3 minute read

Opto por me observar como um puzzle

Desde o início da nossa existência, que vamos desvendando diversos mistérios. Começamos, em primeiro lugar, por conhecer o restrito mundo e as pessoas ao nosso redor, compreendendo o conceito de família. Aprendemos a caminhar. Desvendamos o significado das letras e palavras, passando a saber ler e escrever. Expandimos todo este novo conhecimento ao resto do mundo, acabando mesmo por considerar que já descobrimos ou temos acesso a tudo. Contudo, há perguntas que permanecem constantes sobre o nosso intelecto, que mesmo que não queiramos sofrem mudanças e alterações ao longo do nosso quotidiano. Estas são aquelas que abordam o tão temido “Quem”, levando-nos a questionar “Quem fui?” “Quem sou?” e ainda pior “Quem serei?”.

Pessoalmente, devido à minha forte veia científica, que me leva a racionalizar tudo, prefiro percecionar cada característica de uma pessoa como o resultado de um conjunto de acontecimentos na sua vida. Desta forma, consigo compreender mais facilmente o meu ser, no presente, pois basta relembrar os momentos que marcaram o meu passado. Destes, considero pertinente realçar três, que constituem aqueles que tive o singular privilégio de mudar de país, continente, mas, o mais assustador, sair completamente da realidade em que me encontrava. Nasci em Portugal, onde experienciei uma infância comum, porém, com apenas quatro anos, mudei-me para Cabo Verde e posteriormente, com nove anos, naveguei um bocado mais para sul passando a viver em Moçambique. Todavia, não sinto que tenham sido todas essas mudanças geográficas que influenciaram o meu desenvolvimento, mas, na realidade, o que esteve por detrás destas: o contexto social, psicológico e maioritariamente cultural de cada comunidade onde me passei a inserir.

Advertisement

Consequentemente, com a minha regular estadia na terra lusitana, concebi a noção de conforto, segurança e patriotismo, visto que, mesmo estando fora do

PORTUGUÊS – 2020/2021 159

país, sempre soube que este era o sítio onde iria retornar. Ao viver num arquipélago, sempre rodeada por mar e natureza, cultivei a minha forte preocupação com o ambiente e com os outros. Vivenciei um quotidiano completamente desapegado de tudo que era tecnológico, o que me levou a priorizar as relações que estabelecemos com as pessoas. Por fim, em Maputo, acompanhando o amadurecimento natural da idade, também aprendi e pude observar em primeira mão a face negativa do mundo, formando-se em mim um lado mais crítico, consciente e preocupado com os problemas da sociedade atual.

Neste preciso momento, encontro-me no quarto momento de transição da minha vida, em que, depois de muitos anos, retornei às minhas “raízes” e, como se isso não fosse suficiente, esta mudança foi acompanhada pelo surgimento de um vírus que modificou drasticamente o modo como vivemos. Voltei, assim, ao sítio que sempre chamei casa, mas nunca reconheci como tal. A vida conduziume ao Colégio Internato Claret, onde pude encontrar e conhecer novas pessoas, realidades e histórias, contribuindo para o enriquecimento de toda a minha identidade.

Afinal, como é que eu me vejo, pelos meus próprios olhos, no meio destas mudanças todas? Opto por me observar como um puzzle, mais especificamente um mosaico em constante e regular construção. Neste, cada singular peça simboliza uma memória, uma amizade, um hábito, um gosto, uma opinião... No meu caso, há traços e cores que permanecem inalteráveis: a minha avermelhada

e forte determinação em conquistar tudo que ambiciono; a minha inquietação, sobressaindo num tom azul, para com a injustiça, desigualdade e o desrespeito pelo outro; o

PORTUGUÊS – 2020/2021 160

meu constante otimismo e curiosidade, em pintas amarelas, em saber e conhecer mais, mais sobre os outros, mais sobre mim e mais sobre tudo que me rodeia. Contudo, neste mosaico também se encontram traços negativos, como o desejo irrealista de atingir a perfeição e de não aceitar o erro, que levam ao escurecimento temporário das outras cores.

Sendo a minha história fortemente marcada por mudanças, seria simplesmente incoerente afirmar que espero um futuro definido pela estabilidade. Pelo contrário, aspiro a uma vida baseada em alterações, desilusões e desafios, pois são a partir destas que surgem as melhores experiências e memórias. Ambiciono marcar positivamente a vida daqueles que me são mais próximos, já que é somente através das outras pessoas que nos é possível perpetuar o nosso ser e essência. Planeio, assim, continuar a construir o meu mosaico com as mais distintas peças, dando uso às variadíssimas características que já adquiri. Deste modo, quando olhar para o mesmo, como um todo, reconhecerei uma existência única, díspar, mas principalmente imperfeita, visto que, como Fernando Pessoa defendia, o “perfeito é o desumano”.

Maria João Teixeira

PORTUGUÊS – 2020/2021 161

“Quanto mais diferente de mim alguém é, mais real me parece

Bernardo Soares

PORTUGUÊS – 2020/2021 162

This article is from: