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Ano: 2010 . nr 02 . Mês: Março . Mensal . Director: António Serzedelo . Preço: 0,01 €

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Ou

No ano em que se comemora o centenário da proclamação do dia 8 de Março como Dia Internacional da Mulher, é com alegria e justificado orgulho que escrevemos este editorial. Conscientes de que «este século de luzes e de sombras» não contemplou ainda as mulheres de todo o planeta, não podemos deixar de o valorizar como o século das mulheres que conquistaram direitos, se emanciparam e demonstraram as suas capacidades em todas as áreas da actividade humana. Escrever num jornal foi uma luta travada pelas mulheres, luta dura como todas as que foram travando e de que foram saindo sempre vitoriosas. Em Portugal, no início do século XIX, era uma raridade a mulher jornalista, escondendo-se quase sempre no anonimato. É necessário recordar que escrever, reflectir e pensar em público eram consideradas actividades masculinas. De resto, a virtude estava associada à ignorância. Contudo, a partir dos meados do mesmo século, a mulher instruída percebeu que teria de usar a imprensa para fazer ouvir a sua voz, os seus anseios e fazer dela a tribuna de luta debatendo problemas, expondo ideias e propondo soluções. Em 1849, surge A Assembleia Literária,o primeiro jornal fundado e dirigido por uma mulher, Antónia Pusich, e que se dedicou à instrução do sexo feminino. Outros surgiram, dos quais referimos A Voz Feminina, em 1868 e O Progresso em 1869, fundados por Francisca Wood, O Almanaque das Senhoras em

ASTROLÁBIO

1870, fundado e dirigido por Guiomar Torrezão; Elisa que Curado dirige A Mulher, surgido em 1883; Beatriz dizer Pinheiro funda e dirige A Ave Azul em 1898. dos direitos Excepto o jornal A Ave Azul que se localizava em relativos à materViseu, todos os outros eram editados em Lisboa. nidade? As alterações O direito à educação foi o que surgiu nestes priao Código do Trabalho, meiros jornais. Em 1844, havia 44 escolas que afectando todos os trabalhaeram frequentadas por 1835 meninas. Compredores, atingem de forma mais ende-se, pois, porque as taxas de analfabetismo grave as mulheres que detêm ainda feminino eram elevadíssimas, 85%, num país muita da responsabilidade familiar, rural, pobre e esmagadoramente analfabeto (a senão mesmo toda a restaxa de analfabetismo masculina era de ponsabilidade em casos de 75%). Só as mulheres das classes altas Teatro: esta famílias monoparentais. tinham acesso à instrução. arte jovem As mulheres idosas vivem em siMais tarde, surge o direito ao trabalho tão antiga como reivindicação da emancipação tuação verdadeiramente chocanfeminina e depois o direito ao voto como te, com reformas por velhice cujo direito político elementar numa socievalor médio mensal é de 286,11€; dade que se acreditava democrática e liberal. também aqui as discriminações persistem, pois, o valor médio da reforma por velhice do homem Em Setúbal, A Bandeira, o primeiro jornal fundado é de 472,72€ (valor baixo, certamente, para uma e dirigido por mulheres, surgiu só vida inteira de trabalho e descontos). em 4 de Dezembro de 1910 e apenas foram publicados 4 números, porque Temos razões para celebrar as luzes, para fesNô Kume a sanha masculina foi tão grande que tejar com alegria as vitórias, mas as sombras só Sabi: a foi editado um jornal, dirigido por se esfumarão pelo reforço da luta das mulheres chegada à homens, tendo como único objectivo contra os retrocessos dos seus direitos. Guiné combater A Bandeira e fê-lo de forma, Celebremos o centenário do Dia Internacional da de resto, bem soez e grosseira. O obMulher, porque apesar da existência de inúmeras jectivo foi conseguido, porque duas das redactoras se desigualdades e injustiças, temos de valorizar afastaram (possivelmente por pressões familiares), as conquistas sociais, cívicas e políticas que inviabilizando a continuidade do jornal. O nosso se devem às lutas das mulheres e manter viva preito a Pátria Ramos, a Ária Ramos, a Marta Lebre a actualidade da intervenção das mulheres e Ernestina Abreu, as quatro corajosas mulheres em defesa dos seus direitos, conscientes que se atreveram a publicar A Bandeira. de que a sua participação contribui para uma sociedade mais equilibrada, mais Um século de luzes, mas também de sombras, justa e com mais cidadania. sombras para todas aquelas mulheres que ainda não puderam alcançar o que nós, mulheres do primeiro mundo, conquistámos, mas também Anita Vilar, de sombras, porque pesam nuvens carregadas Maria Madalena Fialho sobre o que se alcançou. Patrícia Trindade Coelho O capitalismo sob a forma de neoliberalismo trouxee Rita Olveira Martins nos ameaças bem sentidas já no quotidiano dos povos e das mulheres, em particular. Em Portugal, as mulheres estão longe de verem concretizadas todas as condições, todos os direitos que no plano nacional e internacional lhe são reconhecidos; pelo contrário, nos últimos anos de políticas neoliberais, assistimos a enormes regressões sociais, à perda de direitos laborais, a discriminações salariais que só dão lucros às empresas, ao desemprego e à precariedade, à pobreza instituída, mesmo de mulheres que trabalham, com reflexos profundamente negativos na qualidade de vida e na situação de milhares de famílias, nomeadamente, das crianças. E

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“A demanda da claquete” São capazes de já ter ouvido falar de um grupo chamado Monstro Mau. São do Porto, têm dois álbuns lançados e são uma banda de funk à antiga, com guitarras wah-wah gordas e um groove cheio de ginga, com resquícios do tropicalismo brasileiro. No princípio

do ano, depois de lançarem o disco mais recente – intitulado “Lixo” –, os Monstro Mau apresentaram um desafio ao público: rodar um teledisco para o seu primeiro single, “O realizador”, uma canção de bossa nova a resvalar para o jazz. Em troca ofereciam uma

câmara de filmar super 8mm, alguns rolos de filme e respectiva revelação, uma claquete e a discografia da banda. A Low Cost Filmes prestou-se a aceitar o desafio. Principalmente porque uma claquete fazia-nos muita falta. Afinal de contas, andamos há

dois anos a filmar sem uma. nuel, no Porto. Rui Reininho, Que credibilidade dá isto a dos GNR (vénia), foi o anfitrião uma produtora audiovisual e foi ele que anunciou a Low Cost Filmes como vencedora que se quer credível? Ao digitalizar as imagens do novo teledisco dos Monsde uma filmagem que tínha- tro Mau, escolhido de entre os mos feito para o primeiro de dez participantes pelo júri que dois telediscos que estamos a incluía o Tiago Guedes, realizarealizar para os Nervo – ban- dor de filmes como “Coisa ruim” da rock em português aqui e “Entre os dedos”, ou a Luísa nossos vizinhos, da Moita –, Sequeira, a jornalista da RTPN uma lâmpada piscou sobre que apresenta o programa “Foas nossas cabeças: era uma togramas”. Quem se baldou foi o Mário Augusto, ideia. Ao vermos supostamente uns grandes plaAo vermos por ter ido ennos dos pés da uns grandes planos trevistar o Woobanda a baterem dy Allen. Como ao ritmo da mú- dos pés da banda a é que dá para sica veio-nos a baterem ao ritmo da perceber estas imagem de um música veio-nos a prioridades? teledisco inteiro imagem de um A banda feito apenas com teledisco inteiro deu-nos os pés. E como a múfeito apenas com parabéns, o sica dos Monstro júri deu-nos Mau se chamava pés. os parabéns “O realizador” e e o Rui Reinia letra continha uma série de referências à nho deu-nos os parabéns. A sétima arte, que tal pormos Prima Folia convidou-nos esses pés a fazerem algumas a escrever sobre isso nesta cenas emblemáticas do cine- nova edição de O SUL e nós aceitámos, mesmo correndo ma que envolvam dança? Três dançarinas reunidas, o risco de soarmos pedantes. um figurante, um cenário Para casa já havíamos trazido montado no espaço gentil- o ego inchado, a sensação de mente cedido de uma com- dever feito, o teledisco novo panhia teatral setubalense de uma das boas bandas (obrigado Teatro Estúdio nacionais que por aí andam Fontenova) e meio dia para sem receberem a atenção que filmar “O realizador”, versão mereciam e uma claquete. Só Low Cost Filmes. Mais um não trouxemos o disco novo dia para montar, outro par dos Monstro Mau, porque o de horas para acrescentar Reininho se abarbatou dele. uns “efeitos especiais” e siga Malvado! para bingo. A cerimónia para anunciar o António Aleixo vencedor decorreu no bonito Realizador e montador espaço do cinema Passos MaLow-Cost Films

FÁBIO VICENTE

Desafios para a próxima edição O Sul é um jornal aberto à colaboração de todos, acolhendo artigos de opinião, reflexão ou análise, reportagens, entrevistas ou textos de divulgação científica, que serão seleccionados pelo Conselho Editorial d’O Sul. São aceites todos os contributos, sem restrições . Seguem abaixo os nossos desafios para os próximos

números. As sugestões são meramente indicativas e os ângulos de abordagem dependem da criatividade de cada um. Edição n.º 3 Entrega: até 26 de Março Sai em meados de Abril Precariedade – A Constituição da República Portuguesa de-

fende a segurança no trabalho, mas cada vez se respeita menos este direito. Que medidas podem ser tomadas para inverter esta situação, tanto a nível legal como de organização dos trabalhadores? Lusofonia – «Minha pátria é a língua portuguesa», afirmava Bernardo Soares, semi-heterónimo de Fernando Pessoa.

Se assim for também para nós, o que significa o novo acordo ortográfico? E porquê tanto desassossego em torno dele? Religião – Se o que faz a religião é a prática, fará sentido alguém afirmar-se católico (ou muçulmano, ou judeu) não praticante? E como são hoje vistas as efemérides religiosas? E a fé individual?

Os ar tigos devem seguir as normas para envio de contributos indicadas abaixo e ser enviados para o e-mail colabore@jornalosul.com. Caso não tenha possibilidade de usar este meio de comunicação, contacte-nos através do telefone 963 883 143 para, em conjunto, encontrarmos uma solução.


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Nô Kume Sabi: a chegada à Guiné

MARGARIDA MADUREIRA

ser embalada em embalagens de 100 gr, disponibilizadas ao público por 500 francos CFA. A Multimistura é um suplemento alimentar, feito à base de produtos locais, muito rica em nutrientes (ferro, proteínas e vitaminas), que em geral, não estão presentes da dieta alimentar da Guiné-Bissau, baseada no consumo de hidratos de carbono. Considera-se que o consumo da Multimistura tem desempenhado um papel muito importante para travar o surgimento de mais casos de desnutrição, tendo essencialmente um carácter preventivo, como defende o texto do documento de validação da MM, emitido pelo Ministério da Saúde da Guiné-Bissau.

Só tivemos um desnutrido Centro de Produção e do CRN grave o ano passado. E foi em de Cacheu: segundas e quartasDezembro”, conta-me Nunki, feiras são dias de Tabanka, uma meio desiludido por esta criança espécie de serviço ambulatório lhe “estragar” as estatísticas. É que leva às populações isoladas o responsável pela farmácia e consultas gratuitas e permite fazer um contropelos registos do lo nutricional das Centro de RecuNão existe crianças; terças e peração Nutriqualquer espécie de sextas-feiras são cional (CRN) de Cacheu, Guiné- consciência alimen- dias de atendimento no CRN, Bissau, onde as tar e a alimentação de crianças num Irmãs Francis- responde a um insdia e grávidas canas de Nos- tinto biológico. no outro. Fazem sa Senhora da o atendimento e Aparecida, em parceria com o ISU - Instituto controlo de crianças em situde Solidariedade e Cooperação ação de desnutrição, pesamUniversitária, desenvolvem, des- nas e medem-nas e ensinam de 2006, o projecto Nô Kume às mães a preparar refeições Sabi, de combate à desnutrição equilibradas e diversificadas materno-infantil, articulando o com produtos locais. Às gráestímulo à produção local, com vidas é dada formação, que as prepara não só para o períoa alimentação alternativa. Estou em Cacheu há dois dias, do da gravidez, mas também há um mês em solo guineense para os cuidados a ter com os e procuro conhecer todas as filhos. “A formiga afunda-se num dinâmicas e procedimentos do

copo de leite materno como se afoga se a colocarem num copo de água. O vosso leite é bom e é, aliás, o mais rico alimento que podem dar nos primeiros seis meses de vida”, explica um dos animadores procurando desmistificar um dos muitos mitos existentes que levam as mães a abandonar a amamentação porque considerarem que o leite é mau para o bebé. O objectivo é claro e insinuase nas diferentes actividades do projecto: dar a conhecer os benefícios de uma alimentação rica e variada como essenciais e como a base para uma vida saudável e um desenvolvimento normal. Centro de Produção: a Multimistura Ao mesmo tempo, a cerca de 500 metros, e dentro do espaço da Missão, os trabalhadores do Centro de Produção

lavam, secam, descascam e pilam os alimentos que depois de triturados e transformados vão compor a Multimistura, a Farinha de Cabaceira ou a Papa de Milho Preto. Os ingredientes são comprados a produtores individuais nas Tabankas de Cacheu, fomentando a economia da região e aumentando os rendimentos familiares, numa região onde a produção agrícola familiar é cada vez menos variada e mais insuficiente, o que contribui para a precariedade da saúde da população e para o surgimento de numerosos casos de desnutrição, essencialmente na população infantil. Compra-se a cabaceira, a moringa e o farelo de arroz. O caju, a folha de batata e a folha de mandioca são cultivados no espaço da Missão. Os ingredientes são transformados, junta-se o Farelo de Arroz e a Multimistura está pronta a

Formação “As proteínas são os elementos construtores e encontram-se no peixe, na carne, ovos…”, diz Miro enquanto mostra um cartaz com uma casa com tijolos que põe em imagens o que acaba de dizer. Não existe qualquer espécie de consciência alimentar e a alimentação responde a um instinto biológico. É preciso mostrar que cada tipo de nutrientes tem uma função específica e que são fundamentais para o desenvolvimento. “As proteínas para construir, as vitaminas para afastar as doenças e os minerais para regular as funções do organismo”. Faz-se educação alimentar, educação para saúde e para os cuidados com a higiene, promove-se o consumo de produtos locais, o cultivo e as hortas comunitárias. A formação é uma das actividades da minha responsabilidade quando faço o acompanhamento aos CRN. Serão mais de 50 as visitas este ano e muitas as formações. Pelo que já me pude aperceber a heterogeneidade predomina ao nível dos CRN, havendo uns totalmente auto-suficientes e outros com inúmeras deficiências.... Trabalho não falta, num país em que quase tudo parece estar por fazer. Margarida Madureira Voluntária do ISU Guiné-Bissau


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JOSÉ TAVARES DA SILVA

O azar não existe

A Natureza é imprevisível, é a sua natureza. Somos nós que temos de estar preparados. Antes mesmo da nossa cabeça surgir ansiosa sobre o capim e de darmos os primeiros passos no planeta já havíamos descoberto, às nossas custas, de que espécies de animais devíamos fugir e quais as que não eram de temer. Ao levantarmos o tronco e erguermos a cabeça, procurámos uma visão mais privilegiada das coisas. Procurávamos antecipar os perigos. As ameaças constantes à nossa sobrevivência fizeram com que desenvolvêssemos atributos de observação. Através destes, desvendámos, mais

tarde, os segredos das sementes e aprendemos a escolher os melhores solos para o seu cultivo. Abandonámos o nomadismo e a recolecção, e construímos povoações. Durante essa transição ficámos muitas vezes sem abrigo, porque os construímos em locais sujeitos a deslizamentos, inundáveis ou expostos a marés extraordinárias. Foi a capacidade de estabelecermos uma relação entre as nossas desgraças e as suas causas que nos distinguiu dos restantes animais e nos fez chegar até este tempo, triunfantes sobre as parcas probabilidades que a Natureza remotamente nos reservou.

Nesta batalha mercantil Apesar das luzes de aviso que se acendem por todo o mun- que vamos travando contra do, deixamos que se apoderem a Natureza, há mais vítimas da Natureza como se esta fosse que a degradação ambiental. uma Mercadoria e que a cir- A redução dos recursos está a cunscrevam a “parques natu- colocar quem os detém contra rais” e “reservas agrícolas”, cada quem deles precisa, fazem-se vez mais reduzidos pelo apetite guerras para conquistar o que sobra. Para manter a loucura da especulação imobiliária. Permitimos que moldem o consumista, uma minoria esnosso habitat e as nossas ci- preme o planeta até à exaustão. dades ao arrepio da convivên- Enquanto isso as condições cia com a Natureza, deixamos mínimas de sobrevivência não que os únicos parques urbanos passam de uma miragem para sejam os de estacionamento, milhões de seres humanos. Da luta contra a Natureza achamos natural que os carros se apoderem do nosso espaço e só resultará a derrota da nosdos nossos pulmões e que até as sa espécie. Muitos de nós já praias onde os nossos avós se chegaram a esta conclusão. banhavam nos sejam negadas Denunciam que consumimos e esbanjamos os recursos em nome do “progresso”. mais depressa do Ao contrário que a velocidade do que os nosMenospreza- com que a Natusos ancestrais reza os consegue a p r e n d e r a m mos que os rios, os repor. Horrorizadolorosamente, mares e as dos pelas consedeixamos que florestas não são quências futuras se construa nos inesgotáveis para a Humanileitos de cheias dade, protestam e nas zonas de drenagem das chuvas, que e manifestam-se perante a se ocupem de prédios as incapacidade dos governansensíveis zonas ribeirinhas tes. Desgraçadamente gastam como forma de as “devolver grande parte das suas energias aos cidadãos”. Permitimos que a combater a distracção dos a única precaução contra as seus concidadãos, que se absocorrências extraordinárias têm de tirar o leme das mãos da Natureza e a segurança das irresponsáveis. populações seja aquela que possa ser contabilizada pelas José Tavares da Silva companhias de seguros. osonodomonstro@gmail.com

Tivemos sucesso porque o instinto e a inteligência permitiram que nos adaptássemos aos sortilégios da Natureza. Já não somos uma espécie frágil procurando sobreviver entre as demais num ambiente agreste. A capacidade de comunicar gerou cultura, o conhecimento trouxe tecnologia, os artefactos colocaram-nos no topo da evolução. Passámos de caçados a predadores. Multiplicámo-nos e modelámos o ambiente à nossa imagem e chegámos a um ponto em que concorremos pelo espaço e pelos recursos contra todas as outras espécies animais e vegetais. Toldados pela insaciedade, transformámo-nos na única espécie que inventa necessidades. Menosprezamos que os rios, os mares e as florestas não são inesgotáveis, continuamos a usá-los sem controlo e sem deixar que se regenerem, conduzimos espécies à extinção. Ao fazê-lo fragilizamos as condições que nos têm garantido a existência. O conhecimento científico actual aponta e acusa: as desgraças naturais que ocorrem no nosso mundo não são “obra da cólera dos deuses”, como diria a ignorância dos antigos, mas o resultado de acções humanas concretas.

Imaginem uma cidade onde toda a gente anda de bicicleta e a pé. Imaginem uma cidade sem o barulho e a poluição dos carros. Imaginem que é possível ver o mundo um bocadinho mais devagar, que conseguimos descortinar beleza em sítios onde passamos todos os dias. Imaginem a recompensa automática que temos por chegar do ponto A ao ponto B usando apenas as nossas pernas, o prazer de o termos conseguido à custa apenas do nosso esforço. A bicicleta é uma grande invenção do homem e hoje

> Próximo encontro dia 26 de Março às 18h na Praça do Bocage

PAULO VIEIRA

Um pouco mais devagar em dia não lhe damos valor porque temos sempre os carros. O conforto, a velocidade mas também o estatuto que um carro nos dá. A que custo, é a pergunta que temos de fazer. Acidentes, dívidas ao banco, o corpo que se torna flácido, as filas, a irritação porque o carro da frente não anda, porque o semáforo não abre. De bicicleta o caminho para o trabalho torna-se uma corrida, um passeio, uma viagem. Os pássaros de manhã, os carros parados numa fila, o cheiro a terra molhada, o vento na cara. A “Massa Crítica” é uma

forma de juntar pessoas que compreendem tudo isto e de cativar algumas mais que o querem compreender. Apenas uma vez por mês dá-se um encontro informal em várias cidades espalhadas pelo planeta, onde grupos de ciclistas se reúnem para dar um passeio juntos pela cidade. É uma forma de dar visibilidade a este nobre meio de transporte, de trocar experiências e conhecer pessoas e, quem sabe, meter mais gente a andar de bicicleta. Rui Barbosa aventurasasolo@gmail.com


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NA VIGIA 05 A destruição de uma biblio- de todos os géneros, de todas teca, ou de um arquivo, é um as idades, amenamente caacontecimento de consequên- vaqueavam. Procedeu-se à cias inimagináveis. Sobre este passagem de um filme, sendo crime reflectiu Ray Bradbury que, de seguida, promoveu-se no romance Fahrenheit 451. debate de ideias, explananA história enquadra-se num do posições, contrapondo, futuro ficcional, onde os livros clarificando e partilhando são proibidos, não havendo conhecimentos, percepções. espaço para a opinião própria A discussão esteve animada, e o pensamento crítico é su- prolongando-se para lá do primido. Longe do ambiente filme, para lá do realizador, literário, mas tão perto nas em conversa sadia. No final, suas consequências, junto gentilmente, partilhou-se chá, de nós, assistimos a uma re- para retemperar forças. É deste espírito de partilha, alidade chocante, onde uma biblioteca e um arquivo úni- olhar plural e solidário, que co, irrepetível, encontra-se nasce a revista publicada pelo em perigo eminente de ser C.C.L., a Húmus, homenagem suprimido, extinto. Trata-se merecida ao grande escritor da biblioteca e do arquivo do Raul Brandão que, com a Centro de Cultura Libertária, publicação do romance com este mesmo título nos disem Cacilhas. Desconhecendo, por com- se, de forma veemente: “nós pleto, em que consistia o não somos inutilidades num C.C.L., lá me dirigi numa tarde, mundo feito, mas os obreiros maravilhado pela beleza do de um a fazer.” Pude então observar a bienquadramento de Cacilhas, onde a dureza da paisagem in- blioteca. Cerca de dois mil dustrial petrificada, não con- volumes com os expectásegue empalidecer a ternura veis Proudhon, Bakunine e que a presença contígua do rio Racine, um improvável Geoferece ao casario antigo de orge Orwell, bem como os Cacilhas Velha. Subindo a Rua portugueses, Alves Redol, Cândido dos Reis, por entre a Manuel da Fonseca, Edgar azáfama de grupos de pessoas Rodrigues, Ana Barradas e que procuram o peixe mais Júlio Carrapato. Biblioteca fresco no meio dos inúme- de uma associação sem fins ros restaurantes, lá cheguei lucrativos, é de acesso livre, ao nº 121, deparando-me com nada se cobrando pela conum singelo edifício, talvez de sulta e requisição das obras Setecentos, ou inícios de Oito- de fundo especializado. Criado logo após o 25 de Abril centos, com dois pisos. Na varanda do primeiro andar, uma de 74, por militantes antifasplaca, muito apagada, quase cistas anarquistas, pautando já não permite ler “Centro de figuras como Francisco Quintal, Cultura Libertária”. Subi as es- Jaime Rebelo, Adriano Botelho, Sebastião de cadas, a porta da Almeida e José rua estava aberta, (...) uma Correia Pires e bati no 1º direibiblioteca e um que, no Tarrafal, to. Abriram. Com pagou pesado um sorriso solto, arquivo único, tributo pela sua convidaram-me irrepetível, enconcoerência. Difea entrar. Um ho- tra-se em perigo rentes publicamem de cabelo eminente de ser ções surgiram grisalho, idade suprimido ao longo dos 36 indefinível, bem anos de exisdisposto, rapidamente me fez sentir em casa. O tência deste espaço cultural, Centro dispõe de uma sala de como o jornal Voz Anarquisbiblioteca, uma sala de tertúlia ta, na década de 70, a revista e uma copa onde se confrater- Antítese, em 80 ou o Boletim niza igualmente. Tudo o que de Informação Anarquista, em lá existe, a vista alcança em 90 do Século XX. Em Janeiro de 2009 foi instrês minutos, mas leva horas taurada uma acção de despepara realmente se ver. Decorria uma tarde cultural. jo pelo novo proprietário ao Na sala meia dúzia de pessoas C.C.L., apesar da associação

LEONARDO DA SILVA

Evitem pedir desculpa às gerações vindouras

pagar renda com pontualidade e conforme ao acordado. No dia 2 de Novembro foi decretada sentença favorável ao proprietário, que alegou que a associação fazia ruído, o que para além de ser senso comum, sublinha apenas a vitalidade da mesma. Estranha é a celeridade com que o Tribunal de Almada sentenciou uma ONG, quando já vai de Novembro de 2006, ultrapassando se não todos os prazos legais pelo menos os morais, para se pronunciar sobre o processo que as autarquias da Arrábida colocaram à SECIL, a propósito do problema de saúde pública inerente à coincineração na cimenteira. Se a justiça deve ser cega, aqui apresenta-se zarolha… Com todas as valências acima enunciadas, que só por si justificam a utilidade social e pública de um espa-

ço com estas características, o C.C.L. possui um fundo documental insubstituível, que encerra um século inteiro de história do movimento anarco-sindicalista e anarquista em Portugal. Raro, precioso, retrata, ao invés da habitual documentação, a história das gentes, na sua maioria simples trabalhadores, fazendo deste espólio um dos mais importantes para a compreensão das lutas sociais do país no Século XX. Não é requisito partilhar da ideologia vigente do Centro, para se perceber a importância extraordinária do ele encerra, basta perspectivar a preservação da memória colectiva portuguesa, na qual se inclua todos os portugueses, como útil. A questão que se levanta em todo este processo é pertinente. Se for realizado

o despejo, o que acontecerá ao fundo bibliográfico e arquivístico? A resposta é, infelizmente, também ela evidente. A documentação será encaixotada o melhor que for possível aos voluntários da associação que, por sua vez, entre si distribuirão as tarefas de armazenamento do mesmo, em situação precária e com a boa intenção de o reunir novamente em dia mais bonançoso. Porém, o ânimo inflamado que entusiasma a dedicação actual ir-se-á perder em dois ou três anos e as pessoas vão seguindo com suas vidas. Os contactos entre uns e outros, sem o espaço que a todos une, paulatinamente esboroar-seão. Em suma, por essa altura, adquirir-se-á a consciência daquilo que já se sabia antes. É inseparável o espólio do sítio onde está radicado, ambos são um mesmo conjunto, uma mesma coisa. Numa noite amena, 77 anos antes, milhares de jovens armados com archotes, incitados por Goebbels, atearam fogo a pilhas de livros, cerca de 20 000 crê-se. Autores como Walter Benjamin, Thomas Mann, Bertold Brecht, Erich Maria Remarque, Karl Marx, Sigmund Freud ou Albert Einstein arderam na pira. Como desabafou Heinrich Heine, a propósito da intolerância: “onde começam a queimar livros, terminam a queimar homens.” Ao que parece, esquecer o passado permite perpetuar erros cíclicos e temos em crer, à luz do que pudemos verificar, que o Tribunal não julgou com verdadeira Justiça. Encerrando o C.C.L., desbarata-se uma biblioteca e um arquivo inestimável, constituindose este caso como o mais dramático crime da história da cultura da Margem Sul do Século XXI. Sem este acervo será, doravante, impossível desvendar os mistérios sobre o passado colectivo da região; existirão lacunas que nunca mais poderemos vir a preencher. José Luís Neto jose.neto@jornalosul.com


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PEDRO PALMA

O Teatro

Desde 1961 que o Instituto Oprimido”, um teatro com de Estudos de Teatro, uma pendor social bastante fororganização que a UNES- te, dando voz a quem habiCO instituiu, celebra a 27 tualmente não a possui. Foi de Março, o Dia Mundial do no Brasil que começou, nas Teatro. Nesse dia, é lida uma favelas e bairros sociais. Um mensagem de uma persona- teatro que fala dos problemas lidade ligada a esta arte, que comuns de toda uma populaserá ouvida em cada sala por ção. Temas como o racismo e a xenofobia, todo o mundo. O as discriminaprimeiro foi Jean Actores ções sexuais e Cocteau, em 1962. de género, as Até hoje foram somos todos nós, discriminações h o m e n a g e a d o s e cidadão não é sociais, são renomes como Pe- aquele que vive em ter Brook, Pablo sociedade: é aquele tratadas neste tipo de teatro. Ner uda, Ionesque a transforma!” O objectivo co, Arthur Miller, é pôr todos a Edward Albee, Vaclav Havel e no ano passado, falar sobre tudo, sem tabus Augusto Boal. Infelizmente, nem temores. E isto leva-me Boal faleceu uns meses de- à primeira questão: quem popois, mas a sua obra ficará derá ter capacidade para ser para sempre. Boal foi o cria- actor? Pois, socorro-me de dor do chamado “Teatro do Boal para a resposta: “ Todos

nós podemos ser actores, até mesmo os próprios actores”. Com esta frase Boal vem dissipar todas as dúvidas. Todos nós podemos e devemos ser actores sociais durante a vida. Devemos ser activos, participativos, para as mudanças que todas as sociedades anseiam. Uma condição essencial para que haja teatro é a de que exista simultaneamente acção. Sem acção não há vida, e o teatro é a vida em acção. Retomo a Boal: “Actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma!” Quanto aos próprios actores, esses, têm um papel decisivo na mudança de mentalidades e transformação das sociedades. Os actores profissionais devem ser exemplos

éticos de profissionalismo, de valores de cidadania, de solidariedade, de alavancas para a mudança de comportamentos e de atitudes. Como diria Grotowski, o actor é um sacerdote, pois tem de ser exemplar na sua profissão. Não pode ceder aos caprichos dos poderes instituídos, nem ao facilitismo da fama e do estrelato espúrios, que infelizmente abundam cada vez mais no nosso meio audiovisual. Além de ser um exemplo para os outros, os actores e criadores de teatro utilizam os textos e as palavras de grandes dramaturgos para passar mensagens e novos modos de pensar o mundo. Isso leva-nos à interrogação final: como pode o teatro contemporâneo competir com este mundo moderno e pejado de dimensões audiovisuais e virtuais? Pois o que pode parecer fraqueza, julgo ser a maior virtude do teatro: ao contrário de outras artes, é uma arte presencial, a três dimensões, em que ocorre uma partilha simultânea entre actores e público. A atmosfera criada na sala de teatro é diferente de sessão para sessão. O actor num dia pode enganar-se numa parte de um texto, o público num dia ri-se mais, noutro não se ri tanto. Tudo isto faz com que cada espectáculo seja único, ao contrário do

cinema ou da televisão, em que podemos repetir indefinidamente aquela cena, que sairá sempre igual. No teatro temos a imprevisibilidade e a efemeridade. O teatro é efémero. Termina com os aplausos da representação. O teatro é um mundo de partilha, de comunicação viva e em directo. Ao invés, o virtual é desoladoramente sempre igual e formatado. No virtual vivemos emoções que, no fundo, são de uma profunda solidão. O mundo moderno é uma partilha fictícia, basta ver quantos se iludem perante um écran de televisão. O mundo real é o do teatro, onde o ser humano se mostra perante outros humanos, num processo de comunicação mútua e bilateral. Claro que o teatro actual também pode e deve utilizar alguns meios modernos de comunicação, mas nunca poderá existir teatro sem esta força dupla: o actor perante um público. Concluindo, volto a Augusto Boal: “Teatro não pode ser apenas um evento. Teatro é forma de vida!”. Continua a ser essencial para as sociedades, pois é uma forma verdadeira de mostrar a vida dos seres humanos e reflectir sobre as suas atitudes. Mário Rui Filipe Encenador,Actor e Professor de Teatro

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sessão de divulgação de poesia erótica no feminino, por antónio galrinho. entrada livre!

20 de mar.

15:30 - 18:30

o que é ou não é a Arte, composições, temáticas, materiais e motivação para a expressão plástica, workshop / debate por fátima madruga. inscrição gratuita

26 de mar.

as lutas femininistas em portugal, jantar cultural com catarina marcelino.

sex. às 21:30

17 de abr.

sáb. às 22:00

10 folias (8 folio divinus)

concerto de flamenco moderno, com marco alonso, joão branco e helder pereira. entrada 1€

RUA DEPUTADO HENRIQUE CARDOSO NR 34 , SETÚBAL . http://primafolia.blogspot.com primafolia@gmail.com . TEL: 96 388 31 43


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ACTIVISMOS 07 Testemunho de mulher Nasci no sexo feminino. Não regando-se de estiolar o opsei como fui recebida nesta timismo da juventude. A vida condição tão marcante para acabou por me ofertar papéis uma vida. A dificuldade de difíceis, entre o masculino e expressão de sentimentos de o feminino. Mãe extremouma mãe demasiado ocupa- sa, mas pai em simultâneo. da e a expressão ambivalente Dona de casa, boa cozinheide um pai ora amoroso, ora ra, sabendo fazer malhas e agressivo, foi fazendo de mim bordados, bem característico uma sombra de um irmão de- de uma mulher, mas supormasiado inteligente para que te financeiro do agregado. Trabalhos, canseiras, que achasse graça própria. Fui Maria-Rapaz, gostando durante tempos e tempos apenas das brincadeiras atlé- pensei nunca mais iriam acaticas e de risco, como trepar bar. No entanto, ganhando e trabalhanárvores e pular do sozinha, muros. Também A vida acatratando ao brinquei aos solmesmo tempo dadinhos, não me bou por me ofertar da economia lembrando hoje papéis difíceis, entre doméstica, lá se ganhava ou o masculino e o estava o ouperdia batalhas feminino. tro papel bem contra o meu ircaracterístico mão. Cresci, mesdo que nunca mo assim, com graça de menina, apesar de soube o que era ter: “ um minha mãe sempre me dizer chefe da casa”. Assim vivi dividida e soque tinha corpo de homem devido a ser demasiado brecarregada com a responmusculada, dizia. Também sabilidade, com a carga, com durante anos reforçou a ideia um peso do qual apenas por de que teria as sobrancelhas vezes, aliviava, enquanto sonhava almejar um amor eterdemasiado grossas. Na adolescência, curiosa- no, que me desse felicidade mente, era bastante cobiçada e leveza que provavelmenpelos rapazes. Sem ser boni- te, por não estar habituada, ta, teria com certeza alguns não saberia gerir. Alimentada atractivos que a isso levavam. de quimeras, vejo hoje que A esse facto todavia, não lhe tudo voltou ao mesmo lugar, dei qualquer importância. da ambivalência andrógina Desde nova que me focava mulher-homem, quer nas unicamente em quem gos- responsabilidades, quer nas tava, tudo o resto não tinha emoções. Em casa o papel valor. Lá fui tendo os meus é de um homem. Na profisnamorados mas, confesso, são, substitui um homem. No sempre escolhendo-os mal. aguentar os desgostos, papel Pessoa submissa mas alegre, de homem, pois dificilmenvia que a minha mãe não te as mulheres aguentam tão acertara, que fugia ao vati- pesada carga. No pensar tocínio da sacerdotisa, pois fui dos os dias na morte, por não vivendo pensando que seria aguentar mais dor, creio que é papel de homem, pois mãe sim, feminina. Os anos passaram, encar- nenhuma, sem pai para divi-

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LEONARDO DA SILVA

dir, se pode dar a esse luxo de pensamentos. Um eterno retorno entre a esperança e a frustração inevitável. Numa coisa sou mulher.

No amor que sinto por um homem. E também, contrariando o papel de mulher e ganhando coragem para assumir mais uma vez uma

atitude atípica, te pergunto: Queres casar comigo? Margarida Vaz Funcionária da Administração Pública


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08 ACTIVISMOS

FÁTIMA MADRUGA

Dia Internacional da Mulher – O que mudou?

Internacional da Mulher terá Cem anos antes... No dia 8 de Março de 2010 surgido por uma proposta de celebram-se os cem anos do Clara Zetkin – editora do jorDia Internacional da Mulher. nal socialista A Igualdade – ao Embora cada vez mais detur- II Congresso Internacional pado pelo pensamento domi- das Mulheres Socialistas, que nante, este dia representa, na se realizou em Copenhaga, realidade, a luta das mulhe- já em 1910 - este dia seria res trabalhadoras pelo fim da um marco histórico para sua exploração e opressão. relembrar todas as lutas e conquistas da A origem deste mulher explodia suscita algu(...) este dia rada, e serviria ma controvérsia para homenana historiografia, representa, na regear as lutadocontudo, existe alidade, a luta das ras em todo o uma versão dos mulheres trabamundo. factos que é a mais lhadoras pelo fim Sete anos deconsensual. Con- da sua exploração pois da realizata a história que o e opressão. ção do II Condia 8 de Março se gresso, deu-se deveu à luta das a revolução 129 trabalhadoras de uma fábrica têxtil de russa, na qual as mulheres Nova Iorque, em 1857, quando russas lançaram o tiro de estas organizaram uma greve partida para a revolução, a e ocupação pela diminuição Fevereiro de 1917. Nesse ano, da jornada de trabalho, que as mudanças na vida destas terminou com os patrões a mulheres ocorreram à velocitrancá-las dentro da fábrica e dade da luz: foi a primeira vez a incendiar o edifício, causan- que se legalizou a interrupdo a sua morte. Assim, o Dia ção voluntária da gravidez, foi

feito um devido planeamento familiar, deu-se apoio na maternidade com a criação de creches, houve diminuição da jornada de trabalho e houve a possibilidade de todas as mulheres acederem à educação, tornando-se cada vez mais independentes. Por esta altura, as mentalidades começavam a mudar... Cem anos depois... Passados todos estes anos algo mudou mas, porém, quase tudo continuou como estava... A legalização da interrupção voluntária da gravidez só foi possível, em Portugal, 33 anos depois do 25 de Abril: foi uma grande vitória, contudo, a mulher continua a não ter à sua disposição um planeamento familiar devido, feito pelo Serviço Nacional de Saúde. Continua colocada para segundo plano no acesso ao emprego, bem como no salário recebido relativamente ao homem, a ser explorada no trabalho, precária, sujeita

a despedimentos por engra- cruel, a maioria das vezes vidar, tendo, por vezes, que guardada nas quatro paredes acumular dois trabalhos onde ocorre. Parece-me que para poder manter a sua o 8 de Março é mesmo para lembrar e também independênpara agir. cia financeira. (...) ser exploSe para as que Para já! não pretendem rada no trabalho, A realidade acter filhos a vida precária, sujeita tual está atrasada. está cheia de a despedimentos É importante, de acrobacias, uma vez por todas, então para as por engravidar, que as mulheres q u e p r e t e n - tendo, por vezes, exploradas perdem torna-se que acumular dois cebam que há um uma verdadeira trabalhos para culpado por esta odisseia: com poder manter a situação. O sistetrabalhos de 12 sua independência ma capitalista e horas (ou mais) os seus represenpor dia, quem financeira tantes nunca percuida dos fimitirão que estas lhos? Serão os infantários a 400 euros por mulheres mudem a sua conmês quando o salário mínimo dição. Aliás, nunca o permitiu. é de 475 euros?!! Parece-me Apenas lhes dará pequenas que não será preciso ser-se reformas, muito progressivas, contabilista para perceber mas que nunca serão sufiimediatamente que se torna cientes para acabar com a sua um cálculo impossível! A du- opressão e exploração. pla jornada de trabalho continua presente, e a violência Sofia Rajado doméstica é uma realidade Professora


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ACTIVISMOS 09

INÊS SEIXAS

Um século de lutas, séculos de resistência

No mês em que se comemora em todo o mundo o Dia Internacional da Mulher, dedico este artigo às mulheres do Sahara Ocidental. São, como tantas outras, uma força vital da sua sociedade. Suportam, como muitas, as privações e um quotidiano agreste e difícil. Amam, como todas, as suas famílias e o seu país. E quando se celebra a data proclamada em 1910 por Clara Zetkin, em homenagem às operárias que lutavam por melhores condições de vida e de trabalho e na exigência de mais direitos para as mulheres, é importante revelar ou relembrar a situação de um povo africano que, em pleno século XXI, ainda luta pela sua auto-determinação e pelo direito a um país livre e independente. O Movimento Democrático de Mulheres integrou, em Abril de 2009, uma Caravana de Solidariedade aos acampamentos de refugiados sarauís, no sul da Argélia. A

história destes acampamen- para contribuir para o cotos começa com a grande lectivo. Visitámos escolas travessia do deserto, em 1975, de mulheres, vimos como as fugindo da genocida ofensiva preparavam para participar marroquina nos territórios activamente na sociedade e ocupados do Sahara Ociden- as capacitavam para exertal. As mulheres, carregadas cer uma profissão, fazendo com os seus filhos e ajudan- a difícil aprendizagem da vado os mais idosos, deixando lorização do trabalho num para trás todos os bens que espaço onde ele não existe. possuíam e perdendo pelo A par da formação e da prodeserto muitos familiares e fissionalização das mulheres, companheiros, partilharam a constatámos também outra injustiça de uma pátria rou- componente fundamental para o desenbada e a violência volvimento e a do país opressor. Tivemos opor(...) mulheres e emancipação das sarauís: a tunidade de co- homens esquecidos existência de nhecer melhor pelos senhores do espaços de como se organimundo, para lutar discussão e zaram, destacano aprofundado o determinante por um país livre e mento da repapel da União independente. flexão sobre Nacional de Mutemáticas do lheres Sarauís quotidiano (o (UNMS), como potenciaram as suas capa- trabalho, o divórcio, a saúde). cidades para o bem comum, A história recente deste povo como desenvolveram novas proporcionou às mulheres capacidades e investiram uma intervenção determino enriquecimento pessoal nante e transformadora na

sociedade: combateram ao lado dos homens, defenderam acampamentos, ocuparam lugares de decisão, protegeram as suas famílias. E a sua implantação perdura no tempo, reforça-se e alargase como vimos na manifestação organizada junto ao Muro da Vergonha erguido pelos marroquinos, em que a UNMS coordenou a participação de mulheres vindas dos vários acampamentos e uma Faixa das Mulheres do Mundo, com representantes de organizações de mulheres de vários países, entre as quais o MDM. Visitámos hospitais e escolas, abraçámos a generosidade das mães e brincámos com as crianças da família que nos receberam, conhecemos professores inspiradores e fomos recebidos pelo Presidente da República Árabe Sarauí Democrática. Uma semana plena de informação, conhecimento, emoção, partilha. Para as mulheres portugue-

sas, aderentes do MDM que, como eu, partiram na aventura da solidariedade, só nos resta agradecer a oportunidade que nos deram de conhecer melhor o trabalho da UNMS, no difícil cenário que é a sua vida real, e também conhecer mais um exemplo de mulheres que, no mundo, lutam não só pelo dia a dia, pelas suas famílias mas também pelo seu país. Um século de lutas das mulheres pela igualdade na lei e na vida obriga-nos a reflectir sobre uma componente fundamental das comemorações do 8 de Março: a solidariedade! Pela nossa parte, contribuiremos para a divulgação de tudo o que vimos e vivemos no Sahara e estamos aqui, ao lado destas mulheres e homens esquecidos pelos senhores do mundo, para lutar por um país livre e independente. Natacha Amaro Dirigente do Movimento Democrático de Mulheres


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10 PERIFERIAS

As lágrimas do Bairro Salgado

os desígnios de um grupo de os operários, a paisagem era arquitectos inspirados nesse dos barulhos e dos cheiros estilo. Portugal adoptou o ter- das fábricas de conservas. mo “Arte Nova”, do francês Era, no fundo, uma cidade de arruaceiros. Antes, todo este “Art Noveau”. Deixemos as derivações e bairro era um enorme campo, retornemos ao bairro onde quintas que se projectavam nos encontramos, o Bairro até ao mar. As comunicações Salgado. Foi aí que observei feitas eram difíceis e morosas. Daí que o comazulejos azuis boio veio pere brancos com Hoje em dia mitir um desencenas do quovolvimento maior tidiano, nessas o Bairro Salgado é casas que são uma sombra daquilo da nossa cidade, trazendo capitais unifamiliares. que foi outrora. estrangeiros que Intelectuais, deram origem às empresários, fábricas de conarmadores eram os habitantes que se servas. Todas as suas ruas foalojaram no “resort” periféri- ram planeadas, estruturadas, co da cidade. - Neste bairro… como se fossem desenhadas - disse a estranha mulher - num papel, ligadas e trazendo Foram lançadas as bases do todas as inovações. Foi neste progresso, através de um bairro que se concentraram grupo que se via a si próprio alguns dos melhores exemcomo bem-pensante, que ten- plares de “Arte Nova”. Nestava proteger-se da maioria te bairro temos casas com da população. A maioria eram fachadas de azulejos azuis

e brancos com representações familiares, algumas com raparigas em idade de casar. Esses azulejos tinham uma proposta muito subtil que levaria à junção de fortunas e títulos, que dariam lugar à perpetuação da ordem natural das coisas. Hoje em dia o Bairro Salgado é uma sombra daquilo que foi outrora. Bairro geriátrico, habitado por idosos e edíficios mal tratados pelos seus proprietários. Por vezes creio que essas casas estão assombradas e que os seus habitantes ali desejam continuar, que desejam que as suas memórias sejam recuperadas, só não sabem fazer manifestações. Digam que ali vivem vampiros, vão ver que as verbas para a recuperação dos edíficios logo aparece. António Almeida Historiador

LEONARDO DA SILVA

Regularmente tenho o mes- tas, janelas, tudo aquilo que me mo sonho. Sempre o mesmo pareça mais estranho. Nesse sonho. Passo pelo magnífico instante dá-se um estranho Bairro Salgado e contemplo acontecimento, pois viajo sem toda a sua decoração exterior. sair do lugar, apenas no temAzulejos azuis com cenas bu- po, passando para cerca de cólicas, eternecedoras, familia- 100 anos antes. A mulher de res, e, ao longe, vejo a cabeça de azulejo transformou-se numa burguesa instruída e real, conuma mulher que me chama . É estranho, como uma ca- trariando as chatas senhoras beça que sai de um cenário de vitorianas da altura. À época o grande movimenteatro, que me grita para ver se vou conversar com ela. Diz to artístico era a “Arte Nova”. que me quer falar. Acho es- Esse movimento espalhou-se e desenvolveutranho, julgo estar se, tendo adquidoente ou louco, rido caracterísmas não, somenviajo sem ticas nacionais te durmo. Por isso sair do lugar, em cada país creio ser possível apenas no tempo europeu. Em esse ser poder faPortugal, este lar comigo. Diz-me género de arte que está muito só, que na maioria das vezes, as teve pouca influência e em pessoas não conseguem ouvir Setúbal apenas algumas ruas da cidade, como as do os seus chamamentos . Aquela mulher pede-me que Bairro Salgado e em alguns olhe bem para aquela rua, para casos da Avenida Luísa Todi, os seus azulejos, as suas por- foram projectadas segundo


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PERIFERIAS Estaciono o carro ao pé de casa e lembro-me que tenho de ir à Baixa. Ainda são 17h. Reparo no trânsito, nos jovens que saem da escola em grupos numerosos e barulhentos, nas pessoas que saem dos seus empregos e caminham ainda tranquilamente pelas ruas, nas esplanadas da Praça do Bocage e nos gastos bancos que a circundam. Reparo nas pessoas que aí estão sentadas, com mais de 60 anos e que passam ali muito tempo do seu dia. Uns conversam avidamente sobre o resultado do jogo do serão anterior, outros sobre o resultado que há-de ser de esta noite, mas outros, simplesmente ali estão, a olhar quem passa e por vezes até pegam no sono como se da sua sala de estar se tratasse. Depois apercebome que talvez a praça seja mesmo a única sala de estar que eles conhecem enquanto tal. Começo a reparar que as pessoas com mais idade têm uma sintonia agradável com certos espaços da Cidade. “Eu nunca me sentaria num banco da Praça do Bocage, ou do Largo da Misericórdia ou na Avenida Luísa Todi, até porque corro o risco de ser atropelado pelos pombos em voos rasantes (ou coisas piores que caem do céu e nos atingem à traição); nunca passaria naquelas esplanadas mais de 30 minutos que é tempo suficiente para lanchar ou beber uma imperial… a Avenida Luísa Todi serve para estacionar o carro e é onde estão os bares. Simplificando, o significado da Praça do Bocage, bem como dos outros espaços são para mim e para muitos, apenas o de meros locais de passagem, o sítio onde está a Câmara,

LEONARDO DA SILVA

As Sombras de Setúbal

o sítio onde está aquela farmácia, o sítio onde nunca há lugar para estacionar e o Largo da Misericórdia, nem sei porque é que se chama assim já que a Misericórdia é ao pé do Largo de Jesus. Quanto à

Avenida Luísa Todi, o jardim até é giro, mas não percebo a pseudo-ciclovia enviesada, nem porque à noite continua escuro, perfeito e simpático para acolher a criminalidade e vandalismo.”

Ironia à parte, o ponto central da questão é que, para as pessoas que acima referi, e outras seguramente, a Praça do Bocage, a Avenida Luísa Todi e o Largo da Misericórdia – que assim se chama porque

lá esteve instalada essa instituição de 1566 a 1914 – são espaços de permanência, com os quais criaram profundos laços de familiaridade e identidades pessoais e colectivas. São espaços de comunhão entre o seu passado e a solidão do presente. No século passado, não há muitos anos atrás, as sociabilidades entre a população em dias de festa, os namoros, os Carnavais, os cortejos, o trabalho, a assistência, a benemerência, as aparições públicas, as visitas de estado, as procissões austeras e tementes, os bailes das associações, os bailes dos clubs, o mercado… ligaram eterna e solidamente, a Vida ao espaço e a sociedade à Cidade. E a tudo isto eu chamo e considero Património que, apesar de invisível, imaterial, efémero, abstracto e fugaz, faz parte da nossa identidade cultural colectiva. Agora apenas sombras… vultos quase irreconhecíveis. Este conjunto de lugares, objectos, práticas e crenças constituem as nossas origens que, uma vez esquecidas, produzem um efeito assustador de desconhecimento e ignorância nas populações que culminará, por sua vez, na falta de respeito por aquilo que nos rodeia, levando inevitavelmente à sua destruição e esquecimento. As eternas questões quem somos e para onde vamos obtêm neste contexto respostas com um significado aterrador: já nos esquecemos e não fazemos ideia. Reflictamos acerca de uma palavra, Património. Daniela Silva Historiadora

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CULTURA

O Projecto Maria Parda O Pranto de Maria Parda é rançadas críticas à sociedade uma das mais célebres peças dos “fumos da Índia”. Gil Vicente foi genial e arde Gil Vicente. Intencionalmente, o grande dramatur- rojado, mas quinhentos anos go, retratou a realidade das depois já o império se foi, já classes pobres de Lisboa, no nada diz. Na linha de exigência Século XVI. Contrariando os a que acostumou o seu públidiscursos que enalteciam e co, O teatro Estúdio Fontelouvavam a beleza e opulên- nova diz-nos, uma vez mais, cia da capital de um imenso como George Bernard Shaw, império, Gil Vicente procura que “um delírio nunca foi tão desvelar a vivência dos negros preciso como numa época de e mestiços chegados e nas- crise de ideias.” Respeitando a cidos na metrópole que, em integralidade do texto vicenQuinhentos, calcula-se que tino e sendo fiel à oralidade lusa do Séperfaziam 10% da culo XVI, não população de LisNa linha de deixa de nos boa. Muitos eram desconcertar alcoólatras, mal- exigência a que e surpreender c r i s t i a n i z a d o s , acostumou o seu a reposição de deprimidos pela público, O teatro uma das pérosub-vida serviçal Estúdio Fontenova las da literatue sem perspec- diz-nos, uma vez ra portuguesa. tivas de futuro mais, como George A parda Maria a que estavam é substituída votados. Vêm-se Bernard Shaw, que por uma actriz carnalizados na “um delírio nunca figura literária de foi tão preciso como branca como Maria, arguta e numa época de crise cal, corte de cabelo metacorrosiva obser- de ideias.” moderno, com vadora da socie“tailleur” preto dade, amante do acetinado. Os vinho carrascão. Podemos imaginar apenas acessórios, como lençóis de o impacto que o monólogo cetim, sapatos altos, cigarros, terá tido na corte e junto do roupas algo extravagantes, um monarca; quando se viu de- gravador, um telemóvel 3G fronte de atrevida mestiça, e um PC portátil são, numa da base da pirâmide social, primeira análise, absolutapara mais mulher, mais a mais mente contraditórios com sexualmente livre, assumir, a intenção original do texentre canadas de vinho, uma to. Contudo, o pai do teatro das mais lúcidas e desespe- português não iria desgostar

ANTÓNIO GALRINHO

da adaptação, que procurou um novo ambiente, urbano e contemporâneo, para realçar a intemporalidade do sentido do seu texto. A pobreza miserável da parda quinhentista é transformada na miséria pobre da existência actual. A relação virtual que ali é exaltada, a ausência do espiritual, característica da classe média contemporânea, é radicalmente assumida como vértice da mensagem. Aliás, é interessante que o espelho seja vazio, como que reafirmando que somos todos que

nos estamos a ver ao espelho. É a história de Maria, mas … somos todos Marias! Para lá da coisificação compulsiva, uma criatura parda; simultaneamente pária, perdida e deambulando com desespero na solidão, procurando uma voz que não responde: - “Não sei que faça…” – diz. “Quem quer fogo, busque lenha!” – troça de si. Opressão auto-infligida, é um retrato e metáfora da fragilidade humana. Na estreia, a actriz, Carla Garcia, não arrebatou no difícil monólogo, mas cum-

priu. Maria Parda, poderosa sedutora cheia de espírito, sorumbática neurasténica, não é fácil de ser interpretada por tão jovem profissional. Melhorará, certamente, com o número de representações. Já a encenação de Eduardo Dias, a Banda Sonora de Bruno Moraes e a Cenografia de Mónica Santos estão de parabéns, bem como toda a restante equipa associada a esta produção. Hugo Silva e José Luís Neto hugo.silva@jornalosul.com jose.neto@jornalosul.com

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CULTURA 13

ARTEMREDE

O Vale

Do rio que tudo arrasta se diz violento, porém ninguém diz violentas as margens que o comprimem. “Bertold Brecht”

tidiano apaga e a dança nos relembra da beleza do simples gesto de existir. O conceito que a equipa de Madalena Vitorino nos traz, não se enclausura nos ensaios, nem O Vale é um espectáculo se efemeriza no palco. Onde O produzido pela Arteemrede, Vale se apresenta convida as da autoria de Madalena Vito- pessoas da terra a serem parrino, que parte do património te integrante do espectáculo, dos lugares e das gentes do além dos sete dançarinos e Vale do Tejo.Começa com um dos seis músicos, trinta pessoas dos mais respirar, que é variados escaquase um sussurOnde O Vale se lões etários coro, O Tejo agitamungam com se nos corpos que apresenta convida o compõem, uma as pessoas da terra a os intérpretes a preparação criança caminha serem parte inteda peça, e com sobre as águas grante do espectáeles sobem ao que invadem as culo palco, influenmargens. Neste ciam e são cenário de cheia, através da nossa história e influenciados pela peça, há das nossas estórias, através sempre algo de novo para ver de nós e das nossas memó- a cada representação: “É uma rias, os corpos são fotografias nova forma de ver e aproximar em movimento dos nossos as pessoas ao teatro”, diz-nos a hábitos, que a erosão do quo- criadora no final da peça.

Tal como o rio, que tem esquecemos as correrias da vontades próprias, o espec- vida moderna, reaprendemos táculo transborda para o pú- o gozo de correr pelo simples blico. Somos inundados nas gozo, pela liberdade de o fasensações, quer pela música zer. Percorrer os campos que composta por Carlos Bica, nos alimentam e olhar para a que nos traz muitas das so- terra com a ternura do olhar de uma criança noridades da para a Mãe, e ela região, quer São os hábitos sem dúvida o é. A pelos corpos do trabalho, os coscada movimento hipnotizantes dançado enterraque respiram tumes, os animais mos mais os pés a vida, a mor- e os campos que te como parte saltam para cima do nesta terra, que é nossa e que sodela e as mais palco mos nós, são os básicas neanimais que nela cessidades da nossa condição humana, que habitam, as suas plantas e o nos recorda sempre o inevi- seu rio, que transborda para fertilizar tudo à sua volta. tável animal que somos. Nas palavras de Madalena Imagens dos animais que n’O Vale habitam são projec- Vitorino: “Nesta terra onde o tadas nas vestes (e já nor- rio é o mar, aprendemos que malmente nelas existem) e a pele tem flor, que o gado nas peles dos intérpretes, tem vida de homem, que os lembrando-nos que parti- lençóis são de água escura, lhamos o mesmo habitat. que as pedras se rebentam Com o correr dos cavalos, para fazer nascer as olivei-

ras, que no tomilho poisam morcegos, que o vento lava, leva e traz.”, é desvendada a narrativa que molda os corpos, percebe-se o trabalho de pesquisa nas paisagens do Vale do Tejo e o partilhar da vida com as gentes e os seres que nele habitam. São os hábitos do trabalho, os costumes, os animais e os campos que saltam para cima do palco, o elo está criado e as mais de quatrocentas pessoas na sala cheia do Fórum Cultural da Baixa da Banheira aplaudem de pé. E isto numa linguagem que normalmente se quer fazer crer estranha para as gentes. Como em tudo, a comunicação pratica-se, por muito que alguns nos queiram somente a falar de uma maneira, seja na arte, ou noutros meios... Leonardo Silva leonardo.silva@jornalosul.com


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ENSAIO

Vamos continuar a dormir

enquanto nos roubam a cama?

Esta geração será a primeira a viver com muito menos do que os pais, menos direitos laborais, menor salário, menor capacidade para arranjar casa. Isto num país que todos os meses perde 100 jovens licenciados, obrigados a construir vida no estrangeiro e onde 18% da população vive no limiar da pobreza. Quando a mesma gente que vem falar em reduções nas reformas, as acumula e aos milhares de euros, é caso para

dizer que afinal a situação não está “explosiva” para todos. Mas vai rebentar. O discurso do deficit outra vez, o futuro, temos de pensar no futuro, e aplicar as receitas do passado que nos trouxeram a este presente. E eu han? Quero ser feliz Hoje! Quando se considera normal existirem mãos desempregadas e uma “benesse” o subsídio de desemprego, quando se acha natural pagar as dívidas aos bancos

que continuam a apresentar lucros, e não se perdoa os juros aos desempregados, que a “situação explosiva” rebente já. Antes que nos rebente a todos. Quando isso ocorrer, que os estilhaços atinjam quem nos trouxe a este sobreviver que não é vida. Porque as nossas vidas valem mais que os lucros deles! Leonardo da Silva leonardo.silva@jornalosul.com

LIMA DE FREITAS

Num discurso ao país, o “número 31, faça o favor nosso Presidente da Repú- de entrar”. Entro na sala e blica lançou o alarme “A antes que me sente estou situação está explosiva”. a ser gritado, um homenGoverno, jornalistas, co- zinho à minha frente vocimentadores políticos, outros fera que isto é uma represociólogos e os economistas ensão e chama por outro do costume vieram pronta- nome. Educadamente, ou talvez um pouco a medo, mente dar-lhe razão. Espremida a declaração entrego-lhe a carta que me fez ir ao seu enbombástica contro. Ele olha, fica o anal(...) a ideia pede desculpa gésico, escude que a justiça e e rapidamensamos de nos te torna ao tom p ô r p o r a í a a economia trata acusador, desta rebentar que toda a gente por vez acertando eles tratam da igual só sobrevive no meu nome: “O situação. Não na mentira senhor não sabe temos nada a mediática ou na que é uma falta fazer, é melhor ingenuidade de respeito falhar continuarmos uma apresentacom a nossa exagerada. ção quinzenal? vida, porque Sobra-nos Não pode gozar ela é assim. Ou, questionar as assim com o dicomo o jorna- caixinhas mágicas nheiro dos conlista do filósonas nossas salas tribuintes. Isto fo José Gil no e as cantigas de é uma benesse seu “Portugal, que lhe estamos Hoje o Medo adormecer que a dar!”. de Existir”: “É delas emanam. Não, não sou assim a vida”. criminoso, nem Constatações ele é o meu agencom o intuito de nos sossegar o espírito, te de liberdade condicional. a inevitabilidade, a concor- O meu crime é estar dedância com as pessoas para sempregado e ter falhado à apresentação quinzenal. Se eu as manter adormecidas. Há dias, num dos tele- devesse dinheiro ao Estado, jornais nacionais, três eco- o que não seria... Imagino o nomistas concordavam na Manuel Fino, a reprimenda necessidade de uma inter- que ele deve ter levado, ou os venção do FMI (Fundo Mo- raspanetes aos patrões que netário Internacional) em fecham fábricas com falênPortugal. “Há que ultrapassar cias fraudulentas depois das as divergências para o bem benesses do Estado. Ou ainda maior que é o país” diziam, o Oliveira e Costa e o Dias um pensamento alinhado Loureiro com as suas fugas que me fez questionar onde aos impostos e o dinheiro esandaria o debate. Ouvindo condido nos offshores, ou os os catedráticos senhores a pobres dos gestores de emchegarem tão nobremente a presas públicas que ultrapasum consenso, recordo-me sam orçamentos ou compram que ainda no mês passado serviços acima dos preços de o generoso e salvador FMI mercado... Nem imaginar a aconselhou o governo por- monumental repreensão que tuguês a baixar os salários e devem ter apanhado. Como toda a gente sabe a congelar o Salário Mínimo. Isto quando temos um dos como estes senhores foram salários mínimos mais baixos e continuam a ser tratados, a da Europa, 450 euros, um va- ideia de que a justiça e a ecolor que corresponde ao único nomia trata toda a gente por rendimento de grande parte igual só sobrevive na mentira da nossa população, no país mediática ou na ingenuidade europeu com a maior discre- exagerada. Sobra-nos quespância salarial entre traba- tionar as caixinhas mágicas nas nossas salas e as cantilhadores e patrões. Cenário: Centro de Em- gas de adormecer que delas p r e g o . U m a vo z c h a m a emanam.


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ENSAIO 15 Teatro: esta arte jovem tão antiga o teatro promete. De facto, pode argumentar-se que o jogo de ficcionar o outro foi disseminado por outras modalidades de arte e/ou comunicação, assentes na tecnologia da imagem, que integraram processos de representação dramática, mas já não são teatro porque a cena ao vivo tomou neles os formatos vários do ecrã. Uma interrogação surge associada

a esta suspeição: será que a manipulação tecnológica de imagens (nos seus diversos media) esvaziou a potencialidade atractiva do teatro, num tempo de tráfego e tráfico de imagens virtuais para consumo global? Uma questão aliás donde nem o cinema sai já incólume, como é sabido. Não é só a ancestral espionagem mimética, inerente ao jogo do teatro,

que conhece há muito outros outro em forma viva, comumeios mais sofisticados para nicável e respirante, habita a se concretizar. Também o ci- primitiva essencialidade do nema, feito com actores den- teatro; esse rito profano de tro, vacila no estatuto que que continuamos a necesfoi seu de arte dominante de sitar para nos sabermos vivos, sensíveis, massas do sécupensantes, lo passado; visto O jogo imaginosos. A que está cada vez partilhado do imaginação é mais próxima a o motor por possibilidade de teatro produz excelência do f o r j a r a c ó p i a , um fármaco que teatro; exercimais do que per- contribui para nos da através dos feita, de filmar o purgar das toxinas territórios inreal com simula- que o eu de cada tercambiáveis cros de gente viva um segrega. do corpo e da em movimento, sua (más)cara, sem nunca ter da memória havido nenhuque é (pa)lavra ma pessoa a ser filmada para aquilo com que testemunhal de vivos. Por isso o ecrã nos agarra e seduz o ele é capaz de nos libertar um olhar. Já o teatro, por radi- pouco de nós mesmos. Escar na pobre mas inventiva creveu Walter Benjamin, um artesania que sempre foi sua, melancólico apaixonado pelo encontra-se paradoxalmente teatro, que cada um de nós mais protegido. Perante os é uma droga para si mesmo, desafios de novas encruzi- ingerida em solidão. O jogo lhadas virtuais, uma coisa é partilhado do teatro produz certa: não é possível roubar um fármaco que contribui ao teatro a pobreza primor- para nos purgar das toxinas dial que confere identidade que o eu de cada um segreao seu modo de relaciona- ga. Um efeito psicotrópico a mento com os fruidores dele; que Aristóteles chamou caainda que o teatro se decline tarse. O teatro faz connosco no plural, e que não exista o pacto da metáfora. Foi ele teatro mas teatros, ou seja, afinal a primeira arte virtual modos diversos de ser teatro da História. Entramos no seu e, por vezes, quando alguns jogo pela simples presença do modos dele dão origem a intérprete na cena. Inventaeventos cénicos que rejei- mos a viagem que conjuga a tam a designação de teatro, possibilidade da emoção e a mesmo que do teatro sejam emergência do pensamento subsidiários, em maior ou crítico, a promessa lúdica da diversão e a surpresa de menor grau. A partir deste lugar de onde intuir o que o (in)consciente se vê, de acordo com a eti- sintoniza no cosmos, no lapmologia da palavra teatro, so de um espectáculo. Mas continuam a poder ver-se e se o teatro que andar por aí experimentar-se coisas que anunciado não vos der tudo só a ele pertencem. É possí- isto, então protestem, exijam vel descobrirmos a desperta um novo teatro, porque ele juventude, a cada tempo re- existe. Só é preciso fazê-lo criada, numa arte com dois nascer outra vez. milénios e meio de idade, na certidão ocidental do seu nasArmando Nascimento Rosa cimento. No encontro com o Professor e Dramaturgo

PEDRO PALMA

Venha ou não um dia a ser descodificado no nosso genoma o ADN que corresponde à compulsão humana originadora do fenómeno teatral, a questão da irrequieta e obstinada perdurabilidade do teatro radica numa espécie de constante antropológica, isto é, uma manifestação arquetípica que é identificadora do humano enquanto tal: a atracção pelo jogo de ser outro e pelo desejo de assistir ao fascínio, sempre reactualizado, desse mesmo jogo. Estas duas formas (o jogar e o assistir) de realizar o jogo do teatro podem oscilar entre pólos diferenciados, num espectro oscilante: desde a situação mais convencional em que o lugar do espectador está bem distinto daquele que é ocupado pelo intérprete na cena; até à situação proposta, por exemplo, pelas abordagens de teatro e comunidade, nas quais os intervenientes que tradicionalmente constituiriam o público são implicados por inteiro no fazer cénico, tornando-se então em actores improvisados - os assim designados espect-actores, na expressão feliz e sugestiva de Augusto Boal. O apelo do teatro eclode deste inato prazer de nos vermos representados; o prazer de espiar o outro mas, ao mesmo tempo, de nos vermos nele projectados; de podermos ser espectadores de possibilidades nossas que não concretizámos, que gostaríamos ou teríamos receio ou pavor de experienciar. Disto se faz a matéria de sonho e de desejo de que o teatro se nutre. O leitor dirá porém, com legitimidade, que há uma suspeição latente nesta apologia solar da espionagem às claras que

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