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Caindo a Ficha e Desabando o Mundo Dizem que as tragédias costumam chegar em grupos. Neste momento, eu concordo plenamente com este jeito catastrofista de ver os fatos. Como quase todas as pessoas, passei aquele 11 de setembro acompanhando inerte pela tv a tragédia em NY, sem me dar conta de que, dentre as muitas vítimas, poderia estar justamente uma das pessoas mais importantes da minha vida. Putz, como sou desligada e alienada! Pareço até uma pirralha e não uma mulher de 25. Droga! Que ódio, viu?! Só depois de alguns dias, quando meu pai recebeu a confirmação da morte do seu irmão, pude realmente dar conta da minha perda. E como ela é profunda! Mas, vamos com calma. Acho que mereço um desconto. Afinal, como iria imaginar que uma figura como o tio Waldo pudesse estar no WTC, ainda mais naquele horário? Nunca! Quando muito, ele faria uma concessão e passearia pela manhã no Central Park, acompanhado de ginsen – sua mais recente droga lícita – e de, posso até apostar, John Lennon a todo vapor no seu inseparável discman. Pensando bem, só mesmo algo muito forte, como a música do John nas proximidades do Dakota, poderia incentivá–lo a fazer um programa tão matinal nas suas férias. Ainda não me encontrei com a Dani e nem sei se ela já sabe. Que barra! E pensar que ela está grávida e que logo logo tio Waldo finalmente seria papai. Meu Deus... Puxa, como estou fragilizada, pois além da tristeza, estou sentin
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Ob-La-Di, Ob-La-Da do que também fiquei sem minha principal referência. É sério! Acho que se pudéssemos dividir o mundo entre certinhos e errantes; moralistas e hedonistas; míopes e visionários; acomodados e sonhadores, a minha tendência seria sempre pular para o segundo grupo. E o meu tio teve uma enorme influência neste meu jeito de ser. Fazendo uma retrospectiva quase que instantânea da minha vida, vejo que, de algum modo, tio Waldo sempre participou das minhas revoluções pessoais. Ele mesmo, com o seu indelével traço de “riponga de esquerda”, ensinou–me que revoluções e grandes transformações, quer sociais ou pessoais, refletem rupturas significativas que “brotam de dentro para fora”. Ah! como eu gosto de pensar assim! Eu sou muito grata por tanta coisa: muitas conversas sobre filosofia, música, política, sexo, literatura e religião; muitos insights, dicas e ajudas na hora certa; muitos e muitos discos e livros ótimos que ele me deu; toques sobre filmes e diretores. Enfim, sou grata por um mundo inteiro que se descortinou à minha frente sob sua supervisão. Talvez falando mais sobre ele e suas ligações com a minha vida, eu possa superar esta fase e resgatar, de algum jeito, a sintonia enorme que tivemos enquanto grandes amigos. Por falar em sintonia, está acontecendo uma estranha coincidência. Há uns dois meses ele me deu alguns cds de presente e, no meio do bolo, tinha um do AC\DC, que não é das nossas bandas prediletas, mas que o meu tio incluiu para “momentos de exorcismo da alma”. Como estava precisando de alguma coisa assim, coloquei–o para tocar e enquanto digito estas linhas sai um rock “arrasa quarteirão”, martelando o seguinte refrão: “I FEEL SAFE IN NEW YORK CITY” 10
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Trilhos de Trem Meus pais são relativamente jovens, cronologicamente falando. De fato, “seo” Cesar e dona Lúcia, com 52 e 51 anos, respectivamente, deveriam estar com todo gás para a vida. Só que eles já estão envelhecidos, no sentido de terem perdido aquele ímpeto de vida e seguirem com os seus respectivos mundinhos quase burocraticamente. É assim pelo menos que eu, Ana Paula, a Nana – filha única deste simpático casal – os vejo há muito tempo. E esta percepção se torna mais evidente quando traço uma comparação com tio Waldo, este sim, um típico life hunter. Cesar e Waldo são irmãos com nove anos de diferença. Até onde sei, as influências que meu pai teve sobre o seu irmão foram as paixões pelos Beatles e pelo Corinthians. Na verdade, a grande influência foi ter apresentado Beatles com um compacto inglês de Please Please Me de um amigo. A paixão pelo Corinthians já vinha com o “seo” Herculano Salgado, meu avô, e ficou mais confinada à infância. Com uma diferença de idade tão gritante, foi impossível uma grande proximidade. Diante de um orçamento familiar sempre apertado, dado pelos salários de um ferroviário e de uma professora primária, o caçula era sempre obrigado a herdar tudo que fosse possível do irmão: roupas, brinquedos, cadernos, livros, canetas. Isto foi um ponto de contato entre os dois, que fez com que meu tio desde cedo tivesse que abdicar de um jeito mais mauricinho de viver. 11
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Ob-La-Di, Ob-La-Da As coisas feitas em conjunto praticamente se resumiam a comprar (em sociedade) alguns discos dos Beatles e jogos de botão com suas parcas mesadinhas. A grande proeza dos dois foi subir no telhado e fazer uma gambiarra com a antena de um vizinho, que permitia captar com muita fidelidade várias emissoras estrangeiras de rádio e, dessa forma, alguns bons programas de rock e de música pop. Assim, eles puderam criar o seu “Napster dos anos 60” em plena Araraquara. As trajetórias de vida ficaram bem diferentes a partir da adolescência do meu pai. Ele foi se afastando da paixão pelo rock e pelo grupinho de Liverpool, passou a ser cada vez mais certinho, talvez para marcar pontos com as meninas da cidade. Conseguiu emprego numa loja de acessórios e passou a poupar cada tostão. Com o seu jeito muquirana, passou a assumir ares de gerentão e a dar duras e conselhos. Tio Waldo, conhecendo as derivações milenares do nome Cesar, sempre ironizava com frases do tipo: “sim, Kaiser”... “certo, meu Czar”... “ok, King”, o que deixava meu pai furioso. Teve somente duas namoradas. Uma dos 13 aos 15 anos e outra a partir dos 16 anos, a qual se tornaria sua esposa e, por coincidência, minha mãe. Com suas economias e com a ajuda dos pais e tios, o “orgulho da família Salgado” pôde vir para São Paulo cursar engenharia na conceituada Politécnica da USP, levando uma vida até que muito regrada para um jovem vivendo fora de casa na década de 70. Quer dizer, tirava excelentes notas e não se envolveu com movimento estudantil, nem com revolução sexual ou drogas e, durante quase todos os finais de semana e férias, seguia no namoro firme com dona Lúcia, na ensolarada Araraquara. Uma gracinha! Já com Mr. Waldo, a história é bem outra. Apesar de tirar notas razoáveis na escola, estava longe de ser disciplinado, 12
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Ob-La-Di, Ob-La-Da principalmente no colegial, que era o segundo grau daquela época. Adorava ler, mas repudiava as leituras obrigatórias e as recomendadas pelos professores. Tinha opinião própria e questionava os dogmas apresentados pelos iluminados mestres. Usava um cabelo muito comprido para os padrões araraquarenses, o que lhe rendia discussões monumentais com professores, bedéis, pedagogos, tios e, lógico, com o seu pai, o vô Herculano. A sua paixão por Beatles, Stones, Led Zeppelin, Pink Floyd, The Who, Yes, BB King, Miles Davis, Rimbaud, Huxley, Diderot, Emily Dickinson, Drummond e muitos outros fazia com que ele gastasse tudo que ganhava em livros e discos e passasse horas e horas perambulando pelos dois maiores sebos da cidade. Com tudo isso, seus trajes sociais ficaram resumidos a jeans bem surrados, tênis e camisetas, delineando uma aura “rockeira–riponga” da qual nunca conseguiu se livrar totalmente. As poucas fotos desta época parecem compor um possível uniforme oficial de Woodstock. Não namorava firme e nas férias viajava para onde desse, na base de ônibus–carona–autorização do juizado–mochila nas costas. Não tardou para ter contato com a canabis e com algumas anfetaminas, na época, as chamadas “bolinhas”. Aliás, quase foi expulso quando numa festa do colégio conseguiu um monte das tais bolinhas e misturou tudo na Cuba Libre farta e livremente servida em jarras. É fácil entender que a partir de um determinado ponto, a maioria dos participantes estava alucinada e aí não faltaram baixarias e fatos escandalosos: gente dançando em cima das mesas; pai de aluno dando em cima de professoras; professor querendo dançar coladinho com alunas; gente quase tirando a roupa; 13
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Ob-La-Di, Ob-La-Da beijos apaixonados e intermináveis, etc. Só não foi expulso, em parte porque faltavam provas em relação à autoria e, principalmente, porque quem supostamente teria conseguido toda aquela anfetamina era simplesmente o filho do diretor da escola. Quando tinha por volta de 17 anos, teve o seu primeiro golpe de sorte: sua madrinha Clara faleceu e fez o favor de deixar para tio Waldo um belo seguro de vida e mais uma pequena poupança. O que significava, em tese, ter verba para estudar o que bem entendesse e aonde quisesse. Em tese, pois queria estudar música ou letras, já que lia bastante e arranhava um violão fuleiro, mas aí acabou surgindo uma pressão familiar considerável: “essas coisas não dão futuro e o dinheiro da poupança vai acabar logo”. Apenas a sua mãe, a vó Nena (Helena), o apoiava e o deixava livre para fazer suas opções. Começou a refletir e a fazer contas e cálculos. Sair do Brasil para estudar o que quer que fosse, fatalmente estouraria os fundos disponíveis. Por outro lado, seus conhecimentos musicais eram muito precários e não davam base para cursar algo como uma faculdade de música. Como já fazia parte de um grupo de astrônomos amadores – cuja maior atividade era “fumar unzito” e sair para ver Saturno no telescópio –, decidiu prestar astronomia no Rio e física na Unicamp. Passou nos dois vestibulares e acabou optando pela Unicamp. Sempre achei que o meu tio era o queridinho da vó Nena. Apesar de ela ter sido uma mãe muito dedicada e carinhosa com os dois filhos, era com tio Waldo com quem conversava mais e contava segredos. E, no final das contas, não disfarçava que tinha uma grande admiração intelectual 14
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Ob-La-Di, Ob-La-Da pelo seu filho caçula e que achava a avareza do meu pai uma grande chatice. Minha avó era divina! Acho que em função desta série de fatores, eu recentemente me dei conta de que a diferença de idade entre os dois irmãos parecia ser muito maior, talvez de uns vinte anos ou mais, sei lá. Meu pai fuma, tem cabelos brancos e uma calvície considerável, não tem pique e apresenta uma barriga imoral, de tão feia. Tio Waldo era bem diferente, pois embora não fosse um galã, não era gordo e depois que parou de fumar (cigarro) e passou a fazer sua meia horinha diária de bicicleta ergométrica, adquiriu um aspecto bem mais saudável e jovial. Porém, muito mais que a aparência física, acho que foi o jeito de encarar e de levar a vida que demarcou uma diferença de idade tão aguda e evidente. Um dia desses assisti pela enésima vez na tv “Os Irmãos Cara de Pau”, que eu adoro, e me fixei na semelhança e proximidade entre os dois irmãos, totalmente diferente do que se via entre meu pai e meu tio. Cheguei à conclusão de que Cesar e Waldo poderiam formar a dupla “Os Irmãos Trilhos de Trem”, já que, embora fisicamente próximos um do outro, havia inegavelmente entre eles uma separação irreversível.
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