Viral 7 Perfil

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REVISTA LABORATÓRIO ED. LABORATÓRIO 07|JUN 2018 REVISTA REVISTA LABORATÓRIO MAIO|2018 | ANO 3 | EDIÇÃO 6 ED. 07|AGO 2018

PERFIL limites

TIA XERETA LINDALVA MATOS LOCALIZA PESSOAS

“mexe a raba, mexe a rabiola” Letras ousadas de funk incomodam feministas e parte da sociedade


EDITORIAL

Para conferir mais sobre esta edição acesse nosso blog viralunisanta.blogspot.com

EXPEDIENTE REVISTA LABORATORIAL DO 4º ANO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL COM ÊNFASE EM JORNALISMO DA UNIVERSIDADE SANTA CECÍLIA (UNISANTA) - AGOSTO 2018 DIRETOR DA FAAC PROF. HUMBERTO IAFULLO CHALLOUB COORDENADOR DE JORNALISMO PROF. ROBSON BASTOS PROFESSORES RESPONSÁVEIS HELDER MARQUES, NARA ASSUNÇÃO E RAQUEL ALVES CAPA FERNANDA OLIVEIRA COSTA FRANCISCO, FOTOGRAFADA POR JOSIANE RODRIGUES PROJETO GRÁFICO ORIGINAL BRUNO LESTUCHI, LUCAS RODRIGUES E MARCELO HERMSDORF

As matérias e artigos contidos nesta publicação são de responsabilidade de seus autores. Portanto, não representam necessariamente a opinião da instituição mantenedora - UNISANTA - Universidade Santa Cecília.

Um refugiado sírio que encontrou em Santos o lugar para reconstruir a vida; um barbeiro cuja paixão por um time de futebol o fez tornar-se seu torcedorsímbolo; um maquiador que, às noites, é exemplo de empoderamento para a comunidade LGBT da Baixada Santista; uma jornalista que dedica a vida a contar a rotina da região para o Brasil; uma dona-de-casa que, sem ganhar nada em troca, já reuniu milhares de pessoas com suas famílias. Conhece alguma dessas pessoas? Talvez não, provavelmente não. E isso é compreensível. Nossas vidas, a cada dia que passa, se aceleram e se prendem a uma rotina que pouco espaço dão às surpresas, à reflexão, à vontade de enriquecer com novas experiências. Vivemos em uma bolha, que se por um lado é confortável, por outro nos impede de ver o quanto nossa região é especial. A edição 7 da revista Viral, voltada a apresentar perfis, é dedicada a alguns desses personagens. Pessoas que, com suas vidas e experiências, têm a capacidade de ensinar a quem quiser aprender princípios tão belos quanto necessários à convivência em sociedade, como amor ao próximo, resiliência, força de vontade, fé e solidariedade. Para contar essas histórias, fomos às ruas e ouvimos essas pessoas, com profissionalismo e muita sensibilidade, com a firme esperança de que, ao terminar de ler as reportagens, algo de positivo tenha sido agregado a cada um de vocês. Aproveitem, e boa leitura!


PERFIS 4

04 LINDALVA MATOS Só preciso de um fio O cachorro surfista 10 PARAFINA O Surfdog 14 LIA SAVARIS O modo de emagrecer de Lia 18 CACIQUE UBIRATÃ Raízes da Educação 24 FERNANDO RUSSEL O melhor hamburguer do Brasil 30 VERENA DE LIMA AMARAL Dançando no escuro 36 MOUAIAD AL CHARFAOUI Odisséia Síria JOANA FERREIRA 40 A casa da mãe Joana 44 MAGENTA A drag que você precisa conhecer 48 ALINE GOMES Lutando no tatame e na vida 52 RAFAEL COSTA Bola da Vez 56 CAROL RODRIGUEZ Desenhando sonhos 60 HILÁRIO JABUCA Amor transformado em tradição 64 PAULO OSHIRO Luto e dor convertidos em amor 68 EDLAINE “LAILA” Eu e Deus, Deus e eu 72 ADAUTO VIEIRA DE MORAES Um cacique ligado em educação

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Criador do melhor hamburguer do Brasil

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Do semáforo para o escritório


À direita, fotos de pessoas localizadas por Lindalva. Ao lado, a vida dela retratada por imagens

ReDA

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Reportagem: JOSIANE RODRIGUES e VITÓRIA APARECIDA Fotografia: AXEL JÚNIOR Diagramação: VITÓRIA APARECIDA portagem: JOSIANE RODRIGUES e VITÓRIA APARECI-


“SÓ PRECISO DE UM FIO” TIA XERETA JÁ ACHOU QUASE 6 MIL PESSOAS

U

m pequeno degrau separa a cozinha do cantinho de trabalho. Entre a geladeira e o armário fica a mesa quadrada de madeira, forrada por um tecido branco e coberta por um plástico, com detalhes em dourado e verde, estampa de tomates e flores vermelhas. Itens comuns de um escritório compõem o local: um notebook, mouse com fio, porta-canetas com uma rosa entalhada, um cinzeiro de vidro redondo, agenda e papéis, contrastam com as xícaras e bules antigos pendurados na parede. Nesse ambiente, a dona de casa Lindalva Matos, 58 anos, dedica horas ininterruptas ao seu trabalho voluntário: promover o reencontro entre parentes separados

por décadas. Ela localiza pessoas desaparecidas há 14 anos e calcula já ter promovido a reaproximação de quase 6 mil pessoas de suas famílias - não só no Brasil, mas também em países como França, Inglaterra, Estados Unidos, Suíça e Holanda. Sua luta diária tem o intuito de recompensar a sensação que ela sentiu ao reencontrar a própria filha, Lilian, uma relação interrompida durante 38 anos. A imagem que resume este importante capítulo da história entre mãe e filha foi a de Lilian chegando no portão da casa de Lindalva. Com lágrimas nos olhos, represadas durante quase quatro décadas, a única frase que a mãe conseguiu dizer antes de dar um longo abraço na filha

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Caso Dana Dana Baranes é uma israelense que se hospedou na casa de Lindalva por duas semanas. Veio para o Brasil em busca da mãe, depois de descobrir que foi vítima de tráfico de crianças. Nessa história aparece uma importante personagem: Arlete Honorina Hilu. Ela tem envolvimento em casos de tráfico de bebês nos anos 1980, incluindo o de Dana. Existe um grupo de jovens israelenses em situação igual a dela, vítimas de Arlete e enviadas para o país do Oriente Médio de maneira legal, mas baseadas em um crime. Quando os pais adotivos pagavam o que acreditavam ser a documentação do envio da criança, estavam pagando o preço pelo roubo da mesma. Na documentação de Dana constava que ela nasceu em Florianópolis e mudou para o Rio de Janeiro logo na infância, mas não há registros desses documentos nos cartórios, porque eles não existem. Dana pode ter nascido em qualquer lugar do país, no ano de 1985 e a mãe, Suely dos Santos, pode nem ter exatamente esse nome. Para Lindalva, o caso é muito difícil de ser solucionado, justamente por conta da falsificação dos documentos. Para Dana, Lindalva é a última esperança. “perança é só o que eu tenho. Tenho saudades dos meus filhos que ficaram lá em Israel, mas a minha vontade de reencontrar minha mãe é muito maior e é isso que me move. Posso voltar para meus filhos a qualquer momento, mas não consigo imaginar o sofrimento da minha mãe em me procurar até hoje e não saber onde estou”.

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e desabar no choro foi: ‘te procurei a minha vida inteira’. A saga teve origem ainda na infância, quando Lindalva mudou-se com os pais do Nordeste para São Paulo. O desejo de conseguir comprar uma casa própria fez a família permanecer na cidade grande vendendo maçãs do amor para sustentar o lar. Aos 16 anos, Lindalva descobriu-se grávida de um rapaz que não a assumia como namorada. Na época era uma ilusão se apaixonar por alguém em uma posição social melhor, cursando faculdade e morando em um bairro nobre da capital paulista. O pai era bravo, do tipo que andava com facão na cintura. Por medo da reação dele, Lindalva escondeu a gravidez, usando roupas mais largas durante toda a gestação. Já que tinha muitos enjoos e era magra, praticamente não ganhou peso e nem teve uma grande barriga. Fazer um aborto nunca passou pela sua cabeça. Ela contou a própria história para o médico responsável pelo seu acompanhamento. Até aquele momento, ele era o único que sabia sobre o bebê e resolveu ajudá-la a superar a agonia: quando a criança nascesse, providenciaria uma família para adotá-la. E assim aconteceu. Ela nunca deveria saber para quem a criança seria doada, sequer o nome dela ou em qual cidade moraria, mas dentro dela sempre existiu o desejo de reencontrar a filha.

Buscando pessoas

A vida seguiu. Uma prima ajudou-a a trabalhar como diarista em casas de família e assim permaneceu por um bom tempo. Com 26 anos de idade, conheceu Pedro Eugênio no happy hour da empresa em que

A israelense Dana Baranes foi vítima de tráfico de crianças. Lindalva agora a auxilia na busca pela família biológica

ele trabalhava. O clima dançante do barzinho fez o casal conversar por pelo menos duas horas e a descoberta de tantos pontos em comum os marcaria de tal forma que rendeu um segundo encontro. Com três meses de namoro, já marcaram o casamento no cartório, que aconteceu meses depois. “Quando ele aceitou se casar comigo, contei a história toda. Não queria enganá-lo e precisava contar, pois em muitos casos os homens desprezam as mulheres por serem mães solteiras”, diz. Da união deles nasceu Tatiane Barbosa, que, quando criança, fez um pedido especial aos pais: um (a) irmão (a). O pedido só viria a se tornar realidade quando ela completou 15 anos, momento em que Lindalva contou-lhe sobre a outra filha, encaminhada para adoção. Mas as coisas só viriam a ficar claras na cabeça de Tatiana mui-


Em 14 anos de voluntariado: 6 mil pessoas l calizadas tos anos depois. Isso porque a notícia que a mãe lhe deu não foi contada por completo. “Na minha cabeça, minha irmã havia morrido quando nasceu”. Mas a “vocação” de Lindalva para ligar pessoas não começou com o resgate da própria filha, mas com uma busca pelas tias, irmãs de sua mãe, que haviam se perdido de vista há mais de 60 anos. Com a morte do pai, a mãe de Lindalva se sentia cada vez mais triste e solitária. Procurar as tias parecia mais fácil que achar a própria filha, já que tinha os nomes delas e não o da criança doada. Localizou as quatro tias desaparecidas, duas já haviam falecido, mas através de contato com seus primos conseguiu se reaproximar do restante da família. A mãe dela foi sozinha encontrar as tias e faleceu seis meses depois do reencontro.

Tia Xereta

Na internet, Lindalva é conhecida por “Tia Xereta”, já que no início dos seus trabalhos, xeretava tudo até encontrar o que queria. “Eu só preciso de um fio”, diz. Ela tem uma rede de ajudantes

Quando não consegue encontrar uma pessoa, recorre sempre à amiga conhecida como “Baixotinha”. É ela quem levanta os dados mais difíceis de serem localizados, mas só é contatada em casos de extrema urgência. Outros dois voluntários a auxiliam de outros lugares do Brasil. Eles têm as senhas das três páginas de Facebook que Lindalva criou para facilitar as buscas. Estão autorizados até a responder em nome dela, pois são pessoas de extrema confiança. “Eu não revelo o nome de ninguém. Nenhuma história particular sai daqui. É como se você fosse um padre. Não faço nada que prejudique a família de alguém”, diz Lindalva. Ela e o marido moram no Jardim Itapeva, na capital paulista, a 450 metros do cemitério Campo Grande, um dos mais antigos da cidade de São Paulo. Essa proximidade com a morte aparece nos trabalhos de Lindalva. Em muitas situações, localiza os desaparecidos, mas já estão falecidos. Nessas horas, precisa ter jogo de cintura para dar a notícia para o parente que está a procura de

+ de 3 mil seguidores na página "Lindalva Matos Voluntária"

Reaproximou famílias na França, Suíça, Holanda, Inglaterra e Estados Unidos

Gasto mensal de R$1.200,00 entre internet, telefonemas e visitas

As buscas começam às 8 da manhã e não tem hora para terminar

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informações do seu ente querido há tantos anos e tem de lidar com a mistura das sensações de encontros e perdas. A pessoa vive o luto naquele momento, mesmo após 20 anos de morte. Lindalva não aceita perder casos e esse tipo de situação é a que mais lhe entristece. Intensa e determinada, não consegue descansar até conseguir o que deseja. “Ela nunca se deixa abater por nenhuma dificuldade”, diz Pedro sobre a esposa. Durante os 32 anos de casamento, ele se mostrou um grande parceiro. Não se considera um voluntário, e sim um auxiliar, porque não participa do dia a dia das buscas por causa do trabalho, mas proporciona recursos para que ela possa fazer este trabalho e a acompanha a campo em casos mais complexos. Encontra satisfação em cada caso que ajuda a encerrar. Pedro estava ao lado de Lindalva quando o caso da procura dela pela filha chegou ao fim. “Ela parecia ter renascido de tanta alegria”, lembra. A esposa

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é grata não somente à parceria dele, mas a toda a ajuda e suporte que ele lhe oferece. “Além de me dar um nome, ele mudou meu destino”. Quando está em casa, sua rotina costuma começar às 8h da manhã, mas não tem hora para acabar, com ela se dividindo entre as buscas e a arrumação da casa. “Tem vezes que desligo tudo e vou dormir. Uma vez eu não conseguia achar uma família e após uma boa noite de sono, achei logo que acordei. Gente que não se via há mais de 50 anos!, pra mim isso é uma vitória”, diz.

Método de busca

Lindalva desenvolveu um método próprio de cruzamento de informações para achar os desaparecidos. No procedimento de busca, a primeira informação que pede é o nome completo da mãe da pessoa. Garante que, caso a pessoa saiba a data de nascimento, a localização pode ser feita em 5 minutos. Mas mantém segredo sobre o “como fazer”, porque acredita

As pessoas me falam: ‘você não é rica porque não quer’. Eu vou cobrar pra eles encontrarem suas raízes? Isso seria muito injusto Lindalva Matos

Tia Xereta, como é conhecida na internet, diz que só quer retribuir tudo de bom que o Universo lhe deu


que tem responsabilidade com essas informações pessoais e que pode ser perigoso divulgar as ferramentas que utiliza. Pessoas que procuram dados ou documentos de alguém podem querer o mal para o pesquisado, e não ser realmente da família buscando reencontrar um parente. Foi o que aconteceu quando Lindalva recebeu uma mensagem de um usuário no Facebook. O indivíduo iniciou a conversa dizendo que procurava por uma familiar. Depois pediu informações de outro homem. Quando fez o pedido de uma terceira pessoa, o sinal de alerta dela acendeu. Ao levantar tal informação, verificou que o pesquisado era um policial militar. Resolveu fazer o caminho inverso e pesquisar quem ele era e descobriu que o homem fazia parte de uma facção criminosa no Rio de Janeiro. Imediatamente suspendeu a busca, deletou-o e o bloqueou da rede social. Ela colabora com investigações da polícia quando solicitada, mas não interfere no trabalho realizado pelos agentes de segurança. Já pensou, inclusive, em prestar concurso para compolícia, mas acha que não teriacondições psicológicas de lidar com a pressão do serviço. Há aproximadamente um mês, Lindalva sentiu o baque de uma perda entre seus informantes, o amigo coronel Marcus Roberto Claudino - que comandava o programa SOS Desaparecidos, da Polícia Militar de Santa Catarina, e que desde 2012 já proporcionou 726 reencontros de pessoas desaparecidas. Antes, ela mesma ligava para quem foi localizado, e, em muitas situações, teve que passar seus dados pessoais para ga-

rantir que não se tratava de um trote. Mas com o aumento na quantidade de atendimentos prestados, limita-se a passar o telefone e o endereço da pessoa que ela encontrou para aquela que está à procura. “Agora não tenho tempo e nem dinheiro para tanta ligação. É um trabalho gratuito, voluntário, e minha conta de telefone vem alta e minha internet também”, diz. Quando encontra alguém que reside em São Paulo, ela e o marido se deslocam e avisam pessoalmente que encontraram sua família. Nada disso é cobrado de quem entra em contato com Lindalva. Mas se tem que ir até uma cidade distante, o interessado arca com a passagem de ida e volta dela. A pergunta que mais costuma ouvir é o porquê de não cobrar pelo que faz. “Estou devolvendo pro universo tudo de bom que ele me deu. Eu só falava que não queria morrer sem ver minha filha e o dono do Universo me deu isso”, diz. O sustento da casa vem do serviço do marido, que é funcionário da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) há anos. Calculam um gasto mensal de R$ 1.200 com a atividade de Lindalva. Quando ela trabalhava, metade do salário era destinado às buscas. “As pessoas me falam: ‘você não é rica porque não quer’. Mas muitas dessas crianças que desapareceram e que eu ajudo a reencontrar foram roubadas e vendidas. Eu vou cobrar pra eles encontrarem suas raízes? Isso seria muito injusto”, diz. Com a aposentadoria do esposo se aproximando, Lindalva imagina que deve se afastar do trabalho voluntário em breve

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Caso Rosa Outra história que Lindalva ajudou a mudar o destino foi a de Rosa, uma mulher em situação de rua que tinha sido deixada numa instituição para menores quando criança e não sabia onde sua família poderia estar. Ela foi largada lá sabendo que a mãe tinha morrido e que o pai não tinha condições de ficar com a sua guarda. Infelizmente, depois de muita pesquisa, Lindalva telefonaria para avisar Rosa que o pai havia falecido há algum tempo. Pediu para que ela anotasse o número do atestado de óbito para saber detalhes de onde o corpo estaria enterrado caso quisesse visitar o túmulo do patriarca da família. Antes de desligar, porém, fez uma última pergunta: “Por que você quer conhecer seu pai e não sua mãe?”. A resposta do outro lado da linha era de que não havia interesse em conhecer a mãe porque ela tinha morrido quando Rosa nasceu. A questão é que a mãe estava viva. Graças a Lindalva, Rosa, que antes mandava rezar missa para a alma da mãe falecida, pode conviver com a própria genitora por mais cinco anos antes que ela realmente falecesse e ainda teve a felicidade de descobrir um irmão. “Isso é o que me move. Você percebe o quanto muda a vida dos outros e sabe que realmente está cumprindo o que veio fazer na Terra e deixando sua marca”, diz com os olhos cheios de lágrimas e com o sorriso largo.

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Texto: BEATRIZ VIANA Foto: BEATRIZ PEREIRA Edição: MARCEL CALDEIRA

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SURFDOG PARAFINA, UM SURFISTA BOM PRA CACHORRO

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eus amigos me chamam de Fina. Nativo de Santos, já morei em todo tipo de buraco, até mesmo numa toca cercada de gatos. Cheguei a encostar um tempo no posto dos Bombeiros, mas hoje eu finalmente tô tranquilo, morando com uma família que me traz paz. Tô ligado, muitos não tiveram a mesma sorte que eu. Nessa mesma praia eu já vi de tudo: antes mesmo dessas pistas de skate, aqui sempre foi movimentado. Os gatos cercavam a área, marcando território e afastando os animas de fora. Os cães mais espertos se protegiam, esperando a poeira baixar pra dominar a área, como eu fiz. Na maioria das vezes, a gente se juntava e revirava o lixo atrás de um resto de comida, pelo menos pra forrar o estômago e passar mais uma noite. De vez em quando pintava uma salsicha de graça nos fundos do mercado, mas essa regalia nem todos tinham. Todos nós tentávamos sobreviver do nosso jeito. Saí das ruas e fui acolhido no Posto dos Bombeiros na praia. Quando morei com eles, percebi que a vida tinha mais cores do que sempre enxerguei. Foi ali que descobri minha vocação: eu queria ser atleta. Saía às seis da manhã pra correr com os fardados nas rotinas de treino. Subia e descia morro, corria bastante e depois nadava,

puxando o pelotão até o fim do percurso. Decidi focar na natação, percebi como o mar mexia comigo, me atraía de um jeito que não sei explicar até hoje. Foi por isso que quando vi a primeira chance, eu subi numa prancha e não desgrudei dela nunca mais – feito parafina mesmo. Como bom virginiano, eu aprendo fácil, e por isso mergulhei de cabeça no surfe. Eu sabia que quando entrava no mar, o mundo que eu conhecia parecia menos solitário. Todos me olhavam, ficavam por perto e até me tratavam como gente. O mar foi meu terceiro lar. Os sonhos só aumentavam, mas eu não podia fazer isso sozinho. Foi aí que eu comecei a acompanhar o professor Augusto. Observei as aulas de surfe e sempre meti o focinho no meio, mesmo sem ter certeza de que ele ia me aceitar. Eu esperava por ele na vaga de estacionamento desde cedo, acompanhava as aulas e tentei de tudo pra começar uma amizade. Quando subi na prancha com ele, eu nunca mais quis surfar com outro humano. Foi o Professor quem me deu todos os meus sonhos: uma carreira de sucesso, um lar e uma família. Quando ele me acolheu, nos tornamos parceiros em tudo: dividimos a prancha, o sofá, o carro e até o skate. Surfamos juntos pelas manhãs, passeamos juntos às tardes e dormimos juntos todas as noites.

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O mural desenhado pelo artista, , mostra parafina em sua pose caracteristica

A melhor coisa nessa parceria é que ele me entende. Não conversamos sobre o passado, mas entendemos que ambos temos histórias para contar, e é isso que importa. Eu não sou de falar muito, e pra ele tá tudo bem. Ele não quis me mudar, ou “adestrar”, como os humanos falam. Começamos a trabalhar juntos nas aulas seguindo o jeito um do outro, respeitando nossos limites e estilos de vida. Hoje, participando de campeonatos profissionais, eu me lembro de tudo que passei e entendo que tudo teve um motivo. Viajamos juntos na edição de 2016 do California Surf Dog, evento mundial de surfe canino em Miami, quando venci o prêmio de cão estreante. Voltamos para lá em 2017 e conquistamos o segundo lugar no Stand Up Paddle e quinto na categoria individual – ambas profissionais. Enfim, onde tiver surfe, a gente vai estar – já estamos pensando na competição deste ano e em mais umas viagens pra

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melhorar a nossa performance. Também aprendi a cuidar melhor da saúde. Meu médico diz que eu tenho físico de atleta e vou poder continuar no surfe por muito tempo, além dos meus 10 anos de vida. Ele me indicou uma daquelas dietas bem fitness, equilibradas pra atletas, com comida humana de qualidade. Pra ele, eu sou como o “Neymar do surfe”, seja lá o que isso quer dizer. Mas ele me disse uma coisa que entendi bem e guardo pra sempre: “muitos cães não tiveram oportunidade”. Realmente, muitos não tiveram. É difícil ser atleta neste país, especialmente se você é um cachorro. No meu caso, eu fui contra todas as marés e agarrei as oportunidades. Muitos cães não conseguem sair da rua, porque uma vez estando lá, ninguém olha pra baixo. Muitos humanos só focam no que está na altura do focinho deles. Faz sete anos que tô nessa parada de surfe. É minha razão

É difícil ser atleta neste país, especialmente se você é um cachorro Parafina de viver, sabe? Eu nasci pra isso, pode perguntar pra qualquer um. Não tem nenhum pico na Baixada que eu não tenha surfado, e sonho em viajar pra tantos outros quanto puder. O esporte me tirou da rua, e eu sou grato todos os dias. Sigo vendo sempre o lado bom da vida, com a brisa do mar balançando as orelhas – e todos esses sonhos, um dia, serão mais histórias pra contar.


NAS PALAVRAS DO MESTRE Augusto Martins foi o grande responsável pela realização dos sonhos do Parafina. Tanto como professor de surfe quanto como um verdadeiro pai, ele garantiu que o cãozinho Parafina se tornasse o número um no Surf Dog na Baixada Santista. “Não fui eu que adotei o Parafina, foi ele quem me adotou”, afirma Augusto. O cãozinho esperava por ele todos os dias, perto de sua vaga de estacionamento, para irem juntos surfar. Mesmo praticando na prancha de outras pessoas, até mesmo do grande surfista Picuruta Salazar, o Parafina escolheu a prancha de Augusto e nela continua firme, mesmo sete anos depois das primeiras ondas. A sintonia entre os dois é tão nítida que é comum encontrá-los caminhando no mesmo ritmo ao entrarem na água, minutos antes de começarem sua rotina de surfe. Mesmo parecendo tímido, o cão surfista é cercado de boas amizades “O Parafina é tranquilo, tem muitos amigos em todo lugar”, diz o dono. Em poucos minutos de conversa no píer do Emissário Submarino de Santos, a casa da Escolinha de Surf Picuruta Salazar, somos surpreendidos por vários dos amigos de Parafina - sejam eles humanos ou caninos.

Ele deita na grama e observa as conversas ao seu redor sem interferir, no jeitinho pacato de quem está sempre mais disposto a ouvir do que falar. O médico veterinário Marcelo Bauer, especialista em medicina veterinária esportiva e geriátrica, atende o Parafina há três anos em sua clínica em São Paulo. Com acompanhamento constante, ele afirma que o paciente está em perfeito estado de saúde e com longevidade esportiva garantida, mesmo estando em idade avançada, já com 10 anos. “O Parafina conta com alimentação natural, muito mais funcional que ração e uma boa prática de esportes. Ele é um cão sênior com boa performance e musculatura, além de muito alegre. Ele foi feito pro surfe”. Para o veterinário, ele já tinha aptidão para o esporte, o que contribui com seu preparo: “Cada cão tem uma vocação genética. Somada com um ambiente propício, ele tem maior chance de se desenvolver”. Augusto garantiu que o Parafina tivesse todas as oportunidades. Agora, a dupla espera viajar para o Havaí em breve para aprimorar o surfe em família

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O MODO DE EMAGRECER DE LIA SAVARIS CRIADORA DE UM PROJETO PARA MULHERES, LIA ENSINA MÃES A PRATICAR HÁBITOS SAUDÁVEIS

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ara a mulherada que mora em Santos e pretende emagrecer de forma saudável, aqui vai uma dica: o Projeto Foca na Balança, de Lia Savaris. A história dela é muito parecida com a de muitas mães: vida corrida para cuidar de casa e dos filhos e má alimentação. Com isso, ela passou a engordar, engordar e engordar, deixando por último os seus objetivos de vida. A diferença é que Lia percebeu isso e quis mudar. Tudo teve início na sua segunda gravidez, quando ela chegou a pesar cerca de 80 quilos. Mesmo após o parto, Lia continuou adquirindo peso e o desejo de emagrecer só foi aumentando. Por já ter sido atleta e saber como funcionava um processo de emagrecimento, Lia estava disposta a emagrecer sozinha, sem auxílio de profissionais da

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área médica. Todos os dias ela acordava bem cedo e ia em direção à praia. A meta estabelecida por ela, era praticar exercícios ao menos 1 hora por dia, todos os dias da semana. Trocava o elevador por escadas, caminhava pela areia da praia, pedalava pela ciclovia e até descia do ônibus alguns pontos antes, hábitos aparentemente comuns, mas que fizeram e fazem toda a diferença. Lia decidiu postar nas suas redes sociais todo o processo de perda de peso.

O desejo pela mudança

As postagens com vídeos e fotos de seus treinos fizeram com que Lia fosse ganhando uma multidão de mamães admiradoras, mulheres que também perceberam ser capazes de ter uma qualidade de vida melhor, mesmo com uma rotina corrida. Com apenas quatro meses de treinos diários intensos, Lia

emagreceu 15 quilos. Com isso, suas seguidoras começaram a emagrecer também. Lia conseguiu reunir uma verdadeira multidão para se exercitar na praia. O interesse foi tão grande que houve dias em que 170 mulheres acompanharam Lia em suas caminhadas. Por ser formada em Educação Física e pós-graduada em treinamento desportivo, surgiram muitos pedidos de atendimento personalizado e treinos funcionais ao ar livre. Lia percebeu que seu principal objetivo virou o objetivo de outras pessoas também. Hoje, o projeto Foca na Balança, nome escolhido por ela, possui mais de 21 mil seguidores no Facebook e mais de 16 mil no Instagram. Aplicando treinos funcionais, com percursos e atividades que pedem bastante energia do corpo, Lia atende mulheres de 23 a 70 anos.


Texto, foto e edição: BRUNO ALTHMANN, LARISSA ARRUDA E RAQUEL PINHEIRO

Lia emagreceu 15 quilos em apenas quatro meses e agora dá aula de educação física na praia de Santos

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Os alunos fazem duas horas de aulas Ă s segundas e quartas-feiras

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Além do emagrecimento, os exercícios ajudam a melhorar o estado de espírito das alunas

Um exemplo dessas seguidoras é a dona Lygia, de 69 anos, que mesmo não fazendo exatamente como a personal ensina, procurava mostrar o seu melhor desempenho. As aulas acontecem todas as segundas e quartas-feiras em dois horários, na praia do Canal 3, ao preço de R$ 80 mensais. Com um totalmente voltado para mulheres, Lia também atende mães e crianças. Segundo ela, mulheres são a base de toda a criação dentro da estrutura familiar, ou seja, se a mãe estiver bem estruturada e a criança, bem assessorada, tudo flui. A escolha foi especificamente por isso, por destacar a beleza e o bem-estar da mulher, fazendo com que ela sinta vontade de ter uma vida mais saudável, Lia considera que esse seja o seu grande diferencial.

Sabemos que, muitas vezes, a mulher tem dificuldade em perder peso, mas Lia deixa claro: “Precisamos saber o que significa, para ela, emagrecer. Ela precisa de um objetivo para seguir.” Outro conselho dado pela personal trainer, é para que a mulher olhe somente para si, sem fazer comparações. O ideal é que você busque e seja a sua melhor versão. Além de dar aulas funcionais, Lia é life coach e realiza palestras motivacionais sobre bem-estar e a ciência da atividade física. Um dos temas mais pedidos em suas apresentações gira em torno do apoio e suporte de um sonho: seja ele emagrecer ou mudar de vida. Por fim, Lia recorda as superações de suas “focadas” (como gostam de ser chamadas) e faz questão de contar um caso de

uma aluna de 60 anos que tinha o sonho de correr a prova dos 10 km da A Tribuna. “Ela achava que não conseguiria, mas no ano passado fizemos a prova juntas e ela cruzou a linha de chegada chorando. Foi emocionante.” E são por momentos como esse, que Lia destaca a importância da saúde da mulher, mãe de família, que muitas vezes acredita não conseguir mudar seus hábitos diários, mas que pode sim, independentemente da idade, ter uma vida saudável

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Texto, foto e edição: ELIANA GRECO, LUCAS CAMPOS E MARIANA SIMÕES

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VALORES

NA PALMA DA MÃO CACIQUE, PROFESSOR E COORDENADOR PEDAGÓGICO. AS MULTIFUNÇÕES DE UBIRATÃ REFLETEM SUA ALMA FORTE E ILUMINADA

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ndia gostar barulho// Eu sou um índia”. “Índio fazer barulho// Índio ter seu orgulho// Índio quer apito// Mas também sabe gritar”. Estes são trechos de músicas que falam sobre a cultura indígena para crianças, cantadas por Eliana e Xuxa, respectivamente. O índio é sempre lembrado como o personagem estereotipado que não sabe flexionar os verbos e não atua em outro campo a não ser na pesca e na colheita. Mas lugar de índio não é só na mata. Ser e ter orgulho de ser índio não significa se isolar da sociedade e não aprender a língua oficial do país onde se vive. Índio pode ser o que quiser.

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[...] no início da noite, volto à aldeia para dormir com minha família

Cacique de suu aldeia, Ubiratã sai da tribo para lutar pela educação

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Ubiratã Gomes, 41 anos, cacique Tupi. Nascido e criado na Aldeia Bananal, em meio a uma extensa área demarcada da Mata Atlântica, com 480 hectares, na encosta da serra e longe do mar da cidade de Peruíbe, sai de casa todos os dias para batalhar por um direito que todos têm: a educação. Acorda por volta das 4h10 da manhã, caminha quatro quilômetros na mata até chegar ao ponto do ônibus. Precisa tomar duas conduções até a Diretoria Estadual de Ensino do Litoral – Região São Vicente, onde é professor-coordenador do núcleo pedagógico. Acostumado a viver de caça e pesca, filho do cacique da comunidade, Ubiratã não seria o primeiro na linha de sucessão a se tornar líder da tribo. Mas, com a morte de seu irmão mais velho em 2003, teve de assumir esse papel, o de líder político de toda uma comunidade. Ele já dava aulas quando foi convidado, em 2003, a estudar na Universidade de São Paulo (USP), por uma iniciativa do governo, que formou 80 professores indígenas em todo o estado. O desejo de mostrar que os índios podem avançar educacionalmente é grande. Por isso, mesmo que o salário não valha o que gasta para se transportar até a escola, o cacique não desanima. Ele quer ajudar a tirar seu povo da marginalização social. Hoje, são aproximadamente


300 povos indígenas em todo o território nacional, mas não há um planejamento educacional apropriado. “Acredito que seja como uma política do governo. É um currículo oculto, onde está a cultura afro e indígena”, afirma o cacique Ubiratã. E essa é sua luta diária: tirá-los da escuridão. Só em São Vicente são oito escolas indígenas e sete salas vinculadas, ou seja, salas de aula em aldeias, até mesmo em outras cidades, que se vinculam a outras comunidades por não ter estrutura necessária para abrigar uma escola completa. Sua primeira luta foi conseguir tornar o calendário dessas escolas um só. Todos são tupis e guaranis, que se assemelham na língua-mãe, que leva o mesmo nome das tribos. Mesmo tendo uma cultura tão semelhante, cada um possuía um calendário. E o cacique conseguiu unificar, fazendo com que a diretoria conseguisse acompanhar o desenvolvimento das aldeias. A ideia do cacique não é, nem nunca foi, excluir as raízes. Mas, no século XXI, convenhamos, não é bom estar alheio ao ensino que é aplicado fora das aldeias. Nas salas de aula, a cultura indígena é ensinada, priorizando a natureza, seguindo as fases da lua que regem a vida dos povos indígenas, mas aplicando esses saberes nas disci-

plinas do homem branco. “Não adianta eu falar que vamos ensinar só a pedagogia indígena, porque aí não precisamos de escola. É preciso um norteador do conhecimento que alinhe esses métodos”, conta. E todo esse ideal é observado na imagem que o cacique passa. Mesmo estando com seus adereços indígenas e suas tatuagens, Ubiratã tem celular, usa relógio e, em um dia mais frio, usa cachecol. Seu português é perfeito, ao contrário do estereótipo comum dos índios, mesmo que dentro da tribo ainda se fale o tupi. Suas raízes não saíram de sua essência, mas ele se adaptou ao que o Brasil é hoje. Vida de cacique O cacique é líder da aldeia. Com um porte altivo, de peito estufado, mas fala mansa e bastante disposto a escutar e ajudar, Ubiratã tem um senso de equilíbrio e humildade que é raro entre os líderes não-indígenas. “O líder nunca pensa nele. É o coletivo, os outros”. Mesmo com o trabalho fora de seu povo, ele não pode deixar de lado a sua gente e suas obrigações – na verdade, ele não enxerga dessa forma, seus trabalhos como cacique fazem parte do todo, da vida em comunida-

de, e não meros deveres. Na sua ausência durante as horas de trabalho, o irmão de Ubiratã, que também é cacique, exerce o papel de líder. Mas a modernidade facilitou esse trabalho as atividades longe da aldeia. Com apenas um toque no celular, é possível saber o que está acontecendo no meio da Mata Atlântica e, se preciso, fornecer sua ajuda, mesmo que a 70 quilômetros de distância. Inclusive, a tecnologia é uma das lutas de vida atuais do cacique. A internet está chegando aos poucos nas aldeias indígenas e Ubiratã luta para que, num futuro próximo, tenha internet por fibra ótica. Enquanto sonha com o acesso democrático à tecnologia, ele usa a rede via satélite para informatizar os tupis. É esse espírito de liderança e essa vontade de ajudar que leva todos os dias para a diretoria de educação da cidade. O cacique da aldeia saiu de seus limites territoriais para continuar ajudando as 20 famílias que vivem na Aldeia Bananais.

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l pessoa rquivo erra (a du Gu Foto: E Ele leva na pele marcas de tradição e o amor pelo pai, já falecido

O líder nunca pensa nele. É o coletivo, os outros

Awá M’Baretédjú O cacique é o perfeito exemplo de que é possível se adaptar ao “mundo dos brancos” sem abrir mão das tradições e crenças indígenas. Afinal, nas palavras do próprio Ubiratã, “a miscigenação não é ruim, apesar das pessoas no passado terem acreditado nisso. Não existe cultura 100% pura”. Casado com Debora Dionisio, mulher não-indígena que conheceu em um congresso da Assembleia Legislativa em São Paulo há 11 anos, ele continua firme em suas tradições. É um profundo conhecedor das ervas. Identifica de longe as que são capazes de curar as mais diversas enfermidades. Até mesmo no jardim em frente à Diretoria de São Vicente o cacique mostra três tipos diferentes de plantas e comenta sobre seus poderes terapêuticos. Desde uma que cura inflamações até outra, indicada para o pós-parto. Ele leva também, em sua pele, as tradições de seu povo. No braço esquerdo, a tatuagem tri-

bal de malha de uma cobra. O desenho é o mesmo usado nas festividades, nas quais pintam a pele com tinta de jenipapo e permanecem com o desenho por, mais ou menos, 15 dias. Ubiratã quis eternizar esse desenho. Em seu braço direito, outro símbolo. O traço que mistura as figuras de uma onça e uma tartaruga. O significado revela um embate. A onça representa a agressividade, enquanto a tartaruga simboliza a calmaria. Grandes qualidades, se usadas em perfeito equilíbrio, como desenho. Perfeitos para um homem com espírito de liderança correndo nas veias. Nas costas, a imagem do pai, o cacique João Gomes. O cocar usado pelo cacique fora da aldeia também é um símbolo. Na tradição dos tupis, o adereço simboliza o que a pessoa é dentro da comunidade, de acordo com seu tamanho e penas usadas. No caso de Ubiratã, a pena que mescla o vermelho e o azul é de papagaio, e as alvinegras de gavião. Conforme as tradições indígenas, além do nome registrado em cartório, todos recebem um segundo nome, de natureza espiritual, no batismo indígena feito no início do ano – um dos rituais que perdura há séculos. O nome de Ubiratã é Awá M’Baretédjú, ou seja, homem forte e de aura iluminada. Esse é o nome que simboliza sua alma, afinal, na cultura indígena, esse nome é o responsável por reestabelecer as pessoas quando adoecem. E é para esse espírito indígena que o cacique Ubiratã volta ao fim do expediente. “Trabalho o dia todo na cidade ao lado do homem branco, mas no início da noite, volto à aldeia para dormir com minha família”

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Dançando no escuro A A ESTUDANTE VERENA DE LIMA AMARAL, DE 28 ANOS, CONSIDERA QUE SUA VIDA SÓ GANHOU SENTIDO APÓS A DIABETES LHE TIRAR A VISÃO HÁ SETE ANOS

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parentemente, movimentos muito simples. Sentar devagar, calçar os patins, amarrar os cadarços, ficar de pé e se equilibrar. Há poucos meses, Verena de Lima Amaral, de 28 anos, fez a escolha de vencer um desafio: aprender a andar (e dançar!) sobre rodinhas. “Comprei estes patins clássicos, de quatro rodas. É bem mais difícil com eles do que com os rollers, os tradicionais, que tem rodinhas em linha. Naqueles, eu consigo ficar parada de pé, equilibrada. Nesse é como se ficasse... escorregando mesmo. O tempo todo. Não tem estabilidade”. Com quase 30, “velha”, como ela mesma se define, Verena lutou contra a própria vergonha para realizar um sonho de infância, se tornar bailarina. Como ainda não encontrou uma escola de balé adequada a ela em Santos, vai treinando sozinha nos patins. “Tem que saber cair. Fiquei no YouTube escutando dicas para aprendendo. Treinava no tapete. Não pode cair pra trás. Sentiu que vai cair, cai pra frente e se enrola”. No entanto, além da dificuldade do equilíbrio, a estudante de Jornalismo da Universidade Católica de Santos (UniSantos) tem um agravante: ela é cega. “É totalmente pior sem enxergar. Você sem enxergar já tem uma predisposição a inclinar o corpo de alguma forma, como autoproteção. Mas com os patins... Seus pés comandam o corpo todo. São detalhes que te mantêm em pé”.


Texto: ISABEL FRANSON Foto: BEATRIZ ROSA Diagramação: ISABELLA CHIARADIA

Mesmo surrados, os patins de Verena fazem o papel das sapatilhas de balé na vida dela

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Mais do que com os olhos, Verena enxerga com o coração Verena nasceu com visão normal, mas sempre soube que poderia ficar cega por conta da diabete descoberta aos 8 anos, e durante algum tempo mal tratada e subestimada. “Nunca tive medo. Até o dia que aconteceu. Os médicos me diziam tudo que poderia acontecer. Até coisas que nunca se tornaram realidade”. Quando a diabete se agravou, o sonho do balé foi dobrado e guardado, como uma bailarina de brinquedo numa caixinha de joias. “Durante a adolescência não pratiquei esportes. A falta de atividade física agravou ainda mais a doença, que já me impedia de fazer as coisas. Foi um ciclo”. Juventude e cegueira Aos 18 anos, em 2008, Verena ingressou no curso de Jornalismo na UniSantos. “Tinha vontade de entender e conhecer mais o mundo. Escolhi no Jornalismo pra me proporcionar isso”. No ano seguinte, a primeira perda: já não enxergava com o olho direito. E dos 19 aos 21 anos, o problema atingiu o olho esquerdo, que foi agravando até tirar-lhe completamente a visão. “Só vejo a claridade. Só sei se está dia ou noite, luz acesa ou apagada”. No último ano da faculdade, quando constatou perda completa da visão, a jovem ainda se dedicou a cumprir quase todas as disciplinas do curso, deixando em aberto apenas o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). “Exigia muita leitura, escrita, pesquisa... Não tinha como continuar”. Por dois anos, Verena ficou reclusa em casa, tentando entender o que seria da vida a partir dali. Sentiu-se criança novamente, dependente, e sem chave do portão da própria casa. “Antes, eu queria fazer uma coisa, ia lá e fazia. Quando fiquei cega, tudo isso mudou”.

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Fé e um novo rumo Apesar de morar com a mãe e o irmão três anos mais velho, Rafael, Verena tentou demonstrar sobriedade em meio ao caos. “Foi incrível a força que ela teve. Muitas vezes chorei escondido pra não assustá-la”, lembra a mãe, Selma de Lima Amaral. Pela televisão, Verena encontrou um caminho novo. “Liguei a TV para escutar a pregação de algumas igrejas. Com isso, comecei a refletir”. A mãe, que sempre foi evangélica, comemorou a mudança. “Antes parecia que ela não dava muita atenção pra Deus. Foi o primeiro milagre que aconteceu com a cegueira dela”. Novo Lar O período em casa chegou ao fim em maio de 2014, com um telefonema. “Ligaram para informar que ela tinha conquistado uma vaga como aluna no Lar das Moças Cegas”, lembra a mãe. Verena então mergulhou de cabeça nas aulas, pensando em voltar para a faculdade, porque sentia que precisava fechar esse ciclo. “Estudei Informática, orientação e mobilidade, e cuidados com a casa, aprendi tudo do zero, me adaptando à uma nova vida”. Dentre os aprendizados mais marcantes, está a rastreabilidade ou, em outras palavras, o uso da bengala. “Era o que mais sentia vontade de aprender. Senti como se tivesse recuperado minha independência”. Com a intenção de voltar rapidamente ao mercado de trabalho, Verena também se dedicou ao Braile e à informática. “Tudo na informática do cego é a audição. Tem várias vozes pra cada função. Você não pode falar junto. Tem de parar, ouvir, executar o comando... E foi bom, me acalmou. No começo, é terrível”. Em contato com outros deficientes visuais, a jovem se descobriu explorando talentos inusitados. “Música... Nunca na vida imaginei que


Verena conta com a ajuda da bailarina e professora Giovana Maselli para o primeiro coque de sua carreira no balé

um dia faria parte de um coral. Apesar de não ter talento nato, aprendi bastante. Tive aula de técnicas vocais e fiz terapia com fonoaudiólogo”. Emprego e faculdade Em meio a tantas atividades, Verena mal reparava no relógio. Quando se deu conta, frequentando o LMC havia um ano e meio, já ingressava no curso profissionalizante de telefonia para cegos. “Todo ano a casa forma quatro pessoas. Mas antes que acabasse o curso, já abriu vaga de telefonista e eu entrei. Em outubro próximo, completo três anos trabalhando”. Sentindo-se preparada, Verena voltou à universidade, em fevereiro de 2018 e retomou o TCC com uma nova temática para sua monografia. “Estou fazendo uma análise de discurso da imprensa sobre as campanhas politicas do Enéas Carneiro. A meu ver, a imprensa mui-

tas vezes é usada para manipulação. Distorce o que foi feito ou dito em favor de alguma ideologia”. A escolha tem a ver com as habilidades recém-aprimoradas. “Dois anos atrás, eu navegava no YouTube quando pulou para um vídeo dele. Parei para ouvir. Era uma entrevista de uma hora. Não parecia a mesma pessoa do horário político de 15 segundos”. Até então, a imagem que tinha do político, canditado à Presidência da Repúlica em 1989, 1994, 1998, 2002 e 2006, era a que havia visto quando adolescente. “Aquela barba... jeito duro de falar. Antes de ficar cega, nunca tinha realmente escutado ou prestado atenção ao que ele dizia”. O projeto despertou novos sonhos profissionais. “O TCC fez nascer uma vontade de trabalhar com pesquisa. Estudar o interesse da mídia com determinadas notícias ou situações. Hoje leio uma reportagem e penso ‘mas o

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“Só vejo a claridade. Só sei se está dia ou noite, luz acesa ou apagada” 34


que esse jornal quer com isso?’. Penso em trabalhar fazendo uma leitura da própria imprensa”. Enquanto a graduação ainda não se completa, Verena divide o tempo entre o Lar e as outras atividades. “Pratico musculação, participo de eventos beneficentes relacionados a deficiência... Ando mais de ônibus hoje do que quando enxergava”. Sobre a vaidade, Verena ri e diz que só aumentou. “Tô aqui maquiada. Consigo fazer sozinha as coisas simples. Só tenho medo de errar o blush, o blush geralmente é minha mãe que passa. E o rímel eu mesma passo... Batom também. Tudo. Perfume, hidratante”. Como toda mulher, a jovem tem um fraco por compras. “Me chamam de gastadeira. De vez em quando vou com a minha mãe, mas na maioria das vezes estou sozinha. Acabei de descobrir uma loja de biquíni e roupa de ginástica perto do ponto de ônibus da praia, ali no José Menino”. Mesmo sem enxergar as cores, Verena quer saber exatamente o que está usando. “Pergunto tudo. Vou comprar calça jeans, pergunto qual é o tom do jeans, se a parte metálica é prateada, dourada, bronzeada, preta... Os tons da cor... Se é rosa bebê, choque... azul grafite, royal”. O mesmo vale para o serviço de manicure. “Tenho memória visual. Sempre fui muito ligada em cores e formas... Quando vou fazer as unhas, digo ‘a cor que eu quero hoje é alaranjado tipo um suco de tomate’. A manicure dá risada”.

Dança Foi em uma tarde de sábado, dia de receber a equipe da Viral, que Verena teve a oportunidade de vestir pela primeira vez uma roupa de balé. “Sei que meu collant é liso e a saia de cetim, provavelmente brilhante; as sapatilhas, rosa, eu espero”. Com a ajuda da professora, Giovana Maselli, proprietária do estúdio Arte e Cia., de São Vicente, a jovem teve experiência de realizar alguns movimentos do balé. “Ela tem muito potencial, porque a memória visual é ótima. Balé tem tudo a ver com a visão, mas a Verena não precisa dos olhos. Vê com o coração”. Mesmo sem qualquer relação com Verena, a bailarina e professora Giovana Maselli recebeu de braços abertos a jovem para uma experiência de balé e uma sessão de fotos para a revista Viral. “Não podemos chamar de aula, porque seria necessário ter música e ensinar a ela muitos outros passos. Mas, para uma primeira oportunidade, o contato foi emocionante tanto para ela quanto para mim”. À reportagem, a professora afirmou ter sido tocada pela história de Verena e que fará o possível para ajudá-la a encontrar uma escola adequada. “É difícil, porque a Verena não pode fazer uma aula normal. Ela tem totais condições de aprender e fazer um espetáculo belíssimo, mas é necessário uma professora especializada em atletas com deficiência visual”

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Texto: ANDRESSA ARICIERI Foto: THAYNÁ SOARES Diagramação: VICTORIA CAPALDO

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Odisseia Síria A TRAJETÓRIA DO REFUGIADO QUE ATRAVESSOU O ATLÂNTICO EM BUSCA DE UMA NOVA CHANCE PARA SER FELIZ

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ara alguém que fugiu de uma guerra, o sírio Mouaiad Al Charfaoui aparenta tranquilidade. O céu ensolarado de Santos em nada lembra os dias que ele enfrentava em Damasco, capital da Síria, cheios de poluição, com cheiro de pólvora no ar. Em sua terra natal, a qualquer minuto ele poderia morrer – enquanto que, aqui no litoral, a qualquer momento ele pode ir à praia. O homem alto, sem cabelos, de olhos claros e com idade aproximada de 45 anos, tem descendência de outras nacionalidades, todas misturadas, mas que o tornam quem ele é. Poderia ser um simples imigrante, mas deu entrada no Brasil como refugiado. Antes passou pelo frio intenso da Rússia e cruzou a Turquia. Passou por muitos lugares. Sabe-se lá as aflições que viveu em cada parada, o fato é que ele prefere não citar, apenas resume que percorreu 27 países. Al Charfaoui afirma ter se encontrado por completo no Brasil. Considera o lugar perfeito para sua nova jornada, próximo de pessoas proativas, simpáticas e ambiente acolhedor. Sente que está começando uma vida diferente. Embora cercado de inúmeros sorrisos, é um viajante solitário. Sua família está espalhada pelo mundo, também recomeçando suas próprias trajetórias. O casal de filhos, de 22 e 23 anos, está na Holanda estudando. O irmão

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fugiu para a Romênia. Seus pais, entretanto, não conseguiram sair da Síria por motivos financeiros e burocráticos. “A passagem é muito cara e não tem como eles saírem de lá”. E no Brasil, o sírio continua a viver com ele mesmo, mesmo mantendo contato com os parentes. Instalado na rua atrás do shopping Miramar, no Gonzaga, há 5 meses, Mido – como é conhecido – abriu um food truck chamado Salaam Shawarma & Lanches Árabes. Salaam, que significa paz em árabe, é exatamente o que ele deseja a todas as pessoas. “Ninguém quer guerra e muito menos viver nela”. Falando inglês com sotaque semelhante ao dos indianos e um português meio enrolado, Mouaiad conta sua história com naturalidade. De certa forma, parece até que não ter vivido dias horríveis. Apesar de agora ser empreendedor, sua ocupação antes disso não era nada parecida: na Síria, era administrador e gerente de qualidade. “Tenho muita experiência com isso, trabalhei 13 anos”, conta. Atuou até mesmo na área de recursos humanos, mas de acordo com ele, todos os árabes sabem mexer com comida. Por causa da religião, eles não comem fast food e aprendem a cozinhar desde cedo. E quem trabalha perto dele confirma essa vocação. Mônica Ribeiro tem um food truck bem em frente, onde vende coxinhas no copo, mas sempre que pode saboreia um dos lanches deliciosos que Al Charfaoui prepara. Mas é uma troca, já que ele muitas vezes come os minissalgados da moça. Após viajar por tantos países, alguns até mais desenvolvidos que o Brasil, o sírio acabou por

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escolher Santos para viver porque ele acha os santistas bastante calorosos e receptivos. Mido tinha um amigo no país e este o instigou a tentar a vida em terras brasileiras. Ele começou em São Paulo, em 2013. Abriu seu próprio restaurante e, desde então, vem fazendo sucesso com suas comidas árabes típicas, que atraem pessoas de todas as nacionalidades. No seu trailer produz dois produtos típicos: shawarma (frango com alface, tomate e molho de alho, enrolados em um pão sírio ou pão folha) e falafel (bolinhos de grão de bico com alface, tomate e cebola, também enrolados em um pão sírio ou pão folha), além de fritas. Mas tenta agradar a todos, oferecendo opções normais, vegetarianas e veganas. O lugar pequeno abriga todos os mantimentos e alimentos que faz para as pessoas. Ao fundo do trailer, tem uma foto enquadrada de quando saiu no jornal A Tribuna. Seu orgulho até então. Mas o que as pessoas gostam mesmo é da comida. Quando o shawarma está no fogo, o aroma se espalha pelo ar e invade as narinas de cada um que passe perto. A mistura de culturas faz Mido se sentir em casa, pois agrega um pouco de cada uma delas à sua própria. Cada um que passe pelo local e experimente algum prato, já o faz prestar atenção e incorporar algo a si mesmo. Esse choque faz com que as pessoas se aproximem dele e assim, vai colecionando sorrisos, abraços e amizades entre seus clientes e comerciantes próximos. Porém, o mais importante é a realização pessoal. “Estou feliz aqui. Não sei quanto tempo vou ficar, mas espero que bastante.

Fiz meus planos e espero apenas que a sorte aja ao meu favor. Mouaiad


Antes de chegar ao Brasil, Mido passou pelo Egito (foto acima), pelo frio intenso da Rússia e por mais 27 países

A saída do país Percorrendo vários países, Mido não conseguia se encontrar em nenhum deles. Pela cultura, povo ou dificuldade na comunicação e para conseguir um emprego, ele continuava saltando fronteiras, sem rumo. “Quando deixei meu país, era difícil trabalhar no mesmo ramo”, explica. Antes de chegar ao Brasil, ele não tinha ideia nenhuma de como era o país, só sabia que o churrasco brasileiro era famoso. Antes de 2011, ano que marca o início da guerra na Síria, Mido conta que seu país era o mais seguro do mundo. As pessoas podiam andar com joias e relógios caros e ninguém olhava. Hoje, é o lugar mais perigoso, e qualquer um pode morrer a todo minuto. Magda Cocco trabalha em uma loja de cosméticos perto do food truck e, comenta um pouco aba-

lada que tudo o que acontece na Síria é muito triste, mas fica feliz que o colega tenha conseguido escapar e possa estar recomeçando. “Acho legais as oportunidades que ele teve e essa chance de vender sua comida. Ele é trabalhador, espero que dê tudo certo”. Mouaiad, firme no Gonzaga, aproveita em seus dias tudo o que não pode desfrutar enquanto estava na terra natal. Preparando o próprio alimento, fazendo amizades e conseguindo clientes, se sente acolhido por uma família que não a sua. Acredita que um dia seus familiares poderão vir para o Brasil. Enquanto isso, tenta dar o seu melhor e procura ficar o tempo que conseguir. “Eu gosto daqui, então fiz meus planos e espero apenas que a sorte aja a meu favor”, finaliza com um suspiro de leveza com a vida que está vivendo

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Ele é trabalhador, espero que dê tudo certo. Magda Cocco

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Texto: CAMILLAALOI Foto: MARCELO LOPES Edição: MATHEUS TEIXEIRA

Joana se emociana ao receber uma cesta de chocolate de sua filha, Irani

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A CASA DA MÃE JOANA

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A LONGA JORNADA DE UMA MÃE EM UM REENCONTRO COM AS SUAS FILHAS

a Rua Coriolano Burgos Sobrinho, número 55, na Zona Noroeste, em Santos, está a “casa da Mãe Joana”. Por trás do muro azul claro e do portãozinho de metal velho meio enferrujado, os cachorros latem, anunciando a visita na porta. “Sejam bem-vindos”, diz, sorridente, a filha mais velha de Joana, Geovana Borges, de 50 anos, que mora no imóvel da frente. O cheirinho de bolo, que acabou de sair do forno, espalhado por todos os cantos da casa, um convite para ir até a cozinha. Quem entra ali, quase sempre é agraciado com um doce, feito pela própria Geovana, cozinheira de primeira, que ganha a vida vendendo trufas. Uma manhã de maio, um domingo ensolarado. O neto mais novo de Joana, Gabriel Borges, ajuda a mãe nos afazeres da casa. A neta mais velha foi ao culto evangélico, que frequenta semanalmente, acompanhanda do pai. Já a nossa personagem, Joana, terminava de se aprontar. Queria estar elegante para a primeira en-

trevista de sua vida. Enquanto a aguardávamos, saboreamos um bom pedaço de bolo e escutamos uma canção que Geovana cantarolou para a nossa equipe. A composição é homenagem à Joana. Afinal, aquele não era um domingo qualquer, era o domingo de Dia das Mães. Em pouco tempo dentro da casa, é possível perceber que ali é um ambiente familiar como qualquer outro, com regras e organização, o que contrasta com a antiga e jocosa expressão sobre a tal “casa da mãe Joana”, que remete a um lugar bagunçado, sem respeito, onde todos fazem o que querem. Porém, esta não é a história da casa que recebeu Joana há poucos meses. Mas talvez tenha muito a ver com a vida cheia de altos e baixos de Joana, uma mulher de personalidade forte, que nunca seguiu regras e padrões impostos pela sociedade. Fez exatamente tudo o que queria. Inclusive, abandonar o marido e as filhas, para desfrutar da sensação de liberdade.

“Ela era uma mulher muito moderna, estava à frente do seu tempo”, ressaltou a filha. Fazendo um cabo de vassoura de cajado, Joana surge arrumada. Cabelos bem penteados e uma camisa em xadrez de vermelho e preto. Faltou a maquiagem, talvez não tenha dado tempo para os retoques finais. Ela entra lentamente na cozinha. A dificuldade para andar é por causa dos joelhos, já desgastados pelo peso dos 77 anos. Questionada se estava tudo bem, ela responde prontamente: “Eu pareço estar bem? Estou bem, bem mal mesmo”, reclama, com um certo tom amargo de quem parece não aceitar o peso da idade. Afinal, foi exatamente a velhice que lhe tirou sua liberdade. “Eu não queria estar aqui. Preferia estar em minha casa”, disse Joana, que há seis meses tem seu aposento no quarto nos fundos da casa da filha mais velha. O tom rosa nas unhas das mãos e o cabelo bem arrumado são sinais de que a idade não tirou sua vaidade. E, cá entre nós, a velhice até que não está sendo

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tão rigorosa para quem nunca se preocupou com ela. Trouxe-lhe surpresas, reencontros, arrependimentos e perdões também. Se em um dia tão simbólico, é comum toda mãe ficar sensível, no caso de Joana a data tem ainda mais significados. Depois de 50 anos, seria o primeiro Dia das Mães ao lado de Geovana. “É muito gratificante poder passar o primeiro dia das mães com ela. Apesar de tudo, fico muito feliz de poder cuidar dela” afirma a filha, que foi abandonada pela mãe aos 3 anos idade, e criada pelo pai em Salvador, na Bahia. O fato ocorreu porque, segundo Joana, o seu marido, já falecido, estava lhe traindo, algo inaceitável para esta mulher que se denomina decidida e corajosa. Com isso, largou a família e a vida no Nordeste para realizar o sonho de morar em Santos. “Podemos dizer que ela era uma pessoa egoísta. Pensava

sempre nela em primeiro lugar”, brinca Geovana, que na adolescência deixou Paripiranga, no interior da Bahia, disposta a encontrar a mãe na Baixada Santista. Faltava descobrir o endereço. Foi conversando com familiares que já moravam em Santos que ela conseguiu a informação que, de certo modo, mudaria o seu destino. O reencontro com a mãe, no entanto, foi decepcionante para ambas. Nada a ver com aquelas histórias de reencontros açucarados que se leem nas revistas e programas de TV. Geovana não foi tão bem recebida e se viu novamente rejeitada por Joana, que alegou, na época, não ter condições de acolher a filha. “Eu fiquei muito triste na época. Toda vez que eu cozinhava, me perguntava como era que minha mãe temperava a comida dela, eu não conhecia o tempero da minha mãe, a personalidade dela. Sempre quis conhecê-la. Quando

Atualmente Joana mora com a filha mais velha, Geovana Borges

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a encontrei e ela me rejeitou me senti sem chão. Eu tinha raiva e muita tristeza”, revela Geovana. Toda a coragem que ela demonstrava ter tido durante os longos anos de vida, parece ter se perdido pelo meio do caminho. Dona Joana se esquiva das perguntas que se referem ao abandono das filhas. Muda de assunto, olha para o lado, evitando explicar com clareza o porquê de nunca ter procurado as filhas. Com várias histórias de luta durante a vida, ela aproveitava a entrevista para relembrar suas histórias ao passar dos anos, sempre contando com muita naturalidade e sem pressa. Apesar de não falar em arrependimento, as lágrimas de Joana entregam o sentimento de remorso, principalmente quando o assunto é sua filha mais nova, Irani. Logo que chegou a Santos nos anos 70, ela conheceu Sabino, um sergipano que trabalhava como vigia noturno no cais santista. Os


dois viveram um caso de amor e, segundo ela, Sabino era casado e tinha filhos, um fato que a jovem moça só foi descobrir tempos mais tarde. E foi dessa aventura amorosa que Irani nasceu. “Ele nem quis saber da filha. Durante a gravidez, tive apenas a ajuda do irmão dele, que foi quem a batizou”, contou a baiana. A vida de Joana, que já não era fácil, ficou ainda mais complicada, após o nascimento da filha mais nova. Além de estar sozinha, ficou muito doente. Teve uma pneumonia a que derrubou completamente. Um casal de vizinhos, preocupado com a situação, se dispôs a ajudá-la, cuidando da criança. Maria e Jorge se apegaram à pequena Irani e a tratavam como filha. Diante de todas as dificuldades, Joana pensou que o melhor a fazer era deixar a menina com o casal. “Eu agradeço a Deus por minha mãe ter me entregado a essa família. Os pais que me adotaram foram maravilhosos. Me criaram da melhor forma, me dando educação, casa e uma família. Fui muito feliz com eles e sou grata por tudo o que fizeram por mim”, diz Irani, hoje com 46 anos, que ainda não teve coragem e nem vontade de reencontrar a mãe biológica. Em busca da origem Irani só descobriu que era filha adotiva aos 14 anos. A verdadeira história só foi revelada quando a irmã, Geovana, a encontrou nas redes sociais. “Nunca tive coragem de ir atrás do meu passado, mas a verdade chegou até a mim. Foi um susto muito grande. De um dia para o outro, ganhei uma irmã, cunhado, sobrinhos e mais uma mãe”. Aos poucos Irani tenta digerir sua verdadeira história. A prova disso foi a iniciativa que teve no

Joana sempre se emociona quando comenta de suas filhas.

último Dia das Mães: mandou entregar uma cesta de café da manhã à mãe biológica. “Deus a abençoe. Eu acho que não se pode guardar rancor na vida, mas eu entendo”, disse com as lágrimas escorrendo pelo rosto. O comum é apenas enxergarmos os defeitos e apontarmos os erros. Mas, como tudo nessa vida, existe o lado bom e ruim. Para que você, leitor, não julgue de forma sumária a atitude de dona Joana, é bom saber que quem terminasse de ler este texto, enxergasse a outra face de Joana também. Afinal, essa mulher, muito julgada pela frieza em ter abandonado as filhas, foi a mesma que criou o filho de uma grande amiga. E também a que sofreu com a dor de não ter a mãe presente durante a infância, porque a perdeu quando tinha apenas dois anos. Apesar de não justificar seus erros, talvez, seja um caminho para começar compreender essa mulher cheia de coragem e liberdade

Eu acho que não se pode guardar rancor na vida, mas eu entendo. Joana

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Texto e foto: WILKER DAMASCENO E JULIANA VILLELA Diagramação: RAFAEL ZACARIAS

MAGENTA A DRAG QUE VOCÊ PRECISA CONHECER

É

mais uma noite comum na famosa boate The Club, de São Vicente. Jovens se misturam em uma fila que dobra o quarteirão, enquanto a balada, no ponto mais alto da Ilha Porchat, não começa. Muita conversa e álcool. De repente, é impossível não notar uma figura, cheia de equilíbrio no alto dos trinta centímetros de uma plataforma vermelha, se aproximando. É Magenta, uma das drag queens mais conhecidas nas noites da Baixada Santista, o alterego de Christian Marccelo, 24. Quando não está dando aulas de inglês em uma escola no Guarujá, ou trabalhando como maquiador, é nela que ele enxerga a fuga da rotina diária. “Magenta é a idealização de tudo que eu não sou e gostaria de ser. Ela é confiante, comunicativa, ousada... muito mais aberta para o mundo e destemida", conta. E quanta confiança. Não é fácil ostentar um look inspirado em nomes de peso como a icônica cantora Christina Aguilera. A preparação de Magenta chega a levar três horas; maquiagem é sempre pesada, exagerada, se conectando com os looks burlescos e perucas, que variam entre o loiro e o moreno, e roupas justas. Nesta noite, Magenta aposta em um look lacrador: cabelo loiro platinado até a cintura, um espartilho roxo que não economiza no decote, combinando com o batom da mesma cor. As pessoas que se aglomeram na porta da boate, rebolando ao som de Britney Spears, fazem de tudo para chamar a atenção da musa. Admiradores imploram por uma foto em busca de likes. Tímida, mas já acostumada com o assédio, ela não vê problemas e até se sente lisonjeada. “É bem complicado criar uma drag lapidada. O público com certeza percebe quando você se dedica um pouco a mais ao visual ou quando está mais à vontade em

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um determinado dia. Esses fatores influenciam bastante na nossa carreira, já que é o mesmo público que nos impulsiona”, revela. A balada começa e, por incrível que pareça, Magenta já é tomada pelo cansaço. Como se não bastasse sua rotina atarefada, a noite exige ainda mais disposição. A produção para a festa Holiday, um dos mais fervidos eventos LGBT da região, inclui um visual nada confortável que a obriga a passar a maior parte da noite sentada. Mesmo sendo profissional do ramo da beleza, a maquiagem é seu maior gasto para se montar como drag. O valor exato Christian não sabe, mas garante que tudo depende do estilo: “você pode investir R$ 20 reais, mas também pode gastar milhares em um visual, se quiser comprar tudo pronto ou mandar fazer”. Seu grupo de amigos faz questão de não deixá-la sozinha. A conversa e a dança rolam soltas, mas são interrompidas por um fã mais ousado. Ironicamente, já é segunda vez que esse frequentador da casa diz que vai pular na piscina, nu, e convida Magenta para pular junto.

“Ele tá muito louco, já passou aqui várias vezes”, conta, rindo. Ali era um dia de puro entretenimento, uma noite sem cachê. Mas muitas vezes ser a Magenta é um trabalho remunerado para Marccelo. A origem dela inclusive foi assim. “Não sei ao certo quando essa vontade surgiu, mas quando percebi estava me montando sozinho em casa. Acabei mostrando fotos para um organizador de eventos de Santos e me montei pela primeira vez já a trabalho”. Mesmo não sabendo ao certo a origem de sua drag, Christian diz que sempre admirou a arte. O trabalho como maquiador foi um grande influenciador. Aos poucos, ele foi conhecendo o mundo da moda e as próprias drags das noites santistas e de São Paulo. Quando criança e adolescente, seu maior contato foi com os famosos transformistas que apareciam todo domingo no clássico programa de Silvio Santos. O que para a maioria era apenas mais um quadro de entretenimento, para ele se tratava de um atrativo que, futuramente, se tornaria sua maior paixão.

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A noite segue e Magenta, apesar do destaque, parece ser mais uma na multidão. Por trás do visual intimidador de sua personagem, há também o seu lado mais intimista não tão expansivo, contrariando a expectativa que sua produção incitava. O look bombástico não era compatível com sua personalidade discreta. Porém, é impossível não admirar a sua vontade de fazer a diferença naquela noite, seja com os seus amigos ou o público em geral. Amigos esses que somem para dançar, mas acabam voltando para novas conversas. Entre os assuntos a própria balada, a vida e relacionamentos. Ela inclusive está solteira e sempre disposta a receber novas pessoas em seu mundo, segundo os mesmos amigos. “Ela é uma rainha empoderada”, diz um deles, enquanto outro completa: “só de ela estar aqui já significa muita coisa. Tem que ter muita coragem para segurar tudo isso”. Mas como será para a família? “Em casa, sou eu e a minha mãe apenas. Tive bastante dificuldade

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para contar a ela que estava trabalhando como drag”. O assunto parece mesmo delicado. No começo tudo precisava ser escondido, mas o apoio materno veio logo em seguida: “Quando tive a coragem de contar, ela me apoiou. Disse que era a minha felicidade que importava”. O dia amanhece, o cansaço agora é visível. É clima de fim de festa. O ar discreto e o look trabalhoso podem ter atrapalhado a diversão de Magenta. Os amigos vão dormir e Magenta ainda tem muita maquiagem para tirar ao chegar em casa. Arte como terapia Comparar Christian com Magenta talvez seja o mais difícil. Como ele mesmo costuma repetir, a drag é diferente de tudo o que ele é. “Eu não enxergo nada do Christian na Magenta. Mas eu comecei a fazer drag em uma fase muito complicada da minha vida”, relata. Como todo jovem, Marccelo sofreu com a baixa autoestima. Foi

“Ela é uma rainha empoderada”, diz um admirador. gabriel batista


em se transformar que veio o seu refúgio. Muito mais do que estética, é uma terapia. Quando montado, os problemas pessoais são deixados de lado e uma nova pessoa entra em cena, onde todo o seu poder reprimido pode ser finalmente expressado. “Ela me trouxe uma confiança absurda. Quando eu vi a foto da Magenta pela primeira vez fiquei assustado. Pensei: consigo ser qualquer coisa. Cada vez que eu trago ela à vida, isso só se renova”, afirma. Uma pergunta clássica feita sempre é em relação ao gênero de uma drag. É um homem, uma mulher, um travesti ou algo do tipo? Christian foge dos rótulos e dos preconceitos sociais. “Drag é rir das regras que a sociedade impõe. É dizer que a Magenta não é homem, nem mulher, é uma criatura fabulosa a quem empresto meu corpo. É mostrar a sociedade a sua visão de beleza, que nem sempre a maioria acredita ser belo. É questionar, se expressar e mostrar o quanto a gente enxerga o mundo de uma forma única”, finaliza.

“Drag é rir das regras que a sociedade impõe”, desabafa

Magenta x Pabllo? Magenta surge em meio ao chamado boom das drags. Cantoras como Pabllo Vittar, Lia Clark, Gloria Groove, Aretuza Lovi, entre outras, são hoje responsáveis por levar essa cultura às grandes massas. Diferentemente da maioria, a carreira delas é um mundo de glamour e flashs. Magenta, porém, quer mostrar ao público um outro lado dessa arte. “Eu acho maravilhoso que pessoas parecidas comigo estejam tendo esse espaço hoje. Amo todas e desejo muito mais sucesso. Mas também gostaria que as pessoas que estão conhecendo esse mundo fossem até uma casa de shows especializada para ver o quão nosso mundo é diverso. Não tem como uma representar todas. São muitos estilos e talentos que tornam cada drag única”, diz

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Texto: DIEGO KASSAI e KELVYN HENRIQUE Foto: KELVYN HENRIQUE Diagramação: DIEGO KASSAI

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Lutando no tatame e na vida ALINE SOBREVIVEU A UM GRAVE ACIDENTE QUE PODERIA TER CUSTADO A CARREIRA COMO ATLETA

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ra uma noite tranquila como tantas outras na vida da carateca Aline Gomes (na época com 20 anos). Às 21h30, ela pilotava sua moto na rodovia Padre Manuel da Nóbrega, com destino à cidade de Itariri, a 20 quilômetros de Peruíbe, onde morava. O ano era 2003. Tudo seguia bem. De repente veio o solavanco. Uma batida forte, inesperada. O impacto foi tão violento que Aline voou, foi arrastada pelo carro que colheu sua moto até a pista contrária. Nem sentiu a perna prensada entre a motocicleta e o veículo que a atropelou. Em questão de segundos teve a vida transformada. Resultado: fêmur quebrado, cirurgia. Aline ganhou placa metálica de 22 centímetros fixada no osso por 10 parafusos. Foram 40 dias na cama do hospital, dois meses em cadeira de rodas e quatro de muletas. Enfrentar uma situação dessas não seria fácil, mas Aline é uma lutadora não só nos tatamos, mas principalmente na vida. Faixa preta de 3º Dan (a graduação chega ao 10º Dan) de caratê, ela compete desde a infância e isso tornou mais dolorosa a notícia de que, segundo o médico na época, levaria 12 meses para se recuperar e que talvez não voltasse a competir. Seguindo um dos lemas do esporte: “Karate-Do, quem pratica sabe a força que tem!”, a atleta não se deu por vencida e

surpreendendo as expectativas médicas, em nove meses se recuperou, competiu e foi campeã em kumite (luta).

Trajetória no esporte

Aline, 35, ingressou no caratê aos 9 anos, como uma brincadeira, ao acompanhar amigas que treinavam. Seu primeiro treino no Centro de Artes Marciais, localizado no Centro de Peruíbe, foi com um faixa marrom chamado Walter, num sábado, e já na terça-feira, passou a treinar com o faixa preta Carlos Anunciação de Jesus (atualmente Mestre de 6° Dan e presidente da Associação Shinshukan de Karate de Peruíbe). A primeira competição de Aline foi em Pedro de Toledo, em 1993, quando tinha apenas 10 anos. Ficou com o 3° lugar em kumite. Na ocasião, a atleta se emocionou com a conquista. “Eu tinha um amigo, que infelizmente já faleceu, que também treinava e quando comecei a chorar ele perguntou ‘por que você tá chorando?”. Eu respondi ‘você pensa que é fácil, é?!’ e toda vez que eu o encontrava, mesmo anos depois, ele brincava falando ‘você pensa que é fácil, é?’”, lembra. A partir daí, Aline começou uma trajetória de muito sucesso e conquistas. Durante 17 anos de carreira, conquistou dois campeonatos brasileiros (um em Fortaleza e outro em Joinville), dois sul americanos (no Paraguai e Chile). Garantiu ainda

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O mundo das drogas não prejudica somente o usuário, mas também quem não tem nada a ver com o assunto.

Aline Gomes a medalha de bronze no Mundialito (campeonato internacional) no Ibirapuera, em 1998, evento que entrou para o Guinness Book como o maior campeonato de Karate-Do do mundo, com 2.220 atletas, 180 árbitros e duração de dois dias. Sagrou-se também campeã brasileira de kata (forma), 4ª colocada no Pan Americano da Califórnia (2000), 4ª no Mundial da Escócia (2001), 3ª no campeonato internacional no Ibirapuera (em comemoração ao Mundial da Escócia), 4ª lugar no Mundial Brasil (2005), disputado em Fortaleza; três vezes campeã dos Jogos Regionais; campeã Mercosul em Foz do Iguaçu.

Luta fora dos tatames

Para atletas de alto rendimento como Aline, conciliar a rotina de treinamento e de competições com a vida escolar e social era um desafio. Sem contar as dificuldades com a falta de patrocínio. Aline teve que correr atrás dos seus

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objetivos desde cedo em busca de melhorar cada vez mais suas próprias marcas. “Muitas vezes eu corri sozinha! Cheguei a treinar em outras academias e pela dificuldade de suporte em Peruíbe, eu ia para algumas competições sozinha”, conta Aline. Aos 16 anos, em 2003, a atleta entrou para a faculdade de Educação Física, na Unimonte, em Santos, onde se formou após três anos. Nesta época, passou a treinar em Santos. A busca por patrocínio também sempre foi muito importante e se hoje existem programas de incentivo ao esporte, na época, a carateca teve que procurar ajuda por meio do setor privado. Viagens, inscrições, uniformes, hospedagem sempre foram pagos com recursos vindos de comércios e empresas. Como atleta, Aline defende que o papel do poder público é ajudar com boas instalações de treino e remuneração de professores, por haver muitas modalidades esportivas na cidade e isso dificultar o trabalho da prefeitura de custear todos os atletas. Aos 15 anos, bateu na porta do gigante dos supermercados, o Pão de Açúcar e pediu para falar com o gerente. Ao chegar, teve que lidar com a insistência de uma funcionária que perguntava se ela estava ali para pedir emprego. O gerente simpatizou com a atitude dela e pediu então que trouxesse sua história, suas conquistas e os valores por escrito e ele veria o que poderia ser feito. Deu certo. Com o apoio do grupo, Aline conseguiu disputar o Campeonato Brasileiro de Karate-Do. “Eu sempre busquei muito! Ia de porta em porta nos comércios, me apresentava e falava sobre o

caratê e fazia com que as pessoas me conhecessem! É o seu sonho, as pessoas têm que comprar ele.”, defende Aline.

História familiar

A base familiar costuma ser importante na formação pessoal de qualquer pessoa e assim também foi com Aline, cuja família tem raízes antigas em Peruíbe. O avô, João Vitoriano, era pescador e fundou a colônia de pesca do município. A avó paterna, Dalila Marçal, cozinheira. O pai, José Carlos Gomes, é dono do restaurante mais antigo da cidade, A Ponte, aberto há 47 anos. O bisavô paterno, Benedito Marçal, foi um dos primeiros carroceiros em Peruíbe, responsável por levar as mercadorias que chegavam de trem até o comércio no Centro. Os pais, José Carlos e Maria Inês, nunca se envolveram com o lado atleta da filha, deixando até de ver os treinos. A mãe só assistiu a filha ser campeã brasileira em Fortaleza enquanto o pai a viu conquistar o sul -americana, no Chile, porque só permitiria que ela viajasse se ele fosse junto. “Não é que eles não me incentivassem. Eles nunca me proibiram, esse era o jeito deles, mais reservados”, conta Aline. Em 2012 Aline teve que interromper os treinos para cuidar da mãe, que estava com câncer, e morreu dois anos mais tarde. Três meses antes da morte precoce da mãe, ela deu à luz a Larissa, fruto do casamento com Osvaldo. Na mesma época (2013 a 2015) foi nomeada diretora de esportes em Peruíbe.

Pós acidente

O longo processo de recuperação de Aline ficou a cargo de ou-


Aline segue treinando firme e sonha em voltar a competir em grande estilo tro Osvaldo. Este, fisioterapeuta e educador físico, foi quem a ajudou a recuperar a força e o tônus da perna direita. Foram aplicados exercícios para simular dificuldades que ela poderia encontrar nos treinos: como, por exemplo, uma irregularidade no tatame. Era colocado um colchão mole e Aline exercitava os golpes. Fazia a mesma coisa na cama elástica e, por fim, treinava concentração e estabilidade na prancha. Graças à dedicação do fisioterapeuta e à sua garra, conseguiu voltar aos tatames e competir mais uma vez em 2010. Então vieram todas as dificuldades familiares, o nascimento da filha e então as competições foram deixadas de lado. Um acidente costuma deixar sequelas não apenas físicas, mas emocionais. Aline teve que se preocupar com outro tipo de sequela: na reputação. Segundo testemunhas, o carro que provocou o acidente estava estacionado no local havia bastante tempo e, após a batida, o motorista jogou fora um

pacote contendo drogas. Os policiais que lidaram com a ocorrência a confundiram como sendo a dona das drogas, mas ela conseguiu provar sua inocência. Foi a partir desse episódio que Aline decidiu trabalhar na Fundação Casa (antiga FEBEM), onde ocupou o cargo de agente educacional de 2009 a 2011. Lá, ministrou aulas de caratê no Projeto Educação e Cidadania (PEC), que incluíam orientações sobre saúde e a filosofia do esporte, além de treinos. Até hoje recebe convites da instituição para falar com os internos e faz palestras pelo menos uma vez por ano. “O mundo das drogas não prejudica somente o usuário, mas também quem não tem nada a ver com o assunto. O que eu queria mostrar para esses garotos é que eles não envolvem somente a família, mas também pessoas inocentes”, esclarece Aline.

O casamento

Aline conheceu Osvaldo Rivelino Rosa Lemos, 44 anos em 2011. Os dois trabalhavam na Fundação

Casa em turnos diferentes, Aline no diurno e Osvaldo no noturno, e isso fazia com que não tivessem tempo para conversar. “O máximo de palavras que trocávamos era ‘bom dia’”, conta o marido. Dois anos depois, apareceu uma vaga para o cargo de coordenador de equipe. “Fiz a prova, passei e, nessa época, ela havia acabado um namoro e eu também. Começamos a conversar e em um mês e meio já estávamos namorando”, lembra. Osvaldo nunca viu a esposa competindo, por isso é um dos maiores incentivadores da volta de Aline aos campeonatos. Ele também sonha que a filha, Larissa, de três anos, possa ver a mãe sendo campeã. “Admiro a força de vontade em tudo que ela faz. É uma grande mãe, guerreira, excelente esposa, amiga e namorada”, elogia. Em latim, Marçal significa “guerreiro marcial” e assim como o sobrenome de seus antepassados, Aline luta a cada dia dentro e fora dos tatames, jamais perdendo o espírito de atleta que a levou tão longe no esporte e na vida

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“BOLA” DA VEZ

Rafael Costa Dos gramados à música independente

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m meio a tantos jovens na universidade, nada o definiria como um popstar. Nada de roupa de marca, de peças chamativas e nenhum jeito de quem segue tendências da moda. A barba, espessa, nem aparada está. Os calcanhares insistem em ficar para fora dos tênis surrados e molhados. “O tênis tá comendo meu pé”, justifica. Já os volumosos fones de ouvido marcam presença. São quase uma extensão de seu corpo. O dia chuvoso favorece a simplicidade de Rafael Azevedo Silva Costa. Também conhecido como “Bola”, o vocalista da Banda Zimbra nasceu e foi criado em Santos, cidade que embalou, por alguns anos, o seu sonho nada incomum de se tornar jogador de futebol. Os primeiros passos nesse sentido começaram a ser dados nas escolinhas do maior clube da cidade. Ele passou pelos times de base do Santos Futebol Clube, iniciando no futsal como todo bom ´Menino da Vila´. O futebol aliás, estava presente nas raízes da família. Seu pai, Gilmar, trabalha há anos no clube e tinha todo um planejamento de carreira para o filho. Nada que atrapalhasse o apoio do pai também em relação à música. Segundo Rafael, entre todos os milhares de fãs da Zimbra, aquele que pode ser considerado o número 1 é “seo” Gilmar. Após os primeiros chutes no futebol de salão, o jovem conquistou espaço no time de base do Jabaquara. O “Leão da Caneleira” ganhava no seu elenco um novo zagueiro, que compensava a baixa estatura com muita raça e vontade de fazer o melhor. Mesmo não gostando do treino físico, ele se doava ao máximo dentro de campo, assim como faz hoje nos palcos.

Texto: GABRIEL PUPO E MARCOS ROSA Fotos: MARCOS ROSA Diagramação: GABRIEL PUPO

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Não somos uma boyband. O amor dos nossos fãs é essencialmente pela música. RAFAEL COSTA

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A semelhança entre a arte e o esporte pode ser difícil de identificar. “O que tem a ver onze jogadores correndo atrás de uma bola, com os acordes de um violão?”, você pode se perguntar. Uma das respostas é o frio na barriga sentido em cada início de partida ou em cada começo de show. “É aquela frase meio clichê, quando não existir mais esse frio na barriga é porque já está na hora de parar”, diz Bola. Os cuidados com a voz, também se assemelham com a preparação física de um atleta. “Eu me preocupo com a minha voz, até porque é o meu instrumento de trabalho, mas é realmente difícil ter esse cuidado quando na véspera do show tem jogo do Corinthians”. Para tentar aliviar qualquer tipo de tensão, Rafael conta que prepara a voz antes de cantar e, após o show, realiza o desaquecimento das cordas vocais, em um longo exercício de relaxamento. Futebol e arte Se nos campos o erro pode ser fatal, como diz a música do Skank, “Os dois zagueiros têm a chave do cadeado”, no cenário musical, os erros podem até afetar uma música, mas não o show e nem a alegria de uma multidão que canta em uma só voz. “Ultimamente está me dando umas branqueras quando eu subo no palco. Tem umas músicas que foram lançadas uns cinco anos atrás que já entram no piloto automático, daí nem ensaiamos mais. Quando isso acontece, a saída é apontar o microfone pra plateia ou até mesmo dar uma consultada na própria letra no Vagalumes”, confessa Rafael. A carreira no futebol não foi tão duradoura como se esperava. Os treinos desgastantes de segunda a sexta-feira cansaram o físico do sempre ‘gordinho’ Rafael, que entre um treinamento e outro, conciliava a vida de atleta com os deveres escolares. Foi na escola que ele tomou uma decisão importante na vida. O contato com a música se deu em meio a lousa e as carteiras escolares. Convidado a optar entre a flauta e violão, Bola escolheu o instrumento de sopro. Já o primo, Vitor Fernandes, mais do que depressa escolheu o violão. Hoje os dois estão juntos na Zimbra. Vitor é guitarrista e Bola o

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vocalista e “capitão” da banda. Apesar de conviver com a música desde pequeno, escutando melodias vindas do piano de sua mãe, foi seu primo Vitor, nas férias escolares, que alavancou sua habilidade no violão. Desde então foram muitas cifras erradas, dedos calejados, porém com um aprendizado constante e muita vontade de aprender. Tornou-se uma máquina de escrever músicas e compor estrofes. “Minhas músicas não são autobiográficas, mas acredito que a canção ´Redator` do nosso Disco Azul, é a mais parecida com quem eu sou”, afirma. Já nas primeiras aulas, Vitor ficou surpreso com o potencial criativo de Rafael. “Fiquei assustado. A capacidade dele de criar letras e compor melodias, controlar o tom da voz e evoluir como um músico foi


inimaginável. Ele tem o dom de escrever letras e fazer com que as pessoas se identifiquem”, conta Vitor. A Zimbra, que conta também com o baterista Pedro Furtado e o baixista Guilherme Goes, já percorreu uma extensa quilometragem: diversas casas de show do Sul ao Nordeste, e até mesmo a Arena das Dunas, em Natal, estádio de Copa do Mundo, foram palco da turnê realizada por todo o país. Mas o ápice, segundo Rafael, foi o show realizado pela Zimbra no Lollapalooza, em 2015. O passaporte para o festival foi conquistado por meio de um concurso da Rádio Rock – 89,9 FM, no qual jurados decidiram qual banda independente iria tocar em um dos palcos mais famosos do mundo. Uma semana antes do festival, Rafael recebeu diversas mensagens nas redes sociais parabenizando a banda pela conquista, mas não entendia o exato motivo de tudo aquilo. “Não estávamos esperando. Tínhamos acabado de ensaiar e o telefone tocou. O diretor da rádio anunciou que vencemos o concurso. Respondi: - Qual concurso? Ele: - Vocês vão tocar no Lollapalooza!”. Não houve nem tempo de comemorar, porque logo a banda precisou elaborar o repertório do show e os dias seguintes se passaram com ensaios intensos para fazer bonito no festival. Como o próprio Rafael afirmou, “a Zimbra não é uma boyband, porque somos de medianos para feios. O amor dos nossos fãs é apenas e essencialmente pela nossa música”. Melodias que eles fizeram questão de que fossem autênticas desde o primeiro show. “Nós nunca fizemos uma apresentação cover, nossas composições sempre foram totalmente autorais. Tínhamos repertório para isso e decidimos realizar dessa maneira”. O local do primeiro show, inclusive, tem grande influência em outro lado de Bola: o de empresário. No mesmo lugar onde a Zimbra fez sua primeira apresentação, para um grupo pequeno de pessoas, os primos Rafael e Vitor inauguraram 11 anos depois o próprio estúdio musical, o Baleia Records. “Pode considerar um lado empresário sim. Nós vivemos de música, e queríamos ter um ambiente

Discos da banda lançados nos últimos anos nosso para produzir as canções da Zimbra e também as de outros amigos de bandas”. Para alguém que tem pavor de avião, Bola sequer sonharia alcançar vôos tão altos. Em 11 anos de banda, já são três discos lançados (O tudo, o nada e o mundo, Mocado e Azul) e ainda, mulhares de fãs por todo o Brasil. O que surgiu como um hobby na adolescência, agora é mais do que um trabalho: é uma carreira a ser seguida

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Texto e edição: BEATRIZ MARTINS E MARIANA PATRÍCIA Fotos: BEATRIZ MARTINS/ ARQUIVO PESSOAL

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DESENHANDO SONHOS CAROL COMEÇOU A CARREIRA HÁ POUCO TEMPO, MAS O TRABALHO CRESCEU POR CONTA DAS REDES SOCIAIS

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cabelo loiro, o salto alto, as poucas tatuagens e a carinha de boneca de Carol Rodriguez quebram o estereótipo montado sobre tatuadoras. Sem cabelo colorido ou a pele repleta de desenhos marcados, Carol abraçou o amor à arte e se redescobriu na profissão. Hoje com 39 anos, Carol sempre foi apaixonada por desenhar, mesmo antes de ser mãe. “Parei lá trás, há 18 anos. Depois que você tem filho, não dá pra pensar em nada como hobby, mas sim em como ganhar dinheiro”. Na época, nem passava pela cabeça a ideia de sua arte virar profissão. Os filhos foram crescendo e a vontade de criar desenhos voltando. Como sempre teve e gostou de tatuagens, Carol uniu o útil ao agradável. “Pensei: será?” Um dos filhos de Carol, o estudante Vitor Machado, de 17 anos, tem como lembrança da infância a mãe desenhando, em meio as tarefas domésticas. “Sempre apoiamos e incentivamos ela em todas as escolhas

que ela fez e faz”. Quando Carol surgiu com a ideia da tatuagem, a família ficou surpresa, mas sempre apoiou. Isso aconteceu em 2014, onde começou a pesquisar cursos no meio e se especializou. “Era nítido que tinha encontrado o que ela gostava de fazer e a cada dia ficava mais feliz com esse trabalho”, lembra Vitor. Carol nunca deu um passo maior que a perna. Lápis, papel, borracha e noção de desenho e sombra. “Eu não tinha pretensão alguma de ser uma grande tatuadora”. Para Carol, há uma enorme diferença entre saber desenhar e tatuar, mas todo profissional precisa ter uma habilidade artística, mesmo que um desenhista não vire um tatuador. “É uma profissão como de um cirurgião: você não pode errar, pois não tem volta. Precisa ter concentração, precisão e perseverança”. Justamente isso não pode dar espaço para a insegurança, afinal, ela pode atrapalhar o trabalho. Carol diz que, no início, é normal, mas a prática ajuda a lidar melhor com o trabalho.

“É uma profissão como de um cirurgião: você não pode errar, pois não tem volta. Precisa ter muita concentração, precisão e perseverança” Carol Rodriguez, tatuadora

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70% dos clientes de Carol são mulheres: “elas se sentem mais seguras sendo tatuadas por outra mulher”

E com tanta atitude e personalidade, Carol não poderia fazer diferente: abriu seu próprio estúdio em 2016. É uma sala ampla e moderna de um prédio comercial no bairro Encruzilhada, em Santos, onde ela hoje consegue estruturar seu trabalho e rotina. Atende poucos clientes ao dia, pois prefere qualidade à quantidade. Essa opção lhe rendeu frutos, já que muitos clientes optam por esse tipo de atendimento. “Quando você faz algo que ama, do seu jeito, o rendimento é muito melhor”. Os olhares vindos de uma sala repleta de homens e mulheres tatuados em um curso de especialização em São Paulo só significavam uma coisa para Carol: o pensamento de ‘o que essa pa-

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tricinha está fazendo aqui?’. Mas ela afirma que nunca passou por uma situação de preconceito pela profissão. Pelo contrário, acredita que esse pensamento está sendo ultrapassado, mas ainda existe. “Por você ser mulher, precisa mostrar seu trabalho dobrado”. Segundo Carol, a maioria das mulheres se sente mais segura sendo tatuada por outra mulher. Acreditam ser mais delicada, com um traço mais fino, a mão mais leve e que ela entenderá melhor a ideia. Exemplo disso é a estudante Isabella Mastrogiacomo, de 21 anos. Sobrinha de Carol, ela tinha pavor de agulha, mas tinha o sonho de ter tatuagens. Hoje com cinco, não imaginava que um dia

teria coragem de ter a pele toda desenhada, e todas escolhidas na hora. “Nunca me esqueço quando ela insistiu para eu fazer a minha primeira tatuagem. Eu marquei e desmarquei diversas vezes, mas acabei indo. Foi a melhor experiência da vida. Não é porque ela é minha tia, mas ela tem mãos de fada”. Para Isabella, o sucesso de Carol é merecedor, pois além de exercer um excelente trabalho, o cuidado que ela tem como tatuadora é fundamental para o cliente sair satisfeito. “Para ela, não é só mais uma tatuagem, mas sim uma pessoa que está ali colocando um sonho naquele desenho. Então ela se dedica ao máximo enquanto está trabalhando. Eu tenho ela como um exemplo de mulher”.


Para quem não entende de tatuagem, não dá para perceber se ela ficar torta na coluna. Mas eu sei que ela tem de ter muita precisão Carol Rodriguez, tatuadora

‘Minhas colunas’. É assim que Carol se refere carinhosamente à sua principal especialidade no ramo: a tatuagem na coluna cervical. Ela dispensa o rótulo de ‘marca registrada’, mas foi esse estilo que evidenciou o trabalho da tatuadora. De maneira despretensiosa e com uma cliente que não sabia onde tatuar uma frase, nasceu a ideia de arriscar uma arte estritamente simétrica nas costas dela. “Viralizou de uma tal maneira, justamente por você não ver em lugar algum. Eu considero uma escrita bonita e com uma pitada de sensualidade”. Apesar do resultado ficar extremamente bonito, apenas bons profissionais conseguem deixá-la impecável. Segundo Carol, é necessário uma noção de simetria e olho clínico para entender que, independentemente da posição que a cliente estará, a margem de erro será zero. “Para quem não entende, não dá para perceber. Mas ela tem de ter muita precisão”. A jornalista Sheila Almeida, de 30 anos, é uma das clientes que possui a coluna tatuada por Carol. Não conhecia a tatuadora e nunca tinha tatuado. Ela diz que a vontade surgiu do nada, mas

que não seria qualquer uma: teria de ser uma frase nas costas, com uma caligrafia fina, terminando com o desenho de uma flor. “Nisso, procurei quem poderia fazer. Nunca tive medo de agulha, mas sabia que iria doer”. E como tudo hoje em dia se encontra na internet, não poderia ser diferente para Sheila. No Instagram, com as hashtags, encontrou o perfil de Carol. “Escolhi ela justamente pelas fotos, pois chamou minha atenção o fato de a pele das clientes não estar tão avermelhada depois da tatuagem – o que para mim indicava uma mão mais leve”. Profissional escolhida, tatuagem em mente e horário marcado. “Pedi para ela me mostrar tipografias e flores, nisso ela criou algumas opções para mim. Decidi e amei!”. A jornalista diz que a experiência foi tranquila, com alguns pontos doloridos porém suportáveis. A frase ‘Have faith, go deep and make it worth’ (Tenha fé, vá fundo e faça valer a pena), terminada em uma rosa, é a autoafirmação tatuada nas costas de Sheila. “Ela é um grito do que eu queria, do que precisamos lembrar todos os dias

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Sheila tem uma frase e uma rosa tatuadas na coluna vertebral: mistura de dor e poder

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Texto: DANIEL KEPPLER E HENRIQUE GUEDES Foto: DANIEL KEPPLER Diagramação: ALEK ILEK E DANIEL KEPPLER

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AMOR TRANSFORMADO

EM TRADIÇÃO

EM SANTOS DESDE 1954, SEU HILÁRIO É TORCEDOR-SÍMBOLO DO JABAQUARA; SEU SALÃO É UM MUSEU INFORMAL DO CLUBE

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Centro Histórico de Santos é um dos núcleos comerciais e financeiros da Cidade. Desde cedo e durante todo o horário comercial, suas ruas estão lotadas de pessoas indo para lá e para cá, cumprindo seus compromissos profissionais ou resolvendo problemas. Mas até mesmo no meio dessa correria, há espaço para um pouco de calmaria - daquelas que só a experiência traz. Quem passa em frente ao número 20 da Rua Martim Afonso parece voltar no tempo. Ali, há mais de 10 anos, seu Hilário do Jabuca mantém seu salão. Mas não é um salão comum: nas paredes, quadros e mais quadros com fotos e recortes de jornal antigos. Uma cadeira de engraxate na entrada. Ao fundo, um manequim com uma camisa de time de futebol que, para os mais jovens, talvez não seja tão conhecida - mas que para o dono do local, é sinônimo de amor verdadeiro. Quando não está atendendo al-

gum dos vários clientes que fidelizou ao longo do tempo, Hilário está sentado às portas do salão, olhando o movimento e cumprimentando os amigos que passam por ali, ou limpando seu local de trabalho. Sempre com um sorriso no rosto. “Eu já recebi propostas para vender [o salão], mas aqui é a minha vida... é onde eu tenho meus amigos, tudo. Também já trabalhei em outros pontos, antes”, conta. Ao todo, já são 60anos trabalhando como barbeiro - e não cabelereiro, como deixou claro desde o início. “Mas barbeiro mesmo viu, não é como esses que estão aparecendo agora”, fez questão de diferenciar, brincando.

Vivência que trouxe experiência

Não é à toa que seu Hilário faz tanta questão de falar sobre as décadas de experiência que acumula na função de barbeiro, sendo atualmente um dos mais conhecidos de Santos. O caminho que ele teve que percorrer até aqui foi longo. Atualmente com 85 anos, Hilário

Eu já recebi propostas para vender [o salão] , mas aqui é a minha vida... é onde tenho meus amigos, onde tenho tudo” Seu Hilário do Jabuca

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nasceu em Jaú, no interior de São Paulo. Na adolescência, trabalhou com o paina roça, mas problemas fizeram com que a casa da família fosse vendida. O que poderia ser uma verdadeira tragédia, no entanto, foi a porta de entrada para o que seria sua vida dali em diante. “Eu tive que ir embora... fui para a ‘cidade grande’. Precisava trabalhar, não podia escolher. E assim que cheguei, já achei um emprego, de engraxate”, conta. No entanto, aquele jovem não se contentava com aquilo. Curioso e observador, assistia aos barbeiros trabalharem, e com o tempo conseguiu a chance de se tornar um. “Viajei muito depois disso... um dos melhores lugares foi o Rio de Janeiro. Era uma época boa”, conta, demonstrando saudade. Depois disso, ainda morou em São Paulo e, de lá, desceu a Serra rumo a Santos em 1954. “Me encantei, foi amor à primeira vista”, afirma.

O Jabuca como conexão

Antes mesmo de colocar os pés em Santos, seu

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Hilário já sabia qual a primeira coisa que faria: procurar um certo time de futebol, que há anos já contava com sua simpatia - simpatia essa que, em pouco tempo, virou amor. “Uma vez, quando eu ainda morava em Jaú, o XV fez um jogo contra um time de Santos chamado Jabaquara [tratou-se de uma final-de-três que decidiu uma vaga no Campeonato Paulista da 1ª Divisão de 1952]. O XV ganhou por 5x0, mas eu gostei mesmo foi do Jabaquara”, lembra-se com alegria. “Então, assim que eu cheguei em Santos, fui procurar o time, e nunca mais deixei de acompanhar”. Quando seu Hilário diz “nunca mais”, é verdade: reza a lenda que, da década de 1950 até hoje, ele perdeu apenas um jogo da equipe dentre os jogados em Santos. “O jogo que eu perdi, aconteceu porque eu estava doente”, justifica ele. Por conta da paixão declarada e explícita, seu Hilário é considerado o torcedor-símbolo do Jabaquara - título que lhe dá muito orgulho. Seu salão, inclusive, é uma prova disso: lá, estão expostos recortes de jornal, fotos antigas do clu-


be e até mesmo camisas da equipe. O espaço é praticamente um pequeno museu do Leão da Caneleira”, sendo cuidado por Hilário com o máximo de esmero. “Eu já perdi a conta de quantos quadros eu pendurei... são mais de 200”, conta. Segundo ele, o Jabaquara lhe trouxe mais do que fama: trouxe amigos e uma razão de viver. “Estar no Espanha [o estádio do Jabaquara] para assistir o time jogar é maravilhoso. Não importa o campeonato, não. Aquele lugar é onde eu me sinto melhor”, revela seu Hilário.

“Quando for a hra, vou saber”

Ao longo dos anos, seu Hilário deu exemplo nas arquibancadas: esteve ao lado do time de coração sempre, tanto nos momentos bons (como em uma histórica vitórica conquistada pelo time sobre o Santos de Pelé, em 1957, ou na conquista da Série B-3 do Campeonato Paulista, em 2002) quanto nos ruins (como nos 10 anos em que abriu mão de ter equipes profissionais, entre 1967 e 1977, ou nos vários anos seguidos sem

conseguir sair da última divisão estadual). Além disso, ele também dá exemplo na vida profissional: mesmo em tempos de crise, prefere agradecer o que tem ao reclamar pelo que não tem. “O movimento tem caído, sim, mas tudo bem. Ainda posso receber meus amigos e conversar. Eu não posso reclamar, pois até hoje posso trabalhar e estou bem, me sinto bem”, conta orgulhoso. Sobre isso, aliás, seu Hilário nega qualquer chance de se aposentar, pelo menos a curto prazo. Ele conta que, há alguns anos, sofreu um acidente e precisou se afastar do serviço. “Foi muito difícil”, diz. Na época, a família o recomendou que “pendurasse as tesouras”, mas ele rechaçou a ideia e ainda recriminou os parentes. “Se eu paro de trabalhar, aí é que morro mais cedo”, brinca, garantindo em seguida: “Enquanto eu puder trabalhar eu vou. Quando for a hora, eu vou saber, mas ainda não é”. Grande aprendizado, não? Força, seu Hilário!

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LUTO E DOR CONVERTIDOS EM A OR? PAULO OSHIRO PREFERIU FAZER DA PERDA O PRETEXTO PARA DAR UM NOVO SIGNIFICADO À PALAVRA SUPERAÇÃO

Texto: BEATRIZ ROSA E NATÁLIA LELLIS Foto: BEATRIZ ROSA Edição: NATÁLIA LELLIS

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“N

ada que eu fizer vai trazer o Luann de volta, mas tudo o que eu fizer pode mudar a história de alguém e mudar a história dele lá em cima”. Essa é frase de um pai, que poderia sentir ódio, rancor, indignação, negação por ter perdido o filho mais velho. Mas, ao invés disso, o espaço deixado é preenchido por ações de conscientização e solidariedade. A notícia de que um jovem de 18 anos tinha sido vítima de latrocínio na madrugada do dia 19 de outubro de 2015 estava estampada em todos os jornais da região. A vítima, Luann Oshiro, concluíra o colégio havia pouco tempo e tinha o sonho de cursar economia, segundo o pai. A vida do estudante foi tirada naquela noite, em um ponto de ônibus na Avenida Francisco Glicério, em Santos. Segundo informações da polícia, o jovem tinha acabado de sair de uma festa com amigos quando foi abordado por dois suspeitos que anunciaram assalto a mão armada. Testemunhas afirmaram que ele não reagiu, mas possivelmente assustou os criminosos ao retirar os pertences do bolso para entregar. Esse ato fez com que fosse alvo de um tiro fatal. “Foi um dos piores dias da minha vida”, relembra Paulo Oshiro, um homem já na meia idade, com típicos traços orientais, cabelos pretos, barba rala, com alguns fios brancos, pele vincada pelo tempo e experiências vividas. Apesar disso, sua aparência é conservada, tem um sorriso carismático que revela uma idade bem mais baixa do que o RG prova, 48 anos. Paulo se casou três vezes. Luann e Noah, de 20 anos, são frutos do primeiro; Gustavo, de 11, do segundo; e Henrique, de 5 anos e Lihz de 4 meses, do atual relacionamento. Paulo foi avisado da tragédia na mesma noite e correu para o local ainda quando o corpo do filho estava sendo retirado pelo resgate. Já ciente do falecimento, a primeira pergunta feita aos socorristas foi se o filho havia sofrido por muito tempo: “Não passou de um minuto”, respondeu um deles. “Acredita que isso me aliviou?”, diz Oshiro. Determinado a refazer os últimos passos de seu primogênito, Paulo entrou em contato com representantes da aldeia indígena Rio Silveiras, em Bertioga, lugar onde o jovem Luann havia realizado uma arrecadação de brinquedos com os colegas de cursinho para entregar no Dia das Crianças, uma semana antes de sua morte prematura.

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Brinquedoteca Luann Oshiro e , ao lado, logo do projeto

Com o dia marcado, ele foi até a aldeia e se sentiu inspirado a preparar uma festa de Natal para as crianças. Conversou com Noah, um de seus filhos, e amigos de Luann, e começaram a organizar o evento. Foi a primeira ação de Paulo Oshiro, que mais tarde daria vida ao projeto que levaria o nome do filho. “Senti que o projeto não poderia parar, é como se tivesse recebido um sinal depois dessa visita à aldeia”. O projeto Luann Vive começou a ganhar forma em uma reunião na brinquedoteca que também leva o nome de Luann. Na parede, com tiras coloridas, diversos desenhos do rosto de um jovem oriental e sorridente, estão pendurados nos quadros. Algumas imagens com óculos, outras de boné, outras com alguns acessórios. Essa


arte, que também estampa a camisa de Paulo, representa seu filho, o rosto que motivou a iniciativa. “Meu pai é uma pessoa comum, como todas as outras, só que ele tem o diferencial que é colocar as coisas em prática, ter essa sacada de percepção da ação”, descreve Noah, diretor-fundador do projeto. Por meio das ações realizadas pelo Luann Vive, Paulo ocupa sua mente com atitudes voltadas para fazer o bem, conscientizar e dar continuidade às ações que Luann propunha. De certa forma, o novo propósito foi determinante para que a família percebesse que não estava perdida e que conseguiriam forças para continuar a viver após a perda. “O projeto ajudou nossa família. Se não tivéssemos começado, provavelmente estaríamos loucos”, desabafa Noah. Um dos ideais assumidos por Paulo no projeto foi o de combater a receptação de eletrônicos roubados. Após o fato ocorrido com o filho, ele gravou a primeira frase que disse ao delegado: “se não tivesse quem comprasse, o Luann estaria aqui”. Desde então, Paulo se comprometeu com a causa e realiza palestras em que conta o caso do filho como uma forma de conscientizar. “Ele é uma pessoa dinâmica, criativa, solidária e firme nos propósitos que se referem ao Luann Vive”, definiu a voluntária que assessora as palestras de receptação, Maria Aparecida Costa. Sempre disposto a fazer o possível para ajudar aqueles que buscam o Luann Vive, Paulo foi grande defensor do objetivo de trazer o projeto Pró Medula para a Baixada Santista. A coordenadora do Pró Medula Santos, Adriana

Que minhas ações se transformem em orações

Rodrigues, teve dificuldade para conseguir desenvolver o trabalho no hemocentro da cidade e procurou Paulo para ajudá-la. “Ele, como sempre, se dispôs prontamente a me ajudar”. Hoje, o Pró Medula Santos caminha sozinho. “Obviamente, isso talvez não tivesse acontecido se o Paulo, lá atrás, não tivesse se disposto a me ajudar”, confessa Adriana.

As cores do amor

Atualmente, Paulo trabalha na Secretaria Municipal da Educação (SEDUC), em Santos, onde é responsável por vistoriar a infraestrutura de 82 escolas da região. Unindo emprego e voluntariado, a parceria entre o Luann Vive e a Prefeitura já rendeu à cidade alguns murais grafitados. Além da arte estar presente em alguns colégios, o parque infantil dentro do Complexo Esportivo Rebouças também recebeu novas cores. Apesar de recente, o projeto já começa a dar bons frutos. Noah está estudando em Viçosa, Minas Gerais, e levou o Luann Vive para ser trabalhado dentro da instituição universitária.

“Nós atuamos em quatro frentes: combate à receptação, cadastramento no banco de medula óssea, arrecadação de alimentos junto às atléticas da universidade e estamos trabalhando com o meio ambiente, limpando rios e córregos. O projeto está crescendo aqui”. De um ponto de vista popular, o nascimento é começo e a morte o fim. Mas para quem fica, a vida pós perda não acaba. Há quem dire desse acontecimento motivação para viver o resto de seus dias se queixando de uma parte que falta e enxergue o copo da vida meio vazio, quase seco. No entanto, há quem seja capaz de continuar a história após um ponto final, em uma outra página, ou no parágrafo seguinte. A parte que falta de Paulo Oshiro jamais poderá ser substituída ou preenchida. Ele poderia decidir viver, desde o acontecimento de 2015 como um Paulo vazio e incompleto, mas ele decidiu continuar e transbordar superação. “Minha vida é essa. Tocar esse projeto é o que vai me completar, me deixar feliz, deixar o Luann feliz. Eu vejo um mundo melhor, eu acredito

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Castelo pintado pelo projeto Luann Vive.

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Texto: GABRIEL CHICONI E NATHÁLIA AFFONSO Foto: NATHÁLIA AFFONSO Diagramação: GABRIEL CHICONI

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EU E DEUS, DEUS E EU COM 44 ANOS E 3 RELIGIÕES, LAILA VIVE A MULTICULTURALIDADE BRASILEIRA

A

o ver a mulher de pouco menos de um metro e sessenta de altura, corpo moreno e sorriso aberto andando pela rua no bairro do Embaré, poucos achariam que se trata de uma estrangeira se não fosse pelo hijab lilás cobrindo seu cabelo. E embora o lenço de pano possa mudar a percepção de quem cruza o caminho com a moça, basta um minuto de conversa para perceber que ela também nasceu na cidade. Todos os dias ela anda até a Mesquita Islâmica de Santos, onde leva a maior parte de seus dias. Numa sexta-feira à tarde, enquanto muitos vestem paletó e salto-alto, Laila está usando sapatos baixos, um terninho preto e uma saia longa. Sentada à frente da mesa de tampo de vidro na sala da diretoria do templo, sua expressão é metade seriedade, metade contemplação. Qualquer um que visse a cena poderia ser enganado não só pela aparência nada ortodoxa da senhora presente na sala, mas também pelo ambiente. Com uma janela grande, a mesa de dez lugares com pernas de mogno maciço com um vaso ao centro, quadros da cidade de Meca pelas paredes e uma estante repleta de livros escritos em árabe, poderia se dizer que a sala se situava em um prédio

do outro lado do planeta e isso não levantaria nenhuma suspeita. A luz do sol entra pelo vidro, parte transparente, parte em vitral colorido, iluminando os quatro cantos do ambiente. O visual é convidativo, e o rosto inicialmente fechado de Laila começa aos poucos a mudar de semblante. A sensação é de aconchego no local dedicado ao exercício da espiritualidade e à conexão com Deus de uma forma que une as formalidades judaico-cristãs, de onde a religião origina, com a independência que é comum às religiões praticadas na Ásia. Laila é secretária da Mesquita Islâmica de Santos. Seu nome nos documentos é Edlaine Vasques da Costa. Muçulmana convertida em 2005, a brasileira é casada com um libanês vinte anos mais velho, vive na cidade onde nasceu e passou por outras jornadas religiosas nos seus 44 anos de vida. Assim como tantos outros no Ocidente, a pequena Edlaine cresceu em um ambiente cristão. “Sempre frequentei centros espíritas kardecistas três vezes por semana, mas era muito questionadora. Minha mãe conta que, às vezes, quando eu era criança, eu parava de brincar e ia até ela perguntar: ‘Se Deus fez tudo, quem é que fez Deus?’, E ela sempre dizia que eu ia

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Na época, eu prometi que seria só eu e Deus e Deus e eu. Não frequentaria mais religiões Laila

O apego à religião sempre foi característica forte em Laila

acabar num hospício, que eu era doida”. Embora vivesse contente com o ambiente religioso, Edlaine, já moça, quis explorar outras culturas: “Sempre tive dois sonhos: ser hare krishna e aprender a língua árabe. O meu pai não era totalmente obtuso, mas não aceitava muito bem a ideia do hare krishna porque achava que tinha a ver com drogas. Ele não me deixava nem ir na feirinha hippie,” conta,

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rindo. “Mesmo assim, procurei um grupo Vaishnava [nome correto da religião] em Santos. Foi nessa época que Edlaine ganhou seu segundo nome. “No hare krishna me iniciaram como Lila, e foi assim que fiquei conhecida”. Rebatizada como Lila, a moça conta que aprendeu muito sobre os costumes indianos no começo da vida adulta. “Muitas pessoas pensam que as religiões indianas são polite-

ístas, mas, na verdade, elas adoram a um único deus, que é Vishnu, em todas as suas formas. Eu sempre acreditei em um só Deus, mesmo quando frequentei outras religiões”. Após alguns anos, o lugar onde o grupo se reunía fechou. “Depois disso, prometi que seria só eu e Deus e Deus e eu”, conta Laila. “Passei anos sem frequentar nenhum grupo religioso, mas sempre levei comigo a minha espiritualidade”. No entanto, Edlaine tinha outro sonho que ainda não havia cumprido: o de dominar a língua árabe. Não é dos idiomas mais fáceis para se aprender e tampouco o que conta com mais escolas e professores no Brasil. Os principais sites de cursos e escolas sequer mencionam a língua, mesmo sendo a mais popular do Oriente Médio. “Procurei em vários lugares,” lembra Edlaine, “fui a várias escolas de idiomas, até algumas que diziam ter o curso, mas ninguém mais dava as aulas. Fui à igreja cristã ortodoxa, mas queriam me


converter. Foi então que eu vim aqui”, comenta, ajustando o hijab à cabeça e olhando de relance ao seu redor, a luz do meio-dia passando e atirando sombra sobre a sagrada Meca pendurada na parede oposta ao sol, como que lembrando que naquele momento o sol se punha na Arábia Saudita. “Comecei a ter aulas com o sheik”, lembra. “Me apresentei como Lila. Imagina quantas vidas eu ia passar lá até ele entender Edlaine... e isso porque eles nem acreditam em outras vidas!”. Edlaine, Lila ou Laila, a moça frequentara a mesquita apenas para estudar árabe durante seis meses. Se perguntada, não teria dito que iria ter outro motivo para estar lá. “O sheik me convidou para conhecer a sala de oração. Aceitei por educação”, conta a secretária, simulando uma voz emocionada. “O tapete hoje é

velho, mas há 13 anos era bem fofinho. O pé até afundava quando você pisava”, brinca. Enquanto recorda, seus olhos brilham com a memória. Ela ajeita mais uma vez seu hijab. “E as paredes eram lindas. Aquilo tudo fez meu coração acelerar”. Mais tarde, Laila se converteria por vontade própria. “Não tem um cara como um padre, que diz o que você tem que fazer, não. Aqui, seus assuntos com Deus são seus. Aqui não tem padre”. Na cultura islâmica, o sheik é ancião da mesquita. Fica sob sua responsabilidade a organização do templo, mas não há autoridade religiosa como a do padre católico. “E eu fiquei”, conclui Laila com um suspiro. A secretária não enfrentou dificuldades para se adaptar à nova crença. Ela nunca bebeu e nem fumou. “Eu já levava um estilo de vida parecido com o da mesquita,

então não tive que me adequar”. Um tempo depois, a mesquita precisava de uma secretária. Laila trabalhava na Folha de S. Paulo, mas pediu demissão assim que soube. “Aqui eu contribuo, faço algo mais importante. Eu cuido de tudo: atendo o telefone, faço relações públicas, organizo eventos e me conecto com Deus”. Há oito anos, se casou com um libanês vindo para o Brasil. Ela lembra “As pessoas têm uma imagem errada do islã. E não é só por causa da política e dos retardados [sic] que fazem terrorismo em nome de Deus. É por causa da mídia também, daquela novela O Clone, do Aladdin... O que aparece de menina aqui, menina de dezesseis até sessenta, achando que tem que virar muçulmana pra casar com um estranho do outro lado do mundo... E não é assim. Não tem nada a ver!”

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Após um dia de trabalho, Laila deixa a Mesquita

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Texto: BEATRIZ HURTADO, LARISSA PEDROSO, RENAN COSTA Fotos: LARISSA PEDROSO Diagramação: BEATRIZ HURTADO

Do semáforo para o escritório A HISTÓRIA DE UM EX-JOGADOR DE FUTEBOL QUE VENDIA CASTANHA NA PONTE PÊNSIL E TINHA O SONHO DE OFERECER MELHORES CONDIÇÕES À SUA FAMÍLIA

I

nfância humilde, pés descalços, sol forte, sonho de se tornar jogador de futebol. Era a realidade de Adauto Vieira de Moraes aos 11 anos de idade. Nascido em Santos, o homem que hoje está à frente da A3 transportes, trilhou seu caminho guiado pela determinação para superar as adversidades. Pouca comida em casa e muitas contas a pagar, sua família sempre estava mudando de endereço em busca de estabilidade financeira. Sua mãe trabalhava como auxiliar de enfermagem e seu pai era motorista de caminhão e ônibus. Adauto sendo o mais velho, resolveu suar a camisa desde cedo para ter uma vida menos sofrida. A responsabilidade não veio como obrigação, aconteceu de forma muito natural. Assim como o sorriso em seu rosto ao nos contar sua história. Mesmo com as dificuldades enfrentadas em sua infância, Adauto

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nunca se abateu. Muito pelo contrário, isso o fortaleceu para conquistar seus objetivos. Vendo a luta diária dos pais, tomou a iniciativa de vender amendoim para ajudar a família. “Em nenhum momento meus pais nos obrigaram a trabalhar, foi uma ideia minha e depois meus irmãos vieram me ajudar. Como eles precisavam, não reclamaram, mas saía tudo da minha cabeça”, recorda Adauto, hoje com 51 anos de idade. No verão, aproveitando os muitos turistas que cruzavam a Ponte Pênsil formando fila na região do Japuí, São Vicente, decidiu que ali seria seu ponto de venda. O irmão de Adauto, Adilson Tadeu de Moraes se recorda, emocionado da atitude do irmão diante da situação financeira ruim que enfrentavam. Aos 14 anos, entrou no Centro de Aprendizagem e Mobilização Profissional e Social (CAMPS) e trabalhou


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Adauto não se arrepende de nenhuma escolha feita. O sorriso evidencia seu orgulho a cada decisão

Passo sempre pela Ponte Pênsil e em pensamento volto 41 anos atrás. Lembro de como eu fazia para vender castanhas de baixo valor, eu ali, ainda garoto, no meio de tantas pessoas”.

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mento em todas as áreas da sua profissão, companheiro, solidário e amigo” revela Ruth Bispo dos Reis Ângelo, empresária na Aduaneira Sul Americana e amiga de Adauto. Ao longo de vinte anos de convivência, essa relação profissional transformou-se em uma amizade forte. Assim como Ruth, muitas pessoas admiram a sua postura profissional. Alan Fernandes, também amigo e funcionário de Adauto há 10 anos, diz que ele é um dos melhores profissionais da área de transportes e como amigo, Alan conta que Adauto também faz um ótimo papel. “Ele fala o que você precisa ouvir, é uma ótima pessoa e um exemplo para mim. Além de ter me ensinado muito na rotina diária, me ensinou também valores da vida”. A esposa de Adauto, Maria José, companheira desde a época em que as dificuldades eram enormes, conta que o diferencial do marido é a garra e, sempre viveram um dia de cada vez, sem dar passos maiores do que as

pernas. “Quando nos casamos, a situação financeira não era boa. Mas com empenho, e foco no trabalho conquistamos nosso lar”. Mesmo diante de momentos difíceis, obstáculos aparecendo a cada dia, o humor e estado de espírito de Adauto impressionam, finaliza Maria José. Como pai, Adauto conta que tem as suas falhas, pois sai de casa de manhã e volta à noite desde que sua filha Juliana nasceu. “Sempre saí de casa às 6 da manhã e voltava 8 da noite e admito que sou ausente nessa parte, mas é sempre tentando fazer o melhor possível para a condição da minha família”. Juliana Moraes, 21, afirma que o pai é um homem que trabalha muito. “Às vezes eu gostaria que ele estivesse presente, como por exemplo num sábado de manhã, mas sempre entendi o lado dele”. Ela conta que ele sempre trabalhou muito, mesmo antes de ter a própria empresa, mas isso nunca a deixou triste, pois ele é um ótimo pai, que sempre a incentivou, finaliza

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O maior troféu conquistado foi longe dos gramados. Mesmo desistindo de seu maior sonho, Adauto é um verdadeiro campeão.

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