mais populosa do Brasil. Mundo virtual “Fiquei assustado com a pergunta da Yasmin, porque ela se viu dentro da situação, sem ter noção do distanciamento. Conversei com ela e expliquei que não é uma coisa de fácil acesso e que aquilo é o mundo virtual”, lembra o pai. Yasmin utiliza a internet desde os dois anos de idade, com um tablet e, depois, no celular. Hoje a menina pode navegar sem a supervisão dos pais, mas eles mantém a cautela e ‘ficam de olho’ no que está sendo visto. “O YouTube, por exemplo, registra uma listagem do que foi assistido. A plataforma também recomenda assuntos e sites relacionados. Não preciso ficar supervisionando constantemente, mas existe um cuidado”. Na contramão da inovação neste novo mercado,

está quem consome esses conteúdos: a geração y, que praticamente nasceu conectada com aparelhos tecnológicos, recebendo informações, literalmente, na palma da mão. Mas esse mundo pode ser invasivo, prejudicial e até perigoso em certas ocasiões, caso não haja supervisão. Todo cuidado é pouco quando as crianças ingressam nesse mundo, consumindo conteúdo em massa dos mais variados assuntos. Mas, afinal, qual o limite da liberdade para o público infantil na internet? (In)segurança Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), estudos científicos comprovam que a tecnologia influencia os comportamentos modificando hábitos e causando prejuízos e danos à saúde. O uso precoce e de longa duração de jogos online, redes sociais ou diversos aplicativos pode, por exemplo, causar dificuldades de socialização com outras pessoas. A dependência das mídias causa problemas mentais, aumento da ansiedade, transtornos de sono, sedentarismo, entre outros, além das “brincadeiras” ou “desafios” online que podem ocasionar consequências graves, ciberbullying. como Sem a supervisão e a orientação dos pais as redes de relacionamento podem aproximar novas pessoas. O grande problema é com qual intenção essas novas amizades são criadas, principalmente quando se trata de crianças. Iannuzzi, que também é pai de Cauan, de 9 anos, lembra de um episódio de assédio contra o menino. “Ele tem páginas nas redes sociais e orientamos o Cauan a nos avisar quando algo estranho acontecesse ou alguém desconhecido chamasse. Um dia, um cara mais velho chamou ele no inbox (bate-papo do Facebook) e mandou a mensagem ‘Oi, Cauan. Como você é bonito’. Ele nos avisou e, imediatamente, mandei mensagem

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Jogos tecnológicos substituem brincadeiras tradicionais cada vez mais cedo

Para observar o uso diário, o celular do meu filho possui um aplicativo para controlar sua navegação” Viviane Cordella, professora

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RegRas de hoRáRios “Durante a semana, o uso de aparelho celular e tablet é reduzido a uma hora diária, exceto quando há necessidade de trabalho pedagógico”. Essa é a regra da professora Viviane Cordella, de 44 anos, em casa. Ela é mãe de Vinícius, 11, e Beatriz, 9, e lembra que a tecnologia é presente na vida deles desde os dois anos de idade. “Eles utilizam os aparelhos, mas são supervisionados por mim e pelo meu marido. Inclusive, o celular do meu filho possui um aplicativo para controlar sua navegação”. A Sociedade Brasileira de Pediatria alega que crianças até dois anos não devem ser expostas passivamente às telas de televisão, computador e celular, sem limite de tempo. De dois a cinco anos, o indicado é uma hora por dia, com supervisão do responsável para

saber distinguir o que é fantasia da realidade. Até os 10 anos, o acesso deve ser controlado, mas as crianças não devem usar TV ou computador no próprio quarto. É a recomendação da SBP. De toda e qualquer forma, os pais devem mediar o uso e adequar à rotina da criança e adolescente. Em casa, Viviane aposta no diálogo. A professora conta que conversa com os filhos sobre temas que vão desde uma simples consulta a sites de origem duvidosa, até as abordagens de desconhecidos. “O repasse de fake news é algo muito complexo de explicar, principalmente para crianças, mas é preciso ficar atento e ensinar, desde cedo, a checagem de uma informação e alertar como expor seu pensamento no ambiente virtual, respeitando o próximo”.


a tecnologia auxilia na educação das cRianças Rodrigo Iannuzzi acredita que os perigos da internet existem, mas também há benefícios na tecnologia. "Tudo depende de quem está usando e com qual intuito". Na escola, por exemplo, ele concorda com o uso para fins pedagógicos. "Hoje existem muitos aplicativos que ensinam. Acho válido, mas utilizar os aparelhos na escola para ficar jogando, não". A tecnologia está presente no dia a dia e não seria diferente do ambiente escolar. De acordo com o Ministério da Educação e Cultura (MEC), a incorporação na prática pedagógica deve ser utilizada de acordo com os propósitos educacionais e estratégias mais adequadas para propiciar ao aluno a aprendizagem. Viviane também aprova o uso de equipamentos eletrônicos no ambiente escolar. “O mundo virtual está aí, é uma realidade e devemos usá-lo mais como uma ferramenta de inserção social e educacional”. Segundo ela, a atual geração nasceu conectada, porém reforça que deve haver uma conscientização em relação

ao tempo e modo de uso das tecnologias, para que as habilidades sócio-motoras sejam exercitadas e fomentadas. Em contrapartida, a pedagoga e diretora de escola Claudia Mendonça não vê motivos para a inserção de equipamentos eletrônicos no ambiente escolar. “Existem maneiras diferentes para as crianças brincarem, se desenvolverem e aprenderem, sem o uso da tecnologia”. Já o MEC alega que os aparelhos tecnológicos podem ensinar o aluno a lidar com a diversidade, a abrangência e a rapidez de acesso às informações, além das novas possibilidades de comunicação e interação. Porém, tudo com limites e cuidados. Para Claudia, com o auxílio e acompanhamento dos pais e após a primeira infância, é a melhor maneira de começar a inserir essas ferramentas na vida das crianças. “Procuro abordar as preocupações relacionadas à mídia e mudanças comportamentais das crianças. Além, é claro, do uso liberal e diário da internet”, finaliza Claudia

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Existem diversas maneiras para as crianças aprenderem sem o uso da tecnologia” claudia mendonça, pedagoga

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Texto, foto e edição: Larissa arruda, Lucas campos e mariana simões

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Professoras suPeram barreiras Para comPreender alunos esPeciais e Promover a socialização

A

imagem de uma pessoa com deficiência que conseguiu “vencer na vida” e se colocar na sociedade, logo remete a uma jornada de superação. Afinal, qualquer pessoa que tenha que lidar com limitações visuais, auditivas e intelectuais tem enormes barreiras a ultrapassar. Mas muitas vezes acaba no esquecimento a luta de um pequeno, mas abnegado exército de profissionais que atua nos bastidores. São as pessoas e profissionais que ajudam na sua socialização, no aprendizado, desenvolvem seu senso criativo, estimulam as noções de pertencimento e de autoestima e atuam até na imposição de limites. Os professores estão na linha de frente desse pelotão. São eles que precisam, dia após dia, superar seus próprios limites para conseguir dar luz a essas crianças que nasceram com alguma dificuldade e são diferentes das

que a sociedade considera como “normais”. No ambiente escolar, a rotina os coloca frente a frente. A missão é difícil tanto para quem tem o dever de ensinar quanto para quem tem o legítimo direito de aprender, principalmente quando há um despreparo na chamada “inclusão escolar”. Em 2009, a Resolução Nº4 do Ministério da Educação estabeleceu as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica. Ou seja, todos os alunos com algum tipo de deficiência deveriam ser matriculados em classes regulares, acabando com as salas especiais, trazendo uma nova terminologia: a AEE (Atendimento Educacional Especializado) em salas que funcionam no contraturno, ou seja, aula regular de manhã e atendimento especial à tarde, ou vice-versa. Mas, nem tudo é como deveria ser.

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Inclusão é FUNDAMENTAL Segundo a Secretaria de Educação de Santos (SEDUC), há aproximadamente 900 alunos com deficiência matriculados em 80 escolas municipais. Para eles, há apenas 363 professores mediadores de inclusão escolar. Eles não precisam ter formação em Educação Especial e servem apenas como cuidadores, acompanhando o aluno durante todo o período em que ele está na escola. Luciane Aparecida Cestario é uma delas. A mediadora é responsável por uma aluna, portadora da Síndrome de Williams, que estuda no 1º ano do Fundamental I na UME Olavo Bilac, em Santos. Ela é a peça-chave dessa engrenagem. Mesmo com 30 alunos na sala, Luciane só precisa se preocupar com uma. Sua criança especial. Essa síndrome é conhecida pela agressividade. Quando estão só as duas, a resistência da aluna é constante, se recusando a cumprir as tarefas e pedindo a todo o momento para sair da sala. A mediadora precisa ter pulso para conter a aluna, que chegou a ameaçar batê-la. Precisa ser firme, mas nunca agressiva. “Tia, posso ir ao banheiro?”, “tia, vem aqui?”, “tia...”, gritam as crianças na sala. Mas a garota especial não. Tudo que precisa, pede a Luciane. Mas esse “privilégio” não é concedido a todos os alunos com limitações da rede pública, nem dentro do mesmo colégio. A professora do 3º ano, Adriana dos Santos Amorim, tem sob sua responsabilidade três alunos Professora na UME Olavo Bilac auxilia os alunos como pode


com laudo médico (dois autistas e um F-70, retardo mental leve). Mesmo assim, eles não possuem uma mediadora. Os alunos especiais se tornam alheios ao coletivo. Por mais que a professora se esforce e até mesmo prepare atividades especiais, a dispersão é constante. É só passar uma formiga pela parede e, pronto, a atividade fica em segundo plano. E isso, sem uma professora mediadora ao lado, às vezes passa desapercebido e se perde um tempo precioso. Adriana vai muito além dos seus limites como educadora. “Não estudamos para isso. Não cursamos Educação Especial. Então, não deveríamos estar com essas crianças. Após a Lei da Inclusão, tivemos que nos adaptar. Mas não ofereceram um curso, ou algo do tipo. Não fizeram nada”. Formada há mais de 20 anos, não teve na época uma disciplina na graduação que a familiarizasse com as necessidades de cada tipo de deficiência. Quando essas crianças foram inseridas nas classes regulares, muitos professores não tinham conhecimento para distinguir cada necessidade especial. Foram descobrindo no dia a dia. O que

implica na qualidade de ensino e até mesmo na segurança da criança. Algumas síndromes podem ocasionar convulsões. Como o professor lidaria com isso? O tempo é o limite A opinião de que a inclusão do modo como acontece hoje é difícil para ambas as partes, professora e aluno, ultrapassa os limites dos municípios. A educadora Cassia Regina Gonçalves Costa Santos, da UME Martim Afonso de Souza, em Cubatão, acredita que os alunos aprendem até certo ponto. Depois disso, a professora regular é incapaz de ajudá-los a ultrapassar os próprios limites. “A inclusão é linda no papel. Mas na prática ainda é incompleta. Sou a favor, mas o modo de se fazer ainda não é o ideal”, afirma. A mais importante fronteira, quando se trata de inclusão é o tempo insuficiente. Com mais de 20 crianças na sala, Cássia não tem como impor limites à criança especial por ter de dar atenção a todas as outras. Além disso, para ela, outras dificuldades também deveriam ser levadas em consideração. Há problemas que não se enquadram na Lei da Inclusão, como por exemplo o déficit de atenção e a hiperatividade. Elas costumam ter dificuldade na aprendizagem e não seguem o mesmo ritmo dos outros alunos, o que também demanda uma ajuda extra, que não é ofertada. Educação realmente especial Como previsto por lei, as escolas da rede pública precisam oferecer salas de recurso para auxiliar no desenvolvimento dessas crianças. Funcionam no contraturno e as

A inclusão [...] na prática, ainda é incompleta Cássia santos

professoras precisam ter formação em Educação Especial. Ao contrário da sala de aula regular, o ensino é adaptado às necessidades do aluno em questão, dentro de seus limites. É trabalhado o objetivo e não o conteúdo. Um aluno que está no sétimo ano, por exemplo, mas ainda não se encontra totalmente alfabetizado, segue neste tópico até que seja concluído. Em Santos, a professora da UME Olavo Bilac, Ana Paula Gonçalves Monteiro de Brito, atende, no máximo, seis alunos especiais por dia durante uma hora e meia na sala de recursos. As vagas, limitadas, são insuficientes e alguns ficam sem o atendimento, mesmo que seja um direito previsto por lei. A sala tem um ar lúdico, com alfabeto colorido na parede, jogos por todas as partes e cartazes com informações sobre libras e braile. Ainda mais importante do que o ensino pedagógico, o atendimento educacional especializado funciona como terapia. É nítido no olhar das crianças o prazer ao conseguirem atingir certo objetivo. Ao invés de ficarem em casa, se dispõem a voltar ao colégio para receber esse atendimento. E eles gostam. Sorriem, batem palma e, quando menos expressivos, apenas balançam a cabeça e pedem pelo próximo exercício, em busca de evolução.

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UNIVERSO PARTICULAR No Colégio Ateneu Santista, no bairro Vila Belmiro, há um histórico de inclusões. No 7° ano do Ensino Fundamental II há um aluno com baixa visão e um autista. A rotina escolar difere bastante do que é encontrado nas escolas públicas. Ao chegar, eles são direcionados para a sala especial, onde ficam aos cuidados da professora Thaís Araújo, especializada em Deficiência Intelectual (DI). O ambiente desta sala especial é totalmente aconchegante. As carteiras não ficam totalmente enfileiradas, pois é um lugar destinado a poucos alunos. A intenção da instituição de ensino não é fazer com que essa sala os exclua e sim trazer um ambiente onde os alunos, juntos, aprendam e desenvolvam suas habilidades com maior tranquilidade. O aluno portador do TEA (autismo) chega sempre por volta

de 13 horas e senta em sua carteira cor verde água. Abre sua mochila, tira seu estojo personalizado do Homem de Ferro (desenho que ele mais gosta) e o posiciona em cima da mesa, trocando o objeto de lugar por diversas vezes (característica de crianças autistas). Seu grau de autismo é considerado leve e isso é bem perceptível. Ao decorrer do dia, ele olha diretamente nos olhos da professora - o que não é comum para um autista -, faz perguntas repentinamente e sempre pede desculpas, seja lá o que ele estiver fazendo. Logo em seguida, o aluno com baixa visão adentra a sala e senta na carteira ao lado do colega, e conta a ele que havia praticado natação na noite anterior (ele é bastante tagarela e gosta de fazer perguntas). A dificuldade na hora da lei-

tura é algo que faz com que a educadora dê um pouco mais de atenção a ele no momento de realizar certas atividades. Seu material didático é totalmente adaptado, os livros e cadernos são ampliados em um tamanho consideravelmente grande. Um dos momentos mais interessantes é poder enxergar que a relação entre os dois alunos, que compartilham da mesma sala, é movida por companheirismo e amizade. Eles se ajudam nas tarefas dadas pela professora. É importante lembrar que, para que haja integração na classe, os alunos permanecem nesta sala especial por cerca de duas horas, a partir do momento que entram na escola até o horário do intervalo, às 15h10. Mas, assim que o intervalo chega ao fim, eles vão diretamente para a sala de aula comum, para interagir com o restante dos alunos. Respeito à individualidade Uma sala de aula tem 30 alunos, dispostos em fileiras e uma professora para lidar com todos. Uma outra sala, com carteiras formando um círculo, tem, no máximo, 16 alunos e duas professoras preparadas para atuar nos limites de cada um. Esse é o retrato de diferentes cenários: o ensino tradicional e o construtivista. Conhecida na cidade de Santos como uma referência em inclusão, a Escola do Boqueirão segue a linha construtivista cria-

No colégio Ateneu Santista há cadeirantes, autistas e surdos


Painel sobre diversidade do colégio Ateneu Santista

da pelo psicólogo e biólogo Jean Piaget. Essa filosofia de ensino prioriza que a aprendizagem não seja obtida de forma passiva pelo aluno, pelo contrário, o professor apenas media e cria situações que o ajudam a evoluir dentro de seus limites e sua individualidade, promovendo o desenvolvimento das estruturas de pensamento, raciocínio lógico, julgamento e argumentação. Quando falamos de inclusão, as professoras são orientadas a tratá-los de forma natural, sem o estereótipo de “coitado”. A diretora Silvia Spessoto Moura destaca que os alunos especiais também precisam de limites. Precisam saber o que podem e o que não podem fazer, assim como todas as crianças. As broncas são as mesmas. O que muda é o conteúdo educacional. Se a criança está sendo alfabetizada, ela seguirá nesse tema até que tenha aprendido, mesmo que os colegas já estejam construindo frases mais complexas.

Isso ajuda até mesmo no relacionamento dos colegas com o deficiente. Eles devem perceber que o amigo é igual, só precisa de uma ajuda a mais na hora de aprender. A ideia é que eles criem laços e entendam que cada um tem seu tempo. E isso realmente acontece. Durante a aula de informática, um aluno com Síndrome de Down estava com muitas dúvidas mas, no momento, o professor estava atendendo um outro aluno. Ao perceber o que estava acontecendo, o colega ao lado parou sua atividade e passou a ensinar. É um trabalho de empatia desde a infância. Após anos vivendo sob o estereótipo de “coitadinhos e limitados”, os alunos especiais, junto com suas professoras, vêm tentando provar que a inclusão veio para ajudá-los a superar seus limites. Mas é preciso uma educação pensada para eles e uma preparação desses professores. Vontade, há

A s professoras são orientadas a tratá-los de forma natural Silvia moura

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