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Caminhava de mãos dadas com a audácia

Caminhava de mãos dadas com a

audácia

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Nasci na primavera, mesmo no começo, e gosto de pensar que esse acaso surgiu como uma premonição. Uma menina pouco ou nada delicada, como o vento que não desaparece até ao mês de junho, demasiado irrequieta para não ser constantemente comparada a uma abelha - vestida de amarelo e sempre ocupada com alguma coisa. De alguma forma, permiti-me acreditar durante grande parte da minha infância que era para isso que servia, para fazer barulho e trazer alegria.

Durante esses primeiros anos fui tremendamente feliz. Como não o ser? Tive primas que nunca me permitiram sentir filha única, uma horta cheia de couves e uma piscina para aprender a nadar. Como se uma criança precisasse de mais.

Cresci numa aldeia, porque, apesar do estatuto oficial de vila, era fácil perceber que não era esse o modo de vida ali praticado. Ia buscar pão de bicicleta, conhecia toda a gente e fazia questão de acenar a cada um deles. Corria sempre com os atacadores desapertados e esfolava os joelhos com uma regularidade assustadora. “Não sabes estar quieta, Daniela?” era o que os meus pais perguntavam, completamente exasperados. Mas não, não sabia. Nunca soube.

A vergonha e eu éramos meras desconhecidas. Caminhava de mãos dadas com a audácia e pouco me importava com o que pensavam de mim. De alguma forma, achava que as opiniões negativas só se formulavam em volta de pessoas más, algo que estava perfeitamente ciente de não ser. Olhando para trás é impossível não sentir orgulho, porque era realmente muito atrevida de um modo encantador. Qualquer velhinha nos jantares de família se derretia perante aquela imagem da miúda de cabelos demasiado rebeldes e olhos demasiado brilhantes, que nunca parava de comentar o mundo. Aquela que não tinha problemas em

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pedir garrafas de vinho aos empregados de mesa apesar da idade e muito menos em provocar curtos-circuitos devido a experiências com quadros elétricos.

Foi mais ou menos por volta do meu nono aniversário que descobri a literatura. Os meus pais haviam decidido separar-se recentemente e passei a percorrer centenas de quilómetros por mês para me encontrar com a minha mãe, o que me proporcionava uma quantidade assustadora de tempo livre fechada num carro. Com isto, comprei o meu primeiro livro, um número aleatório de uma coleção infantojuvenil - entusiasmou-me tanto que o devo ter relido umas seis

vezes.

A partir daí, fui explorando esse novo mundo e deixei-me envolver por ele de tal modo que até hoje é possível identificar as marcas que deixou na minha personalidade. A sensibilidade artística, o amor pelo abstrato e o desprezo pela racionalização excessiva perseguem-me até ao momento presente. São, honestamente, as características que mais aprecio em mim própria.

Com doze anos já tinha lido obras como Amor de Perdição e Orgulho e Preconceito, por mero capricho. Para mim era impensável considerar-me uma leitora ávida sem mergulhar nos clássicos, apesar da minha nítida incapacidade para interpretar toda a complexidade daquelas produções literárias. É essa uma outra característica que ainda trago comigo, um desejo permanente de me sentir desafiada e de colocar os meus conhecimentos à prova. Contudo, não posso negar que desenvolvi uma aversão pouco saudável ao fracasso. É-me muito difícil reconhecer que não desempenhei a minha função bem o suficiente, razão pela qual tendo a escolher satirizar excessivamente a situação ou ignorá-la até que aqueles que me rodeiam a esqueçam. O problema é que eu nunca me esqueço.

A adolescência atingiu-me como um furacão. Sempre me prometeram anos intensos, selvagens e dolorosos, mas não acreditei numa única palavra até sentir o seu significado na pele. O contexto social em que me encontrava inserida levoume a desenvolver uma necessidade excessiva de validação externa e, acima de tudo, uma necessidade exagerada de companhia. A partir de uma certa idade, estar sozinha tornou-se insuportável e por isso mesmo não poderia deixar de citar Fernando Pessoa: “Má música? Sim, mas há/ Até na música má/ Um sentimento

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de alguém.” O tempo que passava a sós com os meus pensamentos era indescritivelmente insuportável e vejo hoje que incluí na minha rede de apoio elementos perfeitamente dispensáveis. No entanto, não encontro em mim nenhuma fração que se arrependa dessas decisões. Sim, a música era má, mas a verdade é que me salvou mais vezes do que alguma vez serei capaz de retribuir.

Tal como afirmaria qualquer poeta de bom-tom, o futuro é profundamente incerto. Apesar de tudo o que possa prometer para atenuar a preocupação dos meus pais, não tenho ideia de onde a vida me levará. Não obstante, é inegável que a ambição me corre pelas veias a uma velocidade alucinante. Apesar das dúvidas que vão surgindo ao longo do caminho, confio em mim para tomar as minhas próprias decisões e forjar os meus próximos desafios. Na minha ótica, a espontaneidade é uma qualidade de um valor inestimável - eu não saberia viver de outra

forma. Os meus sonhos e ideias

têm tanto de abstrato quanto possível e, ainda assim, fazem todo o sentido do mundo, na minha mente.

Aproxima-se uma mudança tão drástica que dificilmente manterei o equilíbrio durante todo o processo, um fim implacável. Como aconteceu com todas as mudanças que ocorreram nos meus dezoito anos de vida, a sensação de terror marca a sua presença de um modo muito pouco subtil. Apesar disso, interiorizarei a possibilidade da queda do mesmo modo que trago comigo a esperança de um dia poder voar.

Espero que os meus pais nunca venham a ler este documento. Ilustra, realmente, um fragmento muito vulnerável da minha pessoa.

Daniela Jesus

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“Os olhos são cegos. É preciso ver com o coração.”

Antoine de Saint-Exupéry

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