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O menino dos avós

Saí de casa, bati a porta, lancei a mão ao bolso à procura das chaves do carro que teimavam em diariamente mudar de sítio e qual não foi o meu espanto quando do seu interior retirei um papel amarrotado no qual estava impressa uma fotografia já bastante maltratada. Embora estivessem já os seus traços esbatidos, imediatamente a identifiquei: esta fotografia havia sido tirada no meu primeiro dia de aulas. Vestia uma t-shirt colorida com alguma bonecada, umas calças de ganga a estrear e uma mochila claramente mais pesada do que seria recomendável para uma criança tão pequena. “Quem era este miúdo?", pensei.

O miúdo da fotografia era uma criança que enquanto pode foi tudo quanto quis ser… Foi o neto do colo da avó e das cavalitas do avô, a gargalhada que, de tão frequente, se tornava já irritante. Aquele miúdo foi o amigo dos amigos, os porquês multiplicados e o abraço apertado que se prolongava até ouvir um “já chega”. Como me lembrava bem daquela criança que queria ser mágico, pintor, jornalista, escritor, músico… aquela criança tinha em si “todos os sonhos do mundo”, os já por si descobertos e os que nos anos seguintes se revelariam.

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Despoletado por aquela memória que guardava com tanto carinho, já no interior do carro foi-me impossível não relembrar os anos que se seguiram, o secundário. Foi a partir do décimo ano que finalmente consegui, num exercício de atenção contínuo, perceber quem era o homem que pouco a pouco se construía. A criança que anos antes nem por um segundo era capaz de largar o abraço da mãe sonhava agora com voos distantes que passavam por mundos que nem o próprio conhecia. O adolescente que durante aqueles três anos se mostrara aos outros constituía para a criança tímida de antigamente um motivo de orgulho maior do que o próprio algum dia ousara almejar.

Medos vencidos, qualidades descobertas, defeitos trabalhados… o eu que no fim do secundário escolhera apresentar aos outros era um eu de quem aprendera a gostar, um eu que se dava aos outros sem que lhe fosse pedido, que entrava em silêncio à procura do seu lugar sempre de forma cautelosa, que amava com tudo quanto tinha e que escrevia na maneira que encontrara de dizer aos outros tudo aquilo que sentia. Era um eu que se ouvia a si próprio, muito firme das suas convicções mas também muito aberto à mudança, um eu que desconhecia ainda as dores da “gente crescida” mas que por uma vez ou outra fora já capaz de as identificar escondidas num abraço.

Tenho saudades daquele que, com o passar do tempo, cresceu, não deixando nunca de ser criança pelo menos na forma como via o outro: pelo lado bom.

E hoje? Quem sou? Sentado atrás do volante, serei hoje motivo de orgulho para os dois jovens que o tempo deixou para trás? Sou eu, no sentido mais literal da expressão. O homem formado que hoje é família tem já em si o amor que durante anos buscara

incessantemente. O

homem formado que hoje conhece os pesos da vida adulta contém ainda em

si o ouvido atento do qual durante tantos anos se

orgulhara. O homem formado que hoje é o produto do passar dos anos, das suas areias e marés, tem ainda em si as marcas de uma criança que os avós procuram não esquecer, tem ainda em si todos os sonhos do mundo.

Diogo Coutinho

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