HERMENÊUTICA BÍBLICA

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Hermenêutica: Interpretand o as Sagradas Escrituras & &

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HERMENÊUTICA BÍBLICA INTERPRETANDO AS SAGRADAS ESCRITURAS Roney Cozzer

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Hermenêutica Bíblica

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Hermenêutica Bíblica Revisão: Roney Cozzer Diagramação: Roney Cozzer Capa: Michel Pablo M. Sabarense _______________________________

COZZER, Roney. 1984 COZZER, Roney. Hermenêutica Bíblica: interpretando as Sagradas Escrituras. Cariacica, ES: Instituto de Educação Cristã CRER & SER, 2018. Hermenêutica. Interpretação. Bíblia. 132 pp.: 14 x 21 cm | ISBN: 978-85-63434-64-7 Inclui referências bíblicas e bibliográficas. 1. Hermenêutica Bíblica. 2. Bíblia. 3. Interpretação É permitida a reprodução parcial desta obra desde que citados o autor e o título da obra e que seja feita sem fins lucrativos.

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Contatos e atividades do autor na internet: Site: teologiaediscernimento.wordpress.com Youtube: Repensando meu Cristianismo Blog Fundamentos Inabaláveis E-mail: roneyricardoteologia@gmail.com

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Hermenêutica Bíblica

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Hermenêutica Bíblica

SUMÁRIO Lista de siglas úteis.............................................................. 06 Apresentação......................................................................... 10 1. O que é a Hermenêutica e a necessidade de se interpretar a Escritura......................................................... 12 2. Peculiaridades do texto bíblico.....................................

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3. Princípios de interpretação bíblica..............................

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4. Métodos de estudo da Bíblia.........................................

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5. Escolas de interpretação bíblica.................................... 104 Referências...........................................................................

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Hermenêutica Bíblica

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Hermenêutica Bíblica

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Lista de siglas úteis

om o intuito de ganhar tempo e espaço, no decorrer deste livro são utilizadas algumas siglas. Uma sigla nada mais é do que a abreviatura de um título ou denominação, geralmente composta pelas letras iniciais das palavras que compõe este título ou denominação. Tomemos como exemplo a sigla ARC, que remete ao título Almeida Revista e Corrigida, uma das versões da Bíblia em português publicada pela Sociedade Bíblica do Brasil1. Frequentemente são utilizadas as siglas AT, para Antigo Testamento, e NT, para Novo Testamento. Neste livro você também encontrará citações bíblicas e versículos bíblicos transcritos. Logo a seguir você encontrará duas tabelas com as siglas dos livros da Bíblia. Como versão oficial para as referências bíblicas transcritas neste livro, foi adotada a versão Almeida Revista e Atualizada (ARA), publicada pela SBB, por ser ela uma versão de grande aceitação entre o público brasileiro e de mais fácil compreensão para o leitor. Além da ARA, são utilizadas ainda outras versões como a NVI (Nova Versão Internacional), por questões didáticas. Assim, o autor deste livro deseja que os comentários deste livro possam ser uma benção para você e toda a sua família, estimado(a) leitor(a). É para você que este trabalho foi carinhosamente preparado! A seguir, você tem as siglas que utilizamos neste livro com seus respectivos significados e também as siglas dos livros da Bíblia, em ordem alfabética:

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Também representada por uma sigla: SBB.

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Hermenêutica Bíblica 1 Co: 1 Coríntios 1 Cr: 1 Crônicas 1 Jo: 1 João 1 Pe: 1 Pedro 1 Re: 1 Reis 1 Sm: 1 Samuel 1 Tm: 1 Timóteo 1 Ts: 1 Tessalonicenses 2 Co: 2 Coríntios 2 Cr: 2 Crônicas 2 Jo: 2 João 2 Pe: 2 Pedro 2 Re: 2 Reis 2 Sm: 2 Samuel 2 Tm: 2 Timóteo 2 Ts: 2 Tessalonicenses 3 Jo: 3 João Ag: Ageu Am: Amós Ap: Apocalipse ARA: Almeida Revista e Atualizada ARC: Almeida Revista e Corrigida AT: Antigo Testamento At: Atos Cap.: Capítulo Cf.: Confira Cl: Colossenses Ct: Cantares de Salomão Dn: Daniel Dt: Deuteronômio

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Hermenêutica Bíblica Ec: Eclesiastes Ed: Esdras Ef: Efésios Et: Ester Êx: Êxodo Ez: Ezequiel Fl: Filemon Fp: Filipenses Gl: Gálatas Gn: Gênesis Hb: Habacuque Hb: Hebreus Is: Isaías Jd: Judas Jl: Joel Jn: Jonas Jo: João Jr: Jeremias Js: Josué Jz: Juízes Lc: Lucas Lm: Lamentações de Jeremias Lv: Levítico Mc: Marcos Ml: Malaquias Mq: Miquéias Mt: Mateus Na: Naum Ne: Neemias Nm: Números

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Hermenêutica Bíblica NT: Novo Testamento NTLH: Nova Tradução na Linguagem de Hoje NVT: Nova Versão Transformadora Ob: Obadias Os: Oséias Pv: Provérbios Rm: Romanos Rt: Rute Sf: Sofonias Sl: Salmos Ss: Seguintes. Refere-se aos versículos seguintes que podem ir até o fim do capítulo citado ou não. Tg: Tiago Tt: Tito Vv: Indica pluralidade de versículos. Zc: Zacarias

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Hermenêutica Bíblica

Apresentação

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ode ser que alguns estudantes de Teologia apresentem certa resistência ao estudo da Hermenêutica, em função de seu caráter técnico e das dificuldades que envolvem a compreensão de seus princípios. Mas a verdade é que “fazemos” Hermenêutica até sem nos darmos conta disto. Ocorre com a Hermenêutica o mesmo que ocorre com a própria Teologia, em muitos ambientes eclesiais: pessoas manifestam resistência à ela, mas não se dão conta de que usam seus princípios e saberes no cotidiano, no culto, na pregação, no ensino. Essas mesmas pessoas não percebem que aquilo em que acreditam é, em grande medida, resultado de um longo processo teológico desenvolvido no decurso dos anos. Desse modo, elas não se apercebem do fato de que sentem ojeriza por algo de que elas mesmas dependem. Ouvimos pessoas dizerem: “Não gosto de Teologia, não preciso de Teologia, só preciso da Bíblia!” Mas acontece que à noite elas vão para o culto e quando tem a oportunidade de se dirigirem à congregação, fazem afirmações como: “Jesus é o Salvador!”, “A salvação é somente pela graça”, dentre outras. Ora, essas expressões são, eminentemente, teológicas e, num certo sentido, hermenêuticas. Hermenêuticas porque são resultados de um processo interpretativo em torno desses temas doutrinários. A própria leitura simples e corrida do texto bíblico requer, 10


Hermenêutica Bíblica via de regra, uma interpretação. Interpretamos de maneira inconsciente. Você, leitor ou leitora, está interpretando agora mesmo enquanto lê esta frase. A Hermenêutica Bíblica se ocupa dessa nobre tarefa: interpretar os textos bíblicos. E isso ela faz por meio de saberes e “ferramentas” que ela mesma disponibiliza ao estudante de Teologia. Ainda que não se deem conta, os cristãos em geral, dependem da Hermenêutica e buscam o que ela, enquanto ciência busca: entender a mensagem bíblica. Como você já deve ter notado, a Hermenêutica, para a Igreja de Cristo, não é uma alternativa, é uma obrigatoriedade, uma missão.

Bem-vindo à Hermenêutica! Em Cristo, Roney Cozzer

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Hermenêutica Bíblica

1 O que é a Hermenêutica e a necessidade de interpretar a Escritura “A hermenêutica e a teologia são uma para a outra, o que o ouro é para o ourives, e o sol para o dia. Inexistem separadas” (Esdras Costa Bentho). INTRODUÇÃO

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odemos dizer que interpretação de textos está presente no nosso cotidiano bem mais do que tenhamos imaginado. Ao recebermos um e-mail, uma carta, um SMS por celular e é claro, em nossas leituras da Bíblia, seja em nossos momentos devocionais, nos momentos de culto, etc. Nesse momento, algumas perguntas são pertinentes: Afinal de contas, a leitura de um determinado texto permite mais de uma interpretação? Se permite, isso se aplica à leitura da Bíblia? Pois bem, a essas questões nos propomos responder nesta obra. 1. O QUE É A HERMENÊUTICA? A hermenêutica pode ser tanto bíblica quanto secular. Ela não é apenas a arte ou a ciência da interpretação de qualquer texto; antes de tudo, é uma ciência que procura também o 12


Hermenêutica Bíblica significado da palavra como evento histórico, social e de vida. Hermenêutica Bíblica é a disciplina da Teologia Exegética que ensina as regras para interpretar as Escrituras e a maneira de aplicá-las corretamente. É a ciência da compreensão de textos bíblicos. O termo “hermenêutica” procede do verbo grego hermeneuein, usualmente traduzido por “interpretar”, e do substantivo hermeneia, que significa “interpretação”. A Teologia Exegética se deriva dos dados da forma, estrutura e gramática e dos contextos históricos e literários dos livros da Bíblia. Afirma-se que a palavra “Hermenêutica” deriva-se do nome do deus grego “Hermes”, que na mitologia grega era o deus responsável por transmitir as mensagens dos deuses aos seres humanos e interpretá-las para eles. É interessante que a Bíblia faz uma referência sutil a esta crença. Em Atos dos Apóstolos narra-nos o médico amado Lucas que Paulo, quando da cura de um coxo em listra, os moradores desta cidade deram a Paulo o nome de Mercúrio, que é a forma romana do nome grego Hermes. Diz o evangelista: “Quando as multidões viram o que Paulo fizera, gritaram em língua licaônica, dizendo: Os deuses, em forma de homens, baixaram até nós. A Barnabé chamavam Júpiter, e a Paulo, Mercúrio, porque era este o principal portador da palavra” (At 14.11,12). Note a expressão “porque este era o que falava”, que é um indicativo da crença popular sobre o deus mitológico Hermes (aqui chamado de Mercúrio), onde ele era considerado o porta-voz dos deuses. Uma vez que Paulo certamente era mais eloquente na pregação, os habitantes de 13


Hermenêutica Bíblica Listra, ao verem o milagre operado por Deus através de Paulo na vida do coxo, associaram isto à sua eloquência e passaram a chamar-lhe de Hermes. 2. SITUANDO A HERMENÊUTICA NA TEOLOGIA Existem dois tipos principais de hermenêutica que o leitor ou a leitora deve ter ciência. Primeiro, temos a Hermenêutica Geral, que se aplica a qualquer obra escrita; usei este tipo de hermenêutica no comentário anterior quando citei exemplos como e-mail, cartas, SMS e assim por diante; em segundo lugar, temos a Hermenêutica Específica, ou Hermenêutica Especial, que se aplica a determinados tipos de produções literárias, em diversos campos ou ramos do conhecimento humano, como leis, história, filosofia, poesia, etc. No nosso caso, estamos situados aqui – no campo da Hermenêutica Especial– pois estaremos estudando a Hermenêutica Bíblica, também chamada de Hermenêutica Sacra ou Sagrada. A hermenêutica bíblica é fundamental para a Igreja de Cristo, como corpo, como um conjunto de pessoas e é também fundamental para o cristão e a cristã individualmente. Todos nós deveríamos nos preocupar muito em conhecer esta disciplina teológica tão vital em nossos dias, em nossos cultos e ministrações. Quantos pregadores e até ensinadores há que sequer a conhecem, nem mesmo pelo nome? A hermenêutica bíblica nos ajuda a entender o que o texto bíblico está nos dizendo, porque está dizendo e qual seu sentido conforme no-lo apresentado nas 14


Hermenêutica Bíblica Sagradas Escrituras. Isto nos aproxima mais da intenção original do texto bíblico, quanto à sua mensagem. A hermenêutica não deve ser confundida com a Teologia Exegética. A hermenêutica é na verdade parte da Teologia Exegética. A Teologia em si está dividida em cinco principais partes ou ramos que trabalham em conjunto; são eles: a Teologia Exegética, a Teologia Histórica, a Teologia Bíblica, a Teologia Sistemática e a Teologia Prática. No gráfico a seguir, temos representada a Teologia com seus ramos e a posição da hermenêutica neste agrupamento:

Conheçamos resumidamente cada um destes “pilares” da Teologia. É importante que você os assimile. A Teologia Exegética se ocupa dos métodos hermenêuticos a fim de poder descobrir o sentido real do texto bíblico. Em outras palavras, ela usa os recursos fornecidos pela própria 15


Hermenêutica Bíblica hermenêutica para fazer esta descoberta. A Teologia Exegética utilizará para isto a filologia sacra, isto é, o estudo das línguas originais em que a Bíblia foi escrita: o Hebraico, o Aramaico e o Grego. Considera também a matéria chamada de Introdução Bíblica que fornece os primeiros conhecimentos sobre a Bíblia, preparando assim o estudante para iniciar no estudo teológico. Justamente por isso, esta matéria, Introdução Bíblica, que faz parte da Teologia Exegética, tem sido chamada de Isagoge Bíblica, pois o termo Isagogevem do grego e significa justamente “conduzir para dentro”, “introduzir”, “introdução”. A Teologia Histórica irá lançar mão dos posicionamentos históricos teológicos, como o próprio nome da disciplina sugere – Histórica. Este lançar mão dos posicionamentos históricos teológicos inclui inclusive, uma abordagem sobre os afastamentos doutrinários promovidos por movimentos sectários, como o arianismo, o ebionismo, o eutiquianismo, etc. A Teologia Histórica lança mão da História da Igreja, História das Missões, História das Doutrinas, dos Credos e das Confissões. A Teologia Bíblica, como o próprio nome sugere, irá analisar a Bíblia em si mesma, isto é, considera a teologia exposta e desenvolvida nos livros bíblicos, desde o Gênesis até o Apocalipse. Desse modo, estuda-se a Teologia do Antigo Testamento e a Teologia do Novo Testamento. A Teologia Sistemática por sua vez consiste num conjunto de matérias ou disciplinas teológicas, que seguem um esquema sequencial, lógico, ordenado, “sistemático”. Uma 16


Hermenêutica Bíblica matéria complementa a outra num ciclo teológico de doutrinas bíblicas. Ela compreende o estudo da Pessoa do Pai (teontologia, teologia ou teologia própria), do Filho (cristologia), do Espírito Santo (pneumagiologia ou pneumatologia), a doutrina da salvação (soteriologia), a doutrina do homem (antropologia), a doutrina do pecado (hamartiologia), a doutrina das coisas futuras (escatologia) e assim por diante. É fundamental conhecer a teologia sistemática, pois ela ordena o conjunto de verdades teológicas reveladas na Palavra de Deus. Por fim, temos a Teologia Prática que procura por em prática aquilo que se obteve como resultado da análise e investigação teológica. É a teologia em prática. A teologia prática inclui disciplinas como homilética, que trata da preparação e exposição de sermões, organização e liderança, administração eclesiástica, liturgia dos cultos, a pedagogia cristã e etc. Para concluir, a hermenêutica está no campo da teologia exegética, que trata da compreensão das Sagradas Escrituras. É importante que você fixe isso em sua memória. 3. A NECESSIDADE DA INTERPRETAÇÃO BÍBLICA Passamos a apresentar algumas premissas que justificam a hermenêutica como uma necessidade para se compreender adequadamente a Palavra de Deus. Uma premissa é um “fato ou princípio que serve de base à conclusão de um raciocínio” (Aurélio). 17


Hermenêutica Bíblica 3.1 Primeira premissa: Deus se revelou! A primeira premissa básica que apresento aqui como necessidade para a interpretação bíblica é que Deus se revelou à humanidade e essa revelação, consequentemente, precisa ser compreendida, precisa ser interpretada. Deus se revela aos homens através das Sagradas Escrituras e Ele também se revelou em Cristo, “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas” (Hb 1.3 – ARC). Cristo é a revelação máxima de Deus aos homens – Cristo é o ápice da revelação divina. Mas Cristo também está descrito nas Escrituras e, portanto, é necessário compreender as Escrituras para compreender Cristo, uma vez que Cristo e as Escrituras estão intimamente relacionadas. É o que Ele mesmo afirma e o evangelista João corrobora (cf. nessa ordem: Jo 5.39 e Jo 1.1,14). Sem a compreensão correta das verdades bíblicas jamais poderemos nos manter como Igreja de Cristo, pura, santa e aguardando o retorno do Noivo. Somente em Cristo é que podemos então compreender corretamente aquilo que Deus mostra-nos em Sua Palavra. Cristo é a chave principal da hermenêutica bíblica, pois a Bíblia toda se cumpre em Cristo. Ele mesmo declara isto: “A seguir, Jesus lhes disse: São estas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco: importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” (Lc 24.44). Quando 18


Hermenêutica Bíblica dizemos que Deus se revelou estamos inevitavelmente afirmando que Deus deseja ser conhecido pelo homem, compreendido pelo homem, “interpretado” pelo homem! Isso, é claro, dentro do que dEle podemos conhecer, daquilo que a nós Ele comunicou sobre Si mesmo, afinal de contas, sabemos que o finito não pode conhecer o Infinito e que o limitado não pode compreender plenamente (plenamente) o Ilimitado e o mortal sondar “o único que possui imortalidade, que habita em luz inacessível, a quem homem algum jamais viu, nem é capaz de ver. A ele honra e poder eterno. Amém!”(1 Tm 6.16). 3.2 Segunda premissa: o pecado O pecado afetou a humanidade em todos os sentidos. Até a própria natureza sofre por causa do pecado: “Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora” (Rm 8.22). A própria criação aguarda a libertação do pecado, que só será realizada pelo Criador, o Senhor, na consumação de todas as coisas. O pecado, portanto, tem um efeito destrutivo sobre toda a criação. A humanidade é descrita algumas vezes nas escrituras como estando cega para entender a comunicação de Deus à ela. Expressões como “tempos da ignorância”, “trevas”, “obscurecidos de entendimento”, “coração insensato” e assim por diante (cf. At 17.30; Rm 1.21; Ef 4.18)evidenciam a dificuldade dos homens em compreender a revelação de Deus por causa da presença do pecado, embora isso não os 19


Hermenêutica Bíblica torne isentos de responsabilidade diante de Deus! (leia Romanos 1). É aqui que passamos a considerar a importância vital do Espírito Santo no trabalho de fazer hermenêutica bíblica. Uma vez que acabamos de entender que o pecado nos obscurece o entendimento das Sagradas Escrituras, o Espírito Santo, no entanto, age como O Iluminador das Sagradas Escrituras para nós, abrindo-nos caminho na revelação divina contida na Bíblia. Isso é depreendido das palavras de Jesus em João 14.17: “o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; vós o conheceis, porque ele habita convosco e estará em vós” (ARC). Neste texto, como vemos, o Espírito Santo é chamado de “Espírito da Verdade”, isto por causa da sua ação no sentido de promover a verdade de Deus entre os homens, torná-la conhecida aos homens. Também lemos em João 16.8: “Quando ele vier, convencerá o mundo d.o pecado, da justiça e do juízo”. Este convencimento só pode vir mediante a compreensão da revelação de Deus aos homens. Desse modo, o hermeneuta deve sempre depender do Espírito Santo para compreender corretamente a Bíblia. É Ele que nos guia nesta jornada do conhecimento das verdades divinas, abrindo nosso entendimento para recebê-las. Desse modo, o hermeneuta deve ser também humilde e sincero e ter o coração aberto para compreender a Bíblia.

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Hermenêutica Bíblica 3.3 Terceira premissa: as dificuldades próprias da Bíblia Deve o estudante de a Bíblia levar em consideração que a Bíblia foi escrita num tempo muito distante do nosso, por pessoas que viviam numa cultura muito diferente da nossa e em línguas também distintas da nossa. Estes fatores por si só constituem-se em grandes dificuldades para a compreensão correta da Bíblia. Elementos culturais que são encontrados em abundância no texto bíblico são para nós muitas vezes estranhos e se não os conhecermos adequadamente acabamos ficando impedidos de entender qual o real sentido de determinada passagem bíblica em que esses elementos culturais aparecem. Um exemplo disto temos em Mateus 18.23-35 na parábola contada por Jesus sobre o credor incompassivo. Quando descobrimos que dez mil talentos correspondem a uma soma de dinheiro incrivelmente superior a cem denários, entendemos que o que Jesus está ensinando na verdade é que Deus nos perdoou de maneira muito maior do que imaginamos e mesmo assim, muitas vezes, não perdoamos ao nosso irmão, numa falha incomparavelmente menor!Na Bíblia encontramos referências a hábitos, lugares, ritos religiosos, partidos religiosos, moedas da época (ou porque não dizer “o dinheiro da época?”) e assim por diante. Encontramos na Bíblia uma estrutura literária também diferente da nossa e que precisa ser compreendida. A Bíblia é singular neste sentido. O que é uma metáfora? Um tipo? Uma parábola? Um hebraísmo? Enfim, são recursos próprios da literatura 21


Hermenêutica Bíblica bíblica que precisam ser conhecidos pelo estudante da Bíblia. Aí está o papel da hermenêutica: fornecer os elementos necessários para a assimilação destes recursos literários. 3.4 Quarta premissa: o escritor e o leitor no contexto bíblico Nesta quarta e última premissa básica que apresentamos como justificativas para a necessidade da hermenêutica, considera-se o escritor bíblico e o leitor de seu tempo, isto é, o destinatário imediato para quem os escritores bíblicos estavam direcionando seus escritos. Este é um fator importantíssimo para se compreender corretamente os textos sagrados. Embora saibamos que a Bíblia se aplica a qualquer povo e em qualquer época (ela é supra-cultural), quando entendemos o porquê de determinado escritor bíblico ter escrito o que escreveu e para quem está escrevendo e em que circunstâncias, passamos a compreender mais profundamente a mensagem daquele texto. Tome como exemplo os capítulos dois e três de Apocalipse, que contém as sete cartas do Senhor Jesus endereçadas às sete igrejas da Ásia. Cada carta, cada igreja e cada anjo de cada uma das sete igrejas estão enfrentando suas próprias dificuldades, seus dilemas, suas deficiências e eles têm também suas qualidades positivas e méritos e cada igreja está inserida em um contexto cultural e social específico. Tudo isso no tempo de João, o apóstolo. Ao conhecer estes elementos, o leitor da Bíblia passa a compreender porque João está dizendo o que está dizendo. A partir daí, ele logo perceberá o quanto o 22


Hermenêutica Bíblica texto bíblico simplesmente faz todo o sentido de ser como é, de estar escrito como está! 4. DIFERENCIANDO HERMENÊUTICA E EXEGESE O termo “hermenêutica” deriva do verbo grego hermeneuein, usualmente traduzido por “interpretar”, e do substantivo hermeneia (ermeneia), que significa “interpretação”. A palavra “exegese”, do grego eksegesis e eksegeomai significa “explicar, interpretar, contar, descrever, relatar”. Hermenêutica Bíblica: é a disciplina da teologia exegética que ensina as regras para interpretar as Escrituras e a maneira de aplicá-las corretamente. É a ciência da compreensão de textos bíblicos. Exegese: é a aplicação dos princípios hermenêuticos para chegar a um entendimento correto sobre o texto. É o estudo do sentido literal do texto. É a ciência da interpretação. É a extração dos pensamentos que assistiam ao escritor ao redigir determinado documento. Na exegese o exame do texto é feito para extrair entendimento e não incutir no texto o seu entendimento (eisegese). Hermenêutica Bíblica: Analisa o sentido que o texto tem hoje para nós.

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Hermenêutica Bíblica Exegese: Procura estudar o sentido que o autor quis atribuir ao texto sagrado. 5. AS REGRAS DA HERMENÊUTICA A seguir, temos uma lista com as principais regras da hermenêutica bíblica alistadas pelo teólogo Valtencir Alves: 5.1 Regra fundamental (primeira regra) A Escritura explicada pela Escritura, ou seja: a Bíblia, sua própria intérprete. 5.2 Segunda regra É necessário tomar as palavras no sentido que indica o conjunto da frase. 5.3 Terceira regra É necessário tomar a frase no sentido indicado no contexto, a saber, os versículos que precedem e seguem ao texto que se estuda. 5.4 Quarta regra É preciso tomar em consideração o objetivo ou desígnio do livro ou passagem em que ocorrem as palavras ou expressões obscuras. 5.5 Quinta Regra É necessário consultar as passagens paralelas. 24


Hermenêutica Bíblica 5.5.1 Quinta Regra (segunda parte): paralelos de ideias Para conseguir a ideia completa e exata do que ensina a Escritura neste ou naquele texto determinado, talvez obscuro ou discutível, consultam-se não só as palavras paralelas, mas os ensinos, as narrativas e fatos contidos em textos ou passagens aclamatórias que se relacionem com o dito texto obscuro ou discutível. Tais textos ou passagens chamam-se paralelos de ideias. 5.5.2 Quinta regra (terceira parte): paralelos de ensinos gerais Para a aclaração e correta interpretação de determinadas passagens não são suficientes os paralelos de palavras e ideias; é preciso recorrer ao teor geral, ou seja, aos ensinos gerais das Escrituras2. CONCLUSÃO Você está iniciando o estudo da hermenêutica neste livro e por isso, sugiro que você já comece seu estudo desta ciência maravilhosa fazendo a pergunta que Filipe fez ao eunuco, mas fazê-la a si mesmo. Filipe perguntou ao eunuco: “Compreendes o que vens lendo?”(At 8.30). Pergunte a você mesmo: “Eu entendo o que estou lendo?” Filipe mostra-nos hoje um dos princípios básicos para se estudar hermenêutica: 2

Fonte: Blog Hermenêutica Bíblica. Link: <doutorhermeneutica.blogspot.com.br/search/label/Regras> Acesso em 08 jun. 2012.

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Hermenêutica Bíblica entender o que estamos lendo. O objeto da nossa leitura é a Palavra de Deus e desse modo, estamos desejosos de entender a Bíblia, a mensagem de Deus para nós!

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Hermenêutica Bíblica

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Hermenêutica Bíblica

Exercícios do capítulo 1 Responda as questões abaixo, de maneira bem sintetizada. 1.

O que significa o termo “Hermenêutica”? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

2.

Quais as cinco principais divisões em que a Teologia se acha organizada? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

3.

De que se ocupa a Teologia Exegética? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

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Hermenêutica Bíblica 4.

Basicamente, qual a diferença entre Hermenêutica e Exegese? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

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Hermenêutica Bíblica

2 Particularidades do texto bíblico “A Bíblia, como qualquer outro livro, possui linguagem própria de um livro cujo autor queria que as coisas nele escritas fossem compreendidas pelos seus leitores. Por isso, o Espírito Santo, ao inspirar as Escrituras, usou a linguagem, o vocabulário e o gênero literário próprio à época de cada escritor que a escreveu” (Raimundo Ferreira de Oliveira).

INTRODUÇÃO

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este capítulo, vamos conhecer algumas das principais peculiaridades da Bíblia. Quando falamos aqui de “peculiaridades” estamos nos referindo às particularidades da própria Bíblia como livro. Neste estudo, nos voltaremos para duas áreas importantíssimas: 1ª) as figuras literárias utilizadas no texto bíblico e, 2ª) as dificuldades bíblicas, isto é, as dificuldades de compreensão de textos bíblicos. Conheceremos as principais figuras utilizadas na linguagem bíblica. Estas figuras de linguagem são na verdade recursos literários para comunicar a mensagem bíblica dentro de um contexto histórico, social e cultural dos tempos bíblicos. A Bíblia possui linguagem que é própria dela. Ela cita eventos, fazem 30


Hermenêutica Bíblica narrativas e desenvolve assuntos teológicos utilizando estes recursos que são particularidades suas. Daí a necessidade de um estudo específico para se conhecer estes recursos e puder assim interpretar corretamente o texto bíblico. Conheceremos também algumas das principais dificuldades bíblicas, isto é, as dificuldades que encontramos ao nos depararmos com determinado texto bíblico, impossibilitando assim uma compreensão melhor. Lidaremos com a seguinte pergunta: “Como superar esta dificuldade?” Nossa meta neste livro é respondê-la da melhor maneira possível. Passaremos a considerar estes recursos neste capítulo e procuraremos citar sempre exemplos bíblicos relacionados para ilustrar de forma prática estes recursos. É fundamental que você confira sempre todas as referências bíblicas a fim de compreender bem a matéria em apreço. 1. PARTICULARIDADES LITERÁRIAS Neste tópico, destacaremos as figuras de linguagem do texto bíblico, que são várias. E ainda que elas sejam comuns a outras línguas além do hebraico e do grego, línguas em que a Bíblia foi originalmente escrita, naturalmente a forma como elas são empregadas nas Escrituras é peculiar. Quando falamos de particularidades literárias a referência é a esses recursos específicos encontrados na literatura bíblica. Eles são muito abundantes e quando os conhecemos, interpretamos melhor o texto bíblico. É importante ressaltar aqui que embora a Bíblia seja plenária e verbalmente 31


Hermenêutica Bíblica inspirada por Deus, ela foi escrita seguindo tendências e critérios literários, de modo que muitas vezes o escritor bíblico, ao desenvolver o texto, tinha em mente um plano a ser seguido. Passaremos a considerar aqueles que consideramos serem os principais recursos literários encontrados no texto bíblico, isto é, as que consideramos serem as principais figuras de linguagem.3 1.1 Comparação e Contraste No texto bíblico encontramos em alguns momentos a associação de duas ou mais ideias que são iguais ou parecidas. Isso é chamado de comparação. Temos um exemplo em Gênesis 22.17 onde Deus mesmo compara a descendência de Abraão com as estrelas do céu e com a areia que está na praia do mar. Palavras como “tal como”, “igual a”, “como” e “semelhante” expressam a ideia de comparação. Já o contraste é o oposto da comparação, pois indica diferença nas qualidades que estão sendo salientadas. Palavras como “mas”, “ou”, “de outra forma” e “entretanto” indicam contraste. Um exemplo interessante temos no livro dos Salmos, no Salmo 1, onde lemos o contraste que o salmista apresenta entre aquele que atenta para a Lei do Senhor e aquele que não o faz.

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É importante destacar que aqui estamos, na verdade, mencionando os tipos de figuras de linguagem, e não as figuras em si, tal como se encontram no texto bíblico, ainda que sejam citados exemplos objetivando-se melhorar o entendimento do leitor do assunto abordado.

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Hermenêutica Bíblica 1.2 Metáfora Esta figura tem por base alguma semelhança entre dois objetos ou fatos, caracterizando-se um com o que é próprio do outro. Exemplo: Ao dizer Jesus: “Eu Sou a Videira Verdadeira”, Jesus se caracterizou com o que é próprio e essencial da videira (pé de uva); e ao dizer aos discípulos: “Vós sois as varas”, caracterizou-os com o que é próprio das varas. Outros exemplos: “Eu Sou o Caminho”, “Eu Sou o Pão Vivo”, “Judá é Leãozinho”, “Tu és minha Rocha”, etc. 1.3 Sinédoque Faz-se uso desta figura quando se toma a parte pelo todo ou o todo pela parte, o plural pelo singular, o gênero pela espécie, ou vice-versa. Exemplos: Toma a parte pelo todo: “até o meu corpo repousará seguro”, em vez de dizer: meu corpo. (Sl 16.9). Toma o todo pela parte: “...beberdes o cálice”, em lugar de dizer: do cálice, ou seja, parte do que há no cálice. 1.4 Metonímia Emprega-se esta figura quando se emprega a causa pelo efeito, ou o sinal ou símbolo pela realidade que indica o símbolo. Exemplos: Jesus emprega a causa pelo efeito: “Eles têm Moisés e os profetas; ouçam-nos”, em lugar de dizer que têm os escritos de Moisés e dos profetas. (Lc 16.29) 33


Hermenêutica Bíblica Jesus emprega o símbolo pela realidade que o mesmo indica: “Se eu não te lavar, não tem parte comigo”. Lavar é o símbolo da regeneração. 1.5 Prosopopéia Esta figura é usada quando se personificam as coisas inanimadas, atribuindo-se-lhes os feitos e ações das pessoas. Exemplos: “Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (I Cor 15.55). Paulo trata a morte como se fosse uma pessoa. “Os montes e os outeiros romperão em cânticos diante de vós, e todas as árvores do campo baterão palmas” (Is 55.12). “Encontraram-se a graça e a verdade, a justiça e a paz se beijaram. Da terra brota a verdade, dos céus a justiça baixa o seu olhar” (Sl 85.10,11). 1.6 Ironia Faz-se uso desta figura quando se expressa o contrário do que se quer dizer, porém sempre de tal modo que se faz ressaltar o sentido verdadeiro. Exemplo: “Clamai em altas vozes... e despertará”. Elias dá a entender que chamar por Baal é completamente inútil (1 Rs 18.27). 1.7 Hipérbole É a figura pela qual se representa uma coisa como muito maior ou menor do que em realidade é, para apresentá-la viva à imaginação. É um exagero. Exemplos: “Também vimos ali gigantes... e éramos aos nossos próprios olhos 34


Hermenêutica Bíblica como gafanhotos... as cidades são grandes e fortificadas até aos céus” (Num. 13.33). “Creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos” (Jo 21.25). “Rios de águas correm dos meus olhos, porque não guardam a tua lei” (Sl 119.136). 1.8 Alegoria É uma figura retórica que geralmente consta de várias metáforas unidas, representando cada uma delas realidades correspondentes. Exemplo: “Eu Sou o Pão Vivo que desceu do céu, se alguém dele comer, viverá eternamente; e o pão que eu darei pela vida do mundo, é a minha carne... Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna”, etc. Esta alegoria tem sua interpretação nesta mesma passagem das Escrituras (Jo 6.51-65). 1.9 Fábula É uma alegoria histórica, na qual um fato ou alguma circunstância se expõe em forma de narração mediante a personificação de coisas ou de animais. Exemplo: “O cardo que está no Líbano, mandou dizer ao cedro que lá está: Dá tua filha por mulher a meu filho; mas os animais do campo, que estavam no Líbano, passaram e pisaram o cardo” (2 Rs 14.9). Com esta fábula Jeoás, rei de Israel, responde a proposta de guerra feita por Amazias, rei de Judá. 35


Hermenêutica Bíblica 1.10 Enigma É algo que se propõe a ser descoberto. Exemplo: “Do comedor saiu comida e do forte saiu doçura” (Jz 14.14). 1.11 Tipo O tipo pode ser uma pessoa, um evento do AT ou um objeto. Ele tem por objetivo fazer uma indicação para um cumprimento futuro. Os tipos indicam que serão cumpridos futuramente. Assim, todo tipo encontra seu antítipo, isto é, a pessoa ou evento em que o tipo se cumpre. Exemplos: A serpente de metal levantada no deserto foi mencionada por Jesus como um tipo para representar sua morte na cruz (Jo 3.14). Jonas no ventre do grande peixe foi usado como tipo por Jesus para representar a sua morte e ressurreição. (Mt 12.40). O primeiro Adão é um tipo para Cristo o último Adão (1 Cor 15.45). 1.12 Símbolo Representa alguma coisa ou algum fato por meio de outra coisa ou fato familiar que se considera a propósito para servir de semelhança ou representação. Exemplos: Representa-se: A majestade pelo leão, a força pelo cavalo, a astúcia pela serpente, o corpo de Cristo pelo pão, o sangue de Cristo pelo cálice, etc. 1.13 Parábola Apresentada sob a forma de narração, relatando fatos naturais ou acontecimentos possíveis, sempre com o objetivo de ilustrar uma ou várias verdades importantes. Exemplos: 36


Hermenêutica Bíblica O Semeador (Mt 13.3-8); Ovelha perdida, dracma perdida e filho pródigo (Lc. 15), etc. 1.14 Símile Procede da palavra latina similis que significa semelhante ou parecido a outro. É uma analogia. Comparação de coisas semelhantes. Exemplos: “Pois quanto o céu se alteia acima da terra, assim é grande a sua misericórdia para com os que o temem”. (Sl 103.11). “Como o pai se compadece de seus filhos, assim (do mesmo modo) o Senhor se compadece dos que o temem” (Sl 103.13). 1.15 Interrogação Somente quando a pergunta encerra uma conclusão evidente é que é uma figura literária. “Interrogação é uma figura pela qual o orador se dirige ao seu interlocutor, ou adversário, ou ao público, em tom de pergunta, sabendo de antemão que ninguém vai responder”. Exemplos: “Não fará justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn 18.25). “Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para serviço a favor dos que hão de herdar a salvação?” (Hb 1.14). “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus?” (Rm 8.33). “Com um beijo trais o Filho do homem?” (Lc 22.48). 1.16 Apóstrofe O vocábulo indica que o orador se volve de seus ouvintes imediatos para dirigir-se a uma pessoa ou coisa ausente ou 37


Hermenêutica Bíblica imaginária. Exemplos: “Ah, Espada do Senhor, até quando deixarás de repousar?” (Jr 47.6). “Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão!” (2Sm 18.33). 1.17 Antítese “Inclusão, na mesma frase, de duas palavras, ou dois pensamentos, que fazem contraste um com o outro”. Exemplos: “Vê que proponho hoje a vida e o bem, a morte e o mal” (Dt 30.15). “Entrai pela porta estreita (larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz a perdição e são muitos os que entram por ela) porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela” (Mt 7.13,14). 1.18 Provérbio Trata-se de um ditado comum, uma máxima, uma reflexão contida numa frase. Exemplos: “Médico cura-te a ti mesmo” (Lc 4.23). Nenhum profeta é bem recebido em sua própria terra” (Mt 6.4; Mt 13.57). 1.19 Paradoxo Denomina-se paradoxo a uma preposição ou declaração oposta à opinião comum. Exemplos: “Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos” (Mt 8.22). “Coais o mosquito e engolis o camelo” (Mt 23.24). “Porque quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Co 12.10). 38


Hermenêutica Bíblica 2. AS DIFICULDADES BÍBLICAS A Bíblia é um livro escrito dentro de limites culturais, épicos e circunstanciais e por isso mesmo é que existem muitas dificuldades na leitura e interpretação do texto bíblico. A Bíblia foi escrita por homens que viveram em contextos sociais e culturais bem distantes e distintos do nosso, daí ser perfeitamente natural que o leitor contemporâneo da Bíblia encontre dificuldades na interpretação da mensagem bíblica. É fundamental que o hermeneuta tenha em mente que as dificuldades são sempre do lado humano, não do lado divino. Muitas vezes, na leitura da Bíblia, deparamo-nos com textos aparentemente discrepantes, incoerentes e algumas vezes, até espantosos. Mas quando se faz uma análise mais profunda, mais pormenorizada, logo se constata que a Bíblia não contém erros de espécie alguma. Ela é perfeita e “...é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Tm 3.16,17). Há uma frase marcante do já muito conhecido teólogo africano, Agostinho, sobre a questão da inerrância bíblica que devemos considerar aqui: “Se ficamos perplexos diante de qualquer aparente contradição nas Escrituras, não é permitido dizer ‘o autor deste livro está errado’; mas sim o manuscrito pode ser falho, a tradução pode estar errada ou nós não entendemos”. Passamos a listar algumas orientações importantes que o leitor da Bíblia deve sempre considerar em seu trabalho de 39


Hermenêutica Bíblica interpretação das Escrituras. São princípios fundamentais que muitos que criticam a Bíblia simplesmente ignoram ou desconhecem totalmente, por isso acusam a Bíblia de conter erros quando na verdade são eles mesmos que estão errados em suas próprias acusações contra a Palavra de Deus. Vejamos então: 1) Ao ler e estudar determinado texto das Escrituras considere sempre o contexto. A Lei do Contexto é fundamental e é uma das leis de interpretação bíblica mais aceita universalmente entre os estudiosos da Bíblia. O contexto é aquilo que vem antes e depois do texto que se está analisando. Pode estar num versículo, no mesmo capítulo, no mesmo livro ou até em outro livro. O grande erro da maioria das seitas ocorre justamente aqui: ignoram o contexto de determinados textos bíblicos e os usam totalmente desconexos de seus contextos, gerando assim ensinos contraditórios e até absurdos! Tudo por ignorar o contexto bíblico. 2) Ao se deparar com textos aparentemente discrepantes, não pense logo que é erro, mas antes, faça uma análise mais profunda do assunto. Cuidado com os preconceitos (isto é, préconceitos) na leitura da Bíblia. 3) Ao ler e estudar a Bíblia faça sempre de coração aberto, permitindo que o texto fale por si mesmo e não o contrário, que você fale pelo texto, 40


Hermenêutica Bíblica forçando assim uma interpretação incoerente com o que está no texto bíblico. 4) Ao ler e estudar a Bíblia nunca pense que você encontrará todas as explicações que possa almejar. O hermeneuta bíblico deve entender e aceitar que há coisas na Bíblia que embora citadas não foram plenamente explicadas. Exemplo? A origem do mal. A Bíblia não nos revela como foi que o mal teve origem. Este é um grande mistério que só Deus sabe. Sejamos humildes aqui e não pensemos que por isso a Bíblia esteja errada. Lembremo-nos de Deuteronômio 29.29: “As coisas encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei”. 5) Ao interpretar passagens bíblicas de difícil interpretação, faça sempre à luz das que são mais fáceis. A Bíblia oferece a nós doutrinas que estão acima da nossa razão, embora nem por isso sejam elas irracionais! Na Bíblia encontramos assuntos que são por demais complicados e que precisam ser corretamente estudados e analisados. Podemos citar como exemplo a doutrina da Trindade. Como entender plenamente que Deus é trino e único ao mesmo tempo? É realmente algo que está além da nossa compreensão limitada. Por isso é fundamental que o hermeneuta bíblico esteja 41


Hermenêutica Bíblica sempre atendo às passagens mais claras da Bíblia sobre o assunto a fim de melhor compreendê-lo. 6) Nunca baseia um ensino numa passagem obscura e de difícil interpretação da Bíblia. Isto pode dar espaço a ensinos errôneos a respeito das Escrituras. Exemplos de dificuldades bíblicas Passaremos a considerar agora alguns exemplos de dificuldades bíblicas para ilustrar o assunto que estamos abordando. Por exemplo, lemos assim em Romanos 12.20: “Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque, fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça”. Afinal de contas, as brasas são amontoadas sobre a cabeça de quem? Daquele que retribui beneficamente ao inimigo ou é sobre a cabeça do inimigo mesmo? É uma dificuldade que acontece no campo da tradução bíblica. A resposta para esta questão pode ser a seguinte: Para entendermos o que é de fato que o apóstolo Paulo está dizendo, basta substituirmos a versão que estamos usando (ARA) por outra que traduz mais claramente o texto. A Bíblia de Jerusalém traduziu este versículo de forma mais clara: “Antes, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer, se tiver sede, dá-lhe de beber. Agindo desta forma estarás acumulando brasas sobre a cabeça dele” (grifo meu). Como podemos ver, fica agora bem mais claro que as brasas são acumuladas sobre a cabeça do inimigo. Veremos agora uma 42


Hermenêutica Bíblica aparente contradição bíblica: Os críticos são rápidos em citar os relatos aparentemente contraditórios dos quatro livros do evangelho como uma evidência de que não são dignos de confiança em informação precisa. Mateus diz, por exemplo, que havia um anjo no túmulo de Jesus, enquanto João menciona a presença de dois anjos. Não seria isso uma contradição que derrubaria a credibilidade desses relatos? Não, mas exatamente o oposto é verdadeiro: detalhes divergentes, na verdade, fortalecem a questão de que esses são relatos feitos por testemunhas oculares. De que modo? Em primeiro lugar, vamos destacar que os relatos do anjo não são contraditórios. Mateus não diz que havia apenas um anjo na sepultura. Os críticos precisam acrescentar uma palavra ao relato de Mateus para torná-lo contraditório ao de João. Mas por que Mateus mencionou apenas um anjo, se realmente havia dois ali? Pela mesma razão que dois repórteres de diferentes jornais locais cobrindo um mesmo fato optam por incluir detalhes diferentes em suas histórias. Duas testemunhas oculares independentes raramente veem todos os mesmos detalhes e descrevem um fato exatamente com as mesmas palavras. Elas vão registrar o mesmo fato principal (isto é, Jesus ressuscitou dos mortos), mas podem diferir nos detalhes (isto é, quantos anjos havia no túmulo). De fato, quando um juiz ouve duas testemunhas que dão testemunho idêntico, palavra por palavra, o que corretamente presume? Conclui – as testemunhas encontraram-se antecipadamente para que suas versões do fato concordassem. Desse modo, é perfeitamente racional 43


Hermenêutica Bíblica que Mateus e João difiram – os dois estão registrando o depoimento de testemunhas oculares. Talvez Mateus tenha mencionado apenas o anjo que falou (Mt 28.5), enquanto João descreve quantos anjos Maria viu (Jo 20.12). Ou talvez um dos anjos se tenha destacado mais do que o outro. Não sabemos com certeza. Sabemos simplesmente que tais diferenças são comuns entre testemunhas oculares. CONCLUSÃO Quando passamos a conhecer as figuras de linguagem do texto bíblico consequentemente passamos a identificá-las no texto, e desse modo temos então uma ajuda a mais no trabalho hermenêutico. O hermeneuta é aquele que usa os recursos pela hermenêutica na compreensão da mensagem bíblica contida no texto bíblico. Já começamos a conhecer alguns desses recursos – as figuras de linguagem e seus significados – e passaremos a conhecer outros recursos. Neste capítulo vimos também como lidar com as dificuldades bíblicas, e o ponto principal que devemos ter em mente em relação à elas é que é preciso fazer uma análise cuidadosa de cada uma delas, considerando seu contexto, localização na história e cultura bíblica e também considerar a situação delas dentro do contexto gramatical. Todas essas observações são fundamentais para que não se criem interpretações equivocadas de determinados textos bíblicos, como o fazem certos “intérpretes” da Bíblia. O bom hermeneuta haverá de considerar estes itens. 44


Hermenêutica Bíblica

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Exercícios do capítulo 2 Responda as questões abaixo, de maneira bem sintetizada. 1.

O que são as figuras de linguagem no texto bíblico? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________

2.

O que é uma metáfora? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________

3.

O que é uma hipérbole? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________

4.

O que é um provérbio? ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________

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Hermenêutica Bíblica 5.

Cite uma ação a ser realizada quando se depara com uma passagem bíblica difícil e obscura: ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________ ____________________________________________________________

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3 Princípios de interpretação bíblica4 “O Espírito Santo é aquele que inspirou a Palavra e que lhe concede autoridade. Ele nada falará contrário àquilo que a Palavra inspirada declara, e nada além disso” (John R. Higgins). INTRODUÇÃO

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em todos se apercebem do fato de que toda leitura de um texto envolve um processo de interpretação do mesmo. Não existe compreensão de um texto sem que haja interpretação, mesmo que esta leitura seja do jornal e o processo de interpretação aconteça inconscientemente. Sendo um texto, a Bíblia não foge a esta regra. Cada vez que a abrimos e lemos, buscando entender a mensagem de Deus para nós, engajamo-nos num processo de interpretação. Como Palavra de Deus, a Bíblia deve ser lida como nenhum outro livro. Mas, tendo sido escrita por homens, ela deve ser interpretada como qualquer outro livro. Além disto, a Bíblia está distante de nós em diversos aspectos, como veremos adiante, o que faz com que nossa 4

O texto deste capítulo foi gentilmente cedido pelo Rev. Dr. Augustus Nicodemus Lopes e adaptado para este livro: LOPES, Augustus Nicodemus. Princípios de interpretação da Bíblia. Disponível em: <www.monergismo.com/textos/hermeneuticas/hermA_02.pdf>. Acesso em 03 jul. 2016.

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Hermenêutica Bíblica leitura dela exija um esforço consciente de interpretação. Ler a Bíblia, em certo sentido, é diferente de lermos a revista. Veja: há muitas pessoas que ficam desanimadas com as controvérsias e as polêmicas que existem nos meios intelectuais onde se estuda a Bíblia. Elas consideram desnecessário o estudo mais sério da Bíblia. Alguns até pensam que estudos acadêmicos da Bíblia são uma barreira à espiritualidade e ao crescimento da Igreja. Podemos entender a atitude de pessoas assim, pois realmente existe muito academicismo e intelectualismo árido e infrutífero em muitos círculos evangélicos. Por outro lado, rejeitar o estudo da Bíblia não vai resolver o problema, pois continuamos diante de um texto antigo, distanciado de nós, escrito em outras línguas e que precisa ser interpretado para poder ser entendido. Alguns dizem: “Vamos deixar de lado estas questões e simplesmente ler a Bíblia como ela é”. Infelizmente, uma leitura assim não é possível. Não existe leitura e entendimento de um texto sem que haja interpretação, mesmo que esta interpretação se processe de forma inconsciente. O objetivo deste capítulo é levantar alguns aspectos da natureza da Bíblia que tornam indispensável um esforço consciente para interpretá-la. 1. POR QUE PRECISAMOS INTERPRETAR A BÍBLIA? Aqui consideraremos a necessidade da interpretação bíblica. Embora a Bíblia seja amplamente utilizada pelas diversas denominações cristãs, cumpre perguntar se de fato 49


Hermenêutica Bíblica interpreta-se corretamente a mensagem da Palavra de Deus. Para tal, é preciso considerar alguns fatores que serão aqui abordados.

1.1 A Bíblia como livro humano O fato de que a Bíblia não caiu pronta do céu, mas que foi escrita por diferentes pessoas em diferentes épocas, línguas e lugares, alerta-nos para o que alguns estudiosos têm chamado de distanciamento. O fenômeno do distanciamento aparece em diversas áreas, como se pode ver a seguir. 1.1.1 Distanciamento temporal A Bíblia está séculos distante de nós. Seu último livro foi escrito pelo final do século I da Era Cristã, o que nos separa temporalmente em cerca de dois milênios. A distância temporal, num mundo em constantes mudanças, faz com que a maneira de encarar o mundo, os aspectos culturais e linguísticos dos escritores da Bíblia se percam no passado distante. Portanto, como qualquer documento antigo, a Bíblia precisa ser lida levando-se isto em conta. Os princípios de interpretação da Bíblia procuram condições de transpor este abismo temporal.

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Hermenêutica Bíblica 1.1.2 Distanciamento contextual Os livros da Bíblia foram escritos para atender a determinadas situações, que já se perderam no passado distante. É verdade que ao serem incluídos no cânon bíblico, eles passaram a ser relevantes para a Igreja universal. Por outro lado, recuperar o contexto em que estes livros foram escritos é essencial para entendermos melhor a sua mensagem. As cartas de Paulo foram escritas visando atender às necessidades de igrejas locais. Não posso entender corretamente o ensinamento do apóstolo sobre o uso do véu pelas mulheres (1 Coríntios 11) se não estiver consciente do problema que estava acontecendo na Igreja relacionado com a participação das mulheres no culto. Igualmente, 1 João toma outra relevância quando fico consciente de que João estava escrevendo contra a influência de uma forma incipiente de gnosticismo nas igrejas da Ásia Menor. Ou ainda, que o livro de Habacuque foi escrito num contexto de iminente invasão por potências estrangeiras. A mensagem do evangelho de Marcos fica mais clara quando descobrimos que Marcos escreveu provavelmente para ajudar os crentes romanos a enfrentar as provações que sofriam por causa de Cristo. E o livro de Jonas – especialmente a atitude de Jonas contra os ninivitas – ganha maior clareza quando descubro que havia uma antipatia natural dos judeus contra os ninivitas por causa dos seus grandes pecados. Os princípios de interpretação da Bíblia procuram transpor as dificuldades criadas pela distância contextual. 51


Hermenêutica Bíblica 1.1.3 Distanciamento cultural O mundo em que os escritores da Bíblia viveram já não existe. Está no passado distante, com suas características, costumes, tradições e crenças. Muito embora a inspiração das Escrituras garanta que sua mensagem seja relevante para todas as épocas, devemos lembrar que esta mensagem foi registrada numa determinada cultura, da qual traços foram preservados na Bíblia. Os princípios de interpretação da Bíblia devem levar em conta o jeito de escrever daquela época, a maneira de expressar conceitos e ilustrar as verdades, para poder transpor a distância cultural. 1.1.4 Distanciamento linguístico As línguas em que a Bíblia foi escrita também já não existem. Não se fala mais o hebraico, o grego e o aramaico bíblicos nos dias de hoje, mesmo nos países onde a Bíblia foi escrita. Como cada língua tem seu jeito próprio de comunicar conceitos (apesar de uma estrutura comum a todas), princípios de interpretação da Bíblia devem levar em conta estas peculiaridades. O conhecimento do paralelismo hebraico certamente nos ajuda a entender os Salmos melhor, bem como os profetas. 1.1.5 Distanciamento autorial Devemos ainda reconhecer que teríamos uma compreensão mais exata da mensagem de alguns textos bíblicos reconhecidamente obscuros se os seus autores estivessem 52


Hermenêutica Bíblica vivos. Poderíamos perguntar a eles acerca destas passagens complicadas que escreveram e que continuam até hoje dividindo os melhores intérpretes quanto ao seu significado. Por exemplo, Pedro poderia nos esclarecer o que ele quis dizer com “Cristo foi e pregou aos espíritos em prisão”. Ou ainda, Paulo poderia nos dizer o que ele quis dizer com “o que farão os que se batizam pelos mortos?”. Mateus poderia finalmente tirar a dúvida sobre o sentido da frase de Jesus “não terminarão de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do Homem”. Daniel poderia nos esclarecer a quem ele se referia por Ciro (de quem não temos registro fora da Bíblia) e porque considerava Belsazar filho de Nabucodonosor, quando era filho de Nabonido (embora a arqueologia já tenha desvendado este mistério – g.a.a). Não endossamos o que alguns estudiosos afirmam, que com a morte do autor perdeu-se a possibilidade de recuperar-se a intenção dos mesmos. A razão é que a intenção deles sobrevive no que escreveram. Mas certamente a ausência do autor faz com que a interpretação de textos obscuros seja necessária. Princípios de interpretação devem levar em conta o distanciamento autorial, e buscar meios de recuperar a intenção deles nos próprios textos que escreveram. O distanciamento, portanto, exige de nós a tarefa de interpretar. Interpretar é exatamente tentar transpor o distanciamento em suas várias formas, como mencionadas anteriormente, e chegar ao sentido exato do texto. De forma geral, o ponto central da mensagem da Bíblia é tão claro que pode ser entendido por todos, mesmo os que não estão 53


Hermenêutica Bíblica conscientes do distanciamento. A prova disto é que a Igreja vem se mantendo viva e ativa através dos séculos, sendo composta em sua quase absoluta maioria de pessoas que não têm treinamento teológico, histórico e linguístico que permitiriam uma leitura mais informada das Escrituras. Por outro lado, uma maior exatidão e clareza acerca de todos os aspectos da mensagem bíblica não poderá ser alcançada sem interpretação consciente. 1.2 Escrituras e inerrância Seria importante perguntar até que ponto o lado humano das Escrituras possibilitaram a entrada de erros na mesma. Esta é uma questão bastante controversa e certamente não poderemos abordá-la de forma exaustiva aqui. Apenas reafirmaremos nossa convicção de que a Bíblia é a verdadeira Palavra de Deus, com as seguintes qualificações: 1. Ao dizermos que a Bíblia é verdadeira em tudo que afirma não estamos negando que erros de copistas se introduziram no longo processo de transmissão do texto. Seria negar a realidade. A inerrância é um atributo dos autógrafos, ou seja, do texto como originalmente produzido pelos autores inspirados por Deus.Muito embora hoje não tenhamos mais os autógrafos, pela providência divina podemos recuperá-los quase que em sua totalidade através da ajuda de ferramentas como a baixa crítica ou a manuscritologia bíblica. 2. Também não estamos dizendo que os autores bíblicos receberam conhecimento pleno e onisciente acerca do mundo 54


Hermenêutica Bíblica e das ciências, ao escreverem. Eles se expressaram nos termos e dentro do conhecimento disponível naquela época, acomodando a verdade revelada em termos do que sabiam do mundo. Assim, eles falam que o sol nasce num lado do céu e se põe no outro, ou ainda mencionam que o sol parou no céu (Josué). Do ponto de vista rigorosamente científico estas declarações são inexatas. Ou ainda, no livro de Levítico, se diz que a lebre rumina e que o morcego é uma ave. Sabemos que as duas coisas não são verdade: lebres não ruminam e morcegos não são aves. Os autores bíblicos, entretanto, expressaram a verdade divina acomodando-se ao conhecimento de sua época, quando se pensava que o sol de fato girava em torno da terra, que todos os animais que mexiam com a boca após comer eram ruminantes e que tudo que tivesse asas e voasse era ave! 3. Também não estamos dizendo que podemos explicar todas as partes da Bíblia em termos absolutamente satisfatórios. Por exemplo, a harmonia dos Evangelhos continua sendo um desafio para autores comprometidos com a inerrância bíblica, pois nem sempre consegue-se achar uma explicação absolutamente satisfatória para os problemas levantados pelas aparentes discrepâncias entre os Evangelhos. Ou ainda, pelas discrepâncias entre 1-2 Crônicas e 1-2 Reis. No entanto, não podemos aceitar soluções que impliquem numa diminuição da autoridade das Escrituras, sugerindo contradições ou erros. É preferível aguardar até que mais informações nos ajudem a achar soluções compatíveis com a natureza da Escritura e sua divina origem. 55


Hermenêutica Bíblica 4. Por último, é importante acrescentar que não estamos dizendo que as traduções da Bíblia são inerrantes. Muito embora possamos ler com confiança a Bíblia em nossa língua, reconhecemos que em muitos casos os tradutores tiveram que tomar decisões relacionadas com a melhor maneira de traduzir um determinado termo ou expressão, e que tais decisões, não sendo inspiradas por Deus, nem sempre foram as corretas. 1.3 A Bíblia como livro divino Por outro lado, o fato de que a Bíblia foi inspirada por Deus, sendo assim a Sua Palavra, deve ser levado em conta por aqueles que desejam interpretá-la corretamente. A divindade e a humanidade das Escrituras devem ser mantidas em equilíbrio. Quando enfatizamos uma em detrimento da outra, acabamos por cair em algum dos erros hermenêuticos que caracterizam a história da interpretação cristã das escrituras. Este foi o grande problema do método históricocrítico de interpretação, que surgiu com o Iluminismo, adotando os pressupostos racionalistas quanto às Escrituras, contrários à sua origem divina. Ao tratar a Bíblia exatamente como qualquer outro livro de religião, deixando de levar em conta sua inspiração e divina autoridade, os estudiosos e professores cristãos influenciados pelo racionalismo acabaram por desenvolver um método de interpretação que não aceitava o conceito de revelação, inspiração e providência de Deus. Como resultado, a Bíblia passou a ser 56


Hermenêutica Bíblica vista, não como Palavra de Deus em sua inteireza, mas como o registro da fé de comunidades religiosas, primeiro a judaica e depois a cristã. Continha erros crassos, e seus livros individuais eram trabalhos compostos de retalhos de fontes contraditórias e refletiam mais o pensamento dos que a escreveram do que as realidades históricas e espirituais que pretendiam transmitir. Mas, uma atitude oposta é igualmente perigosa. Muitos movimentos e grupos religiosos esquecem o fenômeno do distanciamento e encaram a Bíblia como se fosse um livro caído do céu, e cuja interpretação depende somente de oração, jejum e plenitude do Espírito Santo. Evidentemente, sendo a Palavra de Deus, precisamos de comunhão com Deus e da iluminação do Espírito para o conhecimento salvador das Escrituras. Porém, a utilização consciente de princípios de interpretação compatíveis com a natureza da Bíblia fará com que este conhecimento nos chegue de forma mais exata e completa. Precisamos ter cuidado, porém, para não cairmos no erro de pensar que somente aqueles que têm treinamento profissional em princípios de interpretação poderão chegar ao conhecimento da mensagem das Escrituras. Muitos dos princípios de interpretação bíblicos, praticados diariamente por todos os leitores da Bíblia, são simples, lógicos e evidentes, como por exemplo, a interpretação de uma palavra à luz do seu contexto. Isto fazemos diariamente, na leitura do jornal, de notícias pela Internet e lendo um email. Num certo sentido, ler a Bíblia envolve as mesmas regras que ler estas coisas. A natureza divina da Bíblia, por 57


Hermenêutica Bíblica sua vez, provoca um outro tipo de distanciamento, que expressa-se nas áreas a seguir. 1.3.1 Distanciamento natural A distância entre Deus e nós é imensa. Ele é o Senhor, criador de todas as coisas, do céu e da terra. Somos suas criaturas, limitadas, finitas. Nossa condição de seres humanos impõe limites à nossa capacidade de entender e compreender as coisas de Deus. Não impede a possibilidade deste conhecimento, com certeza, mas o limita. O fato de sermos seres humanos tentando entender a mensagem enviada pelo Deus criador em si só representa um distanciamento. A distância entre a criatura e o Criador, tão frequentemente mencionada nas Escrituras, tem seus efeitos também na nossa hermenêutica. Princípios de interpretação não podem ignorar isto e pensar que bastam ferramentas hermenêuticas corretas para que possamos entender a Deus. O distanciamento provocado pela nossa humanidade deve procurar ser transposto por princípios de interpretação que reconheçam a necessidade da iluminação do Espírito. 1.3.2 Distanciamento espiritual O fato de que somos pecadores impõe ainda mais limites à nossa capacidade de interpretação da Bíblia. Somos seres afetados pelo pecado tentando entender os desígnios do Deus puro e santo. A Queda é um conceito espiritual, mas com certeza não pode ser deixado de lado em qualquer 58


Hermenêutica Bíblica sistema interpretativo das Escrituras. Transpor o abismo epistemológico5 causado pela Queda é certamente o ponto de partida. A regeneração e a conversão são a resposta de Deus a esta condição. 1.3.3 Distanciamento moral É a distância que existe entre seres pecadores e egoístas e a pura e santa Palavra que pretendem esclarecer. A corrupção de nossos corações acaba por introduzir na interpretação das Escrituras motivações incompatíveis com o Autor das mesmas. Infelizmente a história da Igreja mostra como diferentes grupos manipulam as Escrituras para defender, provar e dar autoridade a seus pontos de vista. Certamente existem pessoas sinceras, embora equivocadas. Mas não podemos negar que o distanciamento moral acaba nos levando a torcer o sentido das Escrituras, procurando usá-la para nossos fins nem sempre louváveis. No parágrafo seguinte mencionamos alguns exemplos. A Bíblia tem sido usada como prova das mais conflitantes teorias e ideias, o que mostra que ler e entender imparcialmente a sua mensagem não é tão fácil e costumeiro assim. A Bíblia foi usada pelos protestantes de países colonizadores para justificar a escravidão, usando textos do Antigo e Novo Testamentos que falam da escravidão sem contudo aboli-la 5

O estudo do conhecimento humano ou de como a mente alcança e usa o conhecimento a fim de determinar a verdade. Termo técnico derivado do grego, que se refere à “teoria do conhecimento”.

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Hermenêutica Bíblica (Ex. 21.2-6). Os seus opositores usaram também a Bíblia para defender as ideias abolicionistas, usando a parábola do bom samaritano e “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. A Bíblia também foi usada para provar que os judeus deveriam ser perseguidos, que a guerra santa contra os muçulmanos era a vontade de Deus, que os protestantes brancos são uma raça superior, para executar as bruxas, para impedir o casamento dos padres, para defender a masturbação, para justificar o aborto e a eutanásia, para regular o tamanho das saias e do cabelo das mulheres cristãs, para prover aceitação e fortalecimento dos homossexuais, para proibir ingerência de qualquer tipo de bebida alcoólica, para proibir transfusão de sangue, para proibir o serviço militar, para defender a poligamia nos dias de hoje, para defender o suicídio religioso em massa, etc. O catálogo é imenso. Tudo isto mostra que não é tão fácil “simplesmente ler a Bíblia e fazer o que ela diz”. Nunca desanimemos da possibilidade (muito real!) de entendermos com clareza o ensinamento das Escrituras, mas reconheçamos humildemente que nunca poderemos ter uma compreensão unânime de todas as suas passagens complicadas. Sabendo que a Bíblia vem de Deus, temos ânimo para buscá-lo em oração, suplicando a Sua graça e Sua iluminação em nossa tarefa como intérpretes. Muitos estudiosos modernos, cansados do método histórico-crítico, têm proposto novos métodos de interpretação que levem em conta o caráter divino das Escrituras. Defendem princípios de interpretação que estejam atentos não somente aos aspectos humanos da Bíblia como literatura religiosa, mas 60


Hermenêutica Bíblica especialmente às implicações da sua divina origem e natureza, bem como da nossa dupla condição de humanos e pecadores. Conforme vimos anteriormente, a dupla natureza da Bíblia provoca um distanciamento temporal e espiritual que precisa ser transposto, para que possamos chegar à sua mensagem. Pela Sua misericórdia, Deus tem guiado e abençoado a Igreja através dos séculos, mesmo quando ela esqueceu-se de levar em conta estes aspectos. Porém, isto não nos isenta de buscarmos compreender de forma mais exata e completa a revelação que Deus fez de si mesmo. E nisto, o uso consciente de princípios de interpretação compatíveis com a natureza das Escrituras é de inestimável valor. 1.4 Método de interpretação bíblica A Bíblia é a Palavra de Deus. Mas, algumas das interpretações derivadas dela não são. Existem muitas seitas, cultos e grupos cristãos que usam a Bíblia declarando que as suas interpretações são as corretas. Muito frequentemente, no entanto, as interpretações não apenas diferem dramaticamente umas das outras, como são claramente contraditórias. Isto não significa que a Bíblia seja um documento contraditório. Antes, o problema está naqueles que a interpretam e/ou nos métodos que eles usam. Como nós somos pecadores, somo incapazes de interpretar perfeitamente a Palavra de Deus todo o tempo. O corpo, a mente, a vontade e as emoções são afetadas pelo pecado e 61


Hermenêutica Bíblica tornam a interpretação 100% exata uma impossibilidade. Isto não significa que entender corretamente a Palavra de Deus seja impossível. Mas que devemos nos aproximar à Sua palavra com cuidado, humildade e razão. Adicionalmente, nós precisamos o que de melhor nós poderíamos necessitar: a direção do Espírito Santo na interpretação da Palavra de Deus. Além do mais, a Bíblia é inspirada por Deus e dirigida ao Seu povo. O Espírito Santo nos ajuda a compreender o que a Palavra de Deus significa e como aplicá-la em nossas vidas. No nível humano, para minimizar os erros que possam advir das nossas interpretações, nós precisamos conhecer métodos básicos de interpretação da Bíblia. Eu irei listar alguns destes princípios na forma de questões e então aplicá-los a uma passagem da Escritura. Eu sigo os seguintes princípios como linhas-mestras para examinar uma passagem. Elas não são exaustivas e nem absolutas. 1. Quem escreveu/falou a passagem e para quem era endereçada? 2. O que a passagem diz? 3. Existe alguma palavra ou frase nesta passagem que precise ser examinada? 4. Qual é o contexto imediato? 5. Qual é o contexto mais amplo exposto no capítulo e no livro? 6. Quais são os versículos relacionados ao assunto da passagem e como eles afetam a compreensão desta? 62


Hermenêutica Bíblica 7. Qual é o fundo histórico e cultural? 8. Qual a conclusão que eu posso tirar desta passagem? 9. As minhas conclusões concordam ou discordam de áreas relacionadas nas Escrituras ou com outras pessoas que já estudaram esta passagem? 10. O que eu posso aprender e aplicar à minha vida? A fim de ajudar a entender como estas questões podem afetar a sua interpretação de uma passagem, eu escolhi uma que, quando examinada atentamente, pode fazer você chegar a conclusões muito diferentes. Eu deixarei que você determine a exatidão da minha interpretação. A passagem que eu vou usar é Mateus 24.40 “Dois homens estarão no campo; um será levado e o outro será deixado”. 1. Quem escreveu/falou a passagem e para quem era endereçada? Jesus pronunciou as palavras e elas foram registradas por Mateus. Jesus falou aos Seus discípulos em resposta a uma pergunta, que iremos ver mais tarde. 2. O que a passagem diz? A passagem diz simplesmente que um dos dois homens que estão fora, no campo, será levado. Ela não diz onde, porque, quando, ou como. Ela só diz que um será levado. Ela não define que o campo pertença alguém ou a algum lugar em particular. 63


Hermenêutica Bíblica 3. Existe alguma palavra ou frase nesta passagem que precise ser examinada? Nenhuma palavra, nesta passagem em particular, realmente necessita que nós a examinemos cuidadosamente, mas para seguirmos este exercício, eu usarei a palavra “levar”. Usando uma Concordância de Strong e um Dicionário de Palavras do Novo Testamento, eu posso verificar qual é a palavra grega e aprendera respeito dela. A palavra no Grego é paralambano. Ela significa: “1) tomar, tomar para si mesmo, trazer para junto de si, 2) receber alguma coisa por transmissão”. Um ponto que vale a pena mencionar acerca do estudo das palavras é que o seu significado pode mudar de acordo com o seu contexto. Assim, examinando como a palavra é usada em múltiplos contextos, o seu significado pode receber novas dimensões. Por exemplo, a palavra “amor”, no grego é agapao. Ela geralmente refere-se ao “amor divino” Isto pode parecer óbvio, já que esta é a palavra usada em João 3.16 comeste significado. No entanto, a mesma palavra é usada em Lucas 11.43, onde Jesus diz: “Ai de vocês, fariseus, porque amam os lugares de honra nas sinagogas e as saudações em público!” (NVI). A palavra usada aqui é agapao. Parece que o significado da palavra pode tornar-se alguma coisa na linha de “totalmente comprometido com”. No entanto, nós devemos tomar o cuidado de não usar o significado de uma palavra em um contexto em outro contexto. Por exemplo: 1) Este novo cadete é verde. 2) A árvore é verde. O primeiro verde significa “novo ou 64


Hermenêutica Bíblica inexperiente”. O segundo significa a cor verde. Poderíamos impor o significado de um contexto em outro? Sim, mas não seria uma boa ideia. 4. Qual é o contexto imediato? É o lugar onde a passagem está inserida. O contexto imediato da nossa passagem é o seguinte: Mateus 24.37-42: ”Como foi nos dias de Noé, assim também será na vinda do Filho do Homem. 38 Pois nos dias anteriores ao dilúvio, o povo vivia comendo e bebendo, casando-se e dando-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca; 39 e eles nada perceberam, até que veio o dilúvio e os levou a todos. Assim acontecerá na vinda do Filho do Homem. 40 Dois homens estarão no campo: um será levado e o outro será deixado. 41 Duas mulheres estarão moendo num moinho: uma será levada e a outra deixada. 42 Portanto, vigiem, porque vocês não sabem em que dia virá o seu Senhor” (NVI). Imediatamente podemos perceber que a pessoa levada no verso 40 é comparada a pessoa levada noverso 39. Isto é, que as pessoas que foram “levadas” são do mesmo tipo. Uma pequena questão precisa ser feita agora. Quem foi levado no verso 39? Foi Noé e sua família ou foramas pessoas que estavam comendo e bebendo? A resposta a esta pergunta pode nos ajudar a entender melhor a passagem original. O próximo passo na interpretação da passagem nos ajudará a entendê-la ainda mais.

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Hermenêutica Bíblica 5. Qual é o contexto mais amplo exposto no capítulo e no livro? Uma passagem deve ser sempre examinada dentro do seu contexto. Não apenas no contexto dos versos imediatamente antes e depois dela, mas também no contexto do capítulo e até do livro na qual ela está escrita. O discurso de Jesus do qual esta passagem foi tirada, começa com uma pergunta. Jesus tinha acabado de sair do templo e no verso 2 disse aos Seus discípulos que “...não ficará aqui pedra sobre pedra; serão todas derrubadas”. Então no versículo 3, os discípulos perguntam a Jesus: “Dize-nos quando acontecerão essas coisas? E qual será o sinal da sua vinda e do fim dos tempos?” (NVI). Então, Jesus começa a profetizar acerca das coisas que viriam no fim dos tempos. Ele falou de falsos Cristos, tribulação, do sol se escurecendo, do Seu retorno e dos dois homens no campo onde um será levado e outro será deixado. O contexto é escatológico. Isto significa que ele está tratando das últimas coisas, ou do tempo próximo ao retorno de Jesus. Muitas pessoas acham que este versículo de Mateus 24.40 refere-se ao arrebatamento mencionado em 1 Tessalonicenses 4.16-17. Pode ser. Mas é interessante notar que o contexto do versículo sugere que o mal é que será levado, e não o bom. Neste momento você pode estar pensando que este método de interpretação da passagem não é bom. Depois de tudo, o verso “um será levado e o outro deixado” é realmente acerca do arrebatamento. Certo? Bem, pode ser. Como você pode ver, nós todos chegamos à Bíblia 66


Hermenêutica Bíblica com ideias pré-concebidas. Algumas vezes elas estão certas, outras, erradas. Nós sempre deveríamos estar prontos a ter a nossa compreensão da Bíblia desafiada pelo que é dito. Se nós não estivermos dispostos, então somos presunçosos. E Deus está distante do soberbo (Sl 138.6). 6. Quais são os versículos relacionados ao assunto da passagem e como eles afetam a compreensão desta? Acontece que existe uma passagem relacionada, na verdade, paralela, encontrada em Lucas 17.26-27: “Assim como foi nos dias de Noé, também será nos dias do Filho do Homem. O povo estava comendo, bebendo, casando-se e sendo dado em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. Então veio o dilúvio e destruiu a todos”. (NVI). Rapidamente, nós descobrimos que estes versos relacionados sem dúvida afetam a nossa maneira de entender a passagem inicial. Está claro nesta passagem de Lucas que aqueles que foram levados pelo dilúvio eram àqueles que estavam comendo, bebendo e se dando em casamento. Em outras palavras, não foram as pessoas boas que foram levadas, foram as más. Como você pode ver, isto tem um profundo impacto na maneira como compreendemos nossa passagem em Mateus 24.40. O contexto não sugere que aquele que está no campo que será levado não é o mau? Como este contexto afeta as minhas ideias pré-concebidas acerca deste verso? Vamos ler o versículo novamente, mas agora dentro do seu contexto imediato: Mateus 24.37-42: “Como foi nos dias de 67


Hermenêutica Bíblica Noé, assim também será na vinda do Filho do Homem. 38 Pois nos dias anteriores ao dilúvio, o povo vivia comendo e bebendo, casando-se e dando-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca; 39 e eles nada perceberam, até que veio o dilúvio e os levou a todos. Assim acontecerá na vinda do Filho do Homem. 40 Dois homens estarão no campo: um será levado e o outro será deixado. Duas mulheres estarão moendo num moinho: uma será levada e a outra deixada. 42 Portanto, vigiem, porque vocês não sabem em que dia virá o seu Senhor” (NVI).O que é que você acha agora? Quem foi levado, o bom ou o mau? Então, este verso faz referência ao arrebatamento ou não? Só perguntando. De interesse correlato é uma passagem em Mateus 13.24-30 onde Jesus conta a parábola do semeador que semeou a boa semente no seu campo e alguém, depois, semeou joio. Os servos perguntaram se eles deveriam ir imediatamente e arrancar o joio. Mas, no verso 30, Jesus diz “Deixem que cresçam juntos até a colheita. Então direi aos encarregados da colheita: junte primeiro o joio e amarrem-no em feixes para ser queimado; depois juntem o trigo e guardem-no no meu celeiro” (NVI). O ponto digno de nota aqui é que o primeiro a ser ajuntado é o joio, e não o trigo. Isto fica ainda mais interessante quando Jesus explica a parábola em Mateus 13.36-43 e estabelece que eles serão atirados à fornalha. Adicionalmente, quando nos voltamos para Lc 17, que é a passagem paralela de Mateus 24, nós descobrimos que os discípulos fizeram a Jesus outra pergunta por causa da resposta de Jesus que dizia “dois estarão no campo e um 68


Hermenêutica Bíblica será levado” No verso 37 eles perguntam, “Onde, Senhor?” perguntaram eles. Ele [Jesus] respondeu, “Onde houver um cadáver; ali se ajuntarão os abutres”. Eles serão levados a um lugar de morte. 7. Qual é o fundo histórico e cultural? Esta é uma questão mais difícil de responder. Ela requer um pouco mais de pesquisa. Um comentário é digno de ser examinado aqui, já que ele usualmente provê um pano de fundo histórico e cultural para ajudar a desvendar o texto. Neste contexto, Israel estava debaixo da lei romana. Eles estavam proibidos de exercer a punição capital (pena de morte) e de custear uma guerra. Roma estava dominando a pequena nação. O judaísmo era tolerado apesar da liderança romana. Além de tudo, Israel era um pequeno país oriental com um povo que era fanático pela sua religião. Então, Roma permitiu que Israel fosse governado por políticos judeus marionetes. O templo era o lugar de adoração da comunidade israelense. Ali os sacrifícios de sangue eram oferecidos pelo sumo sacerdote para a expiação dos pecados da nação. Levaram 46 anos para construí-lo (Jo2.20). Jesus disse que o templo seria destruído; o que gerou a pergunta que O levou a fazer o discurso que contém a passagem examinada. 8. Qual a conclusão que eu posso tirar desta passagem? Desde que o contexto da passagem sugere que o mau é que será levado, eu estou concluindo que aquele que será levado no campo não será o bom, mas sim o mau. Eu também sou 69


Hermenêutica Bíblica tentado a concluir que os maus serão levados ao lugar de julgamento. 9. As minhas conclusões concordam ou discordam de áreas relacionadas nas Escrituras ou com outras pessoas que já estudaram a esta passagem? Eu já apresentei outras passagens que me permitem chegar a conclusão que cheguei. No entanto, isto não está de acordo com todos os comentários que eu tenho lido acerca deste verso. Neste ponto eu necessito apresentar minha conclusão a outros para ver o que eles pensam. Só porque eu estudei a Palavra e cheguei a uma conclusão não significa que ela esteja correta. Mas não significa que esteja errada, no entanto. Consultar outras pessoas, examinar a palavra de novo e buscar a Deus humildemente e a sua iluminação. Eu só posso ter a esperança de chegar à melhor conclusão possível acerca da passagem. 10. O que eu posso aprender e aplicar à minha vida? A Interpretação da Escritura tem um propósito: Entender a Palavra de Deus mais exatamente. Comum melhor entendimento da Sua palavra, nós poderemos aplicá-la à área a que ela se destina. No nosso caso, a passagem revela uma área do futuro e uma época de julgamento. A aplicação, então, é que Deus executará o julgamento sobre os injustos no fim dos tempos. 70


Hermenêutica Bíblica Este capítulo é somente uma demonstração. Ele é básico e não cobre todos os pontos da interpretação bíblica. Mas isto já dá uma direção e um exemplo de como você deve aplicar. Como eu disse antes, ore. Leia a Sua Palavra. Examine as Escrituras o melhor que você puder para um melhor entendimento e melhor preparo. Seja humilde na sua abordagem e teste tudo o que concluir pela própria Bíblia. Uma última coisa: você concordou com a minha conclusão? 2. ASPECTOS DA INTERPRETAÇÃO Objetiva-se, aqui, estudar alguns aspectos da interpretação que são fundamentais para uma correta compreensão das Escrituras. São aspectos que devem ser levados em conta pelo intérprete ao procurar chegar ao sentido da Palavra de Deus. Estes aspectos decorrem do fato que a Bíblia é um livro divino e humano ao mesmo tempo. Desta forma, alguns dos aspectos são pertinentes somente à interpretação da Bíblia, enquanto que outros, à interpretação de textos antigos em geral. 2.1 A Bíblia é um livro divino Portanto, devemos levar em consideração o aspecto “espiritual” da interpretação. Ou seja, precisamos considerar o papel do Espírito Santo na interpretação (aspecto pneumológico). 2.2 A Bíblia é um livro humano Portanto, devemos levar em consideração que a Bíblia, sendo um texto antigo, demanda considerações gramaticais, 71


Hermenêutica Bíblica literárias, históricas e teológicas para sua interpretação. Mais uma vez lembremos que adotamos uma interpretação reformada das Escrituras. O que isto significa? Em poucas palavras, é um sistema de interpretação que:  Está historicamente associado ao método gramático histórico de interpretação, adotado, usado e defendido pelos Reformadores.  Tem como pressuposto a inspiração e veracidade das Escrituras;  Procura estar sensível aos estudos modernos de ciências correlatas que podem trazer algum auxílio à interpretação do texto bíblico. Apresentamos aqui dois importantes aspectos da interpretação reformada das Escrituras que devem ser levados em conta pelo exegeta reformado. Estes aspectos são derivados da natureza das Escrituras, como expostos na aula anterior. 2.3 Aspecto pneumológico Podemos dividir em duas etapas a obra do Espírito Santo em comunicar a verdade de Deus: Revelação, que foi o primeiro estágio, objetivo em sua natureza. Consistiu na atuação do Espírito nos autores bíblicos e no texto que produziram, de tal forma a termos o registro infalível da Palavra de Deus. 72


Hermenêutica Bíblica Iluminação, que é subjetivo, consiste na iluminação de nossa mente para compreender a verdade revelada nas Escrituras. É com este segundo estágio que nos ocuparemos aqui.A atuação iluminadora do Espírito de Deus na leitura e compreensão das Escrituras é uma dimensão frequentemente ignorada por estudiosos comprometidos com o método histórico-crítico e com seus pressupostos. Para eles, não há qualquer interferência ou participação de Deus no processo de compreensão. A exegese é um processo absolutamente mecânico, uma simples aplicação de métodos supostamente científicos. Veja o que disse o biblista católico Severino Croatto em seu livro Hermenêutica: Não existe uma hermenêutica bíblica diferente de outra filosófica, sociológica, literária e outras. Há apenas uma hermenêutica geral, da qual existem muitas expressões regionais. O método e o fenômeno coincidem em todos os casos. É verdade, contudo, que a hermenêutica bíblica tem uma característica talvez inédita por assumir textos de uma longa trajetória de criação e reelaboração, originados em um povo com um itinerário igualmente longo, unificado por uma concepção linear e teleológica da história que exige um grande trabalho interpretativo.

Esta fecundidade hermenêutica será bem assinalada no decorrer deste estudo. Para Croatto, a única diferença entre a Bíblia e outros livros é que ela é um texto antigo que tem um conceito peculiar de história. 73


Hermenêutica Bíblica 2.4 O Senhor Jesus prometeu a direção do Espírito à sua Igreja Porém, para os estudiosos comprometidos com a inspiração das Escrituras, a atuação do Espírito deve ser levada em conta, considerando a natureza da mensagem bíblica e a situação de cegueira espiritual a que o homem está sujeito (reveja o distanciamento espiritual e moral que mencionamos anteriormente).Devemos interpretar a Bíblia levando em conta o que ela diz acerca do papel do Espírito Santo no processo de interpretação. Há uma série de textos bíblicos que tratam desta relação. Nem todos foram escritos de forma direta sobre o assunto, mas nos trazem princípios gerais sobre a obra do Espírito sobre a comunicação da verdade de Deus: João 14.26. O Senhor Jesus prometeu aos apóstolos que o Espírito haveria de ensiná-los em todas as coisas e os faria lembrar tudo que Ele havia dito. O cumprimento desta promessa deu-se primariamente na pregação apostólica e na composição das Escrituras. Porém, ela tem uma aplicação ainda hoje, quando o povo de Deus lê as Escrituras buscando a iluminação do Espírito. 2.4.1 João 16.13-15 Nesta passagem o Senhor prometeu aos apóstolos que o Espírito haveria de guiá-los a toda verdade. O Senhor referiase ao conhecimento de Deus, e não a um conhecimento amplo de todas as coisas. Esta promessa cumpriu-se nos 74


Hermenêutica Bíblica escritores do Novo Testamento, que registraram de forma infalível a Palavra de Deus. E podemos contar que o Espírito hoje nos conduz a reconhecer a verdade da Palavra de Deus. 2.4.2 1 Coríntios 2.10-11,13 Nesta passagem o apóstolo Paulo refere-se à obra iluminadora do Espírito, revelando às nossas mentes a verdade da Palavra de Deus. Não se trata de uma nova revelação, mas da iluminação de nossa mente e coração, capacitando-nos a receber a revelação de Deus, que é a Bíblia. 2.4.3 2 Coríntios 3.14-16 Nesta passagem, onde mostra a superioridade da nova aliança sobre a antiga, Paulo explica que é somente pelo Espírito de Deus que existe liberdade hermenêutica para lerse o Antigo Testamento. OAT é um livro “fechado” até que o véu hermenêutico seja removido pela conversão ao Senhor Jesus. 2.4.4 1 João 2.20,27 Nestes versos, o apóstolo João fala da “unção” que vem de Deus e que nos habilita, a saber, as coisas de Deus. A maioria dos estudiosos entende que João refere-se ao Espírito Santo, em seu papel de iluminar os crentes quanto à verdade de Deus. Considerando a origem divina das Escrituras, a natureza espiritual de sua mensagem e o problema criado 75


Hermenêutica Bíblica pelo pecado no entendimento do homem, é evidente que carecemos da atuação iluminadora do Espírito de Deus para podermos entender a mensagem que Deus revelou nas Escrituras. Os textos bíblicos acima mostram isto. 2.5 Principais questões Embora haja pouca dúvida entre os estudiosos evangélicos de que o Espírito desempenha de fato um papel no processo interpretativo, a grande questão é saber exatamente qual é este papel. E nisto os evangélicos têm apresentado diversas e diferentes soluções. Entender mais claramente o papel do Espírito é importante em nosso desejo de estabelecer e usar princípios de interpretação que nos conduzam ao sentido Real dos textos bíblicos. Corremos, por um lado, o risco de exagerarmos na função do Espírito, e cairmos numa hermenêutica carismática. Por outro, podemos ignorá-la, caindo numa exegese mecânica e árida. Queremos o equilíbrio. As principais questões levantadas pelos estudiosos são estas: 1. Qual é exatamente o papel do Espírito na interpretação? Ele revela novos sentidos ao intérprete que vive uma vida de oração e comunhão com Deus? Ou apenas ilumina o entendimento para que ele possa crer naquilo que seu trabalho exegético já descobriu? 76


Hermenêutica Bíblica 2. Qual a relação entre espiritualidade e exegese? Até que ponto a minha espiritualidade influencia a minha exegese? A minha vida de oração tem a ver com a eficácia da minha interpretação? 2.6 Principais respostas Os estudiosos têm dado diversos e diferentes respostas a estas questões. Vejamos algumas das mais importantes: 2.6.1 John Stott Este conhecido estudioso afirma que somente o Espírito de Deus pode interpretar o livro de Deus, visto que é seu próprio autor. Os autores bíblicos falaram movidos pelo Espírito (2Pe 1.21); consequentemente, sendo o autor último da Bíblia, o Espírito pode nos levar ao sentido do que fez escrever. Stott descreve que tipo de pessoa o Espírito ilumina (The Interpretation of the Bible, pp. 157-9): • O regenerado ou nascido de novo (Jo 3.3; 1 Cor 2.14); • O humilde (Mt 11.25-26); • O obediente (Jo 7.17); • O comunicativo (?) Esta posição sugere que sem a iluminação do Espírito ninguém pode entender a sua mensagem. Aos crentes humildes, obedientes e comunicativos, Deus concede o verdadeiro sentido das Escrituras. 77


Hermenêutica Bíblica 2.6.2 Moisés Silva Ele defende no artigo “A Função do Espírito da Interpretação Bíblica” que nossa espiritualidade não tem qualquer influência na precisão da exegese bíblica. Reagindo contra a ideia de que pessoas cheias do Espírito irão ter uma exegese mais exata do texto do que outras que não são tão espirituais,Silva argumenta que em sua maior parte a exegese consiste na aplicação metodológica de regras de interpretação, conhecimento da gramática e da sintaxe, conhecimento da cultura e da história – coisas que independem do estado espiritual de quem faz a exegese. Ele sugere que pessoas descrentes, mas preparadas hermeneuticamente farão uma exegese melhor do que crentes piedosos sem preparo algum. A ação do Espírito fará diferença apenas quanto à aplicação dos resultados da interpretação. Sem negar a atuação do Espírito na vida do exegeta crente, Silva defende, entretanto que o resultado da exegese depende mais da nossa capacidade como intérpretes do que de algum ato miraculoso de revelação do Espírito. 2.6.3 Daniel B. Wallace Ele argumenta que o papel do Espírito é produzir convicção da verdade, mais do que dar conhecimento dela. O Espírito dá testemunho da verdade quando alguém abre as Escrituras e começa a ler. Wallace entende o papel do Espírito em termos do que Paulo chama de “testemunho do Espírito ao nosso espírito” (Rm 8.16), e que Calvino chamou de “o 78


Hermenêutica Bíblica testemunho interno do Espírito”. É aquela persuasão interna operada pelo Espírito, convencendo-nos da verdade. Wallace entende que é isto que o Espírito faz. Ele não dá conhecimentos novos, nem novas revelações, mas simplesmente testifica conosco de que estamos diante da verdade. Considerando que existem muitas divergência entre cristãos sinceros e piedosos quanto a determinados pontos das Escrituras, Wallace sugere que o Espírito só dá testemunho dos pontos centrais da Escritura. Por este motivo, os cristãos se dividem quanto a pontos secundários, pois não há testemunho do Espírito quanto a eles. A dificuldade com a posição de Wallace é que ela introduz uma distinção entre doutrinas centrais e secundárias que variará de acordo com a tradição e as convicções de alguém. Por exemplo, na lista de Wallace constam como doutrinas secundárias o papel da mulher na liderança, a doutrina da inerência da Bíblia, o tempo que Deus levou para criar o mundo e os dons espirituais. Nem todos concordariam com a lista de Wallace. 2.7 Tentando achar um caminho Apesar das divergências quanto ao modo e intensidade da atuação do Espírito na interpretação, penso que podemos fazer algumas afirmações em busca de um caminho que leve em consideração as principais preocupações dos diferentes posicionamentos quanto ao assunto;

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Hermenêutica Bíblica 1. É necessário orar e labutar (o lema de Calvino) para entendermos corretamente as Escrituras: orar por iluminação do Espírito e labutar estudando as Escrituras, usando todos os recursos disponíveis. 2. Quanto mais alguém entristece o Espírito de Deus, desobedecendo as Escrituras e diminuindo o respeito por sua autoridade, mais e mais tenderá a torcer o texto (2 Pe 3.1516). 3. Os que creem que o Espírito de Deus intervém de forma direta no mundo estarão em melhor condição de interpretar os relatos bíblicos sobre profecias e milagres. Os incrédulos tenderão a interpretar estas passagens como vaticinia ex eventu6 e mitológicas, perdendo de vista a intenção do texto. 4. O objetivo da exegese não é somente adquirir conhecimento, mas sermos transformados pelo poder do Espírito, através da Palavra. Assim, devemos ler as Escrituras abertos para sermos transformados pelo Espírito (2 Co 3.18). 5. Não devemos pressupor que nossa exegese será correta se simplesmente oramos e somos espirituais. O castigo para a preguiça e falta de estudo sério será uma exegese forçada e superficial. O Espírito de Deus não me transmitirá miraculosamente conhecimentos que eu posso adquirir estudando.

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Expressão latina que significa “previsões do resultado”. Indica “predizer” após o evento ter ocorrido.

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Hermenêutica Bíblica 2.8 Aspecto Teológico Outro importante aspecto dentro dos princípios de interpretação da Bíblia é a influência dos pressupostos, da experiência e de outros fatores inconscientes na leitura do texto sagrado, especialmente daquilo que cremos em relação a Deus e às Escrituras. 2.9 Determinismo na interpretação? Alguns grupos utilizam-se de forma inadequada da influência do contexto social e outros na leitura da Bíblia, ao ponto de fazerem da Bíblia um apoio para sua ideologia. Afirmam que uma leitura da Bíblia feita pelos pobres e oprimidos da América Latina será essencialmente diferente daquela feita por brancos americanos de classe média. Embora possamos concordar que o contexto social e o ambiente vivencial do leitor possibilitem a descoberta de aspectos e nuanças da mensagem da Bíblia, penso que é ir longe demais afirmar que pobres e ricos jamais poderão concordar em sua leitura das Escrituras, a não ser que o rico faça uma opção pelos pobres e que os pobres se engajem na práxis política de libertação social. Este “determinismo” do ambiente social nos rouba da validade na interpretação da Palavra de Deus. 2.10 Conceitos gerais As afirmações abaixo têm como alvo abordar alguns pontos essenciais deste aspecto da interpretação:

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Hermenêutica Bíblica Não existe interpretação “neutra” – Os estudiosos racionalistas, entusiasmados com o pretenso poder da razão para alcançar a verdade através da análise lógica, condenaram qualquer atitude ou convicção anterior à investigação, que pudesse já condicionar o resultado da mesma. Neste sentido, insistiram em deixar de fora da exegese “científica” da Bíblia ideias pré-concebidas sobre ela, como a sua inspiração e infalibilidade. O que não quiseram ver na época foi que simplesmente substituíram pressupostos teológicos por filosóficos, como a concepção do universo como sendo um sistema fechado de causa e efeito e uma concepção dialética (hegeliana) da história. 2.11 O papel dos pressupostos teológicos sempre foi destacado pela Igreja Em nossos dias, depois da obra de Schleiermacher, Gadamer, Saussure, Bultmann e Derrida, vemos um abandono gradual da utopia racionalista e uma nova apreciação pelo envolvimento do intérprete na exegese. Pode parecer a alguns que seja uma conquista da hermenêutica pósmoderna. Mas, na verdade, a Igreja reformada sempre ensinou que sem fé e sem o auxílio do Espírito não se pode entender a Bíblia corretamente. 2.12 A natureza da revelação e do entendimento garantem a validade na interpretação Muito embora nossos pressupostos teológicos formem perspectivas dentro das quais o conhecimento da verdade 82


Hermenêutica Bíblica revelada se faz possível, isto não torna viciados os resultados da nossa investigação, ao ponto de se relativizar irremediavelmente toda interpretação. Na verdade, os pressupostos teológicos corretos acerca de Deus e da Escritura nos colocam numa posição de melhor entender a sua mensagem. É isto que faz com que cristãos do mundo todo, com diferentes horizontes de compreensão, vindos de diferentes culturas e que passaram por diferentes experiências, consigam interpretar a Bíblia da mesma forma, ao ponto de chegarem aos mesmos resultados (adaptados e acomodados à sua linguagem e cultura): Cristo morreu pelos nossos pecados, ressuscitou literalmente de entre os mortos, está a direita de Deus e virá para julgar os vivos e os mortos. 2.13 Pressupostos universais Não devemos exagerar a influência dos pressupostos ao ponto de relativizar completamente a interpretação. Lembremos que entre os pressupostos de cada leitor estão alguns que são comuns a todo ser humano: sua humanidade básica, o funcionamento padrão do cérebro humano, o sistema estrutural universal da linguagem, a universalidade das experiências e emoções humanas, e especialmente o Deus imutável, que se revela aos homens pela natureza, pela consciência e pela Palavra. 2.14 É essencial o uso correto do círculo hermenêutico “Círculo hermenêutico” refere-se à interação entre o texto e o leitor. O leitor se aproxima do texto trazendo seu horizonte 83


Hermenêutica Bíblica de compreensão e lê o texto dentro dos limites deste horizonte. O texto, em troca, desafia o leitor a rever criticamente seus pressupostos e mudá-los. Após estas mudanças, o leitor novamente aproxima-se do texto, com seu horizonte agora mais definido pelo próprio texto. E aí fechase o círculo. Já que pressupostos são inevitáveis, bem como o círculo hermenêutico, devemos estar constantemente revendo estes pressupostos à luz do texto, deixando que a Palavra de Deus nos transforme. O problema não são os pressupostos, mas pressupostos incompatíveis com a natureza do texto bíblico. O problema com os exegetas histórico-críticos é que não se deixam desafiar nem transformar pela Bíblia. 2.15 Pressupostos reformados Na tabela a seguir mencionamos alguns dos principais pressupostos teológicos que nos dão perspectivas dentro das quais podemos interpretar as Escrituras com competência: 2.15.1 A existência de Deus Deus existe e atua na história. Milagres e profecia são possíveis. Portanto, podemos interpretar os relatos da atividade sobrenatural de Deus como história e não mito. Nada impede que o Cristo da fé tenha sido o mesmo Jesus da história.

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Hermenêutica Bíblica 2.15.2 Revelação progressiva Deus se revelou progressivamente. A revelação não foi dada de uma única vez, da mesma forma, numa mesma época e às mesmas pessoas. Portanto, devo ler o texto bíblico comparando as suas diferentes partes, considerando que as mesmas têm uma unidade básica, mas que existe desenvolvimento dentro delas. 2.15.3 Inspiração e autoridade Os escritores bíblicos foram movidos pelo Espírito, de tal forma que seus escritos são inspirados por Deus. Portanto, são autoritativos e infalíveis. Devemos interpretar suas partes difíceis sem recorrer a soluções que impliquem na presença de erros, contradições ou inverdades nelas. 2.15.4 História da redenção A Bíblia deve ser lida como o registro dos atos redentores de Deus na história. Estes atos foram interpretados e registrados por escritores inspirados por Deus. Portanto, a Bíblia deve ser lida não como um manual de ciências, astronomia, geografia ou física, mas como um livro teológico. 2.15.5 Cristo Devemos ler a Bíblia sabendo antecipadamente que Cristo é a substância de todos os tipos e símbolos do AT, do pacto da graça e de todas as promessas. Que os sacramentos, 85


Hermenêutica Bíblica genealogias e cronologias da Escritura nos mostram as épocas e tempos de Cristo. Cristo, portanto, é a própria substância, centro, escopo e alma das Escrituras. 2.15.6 Cânon O cânon protestante das Escrituras é a coleção feita pela Igreja de livros que ela reconheceu que foram dados pela inspiração de Deus. Cada livro deve ser lido e entendido dentro deste contexto canônico, que é o contexto apropriado para a interpretação. Podemos usar material extra-bíblico para esclarecer determinadas passagens, mas os limites do cânon determinam o horizonte da exegese. CONCLUSÃO Os distanciamentos devem ser levados em conta pelo estudante da Bíblia, sempre. Eles incidem diretamente na correta compreensão da mensagem bíblica. É um assunto sério, que requer bastante atenção. A existência dos distanciamentos não deve ser encarada como motivo de desestímulo ao estudo da Bíblia. Eles apenas apontam para o fato de que a Bíblia deve ser pesquisada respeitando-se determinados fatores e contextos, distantes de nós. Desconsiderar essa verdade pode conduzir à uma espécie de “anacronismo hermenêutico”, que nos distancia do sentido original do texto bíblico.

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Hermenêutica Bíblica

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Hermenêutica Bíblica

Exercícios do capítulo 3 Responda as questões abaixo, de maneira bem sintetizada. 1.

Qual a importância do estudo sério das Escrituras? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

2.

O que é distanciamento em Hermenêutica? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

3.

O que é o distanciamento contextual? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

4.

O que é o distanciamento cultural? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

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Hermenêutica Bíblica 5.

Podemos explicar todas as partes da Bíblia em termos absolutamente satisfatórios? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

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Hermenêutica Bíblica

4 Métodos de estudo da Bíblia “Quem quiser ser um bom teólogo deve curvarse diante da autoridade das Escrituras, reconhecidas como autoridade da parte de Deus, e isso envolve aprender e esforçar-se a fazer quatro coisas: captar sua mensagem, entronizar as suas doutrinas, aplicar a sua sabedoria e compartilhar as suas verdades” (J. I. Packer).7

INTRODUÇÃO

C

hegamos agora no ponto em que vamos conhecer aqueles que são considerados os principais métodos de estudo da Bíblia. Quando se fala de estudo bíblico por métodos, estamos falando automaticamente de um estudo que deverá ser sistemático e metódico, isto é, continuado, constante e com ordem. Muitos cristãos, talvez a maioria, sequer sabem que existam métodos de estudo da Bíblia. Daí fazerem um mau aproveitamento do que a Bíblia oferece a nós.

7

PACKER, J. I. A teologia e a leitura da Bíblia in: DYCK, Elmer. (ed.). Hermenêutica: uma abordagem multidisciplinar da leitura bíblica. Trad.: Gordon Chown. São Paulo: Shedd Publicações, 2012, p. 81.

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Hermenêutica Bíblica Estes métodos de estudo da Bíblia têm por objetivo facilitar o aprendizado e a assimilação das doutrinas contidas na Bíblia, dos relatos históricos, etc. Eles abrangem a Bíblia na sua totalidade, isto é, podem ser usados para estudar a Bíblia em toda a sua extensão e com objetivos variados. Toda a Bíblia pode ser alcançada no estudo bíblico por métodos. Quando dizemos aqui que “toda a Bíblia pode ser alcançada” não estamos com isso afirmando que podemos esgotar a Bíblia, pois reconhecemos que, em verdade, a Bíblia, como Palavra de Deus, é infinita, inesgotável, ilimitada! O que queremos dizer com isso é que podemos alcançar todos os seus livros e todas as áreas que ela nos oferece em todo o conjunto dos seus 66 livros: doutrinas, histórias, profecia e assim por diante. O cristão deve cuidar para dar lugar ao estudo cuidadoso das Escrituras. Os cristãos evangélicos, herdeiros da Reforma Protestante, acreditamos que o acesso pessoal às Escrituras é um direito e uma bênção, além de ser uma atividade extremamente saudável ao cristão. Mas deve ser feito com cuidado. O estudo da Bíblia por métodos contribui nesta aspecto também, fazendo com que o crente não lei a Bíblia de forma “solta”, descomprometida com sua proposta geral, mas antes, seguindo critérios e trilhando assim “caminhos” que possibilitem à ele melhor assimilar a mensagem da Palavra de Deus.

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Hermenêutica Bíblica 1. A IMPORTÂNCIA DOS MÉTODOS APLICADOS AO ESTUDO DA BÍBLIA A palavra “método” é amplamente utilizada nas diversas ciências. Para exemplificar: na interpretação da Bíblia nos deparamos com dois grandes métodos: o HistóricoGramatical e o Histórico-Crítico. O Dicionário Aurélio define o termo “método” da seguinte maneira: “Procedimento organizado que conduz a um certo resultado [...] Modo de agir, de proceder [...] Regularidade e coerência na ação”.8 Etimologicamente, “método” tem origem no grego methodos, uma palavra composta de meta (“através de”) e hodos (“via, caminho”). Assim, o termo método pode ser entendido como um caminho para se chegar a um objetivo. Aplicado ao contexto do nosso estudo, “método” então indica o caminho a ser trilhado para se chegar ao melhor entendimento do texto bíblico, o melhor aproveitamento e conseguinte aplicação prática na vida. Cada um desses métodos de estudo da Bíblia tem o seu valor e dá a sua contribuição específica para o estudante da Bíblia, por isso deve o estudante da Palavra de Deus conhecer os principais métodos de estudo bíblicos e aplicá-los em seu contato com as Sagradas Escrituras. Aqui, contudo, são muito pertinentes as palavras do exegeta Antonio Renato Gusso:

8

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2007, p. 336.

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Hermenêutica Bíblica Essa liberdade [de estudar individualmente a Bíblia], contudo, não nos dá o direito de interpretá-la da maneira que quisermos ou que mais nos agrade. Como não queremos ver a Bíblia sendo usada para este ou aquele interesse, nós também não podemos usá-la conforme nossos interesses. Havemos de ter, constantemente, em nosso pensamento, ao nos aproximarmos do Livro de Deus para interpretá-lo, a verdade clara de que se trata de algo mais do que simples literatura antiga; ela é, para nós, a Mensagem de Deus entregue ao seu povo.9

O presente trabalho, evidentemente, concorda com Gusso neste aspecto. A Bíblia, conquanto demande estudo cuidadoso, deve ser recebida como mensagem de Deus, isto é, como Palavra de Deus inspirada, inerrante e perfeitamente aplicável para a Igreja em sua coletividade e para o cristão individualmente (cf. 2 Tm 3.16,17). Assim, não se trata de um estudo que não envolva um engajamento pessoal. Pelo contrário: o estudo da Bíblia deve produzir, antes de mais nada, resultados concretos na vida de quem a estuda. 2. OS MÉTODOS DE ESTUDO DA BÍBLIA Consideremos a seguir os métodos de estudo da Bíblia e as contribuições que cada um deles traz. Importante ressaltar que todos eles podem e devem ser usados, visto que sua

9

GUSSO, Antonio Renato. Como entender a Bíblia: orientações práticas para a interpretação correta das Escrituras Sagradas. Curitiba: AD Santos Editora, 1998, pp. 1,2, grifo nosso.

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Hermenêutica Bíblica operacionalidade, bem como os objetivos de cada um, diferem de um para outro. 2.1 O método sintético A palavra “sintético” vem de “síntese”. Uma síntese nada mais é do que um “resumo”. O estudo sintético da Bíblia irá apresentá-la ao estudante numa visão panorâmica, em que não se enxerga os detalhes (isso se conhecerá depois), mas se tem uma noção geral da Bíblia Sagrada. Ao se aplicar o método sintético no estudo dos livros da Bíblia, procura-se uma noção geral de cada livro, considerando autoria, as principais divisões do livro em estudo, o objetivo geral do livro em análise e assim por diante. Não se preocupa primeiro com a interpretação do livro, mas com a totalidade do livro. O método sintético é um estudo amplo e global de um livro da Bíblia, considerando o que toda a divina revelação fala sobre ele. Valtencir Alves anota que: O método sintético de estudo bíblico aborda cada livro da Bíblia como unidade, e procura entender o seu sentido como um todo. Não se interessa pelos pormenores, mas pelo escopo global do livro. Com o método analítico analisamos o texto através de um microscópio. Com o método sintético, analisamos o texto através de um telescópio. O que o escritor, movido pelo Espírito Santo, tinha em mente quando escreveu? Qual é o pensamento chave e a ideia principal do

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Hermenêutica Bíblica livro? Como atinge ele o seu objetivo? São desta espécie as questões relevantes para o método sintético10.

O mesmo autor acentua ainda oito regras para o estudo através do método sintético: 1. Leia o livro ou a carta atentamente e sem interrupções. 2. Leia pela segunda vez, anotando as observações. 3. Descubra a autoria, a data em que foi escrito, onde foi escrito, para quem foi escrito e por quem foi escrito. 4. Veja o pano de fundo, em que circunstâncias a carta ou livro foi escrito. 5. Qual era o objetivo da carta? 6. Qual era o momento histórico? 7. Descreva a visão panorâmica. 8. Faça um esboço. 2.2 O método analítico A palavra “analítico” vem de “análise” e significa “que procede por análise”. De fato, o método analítico de estudo da Bíblia procede por análise, isto é, por uma investigação mais acurada do texto bíblico, procurando assim os detalhes que compõe o livro ou a seção que se está estudando. Mais uma vez cito Valtencir Alves: Trata-se do exame cuidadoso do capítulo ou passagem bíblica em foco. Analisar a Bíblia é estudar o objeto do 10

ALVES, Valtencir. Método sintético de estudo da Bíblia. Disponível em: <doutorhermeneutica.blogspot.com.br/2009/07/metodo-sintetico-de-estudoda-biblia.html> Acesso em 07/06/12.

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Hermenêutica Bíblica capítulo ou passagem bíblica em seus pormenores, tendo o cuidado de anotar até os mais minúsculos aspectos, é este o objetivo do estudo analítico da Bíblia. Com ele procuramos examinar cuidadosa e completamente uma passagem bíblica. O propósito é compreender o que o hagiógrafo tinha em mente quando escreveu àqueles a quem se dirigia. Na abordagem analítica se estuda o conteúdo de cada livro. O estudo analítico da Bíblia é o momento exaustivo do estudo da santa Palavra de Deus. É fundamental para o completo conhecimento da Palavra de Deus, permitindo ao discente deparar-se com o porquê o escritor disse o que disse do modo como disse. O objetivo deste método é reconstruir tão claramente quanto possível o pensamento original do autor. Este método examina tudo como por um microscópio. Usando a ilustração de uma biblioteca, na abordagem analítica você estuda o conteúdo de cada livro.

Regras para o método analítico 1. Leia a passagem cuidadosamente (03 vezes). 2. Bombardeia a passagem com perguntas como: Quem? Quê? Onde? Quando? Por quê? Como? 3. Anote as palavras chave. 4. Escreva o que não compreende acerca do texto e especifique. 5. Descubra o pensamento-chave de cada versículo. 6. Delimite os assuntos que o pensamento chave esta expressando. 7. Faça um sumário destes assuntos. 8. Descubra a ideia eixo dos resultados acima. 9. Destile esta ideia em uma sentença. 96


Hermenêutica Bíblica 10. Dê um título para o texto.11 2.3 O método temático Este é o método de estudo bíblico que “persegue” os assuntos contidos na Bíblia. Como o próprio nome sugere, este método se preocupa com os “temas” apresentados pelas Escrituras. O primeiro passo a ser dado no uso deste método, evidentemente, é ter um tema em mente. A seguir o estudante deverá procurar o máximo possível de referências bíblicas relacionadas ao tema que se está estudando. Tomemos como exemplo um assunto teológico – escatologia, a doutrina das últimas coisas – o estudante logo haverá de constatar que este tema que é inerentemente profético, chega a ocupar livros inteiros da Bíblia, como Daniel e Apocalipse e também capítulos inteiros, como Mateus 24, Marcos 13 e Ezequiel 37, como também capítulos quase inteiros, como Lucas 21 e 1 Tessalonicenses 4 e 5. Nesse método, usa-se muito a referenciação bíblica, relacionando os textos e permitindo que a Bíblia explique a si mesma. O tema vai sendo “construído” aos poucos com aquilo que a Bíblia já te antemão revela ao leitor sobre aquele determinado assunto. 2.4 O método biográfico Este método, como depreendemos do próprio nome, analisa os personagens bíblicos, isto é, as biografias contidas nas Sagradas Escrituras. Muito temos a aprender com os grandes homens e mulheres de Deus da Bíblia. O método biográfico 11

ALVES, Valtencir. Método analítico de estudo da Bíblia. Disponível em: <doutorhermeneutica.blogspot.com.br/search/label/M%C3%A9todos>Acesso em 07 jun. 2012.

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Hermenêutica Bíblica explora os acertos e também os erros desses personagens do passado. Nas palavras de Paulo, “Pois tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4). Utilizando este método, o hermeneuta haverá de considerar algumas informações fundamentais pertinentes ao personagem que se está estudando: 1) Sua origem (ambiente em que vivia, cultura, o tempo, etc.) 2) Sua família 3) Seu chamado vocacional por Deus (por exemplo, Abraão – At 7.4 e Gn 12.1-3) 4) Sua trajetória de vida com Deus 5) Suas andanças 6) Seu perfil pessoal 7) Suas atitudes que agradaram a Deus (por exemplo, Gideão, quando o Senhor lhe diz: “O Senhor é contigo, homem valente” [Jz 6.12] – afinal, porque o Senhor fez essa afirmação à ele?) 8) Seus fracassos pessoais (por exemplo, Davi, em seu fracasso com Bate-Seba, num relacionamento adúltero e depois no assassinato de Urias, esposo de BateSeba). 2.5 Método Indutivo Examinam-se os pormenores da Palavra, para serem tiradas conclusões, e formarem-se ideias. Aqui é preciso ter muito 98


Hermenêutica Bíblica cuidado com a eisegese. A eisegese consiste no ato do leitor ir para a Bíblia com as suas próprias conclusões já préconcebidas e procurar na Palavra de Deus apoio para suas próprias conclusões. O teólogo Esdras Costa Bentho explica melhor: Enquanto a exegese consiste em extrair o significado de um texto qualquer, mediante legítimos métodos de interpretação, a eisegese consiste em injetar em um texto, alguma coisa que o intérprete quer que esteja ali, mas que na verdade não faz parte do mesmo. Em última instância, quem usa a eisegese força o texto mediante várias manipulações, fazendo com que uma passagem diga o que não se acha lá [...]Formas pelas quais o intérprete pratica a eisegese:1) quando força o texto a dizer o que não diz [...] 2) Quando ignora o contexto, sob pretexto ideológico [...] 3) Quando ignora a mensagem e o propósito principal do livro [...] 4) Quando não esclarece um texto à luz de outro [...] 5) Quando põe a “revelação” acima da mensagem revelada [...] 6) Quando está comprometido com um sistema ou ideologia”12.

A ilustração a seguir ajuda-nos a compreender como funciona o método indutivo de estudo das Sagradas Escrituras.

12

BENTHO, Esdras Costa. Hermenêutica Fácil e Descomplicada. 3ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2005, pp.68-71

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Hermenêutica Bíblica

2.6 Método dedutivo O estudante aproxima-se do texto bíblico com ideias e conceitos formados de antemão, e procura nele apoio para essas ideias. O estudante começa a partir de uma ideia e procura apoio para ela na Palavra de Deus. Este método é legítimo desde que seja feito em constante comparação com o que a Bíblia diz e que não fira a correta exegese do texto bíblico. É importante ressaltar que o estudo dedutivo da Bíblia precisa ser acompanhado do estudo indutivo – os dois se complementam no trabalho hermenêutico.

100


Hermenêutica Bíblica CONCLUSÃO Procure sempre se apropriar no estudo das Sagradas Escrituras dos métodos de estudo bíblicos. Eles são como “ferramentas” que o hermeneuta tem à sua disposição para conhecer mais profundamente a Palavra de Deus com as sua nuances. Procure inclusive combinar os métodos, o que é perfeitamente possível e adequado para se extrair o máximo possível das riquezas que a Bíblia nos oferece.

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Hermenêutica Bíblica

Exercícios do capítulo 4 Responda as questões abaixo, de maneira bem sintetizada. 1.

O que significa a palavra “método”? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

2.

Em que consiste o método sintético de estudo da Bíblia? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

3.

Em que consiste o método analítico de estudo bíblico? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

4.

Em que consiste o método indutivo de estudo da Bíblia? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ 102


Hermenêutica Bíblica 5.

Em que consiste o método dedutivo de estudo da Bíblia? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

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Hermenêutica Bíblica

5 Escolas de interpretação da Bíblia13 “A Bíblia, como qualquer outro livro, possui linguagem própria de um livro cujo autor queria que as coisas nele escritas fossem compreendidas pelos seus leitores. Por isso, o Espírito Santo, ao inspirar as Escrituras, usou a linguagem, o vocabulário e o gênero literário próprio à época de cada escritor que a escreveu” (Raimundo Ferreira de Oliveira).

INTRODUÇÃO

N

este capítulo, vamos conhecer algumas das principais escolas de interpretação bíblica, isto é, escolas hermenêuticas que existiram no transcorrer da História Cristã. A questão da interpretação bíblica sempre foi algo muito presente na Igreja e prova disto se vê na existência destas várias escolas. É fundamental que o hermeneuta considere estas escolas com suas respectivas abordagens interpretativas da Bíblia a fim de poder manterse equilibrado neste trabalho árduo, que é a correta 13

O texto deste capítulo foi gentilmente cedido pelo Rev. Dr. Augustus Nicodemus. Disponível em: <http://www.monergismo.com/textos/hermeneuticas/he_augu1.pdf>. Acesso em 04 jul. 2016.

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Hermenêutica Bíblica interpretação da Bíblia. No texto a seguir, de autoria do Reverendo Augustus Nicodemus Lopes, temos esboçadas as principais escolas de interpretação; vejamos: 1. HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO CRISTÃ DA BÍBLIA A interpretação da Bíblia no período Pós-apostólico Após a morte dos apóstolos, inicia-se a chamada era pósapostólica, que vai do século II até o século IV, época dos grandes concílios ecumênicos na Igreja. No período pósapostólico, a Igreja de Cristo era liderada por pastores e bispos que vieram a exercer considerável influência sobre a Cristandade daquela época. São os chamados “Pais da Igreja”. É uma época de intensos debates teológicos sobre questões doutrinárias vitais para a sobrevivência da Igreja. Os Pais da Igreja procuravam entender qual a verdade de Deus examinando as Escrituras. Debates vigorosos acontecem quanto ao sentido exato das palavras dos apóstolos e profetas. Uma das questões hermenêuticas centrais era como a Igreja Cristã poderia interpretar as profecias, instituições, personagens e eventos do Antigo Testamento de forma a refletir a Cristo. Duas linhas nítidas e diferentes de interpretação surgem nessa época. A primeira, mais alegórica, está relacionada com a cidade de Alexandria. A outra, que surge depois em Antioquia em reação à primeira, é mais voltada para o sentido literal do texto bíblico. Os problemas que enfrentaram de certa forma anteciparam as questões de 105


Hermenêutica Bíblica interpretação que a Igreja iria encarar através da sua história, até o dia de hoje. A seguir, abordaremos a interpretação alegórica de Alexandria. 2. A ESCOLA DE ALEXANDRIA (EGITO) 2.1 Raízes históricas O sistema interpretativo que veio a associar-se com a cidade de Alexandria tem suas raízes históricas nas ideias de dois importantes filósofos gregos. O primeiro é Heráclito (Éfeso, 540?-475?). Ele estabeleceu o conceito de huponóia, ou sentido mais profundo, como uma nova abordagem às obras de Homero (A Ilíada e a Odisséia). Nessas obras, os deuses gregos são descritos cometendo traição, imoralidades, vingança, mentindo e praticando outros vícios. Para fugir das implicações óbvias de se interpretar literalmente o que Homero escreveu acerca dos deuses, Heráclito sugeriu que o verdadeiro sentido estava além das palavras (huponóia). Os escritos de Homero não eram para ser entendidos literalmente, como estavam escritos, mas como apontando para conceitos mais profundos, além da letra. Assim ele salvou os deuses da acusação de “imorais”... O segundo é Platão (Atenas, 427? - 347?). Ele formou o conceito de que o mundo em que vivemos é apenas uma representação do que existe no mundo perfeito das realidades imateriais, o “mundo das ideias”. Uma cadeira, por exemplo, é apenas o reflexo da cadeira perfeita que existe nesse mundo ideal. Conceitos e verdades espirituais, 106


Hermenêutica Bíblica próprios do “mundo das ideias”, são representados por alegorias. O conceito de que a verdade se encontra alegoricamente oculta além da letra e da realidade visível, como haviam ensinado Heráclito e Platão, influenciou mais tarde um judeu de Alexandria, chamado Filo (também chamado de Filo Judeu, viveu entre 20 AC e 50 DC). Filo tinha uma formação judaica e era leal às instituições e costumes de seu povo. Era um estudioso das Escrituras do Antigo Testamento traduzidas para o grego (A Septuaginta). Tinha também uma formação filosófica, especialmente no platonismo. Moisés e Platão eram os dois heróis de Filo. Ele dedicou sua vida a reconciliar o ensino de Moisés nas Escrituras com as ideias de Platão. O método que ele empregou para isso foi a alegorese. Esse termo vem da palavra grega “alegoria”, que significa dizer uma coisa em termos de outra. Filo escreveu diversas obras e comentários sobre a Lei de Moisés interpretando as Escrituras alegoricamente, em termos das ideias, virtudes e moralidade do platonismo. Eis alguns exemplos da interpretação de Filo em seus comentários sobre Gênesis: A criação do jardim do Éden (Gn 2.8-14) - O rio Gion (2.13) significa “coragem” e circunda a terra de Cuxe, que significa “humilhação”; o sentido alegórico é que a coragem dá demonstrações de bravura diante da covardia. Já o rio Tigre (2.14) significa temperança, pois como um tigre, resiste resolutamente ao desejo. Eufrates (2.14) não se refere ao rio. O sentido alegórico é justiça. O rio Pisom (2.11) significa “mudança na boca” e Havilá 107


Hermenêutica Bíblica “tagarelar”, que Filo interpreta como significando “insensatez”. A interpretação alegórica da passagem é que a insensatez é destruída pela “mudança na boca”, que é o falar com prudência! A criação e queda do homem (Gn 2-3) - Filo considera fábula a narrativa da criação da mulher da costela de Adão, após o mesmo haver adormecido. Ele rejeita a interpretação literal da passagem. O sentido verdadeiro é que Deus tomou o poder dos sentidos externos (Eva) e o conduziu à mente (Adão). Esse poder é sempre ameaçado pelo prazer (a serpente). A promessa messiânica, “Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (3.15) é interpretada como Deus dizendo ao prazer (serpente) que a mente (o homem) vai vigiá-la e que em troca, o prazer (serpente) vai atacar a mente (homem) oferecendo os prazeres mais básicos (morder o calcanhar)! 2.2 Surgimento da Escola Catequética de Alexandria Quando o Evangelho alcançou Alexandria, muitos se tornaram cristãos. Uma forte comunidade floresceu rapidamente naquela cidade. Um dos líderes foi Barnabé (150? AD) que ficou conhecido por ter escrito a Carta de Barnabé, onde interpreta alegoricamente o Antigo Testamento seguindo os métodos de Filo. O exemplo mais famoso da carta é a interpretação que ele faz de Gênesis 14.14 (onde se mencionam os 318 homens de Abraão) para provar que Abraão sabia não somente o nome de Cristo, mas até que 108


Hermenêutica Bíblica ele haveria de morrer na cruz: Barnabé 9.6: “Portanto, filhos do amor, aprendam abundantemente a respeito de Abraão. Ele, que primeiro estabeleceu a circuncisão, olhava em espírito para Jesus, quando circuncidou a sua casa. Pois a Escritura diz “Abraão circuncidou 318 homens da sua casa” [“Ouvindo Abrão que seu sobrinho estava preso, fez sair trezentos e dezoito homens dos mais capazes, nascidos em sua casa, e os perseguiu até Dã”, Gn 14.14]. Que conhecimento lhe foi dado naquela ocasião? Compreendam: Ele [Deus] disse primeiro 18 e depois do intervalo, 300. Nos 18, o número 10 equivale a “I” (no alfabeto grego) e 8 a “H”. Aqui tu tens JESUS (IHSOYS). 300 equivale a “T” e aqui tens a cruz. Então, Ele [Deus] revelou Jesus nas duas letras e a cruz na última”. Barnabé entendia que “318” dizia outra coisa que não um número fixo. Para ele, era uma referência proposital que Deus havia feito a Abraão acerca de Jesus, e que só poderia ter sido decifrada “espiritualmente”, interpretando-se a passagem alegoricamente. Um outro líder foi Pantenus. Inicialmente um filósofo estóico, Pantenus converteu-se e fundou uma escola cristã catequética em Alexandria no século II. O sistema utilizado na escola para interpretar a Bíblia era alegórico. 2.3 Principais representantes da Escola de Alexandria Um dos convertidos de Pantenus foi Clemente de Alexandria (150-215 AD), de quem alguns escritos foram preservados. Clemente substituiu Pantenus na direção da escola em 180 AD. Ele foi um dos primeiros a lidar seriamente com 109


Hermenêutica Bíblica questões de interpretação bíblica. Usava a interpretação alegórica característica da escola para descobrir o sentido oculto das passagens bíblicas e para harmonizar os dois Testamentos. Para ele, a alegoria revelava a verdade ao verdadeiro discípulo mas a escondia dos outros. Ele insistia especialmente que o objetivo de Deus em revelar-se alegoricamente era ocultar a verdade dos incrédulos em geral e descortiná-la apenas para os espirituais. Clemente interpretava a parábola do filho pródigo alegoricamente, atribuindo a cada detalhe da parábola (por exemplo, o anel, o manto, as sandálias, etc.) um significado espiritual. Origines (185-253 AD) é a mais importante figura nesse período. Era um estudioso muito respeitado, muito capaz e provavelmente o mais erudito de sua época. Sua abordagem da Escritura pode se resumir em alguns pontos essenciais: A melhor maneira de se entender a Bíblia é através da perspectiva platônica. Nesse sentido, Origines é um verdadeiro discípulo de Filo de Alexandria. A Bíblia contém segredos que somente a mente espiritual pode compreender. O sentido literal é valioso, mas algumas vezes obscurece o sentido primário, que é o espiritual. O literal é para iniciantes, mas o espiritual é para os maduros na fé. Se Deus é o autor da Bíblia, ela deve ter um sentido mais profundo. A interpretação literal é própria dos judeus e não dos cristãos. A esses foi revelado o sentido mais profundo das Escrituras, que havia sido ocultado dos judeus incrédulos. 110


Hermenêutica Bíblica Há três níveis de sentido nas Escrituras, correspondentes às três dimensões da personalidade humana: 1) Carne – a interpretação literal e óbvia corresponde à carne ou ao corpo humano, que é visível e evidente a todos que o vêem. Esse tipo de interpretação é para os indoutos. 2) Alma – aqueles que já fizeram algum progresso na vida cristã começam a discernir sentidos mais além do óbvio. 3) Espírito – a interpretação alegórica, própria dos que são espirituais. Alguns exemplos de sua interpretação das Escrituras: Rebeca vem tirar água do poço e encontra os servos de Abraão (Gn 24.15-17) - significa que diariamente devemos vir aos poços da Escritura para ali nos encontrarmos com Cristo. Faraó mandando matar os meninos e preservando as meninas hebréias (Ex 1.15-16) - os meninos significam o espírito intelectual e sentidos racionais enquanto que as meninas significam paixões carnais. As seis talhas de pedra, que os judeus usavam para as purificações (Jo 2.6), significam os sentidos moral e literal das Escrituras e às vezes, o espiritual. O sentido verdadeiro (alegórico) da passagem sobre o divórcio (Mt 19.9) é a separação da alma do seu anjo da guarda. 2.4 Resumindo Origines influenciou muitos Pais da Igreja como Dionísio o Grande, Eusébio de Cesaréia, Didimo, o Cego, e Cirilo de 111


Hermenêutica Bíblica Alexandria, que seguiram sua interpretação alegórica. Embora Origines tivesse um alto apreço pelas Escrituras (que ele considerava como Palavra de Deus inspirada) e reconhecesse a presença de Cristo nas Escrituras do Antigo Testamento, defendeu, sistematizou e promoveu um sistema de interpretação que ao fim diminuía o caráter histórico de algumas passagens e que não dispunha de controles adequados contra o subjetivismo. Entretanto, a reação viria alguns séculos depois, em Antioquia. 2.5 Implicações práticas Podemos nos perguntar em que conhecer a história da interpretação de Alexandria nos afeta hoje. No mínimo, nos faz entender que o tipo de interpretação que prevalece na igreja evangélica brasileira de hoje segue o mesmo caminho de Alexandria, mesmo sem ter a sofisticação e a erudição de um Origines, por exemplo. É somente através de uma interpretação altamente “espiritualizante” das Escrituras que muitos mestres, pastores e líderes evangélicos conseguem convencer seus rebanhos de que estão ensinando a verdade da Palavra de Deus. Em termos práticos, Alexandria nos ensina a ter cautela com a idéia de que a verdade da Bíblia só pode alcançada por “espirituais” que tenham acesso privilegiado a um conhecimento que está além do sentido simples, claro e evidente das Escrituras.

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Hermenêutica Bíblica 2.6 A Escola de Antioquia Como vimos anteriormente, a interpretação dos Pais da Igreja seguia duas linhas distintas. A primeira, mais alegórica, relacionada com a cidade de Alexandria. A outra, que surgiu depois em Antioquia em reação à primeira, mais voltada para o sentido literal do texto bíblico. Nessa aula, analisaremos a hermenêutica de Antioquia. 2.7 A escola de Antioquia (Síria) – surgimento A escola de Antioquia foi fundada por Luciano de Samosata (240-312 AD), teólogo cristão que deu origem a uma tradição de estudos bíblicos que ficou conhecida pela erudição e conhecimento das línguas originais. Atribui-se a Luciano (embora sem evidências concretas) uma recensão e uniformização dos textos gregos da sua época, dando origem ao texto Bizantino ou Sírio, que foi o texto grego do Novo Testamento adotado pela Igreja até meados do século passado. Luciano era um cristão de profundas convicções. Morreu martirizado por torturas e fome, por se negar a comer carne sacrificada aos deuses romanos. Luciano fundou em Antioquia da Síria uma escola de estudos bíblicos em oposição consciente ao método alegórico ligado a Alexandria, particularmente ao método de Orígenes. Essa escola tornou-se famosa por sua abordagem literal das Escrituras. Foi formada no início do século IV, embora já no século II houvesse em Antioquia estudiosos como Teófilo, com uma interpretação mais sóbria das Escrituras. 113


Hermenêutica Bíblica 2.8 Principais representantes O sistema de interpretação adota por Antioquia teve muitos e ilustres defensores entre os Pais da Igreja. Alguns dos mais conhecidos e importantes foram: • Deodoro de Tarso (m. 390 AD) • Teodoro de Mopsuéstia (m. 428 AD) • João Crisóstomo (m. 407 AD) Os grandes antioquianos não foram contemporâneos de Orígenes, mas dos alexandrinos posteriores como Atanásio (morreu em 373 AD) e Dídimo, o Cego (morreu em 398 AD). De muitas formas, o próprio Cirilo de Alexandria (morreu em 444 AD) demonstrou perceptividade para com a exegese literal, o que o coloca talvez entre as duas escolas. 2.9 Princípios de interpretação Podemos resumir os principais princípios de interpretação desenvolvidos e utilizados pela escola de Antioquia e por seus representantes da seguinte forma: 1. Sensibilidade e atenção ao sentido literal do texto. Era uma abordagem que poderia ser chamada de “gramáticohistórica”. Esse termo só apareceu após a Reforma, mas os princípios que caracterizavam esse tipo de interpretação já estavam presentes em Antioquia: procurar alcançar o sentido do texto através da busca da intenção do seu autor (daí estudar-se o sentido óbvio das palavras, gramma em grego) considerando o contexto histórico em que foi escrito. 114


Hermenêutica Bíblica 2. Desenvolvimento do conceito de theoria. Esse termo designava o estado mental dos profetas em que recebiam as visões, em oposição à alegoria. Era uma intuição ou visão pela qual o profeta podia ver o futuro através das circunstâncias presentes. Depois da visão, era possível para ele descrever em seus escritos tanto o significado contemporâneo dos eventos bem como seu cumprimento futuro. A theoria era o princípio usado pelos antioquianos para se descobrir um sentido mais que literal nas palavras dos profetas do Antigo Testamento, permanecendo-se fiel ao seu sentido literal. Entretanto, embora reconhecessem que havia um sentido mais profundo e completo nas palavras dos profetas, estavam bem distantes da alegorese alexandrina. 3. Não negavam o caráter metafórico de algumas passagens: reconheciam que havia um sentido mais profundo nas profecias do Antigo Testamento e que havia tipologias, como a que Paulo fez em Gálatas 4.21-31. Entretanto, afirmavam a historicidade da narrativa véterotestamentária e procuravam em seguida descobrir o sentido teológico da mesma. 4. Buscavam determinar a intenção do autor, pela atenção cuidadosa ao sentido histórico das palavras em seu contexto original. 5. Eram contra descobertas arbitrárias de Cristo no Antigo Testamento, como as feitas pela alegorese alexandrina. Concordavam que Cristo estava presente nas Escrituras do Antigo Testamento, mas reagiam contra a ideia de que cada palavra, evento, número, personagem ou instituição das 115


Hermenêutica Bíblica mesmas poderia ser interpretada de forma alegórica de modo a sempre encontrar-se a Cristo nelas. 2.10 Exemplos de interpretação Teófilo de Antioquia, um dos precursores da escola de Antioquia, numa obra intitulada “A Autólico”, enfatiza que o Antigo Testamento é um livro histórico contendo a história autêntica dos atos de Deus para com Israel. Ele esforça-se para traçar uma cronologia bíblica, da criação até seus dias. A mensagem do Antigo Testamento é que o Deus de quem ele dá testemunho é o criador dos céus e da terra. Isso é possível porque os autores humanos foram inspirados por Deus e podiam, portanto escrever sobre coisas que aconteceram antes e depois de sua época. Lembremos que muitos intérpretes alexandrinos tendiam a rejeitar a importância da historicidade do relato da criação (Gen1 e 2), valorizando o sentido mais profundo ou espiritual do mesmo. Deodoro de Tarso, que viveu 200 anos após Teófilo, deixounos um comentário dos Salmos onde a interpretação cristológica moderada de Antioquia reflete-se claramente. Ali vemos em ação o princípio antioquiano de não atribuir a um texto do Antigo Testamento uma interpretação cristológica que não possa ser provada e demonstrada pelo Novo Testamento. Comentando o Salmo 22, Deodoro nega que o mesmo seja messiânico, pois a descrição literal dos sofrimentos do autor do Salmo não combinam com os 116


Hermenêutica Bíblica sofrimentos de Cristo. O Salmo 24 também não é messiânico, mas refere-se aos judeus que voltaram do cativeiro babilônico. Teodoro de Mopsuéstia é provavelmente o intérprete que seguiu mais rigidamente os princípios de interpretação da escola de Antioquia quanto à abordagem cristológica do Antigo Testamento. Para ele, uma passagem no Antigo Testamento só pode ser considerada messiânica se for usada como tal no Novo Testamento. Meras alusões não são suficientes. Assim, passagens como o sacrifício de Isaque, que nunca são referidas no Novo Testamento como referindo-se a Cristo, não são consideradas messiânicas. 2.11 Influência e fracasso Podemos perceber vários aspectos positivos na obra dos antioquianos. A escola de Antioquia adotou uma leitura das Escrituras que pode ser chamada de “gramático histórica” (esse termo, na verdade, só surgiu após a Reforma, mas os seus princípios estavam presentes em Antioquia, em grande medida), pois buscava principalmente descobrir a intenção do autor humano (que seria idêntica à do autor divino) como meio de determinar-se o sentido de uma passagem bíblica. Os antioquianos procuravam fazer justiça ao caráter histórico da Escritura. Por outro lado, às vezes, seus representantes eram incoerentes com esses princípios e recaiam na alegoria. Um exemplo disso é a interpretação alegórica que João Crisóstomo faz do milagre de Caná da Galiléia, em sua 117


Hermenêutica Bíblica Homília em João. Ao concluir a exposição (bastante sóbria e literal) da mesma, Crisóstomo interpreta a água como sendo pessoas frias e fracas, cujas vontades Cristo muda, como fez ao vinho. E aí, perde-se em uma longa digressão expondo o caráter dessas pessoas. Embora seja verdade que Cristo muda as pessoas, a pergunta é se este é o ponto ensinado pelo relato do milagre de Caná da Galiléia. O próprio apóstolo João nos diz que o objetivo do milagre era mostrar a glória de Jesus para que seus discípulos cressem nele. Crisóstomo chegou a uma conclusão certa, mas partindo do texto errado...Um ponto negativo é que em alguns casos, a rigidez da abordagem restringia o alcance das profecias do Antigo Testamento somente aos tempos de Israel e produziu uma tipologia cristã muito pobre. Em que pese a influência de sua interpretação especialmente nas igrejas sírias, a escola de Antioquia não prevaleceu na Igreja Cristã como o sistema interpretativo mais aceito. Uma das razões foi que alguns líderes heterodoxos ou heréticos condenados pelos concílios ecumênicos eram seguidores do método de Antioquia. Dois exemplos, a saber, Nestório e Juliano. Nestório (morreu em 451 AD), o patriarca sírio de Constantinopla. Foi condenado pelo Concílio de Éfeso por fazer uma distinção por demais exagerada entre as duas naturezas de Cristo, ao ponto de quase admitir a existência de duas pessoas no mesmo Cristo. No Ocidente, Juliano, o bispo pelagiano de Eclano (morreu em 454 AD), era o principal defensor dos princípios de Antioquia. 118


Hermenêutica Bíblica 2.12 Resumindo Apesar do fracasso da escola de Antioquia em estabelecer o seu método de interpretação, sua influência foi muito além dos limites da cidade de Antioquia. Os Pais Latinos, estudiosos que escreveram em latim e cuja influência haveria de perpetuar-se na Igreja, seguiram via de regra um sistema de interpretação semelhante ao desenvolvido pelos antioquianos. É o que veremos a seguir. 2.13 Implicações práticas A escola de Antioquia nos ensina duas coisas importantes: (1) O melhor caminho para evitar a subjetividade descontrolada de uma interpretação alegorista é nos atermos ao texto das Escrituras, ao seu sentido simples e evidente. (2) Precisamos cuidar para não cair no extremo de nos tornarmos tão presos à busca do que o texto significou no passado que nos esqueçamos de perguntar o que ele significa no presente. 3. OS PAIS LATINOS É a designação que se dá aos Pais da Igreja que viveram nos séculos IV e V, cujas obras foram escritas em latim. Os mais relevantes para nossa História da Interpretação são: 1. 2. 3. 4.

Tertuliano (155- após 220 AD) Jerônimo (c.347-420 AD) na Palestina (Belém) Agostinho (354-430 AD) em Roma Ticônio, que viveu no Norte da África 119


Hermenêutica Bíblica 5. Ambrosiaster, nome dado ao autor desconhecido de um comentário sobre as cartas de Paulo datando do séc. IV. 3.1 Principais características hermenêuticas Veremos aqui as principais características da hermenêutica dos Pais Latinos. Deve-se observar que algumas dessas características são observadas ainda hoje no trabalho hermenêutico. 3.1.1 Favoreciam a interpretação literal Os Pais Latinos seguem no geral a linha de interpretação da escola de Antioquia, ou seja, mais atentos ao sentido gramático-histórico do texto bíblico. Alguns exemplos a seguir. Tertuliano não alegorizou Gênesis 1-2 em sua exposição da passagem, como era costumeiro se fazer, mas considerou a passagem como histórica. Nesse sentido, seguiu o método de Antioquia. A alegorese via de regra procurava sentidos além do literal no relato da criação e os relacionava com aspectos do platonismo, com virtudes morais do estoicismo ou com aspectos da doutrina cristã. Jerônimo, que a princípio era um seguidor de Orígenes, deixou seu método pelo literal. Sua tradução das Escrituras para o latim (Vulgata), feita quando já havia abandonado o 120


Hermenêutica Bíblica método alegórico, é um exemplo de interpretação quase literal. Ticônio, em seu comentário de Gálatas, persiste sempre em procurar a intenção de Paulo como a chave para entender o sentido da carta. Enquanto que até mesmo as cartas de Paulo eram interpretadas alegoricamente pelos alexandrinos, Ticônio e demais Pais Latinos estavam determinados a estabelecer o sentido das Escrituras através do sentido original pretendido pelo autor humano. Agostinho, em sua interpretação de Gênesis, está bastante preocupado com o sentido literal. Muito embora ele entenda os dias da criação alegoricamente como sendo 7 instantes, interpreta literal e historicamente o relato da criação. Ambrosiaster, em seus comentários nas cartas de Paulo, frequentemente preocupa-se em descobrir a intenção do apóstolo, como caminho para o sentido verdadeiro do que ele escreveu. 3.1.2 Davam atenção ao contexto histórico da passagem Muito embora respeitassem as Escrituras como a Palavra de Deus, os intérpretes alegoristas tendiam a desprezar o contexto histórico e cultural em que elas foram escritas, tratando-as via de regra quase que como um livro que havia caído já pronto do céu. Os Pais Latinos eram mais sensíveis ao contexto em que as Escrituras foram produzidas: Jerônimo, por exemplo, declarou que o Antigo Testamento era um livro oriental, escrito numa língua oriental e num 121


Hermenêutica Bíblica contexto oriental – coisas que precisavam ser levadas em consideração pelo intérprete. Em sua obra Cidade de Deus, Agostinho, tentando explicar o mais terrível evento de sua época – a queda de Roma – demonstra sensibilidade para com a maneira pela qual Deus lida com Israel na história (história da redenção) como princípios da ação de Deus na história que explicariam a queda do Império Romano. Em contraste com a “cidade terrena” (civitas terrena) representada por Roma, mas energizada pelos desejos humanos de receber glória e honra, Agostinho projeta a civitas dei construída para o louvor e glória de Deus, a Jerusalém celestial, da qual a nova Roma da Igreja Católica era a imagem. 3.1.3 Algumas vezes alegorizavam o Antigo Testamento Os Pais Latinos não estavam de todo livres da maior tentação hermenêutica da sua época, que era interpretar as Escrituras alegoricamente. Uma das ocasiões em que acabavam alegorizando os textos bíblicos era quando respondiam aos ataques dos judeus de que os cristãos torciam o sentido do Antigo Testamento para provar que Cristo era o Messias. No afã de provar que Cristo estava em todas as passagens do Antigo Testamento, eles acabavam forçando algumas passagens, dando-lhes uma interpretação alegórica, para “achar” a Cristo nelas. De qualquer forma, era menos ruim do que alegorizar os textos bíblicos para encontrar neles as virtudes e as teses do platonismo! 122


Hermenêutica Bíblica Tertuliano, que se envolveu em muitas disputas com os judeus, mesmo sendo um sóbrio intérprete das Escrituras, às vezes usou a alegorese para substanciar seus argumentos. Agostinho interpretava figurativamente os sete dias da criação pois uma interpretação literal parecia contraditória (sol depois da luz). Ele defendia que passagens contrárias à Deus ou que ofendessem os cristãos deveriam ser interpretadas espiritualmente. O melhor exemplo é seu comentário em Gênesis 22, onde alegoriza as partes difíceis. Entretanto, Agostinho não negava a historicidade da passagem, muito embora visse um sentido oculto em seus detalhes. Atribui-se a Agostinho o conceito de que existem 4 níveis de sentido nas Escrituras: um sentido literal, e três sentidos espirituais: moral, alegórico e anagógico. O sentido literal seria o registro do que aconteceu (o fato); o sentido moral conteria uma exortação quanto à conduta (o que fazer); o sentido alegórico ensinaria uma doutrina a ser crida (o que crer); e o sentido anagógico apontaria para uma promessa a ser cumprida (o que esperar). Existem outros candidatos a autores dessa famosa “quadriga”, como veremos mais adiante. Até mesmo Jerônimo, que traduziu a Vulgata quase que literalmente, permitiu se alegorizar algumas vezes. Um dos melhores exemplos é sua disputa com um cristão chamado Joviniano, sobre a virtude monástica da virgindade. Em seu afã de defender essa doutrina (que já começava a ser recebida oficialmente na Igreja), Jerônimo interpreta algumas passagens das Escrituras usadas por Joviniano como se fosse 123


Hermenêutica Bíblica um alegorista radical. Joviniano cita “crescei e multiplicaivos” e Jerônimo replica: “O casamento enche a terra, mas a virgindade enche os céus”. Joviniano apela para Cantares, e Jerônimo replica que o mesmo é totalmente alegórico e espiritual. Joviniano diz que Pedro era casado e Jerônimo responde que Pedro lavou-se da sujeira do casamento pelo sangue do seu martírio! A espiritualização do Antigo Testamento se dava principalmente por causa da convicção de que o Novo Testamento está oculto no Antigo Testamento, e o Antigo Testamento é iluminado pelo Novo Testamento. Nas palavras de Agostinho, In vetere novum lateat, et in novo vetus pateat (“No Velho o Novo está subentendido e no Novo o Velho se torna patente”, Quaest. in Heptateuchum 2.73). 3.1.4 Passagens mais obscuras devem ser interpretadas à luz das mais claras Para muitos intérpretes nessa época, a solução para resolver contradições entre passagens das Escrituras era alegorizar as que fossem mais obscuras. Os Pais Latinos, ao contrário, adotam outra solução. Procuravam interpretar uma passagem obscura e difícil à luz de outras que tratassem do mesmo assunto e que fossem mais claras. Era essa a regra que procuravam seguir. O que estava por detrás dessa regra era a crença na unidade da Escritura, ponto que Agostinho faz explicitamente em seu comentário em Gênesis 22.

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Hermenêutica Bíblica 3.1.5 Harmonia com a regra da fé da Igreja Os Pais Latinos viveram numa época em que a Igreja estava começando a adquirir uma estrutura fixa em Roma. Ao contrário da tradição oriental, que era influenciada por Alexandria e que via o texto como “aberto” (no sentido de ser uma rica mina de sentidos), os Pais Latinos praticavam uma exegese “fechada”, seguindo os dogmas dos concílios da época, onde o texto aceitava apenas uma interpretação, que devia ser crida e recebida por todos. Um dos exemplos disso foram as tentativas de Jerônimo de defender o ensino sobre as virtudes da castidade e de se permanecer solteiro, que já começava a ser aceito como doutrina da Igreja. Além disso, na época deles, já começava a formar-se uma tradição eclesiástica reconhecida e aceita pela Igreja. Os Pais Latinos demonstram ter consciência de uma tradição de intérpretes antes deles. Jerônimo cita frequentemente em suas obras comentaristas antes dele que têm a mesma interpretação. 3.1.6 Resumindo De entre os Pais Latinos, aquele cujas ideias e cuja hermenêutica mais influenciou a Igreja Ocidental foi Agostinho. Infelizmente, foi somente um aspecto da sua hermenêutica que prevaleceu, o reconhecimento de que havia um sentido além do literal nas palavras da Bíblia. Na Idade Média, a preocupação por sentidos além do literal dominou quase que completamente, como veremos na aula seguinte. Isso não quer dizer que houve somente 125


Hermenêutica Bíblica interpretações alegóricas da Bíblia durante a Idade Média. Em meio a esse período, uma pequena, mas forte tradição interpretativa, em muito similar à de Antioquia, surgiu e acabou por preparar o caminho da hermenêutica utilizada pelos reformadores. 3.1.7 Conclusão e implicações práticas Uma lição que podemos aprender com os Pais Latinos, especialmente com Jerônimo, é evitarmos que nossas crenças prediletas acabem por controlar nossa interpretação das Escrituras. Frequentemente somos tentados a interpretar textos bíblicos de forma a concordarem com nosso pensamento. Sabemos que é impossível ler a Bíblia sem pressupostos. Nosso dever é nos assegurarmos de que esses pressupostos são somente aqueles exigidos pela própria Escritura. CONCLUSÃO Alegoria e literalidade se encontram presentes na Bíblia. O estudante da Hermenêutica não deve desconsiderar esses dois fatos inerentes às Escrituras. Saber identificá-los é crucial para uma interpretação equilibrada do texto bíblico. Se pendemos excessivamente para um desses lados, certamente nossa correta compreensão da mensagem bíblica ficará prejudicada.

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Exercícios do capítulo 5 Responda as questões abaixo, de maneira bem sintetizada. 1.

Quem foram os Pais da Igreja? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

2.

Mencione o nome de um dos filósofos que se associam com o sistema interpretativo da Escola de Alexandria: __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

3.

O que é alegorese? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

4.

Quais foram os principais proponentes da Escola de Alexandria? __________________________________________________ __________________________________________________ 128


HermenĂŞutica BĂ­blica __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ 5.

Mencione alguns dos nomes dos pais latinos? __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________ __________________________________________________

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Referências ARCHER, Gleason Leonard. Enciclopédia de temas bíblicos: respostas às principais dúvidas, dificuldades e “contradições” da Bíblia. Trad.: Oswaldo Ramos. 2 ed. São Paulo: Editora Vida, 2001. BENTHO, Esdras Costa. Hermenêutica Fácil Descomplicada. 3ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.

e

Bíblia de Jerusalém: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2006. Dicionário Aurélio. Versão eletrônica 5.0. Dicionário etimológico. Método. Disponível em: <www.dicionarioetimologico.com.br/metodo/> Acesso em 10 fev. 2018. GEISLER, Norman L. HOWE, Thomas. Manual popular de dúvidas, enigmas e “contradições” da Bíblia. Trad.: Milton Azevedo Andrade. São Paulo: Mundo Cristão, 1999. LOPES, Augustus Nicodemus. Escolas de interpretação bíblica. Disponível em: <www.monergismo.com/textos/hermeneuticas/he_augu1.p df> Acesso em 04 jul. 2016. LOPES, Augustus Nicodemus. Princípios de interpretação bíblica. Disponível em: <www.monergismo.com/textos/hermeneuticas/hermA_02. pdf>. Acesso em 03 jul. 2016. 130


Hermenêutica Bíblica Blog Hermenêutica Bíblica. Disponível em: <doutorhermeneutica.blogspot.com.br/>. Acesso em jun. 2012. Sola Scriptura: Hermenêutica. Disponível <solascriptura-tt.org/Ide/Hermeneutica-SouzaSantana.htm>Acesso em 02 jun. 2012.

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PEREIRA JÚNIOR, Isaías. Exegese da Poesia Hebraica (Salmos). Disponível em: <www.monergismo.com/textos/comentarios/exegese_%20 da_poesia_hebraica.pdf>. Acesso em jun. 2012.

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O autor Professor Roney Cozzer serve a Deus e a Igreja como presbítero e professor de teologia. É membro da Assembleia de Deus Central de Porto de Santana, Cariacica, ES, igreja esta liderada pelo Pastor Evaldo Cassotto. É casado com Dolarize Alves desde 2003, com quem tem uma linda filha, a Ester Alves Cozzer. Formou-se inicialmente pelo Curso Médio de Teologia da EETAD (Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus), vindo depois a graduar-se em Teologia. Realizou o Curso de Extensão Universitária “Iniciação Teológica” da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). É mestre em Teologia pela FABAPAR (Faculdades Batista do Paraná) na Linha de Pesquisa Leitura e Ensino da Bíblia. Possui formação em Psicanálise Clínica, é Licenciado em Pedagogia com pós-graduação em Psicopedagogia Clínica, e Licenciado em História com pós-graduação em Metodologia do Ensino da História e Geografia. Participou como autor e pesquisador do Projeto Historiográfico do Departamento de Missões das Assembleias de Deus do Vale do Rio Doce e Outros (DEMADVARDO) entre os anos de 2016 e 2018 e é membro do Grupo de Pesquisa "Perquirere: Práxis Educativa na Formação e no Ensino Bíblico". Serviu e serve como professor de teologia em seminários e cursos de teologia na Grande Vitória, além de ministrar palestras nas áreas de Bíblia, Teologia, Família, Educação Cristã e Mídia e Cristianismo. É administrador pedagógico do Instituto de Educação Cristã CRER & SER e coordenador do Curso de Teologia EAD da Faculdade Unilagos, em Araruama, no Rio de Janeiro, onde reside atualmente com sua família. CONTATOS E ATIVIDADE DO AUTOR roneycozzer@hotmail.com roneyricardoteologia@gmail.com Site Teologia & Discernimento Currículo Lattes: lattes.cnpq.br/3443166950417908

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