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Gestão holística

GESTÃO HOLÍSTICA DEL SOL AL SUELDO

NO ANO 2000, AGRICULTOR E VETERINÁRIO ESPANHOL MANUEL DIE MUDOUSE DA ARGENTINA PARA O ALENTEJO, PARA GERIR UMA EXPLORAÇÃO FAMILIAR DE CRIAÇÃO DE BOVINOS DE CARNE EM REGIME EXTENSIVO. HÁ 5 ANOS, DECIDIU ENVEREDAR POR UMA GESTÃO HOLÍSTICA DA EXPLORAÇÃO E ADOTAR O SISTEMA REGENERATIVO DE PRODUÇÃO. Por André Antunes, agricultor e médico veterinário; Ruminantes | Fotos FG, NM

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Foi na herdade de Vale do Grou, junto à histórica povoação de Ouguela encostada a Espanha, que fomos recebidos por Manuel Die, gestor da Sociedade Agrícola Bove cuja principal atividade é a criação de bovinos em regime extensivo. Em modo biológico há cinco anos, a exploração compreende 3 herdades (Defesinha, Freixial e Vale do

Grou), localizadas na região do Alto Alentejo, entre Elvas e Campo Maior. No total, são cerca de 700 hectares maioritariamente em sequeiro, dos quais 15 hectares são de olival em regadio. A paisagem divide-se equitativamente entre montado e pastagens abertas. Os solos, em geral, são superficiais, de xisto, típicos das zonas meridionais de antiga aptidão para gado, à exceção de 70 hectares de solos de barro, mais alcalinos.

A ligação de Manuel Die ao mundo rural veio pelo exercício da sua profissão como veterinário de campo. Mas foi na década de 90 que teve a sua experiência mais marcante como gestor numa exploração na Argentina dedicada à bovinicultura em extensivo. Foi aí, uns anos mais tarde, já em em 2010, que teve primeiro contacto com a agricultura regenerativa e a gestão holística. "Numa das minhas viagens à Argentina, tomei conhecimento do trabalho de Pablo

Borrelli, conhecido "educador de gestão holística". "O Pablo classifica, de uma forma muito simples e didática, as abordagens que existem atualmente no mundo ganadeiro": por um lado, o sistema extensivo, que tem um input muito baixo. Por outro, temos o sistema intensivo, sem base territorial. […]

Nas últimas décadas surgiu uma ganadaria extensiva melhorada, baseada numa maior produção e em mais inputs. Porém, ainda que pareça um modo de produção inocente, a ganadaria extensiva foi responsável, durante séculos, por uma degradação muito lenta, devida a más práticas de pastoreio. A quarta janela que Borrelli preconiza, alternativa aos modos de produção convencionais, refere-se à ganadaria regenerativa, cujo objetivo é ter muito poucos inputs, muita produção e uma grande eficácia baseada nos próprios recursos fotossintéticos naturais.”

Após 6 anos na Argentina, Manuel Die veio instalar-se no Alentejo, que descreve como

“uma experiência absolutamente diferente em todos os sentidos”: Em 2000, e até 2015, comecei com um maneio mais convencional de ganadaria extensiva nesta exploração. A partir daí, a grande mudança, pelo menos a nível mental, foi entrar na gestão holística da exploração”, o que aconteceu há 5 anos.

André Antunes (A): Vamos falar sobre esta mudança que fez no modo como gere a exploração, inspirada na gestão holística, segundo os ensinamentos de Allan Savory. É mesmo possível produzir carne de bovino com pegada de carbono negativa e lucros substanciais, como ele propõe? M: Com certeza que sim! Não é simplesmente um desafio, é algo real que é atingível. Simplesmente, é preciso ter a vontade de o fazer.

A: O que é a gestão holística proposta por Allan Savory? M: Regenerar só por si pode parecer uma solução completa, mas se a regeneração não estiver ligada a um contexto social e económico, com toda a complexidade que isso supõe, pode acabar por não funcionar a longo prazo. A gestão holística é um bocadinho isso, é ter uma abordagem muito ampla, onde o importante não é a vaca e a pastagem, mas todo o conjunto, todas as interações. Pressupõe a definição de uma “moldura”, que é no fundo uma base de referência para tomar decisões. Não significa seguir uma regra ou uma receita, consiste simplesmente na adoção de uma metodologia de tomada de decisões.

A: Qual é o seu contexto holístico? M: Normalmente, quando falamos em contexto referimo-nos a um contexto desejável, que depende de quem toma as decisões, dos responsáveis [pela exploração]. É fundamental que as decisões estejam em linha com os pressupostos dos tomadores de decisões. Para mim, o pressuposto fundamental é a qualidade de vida, e não apenas o benefício económico. O benefício económico tem que estar ligado à qualidade de vida de quem toma a decisão. No meu caso, o mais importante é ter uma atividade económica de muito baixo risco, porque para mim é muito importante uma vida sem stress. Claro que o lucro económico também é desejável, mas tem que estar ligado a estes dois pontos. Qualquer situação que implique estar no limite do risco e do stress, para mim, definitivamente não entra. A: Que obstáculos encontrou à implementação desta metodologia? M: Inicialmente, o maior obstáculo é fazer uma má interpretação da gestão holística. O primeiro erro é achar que se pode “resumir” a proposta de Allan Savory de usar o gado como ferramenta para melhorar os processos ecossistémicos, a uma tabela, uma listagem ou um planeamento fixo que basta seguir. Não, é um processo. Por outro lado, nós, gestores de ganadaria regenerativa, cometemos muitas vezes o erro de pensar que só estamos a trabalhar para criar um património biológico, uma base de recursos potente, e por vezes esquecemo-nos que ainda temos muitas dependências. O propósito não é eliminar logo ao início a 100% essas dependências, mas não perder o objetivo de as ir eliminando progressivamente ao longo do tempo. Trata-se, sim, de ter uma estratégia de viver do que realmente existe, que é a energia solar e a fotossíntese, mas sem nunca perder de vista o contexto económico-financeiro. Se eu pensar que tenho que ter todos os recursos próprios da exploração e por idealismo não recorrer a suplementos, se for necessário, posso ter quebras. Ficar arruinado não é solução, nem do ponto de vista ambiental.

A: No seu caso, em que ainda não passou tempo suficiente, que indicadores de curto ou médio prazo usa para perceber se está no caminho certo? M: Existindo uma maior eficiência no período vegetativo das pastagens, através de curtos tempos de ocupação e longos períodos de repouso, o primeiro indicador, que é de muito curto prazo, é a criação de um excedente de pastagem seca para o período de não crescimento, e para o solo ficar coberto, pois é uma base para potenciar os processos ecossistémicos.

A: Ao nível da produção forrageira, o que mudou? M: A grande poupança económica foi passarmos a ter pastagem em pé para todo o período de não crescimento. Temos que considerar que a qualidade [da pastagem] é a qualidade que se tem. A matéria seca está garantida mas pode ser necessário fazer a correção da proteína. Um animal ruminante precisa de 6 a 7% de proteína bruta para não perder condição corporal. Tem de haver um acompanhamento proteico porque os animais já não migram, como as grandes manadas de antigamente. Existem limitações, os nossos genótipos são de elevados requisitos, nada adaptados, portanto temos que suplementar para garantir a sobrevivência.

Nuno Marques (N): Essa boa gestão da proteína como é que se vê, em termos de reprodução animal ou de quilos de carne vendidos? M: O importante é olhar sempre para a condição corporal dos animais, é fundamental que seja essa condição a determinar a fertilidade. Na parição, normalmente no inverno, o animal que pare com baixa condição corporal não vai conseguir ter um cio cedo e concentrado como nós queremos.

"TEM DE HAVER UMA SUPLEMENTAÇÃO PROTEICA PORQUE OS ANIMAIS JÁ NÃO MIGRAM, COMO AS MANADAS DE ANTIGAMENTE."

Bosta típica de vacas que pastam em parques com longos períodos de descanso e que só são desparasitadas quando é necessário.

Alguns investimentos como cercas elétricas, pontos de água, e abordagens de descompactação do solo, contribuem para criar uma base de recursos futura.

Para Manuel Die, a grande poupança económica ao nível da produção forrageira foi passar a ter pastagem em pé para todo o período de não crescimento.

A: Que outros autores ou criadores de gado são exemplos para si? M: Por exemplo, a linha sul africana de Johann Zietsman, que refere que é necessário promover os ecossistemas, não alterando a sua forma, mas admitindo por exemplo a suplementação proteica no verão e genótipos de menores requisitos que têm mais capacidade de consumo. O problema das pastagens secas no verão é que o animal não consegue consumir porque a “caldeira” ruminal tem pouca flora celulolítica por falta de proteína para digerir eficientemente. Nós não alimentamos vacas, alimentamos microorganismos.

A: Que suplementação proteica usa? M: Eu utilizo pellets de luzerna de forma pontual e estratégica. Mas podia ser feno de luzerna ou fenossilagem.

A: Qual a adaptação genotípica que tem feito a nível de melhoramento genético? M: Eu acreditava muitíssimo na raça Mertolenga, que de facto é uma raça muito rústica, com tamanho ideal e capacidade de adaptação. Mas tinha dois problemas: a falta de docilidade para fazer este maneio, e a falta de precocidade. Portanto, comecei a fazer cruzamentos com a linha Angus. Eu estava habituado a trabalhar com a Aberdeen-Angus, na Argentina. Sabia que era um animal rústico e precoce, mas o grande erro que cometi foi trazer genética de ambientes absolutamente não adaptados, ou seja, de Angus moderno que copia linhas continentais de altos requisitos e não estão adaptados ao ambiente duro deste ecossistema. Andei um pouco atrás na fertilidade, por este motivo.

N): Quando decidiu pelo Angus, pôs em questão outras raças exóticas, ou foi Angus porque já conhecia? M: Decidi pelo Angus, por vários motivos. Porque é uma raça dócil e normalmente precoce. Para que um animal tenha melhores hipóteses de engordar no campo, importa a precocidade sexual. A precocidade sexual leva à precocidade de crescimento. Por isso, há um acabamento mais cedo, para não ter esses grandes requisitos de farinhas, que têm todas essas raças, por norma, continentais.

A: Sabemos que uma das preocupações gerais da ganadaria extensiva são as cargas parasitárias. Como lida com elas, a nível profilático? M: Relativamente ao tema parasitário, tanto endo-parasitas como ecto-parasitas, o grande problema tem sido a grande resistência às moléculas químicas. Isto é uma preocupação, não só minha, como dos próprios vendedores. Procuramos animais resistentes a parasitas e não parasitas resistentes a produtos. Deixei de administrar desparasitantes, de forma gradual, e o resultado tem sido muito bom. Algumas contagens até têm diminuído desde que não uso desparasitantes. Mas isto tem a ver também com o maneio: se cortamos o ciclo com longos períodos de repouso das pastagens, o ciclo dos parasitas é interrompido. Estou a falar essencialmente de parasitas gastrointestinais. Relativamente a ecto-parasitas, também deixei de fazer desparasitação. É muito importante fazer uma seleção individual, e se existem alguns animais que não se adaptam a este sistema, refugá-los. É claro que se houver 50% não se adaptam, temos que voltar a desparasitar. Mas é uma questão estratégica. Estou a falar dos parasitas mais comuns.

A: Antes de adotar este tipo de gestão, quais eram os parasitas mais comuns e que incomodavam mais? M: Os parasitas gastrointestinais no geral e alguns tipos de parasitas do fígado, como a Fascíola, aos quais temos que ter atenção. Aí sim, devemos fazer uma desparasitação clínica, caso sejam detetados. Mas o problema é introduzir desparasitantes no organismo como forma de criar resistência. Isso é mudar o conceito a um tratamento individual clínico e esporádico. Muito importante também, é o facto de estarmos a destruir a fauna coprófaga, que é a responsável por fazer … com que o estrume se transforme em húmus. Essas bostas, especialmente no verão, ficam

como pedra, dado que os coprófagos … não lhes acedem. Este devia ser um assunto importantíssimo, a nível nacional: não destruir os únicos seres que são capazes de converter o estrume em húmus. O húmus é património da humanidade e estamos a aplicar saneamentos obrigatórios pelas instituições. A ADS obriga a desparasitar.

A: Fale-nos um pouco da planificação da parição da exploração. M: Já a fazia antes, mas na linha regenerativa é muito importante planificar o período de parição, porque acompanhamos a curva de crescimento da pastagem da natureza e concentramos as parições para aproveitar essa curva. Como já tinha feito este trabalho, até com as mertolengas, para mim foi fácil fazer a transição. Tento concentrar as parições no período mais curto possível para ter o mesmo maneio e seguir a curva da pastagem. Prefiro o inverno, porque a altura de cobrição cai num período em que há quantidade e qualidade de erva. O único período em que existe quantidade e qualidade para que haja reprodução e ovulação, é a primavera. Portanto, a cobrição dura 2,5 meses – de abril até meados de junho. E a parição ocorre de janeiro a março.

N: Como é que faz? Retira os touros? M: Sim. Não é aconselhável fazer isto de um dia para o outro, porque com uma parição contínua ficamos sem vacas em pouco tempo. Com o refugo comecei a pouco e pouco, e após 7 ou 8 anos já tinha toda a parição concentrada em cerca de 3 meses. Agora apertei um pouco mais e a ideia – que não é minha, pois isto é feito em todos os países que dependem de pastagens e não de rações ou subsídios – é refugar as vacas que

vão ficando vazias. Refugamos sempre que não seja uma percentagem muito alta. Esse trabalho para mim é fundamental e já se está a fazer muito aqui no Alentejo e no grupo de produtores de que faço parte.

N: Tem poucas vacas que falham a fertilidade? M: Com as mertolengas não tenho problemas. Tinha 3 meses de parição com 93 a 95% de fertilidade. Quando mudei para este cruzamento com Angus de altos requisitos, com o mesmo maneio, ao qual acrescentei um maior aperto dos animais, a fertilidade caiu para os 75%. Depois, corrigindo os erros cometidos no maneio relativos ao tempo de recuperação das pastagens, voltei este ano aos 93%.

A: No maneio agro-ecológico, com que base desenha os parques de pastoreio e a localização dos pontos de água? M: Quando queremos iniciar um projeto de ganadaria regenerativa, um erro frequente é começar por fazer cercas e dividir. É preciso fazer um plano da terra, bem estudado, que esteja relacionado com o número de animais. A primeira coisa que fiz foi agrupar todo o rebanho, o que para mim foi fácil por causa das parições. Depois defini as áreas das parcelas para conseguir o objetivo de ter curtos tempos de ocupação e um longo período de repouso. Eu tinha algumas parcelas enormes, de 50 ou 100 hectares, mas comecei a ver qual era o período de ocupação, porque existe um consenso geral de que, na época ativa de crescimento não existe sobrepastoreio quando o tempo de ocupação é inferior a 3 ou 4 dias. Com este critério, comecei a definir parques fixos elétricos com o objetivo de evitar o sobrepastoreio. Muito importante, também, é adequar os pontos de água a essa nova exigência de água instantânea, que é potente porque temos muito gado junto.

A: No que diz respeito à composição florística pratense desde que adotou esta nova abordagem, que tipo de estratégia tem? M: Eu tinha a ideia de fazer pastagens biodiversas, com todo o leque de sementes. Mas este é um critério agronómico, que, a meu ver, não está a funcionar, porque o empurrão inicial resulta — uma boa quantidade de leguminosas —, mas depois o ecossistema volta ao que era. Se não estiver ligada ao maneio, esta é apenas mais uma ferramenta, mas não definitiva. Portanto, em vez de estar sempre a gastar nas pastagens biodiversas com fertilização fosfórica, etc., acabo por dar mais importância ao maneio. Isto não significa não semear. Mas, para mim, é muito importante semear, dentro da sucessão ecológica, de solos degradados e arruinados, aquelas espécies que vão concorrer com aquelas a que chamamos de infestantes – que na realidade, não são infestantes, mas indicadoras de que uma sucessão ecológica está em curso. Por exemplo, se semearmos uma quantidade enorme de sementes que ainda não estão no ponto de sucessão ecológica, o sistema volta novamente à pobreza ecossistémica.

A: Em que medida é que a gestão holística tem um efeito positivo no aumento efetivo de água das chuvas? M: Com o solo coberto começam a ocorrer mudanças importantes, tanto ao nível da evaporação, como da água que fica no solo. Há menos lixiviação. O desafio futuro passa por ter um maior crescimento de húmus

Foto da esquerda: Estado da pastagem à entrada das vacas no novo parque. Foto da direita: Estado da pastagem no fim do 3º dia de pastoreio.

no solo, pois, por enquanto, ainda temos espécies anuais que têm uma capacidade muito limitada para fazer de “esponja” de carbono.

A: Portanto, ainda não tem dados sobre o incremento de matéria orgânica que, em princípio, nos dará o real potencial regenerativo deste tipo de agricultura... M: Por enquanto, não, pois este é um indicador de mais longo prazo. Dentro desses indicadores, comecei a utilizar o EOV, que é um sistema em que a matéria orgânica é medida a cada 4 anos. Para já, sei qual é a maior quantidade de produção de matéria seca. Um indicador importante é que estamos a depender cada vez menos dos fatores externos, nomeadamente das forragens.

N: Quem nos estiver a ler, pode ficar com a ideia que se produz carne, sem ter que investir dinheiro, quase do zero. Quais são os fatores de produção atuais que está a comprar (rações, forragens, adubo)? M: Os fatores de produção continuam idênticos, só que numa quantidade muitíssimo menor. Mas não fazemos essa comparação por animal. Na realidade, a produtividade que aumenta é por hectare e não por animal. Se continuamos a pensar que é por animal, estamos a trabalhar fora da terra.

N: Portanto, o seu indicador é lucro por hectare. M: Quilos de animal por hectare, de forma sustentável, com o menor recurso possível a ajudas.

A: Qual é o principal fator de produção na exploração? M: Atualmente, o maior custo é a mãode-obra. Antes, com o mesmo número de empregados, era a alimentação.

A: Quais são as principais fontes de rendimento da exploração? M: Essencialmente provêm de animais de engorda, que é um nicho de mercado de poucos animais, de pastagens.

N: Com que idade vende os animais para engorda? M: 15 a 18 meses, basicamente fêmeas. Os vitelos a desmame são vendidos com 6 a 8 meses.

N: Em média, que peso têm estes vitelos aos 6 meses? M: São animais mais leves, 170 a 180 quilos de peso vivo.

A: A exploração recebe subsídios? M: Sim, basicamente são ajudas de RPB, ajuda por vaca aleitante e agro-ambientais.

A: Como é que se consegue conceber e integrar isto no conceito da agricultura regenerativa, do euro solar? M: Aparentemente os subsídios vêm ajudar o produtor, e de facto, é dinheiro que entra. No entanto, este dinheiro acaba por criar um “carrossel”, que passa de umas mãos

para outras. Caso não procuremos um capital biológico e uma base de recursos natural – que significa ser mais eficiente com a fotossíntese –, os subsídios acabam por não servir o seu propósito e criar mais uma dependência. “Mas podias usar o subsídio para fortalecer esta visão”, poderia alguém dizer. Porém, na realidade, o que tenho vindo a fazer é acelerar as dependências de fatores de produção porque, devido à nossa base de recursos pobre, o mais fácil é recorrer a alimentação externa. Está tudo ligado: a indústria promove animais de altos requisitos e penaliza animais pequenos, de menos requisitos. Todo este sistema está ligado por um pensamento, não conspiratório mas simplesmente natural, segundo o qual quem mais beneficia dos subsídios não são os produtores. O dinheiro passa simplesmente por nós que, depois, o entregamos a toda essa bateria de dependências. Com isto não quero dizer que não utilizemos esses subsídios, mas estamos mal focados. Eu próprio continuo com dependências. Se fossemos mais eficientes… só que não estamos isentos de dificuldades. A: Portanto, é possível usar os subsídios como uma oportunidade para preparação de uma futura base natural de recursos, resiliente e estável, investindo no capital biológico… M: Com esforço e indo um bocadinho contra a corrente, mesmo no mercado, pois o mercado quer animais industriais. E apenas conseguimos escoar estes produtos de pastagem, com animais mais leves e com outras condições, e carne mais escura, em … "OS FATORES DE PRODUÇÃO CONTINUAM IDÊNTICOS, SÓ QUE NUMA QUANTIDADE MUITÍSSIMO MENOR."

nichos de mercado muito, muito pequenos. … Por isso, para quem tenha poucos animais e tenha necessidade de vender a nichos de mercado, muito bem. De resto, estamos amplamente penalizados.

A: Portanto, não consegue, de momento, vender a um preço justo o que produz, que é uma carne biológica e de pastagem. Em Portugal não existe ainda este mercado que satisfaça o produtor pelo seu esforço e com um produto que, nutricionalmente, é superior e sustentável? M: De maneira nenhuma. Estamos ligados a vender para as engordas. Está tudo organizado assim, até as raças autóctones têm vindo a aumentar o tamanho dos animais, bem como as suas necessidades, para ir tudo para a engorda industrial.

A: Qual é o balanço financeiro destes últimos 5 anos, desde que embarcou nesta viagem, que é a gestão holística, e quais são os indicadores principais em que se baseia para chegar a essa conclusão? M: O objetivo sempre foi ter mais lucro. Quando ligas o lucro à qualidade de vida, começam a mudar algumas coisas. A ideia é fazer uma espécie de “brincadeira” e perguntar “quanto necessito para viver?” e se precisas de muito, não vai funcionar. Ou seja, deves começar por definir o lucro e não pela alimentação dos animais. Parece uma loucura, mas temos que definir aquilo que pretendemos para ter qualidade de vida e começar por aí. Depois, colocar por ordem de prioridade outras despesas, como impostos, rendas, etc., por ordem de importância. Por fim, o mais importante será identificar as despesas que vão gerar riqueza de património biológico, e as despesas normais de manutenção. Se nós conseguirmos passar, pouco a pouco, de despesas de manutenção a despesas criadoras de riqueza, vamos conseguindo fugir das dependências. Gerar riqueza significa fomentar os processos ecossistémicos para criar um ambiente que seja a base da nossa vida e não o risco económico de viver com entrada/ saída. Há quem diga que pode ser muito lucrativo viver de uma exploração intensiva, mas coloca-te uma situação que, além de destrutiva, tem muito risco. Portanto, devemos olhar para o contexto pessoal. Existem alguns investimentos que não parece que vão criar riqueza, como cercas elétricas, pontos de água, abordagens de descompactação do solo, etc., mas que, na verdade, vão criar uma base de recursos futura. Por isso é tão importante ter um plano da terra. Se considerar a poupança da alimentação forrageira, em termos de volume e de fibra, no segundo ano esses investimentos já estavam pagos. Portanto, essa poupança de comida N: Percebi que um dos problemas deste sistema de produção é produzir animais que não são tão valorizados, devido ao seu tamanho. M: Sim, são animais com muita conformação cárnica, mas com uma estrutura leve. A indústria não quer isso.

N: Porque não utiliza outras raças, que até são utilizadas no Alentejo e em sistema de extensivo? Seria um problema, em vez de Angus, utilizar uma outra raça que lhe desse mais estrutura? M: De facto, existem várias raças autóctones, como as Mertolengas, a Barrosã, no Norte de Portugal, e muitas outras na Península Ibérica. Porém, o grande problema é que, muitas vezes, são animais com pouca precocidade, e pouca conformação (como acontece na Mertolenga), e são raças criadas, desde há muito tempo, para serem abatidas na engorda industrial – até os vitelos da raça Alentejana, por exemplo. Isto já acontece há várias décadas. Os animais autóctones, que antigamente eram usados para trabalho, tinham falta de aptidão cárnica. A aptidão cárnica é um critério moderno.

N: A Angus é, verdadeiramente, a melhor opção? Outras raças muito utilizadas em Portugal, no Alentejo, como Limousine, Charolês ou Salers, não poderiam dar-lhe aquilo que falta para poder vender ao preço que gostaria? M: Não, porque o problema está realmente na contradição de animais de alto requisito. Animais grandes são animais de altos requisitos a nível de metabolismo basal. Além de outros fatores de rusticidade, um animal pequeno tem uma vantagem muito maior, relativamente ao seu peso, de conseguir consumir pastagens de pouca qualidade. A base do nosso problema é que não temos pastagens com densidade energética suficiente. A: Existe o problema também da perceção da qualidade organolética da carne por parte do consumidor? M: Sim, eu tenho tido esse problema. Só consigo vender carne a consumidores conscientes de que a cor da carne não está relacionada com a tenrura e a infiltração. A: Que soluções consegue vislumbrar no futuro para os problemas de comercialização deste tipo de produtos de “nicho”? M: O principal desafio é chegar ao consumidor, e o futuro da PAC vai ter algo que ver com este assunto. A existência de matadouros móveis (entre explorações) seria extraordinária, porque assim podíamo-nos organizar diretamente, entre vários produtores, para escoar os produtos. Eu sei que o consumidor quer isto. O problema é que a grande intermediação não o permite, devido à sua estratégia de movimento. Sobre a questão de como conseguir chegar ao consumidor, num clima mediterrânico, seria ideal valorizar o que chamamos de vitela nacional. Não temos pastagens com densidade energética suficiente para fazer uma engorda até aos 15, 18 ou 20 meses, mas temos a opção de criar vitelos de 6 a 8 meses, diretamente do montado para o consumidor. O único problema é que, ainda que esse produto fosse valorizado pelo consumidor, o produtor ficaria penalizado pelo preço. Aos preços atuais é muito mais rentável vender um animal para engorda, do que “desmanchálo” e vender. Penso que o consumidor não sabe que tem um produto de luxo nos montados, no Alentejo, e noutros sítios da Extremadura. Um produto ideal, muito mais são, sem fármacos, natural, que vem do campo direto para a mesa.

A: E que, se tivesse o incremento bio no preço pago ao produtor, justificaria facilmente… M: Não só bio. Só seria suficiente pagar o mesmo do que vender para uma engorda. É só pensar nisso. Dar-nos-ia a capacidade, aos produtores de campo, para poder trabalhar com esse valor. Neste momento pagam melhor para vender um animal para a engorda para exportação para Israel ou Emirados Árabes... Essa equação absolutamente ilógica tem mais força do que o próprio consumidor português, que deveria poder comprar a carne como uma mais valia.

A: Talvez a solução passasse pela venda direta ao consumidor, com várias vantagens nomeadamente ambientais e nutricionais. M: Mas eu não estou capacitado para formar uma empresa diferente a nível de desmancha, embalamento e gestão comercial, e também não tenho idade para fazer esse empreendimento de conseguir vender 250 vitelos por essa via.

A: Que conselhos deixaria a um gestor de uma empresa agrícola, no âmbito de uma ganadaria, com interesse em aplicar a gestão holística na sua exploração? M: Primeiro, que olhe bem para si, para o seu contexto, para como pretende que seja o seu futuro, e pense como pode conseguir ligar isto ao projeto produtivo. Depois, que tenha consciência de que a mudança é gradual. Por fim, ter em conta que não são sistemas, não são receitas, mas uma “moldura” para encontrar um rumo. O importante é uma mudança mental radical acompanhada por uma estratégia. Um produtor arruinado, no curto prazo, não ajuda o ambiente. Tem que se ligar tudo.

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