REVISTA LABORATÓRIO ED. 03|MAI 2017
INTOLERÂNCIA
UM DEBATE SOBRE OS LIMITES DA IRA
No Brasil, nos últimos três anos o número de casos de intolerância virtual cresceu 200%.
#VIRALIZOU
EDITORIAL
C Para conferir mais sobre esta edição acesse nosso blog viralunisanta.blogspot.com
EXPEDIENTE REVISTA LABORATORIAL DO 4º ANO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL COM ÊNFASE EM JORNALISMO DA UNIVERSIDADE SANTA CECÍLIA (UNISANTA) - MAIO.2017 DIRETOR DA FAAC PROF. HUMBERTO IAFULLO CHALLOUB
PROJETO GRÁFICO ORIGINAL BRUNO LESTUCHI, LUCAS RODRIGUES E MARCELO HERMSDORF
COORDENADOR DE JORNALISMO PROF. ROBSON BASTOS
PROJETO GRÁFICO ADAPTADO ALEXIA FARIA, BENNY COQUITO, FELIPE CINCINATO, GABRIELA RIBEIRO, KARINA BLACK, VINÍCIUS TOGNETTI E VÍTOR HENRIQUE
PROFESSORES RESPONSÁVEIS HELDER MARQUES, NARA ASSUNÇÃO E RAQUEL ALVES EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA BRUNA CAPELLA E PAOLO PERILLO PROJETO EDITORIAL AMANDA OLIVEIRA, ESTHER ZANCAN, JANE FREITAS, LARISSA FRANÇA, LEANDRO PEREIRA, LUNA CONCEIÇÃO E RAQUEL VASCONCELOS PROJETO FOTOGRÁFICO DIEGO ALVES, FÁBIO PRADO, GABRIEL SOARES, LETHÍCIA GABRIELA, MAYRA RODRIGUES E REBECA DE SOUZA
PROJETO MÍDIAS SOCIAIS ALLINE CALANDRINI, ALESSANDRA OLIVEIRA, BRUNA PAVANATO, DANIELLE LOPES, JÉSSICA SOUZA, LARISSA MARTINS, LETÍCIA FERRI E PAULA FREITAS SITE ANA CLÁUDIA, BRUNA CAPELLA, GILSON JÚNIOR, JAQUELINE SOUZA, MATHEUS DONCEV, MICHELY ARASHIRO, PAOLO PERILLO E VICTÓRIA SILVA
As matérias e artigos contidos nesta publicação são de responsabilidade de seus autores. Não representam, por tanto, a opinião da instituição mantenedora - UNISANTA - Universidade Santa Cecília.
2 Viral.com
hegamos ao terceiro número da Viral com um novo time de jovens repórteres e o mesmo espírito aguerrido das edições anteriores. Desta vez, trazemos para reflexão um assunto que tem dominado as conversas, as redes virtuais e a vida em sociedade: a intolerância. Buscando abrangência e diversidade, tentamos compreender o que motiva as manifestações de ira em relação ao diferente e colhemos histórias de dor, medo, frustração e também de superação e libertação. A origem da palavra tolerância deriva do latim tolerare e tem o sentido de suportar, aceitar o que não se quer ou o que não se pode impedir. Intolerância, portanto, é não aceitar o que destoa do que se deseja, ou simplesmente daquilo a que se está acostumado. E se há algo que deveria ser simples na existência humana, é a arte de conviver com as diferenças. Diferenças,aliás, que constroem o nosso imenso patrimônio cultural, seja ele no âmbito pessoal ou coletivo. Uma construção que é feita com o que aprendemos em casa, com as nossas referências somada ao que vivemos, captamos e nos apropriamos no nosso dia-a-dia. Quando nos deparamos com algo que foge do que entendemos como ordinário, temos a tendência de lidar com a situação de forma negativa. Porém, humanizando a nossa visão e fazendo o bom exercício da empatia, isso muda. Muda a nossa percepção de mundo e, com ela, podemos mudar a vida de alguém que sofre com não aceitação. Afinal, o que faz de nós humanos são as nossas ideias, sejam elas alinhadas com a maioria ou não. Até porque apesar das diferenças, no fundo nós todos somos bem iguais
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4 Beleza
Mito do cabelo liso com os dias contados
8 Relacionamento
Histórias do amor que sobreviveu às diferenças
12 Questão de gênero
LGBT´s, o alvo predileto dos intolerantes
18 Adoção ENSAIO
38
Novos modelos de família ainda enfrentam barreiras
24 Amamentação
Mulheres reivindicam o direito de dar o peito em público
32 Jogo da intolerância Pessoas confessam o que as fazem perder a calma
44 Religião
O respeito termina onde a intolerância começa
52 Islã
Para a comunidade muçulmana, a mídia alimenta o preconceito
58 Internet
Atrás de um teclado o intolerante vira um guerreiro
64 Transtorno
Alimentar
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24
A sociedade precisa aprender a levar a sério a doença
Sumário 3
Enfim Livres!
MENINAS QUE CRESCERAM SOB O MITO DO CABELO LISO COMO SÍMBOLO DA BELEZA FEMININA, FINALMENTE DÃO SEU GRITO DE LIBERDADE
Texto e edição: ESTHER ZANCAN, GABRIELA RIBEIRO, LEANDRO PEREIRA E REBECA DE SOUZA Ilustrações: GABRIELA RIBEIRO
4 Padrão de Beleza
P
or que você não alisa esse cabelo, menina? Fica andando por aí com essa juba, esse arbusto!”, “ninguém vai querer você!”, “tão bonito o seu rosto, mas esse cabelo estraga tudo, fica feia assim”. “Por que você não em ouve e alisa logo isso?”. Além de ter que conviver com críticas e comentários desnecessários elas sofreram com a ditadura da moda. Era só olhar para os lados e deparar com os fios lisos e retos por todo lugar, alguns já estáticos pela ação da química. Até que elas não resistiram mais. Não por realmente querer, mas sim para estar dentro do grupo e, enfim ceder à pressão social. Chapinha, procedimentos, fios estirados, produtos caros, horas no salão e mil outras obrigações para manter o cabelo perfeito, igualzinho ao da modelo na capa da revista. Dinheiro e tempo investidos npara às vezes ainda ouvir: “Está tão ressecado o seu cabelo. Credo!” ou “Que cabelereira você vai, heim? Está meio estranho”. Era o cúmulo. Com o tempo até tiques elas desenvolveram. Pentear só para um lado para parecer mais natural. Não prender para não marcar. Não lavar todo dia para durar mais o alisamento. Passar mais chapinha antes de sair. Tudo para mantê-lo em perfeito estado. Regrinhas básicas. De regra em regra, o cabelo foi sumindo. Começou a cair, depois a quebrar, logo estava pouco, fraco e até o brilho se foi. Então surgiu a memória do cabelo natural. Ah como seria bom se ver livre de tudo isso! Voltar à origem e simplesmente “ser”. Quantas meninas já passaram por essa situação? Quantas já tentaram se encaixar no padrão imposto? Inúmeras e por tempo mais que suficiente. Porém, agora isso tem se modificado. A transição capilar coleciona cada vez mais adeptas. Dores e sabores da transição Kahuanny Rein, 20, operadora de SAC e estudante de Administração é uma delas, e conta que se sente realizada. Segundo ela, o bullying sofrido na escola foi o
Kahuanny Rein, 20, está cacheada há um ano
Jéssica Da Silva, 21, assumiu os cachos há seis anos
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Emanuela Oliveira, 20, adepta da transição há um ano
Caroline Souza, 27, ao natural desde 2014
6 Padrão de Beleza
motivo que a levou a alisar seus cabelos já aos oito anos de idade. “Minha mãe conta que eu chorava porque meu cabelo não era igual ao das outras meninas, e eu pedia para ter o cabelo liso”, recorda. O tempo passou e ao completar 19 anos, Kahuanny sentiu falta dos seus cabelos naturais quando percebeu que com a troca de produtos de alisamento o cabelo estava perdendo a força e o brilho. “Preferi o cacheado do que gastar tempo e dinheiro em algo que não estava ficando bom.”, acrescentou. Hoje, a estudante não consegue disfarçar o sorriso no rosto ao comentar o quanto se sente bela e livre com seus cachos de volta. “Antes eu me sentia desgastada e feia. Nunca nada estava bom. Além de que eu sempre estava com a cabeça cheirando a queimado. Hoje em dia eu me sinto linda. Meu cabelo é lindo. Pinto da cor que quero e ele continua firme e forte. Agora está sempre cheiroso e limpinho. Recebo muitos elogios”. E não é só o bulliyng que exerce pressão sobre as jovens cacheadas. “A televisão e as mídias em geral sempre mostram as ricas e bonitas de cabelo liso, e querendo ou não, isso vira tendência e nasce a vontade de ser perfeita como elas.” O desabafo é de Emanuela Oliveira, 19, vendedora, outra adepta à transição capilar. Emanuela conta que deixou os cachos porque se via fora dos padrões da moda e vivia escutando críticas. “Era difícil ver todos com o cabelo liso ou todos me criticando por ter um cabelo cheio”, explica. Atualmente, ela conta que abusa e usa de sua liberdade e se sente cada dia mais bonita para exibir seus cachos. “Antes eu me sentia presa ao alisamento, à chapinha, ao guarda-chuva. Hoje me sinto completamente livre pra usar o cabelo como quero”. Mas para conquistar essa liberdade, é
preciso atitude. “Para as minhas amigas que alisam o cabelo até hoje, a minha decisão de voltar ao natural foi de muita coragem. Elas falam que não fariam o mesmo”, confessa a auxiliar de escritório, Jéssica da Silva, 21, que acalenta o sonho de ser modelo. Para chegar lá, ela aposta na beleza de seus cachos. “Antes volume era um desespero, mas hoje não, hoje o que mais quero é volume”. Paciência também é um ingrediente imprescindível nessa odisseia em busca de cabelo perfeito, pois o processo pode ser demorado. “A raiz em três meses já está enrolando, porém o cabelo todo pode demorar de dois a três anos”, diz a cabelereira Cristiane Aparecida, 41. Além da demora, os custos podem ser um empecilho. Os preços dos produtos para manutenção do novo look variam entre R$100 e R$600. Mas, como diz o velho ditado “Mais vale um gosto que um tostão no bolso...” Acabou o preconceito? Hoje parece que as coisas mudaram para as cacheadas. As empresas de cosméticos têm investido em produtos inovadores para elas e incentivado a aceitação dos cachos. Além disso, as próprias meninas têm estimulado umas as outras a se amarem como são. Por tais motivos, a jornalista e blogueira especializada no assunto, Caroline Souza, afirma que muitas pessoas acham que o preconceito acabou, mas na verdade, não. “O preconceito existe ainda, porém de forma sutil. Estamos melhorando muito, mas ainda há um longo caminho a percorrer”, pontua. A jornalista também chama a atenção para um tipo diferenciado de cacheada, que ainda não é bem visto pela sociedade: as crespas. Nas revistas e nos comerciais costuma-se mostrar e falar muito em cachos definidos. Mas e quan-
do os cachos não são exatamente soltos, sedosos e brilhantes? “É como se estivessem aceitando as cacheadas, mas as crespas nem tanto assim.” acrescentou. Outra intolerância implícita também são as brincadeiras de família ou indiretas a respeito dos cabelos cacheados. Caroline disse que é muito comum se ouvir a própria família da mulher cacheada falar: ‘Você fica melhor de cabelo liso.’ Muitas vezes as pessoas mais próximas acham que está ajudando a elevar a auto-estima da mulher, mas na verdade podem estar achatando a sua identidade e fazendo-a se sentir inferior às outras mulheres. “Já li relatos de meninas, cujos pais ou maridos falavam que dariam o dinheiro para que elas alisassem os cabelos, que na visão deles, estavam horríveis”, analisou a especialista
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Hoje me sinto completamente livre para usar o cabelo como quero. Emanuela Oliveira
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Cabelo, cabeleira, cabeluda
Quando se fala em cabelo cacheado a verdade é que não se está falando de apenas de um tipo de fio. São vários os graus de ondulações, desde os mais próximos ao liso, até os mais fechados. Saber reconhece-los facilita na hora de buscar os produtos e cuidados mais adequados.
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Texto: GILSON SANTOS Foto: FÁBIO PRADO E ARQUIVO PESSOAL Edição: BRUNA CAPELA, DANIELLE LOPES, GILSON SANTOS E VITOR HENRIQUE
O amor de Matheus e Nicolli venceu o medo e o preconceito
O AMOR E A
LUTA DIÁRIA
PELA ACEITAÇÃO CASAIS FORA DO PADRÃO PRECISAM BATALHAR DIARIAMENTE PELO DIREITO DE AMAR
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Brasil é um país miscigenado, que abriga, de forma aparentemente harmônica, incontáveis culturas, costumes e crenças. Apesar disso, uma contradição parece ser ainda comum em qualquer parte dos 26 estados da nação: o preconceito. De acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os negros representam 54% da população brasileira. Mesmo assim, casais de etnias diferentes ainda são um tabu na sociedade. 70% dos casamentos no País ocorrem entre pessoas da mesma cor, tornando a raça um fator predominante na escolha de parceiros conjugais, aponta outra pesquisa do IBGE.
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Meu pai não é racista, mas ele não imaginaria a filha dele namorando um negro. NICOLLI HOFMANN
Segundo a psicóloga e professora Luci Mara da Silva, a diversidade cultural contribui para a intolerância na sociedade brasileira: “Até achamos que somos diversificados. Mas o que acontece é que cada cultura vive a sua realidade”. Ainda segundo a psicóloga, a época de escravidão no Brasil, que durou entre 1549 e 1888, ainda tem reflexos nos dias atuais. “Sempre tivemos essas desigualdades sociais, e isso resulta em intolerância mesmo. O Brasil teve muito mais tempo de escravidão do que a libertação dos escravos”, explica a educadora. Mais de um século depois do fim da escravidão as barreiras ainda incomodam. “Antes de começarmos o relacionamento, minha atual namorada havia comentado
Nicolli e Matheus estão juntos há um ano e meio
10 Amor livre
com uma certa pessoa que queria namorar comigo, e a pessoa a questionou sobre a minha condição financeira, atrelando meu saldo bancário, eu acredito, à minha etnia”. O relato é do operador de serviços internos e estudante de engenharia, Matheus Trindade da Silva, 22 anos. Trindade conheceu a assistente administrativa Nicolli Hofmann Dias quando ela começou a frequentar a igreja que ele fazia parte. Juntos há um ano e meio, eles têm suas diferenças, como qualquer outro casal, mas a que mais atrai olhares é o fato de Trindade ser negro, e Nicolli, branca. De acordo com o casal, eles já não sofrem com comentários preconceituosos, apesar de notarem comportamentos estranhos das pessoas em relação à diferença de etnia. “Quando entro em lojas sinto seguranças e outras pessoas olhando. Teve uma vez que a Ni entrou no mercado e eu fiquei na porta e a galera não parava de me olhar”. Devido a problemas em um outro relacionamento, Nicolli sentiu necessidade de preparar o pai para aceitar o namoro. “Meu pai não é racista, tem amigos negros, mas ele não imaginaria a filha dele namorando com um”, afirma a assistente administrativa. Ela ficou com receio, mas no final tudo correu bem: “Fui preparando meu pai, porque eu sabia que ia namorar com o Matheus e era importante a aprovação dele . No final deu tudo certo e ele aceitou”. Leonardo e Vitor Assim como relacionamentos entre etnias distintas, casais gays também ainda não são aceitos abertamente pela sociedade. No caso do estudante de engenharia civil, Leonardo Morais, 19 anos, e
do estudante de moda, Vitor Santinni, 23 anos, alguns cuidados precisaram ser tomados para que o preconceito não fosse parte do cotidiano do casal. “Em lugares menos frequentados e em ruas mais vazias e discretas a gente anda de mãos dadas, caso contrário, é difícil a gente andar junto na frente de muita gente por causa do preconceito, preferimos evitar esses casos. Lugares onde nos sentimos a vontade é a minha casa e as baladas GLS”, conta Morais. Apesar de estarem juntos há um ano e três meses, o casal já se conhece há cinco anos por meio de um amigo em comum. Por isso, eles sentem que a aceitação da família foi mais tranquila, com exceção da mãe de Santinni, que no começo, foi contra a união. Da parte do estudante de engenharia, a aceitação ocorreu de forma mais tranquila, apesar de seu receio. “Meus amigos reagiram todos bem e eles me encorajaram a contar para a minha família. Minha mãe e meu padrasto, ambos com mais de 50 anos de idade, reagiram bem e queriam ver minha felicidade. Fiquei muito aliviado”, explica. Diferença de idade Por mais que relacionamentos com grandes diferenças de idade já não causem tanta estranheza na sociedade, ainda há casos isolados em que o casal sofre o preconceito, como o caso da estudante de administração Hiuly de Souza, 21, e o marido Jonas Junior, 42, que se viram diante de uma situação complicada: fazer com que a família da Hiuly aceitasse a união. “Sofri, e não foi pouco! Quando meus pais descobriram - depois de quase um ano juntos -, apanhei. Minha mãe queria me tirar do serviço e do curso que eu
Leonardo e Vitor evitam andar de mãos dadas na rua
fazia para eu não sair de casa e não me encontrar mais com ele, ou seja, queria fazer de tudo para que eu não tivesse nada com ele”, relata a estudante. Diante da situação, o casal decidiu morar junto, e agora, pouco mais de três anos após o ocorrido, Hiuly já fala com a mãe normalmente. Apesar da turbulência com os pais da jovem, a reação da família de Junior e amigos do casal foi positiva. “A família dele sempre nos apoiou bastante, porque viram que estávamos juntos e gostávamos um do outro, sem qualquer interesse. A maioria dos amigos nos apoiou e ficou feliz por nós quando resolvemos morar juntos”, conta
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“
Sofri, e não foi pouco! Quando meus pais descobriram, apanhei. HIULY DE SOUZA
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Reportagem, fotografia, diagramação e edição BÁRBARA BARRETO E RAFAEL HENRIQUE
12 Gênero
QUESTÃO DE GÊNERO EM TEMPOS DE LIBERDADE DE ESCOLHA, A HOMOFOBIA AINDA MARCA TERRITÓRIO E FAZ INÚMERAS VÍTIMAS
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e é noite, eles enfrentam xingamentos, ameaças e a sensação constante de perigo. Isso quando não apanham ou acabam mortos, bem longe da solidariedade das pessoas. Se é dia, eles têm que lidar com olhares de reprovação, com manifestações de hostilidade explícita e com o incômodo de se sentirem sempre na contramão da vida comum. Conversamos com travestis, LGBT’s, pensadores e educadores para tentar entender a dura rotina daqueles que desafiam a lógica binária dos gêneros. Eles estão na mídia, já conquistaram filmes, novelas e as passarelas da moda, mas ainda têm de lutar muito por espaço e aceitação social.
LADO B
JOGA PEDRA NA GENI?
H
á quem diga que se Chico Buarque escrevesse hoje o musical Geni e o Zepelim, o protagonista da história seria um travesti. Se levarmos em conta que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, podemos imaginar que Neandertais ainda caminhem por essa bandas. Para especialistas, a intolerância contra os transgêneros nada mais é do fruto da falta de civilidade das pessoas. Relatar histórias de intolerância é para quem tem estômago. Em um primeiro momento, quando tive a ideia para esta reportagem, achei que seria incrível, mas havia um detalhe: as travestis trabalham na esquina da minha casa. Planejei ir e desisti em dois dias, até tomar coragem. O que mais me rondava era o medo de que alguém da família, do trabalho, da faculdade ou do meu círculo de amigos me visse. Ninguém saberia que estava ali para um trabalho da faculdade. Pensei em avisar meus pais, até um dia antes de ir, mas acordei com um instinto jornalístico, digamos, aflorado e fui à luta. Descobri depois, finalizando as entrevistas, que aquele receio ocorreu por pura intolerância, não da minha parte, mas das pessoas que iriam me julgar. Durante dois dias bati cartão na Avenida Presidente Wilson, em São Vicente, com as famosas travestis que ali trabalham se prostituindo.
Buscava nas perguntas dirigidas a elas, entre cliente e outro, entender sua história, porque estavam se sujeitando à prostituição e, claro, relatos sobre agressões, físicas, verbais e psicológicas que sofreram. A primeira entrevista que consegui foi com a Bruna, 20 anos, em São Vicente há um ano. Ela veio do estado de Amazonas, com aval da família, começou como cabeleireira, mas como o dinheiro que ganhava não era muito, decidiu se prostituir. Mora hoje em um dos melhores prédios da mesma avenida onde trabalha e diz ganhar cerca de 20 vezes mais do que no salão. A entrevista é interrompida por um grupo de quatro homens dentro de uma lotação parada no semáforo à nossa frente. Ali fui testemunha do primeiro de vários ataques verbais que presenciaria durante a produção desta reportagem. Fui alvo também das piadas, se é que podemos chamar assim, por estar ao lado do “traveco”, uma das injúrias proferidas pelos passantes. A reflexão posterior, conversando com as meninas, é de que elas já se acostumaram aos xingamentos e hostilidades Trauma Li num estudo de psicanálise sobre trauma, que o ser humano tende a esquecer, florear ou extrair da memória momentos traumáticos. Por isso insisti em arrancar uma confissão de Bruna, uma história de violência que ela tivesse passado ou vivido.
Ela contou que um dia por volta das 2h da madrugada, entrou no carro de um cliente que disse que a levaria para a casa dele, que era perto dali. O tal cliente tomou o caminho de Praia Grande e sempre dizia que já estava chegando, até que pegou a pista sentido Mongaguá. O desespero foi tomando conta de Bruna. O breu da avenida cada vez mais a angustiava e depois de certo tempo o cliente já não dizia mais nada apenas acelerava o carro. A sorte, lembra ela, foi que, em frente a uma base da Polícia Rodoviária ele diminuiu. Nesse momento, Bruna virou a chave, desligou o carro e desceu correndo, pedindo ajuda. Perguntei se os guardas foram agressivos com ela, como muitas vezes acontece por conta do preconceito, mas por sorte eles a trataram muito bem e ainda fizeram o cliente pagar o valor do programa e a levaram de volta. Por sorte, a história não teve um final trágico. Já no caso de Lívia, companheira de ponto de Bruna, quando o programa terminou, o cliente afirmou que não iria pagar, agrediu-a fisicamente, arrancando-lhe um dente e deixando um olho roxo e ainda abandonou-a no meio do mato, em Mongaguá, sozinha, às 4h da madrugada. Duas pessoas, vários traumas em comum. O maior receio é em relação aos clientes, afinal nunca se sabe quem está dentro do car-
ro. Qual temperamento, o que vai pedir, o que vai fazer. Na sombra da noite, meio escondido na esquina movimentada de São Vicente, vi que a situação é muito real, mas a reação da maioria é muitas vezes velada. As pessoas que passam olham de canto e abaixam a cabeça. A sociedade quer fazer de conta que aquilo não é problema dela. A agressão velada tem o poder de destruir a autoestima de alguém que já é socialmente fragilizado. Vi isso nos olhares direcionados a mim pelas pessoas que passavam nas ruas, nos ônibus e era como se eu pudesse ler a mente delas. Se vivêssemos em uma sociedade em que o patrão contratasse as pessoas pela capacidade e não pela normalidade, provavelmente aquela quantidade de meninas que trabalham nas ruas seria menor, por conta de terem a mesma oportunidade que eu tenho. Por fim, quase meio dia no lado escuro da vida, todas as respostas pareciam apontar para a mesma direção: as pessoas ainda veem os transgêneros como aberrações. E a desconstrução dessa ideia ainda leva tempo. “Só queria mais respeito, sou gente como todos eles. Não sou bicho nem um monstro, por mais que me tratem assim. As pessoas que fazem isso não pensam que um dia pode ser um filho, um amigo, um parente ou até ele mesmo nessa situação um dia”, lamenta Bruna.
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Só queria mais respeito, sou gente como todos eles. Não sou bicho nem um monstro, por mais que me tratem assim. BRUNA, TRAVESTI
Bruna nas ruas e esquinas de São Vicente: uma vida à sombra do medo
ABRA SUA MENTE
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LADO A
ay também é gente”. A frase, cantada pelos Mamonas Assassinas no hit Robocop Gay, desafiava o senso comum do cidadão brasileiro nos anos 1990 em relação ao homossexual. Duas décadas depois, novo século, novas gerações e um mesmo (pré) conceito arraigado de intolerância de gênero, que hoje em dia é vivida abertamente, escancarada em passeatas, bandeiras arco-íris, beijaços nas praças e novelas e muita polêmica. O gay “quase gente” da canção-comédia dos Mamonas transmutou, conquistou certa legitimidade social e identificação em forma de sigla: LGBT – “aquela gente” não era samba de uma nota só porque havia, além dos gays, as lésbicas, os bissexuais e travestis. O Senso 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identificou a existência de 60 mil casais homossexuais no País, além dos estimados 18 milhões de brasileiros autodeclarados LGBT pela Associação Brasileira dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLTT). A decisão de trilhar os caminhos da diversidade sexual tende a ser uma batalha estressante e perigosa: retratos de intolerância à liberdade na escolha de gênero têm sido pintados diariamente a sangue e pontapés em ruas, escolas e estações de metrô. Em dezembro de 2016, o ambulante Luís Carlos Ruas, 54, foi agredido até a morte na estação Pedro II do metrô paulistano ao tentar intervir em uma briga entre homofóbicos e um travesti. O caso teve repercussão mundial e decantou a medida da intolerância em relação aos LGBT’s: ao passo que conquistaram nomenclatura para identificação social, há também uma palavra que defina quem os rejeite: homofóbico, conforme a definição formal, é quem revela atitudes ou atos de repulsa ou preconceito contra homossexuais. A intolerância tem forma, conteúdo e consequências.
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A Secretaria Especial de Direitos Humanos do Governo Federal reconhece o conflito em seu relatório sobre violência homofóbica, onde está registrado: “O Brasil vive, atualmente, um movimento contraditório em relação aos direitos humanos da população de lésbicas, gays, bissexuais e travestis. Se por um lado conquistamos direitos historicamente resguardados e aprofundamos o debate público sobre a existência de outras formas de ser e se relacionar, por outro acompanhamos o contínuo quadro de violência e discriminação que essa população vive cotidianamente. ”Além do ambulante Luis Ruas, morto ao tentar impedir um ato extremo de intolerância, 318 homossexuais foram assassinados no Brasil em 2016, confirmando dados da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) que apontam o Brasil o País como mais intolerante em relação às mortes de lésbicas, gays, bissexuais e travestis que desaparecem do convívio social na proporção que beira um por dia. Na esteira do estigma de cidadãos “quase-gente”, os crimes de violência física praticados contra os gays chegam a 44%. E não é só aos pontapés que se expressa a intolerância, mas com toda palavra que sai da boca dos preconceituosos: “Me dói só de lembrar quando ouvia a síndica do prédio berrar que aquela bichinha não sabia limpar nada direito”. A ‘bichinha, bibinha louca’ em questão era Odair Fernandes, 38, à época, auxiliar de serviços gerais em um edifício em Santos. “Ser condenado por ser quem sou, da forma que nasci é algo que eu nunca vou entender porque incomoda tanto algumas pessoas, mas decidi continuar e ser feliz porque acredito que um dia tudo pode ser diferente”. ‘DESAFINADO’ Professor de sociologia em uma escola pública na periferia de Santos, Francisco Souza, ou Dom Chico, 35 anos, como prefere
Dom Chico tirou a homofobia da teoria e levou para as discussões nas aulas de Sociologia
ser chamado, vivencia o pêndulo da intolerância tanto na vida quanto na profissão: “evito mencionar minha opção sexual para os alunos, mas ao mesmo tempo me sinto compelido a discutir essa questão no ambiente escolar porque é algo muito presente naquele cotidiano”. Os pesos e medidas da intolerância ao homossexual chegam aos extremos em suas manifestações quando, por exemplo, a garota eleita miss é lésbica e sofre ataques homofóbicos que desencadeiam um processo de depressão e isolamento social. Triste marcha que Dom Chico resolveu carnavalizar organizando uma intervenção surpresa durante um evento realizado na escola. “Reuni os alunos LGBT’s, conversamos sobre nosso contexto social e resolvemos fazer alguma coisa. A ideia da intervenção teatral era mostrar os diversos disfarces da resistência social e pontuar que a homofobia está mais próxima do que imaginamos”.
Os homofóbicos que participavam do evento, se inflamaram ao ver casais gays demonstrando afeição pública no pátio da escola. Pais e alunos envolvidos na intervenção bradaram palavras de ordem e conturbaram a celebração. Não deu para segurar o misto de polêmica, paixão e efervescência provocados pela teatralização da homofobia. Intolerantes e não-tolerados face a face, num momento surpresa, tratando das alegrias e dores da convivência com a diferença. “Depois da intervenção as coisas mudaram para muito melhor porque aquele núcleo LGBT da escola passou a ter identificação, a se ajudar, se proteger e com isso, ganhar visibilidade e respeito”. Dom Chico acredita que assim também é a ciranda da vida na qual quanto maior a cumplicidade, mais ampla a proteção social na luta contra a intolerância em seus diversos disfarces
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Quanto mais sabemos sobre nós mesmos, mais podemos questionar e ver possibilidades de um futuro melhor para as próximas gerações DOM CHICO
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Texto: VICTÓRIA SILVA Fotos: ANA CLAUDIA E LARISSA FRANÇA Diagramação: ANA CLAUDIA, LARISSA FRANÇA, MICHELY ARASHIRO E VICTÓRIA SILVA
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CADÊ SUA MÃE, MEU FILHO? DEVERIAM SER DIAS COMUNS, MAS A ROTINA É SEMPRE INTERROMPIDA PELA CURIOSIDADE DAS PESSOAS EM FORMA DA INDAGAÇÃO
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ifícil defini-los ao primeiro olhar. A família caminha, como qualquer outra, em uma noite comum fazendo compras: o filho vai sentado no carrinho do supermercado e os pais ziguezagueiam pelos corredores com a lista de compras nas mãos. Procuram por guloseimas para os momentos de lazer e alimentos nutritivos que, mais tarde, irão se tornar o jantar do pequeno Pedro da Silva, de três anos. Impaciente, o menino tenta pegar um pacote de bolacha recheada para se entreter. O pai adverte que a embalagem só pode ser aberta após passarem pelo caixa e o pequeno protesta, ensaiando um choro. Não há lágrimas, trata-se de uma tentativa de amolecer o coração de Francisco Edson. A tática não funciona e rapidamente uma senhora, que há horas seguia a família e os observava como se
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fossem parte de uma exposição exótica, solta a frase intrigante: “Ele está com manha, quer a mãe. Cadê a sua mãe, meu filho?!” A indagação se repete por mais duas vezes: “Onde está a mãe do menino?” “Chamem a mãe, ele quer colo!”. Já sem paciência, o pai responde o que não deveria ser esclarecido para ninguém: a formação da família não conta com uma mãe. No lugar dela, dois pais carinhosos - o vigilante Francisco Edson, 33 anos, e o auxiliar de limpeza Adriano Barbosa, 39 anos - cuidam do garoto que foi abandonado momentos depois de ter o cordão umbilical cortado. Pedro é, portanto, filho do casal, o que exclui o adjetivo adotado: é filho e fim de papo, afinal o amor e o cuidado são iguais aos de qualquer outra família que é, diariamente, intitulada como tradicional.
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A formação da nossa família não conta com uma mãe Francisco Edson
Depois da escola, Pedro se diverte com seus brinquedos
Mas vocês têm certeza? No Brasil existem diversas famílias com formação similar a do Pedro – sejam dois homens ou duas mulheres. Mas, apesar do número, os olhares curiosos, bochichos e a reprovação de terceiros ainda são comuns. “A gente passou por isso outras vezes. Algumas pessoas simplesmente não têm bom senso, chegam perguntando mesmo, sabe?! Isso quando não ficam apontando ou tentam deduzir que ele é meu filho e o Adriano é meu pai. Como se fosse da conta de alguém”, revolta-se Edson. As opiniões contrárias vieram, inclusive, de amigos próximos. Casados há mais de dez anos, Edson e Adriano precisaram reafirmar diversas vezes que queriam dar esse passo adiante no relacionamento e que o filho não seria um problema em suas vidas ou nas frequentes viagens. “Quando um casal engravida são apenas parabenizados, nós fomos massacrados com perguntas e desestimulo”, lembra Adriano, que garante que nada mudou, a não ser a adição de sorrisos nos dias da casa. Sim, eles tinham certeza e depois de estudar o sistema de adoção (para saber se poderiam ser barrados por conta da orientação sexual) deram entrada na papelada. Um ano depois, Pedrinho já tinha o próprio quarto, com muitos brinquedos espalhados por todos os cômodos da casa e já era dono de seu primeiro bichinho de estimação, a dócil cadela Meia Noite. “Definimos o dia primeiro de junho como o aniversário do Pedro, foi o dia que ele chegou aqui em casa. Na época ele tinha um aninho, estava começando a falar as primeiras palavras e a tentar
Adriano e Francisco estão juntos há mais de 10 anos e no futuro pretendem adotar outra criança
se equilibrar para andar. Então ele tem isso [a formação familiar] como algo natural, somos o pai Edson e o pai Adriano e fim de papo”, explicam. Enquanto em casa ainda não passaram por nenhum questionamento, na rua eles são constantes. A primeira manifestação de intolerância surgiu na primeira reunião de pais e mestres da creche. Há dias os pais observavam que uma das professoras decidiu incentivar o pequeno Pedro a chamá-la de mãe.
“Quando fui à reunião reclamar e deixar claro que ele tem dois pais, senti que o tratamento mudou e o meu filho começou a ser tratado de uma maneira diferente dos demais alunos”. De um dia para o outro, as professoras deixaram de pegar na mão do garoto para ir à sala e na hora da saída. As fraldas passaram a voltar para casa intactas, na mochila, e o Pedrinho totalmente sujo com a roupa que saiu de casa. Sem contar os olhares tor-
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22 Adoção
tos das profissionais e dos outros pais, na porta da creche. Para esse e outros problemas que surgem, a solução é simples: tratamento curto e grosso, como a delicadeza dos terceiros que insistem em se envolver. A família foi à Secretaria de Educação (Seduc) em busca de explicações e para os curiosos, como o caso do supermercado ou outros que aparecem pelo caminho, um olhar torto ou resposta ríspida costumam ser o suficiente para deixar claro que eles não devem explicações para ninguém. Tempo, tempo, tempo... Enquanto os pais de Pedro encaram a sociedade e mostram que a tradição está no amor da família, Cristina Pereira e Lays Barros há cinco meses encaram o trâmite burocrático de adoção, que consiste em: realizar o cadastro no Juizado da Infância e da Juventude, escolher o perfil da criança, passar por uma entrevista, fazer um curso e pegar o certificado de habilitação, entrar na fila de adoção, aguardar a criança, conhecer a criança e pegar a guarda provisória e, por fim, efetivar a adoção. Ansiosas, elas acreditam que o tempo de espera é anormal e responsabilizam a demora a sua orientação sexual. Sandra Regina Pessoa, psicóloga da sessão técnica da vara da Infância e Juventude do Juizado Especial Civil de Santos, garante que isso não é realidade. Segundo a profissional, o tipo de formação do casal não é um problema para o setor jurídico. “Todos os processos correm juntos, sem qualquer diferença. Vivendo no país, pode adotar quem é solteiro ou casado, seja união heterossexual ou homossexual.”, explica. Aqui no Brasil as coisas são assim desde 2014,
quando casais homossexuais ganharam o direito à adoção. Apesar disso, o tema continua em pauta em Brasília: em março de 2017 foi negado por unanimidade um recurso especial (encaminhado pelo Ministro Raul Araújo) que pedia que casais homoafetivos só pudessem adotar crianças maiores de 12 anos. Enquanto o Superior Tribunal de Justiça discute e quer dificultar o processo, para cada pretendente na fila de espera há cinco crianças em busca de uma família. Em Santos, nos últimos cinco anos 85 adoções foram efetivadas. Cristina e Lays questionam se o número não seria maior caso o processo fosse mais rápido. Como você se chama? Outro procedimento que demanda tempo e é responsável por dores de cabeça é o deferimento da adoção. O Pedro já vive com sua família há dois anos, mas ainda não tem seus pais na certidão de nascimento e, oficialmente, seu nome é outro. “A coordenadora da escola queria chamá-lo pelo nome do documento, mas ele não se reconhece assim e isso poderia causar uma crise de identidade no garoto”, explicam os pais. Enquanto o processo, que pode demorar mais de uma década, não é encerrado a família continua lutando pelo direito de o filho ser chamado por seu nome, quebrando preconceitos e barreiras. E, caso ainda existam dúvidas, esse é o recado que Edson e Adriano deixam para a moça da academia, tia da escola, senhora do mercado ou qualquer outro que tenha olhar torto, venha a observar a família ou questione a presença da mãe: “no lugar de uma mãe, ele tem dois pais e isso é totalmente normal”
“
A coordenadora da escola queria chamá-lo pelo nome do documento, mas ele não se reconhece assim e isso poderia causar uma crise de identidade no garoto Adriano barbosa
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Texto: AMANDA OLIVEIRA, KARINA BLACK, LUNA OLIVA E RAQUEL VASCONCELOS Fotografia: KARINA BLACK E RAQUEL VASCONCELOS EDIçãO: AMANDA OLIVEIRA, KARINA BLACK, LUNA OLIVA E RAQUEL VASCONCELOS
NO MUNDO ANIMAL, AMAMENTAÇÃO É ALGO NATURAL, MAS NO CAÓTICO MUNDO CRIADO POR NÓS, HUMANOS, CHEGA A SER UM ATO REVOLUCIONÁRIO
E
m 1594, a pintura de Jacopo Tintoretto trazia a imagem de Jesus Cristo cercado de pessoas em um banquete. No primeiro plano de L’Ultima cena, uma mãe que amamenta seu filho, se faz observadora da situação enquanto os homens à mesa, parecem não se importar. A imagem pertence à Catedral de San Martino, localizada na cidade de Lucca, Itália. A distância de mais de quatro séculos que separa a cena congelada por Tintoretto das cenas que povoam praças, restaurantes e espaços públicos, do nosso tempo, esconde uma boa dose de intolerência da que nasceu e se consolidou ao longo da história em relação ao ato de amamentar. Na Bíblia, livro sagrado para muitas religiões, frases como “tratamos vocês com bondade, qual mães aquecendo os filhos que amamentam” ou “és tu quem me confiou aos peitos de minha mãe” são encontradas no Velho Testamento. No contexto bíblico, portanto, a amamentação vem ao encontro de associações positivas, “tratar bem” ou ainda, estar em segurança. Tempos depois, o ato de amamentar parece esbarrar em cheio com a frase “no meu tempo, não existia isso”, fala saudosista com carga moral para dizer que algo era mais certo antes.
24 Amamentação
“
É complicado, mas eu não privo meu pequeno de seu momento especial e simplesmente tento ignorar os olhares maldosos
LUCINEIA DA SILVEIRA
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Hoje, Tatiana amamenta tranquilamente em seu local de trabalho
Visitantes inconvenientes Ao atravessar a porta para a sala principal da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Neonatal, o cronômetro é acionado e Lucineia da Silveira, de 38 anos, caminha o mais rápido que pode para chegar até seu filho, José Bernardo. O tempo máximo que podem ficar juntos é de 20 minutos. Porém, estes poucos momentos em que estão próximos, sem paredes do hospital e de uma incubadora entre os dois, são roubados constantemente. Enquanto amamenta o recém-nascido na poltrona da UTI, Lucineia escuta a voz de uma enfermeira dizendo que o horário de visita estava prestes a começar. O alerta é claro e doloroso: ela deve interromper a amamentação e devolver o bebê à incubadora. A justificativa é que
26 Amamentação
o aleitamento materno poderia constranger os visitantes. O fato aconteceu em fevereiro de 2016, quando José Bernardo ficou internado durante duas semanas na UTI por infecção hospitalar e dificuldades respiratórias. Hoje, ele já completou um ano de vida e continua mamando. “Até na igreja as pessoas me olham torto, com cara feia. Já me pediram para ir amamentar no berçário, dizendo que lá eu ficaria mais à vontade. É complicado, mas eu não privo meu pequeno de seu momento especial e simplesmente tento ignorar os olhares maldosos”. Saindo do esconderijo Diferentemente de Lucinéia, a jovem Letícia Pantoja, de 22 anos, mãe de Manuela, de três, não
Letícia se libertou do medo e não hesita em amamentar a filha, independentemente do local
L’Ultima cena, obra de Jacopo Tintoretto, 1594
conseguiu ignorar os olhares e comentários por um longo tempo. Toda vez que sua filha precisava se alimentar, iniciava-se a busca por um abrigo. Por diversas vezes, ela precisou escolher: ou cobria a filha com uma fralda, ou aguentava o cheiro dos produtos químicos, vozes altas e lotação dos banheiros públicos. Ela optava pelos banheiros.
“Me sentia constrangida, péssima. Parecia que eu estava fazendo algo errado... Depois fui me adaptando, até porque minha filha só dorme no peito, só se acalma no peito. Hoje não cubro, e se minha filha quiser mamar até de pé, eu dou. Comecei a não me importar com os comentários”, diz. Contra a parede Mãe de outra Manuella, de um ano, Tatiana Lima, 40, foi pressionada a parar de amamentar devido ao trabalho. Sua filha nasceu prematura e os cuidados com alimentação eram rigorosos. De segunda a sexta-feira, a correspondente bancária ansiava para que os períodos de agitação do trabalho fossem inter-
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rompidos pela chegada de sua mãe, Fátima, com Manuella. Só neste momento, era possível aproveitar alguns minutos de calmaria com a filha. Os intervalos se transformaram em um problema, já que a superior de Tatiana não entendia que a amamentação não era apenas um direito, era algo necessário. A intolerância se tornou hostilidade e Tatiana precisou encontrar uma forma de evitar conflitos. A saída encontrada não era nada confortável. A avó da Manuella, levava a bebê até o local, escondida. Chegando lá, Tatiana amamentava embaixo de uma escada, sob a pressão de ser descoberta pela chefe. Quando terminava, entregava a filha à avó e voltava ao trabalho. A amamentação às escondidas durou quatro meses. Após este período ela pediu demissão e decidiu ter seu próprio negócio. Os meses se passaram e novamente, dentro de um banco – só que desta vez como cliente -, Tatiana voltou a se sentir intimidada por amamentar. Enquanto aguardava atendimento no assento preferencial, foi alvo de
uma conversa e olhares raivosos de um casal. “Eles não chegaram a falar algo, mas a mulher ficava falando para o parceiro e olhando para mim, com uma expressão do tipo ‘como você vai ficar amamentando ai?’ Percebia ela cutucando ele, falando coisas. Entendi que ela não estava gostando da situação. Eu não sei dizer se ele olhou para mim em algum momento, mas fiquei constrangida e levantei do lugar”, conta. Erotizada Eva (nome fictício, pois não quis se identificar) nunca recebeu olhares intolerantes enquanto amamentava Paola, de três anos. Em contrapartida, foi alvo do olhar de desejo de um motorista do Uber. Ela e a filha haviam acabado de entrar no carro e se dirigiam a mais um dia de trabalho. Porém, o trajeto normalmente curto, parecia não ter fim, com as insistentes espiadas do condutor. “Acho que se alguém está amamentando, o básico que você tem que fazer é virar o rosto, certo? O cara não. Ele ficou frenético, olhando. Aí eu me senti mal. Me senti um lixo ali,
Lucineia ignora os olhares alheios e amamenta onde estiver
28 Amamentação
47,5%
Das brasileiras já se sentiram constrangidas ao amamentar em público
Dados da Pesquisa Global Lansinoh sobre Aleitamento Materno 2015. Foram entrevistadas cerca de 13.000 mães em 10 países. Os números apresentados no gráfico são referentes aos resultados obtidos no Brasil.
Sentiriam-se culpadas se não amamentassem
64%
95%
Acreditam que amamentar em público é perfeitamente natural
em choque, na verdade”, explica. Com a filha no colo, Eva percebeu que estava trancada dentro de um carro com um estranho, que conhecia o endereço de seu local de trabalho e residência. Nesta situação, se sentiu amedrontada e indefesa. O sentimento remetia a uma situação do passado, quando Eva e suas amigas foram vítimas de assédio moral por um stalker (perseguidor, que importuna de forma obsessiva outra pessoa). Ele roubou fotos de um evento de incentivo à amamentação, do qual elas haviam participado, e as publicou em uma rede social. “As descrições eram nojentas, sabe? Erotizando a amamentação. Até então não tinha noção que existia gente que achava isso sexy, entende? Uma coisa bizarra”. O grupo levou o caso à polícia, mas, a situação foi caracterizada somente como crime de assédio moral. Apesar de diferentes, todas as histórias remetem a um denominador comum. Todas as mães sentiram-se constrangidas ao amamentar seus bebês. A intolerância à amamentação é algo que pode vir de qualquer pessoa, em qualquer lugar. Por mais que o ato seja natural, há pessoas que o associam ao desrespeito e até mesmo à vulgaridade.
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INSEGURANÇA QUE VENDE
A
cena da mãe colocando um pano sobre a cabeça do filho durante a amamentação é nítida, mesmo que você, leitor, não esteja diante de uma mãe amamentando enquanto lê este texto. O gesto indica a necessidade, não se sabe se da mãe ou das pessoas ao redor, de esconder a mama. “Nunca tapei o rosto do meu filho com lenço ou fralda, isso seria agressivo”, diz Thaís Oliveira, jornalista e autora do blog Brincar em Santos, que trata de assuntos relacionados à maternidade. Essa “agressividade” seria o que a enfermeira Luzinete Sabino, integrante do projeto Anjos de Leite, classifica como “privação do estreitamento afetivo entre mãe
e filho”. É no ato de mamar que o bebê interage com a mãe, ao mesmo tempo em que a olha. A enfermeira ainda explica que a comunicação é rompida bruscamente quando se coloca o pano, e que a oportunidade de se fortalecer um vínculo tão forte quanto a gravidez, se desfaz, geralmente por receio ou timidez em relação ao público que observa. A preocupação em torno da exposição do seio, abriu portas para um novo mercado. Em lojas virtuais, já é possível encontrar uma espécie de avental para cobrir totalmente a criança durante a amamentação. Para além do hábito de colocar um pano, passa a existir um produto com a finalidade específica de esconder algo que deveria ser encarado com naturalidade
Avental de amamentação. Imagem de divulgação, site Aliexpress
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Em 2015, uma iniciativa similar provocou polêmica em Nova York, nos Estados Unidos, quando a cidade recebeu sua primeira “cabine de amamentação”. A empresa responsável afirmava que a instalação sem janelas era para “o conforto e privacidade da mãe e do filho”. “Nem sempre, quando se está com fome se espera por um lugar fechado para comer, por que com uma criança seria diferente?”, destaca Thaís, que também foi organizadora da Hora do Mamaço em Santos. Ela ainda critica a erotização que algumas pessoas enxergam quando mães decidem amamentar em público, “No Brasil, só se pode mostrar os seios no carnaval, ou seja, quando a ques-
tão envolve o divertimento alheio”. Apesar de desempenharem papeis diferentes, tanto o projeto Anjos de Leite, sobre assessoria de amamentação, quanto o Hora do Mamaço, encontram um ponto em comum: a disseminação de informação sobre o amamentar. Tanto nas falas de Thais quanto de Luzinete, é possível perceber a ênfase na palavra informação. Algo que ambas entendem como um gatilho ou uma ferramenta de empoderamento pessoal de cada mãe, capaz até mesmo de libertá-las do medo sobre o que o outro irá pensar. Por meio dessa rede de mulheres, amamentar vai ganhando novos significados entre eles, o de ato coletivo de resistência
.
Você sabia? 4 2 1 3 O Estado de São Paulo tem uma lei que multa quem impedir ou constranger uma mãe ao amamentar. A regra vale para estabelecimentos de uso privado, coletivo ou público.
A multa prevista é no valor de R$510,00 e pode dobrar, se o infrator agir novamente.
Em Santos, as vítimas podem ir à subprefeitura da região onde ocorreu o caso.
Os depoimentos devem ser orais ou escritos, e não serão aceitas denúncias anônimas.
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r JOGO le o t DA Texto: ALEXIA FARIA, GABRIEL SOARES, MAYRA RODRIGUES E PAOLO PERILLO Fotos e Diagramação: ALEXIA FARIA, GABRIEL SOARES E MAYRA RODRIGUES
ATÉ QUE PONTO VOCÊ É TOLERANTE?
A
revista Viral quis medir como andam os limites da tolerância no dia a dia das ruas, escolas, espaços públicos e ambientes de trabalho. Como num jogo de tabuleiro, o desafio foi provocar os entrevistados a confessarem, a partir de uma perspectiva bem pessoal, que comportamentos sociais, gestos e palavras são decididamente intoleráveis. E você, leitor, já se perguntou diante de qual situação seu nível de tolerância chega a zero? Só para lembrar: a expressão “tolerância zero”, hoje tão usada tanto no contexto político quanto no âmbito policial, na relação empregador-funcionário, ou até mesmo na postura com que os pais agem com seus filhos, ganhou notoriedade nos anos 1990. A cidade de Nova York vivia sob a sombra do crack, da criminalidade e do medo. O prefeito Rudolph W. Giuliani instaurou a política da tolerância zero, um policiamento super ostensivo, com o objetivo de eliminar por completo qual-
quer atitude ou ato criminoso. Com isso, Giuliani conseguiu reduzir pela metade as taxas de criminalidade de Nova York. De lá para cá o termo passou a ser usado nas relações interpessoais para nomear um sem-número de situações-limite. Afinal, quando se trata de vida em sociedade, a fronteira entre o que é bom, construtivo e ético nem sempre está claramentre demarcada. Segundo a psicóloga Maria Regina Roma, tolerância é o estado em que nós temos de suportar situações, analisar, sentir e pensar o que é melhor. “Vai muito além do certo e errado, justo e injusto. É uma postura ética frente a situações adversas”, acredita. Na visão dela, o conceito de intolerância também pode ter um lado positivo: “É quando o indivíduo não aceita aquilo que prejudica o outro, não podemos ser tolerantes com tudo”, conclui. Navegue no tabuleiro e perceba de quantas regras, perguntas e limites é feito o jogo da intolerância social.
a i c n a ^
SOLIDARIEDADE avance 5 casas
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“
Eu não tolero é a falta de comprometimento do cliente, que muitas vezes não comparece e não desmarca. Combinamos o valor em cima de um desenho, e ele muda na última hora e não aceita o novo valor. Isso quando não “ esquecem” o dinheiro. É muito difícil tolerar tudo isso KENZO NAGATOMO TATUADOR
“
Minha tolerância é zero com relação ao preconceito, às discriminações, aos abusos sexuais, no que diz respeito à orientação sexual e identidade de gênero, a LGBTfobia. E também as intolerâncias contra raças e etnias, religiões e minorias.
TAIANE MIYAKE, DA COMISSÃO MUNICIPAL DE DIVERSIDADE SEXUAL DE SANTOS
PRECONCEITO volte ao inicio
34 Tolerância Zero
SONHOS avance 3 casas
?
VIOLÊNCIA fique 2 rodadas sem jogar
“
Tolerância zero para quem não dá seta, não sinaliza. O que causa mais acidentes é isso, além daqueles que ultrapassam a faixa de “PARE” por falta de atenção. Isso pode custar a vida de uma pessoa, um risco para nós, que trabalhamos nas ruas.
“
No futebol, o que eu não tolero é preguiça! É o que mais me incomoda. Consigo tolerar falta de técnica, ou até mesmo falta de conhecimento tático. Mas alguém que não queira correr por preguiça, eu não tolero.
RESPEITO você ganhou 5 novas vidas
ROBERT COSTA MOTOBOY
?
KELLY RODRIGUES JOGADORA DE FUTEBOL
35
“
A falta de respeito com o cidadão em todos os aspectos. O político está ali para servir, para ser o reflexo da população. As ideologias e crenças podem ser diferentes, mas tem que existir respeito. Corrupção é a maior das faltas de respeito. BRUNO ORLANDI (PSDB) VEREADOR EM SANTOS
“
Pra mim, tolerância zero com gente que não se permite, não aceita opiniões, mudanças, novidades... Gente que teima em viver nos mesmos costumes de sempre, sem evoluir e conhecer coisas novas”.
ULISSES ANTUNES CANTOR
TOLERÂNCIA avance para a casa “SER FELIZ”
36 - Tolerância Zero
?
INTOLERÂNCIA volte para a casa “RESPEITO”
SER FELIZ avance para a última casa
“
Na minha opinião, tolerância zero seria algo que realmente já ultrapassou o limite e que acaba se tornando algo insuportável ao ponto de ser um incômodo”.
FELIPE ALVES JOGADOR DE FUTEBOL AMERICANO
“
A falta de respeito, com as
diferenças, pois o que para mim é azul, para o meu colega é amarelo , e eu preciso respeitar o que ele pensa. Se eu não tenho condições de respeitar a opinião do outro, não posso reclamar quando faltarem com respeito comigo. VALÉRIA TEIXEIRA PROFESSORA
Parabéns! Você é tolerante! 37
QUE TAL DESAFIAR O PADRÃO
?
OITO PERSONAGENS, SÍMBOLOS DA LUTA POR UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA E TOLERANTE, RESPONDEM À QUESTÃO
38 Ensaio
“
Não dá mais para suportar a intolerância, nós estamos aqui e precisamos viver. ALAN MORAES SE ASSUMIU HOMOSSEXUAL
“
As pessoas intolerantes não buscam entender as diferenças que existem no mundo, são agressivas e eu não consigo ter um sentimento definido pra isso. BRUNO FÁBREGA, TRANSHOMEM, SEGUE NA LUTA PARA SER QUEM SEMPRE QUIS
40 Ensaio intolErância
“
Intolerância é não respeitar o espaço e o jeito de ser do próximo. CLEIDE SILVA FILIPPE E ALBERTO DE MELO FELIPPE TÊM UMA GRANDE FAMÍLIA, E VIVEM UMA HISTÓRIA DE AMOR
“
Nós não abrimos os olhos pra intolerância. Saímos e nos comportamos como um casal e não queremos saber o que as pessoas estão pensando. LARISSA PEDROSO E LUANA DOURADO, ESTÃO NOIVAS
“
Intolerantes não têm amor.Todos nós somos iguais. NICOLLI HOFMANN E MATHEUS TRINDADE, ESTÃO ENFRENTANDO O PRECONCEITO JUNTOS HÁ UM ANO E MEIO
“
É difícil quando você está sofrendo por algo que te mata todos os dias e as pessoas acham que é frescura.
“
Meu cabelo é símbolo de luta e resistência, representa tudo o que eu sou. MARIANA SILVA, SE ORGULHA DE SUAS RAIZES
42 Ensaio
LETÍCIA FERRI, UNIVERSITÁRIA, ENFRENTA TRANSTORNO ALIMENTAR
“
O que me chateia é o dever de explicar as minhas tatuagens para pessoas que não me respeitam e querem me mudar de alguma forma. PEDRO ALVES ENCARA SEU CORPO COMO UMA TELA DE PINTURA
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ÓDIO
AMOR AO PRÓXIMO Texto: JÉSSICA SOUZA Foto: ALESSANDRA OLIVEIRA, ARQUIVO PESSOAL Edição: PAULA FREITAS, LARISSA MARTINS
44 Religião
O RESPEITO TERMINA QUANDO A INTOLERÂNCIA COMEÇA
A
intolerância religiosa é um conjunto de atitudes ofensivas contra diferentes crenças e religiões. Definido como um crime de ódio, que fere a liberdade e a dignidade, a intolerância se manifesta pela ofensa, discriminação e até mesmo por atos agressivos, que muitas vezes colocam a vida do indivíduo em risco. Em 2015, Kayllane Campos, então com 11 anos, foi apedrejada ao sair de um terreiro de Candomblé, no subúrbio do Rio de Janeiro. O atentado resultou em um corte profundo na cabeça e virou notícia. A avó da garota, que também já passou por situação semelhante quando mais nova, criou um grupo no Facebook com a legenda: Visto branco, branco da paz, sou do candomblé, e você? Em março de 2015, o auxiliar de limpeza Paulo Silva Santos foi esfaqueado pelo vizinho, que é pastor evangélico por acender velas na rua no bairro Guilhermina, na Praia Grande. “Estava tudo tranquilo, nunca tive problema nenhum com minha religião. Eu pensei que tinha mudado, mas as pessoas estão cada vez mais intolerantes”. O umbandista foi fazer um trabalho religioso na esquina de casa, mas o evangélico ordenou que ele desfizesse as oferendas. Após uma intensa discussão, o pastor pegou uma faca e atingiu três vezes o abdome do vizinho. “No momento em que ele pegou a faca eu imaginei que ia fazer alguma coisa na minha oferenda, e não pegar a faca e me atingir. Fiquei assustado, pois nunca tinha visto nada desse tipo. Foi assustador, graças a Deus não aconteceu nada grave” disse Paulo. O pastor confessou o crime e foi indiciado por tentativa de homicídio, pagou fiança e foi liberado em seguida. Deus, Alá, Oxalá, Buda. Não importa o nome de devoção, muito menos a forma de saudar o próximo – “a paz do Senhor”, “Shalon”, “Namastê”, “Axé”- o respeito deve prevalecer sempre, para que haja um bom convívio em sociedade. Que tal quebrar o tabu desde já? A Viral conversou com umbandistas, católicos e evangélicos sobre a questão.
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SOU DO CANDOMBLÉ E VOCÊ? Helena Alves é mãe de santo desde 2003. Curioso é que até encontrar o lugar certo para sua fé, ela tenha enfrentado uma verdadeira peregrinação: até os 18 anos era testemunha de Jeová. Casou-se na igreja mórmon, mas parou de frequentar assim que se separou. Aos 25 anos, depois de passar por problemas financeiros, decidiu conhecer a umbanda a convite de uma amiga. Em maio de 2016, decidiu criar o “Era uma vez... Do axé”, uma página no Facebook que fala sobre umbanda e candomblé e já têm mais de 20 mil curtidas. Também tem canal no Youtube com o mesmo nome e mais de 15 mil inscritos. Segundo a representante, a umbanda prega a
46 Religião
Helena Alves tem a sua fé gravada no corpo e na alma
prática do amor pela caridade, os adeptos veem as dificuldades dos irmãos e querem ajudar. A mensagem dela é que plano espiritual ajuda a todos que precisam. “Não cobramos por trabalhos. Fazemos pelo amor, fazer o bem sem olhar a quem. Ajudamos aqueles que querem arrumar um trabalho, melhorar o relacionamento com seu parceiro, a saúde de um filho. É isso, o ato de ajudar”, disse Helena. Além disso, todos que se identificam com a ajuda espiritual e acreditam na entidade podem participar. Durante o “Toque de Caboclo”, ritual presenciado pela Viral, 10 pessoas vestidas com os trajes próprios da religião, cantavam e dança-
vam para passar sua mensagem, além dos trabalhos feitos para as pessoas que estavam assistindo. As mensagens enviadas pelo espírito do Caboclo por meio da Mãe de Santo são confidenciais. Durante o ritual, é possível receber passes espirituais, e se houver alguma mensagem para ser transmitida, ela é passada no momento. Nossa repórter obteve conselhos do espírito durante o passe. Além dela, outras pessoas que estavam no local também receberam. No altar, um arranjo com frutas, folhas e velas. O ritual permaneceu animado do início ao fim, com muita música, dança e som de atabaques. Outro ponto que chamou a atenção foi a mudança de comportamento após a incorporação, no olhar, na voz, no jeito de falar e de andar. Sobre a intolerância, a mãe de santo afirmou que o preconceito é real: “As pessoas julgam umbandistas como adoradores do diabo. Existem muitas mensagens que são passadas erradas para as pessoas e elas acreditam no que dizem. O Deus é um só. Na umbanda é conhecido como Oxalá, Jesus menino. Nós não queremos que o irmão apenas pense em participar conosco, mas sim, em ir para a igreja e adorar a Deus, porque ele é um só. E não existe isso de adorar o Diabo. Temos as imagens, que são símbolos e identificam a entidade que ali está presente. O preconceito vai da cabeça de cada um.” Ela disse ser vista como “macumbeira do mal” quando conta ser mãe de santo, e comentou já ter sofrido muito preconceito por conta disso. Pela vizinhança é tratada mal pela imagem que tiram da religião. Mas pela família, Hellena comenta que é tratada bem,
O Toque de Caboclo acontece no quintal da casa da mãe de santo
e quando precisam de ajuda procuram seu terreiro. “Vergonha, jamais, mas descriminação sempre! ”. A mãe de santo diz que sofre com olhares de estranhos por usar “fio de conta” no pescoço, um colar feito de miçanga colorido para identificação do grau de iniciação de uma pessoa no candomblé e a nação a qual pertence. “Não sinto vergonha da minha religião, mas vejo os olhares de condenação. Não vou mudar quem sou e deixar de usar as coisas que uso, pelo contrário, uso sempre bem estampado e bem colorido para
mostrar a minha religião”. “Não faz muito tempo, eu trabalhava em uma confecção e os pais da minha chefe não aceitavam outras religiões. Ela me mandou embora por motivos de corte na empresa. Depois descobri que foi pela minha religião. Se você anda com uma blusa com estampa de orixá ou com “contra egum”, um tipo de pulseira que serve como proteção no braço, as pessoas já te olham de lado e pensam “olha a macumbeira”. Esse foi o pior caso, pois eu não consegui alugar uma casa para morar. Foi bem difícil na época”.
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Para os católicos, a cruz simboliza o amor
AMAI-VOS UNS AOS OUTROS Claudenil Moraes é pároco na Catedral de Santos há pouco mais de um mês. Para ele, a intolerância é muito mais do que uma questão religiosa, é a dificuldade de aceitação do outro com o irmão. Seria como respeitar o time de futebol que para o qual ele torce até a sua sexualidade. Evocando um dos ensinamentos da sua igreja, o padre lembra que todos são feitos à imagem e semelhança de Deus. A intolerância religiosa acontece em todos os lugares, até mesmo dentro de igrejas católicas. “Não gosto de pensar na ideia de que um irmão católico não aceitou o outro. Acho que intolerância é quando não acolhemos o outro de uma nova comunidade ou de um novo movimento”.
48 Religião
Para ele, a ideia de não aceitação parte do acolhimento com o próximo. “Somos bastante intolerantes quando não participamos daquilo que o outro promove, mas aquilo que nós mesmos promovemos, eu vejo isso todos os dias. Vejo também a união, claro, mas também vejo a intolerância”, completa. Hoje o padre afirma não gostar de dizer que foi vítima e nem de pensar na ideia de “coitadinho”, mas confessa que assiste diferentes reações quando se identifica como padre: “Tem aquelas belas e especiais de acolhimento. Mas se eu chegar em um local com nariz para cima, querendo ser maior que todos, a acolhida será bem difícil”.
Para isso, tratar as pessoas bem é um diferencial do padre. Quando celebra a missa, ele encontra pessoas de outras religiões que frequentam as celebrações e diz que fica contente e vê as mudanças acontecendo. “Pergunto a elas qual igreja frequentam, e me respondem que são da congregação cristã ou outra denominação. Fico feliz, porque sabemos que quando acolhemos bem, não há discriminação. Já tive vários casos de pessoas de outras religiões virem às minhas celebrações exatamente pela admiração e pelo acolhimento”. Já sobre o papel da igreja perante o tema, o padre adota um tom conciliatório: “Trabalhar juntos, falar a mesma linguagem, caminhar juntos. Nunca discutir religião, mas amar a religião do próximo. Vale destacar o ecumenismo, que é o diálogo entre aqueles numa direção similar e que respeitam as diferenças”. O CONIC, Conselho Nacional das Igrejas Cristãs é uma iniciativa para promover a união entre as diferentes religiões. Foi criado no ano de 1982, em Porto Alegre (RS). A criação é fruto de um longo processo de articulação entre as igrejas Católica Apostólica Romana, Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Episcopal Anglicana do Brasil e Metodista. Fo-
1. Padre Claudenil durante a missa
ram realizadas 13 reuniões entre as presidências nacionais dessas igrejas para, em 1982, definir-se pela fundação de organismo. Com sede em Brasília (DF), o CONIC tem como seus objetivos as relações ecumênicas entre as igrejas e o fortalecimento do testemunho conjunto das igrejas na defesa dos Direitos Humanos. Para alcançar tal meta, as igrejas que compõem o CONIC vivenciam uma parceria de diálogo, de valorização da vida humana, de amizade fraterna e de convivência enquanto entidades que buscam um caminho comum.
Padre Claudenil celebrando a missa: momento de consagração para os católicos
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“NÓS VIVEMOS A BÍBLIA, OS DEMAIS NÃO” Há 12 anos como pastor, Genilson Andrade de Jesus é fundador da igreja Assembleia de Deus Ministério de Santos. Sempre com o apoio da família, ele prega a união entre as religiões. A intolerância, no seu ponto de vista, é a não concordância com a crença do outro, na maior parte das vezes, agravada pela falta de conhecimento. “Isso é algo que existe como regra de fé. Em Coríntios, o capitulo a partir do versículo 10 fala sobre a inserção da igreja. Alguns seguidores se achavam de Paulo, outros de Saulo, havia uma intolerância na própria igreja. O não conhecimento gera isso”. Segundo ele, na Assembleia de Deus o ensinamento sobre a aceitação do próximo é passa-
Pastor Genilson pregando a palavra de Deus durante o culto da Assembleia
50 Religião
do para todos os membros de forma igual. Quem pratica a intolerância, é porque não conhece ou não concorda com o posicionamento dos evangélicos. “Quando alguma pessoa quer conversar ou até mesmo discutir, eu digo que é melhor manter o silêncio do que prolongar a discussão. Na palavra de Deus nós aprendemos isso”. Genilson vai além: “Todos sabem que o pastor é uma pessoa que tem um conhecimento maior do que todas as outras crenças religiosas, porque nós temos a Bíblia como regra de fé. Nós vivemos a Bíblia, e os demais, não! São somente uma religião, são religiosos. Na maioria das vezes poucas pessoas questionam alguma coisa”
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Fui a uma entrevista de emprego numa empresa que trabalhava com empréstimos consignados e cartões de crédito. Passei por testes escritos, de fala e também testes de interação em equipe e tive pontuações extremamente altas. Na terceira etapa da entrevista teria que falar com um dos diretores e um deles me questionou a respeito de quase tudo da minha vida, só faltou perguntar o tipo sanguíneo. Até o momento que ele notou que eu falava muito as expressões “amém” e “aleluia”. Me perguntou sobre minha religião e eu como sempre respondi, “sou Cristã”. Na mesma hora, ele juntou os papéis e me disse que, infelizmente, não poderia me disponibilizar a vaga, pois não contratava pessoas religiosas. Conclusão, fiquei sem a vaga e passei por um constrangimento. ANA CAROLINA OLIVEIRA - AUTÔNOMA
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Recebi umas 30 pessoas, entre crianças e idosos, para uma cerimônia religiosa de umbanda no meu quintal, quando o vizinho de parede geminada com a minha desligou a chave geral. Ele colocou a arma por cima do portão e fez três disparos para o alto. Em seguida, chutou meu portão, entrou no quintal de arma em punho e fez ameaças, falando: “Vocês estão fazendo macumba? Macumba para quem? Se continuar, a coisa vai ficar pior!”. Ele saiu batendo o portão. Uma das pessoas que estava em casa com o celular ligou para o 190 e três viaturas mais uma da Guarda Municipal chegaram para ajudar. Tocaram na casa dele, que não atendeu a porta. Fomos para a delegacia onde, por sinal, fui muito bem atendida, e estão tomando as providências. Meu nome é Rosely Perez e eu sofri intolerância religiosa.
FÉ
ROSELY PEREZ DOS SANTOS - APOSENTADA
Sou católica e certa vez fui a um retiro de Carnaval com a igreja de um amigo que é presbiteriano. O retiro era diferente dos que eu costumava ir, tinha muita recreação, momentos de oração e partilha. No último dia de retiro, uma senhora veio me elogiar, dizendo que eu era uma pessoa muito abençoada, que tinha entendimento das coisas de Deus, pediu meu telefone e disse que queria manter contato comigo, teceu vários elogios. E me perguntou onde eu congregava. Eu disse o nome da paróquia e ela exclamou: “Misericórdia, você é católica!”. Sorri e disse sim. Ela: “Orarei a Deus por ti, pra te tirar dessa igreja de prostituição. Eu já fui dessa igreja e quase perco minha vida”. Eu tentei ser o mais controlada possível, afinal era uma senhora, eu estava fora de meu habitat e até então tinha sido tão bem acolhida. CRISTIANE BORGES - PROFESSORA
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Salah Mohamed administra a Ăşnica mesquita da Baixada Santista
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A VÍTIMA ESQUECIDA DO TERRORISMO MEMBROS DA COMUNIDADE MUÇULMANA DE SANTOS CONTAM COMO A MÍDIA PROPAGA A INTOLERÂNCIA AO ASSOCIÁ-LOS AO TERRORISMO Texto, foto e edição: FELIPE CINCINATO, JANE FREITAS, JAQUELINE SOUZA E MATHEUS DONCEV
A
aparência do senhor de bigode bem feito, camisa azul, bolso do lado esquerdo e os primeiros botões abertos, alinhados com a calça larga e o sapato social, sugere um típico dono de quitanda. Ideia que é afastada quando ele começa a falar em árabe. No salão principal, o jovem de vinte e poucos anos tem a barba grande, visual hype, assim como a camisa com pequenas âncoras e a calça caramelo. Concentrado, ele ora com o tronco ligeiramente curvado. Na sala das mulheres, camuflada por um hijab, a moça deixa ver as unhas pintadas de cor escura, a maquiagem discreta, contudo marcante, e as sobrancelhas milimetricamente desenhadas. Apesar das vestimentas e estilos diferentes, os três costumam se encontrar com regularidade na única Mesquita Islâmica de Santos. Ao meio-dia de uma sexta-feira qualquer, a avenida Afonso Pena parece menos movimentada do que se espera de uma via que liga os extremos da cidade. Poucos carros parados na quadra não instigam nenhuma percepção atípica em frente ao prédio verde acinzentado, talvez pigmentado pela poeira grossa que cobre o asfalto. Os portões abertos no n° 309 convidam quem quiser entrar. O corredor estreito leva a um salão em reforma. As escadas laterais guiam o visitante ao segundo andar. Ali está o que pode ser chamado de “salão de oração”.
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Ninguém pergunta nada e na hora fala: ‘Um grupo terrorista muçulmano praticou isso’, antes de saber
Salah Mohamed
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A voz impostada do sheik ecoa pela sala em uma língua estranha para um forasteiro. O senhor de aparência simpática, o jovem barbudo e a moça de olhos marcados encontram-se na Mesquita Islâmica de Santos, às sextas-feiras, para uma oração coletiva, um dos pilares do islamismo, que prega, acima de tudo, o respeito pela família e a paz. A fé, que une uma nação de mais de 1,6 bilhão de pessoas ao redor do mundo, começou no século VII (DC), quando o Profeta Maomé recebeu do anjo Gabriel, durante 23 anos, as leis que formam o livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão. Entre os cinco pilares, o mais enfatizado pela comunidade é a paz. Deriva da palavra submissão, “Islã” tem a sua origem que significa paz. Segundo o senso do IBGE, de 2010, no Brasil há aproximadamente 35 mil praticantes da religião. Os seguidores do Alcorão não fazem separação no dia a dia dos momentos de exercício da fé dentro da Mesquita. Apesar da religião estar firmada no respeito à família e no temor a Deus, provavelmente essa não é a imagem que você tem sobre o que ouve, lê e assiste - em cenas cada vez mais repercutidas pela mídia, que acabam criando a falsa ideia de que todo seguidor da doutrina islâmica é um terrorista em potencial.
“Como tem muita propaganda que tenta manchar o nome do Islã após o fracasso do comunismo, agora o ocidente capitalista está procurando um bode expiatório e achou o Islã”, desabafa Salah Mohamed Ali, presidente da Mesquita de Santos. Segundo o sheik Salah, quando acontece um atentado em que os muçulmanos são vistos como responsáveis, a mídia não os procura para dar explicações. “Ninguém pergunta nada e na hora fala: ‘Um grupo terrorista muçulmano praticou isso’, antes de saber”. Ouvir o outro lado da história e entender os porquês dos acontecimentos que causam impactos e destruições, ainda não é para todos, mesmo em pleno século XXI. O desabafo de um simples e sensato representante do Islamismo traduz o que na realidade é propagado pela mídia, e resulta de forma negativa na vida da comunidade muçulmana. “Quando acontece um ataque contra uma mesquita lá na Europa, você vê gente passando e, às vezes, tirando o sarro falando: ‘Ae, terrorista! Ae, homem bomba’. Isso às vezes machuca...”, diz o presidente. A secretária da mesquita, Laila Veaques, também é testemunha do preconceito. “Geralmente são pessoas autoritárias que desrespeitam, falam, gritam, xingam”, explica. A intolerância, o preconceito com religiões e culturas diferentes se estendem até em uma simples fotografia para um do-
Laila atua como secretรกria na Mesquita, auxiliando nas atividades do templo
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‘Ae, terrorista! Ae, homem bomba’. Isso às vezes machuca... Salah Mohamed
cumento. De acordo com Salah, até hoje a mulher muçulmana é proibida no Brasil de tirar foto utilizando o tradicional véu. Antes, é necessário conseguir uma declaração da Sociedade. “Esse véu não é símbolo religioso, ele faz parte da vida da mulher muçulmana, ela usa porque faz parte da roupa dela, não é um símbolo, é uma parte dela. O governo tem que respeitar a vontade de cada pessoa. Às vezes aparecendo parte íntima do corpo pode, mas o véu não pode?” A outra face da intolerância Caetano Veloso descreveu sua chegada a São Paulo na música Sampa. O choque cultural lhe rendeu um dos versos mais lembrados de sua carreira: “É que Narciso acha feio o que não é espelho”. Mesmo em situações diferentes, o professor de árabe Fawaz Ali Sati pareceu experimentar a mesma sensação. Ali Sati veio ao Brasil a procura de emprego e por “falta de recursos” em sua terra natal. Cruzar o atlântico lhe rendeu críticas dos pais que tinham medo que ele se apaixonasse por uma brasileira e deixasse de lado suas raízes. No novo continente, ele conheceu sua esposa, na época católica. A reação negativa de quem não via neste relacionamento o seu próprio reflexo, com o tempo, amenizou. “Depois que meus pais a conheceram, passaram a tratá-la melhor do que a mim”, assume. Ali Sati tenta resumir o motivo de intolerância, tanto de dentro da comunidade muçulmana, quanto de fora. “Toda intolerância é produto da ignorância”, chancela. Para ele, a diversidade deve ser cultivada por ser um “sinal de saúde”. Esta saúde, porém, na visão do professor, está longe dos
veículos de comunicação, onde estão os atos “mais frequentes de islamofobia”. “A manipulação dos noticiários é feita para influenciar a opinião pública em função de interesses políticos ou econômicos partidários ou corporativos”, acredita. Em contrapartida, Ali Sati explica que nunca sofreu discriminação religiosa ou racial. “Pelo contrário, sempre fui convidado com respeito a esclarecer as dúvidas dos meus interlocutores”, pondera. O discurso do professor assemelha-se com a fala do presidente da Mesquita de Santos, Salah Ali. Para os dois líderes, o combate à intolerância religiosa acontece com diálogos constantes e o entendimento de que nem todos são espelhos. Todos os anos, no dia 21 de janeiro, membros de todas as religiões se unem todos os anos, em lugares diferentes, cada um em sua fé, para celebrar o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Para quem quer conhecer outros reflexos, Salah faz um convite: “Pode entrar e ver como é, não tem pressão. Venham assistir nossas festas, nossas aulas, nossos casamentos, visitem a gente”, convoca. “Somos pessoas iguais a todo mundo, só temos nossa cultura e nossa religião um pouco diferentes”
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Às sextas-feiras, ao meio-dia, a comunidade muçulmana da Baixada Santista reúne-se para a oração
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Texto: BENNY C. FILHO E LETHÍCIA GABRIELA Edição: VINÍCIUS TOGNETTI Foto: FÁBIO PRADO
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WWW. INTOLERÂNCIA .COM E
m tempos em que a maior parte da população mundial tem acesso à internet, encontramos diariamente ofensas e xingamentos gratuitos, em blogs, sites e principalmente nas mídias sociais. O que parece ser um espaço democrático é, muitas vezes, uma praça de guerra virtual, onde o outro parece não ter direito a opinião contrária. Estudos mostram que o número de páginas denunciadas, no Brasil, por causa da intolerância, cresceu 200% em apenas um ano. Mas até que ponto o ódio compartilhado no mundo virtual pode afetar o real? O que nós podemos fazer quando nos depararmos com situações de intolerância na internet? Nesta reportagem, confira essas e outras respostas sobre o tema.
Haters Provavelmente você já se deparou com uma situação de intolerância na internet. Preconceito e discriminação marcam presença diária nos sites, blogs e nas redes sociais. Se antes existiam as manifestações de intolerância na base do “olho no olho”, hoje o aparente anonimato, atrás de uma tela e um teclado parece facilitar o trânsito das ofensas.
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Assim, os haters (palavra da moda para definir os “odiadores”, que criticam tudo e todos, sem muito critério) ganham cada vez mais espaço em nossa timeline com troca de insultos e comentários maldosos. Se a intolerância digital atinge até famosos, como o casal de atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, alvo de muitos xingamentos depois que adotaram a pequena Titi, do Malawi, na África, imagine um pacato cidadão que muitas vezes desconhece seu legítimo direito de reagir pelas vias legais. O que mais chocou os envolvidos na “Operação Gagliasso” é que uma das autoras das ofensas era uma adolescente negra de 14 anos. A garota criou um perfil falso achando que não seria descoberta. Outros sete haters foram identificadas no caso. A força e a velocidade de disseminação da internet motiva os ataques dos tais “odiadores”. Para a psicóloga e professora de psicologia da Unisanta, Sandra Bezerra, esse ódio muitas vezes só é revelado na rede. Talvez na vida real, ele nem fosse mostrado. Até porque, com base na psicologia analítica, as pessoas teclam de forma automática, não existe reflexão nos comentários. “Quando vemos uma imagem na internet, reagimos automaticamente, quase instintivamente. Em casos extremos, o hater nem sabe o motivo que o levou à agressão”, analisa. De acordo com a psicóloga Luci Mara Lundin, pós-graduada em Desenvolvimento Humano, existe uma certa obrigação do ser humano em emitir alguma opinião, mesmo sem ter conhecimento suficiente. Números Alguns dados comprovam que a marcha dos haters avança pelo
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O número de casos de intolerância na web subiu de 16.600 para 26.800 em apenas um ano. O racismo lidera o ranking
ciberespaço. De acordo com dados da SaferNet, ONG dedicada à defesa de direitos na internet, nos últimos três anos o número de páginas denunciadas por divulgar conteúdo de intolerância cresceu mais de 200% no Brasil. Entre 2013 e 2014, só no Facebook (onde ocorre quase metade desse tipo de denúncia), o número de casos saltou de 16.600 para 26.800. O racismo lidera o ranking, com 12 mil denúncias. Nas redes brasileiras, questões políticas dominam as manifestações de intolerância, com quase 220 mil menções, ou seja, mais da metade das publicações analisadas. O número é quatro vezes superior aos ataques de misoginia (ódio ou aversão às mulheres), que aparecem em segundo lugar. O Rio de Janeiro é o estado com maior volume de postagens intolerantes no país,
seguido por São Paulo e Minas Gerais. Casos e mais casos De acordo com o advogado José Chiarella, especialista em direito digital e telecomunicações, a maioria dos casos atendidos por ele envolve adultos e tem relação com falsidade ideológica. São os chamados fakes. Um deles aconteceu recentemente com uma jovem da Baixada Santista que teve suas fotos pessoais publicadas sem autorização em uma página do Facebook que aplicava golpes. Eles vendiam produtos, mas não entregavam. Foi uma amiga da moça quem estranhou o post e a alertou a vítima sobre o fato, mas já era tarde. As pessoas lesadas descobriram a página da moça, que sofreu na pele a hostilidade virtual, com muitos xingamentos
AOS OLHOS DA LEI
e ameaças. Ela registrou boletim de ocorrência e a polícia investiga o caso. Ainda de acordo com o advogado, também presidente da Comissão de Educação Digital da OAB Santos, o que mais preocupa é o cyberbullying, muito comum entre crianças e adolescentes. A exposição do colega de escola ou de trabalho a uma situação vexatória, com frases ofensivas e até divulgação de fotos íntimas, chamadas nudes, estão entre os casos de maior repercussão. Em um outro episódio envolvendo pornografia, uma mulher teve sua imagem divulgada em um site de relacionamento sexual. Pegaram uma foto em que ela aparece com o pai, em uma festa de fim de ano. Cortaram e mudaram completamente a conotação da foto colocando-a de meio corpo em uma situação comprometedora. Além disso, ainda publicaram com o nome verdadeiro da vítima. O site foi obrigado a retirar imediatamente as fotos e foi julgado como corresponsável, por permitir a publicação de fotos indevidas na página.
Casos que aconteceram na internet também são de responsabilidade da Polícia Civil. Em Santos, a delegada Edna Pacheco Fernandes Garcia, do Núcleo Especial Criminal (Necrim), trabalha tentando solucionar pequenas causas registradas na cidade. “Mesmo que para muitos a internet signifique máscara ou camuflagem, não é bem assim. Hoje em dia, tudo pode ser prova”, esclarece. Embora não exista ainda uma lei específica para punir todos os crimes praticados na internet, ofensas e crimes contra a honra, como injúria, calúnia e difamação são passíveis de punição, pois estão previstos no Código Penal. A lei Carolina Dieckmann (12.737/12) entrou em vigor em 2013 após a atriz ter fotos íntimas divulgadas na internet, que foram copiadas de seu computador pessoal. A pena varia de três meses a um ano a quem, entre outros crimes, invadir dispositivos de informática a fim de obter dados particulares. O famoso caso Fabiane de Jesus, que, em 2014, foi espancada até a morte por moradores de Guarujá também pode virar lei. Confundida com uma outra mulher acusada de praticar magia negra com crianças, Fabiane não teve tempo de se defender da notícia falsa espalhada pelas redes sociais. O projeto prevê aumentar em 1/3 a punição quando a incitação a crimes ocorrer pela internet ou por meio de comunicação de massa. A proposta já foi aprovada e deve ir ao plenário da Câmara Federal para votação.
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Um dos lados do rosto de Luciane nĂŁo se desenvolveu. As fotos do rosto assimĂŠtrico renderam comentĂĄrios maldosos na internet. A mesma internet, no entanto, ajudou a viabilizar a cirurgia reparadora
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INTERNET: PARA O MAL
L
E PARA O BEM
uciene de Faria, de 30 anos, nasceu com microssomia hemifacial, uma doença que desenvolve apenas um dos lados do rosto. O outro permanece atrofiado. Para ela, conviver socialmente sempre foi um desafio e um exercício de resignação. A partir do 4º ano do Ensino Fundamental, a garota parou de frequentar a escola. Foram oito anos estudando em casa, na cidade de Peruíbe. Acuada e deprimida, teve a juventude roubada. Não passeou e não teve amigos. As pessoas ao seu redor sempre a excluíam. Fechada em casa, Luciene usava o computador para se relacionar com o mundo, mas não teve sossego nem mesmo nas redes sociais. Muitas vezes era obrigada a “excluir” as pessoas de suas páginas pessoais. A moça conta que os “amigos” sociais chegaram a perguntar se ela não tinha vergonha de publicar seus retratos na internet. “No meu perfil, diziam que, se fosse pra aparecer, era melhor colocar uma melancia no pescoço”, conta. Em 2013, Luciene encontrou no cirurgião bucomaxilo, Alessandro Silva, da “Corrente do Bem”, uma rede de voluntários que ajuda pessoas que sofrem com dores ou com graves problemas na aparência, uma possibilidade de melhorar a qualidade de vida. Só tinha um problema: sem dinheiro nem plano de saúde, o sonho da cirurgia foi ficando distante. Uma matéria sobre o seu caso, publicada em um grande portal de notícias, porém, em lugar de criar uma rede de solidariedade, atraiu uma legião de haters. Choveram xingamentos e manifestações de repulsa. Retraída, ela e o médico deram um passo atrás e adiaram o projeto. Por iniciativa do ortodontista Marcelo Quintela, uma nova matéria sobre o caso de Luciene foi publicada em uma página do Facebook de grande repercussão na Baixada. O resultado desta segunda investida foi surpreendente. Luciene recebeu inúmeras
mensagens positivas. “Tempos atrás eu só ouvia e lia palavras que me machucavam e naquele momento vi as pessoas dizendo que ia dar tudo certo, que eu ia conseguir, e ficaria e já era bonita”. A cirurgia aconteceu no dia dia 6 de abril de 2017 e foi acompanhada de perto pela reportagem da Viral. Seis medicos se revezaram durante onze horas no centro cirúrgico do Hospital Vitória. Luciene receberia alta naquela noite com um pouco de inchaço no rosto, o que é normal para o caso dela. Pela primeira vez em 30 anos seu queixo aparecia e o lábio inferior cobria os dentes de cima. Assim como a tatuagem da fênix, que começa nas costas de Luciene e vai até a sua perna direita, ela sabe que ganhou a chance de uma vida nova. “Essa fênix com certeza vai me representar. O significado já fala: só a fênix renasce das cinzas e eu vou renascer”
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Como parte de sua recuperção, depois da cirurgia Luciane passou a ser acompanhada por nutricionistas, fonoaudiólogos e enfermeiros que se voluntariaram
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QUANDO A INTOLERÂNCIA COMEÇA DENTRO DE CASA A CADA DOIS DIAS UMA PESSOA É INTERNADA NO SISTEMA PÚBLICO DE SÁUDE COM PROBLEMAS DECORRENTES DE TRANSTORNOS ALIMENTARES
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Texto, foto e edição: ALINE CALANDRINI, DIEGO ALVES, LETÍCIA FERRI E LUCAS SANTOS Colaboração: ALEXA
A
estudante de 21 anos, Thaís Bimbati, vive com transtorno alimentar desde os oito anos de idade. Está doente há mais de treze anos. Cursando o último ano de Odontologia, a futura dentista sofreu de bulimia e anorexia e, apesar de assumir não estar curada ainda, encara o fato de ter escapado da morte como vitória. O transtorno de Thaís manifestou-se logo após o falecimento de sua avó, vítima de um AVC (Acidente Vascular Cerebral). Thais era apegada a ela desde pequena. “Quando ela morreu, tive um choque. Comia com desgosto porque não era mais a mesma coisa”, comenta. Os problemas psicológicos, no entanto, se manifestaram antes mesmo da morte da avó. Segundo ela, as mulheres de sua
família têm obsessão pelo corpo perfeito. Em casa, sempre havia uma certa pressão e uma preocupação exagerada com o ponteiro da balança. Por mais que os pais tenham se esforçado para que ela reagisse aos primeiros sintomas da doença, muitas brigas acabaram acontecendo por conta da dificuldade de Thaís controlar a relação com a comida. Ela foi diversas vezes chamada de louca pelo tio, pela tia e até por uma das avós. “Cheguei a escutar minha avó conversando pelo telefone sobre o meu caso, que eu não batia bem da cabeça, que tinha ´probleminhas´. Eu sempre fui tratada de forma diferente“, ressalta. Para a psicóloga clínica Carla Ribeiro, esse transtorno se chama anorexia nervosa (AN). “A doença é caracterizada quando
No consultório da psicóloga, Thaís desenhou o corpo como ela se enxergava. No traço em azul, a imagem real, com muitos centímetros a menos
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a pessoa impõe a si a perda de peso. Ela passa a ter uma distorção de imagem corporal e alterações hormonais e até desnutrição. Acontece uma busca incessante pela magreza, embora não se perca o apetite”. A doença se manifesta geralmente na puberdade e apresenta sintomas neuroendócrinos, como queda de cabelo, manchas roxas pelo corpo e amenorreia, que é ausência de fluxo menstrual. ”Há muitos casos de reincidência na família. Vale ressaltar que a AN é responsável pelo maior número de mortes em casos de transtornos psiquiátricos”, diz Carla. O índice mundial de mortes provocadas por esses transtornos alimentares em 2009 era alto: entre 18% e 20%. De acordo com o Centro Nacional de Informações sobre Transtornos Alimentares do Canadá (Nedic, na sigla em inglês), a incidência mundial de mortes relacionadas à anorexia em mulheres entre 15 e 24 anos é 12 vezes maior que qualquer outra causa nessa faixa etária. De acordo com estimativas do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH, na sigla em inglês), quase 70 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem com algum tipo de transtorno alimentar. Em 2013, o balanço divulgado pela Secretaria do Estado de Saúde, apontou que a cada dois dias, em média, uma pessoa é internada por anorexia ou bulimia nos hospitais que atendem pelo SUS (Sistema Único de Saúde) em São Paulo. Nos primeiros sete meses daquele ano, foram 97 internações devido a distúrbios alimentares. No ano seguinte, a pesquisa da Secretária do Estado de Saúde revelou que 77% das jovens em São Paulo apresentavam propen-
Para quem sofre de transtorno alimentar, um simples prato de comida é um símbolo de angústia
são a desenvolver anorexia. Na universidade, nas raras vezes em que Thaís sentia fome e comia, um professor chamou sua atenção na aula, constrangendo a estudante. “A cada palavra ríspida do professore, eu me sentia acabada. Quando ele virou-se para mim e perguntou se eu achava que estava na hora do intervalo, eu disse que não. Sempre fui uma pessoa fechada. Ele dizer aquilo para mim e a sala inteira parar para me olhar, foi um vexame”, lembra. Ódio A psicóloga diz que tudo que se afasta do padrão daquilo que é posto como normal na nossa cultura, se torna diferente. “No caso de AN ou outros transtor-
nos alimentares, a postura do paciente é auto-agressiva. Os comentários humilhantes com a intenção de expor o paciente fazem com que ele queira registrar em seu corpo a raiva e o ódio do agressor. Muitas vezes um comentário inofensivo, sem a intenção de expor a paciente, pode também ser compreendido como uma mensagem agressiva, em razão da baixa autoestima, frustração e outros aspectos psicológicos do paciente. A luta contra a anorexia é constante. Thaís tem encontros semanais com psicólogas e análises quinzenais com psiquiatra, além de contar com o apoio de uma nutricionista e até de uma fisioterapeuta. Ela chegou a pesar 36 quilos, correndo sério risco de morte.
“Houve época em que eu tinha que dormir no quarto dos meus pais, porque se ficasse no meu, acordava de madrugada para vomitar. Em alguns dias cheguei a vomitar até sete vezes. Quando atingi 51 quilos, achei um absurdo e emagreci quatro em duas semanas”. Na faculdade ela também enfretou problemas por causa do transtorno. “Uma colega disse para todos da sala que eu já fui internada e que faço terapia. Fiquei constrangida na hora, mas a classe não ligou muito. O que ela fez foi desnecessário”, afirma. O contato com o mundo virtual também não ajuda as pessoas que sofrem do transtorno. Pelo menos foi assim na experiência de Thaís. “Eu tento me livrar cada vez mais da rede social. As blogueiras, musas fitness e modelos que postam inúmeras fotos viajando e mostrando o corpo me deprimem. Parece que elas têm a vida perfeita, o corpo perfeito. Eu queria isso, mas já entendi que não existe perfeição”, admite Thaís. , para logo acrescentar: “Mas eu quero perfeição’’ Apesar de acreditar que “o sentimento de culpa sempre estará presente na cabeça”, a jovem segue uma rigorosa dieta e sonha um dia parar com o tratamento. Por enquanto, acredita ser necessário um pouco mais de progresso e diz que a paciência é a chave essencial durante o processo de recuperação
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