VIAGENS
AVENTURA
LATITUDE EQUATORIAL CHALLENGE
3ª EDIÇÃO - SETEMBRO DE 2005
S. TOMÉ E PRÍNCIPE …“Durante os próximos 10 dias o “meu” espaço reduz-se a um lugar no meu Land Rover Defender, que partilho com mais quatro pessoas e uma caixa, onde guardo todos os pertences pessoais. Depois de alguns dias na cidade para aclimatar estamos finalmente prontos para o mato profundo!”… 72
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ZERO
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Pelo terceiro ano consecutivo o Latitude Zero Equatorial Challenge reúne em plena selva dezenas de pessoas num evento que, sob o pretexto de uma expedição TT, pretende dar apoio e contribuir para o desenvolvimento de S. Tomé e Príncipe. S. Tomé, o segundo país mais pequeno de África (e também um dos mais pobres) concentra na sua minúscula área perdida no meio do golfo da Guiné uma beleza extrema. A força da selva é brutal – o cliché diz: opressiva! Por entre os recantos da selva surgem paradisíacas praias desertas de coqueiros, areias brancas e águas a 26ºC. A ilha apresenta uma biodiversidade fascinante. Saberá o leitor – por exemplo – que S. Tomé tem mais espécies endémicas que as famosas Galápagos? Mas nem tudo são rosas. O país tem carências extremas a todos os níveis e o objectivo do LZEC é precisamente ajudar. A ajuda vai muito além do estímulo directo à economia local que é o que normalmente o turismo traz a estas paragens. O LZEC contribui para a promoção turística do país (reportagens na TV, artigos em jornais e revistas), presta apoio nas áreas da educação (materiais para reparação de escolas, quadros, cerca de 74
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40.000 livros / dicionários / gramáticas novos, workshops de expressão plástica, etc.), saúde medicamentos, soro para a temida naja melanoleuca – cobra preta para os locais, apoio financeiro, um desfibrilhador) e outras. Relativamente à expedição, o traçado pretende dar a volta à ilha reconstituindo antigos caminhos que ligavam as roças durante o esplendor comercial do
tempo colonial. Com o abandonar das roças os caminhos foram engolidos pela selva. Buracos, derrocadas, pontes e árvores caídas são o prato do dia nestes enlameados trilhos. As primeiras dificuldades começam com a chegada ao sudoeste da ilha. O decrépito alcatrão que nos trouxe desde a cidade capital até aqui acaba. Esta é a região mais pobre e esquecida
do país - é também a mais selvagem. A riqueza da terra vulcânica, aliada à chuva omnipresente (esta região da ilha é governada por um microclima muito simples: chove sempre pelo menos 16 horas por dia), faz com que tudo cresça com uma força e velocidade fora do normal. Para nós, as abundantes chuvadas, além dos problemas habituais, trazem incertezas relativamente ao caudal dos rios que atravessamos. De manhã há uma determinada profundidade, mas duas horas mais tarde, conforme tenham sido as chuvadas nas montanhas do interior, a água pode subir um ou até mais metros. Esta incerteza deixa todos pouco descansados pois a caravana pode ficar dias a fio bloqueada entre rios. REVISTA LAND PORTUGAL - NOVEMBRO/DEZEMBRO 2005
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AVENTURA UMA SESSÃO DE MECÂNICA DEBAIXO DE UM TEMPORAL BÍBLICO Outra das tarefas que temos para este ano é a construção de uma ponte metálica numa região onde, já há muitos anos, não passavam carros e agora, graças ao nosso trabalho, vão voltar a passar. As populações ficam um pouco menos isoladas do mundo. O sucesso desta tarefa eleva ainda mais o espírito do grupo. É impressionante a camaradagem, entreajuda e grande empatia que existe entre todos! O ambiente é muito bom e isso reflectese em animados acampamentos onde a alegre cavaqueira se prolonga sempre até altas horas. Estamos todos a praticar uma condução super defensiva. No entanto, devido ao elevado peso transportado por um dos Defender 110 do grupo e à violência do percurso, um veio de transmissão não resiste e parte à saída de um rio. As horas seguintes foram passadas numa sessão de mecânica, que debaixo de um temporal bíblico, envolveu os entendidos do grupo, uma rebarbadora e uma máquina de soldar. De volta ao percurso… Este alterna entre a profusa selva e as surpreendentes baías que convidam a um mergulho e rapidamente fazem a catarse de algum desânimo eventualmente provocado pelas adversidades.
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Nos acampamentos a rotina instala-se e a cumplicidade cresce. O psicólogo do grupo vive dias de desafogo! Criam-se laços e reforçam-se os já existentes. Somos uma comunidade nómada em perfeito equilíbrio! Todos se integram e a já ténue fronteira entre organização, participantes e jornalistas esbate-se completamente: somos um só – a família LZEC! Chegamos finalmente à baía de Santo António do Mussucavú. Estamos na zona tampão do parque natural do Obô. A partir daqui é completamente proibida a passagem de qualquer tipo de veículo motorizado. A importância biológica da área assim o exige. Resta-nos festejar o conseguido e regressar. O percurso que demorou duas edições e meia do LZEC a preparar faz-se agora em pouco mais de duas horas. Missão cumprida! O mote agora é descomprimir durante dois dias, mantendo acampamento no paraíso – a praia Jalé. Enquanto uns passam o primeiro dia com arrumações e pequenas reparações, outros andam em preparativos para um jantar de arromba (praia e patuscadas são sempre um bom programa para nós!). No dia seguinte há quem descanse e há quem nem chegue a aquecer a “cama”, arrancando pela madrugada para uma subida do rio Malanza – selva dentro – em pirogas!
“ESTE É O PERCURSO MAIS BELO QUE JÁ FIZEMOS!” Após as baterias carregadas é tempo de voltar à acção. Desta vez vamos atacar a zona sem estradas (apenas trilhos abandonados) pelo norte da ilha e tentar rumar o máximo a sul. O objectivo possível é Bindá. Bindá fica junto ao mar e é uma antiga roça abandonada há cerca de 30 anos, pouco depois da independência de S. Tomé. Mais uma vez, o trilho é estreito, enlameado e cheio de armadilhas. No entanto a opinião é unânime: “este é o percurso mais belo que já fizemos!” Mais uma passagem a vau e chegamos. Agora, apenas alguns quilómetros nos separam da mística baía de Santo António, onde estivemos há uns dias vindos do sul. Pelo meio fica o impenetrável parque natural do Obô. Bindá impressionou-me. Outrora grandiosa, bela e arranjada, encontraREVISTA LAND PORTUGAL - NOVEMBRO/DEZEMBRO 2005
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se agora completamente engolida pela selva. Árvores crescem dentro do velho hospital em cujas paredes, ainda intactas se espalham as raízes. O cenário é fantasmagórico. Existe ainda um banco de pedra e uma cobertura num local que, a julgar pela vista fantástica sobre a selva e por fim sobre o mar, devia fazer as delícias de quem habitava a casa grande. Ainda se podem ver os secadores de café e restante maquinaria. Numa garagem, encontramos até uma velha carrinha de caixa aberta dos anos 50. Lentamente regressa aos elementos... Fico triste. Como é possível deixar um lugar tão belo chegar a tal estado de degradação? Aparecem alguns locais – pescadores. Vivem sazonalmente na praia que fica junto à roça. O Sr. Lourenço, o mais velho ainda se lembra de quando a 80
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roça estava em exploração. Fala do Sr. Moutinho – que foi seu patrão - com carinho e saudade: “era um homem bom”, desabafa. Durante a noite o acampamento é violentamente fustigado por umas horas de chuva. Chuva daquela que só é possível a estas latitudes. Não dormimos. Sabe bem estar deitado apenas debaixo de um toldo firmemente amarrado aos carros... sem tenda, nada. Apenas uma cama de mato, um toldo e o dilúvio! À medida que o dia se aproxima, a chuva pára e imediatamente surgem os mais variados e bizarros ruídos. Pássaros, insectos, macacos e outros juntam-se para saudar o dia que nasce. Despertadores para quê? Sustentabilidade e gestão de resíduos sólidos, conceitos tão na moda no nosso Portugal do Século XXI, assumem aqui
outra força, pois se não houver cuidados constantes, a nossa permanência na selva torna-se insustentável. Assim, de manhã utilizamos para lavagens e higiene água engenhosamente captada durante a noite em grandes caixas de plástico. Gestão de resíduos significa que o lixo orgânico é enterrado, latas são compactadas, armazenadas e transportadas de volta, papel e alguns tipos de plástico são queimados em fogueiras “comunitárias” e os recipientes de vidro são directamente reaproveitados pelas populações esquecidas da selva. O caminho de regresso leva-nos por uma subida estreita e escorregadia. Em algumas curvas, as rodas traseiras dos carros mais longos, os Defender 110, passam apenas a alguns centímetros do precipício. Nunca nos esquecemos que estamos numa ilha vulcânica... A irreverência da topografia lembra-nos constantemente deste facto. Chegamos novamente a Lembá e recomeça o asfalto. A estrada está boa – foi reparada recentemente pela cooperação de Taiwan – e rapidamente chegamos à cidade capital. É tempo de arrumações, limpezas e despedidas. A velha Europa com todas as suas obrigações, complicações, correrias e tiranias espera-nos. Lar, doce lar! Texto: Renato Braz Fotos: Leonel de Castro
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